o segredo do anel · o segredo do anel o legado de maria madalena tradução de pinheiro de lemos ....
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O segredo do anel
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Kathleen McGowan
O segredo do anel O legado de Maria Madalena
Tradução de Pinheiro de Lemos
Título original THE EXPECTED ONE
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, localidades e incidentes são produtos da imaginação da autora ou foram usados
de forma ficcional. Qualquer semelhança com acontecimentos ou locais e pessoas reais, vivas ou não, é mera coincidência.
Copyright © 2006 by McGowan Media, Inc. Todos os direitos reservados, incluindo os direitos
de reprodução no todo ou em parte sob qualquer forma.
Edição brasileira publicada mediante acordo com editor original, Simon & Schuster, Inc.
Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à
EDITORA ROCCO LTDA. Av. Presidente Wilson, 231-8° andar
20030-021 — Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 3525-2000 — Fax: (21) 3525-2001
rocco@rocco.com. br www.rocco.com.br
Printed in Brazil/lmpresso no Brasil
revisão técnica LUCAS TRAVASSOS TELLES
preparação de originais MÔNICA MARTINS FIGUEIREDO
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
McGowan, Kathleen
M429s O segredo do anel/Kathleen McGowan; tradução de Pinheiro de Lemos. — Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
(Linhagem de Madalena; v.1)
Tradução de: The expected one ISBN 85-325-2096-0 1. Maria Madalena, Santa — Ficção. 2. Romance
norte-americano. I. Lemos, A. B. Pinheiro de (Alfredo Barcellos Pinheiro de), 1938. II Título. III. Série.
CDD-813
06-2266 CDU-821.111 (73)-3
À senhora eleita e seus filhos, que amo
na luz da verdade — não apenas eu, mas todos
os que têm conhecimento da verdade — em
virtude da verdade que permanece em nós
e estará conosco para sempre.
— 2 JOÃO 1-2
Este livro é dedicado a
Maria Madalena,
minha musa, minha ancestral;
Peter McGowan,
a pedra sobre a qual construí minha vida;
Meus pais, Donna & Joe,
pelo amor incondicional e a genética fascinante,
e a nossos príncipes do Graal,
Patrick, Conor e Shane,
por preencherem nossas vidas com amor,
riso e constante inspiração
PRÓLOGO
Gália Meridional, ano 72
Não restava muito tempo.
A velha puxou o xale esfarrapado em torno dos ombros. O outono
chegara mais cedo às montanhas vermelhas naquele ano e ela podia
senti-lo nos ossos. Suavemente, devagar, flexionou os dedos, desejando
que as juntas enrijecidas relaxassem. As mãos não podiam lhe faltar
agora, não com tanta coisa a fazer. Tinha de acabar de escrever naquela
noite. Tamar chegaria em breve com os jarros e era preciso que tudo
estivesse pronto.
Ela permitiu-se um longo suspiro, meio trêmulo. Sinto-me cansada
há muito tempo. Tempo demais.
Aquela missão final, ela sabia, seria a última que teria neste
mundo. Os dias passados em recordação haviam drenado a vida que ainda
pulsava no corpo sem viço. Os ossos velhos estavam sobrecarregados pelo
inexprimível pesar e cansaço daqueles que sobrevivem às pessoas amadas.
As provações a que Deus a submetera haviam sido muitas e rigorosas.
Somente Tamar, a única filha mulher e a última criança viva,
permanecia com ela. Tamar era sua bênção, o lampejo de luz naquelas
horas tenebrosas, em que lembranças mais aterradoras do que
pesadelos recusavam-se a ser contidas. Sua filha era agora a única outra
sobrevivente do Grande Tempo, embora fosse apenas uma criança,
quando todos desempenharam seu papel na história viva. Ainda assim,
era um conforto saber que havia alguém que lembrava e compreendia.
Os outros haviam partido. A maioria morrera, martirizada por
métodos brutais demais para serem suportados. Talvez alguns ainda
sobrevivessem, dispersos pelo vasto mapa do mundo de Deus. Ela nunca
saberia. Muitos anos já haviam passado desde que recebera as últimas
notícias dos outros, mas, de qualquer forma, orava por eles e orava do
amanhecer ao anoitecer, naqueles dias de recordações muito intensas.
Gostaria de ter em seu coração e alma a paz, que eles não sofressem a
agonia dos milhares de noites insones.
Era verdade, Tamar se tornara seu único refúgio naqueles anos de
crepúsculo. Ela era jovem demais para recordar os terríveis detalhes do
Tempo das Trevas, mas já tinha idade suficiente para lembrar a beleza e
a graça das pessoas que Deus escolhera para trilharem Seu caminho. Ao
dedicar sua vida à memória daqueles eleitos, o caminho de Tamar fora de
puro amor e serviço. A singular dedicação da jovem a confortar a mãe,
naqueles dias finais, fora extraordinária.
Deixar minha amada filha é a única coisa difícil que me resta
fazer. Mesmo agora, quando a morte vem me buscar, não posso aceitá-la
de bom grado.
E, no entanto...
Ela espraiou seu olhar da entrada da caverna, que tinha sido seu
lar por quase quarenta anos. O céu estava claro. Ela ergueu o rosto
enrugado para contemplar a beleza das estrelas. Nunca deixara de se
sentir maravilhada com a criação de Deus. Em algum lugar, além
daquelas estrelas, as almas que mais amara neste mundo aguardavam-
na. Podia senti-las agora, mais próximas do que em qualquer outro
momento anterior.
E podia senti-Lo.
— Seja feita a Sua vontade — sussurrou ela para o céu noturno.
A velha virou-se, devagar, determinada, e tornou a entrar na
caverna. Respirou fundo, pegou o pergaminho áspero, os olhos contraídos
na claridade mínima e enfumaçada de um lampião de óleo.
Pegou o estilo e recomeçou a escrever, com todo o cuidado.
... Tantos anos transcorridos e não tornou-se mais fácil agora escrever
a respeito de Judas Iscariotes do que naqueles dias sinistros. Não porque eu
dele fizesse qualquer julgamento, mas justamente porque não fazia.
Contarei a história de Judas, e tenciono fazê-lo com justiça. Era um
homem intransigente em seus princípios, e aqueles que nos seguem disso
devem saber: ele não os traiu — nem a nós — por um saco de moedas de
prata. A verdade é que Judas era o mais fiel dos doze. Muitas foram minhas
razões para a dor ao longo dos anos que já se passaram, e, mesmo assim,
considero que há apenas Um e Único cuja perda lamento mais do que a de
Judas.
Há muitos que me coagiriam a escrever o pior possível em relação a
Judas... a condená-lo como um traidor, alguém que não enxergava a verdade.
Porém não permito-me escrever nenhuma dessas coisas, pois mentiras
seriam antes mesmo que a pena tocasse o pergaminho. Muitas serão as
mentiras escritas sobre o nosso tempo. Deus assim me revelou. Nego-me,
pois, a escrever qualquer outra.
Afinal, qual é o meu propósito, se não o de relatar toda a verdade
dos acontecimentos daquele tempo?
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPITULO UM
Marselha
Setembro de 1997
Marselha sempre fora, séculos afora, um lugar marcado pela morte.
O lendário porto mantinha a reputação de covil de piratas,
contrabandistas e assassinos, desde a época em que os romanos tomaram
a cidade dos gregos, antes de Cristo.
Ao final do século XX, os esforços do governo francês no combate ao
crime na cidade finalmente permitiram que se saboreasse uma bouillabaise
sem o medo de ser assaltado. Não que o crime chocasse seus habitantes.
A violência estava enraizada em sua história e genética. Os calejados
pescadores nem piscavam quando suas redes pegavam alguma coisa
mais consistente do que frutos do mar.
Roger-Bernard Gelis não era um nativo de Marselha. Nascera e fora
criado nos contrafortes dos Pireneus, numa comunidade que sobrevivia,
orgulhosa, ao seu anacronismo. O século XXI não ameaçava sua cultura,
muito antiga, que reverenciava os poderes do amor e da paz acima de
todas as coisas terrenas. Mesmo assim, ele era um homem de meia-idade
com alguma experiência do mundo, pois era o líder de seu povo. E, embora
a comunidade convivesse em profunda paz espiritual, tinha sua cota de
inimigos.
Roger-Bernard gostava de dizer que a luz maior atrai as trevas mais
profundas.
Era quase um gigante, uma presença imponente para os
estranhos. Aqueles que não conheciam a gentileza que prevalecia no espírito
de Roger-Bernard podiam confundi-lo com alguém que devia ser temido.
Alguém diria, mais tarde, que seus atacantes provavelmente não lhe eram
desconhecidos.
Ele deveria ter percebido o que poderia acontecer. Deveria ter
compreendido que não o deixariam carregar um objeto de valor tão
inestimável impunemente. Afinal, um milhão de seus ancestrais
não haviam morrido por aquele mesmo tesouro? Mas o tiro fora
disparado por trás, estilhaçando seu crânio antes mesmo que ele
soubesse que o inimigo estava próximo.
O exame de balística seria inútil para a polícia, já que os
assassinos não encerraram seus feitos com o ataque. Devia haver
vários deles, pois o tamanho e o peso da vítima exigiriam uma certa
força para concretizar o dano.
Foi um ato de misericórdia Roger-Bernard ter morrido antes
que o ritual começasse. Foi poupado da exultação de seus
assassinos enquanto se empenhavam na tarefa macabra. Seria
possível imaginar um fervor especial nas ações seguintes,
embaladas pelo antigo mantra de ódio enquanto trabalhavam.
— Neca eos omnes. Neca eos omnes.
Separar uma cabeça humana do resto do corpo é um trabalho
difícil e complicado. Exige força, determinação e um instrumento
muito afiado. Os assassinos de Roger-Bernard Gelis tinham todas
essas coisas e usaram-nas com extrema eficiência.
O corpo estava no mar havia bastante tempo, sacudido pelas
ondas e roído pelos famintos habitantes das profundezas. Os
investigadores ficaram tão impressionados com as precárias
condições do cadáver que atribuíram pouco significado ao dedo
desaparecido em uma das mãos. Uma autópsia, arquivada mais
tarde pela burocracia — ou talvez por algo mais —, limitou-se a
registrar que o dedo indicador da mão direita fora decepado.
Jerusalém
Setembro de 1997
A antiga e movimentada Cidade Velha de Jerusalém fervilhava
com a frenética atividade de uma tarde de sexta-feira. A história
impregnava o ar seco, enquanto os fiéis se apressavam a caminho
de suas casas de culto, em preparativos para os respectivos sabás. Os
cristãos vagueavam pela Via Dolorosa, a Via Sacra, uma série de ruas
sinuosas, calçadas com pedras, que fora o caminho para a crucificação.
Fora por ali que um Jesus Cristo açoitado e sangrando, suportando no
ombro uma pesada cruz, seguira para seu destino divino, no alto do
Gólgota.
Naquela tarde de outono, a escritora americana Maureen Paschal
não parecia diferente dos outros peregrinos, que acorriam dos cantos
mais distantes e variados do mundo. A brisa inebriante de setembro
misturava o aroma de shwarma, o prato de galinha desossada crepitante,
com os cheiros de óleos exóticos que exalavam dos mercados antigos.
Maureen circulava pelo impacto sensorial que era Israel, com um guia de
viagem de uma organização cristã, comprado pela Internet. O guia
detalhava a Via Sacra, com mapas e instruções para encontrar as catorze
estações do caminho de Cristo.
— Quer um rosário, moça? É madeira do Monte das Oliveiras.
— Moça, precisa de um guia? Nunca vai se perder. E mostrarei
tudo que quiser.
Como a maioria das ocidentais, ela era obrigada a se esquivar dos
avanços indesejáveis dos mercadores das ruas de Jerusalém. Alguns eram
insistentes em seus esforços para oferecer mercadorias e serviços. Outros
apenas sentiam-se atraídos pela mulher pequena, de cabelos ruivos
compridos e pele clara, contraste singular naquela parte do mundo.
Maureen repelia seus perseguidores com um “Não, obrigada” polido, mas
firme. Depois, ela desviava o olhar e se afastava. Seu primo Peter,
especializado em estudos do Oriente Médio, preparara-a para a cultura
da Cidade Velha. Maureen era meticulosa em seu trabalho e estudara a
cultura de Jerusalém com todo o cuidado. Até agora, estava dando
resultado. Maureen era capaz de desviar sua concentração o mínimo,
enquanto se detinha na pesquisa, observando e anotando detalhes no
caderninho de capa de couro.
Ficara comovida até as lágrimas pela intensidade e beleza da Capela
da Flagelação franciscana, erguida há oitocentos anos no lugar em que
Jesus sofrera as vergastadas. Uma reação emocional profunda e
inesperada, já que Maureen não fora a Jerusalém como peregrina, mas
como observadora investigativa, uma escritora em busca do cenário
histórico acurado para sua trama. Ao procurar uma compreensão maior
dos acontecimentos da Sexta-feira da Paixão, Maureen abordara a
pesquisa com a cabeça, não com o coração.
Visitou o Convento das Irmãs de Sion, antes de passar para a
vizinha Capela da Condenação, o lendário local em que Jesus recebera a
cruz, depois da sentença de crucificação proferida por Pôncio Pilatos.
Mais uma vez, o inesperado aperto na garganta foi acompanhado por
um sufocante sentimento de angústia, enquanto percorria o prédio.
Esculturas em baixo-relevo, em tamanho natural, ilustravam os eventos
de uma manhã terrível, dois mil anos antes. Maureen ficou imóvel,
paralisada, por uma cena vivida de humanidade atormentada: um
discípulo que tentava proteger Maria, a Mãe de Jesus, poupando-a da
visão do filho carregando a cruz. Lágrimas arderam no fundo dos seus
olhos enquanto contemplava a imagem. Era a primeira vez na vida em
que pensava naqueles personagens históricos como pessoas reais,
seres humanos de carne e osso, sofrendo por uma fatalidade quase
inconcebivelmente dolorosa.
Como se sentisse um pouco tonta, Maureen estendeu a mão para
as pedras frias da parede antiga, a fim de se firmar. Fez uma pausa para
se concentrar, antes de retomar as anotações sobre as pinturas e
esculturas.
Continuou em seu caminho, mas as ruas da Cidade Velha eram
um autêntico labirinto. Podiam ser enganadoras, até mesmo para
quem tinha um mapa meticuloso. Os pontos de referência eram quase
sempre antigos, desgastados pelo tempo, e podiam passar despercebidos,
com a maior facilidade, por pessoas que não conheciam seu paradeiro.
Maureen esboçou uma imprecação silenciosa ao compreender que se
perdera de novo. Parou ao abrigo do vão de porta de uma loja, evitando o
sol direto. A intensidade do calor, apesar da brisa que soprava, não
combinava com a época do ano, o final do verão. Ela protegeu o guia da
claridade forte, consultou-o e olhou ao redor, tentando se orientar.
— A Oitava Estação da Cruz deve ser em algum lugar aqui por
perto — murmurou.
Maureen tinha um interesse específico pelo local, na medida em
que seu trabalho concentrava-se na história relacionada com as
mulheres. Numa nova consulta ao guia, ela leu a passagem dos
evangelhos relacionada com a Oitava Estação:
Muitas pessoas o seguiam, inclusive mulheres que lamentavam e
choravam por ele. Jesus disse: Não chorem por mim, filhas de Jerusalém.
Chorem por si mesmas e por suas crianças.
Maureen foi surpreendida por uma batida firme na vitrine, por trás
dela. Virou-se, esperando deparar com o olhar de um proprietário furioso
por estar bloqueando a entrada da loja. O rosto que a fitava do outro
lado entretanto, exibia uma expressão radiante. Um palestino de meia-
idade, vestido de maneira impecável, abriu a porta da loja de antiguidades
fazendo sinal para Maureen entrar. Quando ele falou, foi num inglês
correto, temperado pelo sotaque:
— Entre, por favor. Seja bem-vinda. Sou Mahmoud. Está perdida?
Maureen acenou com o guia, embaraçada.
— Estou procurando a Oitava Estação. O mapa mostra...
Mahmoud descartou o livro, com uma risada.
— A Oitava Estação. Jesus se encontra com as mulheres santas
de Jerusalém. Fica aqui perto, logo depois da esquina. — Ele apontou.
— O local é assinalado por uma cruz bem em cima do muro de pedra,
mas você tem de olhar com muito cuidado.
Mahmoud fitou Maureen atentamente por um momento, antes de
acrescentar:
— É como tudo em Jerusalém. Você tem de olhar com muita
atenção para ver o que é.
Maureen observou seus gestos, até ter certeza de que compreendia
a orientação. Sorriu, agradeceu e virou-se para sair. Mas parou de repente,
quando alguma coisa numa prateleira próxima atraiu sua atenção. A loja
de Mahmoud era um dos estabelecimentos mais sofisticados de
Jerusalém. Vendia antiguidades autenticadas, como lampiões do tempo
de Cristo ou moedas com a efígie de Pôncio Pilatos. Um delicado tremeluzir
de cores passando pela vitrine deixou-a fascinada.
— São jóias feitas com fragmentos de vidros romanos —
explicou Mahmoud, enquanto Maureen se aproximava de um
mostruário com jóias de prata e ouro com mosaicos coloridos.
— São deslumbrantes — murmurou Maureen.
Ela pegou um pendant de prata. Prismas de cor projetaram-se pela
sala, enquanto ela suspendia a jóia para a luz, iluminando sua
imaginação de escritora.
— Qual seria a história que este pedaço de vidro poderia contar?
— Quem sabe o que foi outrora? — Mahmoud deu de ombros. —
Um vidro de perfume? Um pote de especiarias? Um vaso para rosas ou
lírios?
— É espantoso pensar que há dois mil anos era um objeto do
cotidiano na casa de alguém. Uma perspectiva fascinante.
Maureen resolveu examinar mais atentamente a loja e as coisas
que oferecia. Ficou impressionada com a qualidade dos itens e a beleza
dos mostruários.
— Isto tem mesmo dois mil anos?
— Claro. E algumas das outras peças à venda são ainda mais
antigas.
Maureen balançou a cabeça.
— Antiguidades como estas não deveriam pertencer a um museu?
Mahmoud riu, um som exuberante e efusivo.
— Minha cara, a cidade de Jerusalém inteira é um museu. Não se
pode abrir um buraco em seu jardim sem encontrar alguma coisa muito
antiga. A maior parte dos objetos valiosos vai para coleções
importantes. Mas nem tudo.
Maureen foi até um balcão de vidro, onde havia jóias antigas de
cobre marchetado e oxidado. Sua atenção foi atraída por um anel com
um disco do tamanho de uma moeda pequena. Mahmoud acompanhou
seu olhar, tirou o anel do mostruário e o estendeu para ela. Um raio de sol,
passando pela vitrine, incidiu sobre a peça e, iluminando sua base redonda,
realçou um padrão de nove pontos em torno de um círculo central.
— Uma escolha muito interessante — comentou Mahmoud.
Sua atitude jovial mudara. Estava agora intenso e sério,
observando Maureen atentamente, enquanto ela o interrogava a respeito
do anel.
— Quão antigo é este anel?
— É difícil dizer. Meus peritos dizem que era bizantino,
provavelmente do século VI ou VII, talvez mais antigo.
Maureen examinou o padrão dos círculos.
— Este padrão parece... familiar. Tenho a impressão de que já o
vi antes. Sabe se simboliza alguma coisa?
A intensidade de Mahmoud relaxou.
— Não posso dizer com certeza o que um artesão pretendia criar
há mil e quinhentos anos. Mas me garantiram que era o anel de um
cosmólogo.
— Um cosmólogo?
— Alguém que compreende a relação entre a Terra e o cosmo.
Como acima é abaixo. E devo dizer que me lembrou, na primeira vez em
que o vi, dos planetas girando em torno do sol.
Maureen contou os pontos em voz alta.
— ...sete, oito, nove. Mas não podiam saber que havia nove
planetas naquele tempo ou que o sol era o centro do sistema solar. Isto
não é possível, não é mesmo?
— Não podemos presumir que sabemos o que os antigos
percebiam. — Mahmoud deu de ombros. — Experimente o anel.
Maureen, notando subitamente a conversa de um vendedor,
devolveu o anel.
— Não, obrigada. É muito bonito, mas eu estava apenas curiosa.
E prometi a mim mesma que não gastaria dinheiro hoje.
— Não tem problema. — Mahmoud recusou-se a pegar o anel de
volta, numa atitude firme. — Porque o anel não está à venda.
— Não?
— Não. Muitas pessoas já quiseram comprar esse anel. Eu me
recuso a vendê-lo. Sinta-se à vontade para experimentar. Apenas por
diversão.
Talvez porque a jovialidade tivesse voltado ao tom de Mahmoud e ela
se sentisse menos pressionada ou talvez fosse a atração pelo padrão antigo
e inexplicado. Alguma coisa, no entanto, fez com que Maureen enfiasse o
disco de cobre no dedo anular direito. Coube perfeitamente. Mahmoud
balançou a cabeça, sério de novo, quase sussurrando para si mesmo:
— Como se tivesse sido feito para você.
Maureen ergueu o anel para a luz, olhando para a mão.
— Não consigo desviar os olhos.
— Isso acontece porque você deve ficar com o anel.
Maureen fitou-o, desconfiada, sentindo a iminência de uma oferta
de venda.
Mahmoud tinha mais classe que os vendedores das ruas, mas, de
qualquer forma, era um mercador.
— Pensei que houvesse dito que não está à venda.
Ela fez menção de tirar o anel, ao que Mahmoud protestou com
veemência, erguendo as mãos.
— Não. Por favor.
— Está bem. E neste ponto que começamos a negociar, não é
mesmo? Quanto?
Mahmoud pareceu ofendido por um momento, antes de responder:
— Não está entendendo. Esse anel me foi confiado até que
encontrasse a mão certa. A mão para a qual foi feito. Descubro agora que
é a sua mão. Não posso vendê-lo a você porque já é seu.
Maureen olhou para o anel, depois para Mahmoud, perplexa:
— Eu é que não entendo.
Mahmoud ofereceu um sorriso solene. Encaminhou-se para a
porta da frente da loja.
— Não pode entender. Mas um dia vai compreender. Por
enquanto, apenas fique com o anel. É um presente.
— Eu não poderia...
— Pode e ficará. Deve ficar. Se não o fizer, eu terei fracassado. E
não vai querer esse peso na consciência, é claro.
Maureen sacudiu a cabeça, cada vez mais aturdida, enquanto
o seguia até a porta. Parou ali.
— Não sei o que dizer ou como agradecer.
— Não precisa. Mas tem de ir agora. Os mistérios de Jerusalém
estão à sua espera.
Mahmoud segurou a porta aberta. Maureen saiu e agradeceu
de novo.
— Adeus, Madona... — sussurrou Mahmoud, enquanto ela se
afastava.
Maureen parou no mesmo instante. Virou-se:
— Desculpe, mas o que foi mesmo que disse?
Mahmoud tornou a exibir um sorriso enigmático.
— Eu disse adeus, minha cara.
Ele acenou em despedida. Maureen retribuiu o gesto e tornou a se
afastar, ao sol forte do Oriente Médio.
Maureen voltou à Via Dolorosa, onde encontrou a Oitava Estação,
exatamente como Mahmoud indicara. Mas estava inquieta e incapaz de
se concentrar, sentia-se estranha depois do encontro com Mahmoud. Ao
continuar em seu caminho, a sensação de vertigem que já experimentara
antes voltou, desta vez mais forte, a ponto de desorientá-la. Era seu
primeiro dia em Jerusalém e com certeza sofria do cansaço da viagem e
da alteração dos fusos horários. O vôo em que chegara de Los Angeles na
noite anterior fora longo e cansativo e ela quase não dormira. Fosse uma
combinação de calor, exaustão e fome ou alguma coisa mais inexplicável, o
que aconteceu em seguida estava completamente fora do território da
experiência de Maureen.
Ao encontrar um banco de pedra, ela se sentou para descansar um
pouco. Balançou com outra onda de vertigem inesperada, enquanto um
clarão ofuscante emanava do sol implacável, transportando os seus
pensamentos.
Foi lançada abruptamente no meio de uma multidão. O caos
reinava ao seu redor. Havia muitos gritos e empurrões, uma intensa
comoção por todos os lados. Maureen conservava o suficiente da
mentalidade moderna para perceber que as pessoas enxameando ao seu
redor vestiam roupas feitas em tear manual. Muitas estavam descalças,
enquanto outras usavam uma versão tosca de sandália, como ela notou
quando alguém pisou em seu pé. Quase todos eram homens, barbudos e
sujos. O sol onipresente do início da tarde castigava-os, misturando suor
com poeira nos rostos furiosos e aflitos ao seu redor. Ela estava na beira
de uma rua estreita. A multidão à frente começava a se empurrar, com um
vigor crescente. Uma brecha natural surgiu, com um pequeno grupo
avançando lentamente pelo caminho. A multidão parecia seguir esse
grupo. Quando a massa em movimento chegou mais perto, Maureen viu a
mulher pela primeira vez.
Uma ilha solitária e serena no meio do caos, era uma das poucas
mulheres na multidão... mas não era isso que a tornava tão diferente. Era
o seu comportamento, uma atitude imponente, que a distinguia como
uma rainha, apesar da camada de poeira que cobria-lhe as mãos e os pés.
Estava um pouco desgrenhada, os cabelos castanho-avermelhados
lustrosos presos parcialmente por baixo de um véu escarlate, que cobria a
metade do rosto. Maureen compreendeu, num impulso instintivo, que
precisava alcançar essa mulher, precisava se ligar a ela, tocá-la, falar com
ela. Mas a multidão agitada a impedia, e ela se deslocava nos movimentos
em câmera lenta de um sonho.
Enquanto continuava a avançar com dificuldade na direção da
mulher, Maureen ficou impressionada com a beleza angustiada de seu
rosto. Tinha feições delicadas e refinadas. Mas foram os olhos que
continuaram a assediar Maureen muito depois que a visão acabou.
Eram olhos enormes e brilhantes, com lágrimas não derramadas, em
algum ponto no espectro de cores entre o âmbar e o verde, com uma
luminosidade castanho-clara extraordinária que refletia uma infinita
sabedoria e uma tristeza insuportável, numa mistura comovente. Os
olhos da mulher, profundos e envolventes, encontraram-se com os de
Maureen por um momento breve e interminável... e aqueles olhos
surpreendentes transmitiram uma súplica de total e absoluto desespero.
Você tem de me ajudar.
Maureen sabia que a súplica lhe era dirigida. Ficou em transe,
paralisada, enquanto a mulher a fitava. O momento foi rompido quando
a mulher baixou os olhos para uma menina que a puxava pela mão, com
urgência.
A criança também fitou-a, com aqueles enormes olhos claros que
herdara da mãe. Por trás dela havia um menino, mais velho e com olhos
mais escuros que a menina, mas obviamente filho daquela mulher.
Maureen compreendeu, naquele momento inexplicável, que era a única
pessoa que podia ajudar a estranha majestosa e sofredora e seus filhos.
Um fluxo de intensa confusão, acompanhado por alguma coisa muito
parecida com pesar, sucedeu-se a essa compreensão.
Depois, a multidão tornou a arremeter, engolfando Maureen num
mar de suor e desespero.
Maureen piscou várias vezes. Fechou os olhos com força, por
alguns segundos. Sacudiu a cabeça vigorosamente, para clarear a visão,
sem saber a princípio onde se encontrava. Um olhar para o jeans, a
mochila de microfibra e o tênis Nike proporcionou-lhe a garantia de que se
encontrava à beira do século XXI. Ao seu redor, a agitação da Cidade
Velha também era intensa, mas as pessoas vestiam roupas
contemporâneas e os sons agora eram diferentes. A rádio Jordão
transmitia uma canção americana — seria “Losing My Religion”, do REM?
— de uma loja no outro lado da rua. Um adolescente palestino
tamborilava o ritmo no balcão. Sorriu para ela, sem perder a marcação.
Maureen levantou-se e tentou se livrar da visão... se é que fora
mesmo isso. Não tinha certeza do que fora nem podia se permitir pensar
a respeito. Sua estada em Jerusalém era curta e tinha dois mil anos de
cenários para visitar. Acionou a disciplina de jornalista e a experiência da
vida inteira de controle de suas emoções. Tratou de arquivar a visão em
assuntos a serem pesquisados, para análise posterior, e recomeçou a
andar.
Descobriu-se no meio de um enxame de turistas britânicos que
contornaram a esquina, levados por um guia que usava o colarinho de
sacerdote anglicano. Ele anunciou para seu grupo de peregrinos que se
aproximavam do local mais sagrado da Cristandade, a Basílica do
Santo Sepulcro.
Maureen sabia, por sua pesquisa, que as Estações da Cruz que
restavam ficavam dentro daquele prédio reverenciado. A basílica
ocupava vários quarteirões, inclusive o local da crucificação. A construção
começara quando a imperatriz Helena jurara proteger esse lugar
sagrado, no século IV. Helena, a mãe do imperador romano Constantino,
fora mais tarde canonizada por seus esforços.
Maureen aproximou-se da vasta entrada devagar, com alguma
hesitação. Ao parar no limiar, compreendeu que não entrava numa igreja
de verdade havia muitos anos. Não gostou da perspectiva. Lembrou a si
mesma, com a devida firmeza, que a pesquisa que a trouxera a Israel era
acadêmica, não espiritual. Enquanto se mantivesse concentrada nesse
aspecto da questão, não teria qualquer problema. Poderia passar por
aquelas portas.
Apesar de sua relutância, ela teve de admitir que havia alguma
coisa naquele colossal santuário que inspirava reverência, um ambiente
magnético. Enquanto passava pela entrada enorme, ela ouviu as palavras
do sacerdote britânico:
— Dentro destas paredes, vocês verão onde Nosso Senhor fez o
supremo sacrifício. Onde ele foi despojado de sua túnica e pregado na
cruz. Entrarão na tumba sagrada em que seu corpo foi sepultado. Meus
irmãos e irmãs em Cristo, depois de entrarem aqui, suas vidas nunca
mais serão as mesmas.
O cheiro intenso e inconfundível do incenso chamado olíbano
envolveu Maureen quando ela entrou. Peregrinos de todas as áreas da
Cristandade espalhavam-se pelos vastos espaços da basílica. Ela passou
por um grupo de sacerdotes coptas empenhados numa discussão
reverente, as vozes abafadas. Observou um clérigo ortodoxo grego
acender uma vela numa das pequenas capelas. Um coro masculino
cantava em dialeto oriental, um som exótico para ouvidos ocidentais, o
hino se elevando de algum lugar secreto dentro da basílica.
Maureen concentrava-se em absorver as imagens e sons daquele
lugar sagrado, atordoada com a sobrecarga sensorial. Não notou a
aproximação do homem pequeno, magro e forte, até que ele bateu em
seu ombro, provocando um sobressalto.
— Desculpe, moça. Desculpe, Srta. Mo-ree.
Ele falava inglês. Ao contrário do enigmático Mahmoud, no entanto,
seu sotaque era carregado. Sua habilidade com o idioma de Maureen era
rudimentar, na melhor das hipóteses; por isso ela não entendeu a
princípio que o homem a chamava pelo primeiro nome. Ele repetiu.
— Mo-ree. Seu nome. É Mo-ree, não é?
Maureen estava perplexa, tentando determinar se o
estranho homenzinho a chamava mesmo pelo seu nome e, se
chamava, como o conhecia. Estava em Jerusalém havia menos de
vinte e quatro horas e ninguém na cidade sabia seu nome, exceto o
recepcionista do King David Hotel. Mas aquele homem era
impaciente e perguntou de novo:
— Mo-ree. Você é Mo-ree. Escritora. Você escreve, não é? Mo-ree?
Maureen acenou com a cabeça em confirmação, lentamente.
— Isso mesmo. Meu nome é Maureen. Mas como... como você
sabia?
O homem ignorou a pergunta. Pegou-a pela mão e puxou-a
através da igreja.
— Não há tempo, não há tempo. Venha. Esperamos muito
tempo por você. Venha, venha.
Para um homem tão pequeno — era mais baixo até do que
Maureen —, ele se movia com bastante rapidez. As pernas curtas
impulsionaram-no pelo interior da basílica, passando pelo lugar em
que os peregrinos esperavam para serem admitidos na tumba de
Cristo. Ele continuou a andar, até alcançar um pequeno altar no
fundo da basílica, onde parou abruptamente. A área era dominada
por uma escultura de bronze em tamanho natural de uma mulher
com os braços estendidos para um homem, numa pose
suplicante.
— Capela de Maria Madalena... Madalena... Veio por causa dela,
não é? Não é?
Maureen tornou a acenar com a cabeça, cautelosa, olhando
para a escultura. Uma placa informava:
NESTE LUGAR,
MARIA MADALENA FOI A PRIMEIRA
A VER A ASCENSÃO DO SENHOR.
Ela leu em voz alta a citação de outra placa, abaixo do bronze:
— “Mulher, por que chora? A quem procura?”
Maureen teve pouco tempo para refletir sobre a pergunta,
pois o estranho homenzinho puxava-a de novo, seguindo
apressado, em seus passos improváveis, para outro canto escuro da
basílica.
— Venha, venha.
Contornaram uma esquina e pararam na frente de um
quadro, um retrato grande e antigo de uma mulher. O tempo, o
incenso e séculos de resíduos de velas oleosas haviam impresso seu
tributo sobre a obra de arte. Para ver melhor, Maureen teve de chegar
mais perto do quadro escuro, os olhos contraídos. O homenzinho
explicou, numa voz subitamente muito séria:
— Quadro muito antigo. Grego. Pode me entender? GREGO. Mais
importante, da Senhora. Ela precisa que você conte sua história. E por
isso que veio até aqui, Mo-ree. Esperamos há muito tempo por você. ELA
esperou. Por você. Sim?
Maureen olhou atentamente para o quadro, um retrato antigo de
uma mulher usando um manto vermelho. Virou-se para o homenzinho,
com a maior curiosidade sobre o lugar para onde ele queria levá-la. Mas
ele não estava mais ali... desaparecera tão depressa quanto havia surgido.
— Espere!
O grito de Maureen ressoou pela câmara de eco da vasta basílica. Mas
ela não obteve resposta. Tornou a concentrar sua atenção no quadro.
Ao se inclinar em sua direção, verificou que a mulher usava um
anel na mão direita, um disco de cobre redondo, com um padrão de nove
círculos em torno de uma esfera central.
Maureen levantou sua mão direita, a fim de comparar o anel que
acabara de ganhar com o que aparecia no quadro.
Os anéis eram idênticos.
... Muito será dito e escrito, nos tempos que virão, sobre Simão, o
Pescador de Homens. De como ele foi chamado de pedra, Pedro, por Easa e
por mim, enquanto os outros chamavam-no de Cefas, o que era natural na
língua que falavam. E, se a história se propuser justa, dirá como ele amou
Easa com intensidade e lealdade incomparáveis.
E muito se tem dito, assim me contaram, sobre meu relacionamento
com Simão-Pedro. Há aqueles que nos chamavam de adversários, de
inimigos. Querem acreditar que Pedro me desprezava e que disputávamos a
atenção de Easa em todas as ocasiões. E há aqueles que diriam que Pedro
odiava as mulheres... essa é, porém, uma acusação que não pode ser
atribuída a nenhum dos seguidores de Easa. Saibam que nenhum homem
que seguiu Easa jamais menosprezou uma mulher ou subestimou seu
valor nos desígnios de Deus. Qualquer homem que faz isso e alega ter Easa
como mestre está proferindo uma mentira.
São inverídicas tais acusações contra Pedro. Aqueles que
testemunharam as críticas a mim dirigidas por Pedro desconhecem nossa
história, ou de que fontes se originaram suas explosões. Contudo eu
compreendo e nunca o julgarei. Isso, acima de todo o resto, é fruto daquilo
que Easa me ensinou... e espero que aos outros ele também tenha ensinado.
Não julgar.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPITULO DOIS
Los Angeles
Outubro de 2004
— Vamos começar do alto. Maria Antonieta nunca disse: “Se eles
não têm pão, que comam brioche.” Lucrécia Bórgia nunca envenenou
ninguém. E Maria I, da Escócia, não era uma prostituta assassina. Ao
repararmos esses erros, damos o primeiro passo para restituir às
mulheres seu lugar apropriado e respeitável na história... um lugar que foi
usurpado por gerações de historiadores com uma agenda política.
Maureen fez uma pausa, enquanto murmúrios de aprovação
espalhavam-se pela platéia de estudantes. Falar para uma nova turma era
quase como uma noite de estréia no teatro. O sucesso do desempenho
inicial determinava o impacto a longo prazo de todo o curso.
— Ao longo das próximas semanas, vamos examinar as vidas de
algumas das mulheres mais infames na história e na lenda. Mulheres
com histórias que deixaram uma marca indelével na evolução da
sociedade e do pensamento moderno; mulheres que foram
dramaticamente incompreendidas e mal retratadas pelas pessoas que
estabeleceram a história do mundo ocidental, ao registrarem suas
opiniões no papel.
Maureen estava concentrada e relutante em parar para perguntas
tão cedo, mas um jovem estudante acenava com a mão da primeira fila
desde que ela começara a falar. Parecia muito ansioso; afora isso, porém,
não havia nada de extraordinário em sua aparência. Amigo ou inimigo?
Admirador ou fundamentalista? Havia sempre esse risco. Maureen deu-lhe
a palavra, sabendo que ele distrairia a sua atenção enquanto não o
fizesse.
— Considera que essa é uma visão feminista da história?
Era só isso? Maureen relaxou um pouco, enquanto respondia à
pergunta familiar:
— Considero que é uma visão honesta da história. Não trato do
assunto com qualquer outro interesse que não a busca da verdade.
Mas ela ainda não se livrara do importuno.
— Pois me parece uma visão contra os homens.
— Nem um pouco. Adoro os homens. Acho que toda mulher devia
ter um.
Maureen fez uma pausa, para permitir o riso das mulheres.
— Estou brincando. Meu objetivo era o de recuperar o equilíbrio,
analisando a história com olhos modernos. Você leva sua vida da
mesma maneira como as pessoas viviam há mil e seiscentos anos? Não.
Então, por que leis, convicções e interpretações históricas
determinadas na Idade Média devem reger a maneira como vivemos no
século XXI? Não faz o menor sentido.
O estudante declarou:
— Mas é por isso que estou aqui, para descobrir o que
realmente acontece.
— Ótimo. Neste caso, aplaudo sua presença. Só peço que
mantenha a mente aberta. Na verdade, quero que todos parem o que
estão fazendo, levantem a mão direita e façam o seguinte juramento.
Os estudantes do curso noturno trocaram murmúrios outra
vez. Sorriram e deram de ombros uns para os outros, querendo
determinar se ela falava mesmo sério. A professora, escritora de sucesso e
jornalista respeitada, mantinha-se de pé na frente deles, com a mão
direita levantada e uma expressão de expectativa.
— Vamos — encorajou. — Levantem a mão e repitam o que eu
disser.
Os estudantes levantaram a mão, esperando por sua deixa.
— Juro solenemente, como um estudante sério de história —
Mauree fez uma pausa, enquanto os estudantes repetiam, obedientes —,
lembrar em todas as ocasiões que as palavras registradas no papel foram
escritas por seres humanos.
Outra pausa, para a repetição dos estudantes.
— E como todos os seres humanos são regidos por suas emoções,
opiniões, filiações políticas e religiosas, toda a história inclui tanto
opinião quanto fato e em muitos casos foi inteiramente fabricada para
promover as ambições pessoais ou as intenções secretas de quem a
escreveu.
Outra pausa.
— Juro solenemente manter minha mente aberta em cada
momento em que estiver sentado nesta sala. Aqui está o nosso grito de
batalha. A história não é o que aconteceu. A história é o que foi escrito.
Ela levantou um livro de capa dura que estava no pódio à sua
frente, mostrando para a turma.
— Todos já possuem um exemplar deste livro?
Acenos de cabeça e murmúrios de confirmação foram a resposta. O
livro na mão de Maureen era sua controvertida obra, HERstory — Uma
defesa das heroínas mais odiadas da história. Era o motivo pelo qual ela
lotava as salas de aula e os auditórios cada vez que decidia dar um curso
ou fazer uma conferência.
— Começaremos esta noite com uma análise das mulheres do
Antigo Testamento, ancestrais das tradições judaica e cristã. Na próxima
semana, faremos a transição para o Novo Testamento, concentrando a
maior parte da sessão em uma única mulher... Maria Madalena.
Examinaremos as diferentes fontes e referências sobre sua vida, tanto
como mulher quanto como discípula de Cristo. Por favor, leiam os
capítulos correspondentes, em preparação para as discussões a respeito.
Maureen fez uma pausa.
— Também teremos um convidado especial, o Dr. Peter Healy, que
alguns de vocês já conhecem de nosso programa de extensão em Ciências
Humanas. Para aqueles que ainda não foram bastante afortunados para
comparecer a uma das aulas do nosso bom Dr. Healy, devo acrescentar
que ele é também o padre Healy, um estudioso jesuíta, um especialista
internacionalmente aclamado por seus estudos bíblicos.
O estudante persistente na primeira fila levantou a mão outra vez
e foi logo perguntando, sem esperar que Maureen lhe concedesse a palavra:
— Não tem uma relação especial com o Dr. Healy?
Maureen acenou com a cabeça em confirmação.
— O Dr. Healy é meu primo.
Ela olhou para os outros estudantes e acrescentou:
— Ele nos dará a perspectiva da Igreja sobre o relacionamento
de Maria Madalena com Cristo e revelará como as percepções evoluíram
ao longo de dois mil anos. — Maureen estava ansiosa em voltar ao que
dizia antes e encerrar o mais depressa possível aquela tergiversação. —
Será uma boa noite. Tentem não perdê-la. Mas esta noite vamos começar
por uma de nossas mães ancestrais. Quando tomamos conhecimento
de Betsabá, ela está “purificando-se de sua impureza”...
Maureen saiu apressada da sala, pedindo desculpas e jurando que
ficaria depois da aula na semana seguinte. Em circunstâncias normais,
teria permanecido na sala pelo menos por mais meia hora, conversando
com o grupo que inevitavelmente ficava por ali. Adorava aquele tempo
com os alunos, talvez ainda mais do que as aulas. Afinal, os que
permaneciam na sala eram aqueles que tinham afinidades. Eram os
estudantes que faziam com que continuasse. Não precisava da
remuneração insignificante que o curso de extensão lhe proporcionava.
Dava aulas porque adorava o contato e o estímulo de partilhar suas
teorias com pessoas curiosas e de mentalidade aberta.
Os saltos ressoando ritmados pela calçada, Maureen acelerou os
passos, seguindo pelas ruas arborizadas no norte do campus. Não
queria perder Peter, não naquela noite. Irritou-se com seu senso de
elegância, desejando estar usando calçados mais apropriados para a
quase corrida até a sala de Peter, antes de sua saída. Como sempre,
vestia-se de forma impecável. Dedicava às roupas o mesmo cuidado
meticuloso que dispensava a todos os outros detalhes de sua vida. O
tailleur de grife ajustava-se ao corpo pequeno com perfeição, a cor de
floresta realçava seus olhos verdes. Os sapatos de saltos altos de Manolo
Blahnik acrescentavam um toque de ousadia ao traje, afora isso,
conservador... e alguma altura a seu corpo de pouco mais de metro e
meio. Eram justamente os Manolo que constituíam a fonte de sua atual
frustração. Ela considerou por um instante a possibilidade de tirá-los.
Por favor, não saia daí. Por favor, espere até minha chegada. Maureen
projetou o pensamento em Peter, enquanto andava. Havia uma
estranha ligação entre os dois, desde crianças. Ela esperava agora que
Peter pudesse sentir como precisava desesperadamente falar com ele.
Maureen tentara antes ligar para o primo por meios mais convencionais,
mas fora em vão. Peter detestava celulares e não tinha um, apesar de
suas muitas súplicas ao longo dos anos. Além disso, recusava-se a
atender na extensão em sua sala, se estava absorvido no trabalho.
Ela acabou tirando os incômodos sapatos e guardou-os na enorme
bolsa de couro pendurada no ombro, enquanto corria na etapa final para
seu destino. Prendeu a respiração ao virar a esquina, levantou os olhos
para as janelas do segundo andar e contou da esquerda para a direita.
Deixou escapar um suspiro de alívio ao ver a luz acesa na quarta janela.
Peter ainda estava lá.
Maureen subiu a escada devagar, ganhando tempo para recuperar
o fôlego. Virou à esquerda no corredor e parou ao alcançar a quarta porta
à direita. Peter estava sentado à sua mesa, examinando com uma lupa
um manuscrito amarelado. Sentiu sua presença antes de vê-la na porta.
Ao levantar os olhos, seu rosto se desmanchou num sorriso acolhedor.
— Maureen! Que surpresa maravilhosa! Não esperava vê-la esta
noite.
— Oi, Pete — murmurou ela, no mesmo tom afetuoso,
contornando a mesa para um abraço intenso. — Fico contente que
ainda esteja aqui... fiquei com medo de que já tivesse ido embora e
precisava desesperadamente falar com você.
Ele alteou uma sobrancelha e refletiu por um longo momento,
antes de responder:
— Em circunstâncias normais, eu já teria ido embora há horas.
Mas senti-me compelido a trabalhar até mais tarde esta noite, por
alguma razão que não entendi direito... até agora.
O padre Healy deu de ombros, com um sorriso jovial e sugestivo.
Maureen retribuiu com o mesmo sorriso. Nunca fora capaz de explicar
em qualquer nível lógico a ligação que tinha com o primo mais velho. Mas
desde o dia em que chegara à Irlanda, quando menina, eram íntimos
como gêmeos, partilhando uma fantástica capacidade de se
comunicarem sem palavras.
Maureen enfiou a mão na bolsa e tirou um saco plástico de
compras azul, do tipo usado por importadoras no mundo inteiro.
Continha uma caixa retangular pequena, que ela estendeu para o padre.
— Ah, Lyon's Gold Label! Uma grande escolha. Ainda não consigo
suportar o chá americano.
Maureen fez uma careta e estremeceu, para indicar sua aversão
partilhada.
— Água de pântano.
— Creio que a chaleira já está cheia de água. Basta ligar e daqui
a pouco tomaremos um chá.
Maureen sorriu, enquanto observava Peter levantar-se da velha
cadeira de couro que ganhara da universidade. Ao aceitar o cargo
no Departamento de Extensão de Ciências Humanas, o estimado Dr.
Peter Healy recebera uma sala com janela. Os móveis eram modernos,
com mesa e cadeira novas e funcionais. Peter detestava o funcional em
matéria de mobília, mas detestava ainda mais o moderno. Usando o seu
charme gaélico como uma força irresistível, ele conseguira atiçar o estafe,
em geral impassível, para uma atividade frenética. Era um sósia do ator
irlandês Gabriel Byrne, uma aparência que nunca deixava de atrair as
mulheres, com ou sem o colarinho clerical. Os funcionários procuraram em
porões e salas de aula em desuso, até encontrarem exatamente o que ele
procurava, uma cadeira de couro de encosto alto, bastante confortável, e
uma mesa de madeira que pelo menos parecia antiga. Os confortos
modernos na sala eram de sua escolha: a pequena geladeira no canto, atrás
da mesa, uma pequena chaleira elétrica para ferver água e o telefone, que
costumava ignorar.
Maureen sentia-se mais relaxada agora, enquanto o observava,
segura na presença de um parente próximo, absorvida na arte
tranqüilizante e absolutamente irlandesa de fazer chá.
Peter voltou até a mesa e inclinou-se para a pequena geladeira no
canto. Tirou uma caixa de leite pequena e pôs ao lado do açucareiro branco
e rosa, em cima da geladeira.
— Há uma colher em algum lugar... ah, aqui está!
A chaleira começou a apitar, indicando que a água estava prestes a
ferver.
— Pode deixar que eu faço o chá — ofereceu Maureen.
Ela levantou-se e pegou a caixa de chá na mesa de Peter. Abriu o
lacre de plástico com a ponta da unha. Tirou dois saquinhos redondos
e largou-os em canecas diferentes, manchadas de chá. Os estereótipos
sobre os irlandeses e o álcool eram um exagero dramático, na perspectiva
de Maureen; o verdadeiro vício irlandês era o chá.
Ela terminou os preparativos com a devida eficiência e entregou
uma caneca fumegante ao primo. Foi se sentar na cadeira na frente da
mesa. Com sua caneca na mão, Maureen tomou um gole do chá, calada,
sentindo que os benevolentes olhos azuis de Peter a contemplavam.
Depois de se apressar para encontrá-lo, não sabia por onde começar. Foi o
padre quem acabou rompendo o silêncio.
— Quer dizer que ela voltou?
Maureen deixou escapar um suspiro de alívio. Nos momentos em
que pensava alcançar os limites extremos da sanidade, Peter estava ali
para ajudá-la: primo, padre, amigo.
— Isso mesmo — balbuciou ela, com uma inarticulação inesperada.
Ela voltou.
Peter revirava-se na cama, irrequieto, incapaz de dormir. A conversa
com Maureen perturbara-o mais do que a deixara perceber. Estava
preocupado com ela, tanto como seu parente vivo mais próximo quanto
como seu conselheiro espiritual. Sabia que os sonhos voltavam de maneira
inesperada e persistente e vinha ganhando tempo, à espera do dia em que
teria de agir.
Quando voltara da Terra Santa, Maureen sentia-se perturbada
pelos sonhos com uma mulher imponente e sofredora, que vira em
Jerusalém. Os sonhos eram sempre iguais: ela estava no meio da
multidão na Via Dolorosa. De vez em quando, um sonho podia conter
pequenas variações ou um detalhe adicional, mas sempre projetavam
um sentimento de profundo desespero. Era essa intensidade vivida que
perturbava Peter, a autenticidade nas descrições de Maureen. Era
intangível, uma coisa desencadeada pela própria Terra Santa, um
sentimento que Peter experimentara pela primeira vez quando estudava
em Jerusalém. Era uma sensação de estar muito próximo do antigo... e
do Divino.
Depois de voltar da Terra Santa, Maureen passara muitas horas
em ligações internacionais com Peter, que na ocasião era professor na
Irlanda. Ele começara a questionar a sanidade de Maureen. A intensidade
e freqüência dos sonhos deixavam-no angustiado. Pedira uma
transferência para Loyola, sabendo que seria concedida imediatamente,
e embarcara num avião para Los Angeles, a fim de ficar perto da prima.
Quatro anos depois, ele lutava contra seus pensamentos e sua
consciência, sem saber a melhor maneira de ajudar Maureen. Queria
levá-la para encontros com alguns de seus superiores na Igreja, mas sabia
que a prima nunca concordaria com isso. Peter era o único elo que ainda se
permitia ter com sua criação católica. E só confiava nele porque era da
família... e porque era a única pessoa em sua vida que nunca a
decepcionara.
Peter se sentou na cama, aceitando a certeza de que o sono
continuaria a se esquivar dele pelo resto daquela noite... e tentando não
pensar no maço de Marlboro na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Tentava
se livrar daquele péssimo hábito... e isso fora um dos motivos pelos quais
optara por morar sozinho num apartamento, em vez de partilhar a
residência dos jesuítas. O estresse era demais naquele momento e ele
acabou cedendo ao impulso para o pecado. Acendeu um cigarro, deu uma
tragada profunda e refletiu sobre os problemas com que Maureen se
defrontava.
Sempre houvera alguma coisa especial naquela pequena e
dinâmica prima americana. Quando chegara à Irlanda com a mãe, era
uma criança de sete anos assustada e solitária, tinha o sotaque do sul
dos Estados Unidos. Oito anos mais velho, Peter a tomara sob sua
proteção, apresentando-a às crianças da aldeia... e proporcionando olhos
roxos a qualquer um que ousasse zombar da recém-chegada de sotaque
engraçado.
Mas não levara muito tempo para que Maureen assimilasse o
ambiente. Curara-se rapidamente dos traumas de seu passado na
Louisiana, enquanto as neblinas da Irlanda a envolviam, acolhedoras.
Encontrava refúgio nos campos, por onde dava longos passeios, levada
por Peter e suas irmãs, que mostravam a beleza do rio e advertiam-na para
os perigos das areias movediças no pântano. Os longos dias de verão eram
consumidos na colheita de amoras silvestres na fazenda da família e nas
partidas de futebol, até o sol se pôr no horizonte. Com o passar do tempo,
as crianças locais passaram a aceitá-la, à medida que ela se tornava mais
segura no ambiente e permitia que sua verdadeira personalidade aflorasse.
Peter muitas vezes especulara sobre a definição da palavra carisma,
tal qual era usada no contexto sobrenatural dos primeiros tempos da
Igreja: carisma, uma dádiva ou poder de concessão divina. Talvez se
aplicasse a Maureen de maneira mais literal e profunda do que qualquer
um dos dois jamais concebera. Ele mantinha um diário de suas
conversas com Maureen, desde aqueles primeiros telefonemas
internacionais, onde registrava suas próprias percepções sobre o
significado dos sonhos. E orava todos os dias por orientação... se
Maureen fora escolhida por Deus para desempenhar alguma missão
relacionada à Paixão, e ele tinha cada vez mais certeza de que era esse
período que ela testemunhava em seus sonhos, Peter precisaria do
máximo de orientação de seu Criador. E de sua Igreja.
Le Château des Pommes Bleues
Languedoc, região da França
Outubro de 2004
— Marie de Nègre escolherá quando chegar o momento de A
Escolhida. Ela que nasceu do Cordeiro Pascal, quando o dia e a noite são
iguais, ela que é filha da Ressurreição. Ela que carrega o Sangre-el receberá
a chave, ao contemplar o Dia Tenebroso do Crânio. Ela se tornará a nova
Pastora e nos mostrará O Caminho.
Lorde Berenger Sinclair andava de um lado para outro do assoalho
envernizado de sua biblioteca. As chamas na enorme lareira de pedra
projetavam uma claridade dourada numa coleção de livros e manuscritos
de valor inestimável. Um estandarte esfarrapado pendia numa vitrine
que se estendia por toda a extensão da enorme lareira. Outrora branco, o
tecido amarelado tinha uma flor-de-lis dourada, bastante desbotada. O
nome composto Jhesus-Maria estava bordado na entretela, mas só era
visível para os poucos que tinham a oportunidade de se aproximar
daquela relíquia.
Sinclair recitou a profecia em voz alta, de cor, o ligeiro sotaque esco-
cês prolongando os erres. Conhecia aquelas palavras havia muito tempo.
Aprendera-as sentado no colo do avô, quando era pequeno. Não
compreendia o significado das frases naquele tempo. Era apenas um jogo
de memorização que fazia com o avô, quando passava o verão na vasta
propriedade da família na França.
Ele parou de andar para se postar diante de uma linhagem
extraordinária. Uma árvore genealógica, estendendo-se ao longo de
séculos, estava pintada na parede do chão ao teto, por toda a sua
extensão. Um imponente mural exibia a história dos ancestrais de
Berenger.
Aquele ramo da família Sinclair era um dos mais antigos da
Europa. Originalmente chamada Saint Clair, a família fora expulsa do
território continental da Europa e fora se refugiar na Escócia, no século
XIII. Ali, o sobrenome fora mais tarde anglicizado para sua forma atual.
Os ancestrais de Berenger eram alguns dos personagens mais ilustres da
história britânica, incluindo Jaime I, da Inglaterra, e aquela infame
rainha-mãe Maria I, da Escócia.
A influente, prática e perceptiva família Sinclair conseguira sobreviver
a guerras civis e convulsões políticas na Escócia, atuando nos dois lados
da coroa, ao longo da tumultuada história do país. Capitão de
indústria no século XX, o avô de Berenger acumulara uma das maiores
fortunas da Europa, com a fundação da companhia North Sea Oil, para
explorar petróleo no mar do Norte. Várias vezes bilionário e um par do
reino, com assento na Câmara dos Lordes, Alistair Sinclair tinha tudo o
que qualquer homem podia pedir. Mas permanecera irrequieto e
insatisfeito, alguém que procurava alguma coisa que sua fortuna não
podia comprar.
O avô Alistair tornara-se obcecado pela França. Comprara um
enorme castelo nos arredores da aldeia de Arques, na rude e misteriosa
região sudoeste, conhecida como o Languedoc. Dera à sua nova
residência o nome de “Château des Pommes Bleues”, o Castelo das Maçãs
Azuis, por motivos que só eram conhecidos de uns poucos iniciados.
O Languedoc era uma região montanhosa, dominada pelo
misticismo. As lendas locais de tesouros enterrados e cavaleiros
misteriosos remontavam a milhares de anos. Alistair Sinclair tornara-se
um estudioso do folclore do Languedoc, comprando tanta terra na região
quanto podia adquirir, procurando com uma urgência crescente pelo
tesouro que acreditava estar enterrado na região. Só que o tesouro que ele
procurava ali tinha pouco a ver com ouro ou riquezas, coisas que Alistair
já possuía em abundância. Era algo muito mais valioso para ele, para sua
família e para o mundo. A medida que envelhecia, ele passava cada vez
menos tempo na Escócia. Só se sentia feliz quando estava ali, nas
montanhas vermelhas e selvagens do Languedoc. Insistia que o neto o
acompanhasse nos verões. Incutira no pequeno Berenger a mesma paixão,
verdadeira obsessão, pela região mítica.
Agora, um homem na casa dos quarenta anos, Berenger Sinclair
parou de andar mais uma vez, ficando na frente de um enorme retrato
do avô. As feições angulosas e pronunciadas, os cabelos crespos escuros e
olhos intensos faziam com que ele experimentasse a sensação de olhar
para um espelho.
— Parece muito com ele, monsieur. Mais e mais parecido, sob
muitos aspectos, a cada dia que passa.
Sinclair virou-se para seu corpulento empregado, Roland. Para um
homem tão grande, ele era furtivo a um ponto excepcional e muitas
vezes parecia surgir do nada.
— E isso é bom? — indagou Berenger, irônico.
— Claro. Monsieur Alistair era um homem extraordinário, muito
amado pelos habitantes das aldeias. E por meu pai... e por mim.
Sinclair balançou a cabeça, com um pequeno sorriso. Era de
esperar que Roland dissesse aquilo. O gigante francês era um filho do
Languedoc. O pai dele pertencia a uma família local, com raízes
profundas no solo legendário. Fora o mordomo de Alistair no castelo.
Roland fora criado ali. Compreendia a família Sinclair e suas excêntricas
obsessões. Com a morte súbita do pai, Roland assumira seu lugar no
Château des Pommes Bleues. Era uma das pouquíssimas pessoas no
mundo em que Berenger Sinclair confiava.
— Se não se importa que eu diga, estávamos trabalhando no
outro lado do saguão e ouvimos o que disse... Jean Claude e eu. As
palavras da profecia. — Ele fitou Sinclair com uma expressão inquisitiva:
— Alguma coisa errada?
Sinclair atravessou a sala até a enorme mesa de mogno que
dominava a parede no outro lado.
— Não, Roland. Não há nada errado. Na verdade, acho que as
coisas podem finalmente estar muito certas.
Ele pegou um livro em cima da mesa. Mostrou a capa a Roland. O
título era HERSTORY. O subtítulo dizia: UMA DEFESA DAS HEROÍNAS
MAIS ODIADAS DA HISTÓRIA.
Roland pegou o livro e ficou olhando, perplexo.
— Não estou entendendo.
— Vire o livro. Dê uma olhada na mulher.
Roland virou o livro para ver a foto na quarta capa, com a legenda:
AUTORA — MAUREEN PASCHAL.
Era uma ruiva atraente, na casa dos trinta anos. Posara para a
foto com as mãos no encosto de uma cadeira à sua frente. Sinclair
passou a mão pela foto, apontando para as mãos da autora. No dedo
anular direito, pequeno mas visível, estava o antigo anel de cobre de
Jerusalém, com seu padrão planetário. Roland levantou os olhos do
livro, com um sobressalto.
— Sacré bleu!
— É isso mesmo — murmurou Sinclair. — Ou talvez, seja mais
apropriado dizer outra coisa: Sacré rouge.
Os dois foram interrompidos por uma presença na porta. Jean
Claude de la Motte, membro de confiança do círculo íntimo do Château
des Pommes Bleues, olhava para seus companheiros, inquisitivo:
— O que aconteceu?
Sinclair gesticulou para que Jean Claude entrasse.
— Nada... ainda. Mas quero que me diga o que acha disso.
Roland entregou o livro a Jean Claude e apontou para o anel na
mão da autora, na foto na quarta capa.
Jean Claude tirou os óculos de leitura do bolso e ajeitou-os no
rosto. Examinou a foto por um momento, antes de perguntar, quase
num sussurro:
— A Escolhida?
Sinclair riu.
— Isso mesmo, meus amigos. Depois de tantos anos, acho que
podemos finalmente ter encontrado nossa Pastora.
... Percebo Pedro em minhas mais antigas lembranças, pois seu
pai e o meu eram amigos. Havia um forte vínculo entre ele e meu
irmão. O templo em Cafarnaum era próximo à casa do pai de Simão-
Pedro, lugar que com freqüência visitávamos quando éramos crianças.
Recordo-me de brincar ali, na praia. Por ser muito menor que os
meninos, não eram poucas as vezes que o fazia na solitude. Porém o
som de suas risadas, enquanto brincavam de luta, é algo que ainda
povoa minhas recordações.
Pedro costumava ser o mais austero dos meninos, enquanto seu
irmão André tinha um coração mais alegre. Ambos eram bem-
humorados, quando pequenos. Porém, após a partida de Easa, os dois
irmãos perderam por completo a jovialidade. Não devotavam quase
paciência alguma àqueles entre nós que se apegavam à leveza de
espírito para sobreviver.
Pedro guardava muita semelhança com meu irmão, na medida em
que adotou postura de total seriedade em relação às responsabilidades
de família, ao ingressar na vida adulta. Transferiu esse senso de
responsabilidade para os ensinamentos sobre O Caminho. Era dotado
de uma tal força e tal determinação que só encontravam comparação
entre os próprios mestres... e por isso nele depositavam tanta confiança.
Contudo, por mais que Easa lhe ensinasse, Pedro lutava contra sua
própria natureza com mais empenho e intensidade do que a maioria
das pessoas jamais saberia. Creio que ele renunciou a mais do que os
outros no firme propósito de seguir O Caminho, tal qual foi ensinado...
exigia mais de Pedro, mais mudanças internas. Pedro foi
incompreendido e houve quem lhe quisesse mal. Embora não seja esse
o meu caso.
Amei Pedro e nele confiei. Como se fosse ele meu filho mais velho.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPÍTULO TRÊS
McLean, Virgínia
Março de 2005
McLean, no estado da Virgínia, é um lugar eclético, uma estranha
mistura de comunidade suburbana política e próspera. Perto da Beltway
a rodovia de contorno da cidade de Washington, fica entre o quartel-
general da CIA e Tyson's Corner, um dos maiores e mais prestigiosos
centros comerciais dos Estados Unidos. McLean não é uma comunidade
suburbana conhecida por sua espiritualidade. Pelo menos não para a
maioria das pessoas.
Maureen Paschal não estava nem um pouco preocupada com
questões sagradas enquanto guiava o Ford Taurus alugado, a caminho
do McLean Ritz Carlton. A agenda da manhã seguinte seria movimentada:
uma reunião no café da manhã com a Liga das Escritoras do Leste, seguida
por uma manhã de autógrafos numa enorme livraria em Tyson's Corner.
Assim, teria a maior parte da tarde de sábado só para si. O que era
perfeito. Poderia sair para uma exploração, como sempre fazia quando se
encontrava numa nova cidade. Não importava se o lugar era pequeno ou
rural; se Maureen nunca tivesse estado antes, sempre era fascinante. Ela
nunca deixava de encontrar a característica especial de cada cidade que
visitava, o que a tornava única em sua memória. Amanhã, ela descobriria
o que distinguia McLean de todos os outros lugares.
O check-in foi fácil, pois a editora cuidara de tudo. Maureen só teve
de assinar e pegar a chave. Subiu no elevador e foi para o quarto elegante.
Ali, submeteu-se à sua necessidade de ordem, arrumando a bagagem e
verificando até que ponto as roupas estavam amarrotadas.
Maureen adorava os hotéis de luxo como todo o mundo, ela
supunha. Seu comportamento, no entanto, era o de uma criança
quando se hospedava em um. Fez uma inspeção meticulosa das
instalações, verificou o que havia no minibar, passou a mão pelo
suntuoso roupão com o logotipo do hotel pendurado atrás da porta do
banheiro, sorriu ao ver a extensão do telefone ao lado do vaso.
Jurara que nunca ficaria tão embotada a ponto de deixar de
apreciar esses pequenos privilégios. Talvez aqueles anos de dificuldades,
comendo macarrão instantâneo, cereal e sanduíches de pasta de
amendoim, enquanto a pesquisa devorava o que restava de suas
economias, tivessem sido bons para ela, no final das contas. Ajudavam-na
a apreciar as boas coisas que a vida começava a lhe proporcionar.
Ela correu os olhos pelo quarto espaçoso, sentindo uma breve
pontada de tristeza. Apesar de todos os sucessos recentes, não tinha
ninguém com quem pudesse partilhar suas conquistas. Vivia sozinha;
sempre fora sozinha e talvez continuasse sendo para sempre...
Maureen tratou de banir a autocompaixão tão depressa quanto
surgira. Contava com a maior das distrações para afastar a mente
desses pensamentos desconcertantes. Algumas das lojas mais
fascinantes dos Estados Unidos estavam à sua espera. Maureen pegou a
bolsa, verificou os cartões de crédito e saiu para conhecer a cultura de
Tyson's Corner.
A Liga das Escritoras do Leste realizou seu café da manhã num
salão de conferências do McLean Ritz Carlton. Maureen usava seu
uniforme público: um tailleur clássico de grife, com sapatos de saltos altos.
Ao chegar ao salão, pontualmente às nove horas, ela recusou a comida e
pediu um bule de chá irlandês. Comer antes de uma sessão de perguntas
e respostas nunca lhe parecia uma boa opção. Deixava-a enjoada.
Maureen sentia-se menos nervosa do que o habitual naquela
manhã, já que a mediadora era uma aliada, uma mulher adorável
chamada Jenna Rosenberg, com quem mantivera contato durante várias
semanas, em preparação para o evento. Em primeiro lugar e acima de
tudo, Jenna era uma admiradora do trabalho da escritora, que podia citar
extensamente. Só isso era suficiente para conquistar Maureen. Além
disso, o cenário montado era de intimidade, com pequenas mesas
agrupadas, de tal forma que Maureen não precisaria de um microfone.
A própria Jenna iniciou a sessão de perguntas e respostas, com
uma indagação óbvia, mas importante:
— O que a inspirou a escrever este livro?
Maureen pousou a xícara na mesa para responder:
— Li uma ocasião que os primeiros textos históricos britânicos
foram traduzidos por uma seita de monges que acreditavam que as
mulheres não tinham alma. Estavam convencidos de que a fonte de
todo mal vinha das mulheres. Esses monges foram os primeiros a alterar
as lendas do rei Artur e do que chamamos de Camelot. Guinevere tornou-
se uma adúltera calculista, em vez de uma poderosa rainha-guerreira.
Morgan Le Fey tornou-se a irmã diabólica de Artur, que o engana para
cometer incesto, em vez da líder espiritual de toda uma nação, como ela
era nas primeiras versões da lenda.
Ela fez uma pausa.
— Essa noção me chocou e me levou a formular a pergunta:
teriam outros retratos de mulheres na história sido registrados com a
mesma distorção? Obviamente, essa perspectiva estende-se ao longo da
história. Comecei a pensar nas muitas mulheres a que poderia se aplicar a
questão e minha pesquisa partiu daí.
Jenna providenciou para que as perguntas partissem de diferentes
mesas. Depois de alguma discussão sobre literatura feminista e questões
de igualdade na edição de livros, a pergunta seguinte foi de uma jovem
com uma pequena cruz de ouro por cima da blusa de seda.
— Para aquelas entre nós que foram criadas num ambiente
tradicional, o capítulo sobre Maria Madalena foi uma revelação. Você
apresenta uma mulher muito diferente da prostituta arrependida. Mas
ainda não tenho certeza se posso aceitá-lo.
Maureen acenou com a cabeça em sinal de compreensão, antes de
dar sua resposta:
— Até mesmo o Vaticano já admitiu que Maria Madalena não era
uma prostituta e que não se deveria mais ensinar essa mentira, em
particular na escola dominical. Faz mais de trinta anos que o Vaticano
proclamou formalmente que Maria não era a mulher decaída do
evangelho de Lucas e que o papa Gregório, o Grande, criara essa história
para atender a seus propósitos obscurantistas da Idade Média. Mas é
difícil apagar dois milênios de opinião pública. A admissão do erro pelo
Vaticano, na década de 1960, não foi mais do que uma retratação
escondida na última página de um jornal. Com isso, essencialmente,
Maria Madalena torna-se a madrinha das mulheres incompreendidas,
a primeira mulher de grande importância a ter sua vida alterada, de
forma intencional e total, pelos cronistas da história. É uma das
seguidoras mais próximas de Cristo, indiscutivelmente uma
discípula. E, no entanto, foi cortada quase por completo dos
evangelhos.
Jenna interveio, obviamente excitada com o assunto:
— Mas há muita especulação agora sobre Maria Madalena,
inclusive de que ela pode ter tido um relacionamento íntimo com Cristo.
A mulher com a cruz de ouro da pergunta anterior teve um
sobressalto evidente, mas Jenna acrescentou:
— Você não tratou dessas questões em seu livro e eu gostaria de
saber o que acha das teorias.
— Não tratei porque não creio que haja qualquer prova para
apoiar essas alegações... muitos relatos pitorescos, possivelmente
racionalizações, mas sem qualquer prova. Os teólogos concordam nesse
ponto, de um modo geral. Não há nada que eu, como uma jornalista que
se preza, pudesse considerar como um fato e publicar com meu nome.
Mas posso chegar ao ponto de dizer que há documentos autenticados que
insinuam um possível relacionamento íntimo entre Jesus e Maria
Madalena. Um evangelho descoberto no Egito em 1945 diz que “a
companheira do Salvador é Maria Madalena”. Ele a amava mais do que a
todos os outros discípulos e costumava beijá-la na boca com freqüência.
Maureen fez uma pausa.
— Esses evangelhos, é claro, têm sido questionados pela Igreja
e podem ter sido a versão do século I da revista sensacionalista National
Enquirer, por tudo o que sabemos. Creio que é importante ter muito
cuidado nessas questões e por isso só escrevi sobre o que tenho certeza.
E tenho certeza de que Maria Madalena não era uma prostituta e que
era uma importante seguidora de Jesus. Talvez tenha sido até a mais
importante, pois foi a primeira pessoa que o Senhor em ascensão escolheu
para abençoar com seu aparecimento. Além disso, não estou disposta a
especular sobre seu papel na vida de Cristo. Seria irresponsabilidade.
Maureen respondeu à pergunta com bastante segurança, como
quase sempre fazia. Sempre especulara, contudo, que talvez a queda
de Madalena tivesse ocorrido porque ela era muito próxima do Mestre e
por isso despertara o ciúme dos discípulos, que mais tarde tentaram
desacreditá-la. São Pedro desdenhara Maria Madalena ostensivamente.
Censurava-a nos evangelhos gnósticos, baseados nos documentos do
século II que haviam sido descobertos no Egito. E os últimos textos de
São Paulo pareciam eliminar de forma metódica toda e qualquer referência
à importância das mulheres na vida de Cristo.
Em conseqüência, Maureen consumira muito tempo de pesquisa
para desmontar a doutrina paulina. Paulo, o perseguidor que se tornara
apóstolo, moldara o pensamento cristão com suas observações, apesar da
distância filosófica e literal de Jesus, dos próprios seguidores eleitos do
Salvador e da família. Não tinha um conhecimento direto dos
ensinamentos de Cristo. Um “discípulo” tão misógino, um manipulador
político, dificilmente imortalizaria Maria Madalena como a servidora
mais devotada de Cristo.
Maureen estava determinada a vingar Maria, considerando-a como
o arquétipo da mulher injuriada na história, a mãe das incompreendidas.
Sua história, em essência, se não na forma, repetia-se nas vidas das
outras mulheres que Maureen decidira defender em HerStory. Mas fora
essencial para Maureen manter os capítulos sobre Madalena tão
próximos quanto possível da teoria acadêmica provável. Qualquer
insinuação sobre uma “nova era” ou uma hipótese sem comprovação a
respeito do relacionamento de Maria com Jesus poderia invalidar o resto
da pesquisa e prejudicar sua credibilidade. Ela era cuidadosa demais em
sua vida particular e profissional para correr esse risco. Apesar de seu
instinto, Maureen rejeitara todas as teorias alternativas sobre Maria
Madalena, optando por se ater aos fatos mais incontestáveis.
Pouco depois de tomar essa decisão, o sonho começara, insistente.
A mão direita sofria uma cãibra intensa e o rosto corria o perigo
imediato de rachar, por causa do sorriso incessante, mas Maureen
continuou a trabalhar. A manhã de autógrafos na livraria deveria durar
duas horas, incluindo um intervalo de vinte minutos. Ela estava agora já
adiantada na terceira hora, sem intervalo, e determinada a continuar a
autografar, até que o último cliente fosse atendido. Maureen nunca seria
capaz de repelir um leitor em potencial. Nunca desprezaria o público
comprador de livros, que transformara seu sonho numa realidade.
Sentia-se satisfeita pela presença de um número relativamente
grande de homens. O assunto do livro indicava uma audiência de
predominância feminina, mas ela esperava ter escrito de uma maneira que
atraísse todos com a mente aberta e algum bom senso. Embora seu
objetivo principal fosse reparar os erros sofridos por mulheres
poderosas, como vítimas dos homens que escreviam a história, o tempo e
a pesquisa mostravam que a motivação por trás do registro da história no
papel, de uma maneira tão seletiva, fora determinada em grande parte
pelo clima político e religioso. O gênero era um fator secundário.
Explicara isso durante uma recente entrevista na televisão, citando
Maria Antonieta, talvez o exemplo mais claro dessa teoria sociopolítica,
porque os relatos predominantes da Revolução Francesa foram escritos
pelos revolucionários. Embora a rainha atormentada fosse culpada em
geral pelos excessos da monarquia francesa, ela não tivera na verdade
nada a ver com a criação dessas tradições. Maria Antonieta assumira as
práticas da aristocracia francesa quando viera da Áustria, como noiva do
jovem delfim, o futuro Luís XVI. Era filha da grande Maria Teresa, uma
imperatriz austríaca que não admitia os excessos e indulgências reais.
Era bastante austera e frugal para uma mulher em sua posição. Criara as
muitas filhas, inclusive a pequena Maria Antonieta, com o maior rigor. A
jovem dauphine teria sido forçada, por pura sobrevivência, a se adaptar aos
costumes franceses, tão depressa quanto possível.
O palácio de Versailles, o grande monumento à extravagância
francesa, fora construído décadas antes de Maria Antonieta sequer nascer,
mas se tornara um exemplo de sua ganância mítica. Sua famosa resposta
ao comentário de que “Os camponeses estão famintos, não têm pão
para comer” pode ser atribuída a uma cortesã real, uma mulher que
morrera muito antes da jovem austríaca chegar à França. Até hoje, porém,
a frase “Então que comam brioche” era reconhecida como o grito de
guerra da revolução. Com essa única citação, conseguiram justificar o
Grande Terror, com todo o derramamento de sangue e violência que se
irradiaram da Bastilha.
E Maria Antonieta, condenada a um fim trágico, nunca disse essa
frase infame.
Maureen sentia uma profunda simpatia pela malfadada rainha da
França. Odiada como estrangeira desde o dia de sua chegada, Maria
Antonieta fora uma vítima do racismo insidioso e deliberado. Era de
absoluta conveniência para a nobreza francesa do século XVIII,
radicalmente etnocêntrica, atribuir todas e quaisquer circunstâncias
políticas e sociais negativas à rainha nascida na Áustria. Maureen ficara
impressionada pela predominância dessa atitude, durante sua viagem de
pesquisa à França. Os guias de Versailles que falavam inglês ainda se
referiam à rainha decapitada com grande desdém e rancor, ignorando as
provas históricas que inocentavam Maria Antonieta de muitas acusações
infames. E tudo isso apesar do fato da coitada ter sido brutalmente
mutilada há quase duzentos anos.
A primeira visita a Versailles estimulara Maureen em sua pesquisa.
Ela lera inúmeros livros, das descrições mais acadêmicas da França do
século XVIII aos romances históricos mais elaborados, com suas visões
sobre a rainha. O quadro geral variava, mas não de forma muito drástica,
da caricatura aceita: ela era superficial, indulgente em seus caprichos,
não muito inteligente. Maureen rejeitava esse retrato. O que se podia
dizer de Maria Antonieta como mãe... uma mulher angustiada que
lamentara a perda de uma filha ainda bebê e mais tarde perdera também
o amado filho? Havia também Maria, a esposa, negociada como um objeto
no proverbial tabuleiro de xadrez político, uma menina de catorze anos
casada com um estrangeiro, numa terra estranha, mais tarde rejeitada
pela família do marido e depois por seus súditos. Finalmente, havia a
Maria que se tornara bode expiatório, uma mulher que esperara no
cativeiro enquanto as pessoas que mais amava eram executadas em seu
nome. A maior amiga de Maria, a princesa de Lamballe, fora literalmente
esquartejada por uma turba furiosa, tivera pedaços de seu corpo
espetados em chuços e mostrados pela janela de sua cela.
Maureen estava determinada a pintar um retrato simpático —
mas nem por isso menos realista — de uma das monarcas mais
desprezadas da história. O resultado fora convincente, uma das seções de
HerStory que merecera muita atenção e veementes debates.
Mas, apesar de toda a controvérsia que envolvia Maria Antonieta,
ela sempre seria o primeiro degrau para chegar a Maria Madalena.
Era essa atração sobrenatural de Maria Madalena que Maureen
discutia no momento, com a animada loura a sua frente.
— Sabia que McLean é considerado um lugar sagrado pelos
seguidores de Maria Madalena? — perguntou a mulher, abruptamente.
Maureen abriu a boca para falar, mas tornou a fechá-la. Um
momento passou antes que conseguisse balbuciar:
— Não, não sabia nada a respeito.
Lá estava outra vez, aquela vibração elétrica que percorria todo o
seu corpo cada vez que alguma coisa estranha surgia no horizonte. Podia
sentir de novo, mesmo ali, sob as luzes fluorescentes de um vasto
centro comercial americano. Tratou de respirar fundo, num esforço para
recuperar o controle.
— Muito bem, eu desisto. De que maneira McLean, na Virgínia, é
relevante para Maria Madalena?
A mulher estendeu um cartão de visita para Maureen.
— Não sei se terá algum tempo livre durante sua estada em
McLean. Mas, se tiver, gostaria que me visitasse.
O cartão era da livraria The Sacred Light, pertencente a Rachel
Martel.
— Não é nada parecido com isto — acrescentou a mulher, que
Maureen presumiu ser Rachel, gesticulando com a mão para a vasta loja
da rede de livrarias. — Mas acho que temos alguns livros que você pode
achar muito interessantes. Escritos por locais e de publicação
particular. São sobre Maria... a nossa Maria.
Maureen engoliu em seco, confirmou que a mulher era mesmo
Rachel Martel e pediu orientação para chegar a The Sacred Light.
Houve uma tosse discreta à esquerda de Maureen. Ela se virou
para ver o gerente da livraria, gesticulando enfático para indicar que não
devia deixar a fila parada. Depois de lhe oferecer um olhar irritado,
Maureen voltou a se concentrar em Rachel.
— Poderei encontrá-la na livraria esta tarde? É o único momento
livre de que disponho.
— Estarei à espera. E como a livraria fica na rua principal, a
poucos quilômetros daqui, será fácil encontrar. Afinal, McLean não é tão
grande assim. Ligue antes de partir, se precisar de mais alguma
orientação. Obrigada pelo autógrafo. Até mais tarde.
A mulher afastou-se da mesa. Maureen observou-a por um
momento, antes de se virar para o gerente e murmurar:
— Acho que vou precisar daquele intervalo, no final das contas.
Paris — 1er Arrondissement
Cave dos Mosqueteiros
Março de 2005
O porão de pedra, sem janelas, no prédio antigo, era conhecido
como Cave dos Mosqueteiros por tanto tempo quanto todos podiam
lembrar. Sua proximidade com o Louvre, no tempo em que o grande
museu era a residência dos reis da França, proporcionava-lhe uma
importância estratégica, que não era menor nos tempos modernos. O
espaço oculto recebera esse nome em homenagem aos homens que
Alexandre Dumas tornara famosos em sua obra mais aclamada. Dumas
baseara os bravos espadachins de seu romance em homens de verdade,
com uma missão de verdade. Aquele lugar era um dos pontos de encontro
secretos da guarda da rainha, depois que o infame cardeal Richelieu os
pusera na ilegalidade. Na verdade, não era o rei da França que os
mosqueteiros haviam jurado proteger, mas sim a rainha. Ana da Áustria
era filha de uma linhagem mais antiga e mais real que a de seu marido.
Dumas, com toda a certeza, estremeceria na sepultura se
soubesse que aquele espaço outrora sagrado caíra em mãos inimigas.
Naquela noite, a cave era o lugar de reunião de outra fraternidade secreta.
A organização que ocupava o lugar não apenas era anterior aos
mosqueteiros em mil e quinhentos anos, mas também se opunha à sua
missão com um juramento feito com sangue.
A iluminação feita por duas dúzias de velas projetava imagens que
dançavam nas paredes e revelavam em silhuetas e sombras um grupo de
homens vestindo túnicas. Estavam de pé em torno de uma mesa
retangular, toda escalavrada, os rostos numa interação de claridade e
escuridão. Embora nenhuma de suas feições fosse discernível, o emblema
peculiar de sua associação era visível em cada um: um cordão vermelho,
cor de sangue, pendurado ao pescoço.
As vozes abafadas revelavam uma variedade de sotaques: inglês
britânico e dos Estados Unidos, francês e italiano. Todos ficaram em
silêncio quando o líder ocupou seu lugar, à cabeceira da mesa. Na frente
dele, um crânio humano polido faiscava à luz das velas, sobre um prato
de ouro filigranado. Num lado do crânio havia um cálice, decorado com as
mesmas espirais de ouro e com pedras preciosas incrustadas, como o
prato. No outro lado, havia um crucifixo de madeira esculpido à mão,
com a imagem de Cristo virada para baixo.
O líder tocou no crânio, reverente, antes de erguer o cálice de ouro,
que continha um líquido vermelho espesso. Falou com um sotaque
inglês de Oxford:
— O sangue do Mestre da Justiça.
Tomou um gole, devagar, antes de passar o cálice para o irmão à
sua esquerda. O homem pegou o cálice, repetiu o mesmo refrão, em
francês, e também tomou um gole. Cada membro da Guilda repetiu o
ritual, em sua língua nativa, até que o cálice voltou à cabeceira da mesa.
O líder pôs o cálice na mesa. Depois, ergueu o prato e beijou o crânio
na testa, reverente. Como fizera antes com o cálice, passou o crânio para o
homem à sua esquerda, que fez a mesma coisa. Cada membro da
fraternidade repetiu a ação. Essa parte do ritual foi realizada em
absoluto silêncio, como se fosse sagrada demais para ser maculada por
palavras.
O crânio completou o círculo dos fiéis e voltou ao líder. Ele ergueu o
prato por um instante, antes de pô-lo de volta na mesa, com um floreio,
acompanhado pelas palavras:
— O primeiro. O único.
O líder ficou imóvel por um momento, para depois pegar o crucifixo
de madeira. Virou-o, a fim de que a imagem crucificada ficasse de frente
para ele. Ergueu o crucifixo para que ficasse ao nível dos olhos... e cuspiu
furioso no rosto de Jesus Cristo.
... Sara-Tamar aparece com freqüência e lê minhas memórias,
enquanto as escrevo. E sempre me lembra de que ainda não dei
qualquer explicação a respeito de Pedro e do que é conhecido como sua
negação.
Alguns julgaram-no com muito rigor, chamando-o de “Pedro in
Gallicantu” — em alusão às três vezes em que Pedro negou o Mestre
antes do cantar do galo — mas isso é injusto. O que essas pessoas que
o julgam não podem saber é que Pedro não fez nada, a não ser cumprir
os desejos de Easa. Sou informada de que alguns dos seguidores dizem
agora que Pedro realizou uma profecia feita por Easa, que Easa disse a
Pedro: “você me negará”, e Pedro respondeu: “não, não negarei”.
A verdade é a seguinte: Easa instruiu Pedro a negá-lo. Não foi
uma profecia. Foi uma ordem. Easa sabia que, se o pior acontecesse,
far-se-ia necessário que Pedro, entre todos os seus discípulos de
confiança, permanecesse são e salvo. Dada a determinação de Pedro,
os ensinamentos continuariam a ser propagados pelo mundo, da forma
que Easa sempre sonhara. E, por isso, Easa ordenou-lhe: “você me
negará”, ao que Pedro respondeu, em seu tormento: “não, não posso”.
Mas Easa insistiu: “Você deve me negar, para permanecer e
para que prossigam os ensinamentos sobre O Caminho.”
Essa é a verdade sobre a “negação” de Pedro. Jamais foi uma
negação, visto que ele seguiu as ordens de seu mestre. Disso tenho
certeza, pois eu estava presente e testemunhei.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPITULO QUATRO
McLean, Virgínia
Março de 2005
A freqüência cardíaca de Maureen tinha uma aceleração anormal,
enquanto ela atravessava McLean pela rua principal. Estava totalmente
despreparada para o convite da mulher, mas mesmo assim sentira um
profundo excitamento. Sempre fora assim; sua vida era ligada por eventos
estranhos e muitas vezes intensos, por coincidências extraordinárias, que
causariam um impacto permanente. Aquela seria mais uma dessas
ocorrências sobrenaturais? Sentia-se particularmente curiosa em relação a
qualquer revelação que se referisse a Maria. Curiosa? Essa palavra não era
bastante forte. Obcecada? Uma palavra mais acurada.
Sua ligação com a história de Maria Madalena fora uma força
dominante em sua vida, desde os primeiros dias da pesquisa para
HerStory. E, desde aquela primeira visão em Jerusalém, Maureen tinha
um sólido senso de Maria Madalena como uma mulher de carne e osso,
quase uma amiga. Quando trabalhava no texto final do livro,
experimentara a sensação de que defendia uma amiga que fora caluniada
pela imprensa. Seu relacionamento com Maria era muito real. Ou talvez
fosse mais objetivo dizer que era surrealista.
A livraria The Sacred Light era pequena, embora houvesse na
fachada uma enorme vitrine abaulada, que exibia anjos de todos os
tipos. Havia livros sobre anjos, estatuetas de anjos e muitos cristais
reluzentes cercados por querubins em estilo moderno. Maureen achou
que a própria Rachel tinha uma aparência angelical: um pouco roliça,
com os cabelos louros cacheados, emoldurando um rosto meigo. Usava
um vestido branco antes, quando comparecera à manhã de autógrafos.
O tilintar melódico de um carrilhão anunciou a chegada de
Maureen, no momento em que ela empurrou a porta e entrou numa
versão ampliada da vitrine. Rachel Martel estava abaixada atrás do
balcão, procurando localizar no mostruário uma jóia específica para uma
cliente.
— É esta? — perguntou ela à jovem, que devia ter dezoito ou
dezenove anos.
— Exatamente. — A jovem examinou a peça de cristal, com uma
pedra cor de lavanda engastada em prata. — É ametista, não é?
— Na verdade, é ametrina. — Rachel acabara de notar que
Maureen fora a causa do toque do carrilhão na porta. Esboçou um
sorriso rápido, de quem avisa “já falo com você”, antes de acrescentar
para a cliente: — Ametrina é a ametista que tem citrina dentro. Se
levantar para a luz, poderá contemplar o lindo centro dourado.
A adolescente contraiu os olhos para observar o cristal contra a luz.
— E linda! — exclamou ela. — Mas fui informada de que precisava
de ametista. Esta pedra tem o mesmo efeito?
— Tem, sim, e mais ainda. — Rachel sorriu, paciente. — Acredita-
se que a ametista expande sua natureza espiritual, enquanto a citrina
serve para equilibrar as emoções no corpo físico. Em tudo e por tudo, é
uma poderosa combinação. Mas também tenho ametistas puras ali, se
você preferir.
Maureen não prestava muita atenção à conversa. Sentia uma
curiosidade muito maior em relação aos livros de que Rachel falara. As
estantes eram divididas por assuntos e ela examinou-as rapidamente.
Havia volumes xamânicos, uma seção celta, em que uma Maureen
menos ansiosa teria se detido num outro dia, e a seção onipresente sobre
anjos.
A direita dos anjos, havia alguns livros sobre pensamento cristão.
Ah, devo estar quente! Ela continuou a procurar. Parou abruptamente.
Havia um livro branco, com grossas letras pretas: MADALENA.
— Vejo que está encontrando tudo, mesmo sem minha ajuda.
Maureen teve um sobressalto; não ouvira Rachel se aproximar. A
jovem cliente fez o carrilhão soar ao abrir a porta para deixar a loja,
levando seu pequeno saco azul e branco, com o cristal escolhido.
— Este é um dos livros de que falei. Os outros não passam de
brochuras. Você deve dar uma olhada neste.
Rachel tirou da prateleira ao nível do olho uma brochura fina, pouco
mais que um folheto. Era rosa e dava a impressão de ter sido impressa
num computador doméstico. Maria em McLean, dizia a capa, em Times
New Roman, tamanho 24.
— Qual é a Maria? — perguntou Maureen.
Enquanto escrevia seu livro, ela seguira diversas linhas de pesquisa
interessantes, apenas para descobrir que levavam à Virgem, não a
Madalena.
— Sua Maria — respondeu Rachel, com um sorriso sugestivo.
Maureen ofereceu um meio sorriso à mulher. É mesmo minha Maria.
Era assim que ela começava a sentir.
— Não havia necessidade de especificar, porque foi escrito por
uma pessoa daqui. A comunidade espiritual de McLean sabe que é
Maria Madalena. Como eu disse antes, ela tem seus seguidores aqui.
Rachel explicou que os habitantes daquela pequena cidade da
Virgínia informavam ter visões espirituais havia muitas gerações.
— Jesus foi visto aqui em quase uma centena de ocasiões
documentadas, durante o último século. O mais estranho é que ele é
visto com freqüência parado à beira da rua... a rua principal, a mesma
que você seguiu para chegar aqui. Umas poucas visões envolveram Cristo
na cruz, visto da rua principal. Em outras, ele foi visto andando com uma
mulher, que foi descrita repetidamente como pequena, com os cabelos
compridos.
Rachel folheou o livro, mostrando os vários capítulos para Maureen.
— A primeira visão desse tipo foi registrada no início do século XX. A
mulher que teve a visão chamava-se Gwendolyn Maddox. Aconteceu no
quintal dos fundos de sua casa. Ela alegou que a mulher com Cristo era
Maria Madalena. O sacerdote de sua paróquia insistiu que a visão fora de
Cristo e da Virgem Maria. Imagino que você adquira mais prestígio no
Vaticano com a visão da Virgem. Mas a velha Gwen manteve-se
irredutível. Era mesmo Maria Madalena. Ela disse que não sabia como
podia saber, mas tinha certeza absoluta. E Gwen também alegou que a
visão curou-a por completo de um caso grave de artrite reumática. Ela
construiu um santuário e abriu o jardim ao público. Até hoje os
habitantes locais oram para Maria Madalena em busca de cura.
Ela fez uma pausa, sorrindo antes de acrescentar:
— Também é fascinante ressaltar que nenhum dos descendentes
de Gwen sofreu de artrite reumática, que, até onde eu sei, é uma
condição hereditária. E me sinto particularmente grata por isso,
assim como minha mãe e minha avó. Sou bisneta de Gwendolyn.
Maureen olhou para o livro. Não reparara no nome da autora de
Maria em McLean. Leu-o agora: Rachel Maddox Martel. Rachel entregou-lhe o
livro.
— É um presente. Contém a história de Gwen e alguns outros
detalhes sobre as visões. Mas veja este outro livro.
Rachel indicou o enorme volume branco, com o título,
MADALENA, em letras pretas.
— Este também foi escrito por uma pessoa daqui. A autora
passou muito tempo investigando as visões locais de Maria, mas também
realizou muitas pesquisas gerais. O livro apresenta todas as teorias
sobre Madalena e posso dizer que algumas são um pouco exageradas,
até mesmo para o meu gosto. Mas é uma leitura fascinante e não
encontrará o livro em qualquer outro lugar, pois nunca foi distribuído.
— Vou levá-lo, é claro — murmurou Maureen, um pouco
distraída, a mente em vários lugares ao mesmo tempo. — Por que
McLean, em sua opinião? Entre todos os lugares nos Estados Unidos,
por que ela veio para cá?
Rachel sorriu e deu de ombros.
— Não tenho uma resposta para isso. Talvez haja outras cidades
americanas onde isso também tenha acontecido, só que as pessoas não
divulgaram. Ou talvez haja alguma coisa especial aqui. Só sei que as
pessoas com interesse espiritual pela vida de Maria Madalena tendem a
aparecer aqui, mais cedo ou mais tarde. Não dá para dizer quantas
passaram por esta loja à procura de livros específicos sobre ela. E,
como você, não tinham um conhecimento consciente sobre a ligação de
Madalena com esta cidade. Não pode ser apenas uma coincidência, não é
mesmos? Creio que Maria atraiu seus fiéis para McLean.
Maureen pensou a respeito por um momento, antes de responder.
E começou a falar devagar, organizando seu pensamento.
— Quando tomei as providências para a viagem, tinha a intenção
de permanecer em Washington. Uma grande amiga mora lá e seria fácil
vir até McLean de carro para a sessão de autógrafos. Minha estada
em Washington faria muito mais sentido, inclusive pela proximidade
do aeroporto. Mas, no último minuto, decidi me hospedar aqui.
Rachel sorria, enquanto ouvia Maureen explicar a mudança nos
planos de viagem.
— Foi Maria quem a trouxe para cá. Gostaria que me prometesse
uma coisa. Se por acaso avistá-la enquanto estiver em McLean, não se
esqueça de me telefonar e contar.
— Você já a viu? — perguntou Maureen.
Rachel bateu no livro rosa na mão de Maureen com a ponta da
unha.
— Já, sim. E este livro é uma explicação sobre a maneira como
as visões passaram de uma geração para outra em nossa família. — O
tom de Rachel era surpreendentemente descontraído. — Eu era muito
pequena na primeira vez. Tinha apenas quatro ou cinco anos. Foi no
santuário no jardim de minha avó. Maria estava sozinha, na ocasião. A
segunda visão ocorreu quando eu era adolescente. Foi uma “beira de
estrada”, como chamamos por aqui. Maria estava com Jesus. Foi muito
estranho. Eu me encontrava num carro cheio de garotas, voltando de
uma partida de futebol americano do time da escola. Era noite de
sexta-feira. Minha irmã mais velha, Judith, guiava o carro. Ao fazermos
uma curva, avista mos um homem e uma mulher caminhando em
nossa direção. Judy diminuiu a velocidade, para verificar se precisavam
de ajuda. Foi nesse instante que compreendemos o significado da cena.
Os dois estavam parados ali, congelados no tempo, envoltos por uma
intensa claridade. Judy ficou bastante transtornada e começou a chorar.
A garota sentada ao seu lado, no banco da frente, perguntou qual era o
problema e por que havíamos parado. Foi quando compreendi que as
outras garotas não podiam vê-los. Só minha irmã e eu. Especulei por
muito tempo se a genética tinha alguma relação com as visões. Minha
família tivera muitas e eu dispunha de provas objetivas de que podíamos
ter visões que permaneciam ocultas para outras pessoas. Ainda não sei
o que é. Afinal, há outras pessoas em McLean sem qualquer parentesco
conosco que também tiveram as visões.
— Todas as visões foram tidas por mulheres?
— Ah, sim, esqueci essa parte. Em todas as ocasiões em que Maria
foi vista sozinha, ao que eu saiba, sempre foi uma mulher quem teve a
visão. Quando ela aparece com Jesus, pode ser vista por pessoas de
ambos os sexos. Mesmo assim, são raras as aparições vistas por homens.
Ou talvez não sejam tão raras, mas os homens se mostram menos
dispostos a falar a respeito em público.
— Estou entendendo — murmurou Maureen, acenando com a
cabeça. — Com que nitidez você viu Maria, Rachel? Pode descrever seu
rosto em detalhes?
Rachel continuou a sorrir, à sua maneira beatífica, que Maureen
achava estranhamente confortadora. Conversar com alguém sobre
visões como se fosse a coisa mais natural do mundo fez com que
Maureen se sentisse surpreendentemente segura. Se não estava louca de
vez, pelo menos estava numa companhia bastante agradável.
— Posso fazer melhor do que descrever seu rosto. Venha comigo.
Rachel pegou Maureen pelo braço, gentilmente, e levou-a para o
fundo da loja. Apontou para a parede atrás da caixa registradora. Mas os
olhos de Maureen já haviam encontrado o retrato. Era um quadro a óleo;
mostrava uma mulher de cabelos castanho-avermelhados, com um rosto
de beleza refinada e os mais extraordinários olhos castanho-claros, com
um brilho entre dourado e verde.
Rachel observava atentamente a reação de Maureen, à espera de
que ela falasse. Seria uma longa espera. Maureen sentia-se incapaz de
falar. Rachel tentou estimulá-la:
— Vejo que vocês duas já se encontraram...
Por mais atordoada que se sentisse pelo rosto no retrato, Maureen
ficou ainda mais abalada pelo que se seguiu. Depois do momento inicial
de choque, ela começou a tremer, um instante antes de o soluço
percorrer seu corpo.
Ficou parada ali e chorou, pelo que devia ter sido um minuto, talvez
dois, os soluços sacudindo-lhe o corpo pelos segundos iniciais, antes de
passar para um choro baixinho. Sentia um pesar terrível, uma dor
profunda e difusa, mas não sabia se a tristeza era mesmo sua. Era como
se experimentasse o sofrimento da mulher no retrato. Mas logo mudou;
depois do fluxo inicial, o choro de Maureen foi mais de alívio e ela se
entregou. O quadro a óleo representava uma espécie de confirmação;
fazia com que a mulher do sonho se tornasse real.
A mulher do sonho que ela acabava de constatar ser Maria
Madalena.
Rachel foi gentil o bastante para fazer um chá de ervas na sala dos
fundos. Deixou Maureen sentada ali, naquele pequeno depósito, para ter
alguma privacidade. Um jovem casal à procura de livros de astrologia
entrou na loja e Rachel foi atendê-lo. Maureen se sentou a uma
escrivaninha pequena, tomando o chá de camomila e torcendo para que o
aviso na caixa, “acalma os nervos”, não fosse apenas um anúncio
exagerado.
Assim que concluiu a transação na frente da loja, Rachel voltou
para verificar como estava Maureen.
— Sente-se melhor?
Maureen acenou com a cabeça e tomou outro gole do chá.
— Estou ótima agora, obrigada. Rachel, lamento o acesso, mas não
podia... Foi você quem pintou o quadro?
Rachel confirmou com um aceno de cabeça.
— A habilidade artística é uma das características da família.
Minha avó é escultora. Fez várias versões de Maria em argila. Muitas
vezes tenho me perguntado se o motivo das aparições de Maria para nós
não seria... porque temos a capacidade de expressá-la de alguma forma.
— Ou talvez seja porque as pessoas com tendências artísticas
mantêm a mente mais aberta. — Maureen pensava em voz alta. — Uma
coisa do hemisfério direito do cérebro?
— É possível. Acho que é uma combinação das duas coisas, no
mínimo. Mas posso lhe garantir uma coisa. Creio com toda a força do
meu coração que Maria quer ser ouvida. Suas aparições aqui em
McLean aumentaram durante os últimos dez anos. Ela quase me
assediou ao longo do último ano. Compreendi que tinha de pintá-la, a
fim de encontrar um mínimo de paz. Depois que o retrato ficou pronto e
foi exposto, pude dormir de novo. E não a vi mais desde então.
De volta a seu quarto no hotel, naquela noite, Maureen girou o
vinho tinto em seu copo, olhando para o turbilhão do clarete. Levantou
os olhos para o aparelho de televisão, ligado num canal a cabo. Fez um
esforço para não deixar que o apresentador ultraconservador do
programa de entrevistas a irritasse. Apesar da aparência externa de
força, Maureen detestava o confronto. Até mesmo a insinuação de que
podiam estar falando de seu livro era angustiante. Era como observar um
terrível desastre de carro... ela não conseguia desviar os olhos, por mais
desagradável que fosse a cena à sua frente.
O apresentador radical apresentou seu respeitável convidado,
fazendo uma pergunta logo em seguida:
— Isto não seria apenas mais um da longa lista de ataques
contra a Igreja?
A legenda de identificação, Bispo Magnas O’Connor, apareceu logo
abaixo do rosto idoso e irado de um sacerdote, que respondeu com um
inconfundível sotaque irlandês:
— Claro. Há séculos que temos suportado as calúnias de pessoas
desorientadas, que tentam solapar a fé de milhões de fiéis, apenas para
proveito pessoal. Essa extremista feminista precisa aceitar o fato de
que todos os apóstolos reconhecidos eram homens.
Maureen desistiu. Não estava a fim de agüentar as críticas naquela
noite. Fora um dia cansativo e emocionante. Com um toque no botão do
controle remoto, ela silenciou o bispo, desejando que houvesse a mesma
facilidade na vida real.
— Não enche, Sua Reverendíssima — resmungou ela, enquanto se
ajeitava na cama para dormir.
Um facho das luzes da rua que filtravam para dentro do quarto
de Maureen incidiu na mesinha-de-cabeceira, iluminando suas poções
para dormir: o copo com vinho tinto pela metade e uma caixa de
calmante. Num pequeno cinzeiro de cristal, ao lado do abajur, estava o
anel de cobre antigo de Jerusalém.
Maureen revirou-se na cama, irrequieta, apesar da sua tentativa de
automedicação para ter um sono tranqüilo. O sonho veio, inexorável e
espontâneo.
Começou como sempre... o tumulto, o suor, a multidão. Mas,
quando Maureen chegou à parte em que avistava a mulher pela primeira
vez, tudo ficou escuro. Mergulhou no vazio, por um espaço de tempo
incompreensível.
E, depois, o sonho mudou.
Num dia idílico, ao longo de uma praia do mar da Galiléia, um
menino corria à frente de sua adorável mãe. Não partilhava com ela os
surpreendentes olhos cor de avelã e os cabelos cor de cobre, como a irmã
caçula. Pegou uma pedra interessante, que atraiu sua atenção, e
levantou-a para faiscar ao sol.
A mãe gritou uma advertência para que ele não se aventurasse
muito longe pela água. Ela não usava o véu formal hoje. Os cabelos
compridos e soltos esvoaçavam em torno do rosto, enquanto ela pegava
a mão da menina, uma perfeita versão em miniatura da mãe.
A voz de um homem expressou agora uma advertência similar e
jovial para a menina, que se desvencilhara da mão da mãe e correra ao
encontro do irmão. A criança parecia rebelde, mas a mãe riu. Olhou
para trás e ofereceu um sorriso íntimo para o homem que caminhava
em sua esteira. Naquele passeio descontraído com sua jovem família,
ele usava uma túnica desbotada e solta, não a túnica branca impecável
que sempre vestia em público. Ele afastou as mechas de cabelos
castanhos compridos dos olhos e retribuiu o sorriso, com uma expressão
transbordando de amor e contentamento.
Maureen foi lançada abruptamente de volta ao estado de vigília,
como se tivesse sido expulsa do sonho em termos físicos e impelida de
volta ao quarto do hotel. Tremia toda. O sonho sempre a deixava
perturbada, mas aquele era ainda mais desconcertante, devido à
sensação de ser arremessada através do tempo e espaço. A respiração
estava acelerada. Ela fez um esforço para recuperar o equilíbrio e
respirar de uma maneira mais relaxada.
Começava a firmar os sentidos quando teve consciência de um
movimento no outro lado do quarto, junto da porta. Teve certeza de ouvir
um sussurro, embora sentisse mais do que visse a figura que apareceu
na entrada do quarto. O que via, na verdade, era indefinível... um vulto,
uma figura, uma sugestão de movimento. Não tinha importância.
Maureen sabia quem era, com a mesma certeza de que sabia que não
estava mais sonhando. Era Ela. Ali, no quarto de Maureen.
A boca ressequida do choque e sentindo mais que um pouco de
medo, Maureen engoliu em seco. Sabia que a figura na porta não era do
mundo físico, mas não tinha certeza de que isso era confortador. Recorreu a
toda a sua coragem e conseguiu sussurrar para o vulto na porta:
— O que... diga-me como posso ajudá-la. Por favor.
Houve um ligeiro murmúrio em resposta, o som de um véu ou de
folhas da primavera farfalhando à brisa. E, depois, mais nada. A aparição
desapareceu, tão depressa quanto surgira.
Maureen se sentou na cama e acendeu a luz: 4:10 da madrugada,
segundo o relógio digital. Eram três horas mais cedo em Los Angeles. Perdoe-
me, padre, pensou ela, enquanto pegava o telefone na mesinha-de-
cabeceira e ligava, tão depressa quanto os seus dedos trêmulos
permitiam. Precisava de seu melhor amigo... e talvez, apenas talvez,
precisasse também de um padre.
A voz insistente de Peter, com seu sotaque irlandês, trouxe
Maureen de volta a este mundo.
— É da maior importância que você mantenha um registro de
todas essas... visões. Está anotando tudo?
— Visões? Por favor, não dê uma de Vaticano para cima de mim.
Morreria antes de me tornar uma exótica cause célebre para a inquisição
romana.
— Ora, Maureen, eu nunca faria isso. Mas o que acontece se
forem mesmo visões? Não pode descartar a importância potencial do que
lhe foi mostrado.
— Em primeiro lugar, não foram visões, no plural. Houve uma
única suposta visão. O resto foi sonho. Sonhos intensos e nítidos, mas,
mesmo assim, apenas sonhos. Talvez seja a loucura genética me
envolvendo. Acontece na família, como você sabe muito bem.
Maureen deixou escapar um suspiro.
— Confesso que tudo isso me deixa assustada. E você deveria me
ajudar a ficar calma, lembra?
— Desculpe. Você tem razão. Quero ajudá-la. Mas prometa que
anotará as datas e horários de suas vi... de seus sonhos. Apenas para
nossos registros. Você é uma historiadora e jornalista. E sabe, dentre
todas as pessoas, que documentar os dados é crítico.
Maureen permitiu-se uma pequena risada.
— E o que temos aqui são dados históricos, com toda a certeza. —
Ela deu outro suspiro. — Mas está bem, farei isso. Talvez me ajude a
encontrar algum dia um sentido para tudo o que está acontecendo.
Tenho a sensação de que muita coisa vem ocorrendo abaixo da
superfície, totalmente fora do meu controle.
... Cumpre-me escrever agora a respeito de Natanael, que
chamamos de Bartolomeu, pois sinto-me comovida com sua devoção.
Bartolomeu era bastante jovem quando se juntou a nós na Galiléia. E,
embora tivesse sido expulso da casa de seu nobre pai, Tolma de Caná,
era evidente ao conhecê-lo que não havia nada de incorrigível nele... um
patriarca cruel e insensato avaliara mal a beleza e a promessa de uma
alma tão preciosa e especial, um filho tão belo. Easa percebeu isso
também, no preciso instante em que o conheceu.
Bartolomeu podia ser compreendido num relance, quando se
fitava seus olhos. Afora Easa e minha filha, nunca vi tanta pureza e
bondade nos olhos de alguém. Revelavam a inocência interior... uma
alma que é pura e imaculada. No dia em que ele chegou a minha casa,
em Magdala, meu filho pequeno subiu em seu colo e ali permaneceu
pelo resto da noite. As crianças são os maiores juizes. Easa e eu
sorrimos um para o outro, através da mesa, enquanto observávamos o
pequeno João com seu mais recente amigo. João nos confirmou o que
ambos já sabíamos ao olhar para Bartolomeu... ele era parte de nossa
família e assim seria pela eternidade.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPITULO CINCO
Los Angeles
Abril de 2005
Maureen sentiu-se exausta ao saltar do carro no estacionamento de
seu elegante prédio de apartamentos, no Wilshire Boulevard. Entregou o
carro a André, o manobreiro de plantão, e pediu-lhe que depois levasse
sua mala. O atraso do vôo no aeroporto Dulles, combinado à sua
incapacidade de dormir na noite anterior, deixara-a com os nervos à flor da
pele.
A última coisa que ela esperava ou de que precisava era uma
surpresa, mas era exatamente isso o que a aguardava quando entrou no
saguão.
— Boa-noite, Srta. Paschal. — Laurence era o recepcionista do
prédio. Pequeno e meticuloso, saiu de trás da mesa para falar com
Maureen. — Peço que me desculpe, mas tive de entrar em seu
apartamento esta tarde. A encomenda era grande demais para ficar aqui
no saguão. Seria melhor se nos avisasse com antecedência quando estiver
esperando alguma coisa desse tamanho.
— Encomenda? Que encomenda? Eu não estava esperando nada.
— Mas não resta a menor dúvida de que é para você. Deve ter
um admirador e tanto.
Perplexa, Maureen agradeceu a Laurence e pegou o elevador para o
11° andar. Assim que abriu a porta do elevador, foi envolvida pelo
inebriante perfume de flores. A fragrância aumentou dez vezes mais
quando abriu a porta do apartamento. Soltou uma exclamação de
espanto. Não podia ver sua sala através das flores. Havia requintados
arranjos de flores por toda parte, alguns altos e sobre colunas, outros em
vasos de cristal nas mesas. Todos continham variações do mesmo tema:
rosas vermelhas, copos-de-leite brancos e lírios brancos. Os lírios
estavam em plena floração, eram a fonte do perfume inebriante.
Maureen não precisou procurar um cartão. Estava evidente num
enorme quadro de moldura dourada, que mostrava uma cena pastoral
clássica, na parede do outro lado da sala. Três pastores, de túnica e coroa
de louros, estavam reunidos em torno de um enorme objeto de pedra,
que parecia ser uma tumba. Apontavam para uma inscrição. O ponto
focai do quadro era uma mulher, uma pastora ruiva, que parecia ser a
líder do grupo.
O rosto fora pintado de modo que tivesse uma semelhança
extraordinária com Maureen.
— Les Bergers d'Arcadie. — Peter leu a inscrição numa placa de
bronze, na base da moldura, impressionado com a excelente reprodução
na sala de Maureen. — De Nicholas Poussin, o mestre barroco francês. Vi
o original do quadro no Louvre.
Maureen não disse nada, aliviada por Peter ter vindo tão depressa,
enquanto ele acrescentava:
— Os pastores de Arcádia.
— Não sei se devo me sentir lisonjeada ou ficar toda arrepiada.
Por favor, diga-me que no original a pastora não parece comigo.
Peter soltou uma risada.
— Não, não parece. Foi uma alteração feita por quem pintou a
reprodução ou uma decisão de quem mandou o quadro. Sabe quem é?
Maureen estendeu um envelope grande para Peter.
— Foi enviado por alguém chamado... Sinclair. Não tenho a menor
idéia de quem seja.
— Um admirador? Um fanático? Um maluco saindo da toca depois
de ler o seu livro?
Maureen soltou uma risada nervosa.
— É possível. Minha editora tem recebido algumas cartas
estranhas para mim nos últimos meses.
— De admiração ou de ódio?
— Dos dois tipos.
Peter tirou uma carta do envelope grande. Fora escrita à mão, num
elegante papel timbrado apergaminhado. Letras douradas no fundo da
página indicavam que o autor era Berenger Sinclair. Peter ajeitou os óculos
de leitura e leu em voz alta:
Prezada Srta. Paschal:
Por favor, perdoe-me a intromissão.
Mas creio que tenho as respostas que você tem procurado... e você tem
uma coisa que venho procurando. Se tem coragem para persistir em suas
convicções e participar de uma espantosa expedição para descobrir a verdade,
espero que se encontre comigo em Paris, no solstício de verão. A própria
Madalena solicita sua presença. Não a desaponte. Talvez este quadro
ajude a estimular seu subconsciente. Pense nele como uma espécie de mapa...
um mapa para o seu futuro e talvez para o seu passado. Estou confiante de
que honrará o grande nome Paschal, como seu pai tentou.
Atenciosamente,
Berenger Sinclair
— O grande nome Paschal? Seu pai? — indagou Peter. — O que
acha que ele está querendo dizer?
— Não tenho a menor idéia.
Maureen tentava absorver tudo. A menção ao pai deixara-a
perturbada, mas não queria que Peter soubesse. Por isso a resposta
foi petulante:
— Conhece a família de meu pai. Dos pântanos da Louisiana.
Não há nada de elevado nela, a menos que a insanidade possa ser
equiparada à grandeza.
Peter não disse nada. Esperou que ela continuasse. Maureen
quase nunca falava sobre o pai e ele estava curioso, querendo saber
se ela explicaria alguma coisa. Ficou um pouco desapontado quando
ela mudou de assunto, pegando a carta para ler de novo.
— É muito estranho. Sobre que respostas você acha que ele está
falando?
Maureen passou o dedo pela carta, pensativa. Peter correu os
olhos pela sala, admirando a abundante exposição de flores e o
enorme quadro.
— Quem quer que seja, todo esse cenário indica duas coisas...
fanatismo e muito dinheiro. Em minha experiência, isso é uma
péssima combinação.
Maureen não prestava muita atenção.
— Veja a qualidade desse papel timbrado. É espetacular. Ao
estilo francês. E esse padrão gravado em relevo aqui... o que é isso?
Uvas? — Havia algo ali que despertava uma lembrança na mente de
Maureen. — Maçãs azuis?
Peter ajustou os óculos no nariz e espiou no final da página.
— Maçãs azuis? Hum... Acho que você tem razão. Isto aqui
parece ser um endereço. Le Château des Pommes Bleues.
— Meu francês não é grande coisa, mas isso não significa maçãs
azuis?
Peter acenou com a cabeça em confirmação.
— Castelo das Maçãs Azuis. Isso significa alguma coisa para
você?
Maureen balançou a cabeça devagar, pensando.
— Não consigo determinar o que é, mas sei que já encontrei
referências a maçãs azuis em minhas pesquisas. E uma espécie de
código, se não me engano. Creio que tinha alguma coisa a ver com
os grupos religiosos na França que cultuavam Maria Madalena.
— Os mesmos grupos que acreditavam que ela foi para a
França depois da crucificação?
— Isso mesmo. A Igreja perseguiu-os como hereges porque
alegavam que seus ensinamentos vinham direto de Cristo. Foram
obrigados a cair na clandestinidade. Formaram sociedades
secretas, uma das quais era simbolizada por maçãs azuis.
— Mas qual é o significado de maçãs azuis?
— Não lembro o suficiente para dar essa resposta. — Maureen
fez um esforço para recordar, mas não conseguiu. — Mas conheço
alguém que deve saber.
Marina del Rey, Califórnia
Abril de 2005
Maureen foi andando pelo cais de Marina del Rey.
Embarcações de luxo, regalias dos superprivilegiados de
Hollywood, faiscavam ao sol da Califórnia Meridional. Um surfista
com uma camiseta rasgada, em que se lia “Apenas outro dia de
merda no Paraíso”, acenou para ela do convés de um pequeno iate.
Tinha a pele bronzeada e os cabelos clareados pelos mesmos raios de
sol implacáveis. Maureen não o conhecia, mas o sorriso de satisfação
combinava com a garrafa de cerveja em sua mão indicando que sua
disposição era de absoluta cordialidade.
Maureen acenou em resposta e continuou a andar, seguindo
para o complexo de restaurantes e butiques para turistas. Entrou
em El Burrito, um restaurante mexicano com um deque à beira
d'água.
— Reenie! Estou aqui!
Maureen ouviu Tammy antes de vê-la, o que acontecia com muita
freqüência. Ela virou-se na direção da voz e descobriu a amiga a uma
mesa ao ar livre, tomando uma margarita de manga.
Tamara Wisdom era um estudo de contrastes para Maureen
Paschal. Escultural e com a pele azeitonada, era bela de uma maneira
exótica. Os cabelos pretos lisos desciam até a cintura, com mechas em
cores vibrantes, determinadas por seu humor. Naquele dia, os reflexos
eram violeta. O nariz era furado, ornamentado com um diamante
surpreendentemente grande... presente de um ex-namorado, um bem-
sucedido diretor de cinema independente. As orelhas tinham vários
piercings, nos dois lados. Ela usava vários amuletos de padrões esotéricos
por cima da blusa de renda preta, sem mangas. Tinha quase quarenta
anos, mas parecia ser pelo menos dez anos mais moça.
Tammy era exuberante onde Maureen era conservadora; clamorosa
e obstinada, enquanto Maureen era discreta e cautelosa. Não podiam ser
mais diferentes na vida e no trabalho, mas haviam encontrado uma base
mútua de respeito, que as transformara em grandes amigas.
— Obrigada por me receber em prazo tão curto, Tammy.
Maureen sentou-se e pediu um chá gelado. Tammy revirou os olhos,
mas sentia-se excitada demais pelo motivo do encontro para censurar
Maureen pela escolha conservadora da bebida.
— Está brincando? Berenger Sinclair anda atrás de você e acha que
eu não quero ouvir todos os detalhes suculentos?
— Você foi muito reservada pelo telefone, mas agora tem de
confessar tudo. Não posso acreditar que conhece esse cara.
— Eu não posso acreditar que você não conhece. Como, em nome
de Deus... literalmente... publicou um livro que fala de Maria
Madalena sem ir à França para pesquisar? E se considera uma jornalista?
— Sou mesmo uma jornalista e é justamente por isso que não fui
à França. Não tenho o menor interesse por sociedades secretas. Esse é o
seu departamento, não o meu. Mas estive em Israel para fazer uma
pesquisa séria sobre o século I.
As provocações joviais eram parte fundamental da amizade.
Maureen conhecera Tammy durante a pesquisa para o livro. Uma amiga
comum apresentara-as, ao saber que Maureen investigava a vida de
Maria Madalena. Tammy publicara diversos livros alternativos sobre
sociedades secretas e alquimia. Também realizara um
documentário sobre as tradições espirituais secretas, apresentando
o culto a Madalena, aclamada pela crítica no circuito dos festivais.
Maureen ficara surpresa ao descobrir que os pesquisadores
esotéricos mantinham uma rede interligada, porque parecia que
Tammy conhecia todo mundo nessa área. Embora logo
compreendesse que o foco alternativo de Tammy estava longe de ser
o que procurava, em termos de material de fonte respeitável, Maureen
também reconhecera a mente perceptiva por trás dos olhos muito
maquiados, a substância por baixo da ostentação. Maureen
admirava a coragem impetuosa e a implacável honestidade de
Tammy, até mesmo quando era o alvo de suas alfinetadas.
Tammy enfiou a mão em sua bolsa grande, de um laranja
brilhante, para tirar um elegante envelope. Balançou-o por um
instante diante do nariz de Maureen, antes de estendê-lo através da
mesa.
— Eu queria lhe mostrar isto pessoalmente.
Maureen alteou uma sobrancelha para a amiga, ao ver no
envelope a flor-de-lis, agora familiar, junto com as estranhas maçãs
azuis. Tirou um convite impresso e começou a ler.
— É um convite para o exclusivo baile à fantasia anual de
Sinclair. Parece que finalmente entrei no circuito principal. Você
também recebeu um?
Maureen sacudiu a cabeça.
— Não. Recebi apenas uma estranha mensagem sobre um
encontro no solstício de verão. Como conseguiu esse convite?
— Conheci-o durante minha pesquisa na França. Pedi um
financiamento para concluir meu novo documentário. Como ele está
interessa do em fazer seu próprio documentário, estamos
negociando... sabe como é, coçarei as costas de Sinclair se ele coçar
as minhas.
— Está trabalhando num novo filme? Por que não me contou
antes?
— Não temos conversado ultimamente, não é?
Maureen ficou contrafeita. Negligenciara a amiga durante a
loucura vertiginosa dos compromissos profissionais nos últimos
meses.
— Desculpe. E pare de mostrar essa cara horrível de satisfação
consigo mesma. O que mais não está me dizendo? Sabia sobre
Sinclair... que ele anda atrás de mim?
— Não, não sabia. Só nos encontramos uma vez... mas eu
bem que gostaria que ele estivesse atrás de mim. O cara vale pelo
menos um bilhão e ainda por cima é lindo de morrer. Sabe, Reenie,
isso pode ser maravilhoso para você. Deixe os cabelos soltos e se lance
numa grande aventura. Quando foi a última vez que namorou alguém?
— Não vem ao caso.
— Talvez tenha chegado o momento.
Maureen descartou a questão e fez um esforço para reprimir a
sua irritação.
— Não tenho tempo para um relacionamento. Nem tive a
impressão de que ele me convidou para um encontro romântico.
— O que é uma pena. Não há lugar mais romântico no planeta.
— Então é por isso que você tem passado tanto tempo na França
ultimamente.
Tammy riu.
— Não, não é por isso. Acontece que a França é o centro do
esoterismo ocidental, o caldeirão da heresia. Eu poderia escrever cem livros
sobre o assunto e fazer cem documentários, mas, ainda assim, apenas
arranha ria a superfície.
Maureen sentia dificuldades para se concentrar.
— O que você acha que Sinclair quer de mim?
— Quem sabe? Ele tem uma reputação de excêntrico e extravagante.
Dispõe de tempo demais nas mãos e dinheiro demais para desperdiçar.
Calculo que alguma coisa em seu livro tenha atraído a atenção de
Sinclair e ele quer acrescentá-la à sua coleção. Mas não tenho a menor
idéia do que poderia ser. Seu trabalho não combina muito com a linha
dele.
— O que isso significa? — Maureen sentia-se um pouco
defensiva. — Por que não é a linha dele?
— Porque você seguiu as tendências e foi muito acadêmica.
Quando escreveu aquele capítulo sobre Maria Madalena, optou por ser
cautelosa e politicamente correta. Maria Madalena pode ter tido um
relacionamento com Jesus, mas não há qualquer prova... blablablá.
Preferiu se manter dentro de uma margem de segurança. Mas pode ter
certeza de que não há nenhuma margem de segurança naquilo em que
Sinclair acredita. É por isso que gosto dele.
Maureen respondeu de uma maneira um pouco mais incisiva do
que tencionava:
— Sua função é a de revisar a história com base em convicções
pessoais. Não é o meu caso.
Tammy estava tocando num ponto sensível hoje. Mas, ao seu estilo
pessoal, recusou-se a recuar e continuou a pressionar Maureen.
— E quais são as suas convicções? Tenho a impressão de que nem
você mesma sabe. Você é uma grande amiga e não tenho a menor intenção
de desrespeitá-la. Portanto não fique zangada. Mas sabe tão bem quanto
eu que Maria Madalena manteve um relacionamento com Jesus e que
tiveram filhos. Por que tem tanto medo dessa possibilidade? Nem sequer é
religiosa. Isso não deveria ameaçá-la.
— E não me ameaça. Apenas não queria seguir por esse caminho.
Tive medo de que prejudicasse o resto de meu trabalho. Mas é óbvio que
seus padrões para “evidências” e os meus não são os mesmos. Passei a
maior parte da minha vida adulta pesquisando para o livro. Não podia
jogar tudo fora por causa de alguma teoria simplória e sem
confirmação, na qual não estou nem um pouco interessada.
Tammy respondeu sem hesitar:
— Essa teoria que você chama de simplória é sobre a união divina.
A idéia de duas pessoas respeitando uma à outra num
relacionamento sagrado é a maior expressão de Deus que existe neste
mundo. Talvez você deva considerar a possibilidade de investir nisso.
Maureen mudou de assunto, abruptamente.
— Você prometeu que me diria o que sabe sobre as maçãs azuis.
— Se você desculpar minhas teorias simplórias e sem
confirmação...
— Desculpe.
Maureen parecia sinceramente arrependida, o que fez Tammy rir.
— Esqueça. Já fui chamada de coisa muito pior. Aqui está o que
sei sobre as maçãs azuis. São um símbolo da linhagem genealógica...
isso mesmo, essa linhagem que você e seus amigos acadêmicos querem
presumir que não existe. A linhagem de Jesus Cristo e Maria Madalena,
através de seus descendentes. Várias sociedades secretas têm usado
símbolos diferentes para representar a linhagem.
— E por que maçãs azuis?
— Já houve muitos debates a respeito, mas de um modo
geral acredita-se que seja uma referência a uvas. As regiões
produtoras de vinho no sul da França são famosas por suas uvas
enormes, que podiam ser simbolizadas por maçãs azuis. Dê o salto
comigo neste ponto: os filhos de Jesus são iguais aos frutos da videira,
que são uvas, que são maçãs azuis.
Maureen balançou a cabeça.
— Isso significa que Sinclair está envolvido em uma dessas
sociedades secretas?
— Sinclair é sua própria sociedade secreta. — Tammy soltou
uma risada. — Ele é como o poderoso chefão por lá. Nada
acontece sem o seu conhecimento e aprovação. E é também o talão
de cheques para muitas pesquisas. Inclusive a minha.
Tammy ergueu o copo num brinde zombeteiro à generosidade
de Sinclair. Maureen tomou um gole de seu chá. Olhou de novo
para o envelope.
— Mas você não acha que Sinclair é perigoso?
— Claro que não. Ele é famoso demais para ser perigoso...
embora tenha dinheiro e influência para esconder os corpos. Foi só
uma brincadeira. Não precisa ficar verde. E é provavelmente o
maior estudioso de Maria Madalena no mundo inteiro. Podia ser um
contato muito interessante, se você decidir abrir um pouco a mente.
— Posso presumir que você vai à festa?
— Está louca? Claro que vou. Até já comprei a passagem de avião. A
festa será no dia 24 de junho, três dias depois do solstício de verão. Hum...
— O que é?
— Ele está armando alguma coisa, mas não sei o que é. Quer se
encontrar com você no dia 21 de junho em Paris e depois oferecer a
festa no dia 24... que é o meio do verão, pelo calendário antigo, mas
também é o dia de João Batista. Está ficando cada vez mais
interessante. Não acredito por um minuto sequer que essas datas
sejam apenas uma coincidência. Onde ele quer que você o
encontre?
Maureen tirou a carta da bolsa, junto com o mapa da França
que a acompanhara. Entregou as duas coisas a Tammy.
— Veja isto. — Maureen apontou. — Há uma linha vermelha
daqui até o sul da França.
— É o meridiano de Paris. Passa direto pelo coração do
território de Maria Madalena... e pela propriedade de Sinclair, diga-
se de passagem.
Tammy virou o mapa para mostrar outro, este de Paris.
Acompanhou o traçado no mapa com a unha vermelha. Desatou a
rir quando encontrou o ponto na Rive Gauche cercado por um
círculo vermelho.
— Essa não! O que você está tramando, Sinclair? — Tammy
indicou o ponto marcado no mapa. — A igreja de Saint-Sulpice. É o
lugar em que ele pediu a você para encontrá-lo?
Maureen confirmou com um aceno de cabeça.
— Você conhece?
— Claro. Uma igreja enorme, a segunda maior de Paris, depois
da Notre Dame, às vezes chamada de Catedral da Rive Gauche. É um
local de atividades de sociedade secreta pelo menos desde o século XVII.
Eu gostaria de ter sabido disso antes. Mudaria meu vôo até Paris para
chegar alguns dias mais cedo. Daria qualquer coisa para testemunhar seu
encontro com o poderoso chefão.
— Ainda não decidi se vou. Tudo parece meio absurdo. Não tenho
qualquer informação para contato com ele... nem telefone, nem e-mail.
Ele nem mesmo mandou o aviso de RSVP. Parece que tem certeza de que
estarei presente.
— Sinclair é um homem acostumado a conseguir o que quer. E,
por algum motivo que não consigo imaginar, ele parece querer você.
Mas você precisa parar de jogar pelas regras da sociedade normal, se quer
se envolver com essas pessoas. Não são perigosas, mas podem ser
muito excêntricas. Os enigmas são parte de seu jogo e você terá de
resolver alguns para provar que é digna de ingressar no círculo interno.
— Não tenho certeza de querer ingressar em algum círculo.
Tammy tomou o resto de sua margarita.
— A decisão é sua, minha cara. Se fosse eu, não perderia um
convite assim por nada neste mundo. Acho que é a chance de uma
vida para você. Vá como jornalista, para investigar. Mas lembre-se de
uma coisa: depois que entrar nesse mistério, será como passar pelo
espelho e cair no buraco do coelho. Por isso, tome cuidado. E atenha-se
à sua realidade, minha pequena e conservadora Alice.
Los Angeles
Abril de 2005
A discussão com Peter fora mais acalorada do que ela previra.
Maureen sabia que ele se oporia à sua decisão de se encontrar com
Sinclair na França, mas estava despreparada para a veemência com que
o primo defendeu sua posição.
— Tamara Wisdom é doida. Não posso acreditar que você permitiu
que ela a convencesse a fazer isso. Ela não pode ser uma testemunha do
caráter desse tal de Sinclair.
A discussão prolongara-se durante quase todo o jantar, com Peter
bancando o irmão mais velho e protetor, preocupado com sua segurança,
enquanto Maureen tentava fazer com que ele compreendesse a decisão.
— Sabe que eu nunca fui de correr grandes riscos, Pete. Gosto
de ordem e controle em minha vida e estaria mentindo se não dissesse
que essa perspectiva me deixa apavorada.
— Então por que vai comparecer ao encontro?
— Porque os sonhos e as coincidências me apavoram ainda mais.
Não tenho controle sobre eles e se tornam cada vez piores, mais
freqüentes e mais intensos. Sinto que tenho de seguir esse caminho
para descobrir aonde vai me levar. Talvez Sinclair tenha as respostas que
procuro, como ele alega. Se é o maior estudioso do mundo de Maria
Madalena, talvez alguma coisa em tudo isso faça sentido para ele. E só há
uma maneira de eu descobrir, não é mesmo?
Ao final de uma discussão extenuante, Peter finalmente concordou,
mas com uma condição.
— Irei com você.
E isso foi definitivo.
Maureen apertou a tecla em seu celular para chamar o telefone de
Peter no instante em que saiu da Agência de Viagens Westwood, na
manhã do sábado seguinte. Ainda não contara tudo ao padre. Às vezes,
Peter a tratava como se ela ainda fosse uma criança e ele seu protetor.
Embora lhe fosse grata por isso, era uma mulher adulta, que precisava
tomar algumas decisões importantes naquela encruzilhada de sua vida.
Agora, com a decisão tomada e as passagens na mão, era hora de avisá-lo.
— Oi. Já está tudo acertado. Peguei as passagens. Mas tomei uma
decisão súbita... de voar para Nova Orleans um dia antes.
Peter ficou calado por um momento, surpreso.
— Nova Orleans? Está bem. Vamos voar para Paris de lá?
Essa era a parte difícil.
— Não. Irei para Nova Orleans sozinha. — Ela se apressou em
continuar, antes que Peter pudesse interrompê-la. — É uma coisa que
preciso fazer sozinha, Pete. Vamos nos encontrar no aeroporto JFK
no dia seguinte e voaremos juntos para Paris, a partir de Nova York.
Peter fez uma pausa mínima, antes de aceitar, com uma resposta
simples:
— Está bem.
Maureen sentia-se culpada por enganá-lo.
— Estou em Westwood, deixando a agência de viagens. Pode
almoçar comigo? Você escolhe o restaurante. Eu pago.
— Não posso. Estou dando hoje aulas de atualização em Loyola.
— Não pode arrumar alguém para dar aulas de latim em seu lugar?
— De latim, poderia. Mas sou o único professor de grego aqui.
Tudo depende de mim hoje.
— Está certo. Talvez um dia você possa me explicar por que
adolescentes do século XXI precisam aprender línguas mortas.
Peter sabia que Maureen estava brincando. A prima tinha o maior
respeito por sua educação e conhecimentos lingüísticos.
— Pelo mesmo motivo que eu precisei aprender línguas mortas e
meu avô também precisou. E não acha que nos serviu muito bem?
Maureen não podia contestar essa alegação, nem de brincadeira. O
avô de Peter, o respeitado Dr. Cormac Healy, integrara um comitê em
Jerusalém que estudara e fizera traduções de algumas obras da
extraordinária biblioteca de Nag Hammadi. A paixão de Peter por
manuscritos antigos florescera quando ele era adolescente e passara o
verão em Israel com o avô. Como parte de um estágio, Peter participara de
uma escavação no Scriptorium, em Qumran, onde os pergaminhos do
mar Morto foram escritos. Durante anos, ele mantivera um fragmento de
tijolo de uma parede do Scriptorium dentro de um mostruário de museu,
ao lado de sua mesa. Mas, quando a prima demonstrara uma autêntica
paixão e vocação para seu trabalho como escritora, Peter achara que
seria mais apropriado que ela ficasse com a relíquia, como inspiração.
Maureen usava o fragmento de tijolo numa bolsa de couro, pendurada ao
pescoço, cada vez que sentava para escrever.
Foi durante esse verão em Israel que o jovem Peter encontrou sua
vocação, como estudioso e sacerdote. Visitara os locais sagrados do
cristianismo com um grupo de jesuítas. A experiência causara um profundo
impacto no jovem e idealista irlandês. A ordem dos jesuítas demonstrara
ser o local perfeito para suas paixões combinadas, religiosas e acadêmicas.
Maureen acertou um encontro no fim de semana. Ao desligar e
fechar o celular, sentia-se mais leve do que em muitos meses.
O que não acontecia com o padre Peter Healy.
A costa oeste dos Estados Unidos tem uma série espetacular
de prédios históricos nas missões encontradas na Califórnia.
Fundadas por um dedicado monge franciscano, padre Junípero
Serra, no século XVIII, essas missões eram amostras da
arquitetura espanhola, abençoadas com lindos jardins ou em locais
de extraordinária beleza natural.
Peter sentia uma grande afinidade pela ordem franciscana e
decidira que um objetivo pessoal seria visitar todas as missões na
Califórnia, desde que chegara ao estado. As missões misturavam
história com fé, uma combinação que encontrava ressonância no
coração e na alma de Peter. Quando precisava de tempo e espaço
para pensar, ele costumava escapar para uma das missões, de fácil
acesso, no sul da Califórnia. Cada uma possuía seu charme singular
e representava um oásis de calma no centro do frenético estilo de
vida de Los Angeles.
Naquele dia, ele escolheu a Missão de San Fernando, por causa
de seu amigo, padre Brian Rourke, que residia perto e era superior
da ordem dos jesuítas no vale de San Fernando. A amizade de Peter
com o padre Brian datava de seus primeiros anos no seminário,
quando o sacerdote mais velho servira como seu mentor. Agora,
Peter precisava de um amigo de confiança; estava em busca de um
santuário... mesmo que fosse a Igreja que ele amava e a que
obedecia. O padre Brian concordara em encontrá-lo mesmo em tão
curto prazo, sentindo um princípio de pânico na voz de Peter.
— Sua prima é uma católica praticante?
O padre mais velho passeava pelos jardins da missão em
companhia de Peter. O sol da tarde era forte no vale e Peter
removeu uma gota de suor, com as costas da mão.
— Não. Mas era muito devota quando criança. Ambos éramos.
O padre Rourke balançou a cabeça.
— Aconteceu alguma coisa para afastá-la da Igreja?
Peter hesitou por um momento:
— Problemas de família. Prefiro não falar a respeito.
Ele já sentira que revelar as visões de Maureen sem o seu
conhecimento era uma forma de traição. Tampouco queria revelar os
segredos de família. Pelo menos ainda não. Contudo estava um
tanto desorientado sobre o que deveria fazer e precisava de
conselhos objetivos de alguém em quem pudesse confiar, dentro da
estrutura de sua Igreja.
O padre mais velho acenou com a cabeça respeitando a
confidencialidade.
— É muito raro que essas coisas possam ser consideradas visões
divinas. Às vezes são sonhos, às vezes delusões da infância. É provável que
não seja causa para qualquer preocupação. Vai acompanhá-la até a França?
— Vou, sim. Sempre fui seu conselheiro espiritual e creio que sou
a única pessoa em quem ela realmente confia.
— Isso é ótimo, pois neste caso poderá ficar de olho nela. Por favor,
ligue imediatamente se achar que ela está se tornando perigosa para si
mesma, sob qualquer aspecto. Daremos um jeito de ajudá-lo.
— Tenho certeza de que não chegará a esse ponto.
Peter sorriu e agradeceu ao amigo. A conversa passou a versar sobre
o calor intenso na Califórnia, em comparação com os verões amenos na
Irlanda. Falaram sobre velhos amigos e um antigo professor e conterrâneo
de ambos, que era agora bispo em algum lugar do sul dos Estados
Unidos. Quando chegou o momento de partir, Peter assegurou ao velho
amigo que se sentia melhor depois da conversa.
Ele mentia.
O padre Brian Rourke voltou para seu escritório naquela tarde com
um aperto no coração e a consciência em conflito. Ficou sentado em
silêncio por um longo momento, olhando para o crucifixo pendurado
na parede, por cima da mesa. Deixou escapar um suspiro de resignação,
pegou o telefone e discou o código de área da Louisiana. Não precisava
olhar o número.
Nova Orleans
Junho de 2005
Maureen guiava o carro alugado pelos arredores de Nova Orleans,
um mapa da área aberto no banco de passageiro vazio. Diminuiu a
velocidade e parou no lado da rua, a fim de consultar o mapa, para ter
certeza de que continuava no caminho certo. Satisfeita, tornou a partir.
Enquanto fazia a curva seguinte, avistou as tumbas acima do solo, em
estilo de sarcófago, pelas quais os cemitérios de Nova Orleans eram
famosos.
Maureen parou no estacionamento. Inclinou-se para o banco
traseiro, a fim de pegar a bolsa e as flores que comprara de um vendedor
de rua. Saiu do carro, tomando cuidado para evitar as poças de lama,
remanescentes de uma tempestade de verão. Correu os olhos pela
paisagem, com seus gramados bem cuidados. Lápides refinadas e coroas
de flores estendiam-se por uma vasta distância. Maureen respirou
fundo e se encaminhou para o portão do cemitério, levando as flores.
Parou na entrada e levantou os olhos, mas desviou-se abruptamente para
a esquerda, sem entrar no cemitério.
Foi andando em torno do perímetro do cemitério, até alcançar
outro conjunto de sepulturas. Os túmulos ali tinham o mato crescido,
com muito musgo, o lugar era negligenciado e comovente. Aquele era o
cemitério dos desajustados.
Ela avançou entre as sepulturas, devagar, com todo o cuidado,
reverente. Fez um esforço para reprimir as lágrimas, enquanto passava
por sepulturas esquecidas, pessoas que haviam sido abandonadas até
mesmo na morte. Na próxima vez, traria mais flores... flores para todos.
Maureen ajoelhou-se e afastou o mato que cobria uma lápide meio
arrebentada. O nome inscrito ali era EDOUARD PAUL PASCHAL.
Começou a arrancar o mato invasor com as mãos, em movimentos
bruscos. Detritos voavam ao seu redor enquanto limpava a área,
indiferente à terra e lama que se acumulavam sob as unhas e salpicavam-
lhe as roupas. Ela alisou a terra com as mãos e esfregou a lápide, para dar
mais definição às letras.
Depois de limpar a área da melhor forma que podia, Maureen
ajeitou as flores. Tirou o porta-retrato da bolsa e contemplou a foto por
um momento, deixando as lágrimas escorrerem. A foto mostrava-a
quando criança, não mais que cinco ou seis anos, sentada no colo de um
homem que lia um livro para ela. Os dois sorriam um para o outro,
felizes, indiferentes à câmera.
— Oi, papai — murmurou ela para a foto, antes de encostá-la na
lápide.
Maureen permaneceu ali por algum tempo, os olhos fechados,
absorvida na tentativa de recordar o pai, de lembrar qualquer detalhe.
Com exceção daquela foto, não tinha mais nada que lhe pudesse
propiciar lembranças do pai. Depois de sua morte, a mãe proibira
qualquer referência ao homem ou ao papel que tivera em suas vidas.
Maureen e a mãe haviam se mudado para a Irlanda logo depois. Seu
passado na Louisiana fora relegado às vagas lembranças de uma criança
traumatizada e triste.
No início daquela manhã, Maureen folheara uma lista telefônica de
Nova Orleans, à procura de residentes com o nome de Paschal. Havia
vários, e alguns podiam ser da família. Mas ela logo fechara a lista, nunca
tivera a intenção de fazer qualquer contato com prováveis parentes, não
depois de tanto tempo, muito menos agora. Fora mais um exercício de
recordação.
Ela tocou na foto em despedida. Depois, removeu as lágrimas com a
mão enlameada, deixando o rosto todo sujo. Não se importava.
Levantou-se e voltou pelo caminho por onde viera, sem olhar para trás.
Parou no lado de fora do portão do cemitério propriamente dito. Lá dentro,
uma capela branca impecável, com uma cruz de latão polida, faiscava ao
sol meridional.
Maureen olhou para a capela através das barras do portão, com o
olhar de uma forasteira.
Ergueu a mão para proteger os olhos do reflexo de luz na cruz, depois
virou as costas à igreja e afastou-se.
Cidade do Vaticano, Roma
Junho de 2005
O cardeal Tomas DeCaro levantou-se e olhou pela janela para a
piazza. Os olhos cansados não eram a única coisa que precisava de uma
pausa do exame da pilha de papéis amarelados em sua mesa. Sua mente
e consciência também precisavam de descanso, além de reflexão sobre as
informações que recebera naquela manhã. Havia a iminência de um
terremoto, não havia a menor dúvida a respeito. Ele ainda não tinha
certeza sobre a extensão dos danos que o novo cataclismo poderia
acarretar... e quem seriam as vítimas.
Abriu a gaveta de cima da mesa e olhou para o objeto ali dentro que
lhe dava força em momentos assim. Era um retrato do santo papa João
XXIII, sob o cabeçalho de Vatican Secundam — Vaticano II. Logo abaixo da
imagem, havia uma citação do grande e visionário pontífice, que tanto
arriscara para levar sua amada Igreja ao mundo contemporâneo. DeCaro
conhecia as palavras de cor, mas sempre se sentia fortalecido quando as
lia em voz alta:
— Não é que o Evangelho tenha mudado. Apenas passamos a
compreendê-lo melhor. Chegou o momento de discernir os sinais dos
tempos, de avaliar as oportunidades e olhar para a frente.
Lá fora, o verão estava prestes a começar. Prometia ser um lindo dia
em Roma. DeCaro decidiu relaxar por algumas horas, dando um longo
passeio por sua amada Cidade Eterna.
Precisava andar, precisava pensar e, acima de tudo, precisava orar
por orientação. Talvez o espírito-guia do bom papa João o ajudasse a
encontrar seu caminho através da crise iminente.
... Bartolomeu veio a nós por intermédio de Filipe, outro de nossa
tribo que foi julgado de maneira equivocada... e tenho de confessar aqui
que fui a primeira a incorrer nesse equívoco. Ele era um antigo
seguidor de João Batista e conheci-o por meio dessa associação. Por
isso demorou um pouco para que eu aprendesse a confiar em Filipe.
Filipe era um homem enigmático. Prático e instruído, eu era
capaz de lhe falar na língua dos helenistas, em que também era
versada. Ele vinha da nobreza, nascido em Betsaida. Mesmo assim,
havia muito que optara por levar uma vida de extrema simplicidade,
negando a si mesmo os acessórios da vida da nobreza. Isso ele
aprendeu primeiro com João. Filipe era difícil e belicoso na superfície,
mas em seu íntimo era todo luz e bondade.
Não havia nada em Filipe que pudesse fazer mal a outra criatura
viva. Era austero em seus hábitos alimentares e não consumia
qualquer comida que pudesse ter causado o sofrimento de algum
animal. Enquanto o resto da tribo alimentava-se de peixe, Filipe não
queria saber disso. Era incapaz de suportar o pensamento de bocas
delicadas sendo dilaceradas por anzóis ou a agonia que os peixes
deviam sentir ao ficarem presos em redes. Teve muitas discussões com
Pedro e André por causa desse dilema. Tenho pensado a respeito com
freqüência. Talvez ele estivesse certo e sua dedicação a essa convicção é
um dos motivos pelos quais eu o admirava.
...Às vezes eu sentia que Filipe era muito parecido com os
animais que tanto reverenciava, aqueles que se protegem com espinhos
ou uma carapaça externa, a fim de que nada possa penetrar a tenra
criatura por baixo. Apesar disso, ele tomou Bartolomeu sob sua
proteção, quando o descobriu vagueando pelas estradas, sem um lar.
Viu a bondade em Bartolomeu e levou essa bondade até nós.
Depois do Tempo das Trevas, Filipe e Bartolomeu foram os meus
maiores confortos. Eles cuidaram dos preparativos iniciais, junto com
José, para levar-nos sãos e salvos até Alexandria, longe de nossa terra,
o mais depressa possível. Bartolomeu era tão importante para as
crianças quanto para as mulheres. Na verdade, ele foi o maior conforto
para o pequeno João, que ama todos os homens. Mas Sara-Tamar
também adorava Bartolomeu.
Esses dois homens merecem um lugar no Paraíso repleto de luz e
perfeição por toda a eternidade. Filipe ficou muito preocupado em nos
proteger e nos levar em segurança para nosso destino. Creio que ele
não se deteria diante de nada
Não importaria o que eu lhe pedisse. Se dissesse a Filipe que
nosso destino devia ser a lua, ele tentaria tudo ao seu alcance para
nos levar até lá.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPÍTULO SEIS
Paris
19 de junho de 2005
O sol faiscava no Sena enquanto Maureen e Peter caminhavam
pela margem do rio. Paris era banhada pela luz quente do início do verão e
os dois sentiam-se contentes pela oportunidade de espairecer um pouco
e apreciar a vista da cidade mais linda do mundo. Haveria oportunidades
suficientes para se preocuparem com o encontro com Sinclair, dentro de
dois dias.
Ambos se apressavam em tomar o sorvete de casquinha, antes
que começasse a pingar ao sol e deixasse uma trilha viscosa de arco-íris.
— Hum... Você tinha razão, Pete. O Berthilion pode mesmo ser o
sorvete mais gostoso do mundo. É espantoso.
— Que sabor você pediu?
Maureen estava praticando seu francês.
— Poivre.
— Pimenta? — Peter desatou a rir. — Pediu sorvete com sabor
de pimenta?
Maureen ficou vermelha de embaraço, mas tentou de novo:
— Pauvre?
— Pobre? Pediu um sabor de pobre?
— Está bem, eu desisto. Pare de me atormentar. É sabor de pêra.
— Poire. Poire é pêra. Peço desculpas, não deveria rir de você. Foi uma
boa tentativa.
— É óbvio quem tem o talento lingüístico na família.
— Não é verdade. Você fala inglês muito bem.
Os dois riram, desfrutando a descontração do momento e a beleza
do dia.
A magnificência gótica da Notre Dame dominava a Île de la Cité
havia oitocentos anos. Ao se aproximarem da catedral, Peter contemplou
reverente a fachada imponente, com sua mistura de santos e gárgulas.
— Na primeira vez em que a vi, eu disse para mim mesmo: “Deus
vive aqui.” Quer entrar?
— Não. Prefiro ficar do lado de fora, com as gárgulas, que é o meu
lugar.
— É a mais famosa estrutura gótica do mundo e um símbolo de
Paris. Como turista, você tem a obrigação de entrar. Além do mais, os
vitrais são fenomenais. E você poderá ver a rosácea ao sol do meio-dia.
Maureen ainda hesitou, mas Peter pegou seu braço e levou-a.
— Vamos entrar. Prometo que as paredes não vão desabar à sua
presença.
O sol passava pela rosácea, famosa no mundo inteiro, iluminando
Peter e Maureen numa claridade azul-celeste, riscada de vermelho. Peter
vagueou pela catedral, o rosto erguido para os vitrais, com um sentimento
perfeito de bem-aventurança. Maureen seguia ao seu lado, fazendo um
esforço para lembrar a si mesma que aquele prédio possuía um enorme
significado histórico e arquitetônico, que não era apenas mais uma igreja.
Um padre francês passou por eles, acenando com a cabeça num
cumprimento solene. Maureen tropeçou de leve nesse instante. O
padre parou e estendeu a mão para ampará-la, falando com alguma
preocupação, em francês. Maureen sorriu e ergueu a mão, para indicar
que estava bem. Peter voltou para o seu lado, enquanto o padre francês
se afastava.
— Você está bem?
— Estou, sim. Apenas senti uma vertigem súbita. Talvez pelo
cansaço da viagem.
— Quase não dormiu nos últimos dias.
— Isso deve ter contribuído. — Maureen apontou para um banco
lateral, perto da rosácea. — Vou me sentar um pouco ali e apreciar o
vitral. Você pode continuar a circular.
Peter parecia preocupado, mas ela acenou para que ele
continuasse.
— Estou bem. Pode ir. Esperarei aqui.
Peter balançou a cabeça e se afastou para explorar o resto da
catedral. Maureen se sentou no banco, respirando fundo para recuperar
o controle. Não quisera admitir para Peter que ficara bastante tonta.
Fora uma crise repentina e ela sabia que cairia se não se sentasse. Mas
não queria que Peter soubesse. Provavelmente era apenas uma
combinação de exaustão com o chamado jet lag, a desorientação causada
pela mudança brusca de fusos horários.
Ela passou as mãos pelo rosto, tentando se livrar da vertigem.
Fachos em caleidoscópio da luz colorida passavam pela rosácea e incidiam
sobre o altar, iluminando um enorme crucifixo. Maureen piscou com
força. O crucifixo parecia estar aumentando, ampliando cada vez mais
em seu campo de visão.
Ela pôs as mãos na cabeça quando a vertigem envolveu-a e as
imagens prevaleceram.
Os raios riscavam o céu de uma escuridão anormal, naquela
desolada tarde de sexta-feira. A mulher de vermelho subiu a colina
cambaleando. Teve de jazer o maior esforço para chegar lá em cima.
Mantinha-se alheia aos cortes e arranhões que se acumulavam em seu
corpo e esfarrapavam as roupas. Só tinha um objetivo, que era o de
alcançá-Lo.
O som de um martelo batendo num prego — metal contra metal
— ressoava pelo ar, com uma finalidade assustadora. A mulher perdeu
o controle e gemeu, um som estranho, de desespero humano
irredimível.
A mulher alcançou a cruz no momento em que a chuva começou.
Levantou os olhos para Ele. Gotas de Seu sangue caíram no rosto
transtornado da mulher, misturando-se com as lágrimas incessantes.
Perdida na visão, Maureen não tinha mais noção do lugar em que
se encontrava. Seu gemido, um eco perfeito do desespero de Maria
Madalena, ressoou pela Catedral de Notre Dame, assustando os turistas
e fazendo Peter correr em sua direção.
— Onde estou?
Maureen acordou num sofá, numa sala revestida de madeira. O
rosto sisudo de Peter pairava por cima dela, enquanto ele respondia:
— Em uma das salas da catedral.
Peter acenou com a cabeça para o padre francês que haviam
encontrado antes e que acabara de entrar na sala, através de uma porta
oculta no fundo, com uma expressão preocupada.
— Padre Marcel ajudou-me a trazê-la para cá. Não tinha condições
de ir a lugar algum por conta própria.
O padre Marcel adiantou-se e estendeu um copo com água.
Maureen pegou e bebeu, agradecida.
— Merci — murmurou ela.
O francês acenou com a cabeça, sem dizer nada. Recuou para o
fundo da sala, a fim de esperar, discreto, caso houvesse necessidade de
voltar a ajudar.
— Desculpe — balbuciou ela para Peter, constrangida.
— Não precisa se desculpar. É óbvio que perdeu o controle. Quer
me contar o que viu?
Maureen relatou a visão. O rosto de Peter foi se tornando mais
branco a cada palavra. Quando Maureen acabou, ele fitou-a com uma
expressão solene.
— Sei que não quer ouvir isso, Maureen, mas acho que vem
tendo visões divinas.
— Acha, então, que eu deveria conversar com um padre? — gracejou
ela.
— Falo sério. Isso está fora de minha esfera de experiência, mas
posso descobrir alguém que sabe sobre essas coisas. Basta falar, mais nada.
Pode ajudar.
— Não há a menor possibilidade. — Determinada, Maureen
sentou-se no sofá. — Só quero que me leve de volta ao hotel, para que eu
possa descansar. Depois que dormir um pouco, tenho certeza de que
estarei bem.
Maureen conseguiu descartar a visão e deixar a catedral sem ajuda.
Ficou aliviada por poder sair por uma passagem lateral, sem a
necessidade de atravessar outra vez o interior daquele grande símbolo do
cristianismo.
Depois que a levou sã e salva para o quarto, Peter foi para seu
próprio quarto. Sentou-se por um momento, olhando para o telefone.
Ainda era muito cedo para fazer uma ligação para os Estados Unidos.
Sairia por algum tempo e voltaria quando fosse uma hora mais
apropriada, considerando a diferença de fuso.
Mais abaixo, às margens do Sena, o padre Marcel atravessava o
interior iluminado por velas da mais famosa catedral gótica do mundo.
Estava acompanhado por um sacerdote irlandês, o bispo O'Connor, que
tentava lhe fazer perguntas, num péssimo francês.
O padre Marcel levou-o ao banco em que Maureen tivera a visão.
Deu a explicação devagar, tentando superar a barreira da língua. Embora
fizesse um esforço sincero para se comunicar com o irlandês, o padre
francês tinha a impressão de que conversava com um idiota. O'Connor
dispensou-o, com um aceno impaciente, se sentou no banco e olhou para
o crucifixo no altar, imerso em concentração.
Paris
19 de junho de 2005
A Cave dos Mosqueteiros era menos sinistra durante o dia,
iluminada por uma lâmpada fluorescente implacável. Os ocupantes
vestiam roupas comuns, sem ter no pescoço os cordões vermelhos que os
identificavam como membros da Guilda dos Justos.
Uma réplica do retrato de João Batista pintado por Leonardo Da
Vinci estava pendurada na parede dos fundos, apenas a um quarteirão de
distância do Louvre, onde se encontrava o original, de valor inestimável.
No famoso quadro, João olha da tela com um sorriso insinuante. Tem a
mão levantada, o indicador e o polegar apontando para o céu. Leonardo
pintou João nessa pose, muitas vezes referida como o gesto “Lembre-se de
João”, em várias ocasiões. O significado dessa pose específica é debatido há
séculos.
O inglês se sentava à cabeceira da mesa, como sempre, de costas
para o quadro. Um americano e um francês estavam sentados a seus
lados.
— Não compreendo o que ele está querendo — disse o inglês,
ríspido, Ele pegou um livro de capa dura em cima da mesa e sacudiu-o
para os dois homens. — Já o li duas vezes. Não há nada de novo aqui,
nada que possa ser de interesse para nós. Ou para ele. Então o que há?
Vocês já pensaram a respeito de tudo isso? Ou estou falando sozinho?
O inglês largou o livro em cima da mesa, com óbvio menosprezo. O
americano o pegou e folheou, distraído. Concentrou-se na foto da autora.
— Ela é atraente. Talvez isso seja tudo.
O inglês soltou uma risada desdenhosa. Típica besteira ianque, sem o
menor sentido. Ele sempre fora contra americanos na Guilda, mas aquele
idiota era de uma família rica, associada ao legado comum, e tinham de
aceitá-lo.
— Com Sinclair, é sempre dinheiro e poder. Ele tem muito mais
do que “atraente” à sua disposição, vinte e quatro horas por dia. Suas
façanhas de playboy são lendárias na Inglaterra e no resto da Europa.
Há muito mais do que uma simples conquista envolvendo essa mulher
e espero que vocês dois descubram o que é. O mais depressa possível.
— É quase certo que ele acredita que a mulher é a Pastora, mas
saberei com certeza muito em breve — declarou o francês. — Viajarei
para o Languedoc neste fim de semana.
— O fim de semana é tarde demais — disse o inglês, irritado. —
Deve partir no máximo amanhã. Hoje seria preferível. Há o fator tempo
aqui, como sabem muito bem.
— Ela tem cabelos vermelhos — comentou o americano.
O inglês soltou um grunhido.
— Qualquer vagabunda com vinte euros e alguma disposição pode
se tornar ruiva. Descubram por que ela é importante. E depressa. Porque
se Sinclair descobrir o que está procurando antes de nós...
Ele não concluiu a frase; não precisava. Os outros sabiam
exatamente o que aconteceria; sabiam o que acontecera na última vez
em que alguém do lado errado chegara muito perto. O americano era um
tanto sensível e a perspectiva da escritora ruiva sem cabeça deixava-o
muito consternado.
O americano pegou o exemplar do livro de Maureen, ajeitou-o
debaixo do braço e saiu com seu companheiro francês para o sol ofuscante
de Paris.
Depois que seus subalternos se retiraram, o inglês, que fora
batizado com o nome de John Simon Cromwell, levantou-se e foi para o
fundo do porão. Fora da vista da sala principal, havia uma pequena
câmara aberta. O espaço continha um pesado armário de madeira
escura, além de um pequeno altar, à direita. Um genuflexório dava
espaço para um único suplicante diante do altar.
As maçanetas das portas do armário eram de ferro batido. O
compartimento inferior era protegido por uma tranca de aparência
poderosa. O inglês enfiou a mão por dentro da camisa para pegar a chave
pendurada ao pescoço. Ajoelhou-se, enfiou a chave na tranca e abriu o
compartimento.
Tirou dois itens. Primeiro, uma garrafa do que parecia ser água
benta, que despejou numa pia batismal na frente do altar. Depois, pegou
um relicário, pequeno, mas todo ornamentado.
Cromwell pôs o relicário no altar, com o maior cuidado. Mergulhou
as mãos na água. Esfregou a água no pescoço com as palmas, proferindo
uma invocação durante o processo. Ergueu o relicário ao nível dos olhos.
Através de uma pequena abertura na caixa de ouro maciço, era visível
um brilho de marfim. Comprido, estreito e entalhado, o osso humano
chocalhou quando o inglês espiou. Ele comprimiu o osso contra o peito e
murmurou uma oração fervorosa:
— Ó Grande Mestre da Justiça, sabe que eu não lhe faltarei. Mas
suplicamos que nos ajude. Ajude a nós, que procuramos a verdade. Ajude
a nós, que vivemos apenas para servir seu exaltado nome. Acima de tudo,
ajude-nos a manter a meretriz em seu lugar.
O americano, sozinho agora, desceu pela Rue de Rivoli, enquanto
gritava pelo celular, acima do barulho do tráfego de Paris:
— Não podemos esperar por mais tempo. Ele é um completo renega
do, totalmente fora de controle.
A voz no outro lado da ligação também tinha um sotaque
americano, refinado, característico do nordeste dos Estados Unidos. O
tom era igualmente furioso.
— Atenha-se ao plano. Vai permitir que alcancemos nosso objetivo,
de uma maneira metódica e completa. E foi criado por pessoas muito
mais sábias do que você.
A voz do homem mais velho era incisiva, soando através de
quilômetros e quilômetros.
— Essas pessoas mais sábias do que eu não estão aqui —
protestou o homem mais jovem. — Não podem ver o que eu vejo. Quando
vai me dar algum crédito, papai?
— Quando você merecer. Enquanto isso, eu o proíbo de fazer
qualquer idiotice.
O americano mais jovem fechou o celular abruptamente,
praguejando. Contornara a esquina na frente do Hotel Regina e
atravessava a Place des Pyramides. Levantou os olhos... e parou bem a
tempo de evitar uma colisão com a famosa estátua dourada de Joana
d'Arc, esculpida pelo grande Frémiet.
— Sua vaca — resmungou ele.
E parou apenas pelo tempo suficiente para cuspir na imagem da
salvadora da França, sem se importar com quem pudesse vê-lo.
Paris
20 de junho de 2005
A pirâmide de vidro de I.M. Pei faiscava ao sol da manhã do verão
francês. Maureen e Peter, ambos revigorados depois de uma boa noite de
sono profundo, esperavam na fila, junto com os outros turistas, para
entrar no Louvre. Peter correu os olhos pelas pessoas na fila comprida,
quase todas segurando seu guia de viagem.
— Toda essa confusão por causa da Mona Lisa. Nunca poderei
compreender. O quadro mais superestimado do planeta.
— Concordo. Mas enquanto eles se espremem para ver a Mona
Lisa, teremos a ala Richelieu só para nós.
Maureen e Peter compraram os ingressos. Tornaram a examinar a
planta do Louvre.
— Para onde vamos primeiro?
— Nicholas Poussin — respondeu Maureen. — Quero ver os Os
pastores de Arcádia pessoalmente, antes de fazermos qualquer outra
coisa.
Eles seguiram pela ala dos mestres franceses, procurando nas
paredes a enigmática obra-prima de Poussin. Maureen explicou:
— Tammy me disse que esse quadro tem sido o centro de
controvérsias há centenas de anos. Luís XIV fez tudo o que podia para
obtê-lo, durante vinte anos. E, quando finalmente conseguiu o quadro,
trancou-o num porão de Versailles, onde mais ninguém podia vê-lo. Não é
estranho? Por que você acha que o rei da França se empenharia tanto
para obter uma importante obra de arte, só para depois escondê-la
do mundos?
— É apenas mais um numa série crescente de mistérios. — Peter
verificava os números em seu guia enquanto ouvia. — Segundo as
indicações aqui, o quadro deve estar...
— Aqui! — exclamou Maureen.
Peter aproximou-se por trás. Ficaram olhando para o quadro,
calados, por um longo momento. Maureen virou-se para Peter e rompeu o
silêncio:
— Eu me sinto uma tola. Como se estivesse esperando que o
quadro me dissesse alguma coisa. — Ela tornou a olhar para o quadro. —
Está tentando me dizer alguma coisa, Pastora?
Um súbito pensamento ocorreu a Peter:
— Não posso acreditar que não pensei nisso antes.
— Não pensou em quê?
— A idéia de uma pastora. Jesus é o Bom Pastor. Talvez Poussin...
ou Sinclair... estivesse indicando a Boa Pastora.
— Mas é isso mesmo! — gritou Maureen, um pouco alto demais,
em seu excitamento pela idéia. — Talvez Poussin quisesse nos mostrar
Maria Madalena como a pastora, a líder do rebanho. A líder de sua
própria Igreja!
Peter ficou todo arrepiado.
— Não era exatamente isso que eu queria dizer...
— Nem precisava. Há uma inscrição em latim na tumba no quadro.
— Et in Arcadia Ego — leu Peter, em voz alta. — Hum... Não faz
sentido.
— Como se traduz?
— Não se traduz. É uma confusão gramatical.
— Dê seu melhor palpite.
— Ou é péssimo latim ou uma espécie de código. A tradução literal
é uma frase incompleta. “E em Arcádia eu...” Não significa coisa alguma.
Maureen queria prestar atenção, mas uma voz de mulher começou
a gritar, através do museu, distraindo-a:
— Sandro! Sandro!
Ela olhou ao redor, à procura da origem da voz. Pediu desculpas a
Peter:
— Desculpe, mas essa mulher está me perturbando.
A voz gritou de novo, ainda mais alto, deixando Maureen irritada.
— Quem pode ser?
Peter fitou-a, perplexo.
— Quem pode ser quem?
— Essa mulher gritando...
— Sandro! Sandro!
Maureen tornou a olhar para Peter, enquanto a voz se tornava
mais alta. Era evidente que ele não ouvia. Ela virou-se para observar os
outros turistas e estudantes, absorvidos nas obras de arte nas paredes.
Ninguém mais parecia estar consciente da voz urgente que
ressoava através do Louvre.
— O Deus! Você não pode ouvir, não é? — Ninguém mais pode
ouvir. Sou a única que ouve.
Peter estava confuso.
— Ouvir o quê?
— Há uma voz de mulher gritando através do museu. Sandro!
Sandro! Venha comigo.
Maureen agarrou Peter pela manga e seguiu apressada na direção
da voz.
— Para onde vamos?
— Estamos seguindo a voz. Vem daquela direção.
Os dois foram andando pelos corredores do museu. Maureen
olhava para trás a todo instante, pedindo desculpas às pessoas em que
esbarrava. A voz se transformara num sussurro urgente, mas
levava-a para algum lugar e ela estava determinada a segui-la.
Voltaram correndo pela ala Richelieu, ignorando o olhar furioso de um
irritado guarda do museu. Desceram alguns degraus e entraram em
outro corredor, passando por placas que indicavam a ala Denon.
— Sandro... Sandro... Sandro...
A voz parou subitamente quando Maureen e Peter subiram
por uma imponente escada, passando pela Vitória de Samotrácia, a
estátua da deusa Nike. Ao virarem à direita, no alto da escada,
depararam com duas obras-primas menos conhecidas da Renascença
italiana. Peter fez a primeira observação:
— Afrescos de Botticelli.
A compreensão aflorou nos dois ao mesmo tempo.
— Sandro... Alessandro Botticelli!
Peter olhou para os afrescos e depois fitou Maureen.
— Como fez isso?
Ela estremeceu.
— Não fiz nada. Apenas ouvi e fui atrás da voz.
Os dois concentraram a atenção nas figuras em tamanho quase
natural, expostas lado a lado. Peter traduziu a placa para Maureen:
— Um jovem é apresentado por Vênus às Artes Liberais. Afresco pintado
para o casamento de Lorenzo Tornabuoni e Giovanna Albizzi.
— Por que há um ponto de interrogação depois de Vênus? —
perguntou Maureen.
Peter sacudiu a cabeça.
— Não deviam ter certeza se ela era mesmo o tema.
Era uma representação elegante, embora estranha, de um jovem
segurando a mão de uma mulher, envolta por um manto vermelho.
Estavam diante de sete mulheres, três das quais seguravam objetos
insólitos e de aparência incongruente. Uma agarrava um enorme e um
tanto ameaçador escorpião preto. A mulher ao seu lado tinha na mão um
arco. Outra empunhava uma régua de arquiteto, num ângulo insólito.
Peter pensou em voz alta:
— As sete artes liberais. Os reinos do saber superior. Está nos
dizendo que esse era um jovem muito instruído?
— Quais são as sete artes liberais?
Peter fechou os olhos, para recordar seus estudos clássicos, e
recitou:
— O Trivium, ou os três primeiros caminhos de estudo: a
Gramática, a Retórica e a Lógica. As outras quatro, Quadrivium, são
Aritmética, Geometria, Música e Cosmologia. São inspiradas por
Pitágoras e sua perspectiva de que todos os números representavam
padrões no tempo e espaço.
Maureen sorriu.
— Uma memória impressionante. Mas o que podemos deduzir?
Peter deu de ombros.
— Não sei se alguma coisa disso se ajusta em nosso cada vez
maior quebra-cabeça.
Maureen apontou para o escorpião.
— Por que um quadro feito para um casamento mostra uma
mulher segurando um inseto enorme e venenoso? Qual das artes liberais
poderia representar?
— Não tenho certeza... — Peter aproximou-se do afresco, tão
perto quanto a barreira do Louvre permitia. Inclinou-se para ver
melhor. — Olhe mais de perto. O escorpião é mais escuro e mais vivido
que o resto do quadro. Todos os objetos são assim. Parece até...
Maureen terminou a frase por ele:
— ... que foram acrescentados mais tarde.
— Mas por quem? Pelo próprio Botticelli? Ou alguém adulterou os
afrescos do mestre?
Maureen balançou a cabeça, aturdida com todo o incidente.
Enquanto tomavam um café com creme, na cafeteria do Louvre,
Maureen examinou suas aquisições, junto com Peter. Comprara
reproduções dos quadros relevantes, assim como um livro sobre a vida e a
obra de Botticelli.
— Espero descobrir mais sobre as origens daqueles afrescos.
— Estou mais interessado em descobrir a origem da voz que a
levou aos afrescos.
Maureen tomou um gole do café antes de responder.
— Mas o que era? Meu inconsciente? Orientação divina? Insanidade?
Fantasmas no Louvre?
— Eu gostaria de poder responder, mas não posso.
— Que grande conselheiro espiritual você é... — gracejou Maureen.
Ela concentrou sua atenção na reprodução de Botticelli. Tirou-a do
envelope. Quando a luz refratada da pirâmide de vidro incidiu sobre a
gravura, Maureen teve uma epifania.
— Espere um instante. Você não disse que a cosmologia era uma
das artes liberais?
Maureen olhou para o anel de cobre em seu dedo. Peter acenou
com a cabeça em confirmação.
— Astronomia, cosmologia. O estudo das estrelas. Por quê?
— O homem de Jerusalém que me deu este anel disse que era de
um cosmólogo.
Peter passou as mãos pelo rosto, como se fazer isso pudesse
estimular o cérebro a encontrar uma solução.
— Mas qual é a ligação? Que devemos olhar para as estrelas em busca
de uma resposta?
Maureen pôs o dedo sobre a mulher enigmática segurando o
enorme inseto preto. Depois, quase saltou da cadeira ao gritar:
— Escorpião!
— Como?
— É o símbolo de um signo astrológico, Escorpião. E a mulher ao
seu lado segura um arco. O símbolo de Sagitário. Escorpião e Sagitário
estão ao lado um do outro no zodíaco.
— Então acha que há alguma espécie de código nos afrescos que
se relaciona com astronomia?
Maureen acenou com a cabeça lentamente, em confirmação.
— No mínimo, pode nos dar um ponto para começar.
As luzes brilhavam através da janela do quarto de Maureen no
hotel, iluminando os itens na cama, ao seu lado. Adormecera lendo o
livro de Botticelli. A gravura de Poussin estava virada para cima, no outro
lado.
Maureen mantinha-se alheia a essas duas coisas. Estava outra
vez engolfada num sonho.
Numa sala de paredes de pedra, vagamente iluminada por
lampiões a óleo, uma mulher idosa debruçava-se sobre uma mesa.
Usava um xale vermelho desbotado sobre os longos cabelos grisalhos.
Com uma pena de escrever na mão enrijecida, escrevia com todo
cuidado no pergaminho.
Uma enorme arca de madeira era o único outro ornamento na
sala. A velha parou de escrever, levantou-se e foi lentamente até a arca.
Ajoelhou-se, sentindo dor nas articulações, e levantou a pesada tampa.
Virou a cabeça para trás, por ama do ombro, um sorriso sereno e
sugestivo estampando-se em seu rosto. Olhou para Maureen e fez sinal
para que ela se adiantasse.
Paris
21 de junho de 2005
Num tributo encantador à excentricidade gaulesa, a ponte mais
antiga de Paris é conhecida como Pont Neuf, a ponte nova. É uma das
principais artérias da vida parisiense, atravessando o Sena para ligar o
elegante Premier Arrondissement com o coração da Rive Gauche.
Peter e Maureen passaram pela estátua de Henrique IV, um dos
mais amados reis da França, sobre a ponte que fora concluída durante seu
tolerante reinado, em 1604. Era uma linda manhã em Paris,
transbordando a imponência exuberante que é específica da
incomparável Cidade Luz. Apesar do cenário perfeito, Maureen sentia-se
nervosa.
— Que horas são?
— Cinco minutos depois da última vez que você perguntou —
respondeu Peter, sorrindo.
— Desculpe. Estou começando a ficar nervosa com tudo isso.
— A carta dizia para estar na igreja ao meio-dia. Ainda são onze
horas. Temos bastante tempo.
Sempre se orientando por um mapa de Paris, atravessaram o Sena,
seguiram por ruas sinuosas da Rive Gauche, onde a Pont Neuf se tornava
Rue Dauphine. Passaram pela estação Odeon do metrô, viraram à
direita na Rue Saint-Sulpice e terminaram na pitoresca praça com o
mesmo nome.
Os enormes e diferentes campanários da igreja dominavam a
praça, projetando sombras sobre o famoso chafariz, construído por
Visconti em 1844. Quando os dois se aproximaram das portas imensas,
Peter sentiu que ela hesitava.
— Não a deixarei desta vez.
Peter pôs a mão em seu braço, num gesto tranqüilizador e abriu
as portas da vasta igreja.
Entraram em silêncio. Avistaram um grupo de turistas na primeira
capela, no lado direito. Ao que parecia, eram estudantes de arte
britânicos. O professor fazia uma preleção, em voz baixa, sobre as três
obras-primas de Delacroix que ornamentavam aquela parte da igreja: Jacó
lutando contra o Anjo, Heliodoro expulso do templo e O Arcanjo Miguel
vencendo o demônio. Em outro dia, Maureen se sentiria propensa a
admirar a famosa obra de arte e ouvir a preleção em inglês. Mas naquele
momento tinha outras coisas em mente.
Passaram pelos estudantes britânicos e avançaram pelo centro
da igreja, contemplando impressionados a estrutura maciça e
histórica. Quase que por instinto, Maureen aproximou-se do altar, que
era flanqueado por dois quadros enormes. Cada um devia ter pelo menos
dez metros de altura. O primeiro mostrava duas mulheres... uma com
um manto azul, a outra com um manto vermelho.
— Maria Madalena com a Virgem? — arriscou Maureen.
— Pelas cores dos mantos, eu diria que sim. O Vaticano
determinou que Nossa Senhora só pode ser pintada vestindo branco ou
azul.
— E minha dama está sempre de vermelho.
Maureen foi até o quadro do mesmo tamanho no outro lado do
altar.
— Olhe para isto...
O quadro mostrava Jesus em sua tumba, com Maria Madalena
parecendo preparar o corpo para o sepultamento. A Virgem Maria e
duas outras mulheres choravam na beira do quadro.
— Maria Madalena prepara o corpo de Cristo para o
sepultamento? Isso não está indicado nos evangelhos, não é mesmo?
— Marcos 15 e 16 mencionam que ela e outras mulheres
levaram especiarias para o sepulcro e que podem tê-lo ungido, mas não
descrevem expressamente o ato.
— Hum... — Maureen pensou um pouco. — E aqui está
Maria Madalena fazendo justamente isso. Mas na tradição hebraica a
unção do corpo não era reservada apenas para...
— A esposa — arrematou uma voz masculina aristocrática, com
uma suave insinuação de sotaque escocês.
Maureen e Peter viraram-se abruptamente para o homem que se
aproximara por trás de uma maneira tão furtiva. Era moreno e bonito,
vestia-se com a maior elegância. Embora as roupas e o porte falassem em
classe hereditária, não havia nada de pomposo no homem. Na verdade,
tudo em Berenger Sinclair era um pouco diferente, absolutamente sin-
gular. Os cabelos tinham um corte perfeito, embora fossem um pouco
compridos demais para ser aceitáveis na Câmara dos Lordes. A camisa de
seda era de Versace, em vez de Bond Street. A arrogância natural
decorrente do privilégio era amenizada pelo bom humor... um sorriso
enviesado, quase infantil, que ameaçava prevalecer enquanto ele
falava. Maureen sentiu um fascínio instantâneo. Ficou imóvel, como se
estivesse enraizada, enquanto ouvia o resto da explicação:
— Só a esposa tinha permissão para preparar o homem para o
sepultamento. A menos que ele morresse solteiro e neste caso a honra
era da mãe. Como pode ver neste quadro, a mãe de Jesus está
presente, mas obviamente não cuida desse encargo. O que só pode levar
a uma única conclusão.
Maureen olhou para o quadro, depois tornou a fitar o homem
carismático à sua frente.
— Que Maria Madalena era sua esposa — murmurou ela.
— Bravo, Srta. Paschal. — O escocês fez uma reverência teatral. —
Mas perdoe-me por ter esquecido por completo as boas maneiras.
Lorde Berenger Sinclair, a seu serviço.
Maureen adiantou-se para apertar a mão estendida. Mas Sinclair
surpreendeu-a ao segurar sua mão por um longo momento. Não a soltou
de imediato; em vez disso, virou a mão menor em sua mão maior e passou
um dedo de leve pelo anel. Tornou a sorrir para Maureen, um pouco
insinuante, piscando um olho.
Maureen ficou completamente desconcertada. Especulara muitas
vezes como seria Lorde Sinclair em pessoa. O que quer que estivesse
esperando, não era aquilo. Tentou não parecer muito embaraçada quando
falou:
— Já sabe quem eu sou. — Ela virou-se para apresentar Peter. —
Este é...
Sinclair interrompeu-a:
— Padre Peter Healy, é claro. Seu primo, não é mesmo? E um
sábio homem. Seja bem-vindo a Paris, padre Healy. Sei que já esteve
aqui antes. — Ele olhou para o elegante e absurdamente caro relógio
suíço. — Temos alguns minutos. Venham comigo. Há coisas para ver
aqui que acho que vão considerar muito interessantes.
Sinclair falou olhando para trás, enquanto se afastava apressado
pela igreja.
— Diga-se de passagem, não percam tempo com o guia de viagem
que vendem aqui. São cinqüenta páginas que ignoram por completo a
presença de Maria Madalena. Como se ela pudesse desaparecer pelo
simples fato de ser ignorada.
Maureen e Peter seguiram seus passos acelerados. Pararam ao lado
de outro pequeno altar lateral.
— Como logo descobrirão, ela é apresentada em muitos lugares
desta igreja, mas deliberadamente ignorada. Aqui está um exemplo
maravilhoso.
Sinclair levou-os até uma estátua de mármore grande e elegante,
uma Pietà, a clássica escultura da Virgem Mãe com o corpo alquebrado
de Cristo. À direita da Virgem, Maria Madalena fora incluída na cena,
aninhando a cabeça no ombro da Virgem.
— O guia refere-se a esta obra apenas como “Pietà, século XVIII,
italiana”. Uma Pietà tradicional mostra a Virgem aninhando o filho depois
da crucificação. A inclusão de Maria Madalena nesta obra é bastante
heterodoxa, mas... foi deliberadamente ignorada.
Sinclair deixou escapar um suspiro dramático e sacudiu a cabeça
ante a injustiça de tudo aquilo.
— Qual é a sua teoria? — perguntou Peter, um pouco mais incisivo
do que tencionava, pois havia alguma coisa em Sinclair que começava a
irritá-lo. — Que há uma conspiração da Igreja para excluir as referências a
Maria Madalena?
— Tire suas próprias conclusões, padre. Mas uma coisa posso
lhe dizer... há mais igrejas dedicadas a Maria Madalena na França do
que a qualquer outro santo, inclusive a Santa Mãe. Há toda uma
região de Paris que tem o seu nome... posso presumir que já esteve na
Madeleine?
Maureen ficou surpresa com a descoberta.
— Nunca havia me ocorrido até agora, mas Madeleine é Madalena
em francês, não é mesmo?
— Isso mesmo. Já esteve na igreja consagrada a ela na Madeleine?
É uma estrutura enorme, ostensivamente dedicada a Maria Madalena.
Mas, originalmente, em todas as obras de arte e ornamentos no interior,
não havia imagens de Maria Madalena. Absolutamente nenhuma.
Estranho, não é mesmo? Acrescentaram a escultura de Marochetti por
cima do altar. Pelo que sei, havia antes uma imagem da Assunção da
Virgem. Foi trocada por Maria Madalena por causa da pressão aplicada...
por aqueles que se importavam com a verdade.
— Suponho que você vai me dizer agora que Marcel Proust
também deu o nome a seus biscoitos em homenagem a ela — gracejou
Peter.
Em contraste com o fascínio imediato de Maureen, ele sentia-se
irritado pela segurança descontraída de Sinclair.
— São moldados como conchas por alguma razão.
Sinclair deu de ombros, deixando Peter refletir, enquanto se
juntava a Maureen, junto da Pietà.
— É quase como se tentassem apagá-la — comentou Maureen.
— É isso mesmo, minha cara Srta. Paschal. Muitas pessoas
tentaram nos fazer esquecer o legado de Madalena, mas sua presença
é muito forte. E, como você sem dúvida já deve ter notado, ela não será
ignorada, em particular...
Os sinos da igreja começaram a repicar, para anunciar o meio-dia,
interrompendo a resposta de Sinclair. Em vez de continuar, ele tornou a
levá-los através da igreja, apressado. Apontou para uma estreita linha
meridiana de bronze, embutida no chão, estendendo-se pelo transepto
norte-sul. A linha terminava num obelisco de mármore, ao estilo egípcio,
com um globo dourado e uma cruz no alto.
— Venham depressa. É meio-dia agora e vocês precisam ver isso.
Só acontece uma vez por ano.
Maureen apontou para a linha de bronze.
— O que isto significa?
— É o Meridiano de Paris. Divide a França de uma maneira
muito interessante. Mas olhe ali em cima.
Sinclair apontou para uma janela por cima deles, no outro lado da
igreja. Quando eles se viraram para olhar, um raio de sol passou pela
janela e iluminou a linha de bronze embutida na pedra. Observaram a
luz dançar através do chão da igreja, seguindo o bronze. A luz subiu pelo
obelisco até alcançar o globo, iluminando a cruz dourada com uma
chuva de luz.
— Lindo, não é mesmo? Esta igreja está alinhada para marcar o
solstício com perfeição.
— É mesmo lindo — admitiu Peter. — E detesto romper sua
bolha de admiração, Lorde Sinclair, mas há uma legítima razão religiosa
para isso. A Páscoa é o domingo seguinte à lua cheia depois do equinócio
da primavera. Não era incomum que as igrejas procurassem meios de
identificar os equinócios e solstícios.
Sinclair deu de ombros. Virou-se para Maureen.
— Ele tem toda a razão.
— Mas há mais nesse Meridiano de Paris, não é mesmo?
— Alguns se referem a ele como A Linha de Madalena. Se quer
descobrir por quê, encontre-se comigo em minha casa no Languedoc
dentro de dois dias. Mostrarei a razão para isso e muito mais. Ah, já ia
me esquecendo...
Sinclair tirou um dos seus envelopes de papel apergaminhado de
um bolso interno do paletó.
— Sei que conhece aquela adorável cineasta Tamara Wisdom. Ela
estará em nosso baile à fantasia, no final da semana. Espero que vocês
dois se juntem a ela. E insisto que também sejam meus hóspedes no
Château.
Maureen olhou para Peter, a fim de avaliar sua reação. Não
esperavam pelo convite.
— Lorde Sinclair, Maureen veio de muito longe para este encontro
— disse Peter. — Em sua carta, prometeu algumas respostas...
Sinclair interrompeu-o:
— Padre Healy, as pessoas vêm tentando compreender esse
mistério há dois mil anos. Não pode esperar saber de tudo em um único
dia. O verdadeiro conhecimento deve ser conquistado, não é mesmo?
Agora, estou atrasado para uma reunião e tenho de me apressar.
Maureen pôs a mão no braço de Sinclair para detê-lo.
— Mencionou meu pai em sua carta, Lorde Sinclair. Esperava que
pelo menos me dissesse o que sabe a seu respeito.
Sinclair fitou-a e abrandou.
— Tenho uma carta escrita por seu pai que achará muito
interessante. Não está aqui, é claro, mas no Château. É um dos motivos
pelos quais deve ser minha hóspede. Junto com o padre Healy, é claro.
Maureen estava aturdida.
— Uma carta? Tem certeza de que foi escrita por meu pai?
— O nome de seu pai não era Edouard Paul Paschal, escrito com a
grafia francesa? E ele não residia na Louisiana?
— Isso mesmo — respondeu Maureen, numa voz que era pouco
mais que um sussurro.
— Então a carta é dele, com toda a certeza. Encontrei-a nos
arquivos de nossa família.
— Mas o que diz...
— Seria uma terrível injustiça de minha parte se tentasse lhe
dizer que minha memória é abominável, Srta. Paschal. Terei o maior
prazer em lhe mostrar a carta assim que chegar ao Languedoc. Preciso ir
agora, pois estou bastante atrasado. Se precisarem de alguma coisa
antes de partir, liguem para o número no convite e peçam para falar com
Roland. Ele os ajudará em qualquer coisa que for necessária.
Absolutamente qualquer coisa. Basta dizer.
Sinclair afastou-se às pressas, sem se despedir. Depois de alguns
passos, olhou para trás e acrescentou:
— Creio que já têm um mapa. Basta seguir a Linha de Madalena.
Os passos do escocês ressoaram pela vasta igreja, enquanto
atravessava o prédio, deixando Maureen e Peter olhando um para o
outro, perplexos.
Maureen e Peter avaliaram o estranho encontro com Sinclair
durante o almoço, num café na Rive Gauche. Tinham opiniões
diferentes a respeito dele. Peter estava desconfiado, à beira da irritação.
Já Maureen sentia-se fascinada.
Decidiram facilitar a digestão com um passeio pelo jardim de
Luxemburgo, um dos mais famosos parques da Europa.
Uma família com um bando de crianças barulhentas fazia um
piquenique na grama. Duas crianças pequenas corriam atrás de uma
bola de futebol — e uma da outra —, enquanto as crianças mais velhas e
os pais gritavam para estimulá-las. Peter parou para observar as
crianças, com uma expressão ansiosa.
— Qual é o problema? — perguntou Maureen.
— Não há nenhum. Eu apenas pensava na família. Minhas irmãs,
seus filhos. Sabia que não visito a Irlanda há dois anos? E nem vou falar
do tempo que você não vai lá.
— Fica a pouco mais de uma hora de avião daqui.
— Sei disso. E tenho pensado muito a respeito. Vamos ver o que
acontece por aqui. Se tiver tempo, posso passar alguns dias na Irlanda.
— Já sou crescidinha, Pete, e perfeitamente capaz de cuidar de
tudo sozinha. Por que não aproveita a oportunidade agora e visita a
família?
— E deixá-la sozinha nas mãos de Sinclair? Perdeu o juízo?
A bola de futebol, agora disputada pelas crianças mais velhas,
correu na direção de Peter. Ele controlou-a, passando de um pé para
outro, e a chutou de volta. Com um pequeno aceno para as crianças que o
aplaudiram, Peter continuou o passeio com Maureen.
— Alguma vez se arrependeu de sua decisão?
— Qual decisão? De vir para Paris com você?
— Não. De se tornar padre.
Peter parou abruptamente, chocado com a pergunta.
— O que a levou a fazer essa pergunta?
— Apenas por observá-lo agora. Você adora crianças. Daria um
pai maravilhoso.
Peter recomeçou a andar, enquanto explicava:
— Não estou arrependido. Tinha uma vocação e segui-a. Ainda
tenho essa vocação e acho que sempre a terei. Sei que sempre foi difícil
para você compreender.
— Ainda é.
— E sabe o que é mais irônico?
— O quê ?
— Você é um dos motivos pelos quais me tornei padre.
Foi a vez de Maureen parar abruptamente:
— Eu? Como? Por quê?
— Leis ultrapassadas da Igreja fizeram você se virar contra sua fé.
Acontece o tempo todo, mas não deveria ser assim. E agora há ordens...
ordens mais jovens, mais estudiosas, mais progressistas... que
tentam levar a espiritualidade para o século XXI e torná-la acessível
para a juventude. Descobri isso com os jesuítas que conheci em Israel
na minha primeira visita ao país. Tentavam mudar justamente as
coisas que afastaram você. Eu queria ser parte disso. Queria
ajudá-la a encontrar sua fé outra vez. Você e outras pessoas na
mesma situação.
Maureen fitava-o fixamente, fazendo um esforço para
conter as lágrimas inesperadas que afloravam a seus olhos.
— Não posso acreditar que nunca tenha me contado isso
antes.
Peter deu de ombros.
— Você nunca perguntou.
... O sofrimento final de Easa significou puro tormento para todos nós,
mas causou um profundo impacto em Filipe. Com freqüência ele chorava no
sono e não me revelava o motivo, não permitia que eu o ajudasse.
Finalmente, descobri a verdade por intermédio de Bartolomeu, que comentou
que Filipe não queria me angustiar com lembranças tão terríveis. Todas as
noites, no entanto, Filipe era atormentado pelo pensamento da agonia de
Easa, pela maneira como seus ferimentos foram descritos.
Os homens me concederam a honra, já que fui a única entre todos que
testemunhou a paixão de Easa.
Durante nosso tempo no Egito, Bartolomeu tornou-se meu discípulo
mais dedicado. Queria saber tanto quanto possível e o mais depressa
possível. Era ansioso e ávido por conhecimento, como um homem faminto por
pão. Era como se o sacrifício de Easa tivesse aberto um buraco em
Bartolomeu que só podia ser preenchido pelos ensinamentos sobre O
Caminho. Compreendi, então, que ele tinha uma vocação especial, que
levaria as palavras de Amor e Luz para o mundo e, por meio de suas
pregações, muitas pessoas sofreriam mudanças. Por isso, todas as noites,
quando as crianças e os outros dormiam, eu ensinava os segredos a
Bartolomeu. Ele estaria preparado quando chegasse o momento.
Mas eu não podia saber se também estaria. Passara a amá-lo tanto
quanto a meu próprio sangue. Temia por ele... por sua beleza e pureza, que
os outros não compreenderiam tanto quanto era compreendido por aqueles
que mais o amavam. Bartolomeu era um homem sem astúcia.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPITULO SETE
A região do Languedoc, na França
22 de junho de 2005
A paisagem da região rural da França voava pelas janelas do trem
em alta velocidade. Maureen e Peter não se importavam com a paisagem;
sua atenção concentrava-se totalmente nos vários mapas, livros e
documentos estendidos à sua frente.
— Et in Arcadia Ego... — murmurou Peter, escrevendo num bloco. —
Et... In... Arca-di-a... E-go...
Ele estava absorvido no mapa da França, o que tinha a linha
vermelha descendo pelo centro. Apontou para a linha.
— Veja como o Meridiano de Paris desce para o Languedoc, até
esta cidade, Arques. Um nome muito interessante.
Peter pronunciou o nome da cidade parecido com “Ark”, que
significa “Arca”.
— Como em Arca de Noé e Arca da Aliança?
Maureen estava muito interessada em descobrir para onde aquilo
os levaria.
— Exatamente. Arca é uma palavra versátil em latim... em geral,
significa um recipiente, mas também pode significar tumba. Espere um
instante. Deixe-me verificar isto.
Peter tornou a pegar o bloco e a caneta. Escreveu as letras de Et In
Arcadia Ego. Escreveu ARK no alto da página, em letras maiúsculas. Por
baixo, escreveu ARC, também em maiúsculas. Maureen teve uma idéia.
— Vamos pensar em ARC de outra maneira. ARC... ADIA. Talvez não
seja uma referência ao lugar mítico de Arcádia... não poderiam ser
palavras separadas reunidas? Faz algum sentido em latim?
Peter escreveu, em letras maiúsculas: ARC A DIA.
— E então? — Maureen estava ansiosa por saber. — Isso significa
alguma coisa?
— Vendo dessa maneira, pode significar “Arca de Deus”. Com um
pouco de imaginação, a tradução da frase poderia ser: “e na Arca de Deus
eu estou”.
Peter apontou para a cidade de Arques no mapa.
— Suponho que você não saiba nada sobre a história de Arques? Se
a cidade tivesse uma lenda sagrada, a frase poderia significar: “e na aldeia
de Deus eu estou”.
— A propriedade de Sinclair fica junto de Arques.
— Eu sei. Mas isso não explicaria por que Nicholas Poussin pintou
o quadro há quatrocentos anos, não é mesmo? Ou por que você ouviu
vozes no Louvre quando olhava para o quadro. Acho que temos de
examinar as coisas que vêm acontecendo com você como separadas
de Sinclair, pelo menos por enquanto.
Peter estava empenhado em diminuir a importância de Sinclair na
experiência de Maureen. Ela tinha as visões de Madalena havia vários
anos, muito antes de ter ouvido falar de Berenger Sinclair. Maureen
acenou com a cabeça em concordância.
— Digamos que Arques fosse conhecida como um lugar sagrado
por alguma razão. “A Aldeia de Deus”... Poussin estava nos dizendo que
há alguma coisa importante ali, não é mesmo? É essa a teoria? “E na
aldeia de Deus eu estou”?
Peter balançou a cabeça, pensativo.
— Apenas um palpite. Mas não acha que a área em torno de
Arques merece uma visita?
Era o dia de feira na aldeia de Quillan. A comunidade no sopé
dos Pireneus franceses estava alvoroçada com o evento semanal. Os
habitantes do interior do Languedoc seguiam apressados de uma
barraca para outra, abastecendo-se de vegetais frescos e peixes
trazidos do Mediterrâneo.
Maureen e Peter circularam pela feira. Maureen tinha na mão a
gravura de Os pastores de Arcádia. Um vendedor soltou uma risada,
apontando para a gravura:
— Ah, Poussin!
Ele começou a dar uma orientação, num francês muito rápido.
Peter pediu-lhe que falasse mais devagar. O filho de dez anos do
mercador percebeu a confusão de Maureen, enquanto o pai falava
com Peter em francês e decidiu tentar seu inglês precário, mas
intrépido:
— Quer visitar a tumba de Poussin?
Maureen acenou com a cabeça, excitada. Nem mesmo sabia
que a tumba do quadro ainda existia.
— Oui!
— Pegue a estrada principal e desça. Quando encontrar a
igreja, à esquerda. A tumba de Poussin fica no outeiro.
Maureen agradeceu ao menino. Abriu a bolsa e tirou uma
nota de cinco euros.
— Merci... merci beaucoup.
Ela estendeu a nota para o menino, que deu um largo sorriso.
— De rien, Madame. Bonne chance.
Foi o mercador quem disse isso, enquanto Maureen e Peter
deixavam o mercado. Mas foi seu filho que falou por último:
— Et in Arcadia Ego!
O menino soltou uma risada, antes de deixar a barraca para
gastar o dinheiro em balas e chocolates.
Os dois conseguiram destrinchar as instruções de pai e filho,
o que os levou pela estrada certa. Peter guiava devagar, enquanto
Maureen examinava a paisagem pela janela do carona.
— Ali! Não é aquilo? No alto daquele outeiro?
Peter parou ao lado de uma encosta suave, com árvores e
moitas. Por trás dos arbustos, podiam ver os contornos superiores
de uma tumba de pedra retangular.
— Vi esse mesmo tipo de tumba na Terra Santa — comentou
Peter. — Há várias na região da Galiléia.
Ele fez uma pausa, como se um pensamento lhe ocorresse de
repente.
— O que foi? — indagou Maureen.
— Acaba de me ocorrer que há uma tumba assim na
estrada para Magdala. Parece muito com esta. Pode até ser idêntica.
Foram andando pela beira da estrada, à procura da trilha que
subia para a tumba. Descobriram que fora invadida pelo mato.
Maureen parou e ajoelhou-se no início da trilha.
— Olhe só para este mato crescido. Não é natural.
Peter ajoelhou-se ao seu lado. Examinou a vegetação na entrada da
trilha.
— Tem razão.
— Parece que alguém tentou deliberadamente esconder a trilha
— comentou Maureen.
— Pode ser coisa do dono do terreno. Talvez ele tenha se cansado
de pessoas como nós invadindo sua propriedade. Quatrocentos anos de
turistas podem levar qualquer um à loucura.
Os dois subiram com todo o cuidado, passando por cima do mato e
seguindo a trilha até o alto do outeiro. Quando a tumba retangular
de granito estava bem na frente, Maureen ergueu a gravura do quadro de
Poussin e comparou com a paisagem. O afloramento rochoso por trás
da tumba aparecia no quadro pintado há quatrocentos anos.
— É idêntica.
Peter aproximou-se da estrutura e passou a mão.
— Só que esta tumba é lisa. Não há inscrição.
— Então a inscrição foi invenção de Poussin?
Maureen deixou a pergunta pairar no ar, enquanto contornava a
tumba. Como a parte posterior da tumba estivesse coberta pelo mato,
Maureen tentou remover as obstruções. Uma visão clara da parte
posterior fez com que ela chamasse Peter:
— Venha até aqui! Você tem de ver isto!
Peter foi para o seu lado e ajudou-a a afastar o mato. Sacudiu a
cabeça em incredulidade quando viu a causa do excitamento de
Maureen.
Gravada na parte de trás da tumba, havia um padrão de nove
círculos, em torno de um disco central.
Era idêntico ao desenho no anel antigo de Maureen.
Maureen e Peter passaram a noite num pequeno hotel em Couiza, a
poucos quilômetros de Arques. Tammy escolhera o hotel para eles, por
causa de sua proximidade com um lugar enigmático chamado
Rennes-le-Château, conhecido nos círculos esotéricos como “A Aldeia do
Mistério”. Ela voaria para o Languedoc ao final da noite. Haviam
combinado que se encontrariam no dia seguinte, para o café da manhã.
Tammy entrou esfuziante no pequeno restaurante do hotel, onde
Maureen e Peter tomavam café enquanto a esperavam.
— Desculpem a demora. Meu vôo para Carcassonne atrasou e já
passava de meia-noite quando cheguei aqui. Levei uma eternidade para
dormir e não consegui acordar cedo.
— Fiquei preocupada quando não recebi notícias suas ontem à
noite — disse Maureen. — Veio guiando desde Carcassonne?
— Não. Tenho outros amigos que irão à festa de Sinclair amanhã
à noite e viajei com eles. Um deles mora aqui e foi nos buscar.
Uma cesta com croissants foi posta na mesa. O garçom anotou o
pedido de Tammy. Ela esperou que o garçom fosse para a cozinha antes
de acrescentar:
— Agora, precisamos fazer o check-out esta manhã.
Maureen e Peter ficaram perplexos.
— Por quê? — perguntaram os dois, ao mesmo tempo.
— Sinclair está furioso porque viemos para um hotel. Deixou um
recado para mim ontem à noite. Ele tem quartos reservados no Château
para todos nós.
Peter parecia cauteloso.
— Não gosto dessa idéia. — Ele virou-se para argumentar
com Maureen. — Prefiro permanecer aqui. Acho que é mais seguro para
você. O hotel é território neutro, um lugar para onde podemos nos
retirar se acontecer alguma coisa que a deixe constrangida.
Tammy ficou irritada.
— Sabem quantas pessoas seriam capazes de matar por um
convite assim? O Château é fantástico, é como um museu habitado. Você
correrá o risco de ofender Sinclair se não aceitar, Maureen, e pode não
querer isso. Ele tem muito a lhe oferecer.
Maureen estava indecisa. Olhou de um para o outro. Peter tinha
razão ao dizer que o hotel era um território neutro. Mas sua imaginação
foi atiçada pela perspectiva de se hospedar no Château... e observar de
perto o enigmático Berenger Sinclair. Tammy percebeu o dilema em que ela
se encontrava.
— Já expliquei que Sinclair não é perigoso. Ao contrário, acho que
é um homem maravilhoso. — Ela olhou para Peter. — Mas se você sente
diferente, lembre-se do ditado antigo: “É preciso manter os amigos por
perto, mas os inimigos ainda mais perto.”
Ao final do café da manhã, Tammy já os convencera a deixar o hotel.
Peter observou-a com toda a atenção enquanto comiam, registrando
para si mesmo que ela era uma mulher bastante persuasiva.
Rennes-le-Château, França
23 de junho de 2005
— Vocês nunca encontrariam este lugar pela primeira vez se
alguém não mostrasse o caminho. — Tammy vinha dando as instruções
do banco de trás. — Vire à direita ali. Está vendo aquela pequena
estrada? Sobe a encosta para Rennes-le-Château.
A estrada estreita era mal pavimentada, subindo em ziguezague,
numa sucessão de curvas fechadas. No alto da encosta, uma placa quase
oculta pelo mato alto anunciava o nome do pequeno povoado,
— Pode estacionar ali.
Tammy indicou uma clareira na entrada da pequena aldeia. Ao
sair do carro, Maureen olhou para seu relógio. Deixou escapar uma
exclamação de surpresa, antes de comentar:
— E muito estranho. Meu relógio parou, embora eu tenha trocado
a bateria pouco antes de deixar os Estados Unidos.
Tammy riu.
— A diversão já começou. O tempo assume um novo significado
aqui, no alto da montanha mágica. Garanto que seu relógio voltará ao
normal assim que deixarmos esta área.
Peter e Maureen trocaram um olhar, enquanto seguiam Tammy.
Ela não se deu ao trabalho de explicar. Apenas continuou a andar,
olhando para trás uma vez, a fim de fazer um gracejo:
— Senhoras e senhores, estão entrando agora na chamada Zona
do Crepúsculo... Além da Imaginação.
A aldeia proporcionava uma visão estranha, de uma terra que o
tempo esquecera. Era surpreendentemente pequena e parecia deserta.
— Alguém vive aqui? — perguntou Peter.
— Claro. É uma aldeia em pleno funcionamento. Tem menos de
duzentos habitantes, mas ainda assim é habitada.
— É estranhamente quieta — comentou Maureen.
— É sempre assim, até que ônibus de excursão descarreguem seus
passageiros — explicou Tammy.
À direita, na entrada da aldeia, havia o que restava de um castelo,
uma construção quase em ruínas, que dava o nome à localidade.
— É o Château Hautpol. Era um baluarte dos Cavaleiros
Templários durante as cruzadas. Estão vendo aquela torre? — Ela
apontou para uma pequena torre decrépita. — Não se deixem enganar
por sua localização remota e pelo estado em que se encontra. É
conhecida como “a Torre da Alquimia”, um dos mais importantes
marcos esotéricos da França. Talvez do mundo.
— Será que você vai nos explicar por quê?
Peter descobria que sua irritação era cada vez maior. Estava
cansado de jogos envoltos por mistérios. Queria apenas que alguém lhe
desse algumas respostas que fizessem sentido.
— Claro que explicarei, mas não agora. Porque não vai significar
nada até vocês conhecerem a história da aldeia. Deixarei isso por
último. Prometo que contarei na hora de ir embora.
Passaram por uma pequena livraria, à esquerda. Estava fechada,
mas livros sobre ocultismo destacavam—se na vitrine.
— Não é a sua aldeia rural católica típica, não é mesmo? —
murmurou
Maureen para Peter, enquanto Tammy seguia na frente.
— Aparentemente, não é mesmo — concordou Peter, olhando para
o estranho inventário de livros e o pentagrama desenhado na vitrine.
Outra estranheza, na parede do outro lado da rua estreita, atraiu
a atenção de Maureen, enquanto seguiam Tammy pelas ruas de
calçamento de pedra da estranha aldeia. Gravado no lado de uma casa, ao
nível dos olhos, podia ver o que parecia ser um relógio de sol. A peça
central de metal havia muito caíra, deixando um buraco. Uma
observação mais atenta mostrava que não havia nada de corriqueiro
nas marcas. Começavam pelo número nove e continuavam até o
número dezessete, com a meia hora indicada nos intervalos. Mas, sobre
os números, havia uma série de símbolos arcanos. Peter olhou por cima
do ombro de Maureen, enquanto ela apontava os estranhos glifos.
— O que você acha que significam? — perguntou ela.
Tammy voltou, sorrindo como o gato que comeu sardinha.
— Vejo que encontraram a primeira das importantes
singularidades de RLC.
— RLC?
— Rennes-le-Château. É assim que todos chamam, porque o
nome completo é muito comprido.
Maureen tornou a se virar para o que fora gravado na parede. Peter
fazia um exame atento.
— Reconheço estes símbolos. São os planetas. Aqui estão a Lua e
Mercúrio. Isto é o Sol?
Ele apontava para um círculo com um ponto no centro.
— Claro que é — respondeu Tammy. — E este é Saturno. Os outros
símbolos são de astrologia. Aqui estão Libra, Virgem, Câncer e Gêmeos.
Maureen teve uma idéia.
— Escorpião está em algum lugar? Ou Sagitário?
Tammy sacudiu a cabeça em negativa, mas apontou para o lado
esquerdo do relógio de sol, que seria a posição de sete horas num relógio
comum.
— Não. Estão vendo aqui, onde as marcas param? É o planeta Sa
turno. Se as marcas continuassem, no sentido anti-horário, teríamos
Escorpião, depois Libra e Sagitário.
— Por que pára num ponto tão estranho? — perguntou Maureen.
— E o que isso significa? — acrescentou Peter, muito mais
interessado numa resposta.
Tammy ergueu as mãos, num gesto de quem não podia ajudar.
— Achamos que é uma referência a um alinhamento planetário.
Além disso, não sabemos mais nada.
Maureen continuou a olhar. Lembrou o afresco de Botticelli no
Louvre. Tentava determinar se havia alguma ligação com o escorpião no
quadro. Queria compreender o possível uso daquele estranho relógio de
sol, se é que era isso mesmo.
— É mais ou menos como “quando a Lua está na sétima casa e
Júpiter alinha com Marte”?
— Se vocês duas começarem a cantar “Age of Aquarius”, eu vou
embora — anunciou Peter.
Todos riram. Tammy explicou:
— Mas ela está certa. Provavelmente é uma referência a um alinha
mento planetário específico. E como está aqui, na frente de uma casa,
proeminente, temos de presumir que fosse importante que todas as
pessoas na aldeia soubessem disso.
Tammy reiniciou a excursão.
— O ponto focal da aldeia é o museu e toda a área do prédio. Fica
bem à nossa frente.
Ao final da rua estreita, havia uma exótica casa de pedra. Uma
torre de formato estranho projetava-se para o céu a alguma distância,
aderindo à encosta da montanha.
— O mistério desta aldeia decorre de uma história muito
estranha sobre um sacerdote famoso... ou melhor, infame... que viveu
aqui, no final do século XIX, o abbé Berenger Saunière.
— Berenger? Não é o primeiro nome de Sinclair? — perguntou Peter.
Tammy balançou a cabeça em confirmação.
— Isso mesmo. E não é por coincidência. O avô de Sinclair
esperava, ao dar o mesmo nome ao neto, que ele herdasse algumas
qualidades do homônimo... Saunière era destemido na proteção das
histórias e mistérios locais, com uma devoção absoluta ao legado de
Maria Madalena.
Ela fez uma pausa, antes de continuar.
— Seja como for, há várias lendas sobre o que o abbé encontrou
aqui quando se empenhou em restaurar a igreja. Alguns acham que ele
descobriu o tesouro perdido do templo de Jerusalém. Como o Château
adjacente estava associado aos Cavaleiros Templários, é possível que
usassem este remoto posto avançado para esconder os despojos da Terra
Santa. Quem procuraria por qualquer coisa valiosa aqui em cima? E
alguns dizem que Saunière encontrou documentos de valor inestimável.
O que quer que tenha sido, ele tornou-se muito rico, de maneira súbita e
misteriosa. Gastou milhões enquanto viveu, embora ganhasse o
equivalente a vinte e cinco dólares de salário como padre local. Então, de
onde vinha todo o dinheiro que ele gastava?
Tammy olhou para a torre.
— Na década de 1980, três pesquisadores britânicos escreveram
um livro sobre Saunière e sua riqueza misteriosa, que se tornou um best-
seller. Saiu nos Estados Unidos com o título de Holy Blood, Holy Grail (O
Santo Graal e a linhagem sagrada), e é considerado um clássico nos círculos
esotéricos. A má notícia é que o livro criou uma obsessão de caça ao
tesouro nesta região. Os recursos naturais foram saqueados, os pontos
de referência locais foram vandalizados por fanáticos religiosos e
caçadores de suvenires. Sinclair precisou até pôr guardas armados em
sua propriedade para proteger a tumba.
— A tumba de Poussin? — indagou Maureen.
— Claro. É a parte central de todo o mistério por causa dos Pastores
de Arcádia.
— Visitamos a tumba ontem — disse Peter. — Não vi nenhum
guarda.
Tammy soltou uma risada, sonora e gutural.
— Porque são bem-vindos na propriedade de Sinclair. Podem ter
certeza de que ele sabe que estiveram ali. E se não quisesse que
vissem a tumba, vocês saberiam.
Chegaram ao prédio grande, que dominava a aldeia. Uma placa
anunciava: “Villa Bethania — Residência de Berenger Saunière”.
Quando passaram pelas portas do museu, Tammy sorriu e inclinou
a cabeça para a mulher sentada a uma mesa, junto da entrada, que
acenou com a mão para que eles passassem.
— Não precisamos comprar ingressos? — indagou Maureen, ao ver
a placa com os preços.
— Não — respondeu Tammy. — Eles me conhecem aqui. Estou
usando o lugar como um cenário para um documentário sobre a
história da alquimia.
Passaram por mostruários de vidro com vestimentas sacerdotais
usadas pelo abbé Saunière, no século XIX. Peter parou para examiná-las,
enquanto Tammy continuava até o final do corredor. Ela parou junto de
uma antiga coluna de pedra, onde havia uma cruz gravada.
— É chamada de Coluna dos Cavaleiros. Acredita-se que a cruz
foi gravada pelos visigodos, no século VIII. Era parte do altar da velha
igreja. Quando o abbé Saunière tirou a coluna, durante as obras de
restauração, encontrou alguns misteriosos pergaminhos codificados...
ou pelo menos é o que dizem.
Os pergaminhos expostos tinham cópias ampliadas, por decisão
dos curadores do museu, para tornar o código mais óbvio. As letras
dispersas sobressaíam em preto. Mas um exame mais atento indicava
que não havia nada de aleatório em sua disposição. Maureen apontou
para a frase “ET IN ARCADIA EGO”, em letras maiúsculas escurecidas.
— Aqui está outra vez — comentou Maureen para Tammy. Ela
olhou para Tammy. — O que isso significa? E alguma espécie de código?
— Já ouvi pelo menos cinqüenta teorias diferentes sobre o
significado dessa frase. E quase que foi a causa exclusiva da criação de
uma indústria de construção de chalés.
— Peter formulou uma teoria interessante no trem que nos trouxe
até aqui. Achou que a referência era à aldeia de Arques. “Em Arques, a
aldeia de Deus, eu estou.”
Tammy ficou impressionada.
— Bom palpite, padre. A convicção mais comum é a
explicação do anagrama em latim. Se você muda as posições das
letras, passa a ler I Tego Arcana Dei.
Peter traduziu:
— Eu escondo os segredos de Deus.
— Isso mesmo. Não ajuda muito, não é? — Tammy riu. —
Vamos sair. Quero que vejam a casa por fora.
Peter ainda estava pensando na tumba de Poussin.
— Espere um instante. Isso não poderia insinuar que havia
alguma coisa escondida dentro da tumba? Se juntar tudo, a frase
seria mais ou menos o seguinte: “Em Arques, a aldeia de Deus, eu
escondo os segredos.”
Maureen e Peter esperaram pela resposta de Tammy. Ela fez
uma pausa, pensando por um momento.
— É uma teoria tão boa quanto qualquer outra que já ouvi.
Infelizmente, a tumba foi aberta e revistada muitas vezes. O avô
de Sinclair escavou cada palmo da propriedade por um
quilômetro quadrado ao redor da tumba. Berenger utilizou todo
tipo de tecnologia imaginável à procura do tesouro enterrado...
ultra-som, radar e outras coisas.
— E nunca descobriram qualquer coisa? — perguntou Maureen.
— Absolutamente nada.
— Talvez alguém tenha chegado primeiro — sugeriu Peter. — O
que me diz desse sacerdote chamado Saunière? Não poderia ser isso
que o deixou tão rico? Um tesouro que ele descobriu?
— É o que muitas pessoas acham. Mas quer saber de uma
coisa engraçada? Depois de décadas de pesquisas, empreendidas
por homens e mulheres muito determinados, ninguém sabe até hoje
qual era o segredo de Saunière.
Tammy levava-os por um pátio adorável, dominado por um
chafariz de pedra e mármore.
— Impressionante para um simples padre paroquial do século
XIX — comentou Peter.
— Não é mesmo? E há outro fato muito estranho. Embora o
abbé Saunière tenha gasto uma fortuna para construir esta casa,
nunca residiu aqui. Mais do que isso, recusava-se a fazê-lo. E
acabou deixando a casa para sua... governanta.
— Fez uma pausa antes de dizer governanta — ressaltou Peter.
— Muitas pessoas acham que ela era mais do que a
governanta de Saunière. Era sua parceira na vida.
— Mas ele não era um sacerdote católico?
— Não julgue, padre. Este sempre foi meu lema.
Maureen afastara-se um pouco, a atenção atraída por uma
escultura desgastada pelo tempo.
— De quem é a estátua?
— Joana d'Arc — respondeu Tammy.
Peter adiantou-se para examinar a estátua.
— É isso mesmo. Ela está com sua espada e estandarte. Mas
parece deslocada aqui.
— Por quê? — perguntou Maureen.
— Ela parece... muito tradicional. Um símbolo clássico do
catolicismo francês. Mas parece não haver mais nada por aqui que seja
remotamente convencional.
— Joana... convencional? — Tammy deu outra risada. — Não por
estas bandas. Mas deixaremos a lição de história para mais tarde.
Querem ver uma coisa realmente heterodoxa? Vamos até a igreja.
Mesmo ao calor e sol do verão, Rennes-le-Château era um lugar de
estranheza e sombras. Maureen tinha a desconcertante sensação de ser
seguida, de uma silhueta esgueirando-se em sua esteira a cada volta no
jardim. Descobriu-se a virar rapidamente, em várias ocasiões, apenas para
descobrir que não havia ninguém ali. A aldeia deixava-a nervosa... um
lugar estranho em que seu relógio não funcionava, em que tinha a
sensação de que alguém a seguia. Por mais fascinante que fosse, ficaria
feliz ao sair dali, o mais cedo possível.
Tammy levou-os para fora do jardim. Contornaram a casa. Através
de outro pátio, ela divisou a entrada de uma velha igreja de pedra.
— Esta é a igreja paroquial de RLC. Havia uma igreja consagrada
a Maria Madalena neste local cuja origem remontava a mil anos. Saunière
começou a reformá-la por volta de 1891, mais ou menos a ocasião em
que teria encontrado os documentos misteriosos. Levou-os para Paris e
logo depois se tornou um milionário. Usou o dinheiro para fazer alguns
acréscimos insólitos à igreja.
Ao alcançarem a entrada da igreja, Peter parou para ler em voz alta
a inscrição no lintel:
— Terribilis est locus iste.
— Terribilis? — indagou Maureen.
— Este lugar é terrível — traduziu Peter.
— Reconhece, padre? — perguntou Tammy.
— Claro. — Se Tammy queria testar seus conhecimentos bíblicos,
pensou Peter, teria de se esforçar muito mais. — Gênesis, capítulo vinte e
oito. Jacó diz depois de sonhar com a escada para o céu.
— Por que um padre escolheria essa frase para inscrever na entrada
de sua igreja? — indagou Maureen, olhando para Peter e Tammy à
procura de uma resposta.
— Talvez seja melhor dar uma olhada dentro da igreja antes de
tentar responder.
A sugestão foi de Tammy. Peter aceitou-a, entrando na igreja.
— A escuridão é total aqui — avisou ele.
— Espere um instante. — Tammy tirou uma moeda de euro da
bolsa. — As luzes são acionadas por moedas.
Ela inseriu a moeda na fenda de uma caixa ao lado da porta. As
luzes fluorescentes acenderam.
— Na primeira vez em que vim aqui, tentei ver a igreja no escuro.
Trouxe uma lanterna na segunda vez. Foi então que um dos zeladores me
mostrou a caixa de moeda. Dessa maneira, os turistas podem ajudar na
manutenção da igreja. As luzes ficam acesas durante cerca de vinte
minutos.
— O que é isso? — indagou Peter.
Enquanto Tammy explicava a situação da luz, Peter virara-se para
ver a estátua de um hediondo demônio, agachado na entrada da igreja.
— Esse é Rex. Oi, Rex. — Tammy afagou a cabeça da estátua,
jovial. — Ele é como a mascote oficial de Rennes-le-Château. E como
acontece com todo o resto aqui, há toneladas de teorias a seu respeito.
Alguns dizem que é o demônio Asmodeu, o guardião dos segredos e
tesouros ocultos. Outros dizem que é o Rex Mundi da tradição dos
cátaros, e essa é a minha convicção.
— Rex Mundi... o Rei do Mundo? — indagou Peter.
Tammy acenou com a cabeça em confirmação. Explicou para
Maureen:
— Os cátaros dominaram esta região na Idade Média. Há uma
igreja aqui desde 1059, quando o catarismo estava no auge. Eles
acreditavam que um ser inferior era o guardião do plano da Terra, um
demônio que chamavam de Rex Mundi... o Rei do Mundo. Nossas almas
estão empenhadas numa luta constante para derrotar o demônio Rex e
alcançar o Reino de Deus, que é o domínio do espírito. Rex representa
todas as tentações terrenas e físicas.
— Mas o que ele faz numa igreja católica consagrada? —
perguntou Peter.
— Está sendo vencido pelos anjos, é claro. Olhe para cima.
Havia estátuas de quatro anjos, fazendo o sinal-da-cruz, por cima
das costas do demônio, no alto de uma fonte de água benta, moldada
como se fosse uma enorme concha. Peter leu a inscrição em voz alta e
depois traduziu:
— Par ce signe tu le vaincrais. Por este sinal, tu o vencerás.
— O bem derrota o mal. O espírito conquista a matéria. Os anjos
prevalecem sobre os demônios. Heterodoxo, é verdade, mas très Saunière.
— Tammy passou a mão pela cabeça de Rex. — Estão vendo isto?
Alguém arrombou a igreja há alguns anos e cortou a cabeça de Rex. Esta
é uma substituta. Ninguém sabe se era um caçador de suvenires ou um
católico furioso, protestando contra um símbolo tão dualista num
terreno consagrado. Ao que eu saiba, é a única estátua de um demônio
numa igreja católica. E isso mesmo, padre?
Peter acenou com a cabeça em confirmação:
— Eu diria que não conheço qualquer coisa parecida numa igreja
católica romana. É essencialmente uma blasfêmia.
— Os cátaros, que dominaram esta região, eram dualistas.
Acreditavam em duas forças divinas opostas, uma que trabalhava para o
bem, empenhada em purificar a essência do espírito, e outra que
trabalhava para o mal, acorrentada ao corrupto mundo material. Olhem
para o chão aqui.
Os ladrilhos que formavam o chão da igreja eram pretos e brancos,
dispostos como um tabuleiro de xadrez.
— Outra das concessões de Saunière à dualidade... preto e branco,
o bem e o mal. Mais toques excêntricos. Acho que Saunière era astuto
como uma raposa. Nasceu a poucos quilômetros daqui e compreendia
muito bem a mentalidade local. Sabia que sua congregação descendia de
sangue cátaro e que tinha bons motivos para desconfiar de Roma,
mesmo tantos séculos depois. Sem ofensa, padre.
— Não me senti ofendido. — Peter estava se acostumando às
provocações de Tammy. Pareciam sempre joviais e ele sinceramente
não se importava. Começava até a apreciar seu comportamento
excêntrico. — A Igreja lidou com a heresia catara de uma maneira muito
rigorosa. Posso compreender por que ainda parece injuriosa para os
habitantes locais.
Tammy virou-se para Maureen:
— A única cruzada oficial na história em que cristãos mataram
outros cristãos. O exército do papa massacrou os cátaros, e ninguém por
aqui jamais esqueceu esse fato. Assim, ao acrescentar elementos cátaros
e gnósticos à sua igreja, Saunière criou um ambiente em que seu rebanho
podia se sentir à vontade. Com isso, aumentou a freqüência e a lealdade.
Deu certo. Os habitantes locais amavam-no a ponto de reverenciá-lo.
Peter circulou pela igreja, absorvendo tudo. Cada elemento da
ornamentação era bizarro. Era vulgar, exagerado e anticonvencional.
Havia estátuas de gesso pintadas, de santos pouco conhecidos, como
São Roque levantando a túnica para mostrar a perna ferida ou Santa
Germana, apresentada como uma jovem pastora carregando um cordeiro.
Em todas as obras de arte na igreja, havia alguma coisa irregular ou
insólita. A que mais se destacava era uma escultura quase em tamanho
natural do batismo de Jesus, mostrando João inclinado sobre ele...
vestido incongruentemente em túnica e capa romana.
— Por que alguém poria João Batista com as roupas de um romano?
— indagou Peter.
Uma sombra passou pelo rosto de Tammy, por um breve instante,
mas ela não respondeu. Em vez disso, prosseguiu em seu comentário,
enquanto levava-os para o altar:
— A lenda local diz que o próprio Saunière pintou algumas obras.
Temos certeza de que ele foi responsável no mínimo pelo retábulo.
Maureen seguiu Tammy até o lugar em que um baixo-relevo de
Maria Madalena era o ponto focai do altar. Seus ícones habituais a
cercavam: o crânio a seus pés, o livro ao seu lado. Ela olhava para uma
cruz que parecia ser feita de uma árvore viva.
Peter concentrou-se nas placas em alto-relevo que descreviam as
estações da cruz. Como as estátuas, cada peça continha um detalhe
estranho ou idiossincrasia, que era contrário à tradição da Igreja.
Eles examinaram os elementos bizarros dentro da igreja, cada um
se tornando mais uma peça no crescente mistério em torno deles.
Inesperadamente, um clique forte ressoou pela igreja e eles ficaram
mergulhados na total escuridão.
Maureen entrou em pânico. As sombras que a seguiam, mesmo à
luz do sol, eram sufocantes ali.
Ela gritou por Peter.
— Estou aqui! — gritou ele em resposta. — Onde você está?
A acústica na igreja fazia com que o som ricocheteasse de um lado
para outro, tornando impossível determinar a posição de qualquer pessoa.
— Junto do altar! — berrou Maureen.
— Está tudo bem! — gritou Tammy. — Não entrem em pânico.
Nosso tempo esgotou... foi só isso.
Tammy foi abrir a porta para deixar a luz do dia entrar, permitindo
que Peter e Maureen se encontrassem na escuridão. Ela segurou-o e
correu para a porta da frente. Deliberadamente, olhou para a esquerda,
para não ver outra vez a estátua do demônio.
— Sei que foi uma questão de mecânica, mas mesmo assim me
deixou toda arrepiada. A igreja é muito... esquisita.
Maureen tremia, apesar do sol do Languedoc, quase a pino. Aquela
aldeia, que parecia de outro mundo, esquecida pelo tempo, era
absolutamente desconcertante, fora de seu âmbito de experiência. Havia
uma sensação de caos sob a superfície ali. Embora a aldeia estivesse
quase deserta, havia uma qualidade ensurdecedora em seu silêncio.
Maureen olhou para o pulso e lembrou que o relógio parara por completo
desde que chegara ali, um fato que aumentava ainda mais sua
apreensão.
Peter tinha muitas perguntas para Tammy, enquanto ela os levava
de volta através do jardim e contornava a Villa Bethania.
— Não posso imaginar que Saunière tenha feito tudo isso sem
entrar em conflito com as autoridades eclesiásticas.
— Ele teve problemas... e foram muitos — explicou Tammy. — Até
tentaram afastá-lo, substituindo-o por outro padre, mas não deu certo.
Os moradores não aceitavam mais ninguém, porque Saunière era um
deles. Ele estava bem preparado para assumir o cargo, ao contrário do que
você vai ler na maioria dos livros. É engraçado que supostas autoridades
sobre RLC falem da vinda de Saunière para cá como uma espécie de
ocorrência fortuita. Podem ter certeza de que nada do que acontece nesta
região é coincidência. Há forças poderosas demais em ação aqui.
— Refere-se a forças poderosas humanas ou forças poderosas
sobrenaturais?
— Ambas.
Tammy gesticulou para que eles a seguissem. Encaminhou-se para
uma torre de pedra na extremidade oeste da propriedade, na beira de um
penhasco.
— Vocês ainda não viram a pièce de résistance. A Tour Magdala.
— Tour Magdala? — perguntou Maureen, intrigada com o nome.
— A Torre de Madalena. Era a biblioteca particular de Saunière.
Mas é a vista que vale o esforço.
Eles seguiram Tammy para o interior da pequena torre.
Examinarem por um breve momento alguns itens pessoais de Saunière,
em caixas de vidro, antes de subir os vinte e dois degraus para a
plataforma de observação. A vista era espetacular.
Tammy apontou para uma colina distante.
— Podem ver aquela colina? É Arques. E no outro lado do vale fica
a lendária aldeia de Coustassa, onde outro sacerdote, um amigo de
Saunière chamado Antoine Gelis, foi brutalmente assassinado em sua
casa. Vasculharam a casa, e acredita-se que o assassino ou assassinos
procuravam por alguma coisa mais importante do que dinheiro.
Deixaram moedas de ouro em cima de uma mesa, mas levaram todos os
documentos. O pobre velho já tinha mais de setenta anos. Foi encontrado
no meio de uma poça de seu próprio sangue, assassinado com um
atiçador de lareira e um machado.
— Que coisa horrível!
Maureen estremeceu, reagindo à história contada por Tammy, mas
também ao local em que se encontravam. Por mais fascinada que estivesse
por aquele lugar, também sentia uma certa repulsa.
— Há pessoas dispostas a matar por esses mistérios — comentou
Peter, incisivo.
— Mas isso aconteceu há um século. Gosto de pensar que somos
mais civilizados hoje em dia.
— O que aconteceu com Saunière?
Maureen conduziu a história de volta ao estranho sacerdote e seus
misteriosos milhões.
— As coisas se tornaram ainda mais estranhas. Ele sofreu um
derrame dias depois de encomendar o próprio caixão. Diz a lenda local
que um sacerdote de fora foi chamado para ministrar a extrema-unção,
mas recusou-se a fazê-lo depois de ouvir a confissão final de Saunière. O
Pobre coitado deixou Rennes-le-Château em profunda depressão e
dizem que nunca mais tornou a sorrir.
— O que será que Saunière contou para ele?
— Ninguém sabe com certeza. Parece que a única exceção foi a
suposta governanta, Marie Denarnaud, para quem Saunière deixou toda a
sua riqueza... e seus segredos. Ela também morreu misteriosamente,
alguns anos depois. Como se tornou incapaz de falar, nos últimos dias
de sua vida, ninguém jamais soube o que foi dito.
Tammy contemplou a vista sensacional.
— É por isso que a aldeia passou a contar com uma próspera
indústria. Cem mil turistas visitam todos os anos este lugar tão
atrasado. Muitos vêm por curiosidade, mas alguns estão determinados
a encontrar o tesouro de Saunière.
Ela foi até a beira da plataforma e olhou para o vale lá embaixo.
— Não sabemos com certeza por que ele construiu a torre aqui,
mas pode-se apostar que procurava alguma coisa. Não concorda, padre?
Tammy piscou para Peter, depois recuou para a escada da torre.
Enquanto os três seguiam para o carro, Maureen insistiu para
que Tammy cumprisse a promessa anterior de explicar a Torre da
Alquimia. Tammy hesitou, sem saber por onde começar. Havia inúmeros
livros escritos sobre aquela região e ela passara anos pesquisando. Por isso
era sempre difícil apresentar uma versão condensada.
— Há alguma coisa nesta região que atrai as pessoas há milhares
de anos. Tem de ser alguma coisa intrínseca, algo na própria terra. De
que outra forma se explicaria o fato de existir uma atração universal que
se estende por mais de dois mil anos de história e abrange as mais
variadas convicções religiosas? Como tudo o mais aqui, há incontáveis
teorias. É sempre divertido começar pelas mais absurdas... aquelas que
garantem que tudo está ligado a alienígenas e monstros marinhos.
— Monstros marinhos? — Peter riu junto com Maureen,
enquanto fazia a pergunta. — Eu quase que poderia esperar por
alienígenas, mas monstros marinhos?
— Não estou brincando. Os monstros marinhos são uma
presença constante nos mistérios locais. O que é estranho para uma
região que não tem mar como esta, mas não tão bizarro quanto
algumas histórias de disco-voador. Há alguma coisa por aqui que deixa
as pessoas quase que literalmente loucas. E há ainda o elemento do
tempo. Seu relógio continua parado?
Maureen já sabia a resposta, mas mesmo assim olhou para baixo, a
fim de ter a confirmação. O relógio continuava parado em 9:33 havia
mais de uma hora. Ela balançou a cabeça.
— Provavelmente continuará parado até deixarmos a montanha
— comentou Tammy. — Há alguma coisa que afeta os relógios, mecânicos
e eletrônicos. Pode ser um dos motivos pelos quais tantas pessoas por
aqui ainda usam relógio de sol, mesmo no século XXI. Não acontece
com todo mundo, mas não dá para descrever quantos encontros
estranhos já tive pessoalmente.
Ela começou a contar uma de suas muitas histórias sobre os
inexplicáveis elementos de tempo na área de Rennes-le-Château.
— Eu vinha de carro para cá com alguns amigos. Verificamos os
relógios dentro do carro, na base da colina. Quando chegamos lá em cima,
o relógio do carro indicava que leváramos quase meia hora para cobrir a
distância. Você guiou agora... quanto tempo durou, mesmo subindo
devagar? Cinco minutos?
A pergunta foi dirigida a Peter, que acenou com a cabeça em
concordância.
— Não muito mais do que isso.
— Não é longe, talvez três quilômetros. Por isso pensamos que o
relógio do carro tivesse algum problema, até que conferimos em nossos
relógios. Meia hora havia mesmo passado. Todos sabíamos que não
havíamos passado meia hora naquela estrada. Mas, de alguma forma,
trinta minutos completos transcorreram até chegarmos ao topo da colina.
Posso explicará Não. Foi como se tivesse ocorrido alguma distorção no
tempo. Desde então, conversamos com inúmeras pessoas que tiveram a
mesma experiência. Os moradores locais nem se dão mais ao trabalho de
se preocupar com isso, porque já estão acostumados. Pergunte a respeito e
eles dão de ombros, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Ela fez uma pausa.
— Mas muitas pessoas experimentaram fenômenos similares
junto da Grande Pirâmide e dentro de alguns locais sagrados na Grã-
Bretanha e Irlanda. O que acontece? É alguma espécie de força
magnética? — Ou é alguma coisa intangível e por isso impossível de ser
entendida por nossos débeis cérebros humanos?
Tammy discorreu sobre as várias teorias que haviam sido
formuladas Por locais e equipes internacionais de pesquisadores,
enumerando uma lista de possibilidades: as linhas ley (que ligam os
pontos de poder), vórtices do tempo, terra oca, portais estelares.
— Salvador Dali dizia que a estação ferroviária em Perpignan era
o centro do universo, porque era o lugar em que se cruzavam essas forças
magnéticas.
— Qual é a distância daqui para Perpignan? — perguntou Maureen.
— Cerca de sessenta quilômetros. Perto o bastante para tornar a
cidade interessante, sem dúvida. Eu gostaria de respostas para tudo isso,
mas não tenho. Ninguém tem. Lembram aquele meridiano que Sinclair
mostrou na igreja de Saint-Sulpice em Paris?
— A Linha de Madalena — disse Maureen.
— Exatamente. Segue de Paris direto para esta área. Por quê? Porque
há alguma coisa nesta região que transcende o tempo e o espaço. Creio
que foi isso que atraiu os alquimistas de toda a Europa, por tanto tempo
quanto alguém pode lembrar.
— Eu já me perguntava quando voltaríamos à alquimia —
comentou Peter.
— Sinto muito, padre. Tenho uma tendência a falar demais. Mas
também nenhuma dessas explicações é simples. Aquela torre,
conhecida como a Torre da Alquimia, parece ter sido construída sobre
um lendário ponto de poder. A Linha de Madalena passa por ali. A torre
tem sido o local de incontáveis experimentos de alquimia.
— Quando você fala em alquimia, está se referindo ao sistema de
crença medieval de transformar enxofre em ouro?
A pergunta foi de Maureen.
— Em alguns casos, era isso mesmo. Mas qual é a verdadeira
definição de alquimia? Se você quiser algum dia provocar uma tremenda
briga, faça essa pergunta numa convenção de pensadores esotéricos.
Haverá a maior confusão, pois nunca se encontrou uma resposta
definitiva.
Tammy enumerou os diversos tipos de alquimia.
— Há os alquimistas científicos, aqueles que tentam por meios
físicos transformar materiais básicos em ouro. Alguns alquimistas
científicos vieram para cá convencidos de que a própria magia da terra era
o fator X mágico que procuravam para completar seus experimentos. Há
também os filósofos, que acreditam que a alquimia é uma transformação
espiritual, que converte os elementos básicos do espírito humano num
eu áureo. Há esotéricos que exploram a idéia de que os processos
alquímicos podem ser usados para alcançar a imortalidade e causar um
impacto na natureza do tempo. Há ainda os alquimistas sexuais, que
acreditam que a energia sexual cria um tipo de transformação quando
dois corpos se fundem, usando uma combinação de métodos físicos e
metafísicos.
Maureen escutava atentamente. Queria saber mais sobre a
perspectiva pessoal de Tammy.
— E qual é a teoria que você endossa?
— Pessoalmente, sou uma grande fã da alquimia sexual. Mas acho
que todas são verdadeiras. É o que realmente penso. Na minha
opinião, alquimia é, no fundo, um termo para designar o mais antigo
conjunto de princípios que temos no mundo. Houve uma época em que
essas normas eram compreendidas pelos antigos, como os arquitetos
da Grande Pirâmide de Gizé.
A pergunta seguinte foi de Peter:
— Mas o que tudo isso tem a ver com Maria Madalena?
— Para começar, acreditamos que ela tenha vivido aqui ou pelo
menos passado algum tempo na região. O que nos leva a uma pergunta.
Por que aqui? É um lugar remoto mesmo agora, com os modernos
meios de transporte. Podem sequer imaginar como era tentar passar
pelas montanhas no século I? O terreno era totalmente inóspito. Então
por que ela escolheu este lugar? Logo aqui, com tantos outros para
escolher? Porque há alguma coisa especial neste lugar.
Tammy fez uma pausa.
— Ah, já ia me esquecendo de mencionar que há outra alquimia
que ocorre aqui... uma coisa que passei a chamar recentemente de
Alquimia Gnóstica.
— Parece um título interessante para uma nova religião —
comentou Maureen, avaliando o termo.
— Ou para uma antiga. Mas há uma convicção aqui que se
estende aos cátaros e talvez além, uma convicção de que esta região era o
centro da dualidade. Que o Rei do Mundo, o velho Rex Mundi, vive
aqui. O equilíbrio terreno de luz e trevas, bem e mal, ocorre nesta
estranha aldeia e seus arredores imediatos. E em algum nível, esses dois
elementos estão em guerra um com o outro, durante todo o tempo, aqui
mesmo, sob nossos pés. Você acha que a aldeia é sinistra durante o dia?
Não poderia me pagar para andar por estas ruas no meio da noite. Há
alguma coisa muito importante neste lugar e nem tudo é bom.
Maureen acenou com a cabeça para Tammy.
— Também sinto isso. Portanto talvez Dali estivesse errado em
cerca de sessenta quilômetros. Rennes-le-Château não poderia ser o
verdadeiro centro do universo?
Peter interveio, mais sério:
— Isso poderia fazer sentido para os habitantes da França
medieval, já que este era seu universo. Mas as pessoas ainda acreditam
nisso hoje em dia?
— Tudo o que posso lhe dizer é que há estranhas ocorrências aqui
que ninguém é capaz de explicar e que acontecem durante todo o
tempo. Aqui, em Arques, nas áreas ao redor, onde os castelos foram
construídos. Alguns dizem que os cátaros construíram esses castelos
como fortalezas de pedra contra as energias das trevas. Optaram por
construí-los em cima de vórtices ou pontos de poder, onde podiam
realizar cerimônias sagradas para controlar ou derrotar as forças das
trevas. E todos os castelos têm torres, o que é significativo.
Peter escutava atentamente.
— Mas não seriam torres estratégicas, construídas para propósitos
de defesa?
— Claro. — Tammy balançou a cabeça enfática. — Mas isso não
explica por que cada castelo tem lendas envolvendo a alquimia dentro de
suas torres. As torres são conhecidas como lugares em que ocorreu
alguma espécie de magia ou transformação. O que se relaciona
diretamente com o lema da alquimia, “como acima é abaixo”. As torres
representam a Terra, porque assentam no solo, mas também
representam o paraíso, porque se projetam para o céu. Assim, são locais
apropriados para a realização de experimentos alquímicos. E como
acontece com a torre de Saunière, todas foram construídas com vinte e
dois degraus.
— Por que vinte e dois? — perguntou Maureen, o interesse aguçado.
— Vinte e dois é um número mestre e os elementos numerológicos
são críticos na alquimia. Os números mestres são onze, vinte e dois e
trinta e três. Mas vinte e dois é o padrão que se encontra com mais
freqüência nesta área, já que pertence à energia divina feminina. Vai
notar que o dia de Maria Madalena no calendário da Igreja...
— É o dia 22 de julho — declararam Peter e Maureen ao mesmo
tempo.
— Bingo. Portanto, para finalmente responder à sua pergunta,
talvez tenha sido por isso que Maria Madalena veio para cá, porque
conhecia os elementos de poder natural ou compreendia alguma coisa
sobre a luta entre luz e trevas, como acontece aqui. A região não era
desconhecida dos habitantes da Palestina. A família de Herodes tinha casas
não muito longe daqui. Há até uma tradição segundo a qual a mãe de
Maria Madalena seria do Languedoc. Portanto, de alguma forma, ela estava
voltando para casa.
Tammy olhou para a torre do Château Hautpol.
— O que eu não daria para ser uma mosca imortal na parede
daquela torre...
Languedoc
23 de junho de 2005
Eles deixaram Tammy em Couiza, onde ela se reuniria a alguns
amigos para um almoço tardio. Maureen ficou desapontada porque
Tammy só iria encontrá-los depois. Sentia-se nervosa ao se aproximar da
casa de Sinclair sem um amiga comum para tornar a situação menos
constrangedora. E podia também perceber a tensão de Peter. Ele fazia o
melhor que podia para esconder, mas a tensão era evidente na maneira
como as mãos apertavam o volante. Talvez ficar na casa de Sinclair fosse
um erro, no final das contas.
Mas já haviam assumido o compromisso e mudar de idéia agora
seria uma grosseria e um insulto para o anfitrião. Maureen não queria
correr esse risco. Sinclair era uma peça muito importante de seu quebra-
cabeça.
Peter cruzou com o carro alugado os enormes portões de ferro.
Maureen notou, na passagem, que os portões eram ornamentados com
enormes flores-de-lis douradas, entre cachos de uvas... ou, talvez, maçãs
azuis. O caminho cheio de curvas subia por uma encosta, através da
extensa e suntuosa propriedade que era Le Château de Pommes Bleues.
Pararam na frente do castelo, aturdidos por um momento pelo
tamanho e pela grandiosidade da construção. O castelo fora construído
no século XVI e restaurado com todo o cuidado. Assim que saltaram do
carro, o imponente mordomo de Sinclair, o gigante Roland, passou pela
porta da frente. Dois criados de libré encaminharam-se para o carro, a
fim de pegar a bagagem, obedecendo às ordens de Roland.
— Bonjour, mademoiselle Paschal, abbé Healy. — Ele sorriu
subitamente, a expressão abrandando o rosto, o que fez com que Maureen
e Peter soltassem a respiração reprimida. — Sejam bem-vindos ao
Château des Pommes Bleues. Monsieur Sinclair sente-se muito satisfeito
por terem vindo.
Maureen e Peter foram instados a esperar no vasto vestíbulo,
enquanto Roland ia procurar o patrão. Não foi problema esperar ali, já
que havia valiosas obras de arte e antiguidades de valor inestimável para
admirar, equivalentes ao que se encontrava em muitos museus na
França.
Maureen parou junto de uma caixa de vidro, que era o ponto focal do
vestíbulo. Peter seguiu-a. Havia ali um cálice de prata maciço, todo
ornamentado, e um crânio humano, num lugar de honra no relicário. O
crânio estava embranquecido pelo tempo, mas ainda assim dava para
perceber uma nítida rachadura no osso. Uma mecha de cabelos —
esmaecida, mas ainda exibindo um óbvio pigmento vermelho — estava
ao lado do crânio, dentro do cálice.
— Os antigos acreditavam que os cabelos ruivos eram uma fonte
de grande magia.
Berenger Sinclair chegara por trás deles. Maureen teve um pequeno
sobressalto ao ouvir a voz inesperada, mas no instante seguinte virou-se
para comentar.
— Os antigos nunca tiveram de estudar numa escola pública
na Louisiana.
Sinclair riu, um som céltico profundo. Estendeu a mão para passar
um dedo pelos cabelos de Maureen, jovial.
— Não havia meninos na sua escola?
Maureen sorriu, mas no instante seguinte voltou a concentrar a
atenção na relíquia na caixa de vidro, antes que ele pudesse vê-la corando.
Ela leu em voz alta a placa dentro da caixa:
— O crânio do rei Dagoberto II.
— Um dos meus mais pitorescos ancestrais — comentou Sinclair.
Peter estava fascinado e um pouco incrédulo.
— São Dagoberto II? O rei merovíngio? Você é descendente dele?
— Sou, sim. E seus conhecimentos de história são tão bons
quanto seu latim. Estou impressionado.
— Refresque minha memória. — Maureen exibia uma expressão
tímida. — Desculpem, mas minhas lembranças da história francesa
começam depois de Luís XIV Quem eram mesmo os merovíngios?
Foi Peter quem respondeu:
— Uma antiga linhagem de reis no território em que existem agora
a França e a Alemanha. Reinaram dos séculos V a VIII. A linhagem acabou
com a morte deste Dagoberto.
Maureen apontou para a rachadura no crânio.
— Alguma coisa me diz que ele não morreu de causas naturais.
— Não, não foi de causas naturais — respondeu Sinclair. — O
afilhado enfiou uma lança em seu cérebro, através do olho, enquanto ele
dormia.
— E ainda falam na lealdade familiar — murmurou Maureen.
— Por mais triste que possa parecer, ele optou pelo dever
religioso acima da lealdade familiar, um dilema que atormentou muitos
ao longo da história. Não é isso mesmo, padre Healy?
Peter franziu o rosto pela insinuação percebida.
— O que isso significa?
Sinclair fez um gesto solene na direção de um escudo heráldico na
parede: uma cruz cercada por rosas, sobre as quais havia uma inscrição
em latim: ELIGE MAGISTRUM.
— O lema de minha família. Elige Magistrum.
Maureen olhou para Peter, à espera de um esclarecimento. Alguma
coisa acontecia entre os dois homens que começava a deixá-la nervosa.
— Escolha um mestre — traduziu Peter.
Sinclair explicou:
— O rei Dagoberto foi assassinado por ordem de Roma, já que o
papa sentia-se preocupado com a sua versão de cristianismo. O afilhado
de Dagoberto foi pressionado a escolher um mestre e optou por Roma,
tornando-se assim um assassino da Igreja.
— E por que a versão de cristianismo de Dagoberto era tão
perturbadora? — indagou Maureen.
— Ele acreditava que Maria Madalena era uma rainha e a esposa
legítima de Jesus Cristo, e que ele descendia de ambos. Assim, tinha o
direito divino dos reis de uma maneira que superava todos os outros
poderes deste mundo. O papa na ocasião considerou que era ameaçador
demais um rei acreditar nisso.
Maureen sentiu um arrepio. Fez uma tentativa de manter a
conversa amena, cutucando Peter e dizendo:
— Promete que não vai espetar nenhuma lança em meu olho
enquanto durmo?
Peter lançou-lhe um olhar de lado.
— Lamento, mas não posso fazer promessa alguma. Elige Magistrum
e todo o resto.
Maureen lançou-lhe um olhar de horror zombeteiro e voltou a
estudar o relicário de prata, ornamentado com o padrão refinado de flor-
de-lis.
— Para alguém que não é francês, você é um grande apreciador
desse símbolo.
— A flor-de-lis? Claro. Não esqueça que os franceses e escoceses foram
aliados por centenas de anos. Mas minha razão para usá-la é diferente. É
o símbolo...
Peter arrematou a frase:
— ...da trindade.
Sinclair sorriu para os dois.
— Isso mesmo. Mas me pergunto, padre Healy, se é o símbolo da
sua trindade... ou da minha?
Antes que Maureen ou Peter pudessem pedir uma explicação,
Roland apareceu. Falou rapidamente com Sinclair, numa língua que
parecia francês com uma dicção mediterrânea. Sinclair virou-se para seus
hóspedes.
— Roland os levará a seus quartos, para que possam descansar
antes do jantar.
Ele fez uma reverência elaborada, lançando uma piscadela para
Maureen, antes de se retirar.
Maureen entrou no quarto e ficou boquiaberta. A suíte era
magnífica. Uma enorme cama com dossel em cortinas de veludo
vermelho, onde estava bordada a onipresente flor-de-lis em dourado,
dominava o espaço. Os outros móveis eram obviamente antigos, todos
dourados.
Um retrato de Maria Madalena no deserto, do mestre espanhol
Ribera, cobria uma das paredes do quarto, o rosto doce da Madona erguido
para o céu. Pesados vasos de cristal Baccarat, cheio de rosas vermelhas e
lírios brancos, estavam espalhados pelo quarto, fazendo lembrar os
arranjos de flores que Sinclair mandara para o apartamento de Maureen
em Los Angeles.
— Uma mulher pode acabar se acostumando com um
tratamento desses — murmurou ela para si mesma.
Foi nesse instante que uma criada bateu na porta e entrou para
desarrumar sua bagagem.
O quarto de Peter era menor que o de Maureen, mas ainda assim
todo ornamentado e digno da realeza. Suas malas ainda não haviam
chegado, mas ele tinha a bagagem de mão, que continha o suficiente para
as necessidades imediatas. Tirou da bolsa preta a Bíblia encadernada em
couro e o rosário de contas de cristal.
Com o rosário na mão, Peter desabou na cama. Sentia-se
cansado... esgotado da viagem e exausto por causa da tremenda
responsabilidade pessoal que assumira com o bem-estar de Maureen,
físico e espiritual. Aventurava-se agora por território desconhecido e isso
deixava-o nervoso. Não confiava em Sinclair. Pior ainda, não confiava na
reação da prima a Sinclair. O dinheiro e a aparência física do homem
obviamente criavam uma mística que exercia uma forte atração sobre as
mulheres.
Mas pelo menos ele sabia que Maureen não era uma mulher que
podia ser arrebatada com facilidade. Na verdade, Peter sabia que ela tivera
bem poucos relacionamentos com homens. A visão romântica de
Maureen fora prejudicada pelo ódio que sua mãe alimentava contra o
seu pai. O fato do seu casamento desajustado ter acabado em tragédia
era a razão que impelia Maureen a permanecer longe de qualquer coisa
que se parecesse com um relacionamento com um homem.
Ainda assim, ela era mulher e era humana. E também muito
vulnerável por causa de suas visões. Peter tencionava evitar que Sinclair
usasse isso para manipular Maureen. Não tinha a menor idéia do
quanto Sinclair já sabia — ou como ele sabia —, mas estava determinado
a descobrir, o mais depressa possível.
Peter fechou os olhos e começou a rezar, pedindo orientação. Porém
as orações silenciosas foram interrompidas por um zumbido insistente.
Ele tentou ignorar a vibração a princípio, mas finalmente desistiu.
Atravessou o quarto até o lugar em que deixara a mala, abriu-a e pegou o
celular.
Por sorte, o quarto de Maureen ficava no mesmo corredor em que
estava o quarto de Peter, caso contrário poderiam não se encontrar no
vasto castelo de Sinclair. Maureen estava fascinada pela propriedade,
absorvendo cada detalhe de arte e arquitetura enquanto atravessavam
de uma ala Para outra.
Queriam sair para investigar juntos o exterior do castelo, já que
ainda faltavam algumas horas para o jantar. Ambos sentiam-se tão
fascinados pelo ambiente em que se encontravam que não podiam deixar
de explorá-lo. Enveredaram por um corredor largo, iluminado por luz
natural, que entrava pela janela de uma vidraça de cristal. Um mural
enorme e extraordinário, descrevendo uma cena da crucificação um tanto
abstrata, adornava toda a extensão do corredor.
Maureen parou para admirar a obra. Ao lado do Cristo crucificado,
uma mulher com um véu vermelho erguia três dedos, enquanto uma
lágrima escorria por seu rosto. Estava de pé ao lado de uma massa de
água — um rio? — de onde saltavam pelo ar três peixes pequenos, um
vermelho e dois azuis. Tanto o padrão dos três peixes quanto os dedos
levantados da mulher repetiam o desenho da flor-de-lis, de uma forma
abstrata.
Havia incontáveis detalhes no mural, que era refinado e obviamente
moderno. Maureen tinha certeza de que eram todos simbólicos, mas
levaria horas para examinar cada um... e provavelmente anos para
compreendê-los.
Peter recuou para contemplar a cena da crucificação, que era linda
em sua simplicidade. O céu por cima da cruz era obscurecido pelo que
parecia ser um sol negro. Um raio riscava o céu.
— Não acha que parece com o estilo de Picasso? — murmurou
Peter.
O anfitrião apareceu na extremidade do corredor.
— É de Jean Cocteau, o artista mais prolífico da França e um dos
meus heróis pessoais. Ele pintou o mural quando era hóspede de meu
avô.
Maureen ficou espantada.
— Cocteau esteve aqui? Incrível! Este castelo deve ser um tesouro
nacional para a França. Todas as obras de arte são fenomenais. O quadro
em meu quarto...
— O Ribera? E meu retrato predileto de Madalena. Capta sua
beleza e graça divina mais do que qualquer outro. E mesmo excepcional.
Peter estava incrédulo.
— Mas não pode estar dizendo que é um quadro original! Vi o
original... exposto no museu do Prado.
— Mas é de fato original. Ribera pintou-o a pedido do rei de Aragão.
Para ser mais preciso, pintou dois quadros. E você tem toda a razão, pois
o menor está no Prado. O rei espanhol deu este quadro aqui a um de
meus ancestrais, como um pedido de paz, a um membro da família
Stuart. Como poderão ver, as belas-artes têm uma forte ligação com a
Senhora. Mostrarei outros exemplos durante o jantar. Mas se não se
importam que eu pergunte, para onde iam agora?
Foi Maureen quem respondeu:
— Íamos sair para uma volta antes do jantar. Avistei algumas
ruínas no alto da colina quando chegamos e eu queria examiná-las
mais de perto.
— Uma excelente idéia. Eu teria o maior prazer em servir como
guia. Se a proposta for aceitável para o padre Healy, é claro.
— Claro que é.
Peter sorriu, mas Maureen notou a tensão nas extremidades de
seus lábios quando Sinclair segurou-a pelo braço.
Roma
25 de junho de 2005
O sol brilhava em Roma mais forte do que em qualquer outro lugar
do mundo, ou pelo menos era o que sentia o bispo Magnus O'Connor ao
caminhar sobre as pedras abençoadas da basílica de São Pedro. Ele quase
entrara em êxtase pela honra de ter acesso à capela particular.
Ao entrar em chão consagrado, ele parou diante da estátua de
mármore de Pedro, segurando as chaves da igreja. Beijou os pés descalços
do santo. Depois, foi até a frente da igreja e sentou-se no primeiro
banco. Deu graças ao Senhor por trazê-lo àquele lugar sagrado. Rezou
por si mesmo, por seu bispado e pelo futuro da Santa Madre Igreja.
Depois de completar suas devoções, Magnus O'Connor foi para a
sala do cardeal Tomas DeCaro, levando as pastas de arquivos vermelhas
que haviam garantido seu ingresso no Vaticano.
— Está tudo aqui, Sua Eminência.
O cardeal agradeceu. Se O'Connor esperava um convite do cardeal
para uma longa conversa, ficou bastante desapontado. O cardeal DeCaro
dispensou-o com um aceno de cabeça brusco, sem dizer mais nada.
DeCaro estava ansioso em examinar o conteúdo das pastas, mas
preteria fazê-lo, naquela primeira vez, sem platéia.
Ele abriu a primeira das pastas, todas marcadas com o mesmo
nome, em letras pretas maiúsculas: EDOUARD PAUL PASCHAL.
... Ainda não escrevi sobre a Grande Mãe, a Grande Maria.
Esperei durante todo esse tempo pois, com freqüência, especulei se
teria as palavras certas para fazer justiça à sua bondade, sabedoria
e força. Na vida de cada mulher, haverá sempre a influência e os
ensinamentos de uma mulher que se destaca, suprema. Para mim, esse
foi o papel da Grande Maria, a mãe de Easa.
Minha própria mãe morreu quando eu era muito pequena. Não me
lembro dela. E, embora Marta tenha sempre cuidado de mim e atendido
às minhas necessidades, como uma irmã deve fazer, foi a mãe de Easa
quem me proporcionou a instrução espiritual. Ela alimentou minha alma e
me ensinou as muitas lições de compaixão e perdão. Fez-me ver o que era
se portar como uma rainha e instruiu-me em relação aos comportamentos
apropriados a uma mulher com o destino marcado.
Quando chegou o momento de assumir o véu vermelho e me tornar
uma verdadeira Maria, eu estava preparada.
A Grande Maria foi um modelo de obediência, mas era uma
obediência que atendia apenas ao Senhor. Ouvia as mensagens de
Deus com absoluta clareza. Seu filho tinha a mesma capacidade e foi
por isso que se distinguiram dos outros, que também vieram de um
nascimento nobre. Isso mesmo, Easa era um filho do leão, o herdeiro da
Casa de Davi. Sua mãe descendia da grande casta sacerdotal de
Aarão. Ela nasceu rainha e Easa, rei. Mas não foi pelo sangue que se
distinguiam dos outros; foi por seu espírito, pela força de sua fé na men-
sagem de Deus para nós.
Não fizesse eu qualquer outra coisa que não andar à sua sombra
por todos os meus dias, teria sido, ainda assim, abençoada.
A Grande Maria foi a primeira mulher a ter a dádiva do lúcido
conhecimento divino. Isso representava um desafio para os altos
sacerdotes, que não sabiam como aceitar uma mulher com tanto poder.
Mas não podiam condená-la. A Grande Maria pertencia a uma
linhagem de sangue imaculada, e era dona de um coração e espírito
acima de qualquer censura. Sua reputação impecável era conhecida
através de muitas terras.
Homens de poder temiam-na, pois não podiam controlá-la. Ela
apenas respondia a Deus.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPÍTULO OITO
Château des Pommes Bleues
23 de junho de 2005
Sinclair levou Maureen e Peter por um caminho calçado com
pedras, que os afastava da vasta construção. Estavam cercados por
contrafortes de rocha vermelha, coroados pelas ruínas de um castelo
numa escarpada colina próxima. Maureen absorvia o cenário
espetacular.
— Este lugar é impressionante. Irradia uma sensação mística.
— Estamos no coração do território dos cátaros. Toda esta
região foi outrora dominada pelos cátaros. Os Puros.
— Por que se chamavam assim?
— Seus ensinamentos vinham de Jesus Cristo por uma linha
pura e ininterrupta. Por intermédio de Maria Madalena. Ela foi a
fundadora do catarismo.
Peter exibiu uma expressão de total ceticismo, mas foi
Maureen quem expressou a dúvida:
— Por que nunca li sobre isso em parte alguma?
Berenger Sinclair limitou-se a rir, nem um pouco preocupado se
lhe davam crédito ou não. Era um homem tão seguro de suas
convicções e tão confiante em si mesmo que a opinião dos outros
não tinha a menor importância.
— Não leu e nunca vai ler. A verdadeira história dos cátaros
não se encontra em qualquer livro de história. Não se pode
pesquisá-la com autenticidade em qualquer outro lugar que não
aqui. A verdade dos cátaros só é encontrada nas rochas vermelhas do
Languedoc, não fora daqui.
— Eu adoraria ler sobre eles — comentou Maureen. — Pode
recomendar alguns livros que considere autênticos?
Sinclair deu de ombros e sacudiu a cabeça.
— São bem poucos e praticamente nenhum dos que merecem
crédito foi traduzido. A maioria dos livros sobre a história dos cátaros
baseia-se em confissões extraídas durante tortura. Quase todos os
relatos medievais sobre o povo cátaro foram escritos por seus inimigos.
Até que ponto você acha que esses relatos são acurados? Eu esperava que
você compreendesse esse princípio, Maureen, com base em sua reavaliação
da história. Nenhuma prática cátara autêntica jamais foi registrada por
escrito. Suas tradições são passadas de uma geração para outra pelas
famílias desta região há dois mil anos, mas são tradições orais, protegidas
com a maior determinação.
— Tammy não disse que houve uma cruzada oficial contra eles? —
indagou Maureen, enquanto continuavam a seguir pelo caminho
sinuoso, entre rochas vermelhas.
Sinclair confirmou com um aceno de cabeça.
— Um ato brutal de genocídio, com o massacre de mais de um
milhão de pessoas, desfechado por um papa que ironicamente tinha o
nome de Inocêncio III. Já ouviram falar da frase “Matem-nos e deixem que
Deus os identifique”?
Maureen ficou toda arrepiada.
— Já, sim. E a expressão de um sentimento bárbaro.
— Foi expresso pela primeira vez no século XIII, pelas tropas papais
que massacraram os cátaros em Béziers. Para ser mais preciso, eles
disseram: “Neca tos omnes. Deus suos agnoset.” O que pode ser
traduzido como “Matem todos. Deus reconhecerá os seus”.
Ele virou-se abruptamente para Peter.
— Reconhece?
Peter sacudiu a cabeça, sem saber aonde Sinclair queria chegar,
mas relutante em cair na armadilha intelectual.
— E emprestado de São Paulo. Timóteo II, versículo dois. “O Senhor
conhece os seus.”
Peter ergueu a mão para deter Sinclair.
— Não pode culpar Paulo porque suas palavras foram distorcidas.
— Não posso? Pois acho que acabei de fazê-lo. A verdade é que tenho
Paulo atravessado na garganta. Não é por acaso que nossos inimigos têm
usado suas palavras contra nós por muitos séculos. É o começo de tudo.
Maureen tentou aliviar a crescente tensão entre os dois, levando
Sinclair de volta à história local.
— O que aconteceu em Béziers?
— Neca eos omnes. Matem todos. E foi exatamente o que os
cruzados fizeram em nossa linda cidade de Béziers. Passaram todos na
espada... do mais idoso ao bebê recém-nascido. Ninguém foi poupado
pelos carniceiros. Talvez cem mil pessoas tenham sido assassinadas só
nesse sítio. A lenda diz que nossas colinas estão vermelhas até hoje em
luto pelos inocentes massacrados.
Caminharam em silêncio por alguns momentos, em respeito pelas
almas partidas. Os massacres haviam ocorrido quase oito séculos antes e
mesmo assim havia uma sensação de espíritos perdidos por toda parte,
uma presença que pairava em cada brisa que soprava pelos contrafortes
dos Pireneus. Ali era e seria sempre o território dos cátaros. Sinclair
continuou em sua preleção:
— É claro que muitos cátaros escaparam, refugiando-se na
Espanha, Alemanha e Itália. Preservaram seus segredos e ensinamentos,
mas ninguém sabe o que aconteceu com seu maior tesouro.
— E o que era esse tesouro? — indagou Peter.
Sinclair olhou ao redor, a ligação inextricável com a terra era
evidente em sua expressão. O lugar e sua história estavam gravados em
sua alma. Não importava quantas vezes ele relatasse aquelas histórias,
cada relato revelava sua paixão incomparável.
— Há muitas lendas sobre os tesouros cátaros. Alguns dizem que
era o Santo Graal, outros alegam que era a verdadeira mortalha de Cristo
ou a coroa de espinhos. Mas o tesouro era um dos dois livros mais
sagrados já escritos. Os cátaros eram os guardiões d'0 Livro do Amor, o
único evangelho verdadeiro.
Ele fez uma pausa, para ênfase, antes de acrescentar o ponto de
exclamação:
— O Livro do Amor é o único evangelho verdadeiro porque foi todo
escrito pela mão do próprio Jesus Cristo!
Peter parou abruptamente ao ouvir essa revelação. Ficou olhando
aturdido para Sinclair.
— Qual é o problema, padre Healy? — Não lhe ensinaram sobre O
Livro do Amor no seminário?
Maureen também estava incrédula.
— Acha mesmo que esse livro existiu?
— Tenho certeza que existiu. Foi trazido da Terra Santa por
Maria Madalena e deixado com extrema cautela para seus descendentes.
É bastante provável que O Livro do Amor tenha sido o verdadeiro
impulsionador das cruzadas contra os cátaros. A Igreja estava desesperada
para se apoderar do livro... mas não para protegê-lo e guardá-lo, posso
assegurar.
— A Igreja nunca danificaria uma coisa tão sagrada e valiosa —
protestou Peter.
— Não? E se esse documento pudesse ser autenticado? E se esse
documento autenticado contestasse não apenas muitos dos postulados,
mas também a própria autoridade da Igreja? E pela mão do próprio
Cristo? O que aconteceria neste caso, padre?
— Tudo isso é pura especulação.
— Você tem direito à sua opinião, assim como eu também tenho
direito à minha. Só que a minha baseia-se no conhecimento de fatos
altamente resguardados. Mas para continuar com minha... especulação,
a Igreja teve êxito em sua busca, de certa forma. Depois da perseguição
aos cátaros, os Puros foram obrigados a se esconder e O Livro do Amor
desapareceu para sempre. Bem poucas pessoas hoje em dia sequer sabem
que existiu. É uma tarefa e tanto... eliminar da história a existência de
uma coisa tão poderosa.
Peter se mantivera em profunda concentração enquanto Sinclair
falava. Só depois de refletir por mais um minuto é que ele deu uma
resposta:
— Você disse que o tesouro era um dos dois livros mais sagrados que
já foram escritos. Se o evangelho escrito pelo próprio Jesus é um desses
livros, qual seria o outro?
Berenger Sinclair parou e fechou os olhos. Os ventos do verão
sopravam, desmanchando seus cabelos. Ele respirou fundo, depois abriu
os olhos e fitou Maureen, ao responder:
— O outro é o Evangelho segundo Maria Madalena, um relato puro
e perfeito de sua vida com Jesus Cristo.
Maureen ficou paralisada. Olhava para Sinclair, absorvida por sua
expressão de intensa paixão. Peter rompeu o encantamento:
— Os cátaros alegavam que também tinham esse livro em seu
poder?
Sinclair desviou os olhos de Maureen depois de mais um segundo.
Balançou a cabeça ao responder:
— Não, não alegavam. Ao contrário d'O Livro do Amor, que teve
testemunhas históricas, ninguém jamais viu o Evangelho de
Madalena. Provavelmente porque nunca foi encontrado. Acredita-se
que esteja escondido perto da aldeia de Rennes-le-Château, que vocês
visitaram. Tammy mostrou a Torre da Alquimia?
Maureen acenou com a cabeça em confirmação. Peter estava
ocupado demais tentando imaginar como Sinclair sabia tanto sobre os
seus movimentos. Maureen não se importava com isso, estava fascinada
pela história viva... e pelo amor desconcertante que Sinclair demonstrava
por essa história.
— Ela mostrou, mas ainda não compreendo por que é tão
importante.
— É importante por muitas razões. Mas para os nossos
propósitos, aqui e agora, alguns acreditam que Maria Madalena viveu e
escreveu seu evangelho no local em que está a torre. Depois, escondeu os
documentos numa caverna, para que ali permanecessem até chegar o
momento de revelar sua versão dos acontecimentos.
Sinclair apontou para uma série de enormes buracos, parecendo
cavernas, nas montanhas ao redor.
— Estão vendo aquelas crateras? São cicatrizes deixadas pelos
caçadores de tesouros durante os últimos cem anos.
— A procura desses evangelhos?
A risada de Sinclair foi curta e amarga.
— Ironicamente, a maioria nem sequer sabe o que procura. Não tem
a menor idéia. Muitos conhecem a lenda do tesouro cátaro ou leram um
dos muitos livros sobre Saunière e sua misteriosa riqueza. Mas a maioria
não sabe o que é. Alguns acham que é o Santo Graal ou a Arca da Aliança,
enquanto outros têm certeza de que é o tesouro saqueado do Templo
de Jerusalém ou o estoque de ouro dos visigodos deixado numa caverna
secreta.
Ele fez uma pausa.
— Diga a palavra tesouro e seres humanos até então racionais
tornam-se no mesmo instante selvagens incontroláveis. Pessoas vieram
para cá, do mundo inteiro, durante séculos, no empenho de deslindar os
mistérios do Languedoc. Já vi isso acontecer muitas vezes. Caçadores de
tesouros usaram dinamite para criar aquelas cavernas lá em cima. Sem
minha permissão, posso acrescentar.
Sinclair apontou para outras cavernas nas encostas e depois
continuou em sua explicação:
— Proteger a natureza do tesouro tornou-se, para os cátaros,
tão importante quanto o próprio tesouro. E por isso que bem poucas
pessoas nesta era moderna sequer sabem que os evangelhos existiram.
Podem imaginar o que seria feito com a nossa terra, se as pessoas
descobrissem a natureza sagrada e de valor inestimável do verdadeiro
tesouro.
Sinclair contou outras lendas locais sobre o tesouro, além de
relatar as histórias mais sórdidas de caçadores que devastaram os
recursos naturais da região. Disse que os nazistas haviam enviado
equipes durante a guerra, num esforço para descobrir artefatos ocultos,
que acreditavam estar enterrados na região. Até onde se sabia, as tropas
de Hitler não foram bem-sucedidas em sua busca, deixando a região de
mãos vazias... e perderam a guerra pouco depois.
Peter mantinha-se retraído e calado, contentando-se em ficar em
segundo plano, enquanto absorvia a vasta gama de informações. Mais
tarde, analisaria os detalhes, a fim de determinar o quanto era
potencialmente verdadeiro e o quanto não passava de romantismo do
Languedoc. Seria fácil se deixar absorver por lendas do Graal e de
manuscritos sagrados perdidos, num lugar tão agreste e místico quanto
aquele. Peter sentiu sua pulsação acelerar à mera idéia da existência
daqueles documentos.
Maureen caminhava ao lado de Sinclair, escutando com o máximo
de atenção. Peter não sabia se era Maureen, a jornalista, ou Maureen, a
mulher solteira, quem absorvia ansiosa cada palavra de Sinclair. Mas sua
atenção era extasiada, totalmente concentrada no carismático escocês.
Ao fazerem uma curva no caminho, no alto de uma pequena colina,
uma torre de pedra surgiu de repente na encosta. Tinha o equivalente a
vários andares de altura, singular e incongruente na paisagem rochosa.
— Parece com a torre de Saunière! — exclamou Maureen.
— Nós a chamamos de “Loucura de Sinclair”. Foi construída por
meu bisavô. E foi mesmo baseada na torre de Saunière. Nossa vista não é
tão espetacular quanto a que se tem em Rennes-le-Château, porque
estamos numa posição mais baixa, mas ainda assim é adorável. Querem
ver?
Maureen olhou para o distraído Peter, a fim de verificar se ele queria
explorar. Mas Peter sacudiu a cabeça em negativa.
— Ficarei esperando aqui embaixo. Podem subir.
Sinclair tirou uma chave do bolso e abriu a porta da torre. Entrou
na frente. Subiram por uma escada íngreme, em espiral. Ele abriu uma
porta no alto e gesticulou para que Maureen saísse na frente.
A vista do território cátaro e dos antigos castelos em ruínas, a
distância, era magnífica. Maureen apreciou-a por um momento, antes de
perguntar a Sinclair:
— Por que ele construiu a torre?
— Pela mesma razão de Saunière. Ter a perspectiva de uma ave.
Eles acreditavam que se podia divisar muitos segredos do alto.
Maureen inclinou-se sobre o parapeito. Deixou escapar um
grunhido de frustração.
— Por que tudo é um enigma? Você prometeu respostas, mas
até agora só suscitou mais indagações.
— Por que não pergunta às vozes em sua cabeça? Ou melhor ainda,
à mulher em suas visões? Foi ela quem trouxe você até aqui.
Maureen estava aturdida.
— Como soube da mulher?
O sorriso de Sinclair era insinuante, mas não presunçoso.
— Você é uma mulher com o sangue Paschal. Era de se esperar.
Conhece as origens do nome de sua família?
— Paschal? Meu pai nasceu na Louisiana, de descendência francesa,
como todo mundo no Bayou.
— Cajun?
Maureen balançou a cabeça em concordância.
— Pelo que sei, ele morreu quando eu era pequena. Não lembro
muita coisa dele.
— Sabe de onde vem a palavra Cajun? Arcadian. Os franceses que
colonizaram a Louisiana eram chamados de arcadianos. No dialeto local,
evoluiu para Cajun. Alguma vez procurou a palavra “paschal” num
dicionário de inglês?
Maureen observava-o atentamente, curiosa, mas cada vez mais
cautelosa.
— Não. Nunca procurei.
— Surpreende-me que alguém com sua capacidade de pesquisa
saiba tão pouco sobre o nome de sua família.
Maureen desviou os olhos ao falar de seu passado.
— Quando meu pai morreu, mamãe me levou para viver com a
família dela na Irlanda. Não tive mais qualquer contato com a família de
meu pai depois disso.
— Mesmo assim, seu pai ou sua mãe deve ter tido uma premonição
de seu futuro. .
— Por que diz isso?
— Seu nome, Maureen. Sabe o que significa?
O vento quente soprou de novo, desmanchando os cabelos ruivos de
Maureen.
— Claro. É a palavra irlandesa para “pequena Maria”. Peter sempre
me chama assim.
Sinclair deu de ombros, como se tivesse acabado de confirmar o que
queria. Olhou para a paisagem do Languedoc. Maureen seguiu seu olhar,
até uma série de rochedos maciços, dispersos por uma extensa planície
coberta pela relva.
O sol do verão incidiu sobre alguma coisa a distância. O reflexo fez
com que Maureen tivesse uma reação de surpresa, como se avistasse algo
na planície. Sinclair parecia muito interessado no que Maureen via.
— O que foi?
— Nada. — Maureen sacudiu a cabeça. — Apenas... o sol nos
meus olhos.
Sinclair não estava disposto a se contentar com essa resposta.
— Tem certeza?
Maureen hesitou por um longo momento, enquanto olhava outra
vez para a planície. Balançou a cabeça, antes de fazer a pergunta que
martelava em sua mente:
— Toda essa conversa sobre o nome de minha família... Quando
vai me mostrar a carta de meu pai?
— Creio que você terá uma noção melhor quando esta noite
terminar.
Maureen voltou a seu suntuoso quarto no castelo, para tomar
banho e trocar de roupa para o jantar. Ao sair do banheiro, notou uma
coisa que não vira ao entrar. Havia na cama um livro de capa dura. Era
um dicionário de inglês, aberto na letra “P”.
A palavra “paschal” fora circulada com tinta vermelha. Maureen leu
a definição.
Paschal [pascal] — Qualquer representação simbólica de Cristo. O
Cordeiro Pascal é o símbolo de Cristo e da Páscoa.
Fui informada por muitos sobre esse homem que era chamado de
Paulo. Ele foi causador de muitos conflitos entre os eleitos. Alguns
percorreram a longa distância desde Roma e do Éfeso para me
consultar a respeito desse homem e suas palavras.
Não cabe a mim julgar, nem posso dizer o que havia em sua
alma, pois não o conheci em carne e osso, não o fitei nos olhos. Mas
posso afirmar, sem qualquer dúvida, que esse homem, Paulo, nunca se
encontrou com Easa. Fiquei consternada ao saber que ele falava em
nome de Easa e ao saber de tudo o que ensinava sobre a luz e a
bondade que constituem O Caminho.
Havia muitas coisas nesse homem que eu acreditava serem
perigosas. Ele havia sido aliado dos mais rigorosos seguidores de João,
todos os homens que menosprezavam Easa. Opunham-se aos
ensinamentos sobre O Caminho que eram pregados por ele. Fui
também informada que era antes conhecido como Saulo de Tarso, e
que costumava perseguir os eleitos. Permaneceu imóvel, enquanto um
jovem seguidor de Easa, chamado Estevão, dono de um coração repleto
de amor, era apedrejado. Há aqueles que dizem que esse Saulo atiçou
a multidão para apedrejar Estevão, que foi o primeiro a morrer, depois
de Easa, por sua fé n'O Caminho. Mas estava longe de ser o último. Por
causa de homens como Saulo de Tarso.
Havia muitos motivos para ter cuidado com ele.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPÍTULO NOVE
Château des Pommes Bleues
23 de junho de 2005
A sala de jantar que Sinclair escolheu para aquela noite foi sua sala
privada, menos formal que o vasto salão de jantar do castelo. A sala era
ornamentada com reproduções das mais famosas obras de Botticelli. As
duas versões das obras-primas conhecidas como Lamentações cobriam a
maior parte de uma parede, mostrando Jesus crucificado na posição da
Pietà, estendido no colo da mãe. Na primeira versão, sua cabeça é
aninhada por uma chorosa Maria Madalena; na segunda, ela segura
seus pés. Três dos quadros mostrando a Madona do mestre da
Renascença, Madona da Romã, Madona do Livro e Madona do
Magnificat, estavam pendurados, em molduras douradas, nas duas
outras paredes.
Maureen e Peter só desviaram a atenção dos quadros quando viram
que um tradicional banquete do Languedoc lhes fora reservado. Terrinas
borbulhantes de cassoulet, o guisado de feijão-branco com carne de
carneiro e de porco, foram trazidas pelas criadas, para ser comido junto
com o pão crocante em cestas na mesa. Um vinho tinto de Corbières
esperava para ser servido.
— Sejam bem-vindos à sala de Botticelli — disse Sinclair, ao
entrar. — Sei que desenvolveram uma afinidade recente pelo nosso
Sandro.
Maureen e Peter fitaram-no em silêncio, surpresos.
— Você tem nos seguido? — perguntou Peter.
— Claro — respondeu Sinclair, como se isso não tivesse a
menor importância. — E devo admitir que senti o maior prazer e fiquei
bastante impressionado quando foram parar nos afrescos do casamento.
Nosso Botticelli era totalmente devotado a Madalena, o que se torna
óbvio em suas obras mais famosas. Como esta.
Sinclair apontou para a réplica de O nascimento de Vênus, de
Botticelli, mostrando a deusa nua a emergir das ondas numa concha.
— Este quadro representa a chegada de Maria Madalena às praias
da França. Ela é mostrada com freqüência como a Deusa do Amor na
pintura da Renascença, o que tem uma forte associação com o planeta
Vênus.
— Já vi esse quadro pelo menos uma centena de vezes —
comentou Maureen. — Não tinha a menor idéia de que era Maria
Madalena.
— Poucas pessoas sabem disso. Nosso Botticelli era um elemento
importante numa organização toscana dedicada a preservar seu nome e
memória, a Confraria de Maria Madalena. Compreenderam os
simbolismos dos afrescos que viram no Louvre?
Maureen hesitou.
— Não tenho certeza.
— Dê um palpite.
— Meu primeiro pensamento foi a astrologia, ou pelo menos a
astronomia. O escorpião representava a constelação de Escorpião,
enquanto o arco do arqueiro representava Sagitário.
— Bravo. Creio que acertou em cheio. Já ouviu falar do Zodíaco do
Languedoc?
— Não. Mas já ouvi falar do Zodíaco de Glastonbury, na Inglaterra.
São similares?
— São, sim. Se puser um mapa das constelações sobre esta região,
vai descobrir que cidades diferentes estão dentro de determinadas
constelações. A mesma coisa acontece em Glastonbury.
Peter expressou sua confusão:
— Desculpem, mas não estou entendendo.
Foi Maureen quem explicou:
— Era um tema comum entre os antigos, começando pelos
egípcios. Os locais sagrados na Terra são escolhidos para refletir o céu.
Por exemplo, as pirâmides de Gizé são dispostas de acordo com a
constelação de Orion. Cidades inteiras foram planejadas para
acompanhar o padrão das estrelas. Estava de acordo com a filosofia
alquimista, “como abaixo, assim acima, e como acima é abaixo”.
— Os afrescos do casamento são um mapa — acrescentou
Sinclair. — Botticelli estava nos dizendo para onde olhar.
— Espere um instante. Está querendo dizer que um dos maiores
pintores da história estava nessa teoria da conspiração de Madalena?
Peter sentia-se cansado e por isso se mostrava muito menos
diplomático que o habitual.
— Para ser mais preciso, padre Healy, estou dizendo que muitos
dos maiores pintores da história estavam envolvidos. Temos de agradecer
a Madalena por muitas coisas, inclusive uma riqueza de tesouros
artísticos dos grandes mestres.
— Como Leonardo Da Vinci? — indagou Maureen.
O rosto de Sinclair se tornou sombrio tão depressa que Maureen
ficou confusa.
— Não! Leonardo não está incluído na lista, por bons motivos.
— Mas ele pintou Maria Madalena em seu quadro da Ultima Ceia.
E há muita especulação popular de que ele era líder de uma sociedade
secreta que reverenciava Madalena e o divino feminino.
Leonardo era o pintor sobre o qual Maureen encontrara inúmeras
referências, enquanto pesquisava sobre Maria Madalena. Ficou agora
chocada e confusa com a inesperada aversão de Sinclair ao assunto.
Sinclair tomou um gole do vinho. Pôs o copo na mesa num
movimento lento e deliberado. Havia um certo nervosismo em sua voz
quando falou:
— Minha cara, não vamos estragar esta noite com uma
conversa sobre esse homem e sua obra. Não encontrará referências a
Leonardo Da Vinci em minha casa, nem nas casas das pessoas nesta
região. Por enquanto, essa explicação terá de ser suficiente. — Ele sorriu,
para aliviar um pouco o clima. — Além do mais, temos muitos outros
pintores maravilhosos entre os quais podemos escolher, Botticelli,
Poussin, Ribera, El Greco, Moreau, Cocteau, Dalí...
— Mas por quê? — perguntou Peter. — Por que todos esses
artistas envolveram-se com o que é essencialmente uma heresia?
— A heresia está nos olhos de quem vê. Mas, para responder à sua
pergunta, esses grandes artistas pintavam para patronos ricos, que os
sustentavam e financiavam suas obras. A maioria desses patronos
nobres era relacionada com a linhagem sagrada, descendentes de
Maria Madalena. Pegue, por exemplo, os afrescos que Botticelli fez para o
casamento. O noivo, Lorenzo Tornabuoni, era de um ramo da linhagem
sagrada. A noiva, Giovanna Albizzi, era de um ramo ainda mais
importante. Vai notar que ela usa uma capa vermelha, para simbolizar sua
ligação com a linhagem de Madalena. Foi um casamento muito
importante, porque uniu duas poderosas famílias dinásticas.
Nem Maureen nem Peter disseram qualquer coisa, esperando para
descobrir que outros detalhes Sinclair queria partilhar.
— Até que se especulou que todos esses artistas eram também
da linhagem e que seu fabuloso talento derivava da genética divina. Isso
é bem possível, até provável no caso de Botticelli. E temos certeza de que
é verdade em relação a vários mestres franceses, como George de la Tour,
que pintou sua musa e ancestral muitas vezes.
Maureen ficou exultante ao reconhecer a referência.
— Vi um dos quadros de De la Tour durante a minha
pesquisa. Madalena Penitente está em Los Angeles.
Ela sentira-se comovida com o quadro, que fazia um uso excepcional
de luz e sombras. Maria Madalena, a mão no crânio da penitência, olha
para a chama bruxuleante de uma vela, refletida num espelho.
— Você viu uma das Madalenas Penitentes — explicou Sinclair. —
Ele pintou muitas, com sutis variações. Várias desapareceram. Uma foi
roubada de um museu no tempo do meu avô.
— Como sabe que George de la Tour era relacionado com a linhagem?
— O nome é a primeira indicação. De la Tour significa “da torre”. E
tudo um jogo de palavras. O nome Magdala vem da palavra migdal, que
significa torre. Portanto ela é literalmente Maria do lugar da torre. Como
você já sabe, alguns alegam que Madalena é um título, significando que
Maria era a torre ou a líder de sua tribo. Quando os cátaros foram
perseguidos, os sobreviventes se viram obrigados a mudar de nome, para
proteger suas identidades, já que os nomes cátaros eram bastante
reconhecíveis. Esconderam sua herança à plena vista, usando nomes
como “de la Tour” e... — Sinclair fez uma pausa, para aumentar o efeito
dramático — “de Paschal”.
Maureen arregalou os olhos.
— De Paschal?
— Isso mesmo. O nome Paschal foi usado para proteger uma das
mais nobres famílias de cátaros. Outra vez, escondido à plena vista.
Chamaram-se de Paschal em francês e di Pasquale em italiano.
Crianças do Cordeiro Pascal.
Uma pausa e Sinclair acrescentou:
— E sei também que George de la Tour era da linhagem porque
era Gão-Mestre de uma organização dedicada a preservar as tradições
do cristianismo puro, conforme foi trazido para a Europa por Maria
Madalena.
Foi a vez de Peter perguntar:
— E que organização é essa?
Sinclair gesticulou para que olhassem ao redor. — A Sociedade das
Maçãs Azuis. Vocês estão jantando na sede de uma organização que
existe nesta terra há mais de mil anos.
Sinclair recusou-se a falar mais sobre a sociedade, descartando o
assunto com a eficiência de um manipulador magistral. Passaram o resto
do jantar falando sobre o dia em Rennes-le-Château e aprendendo mais
sobre o enigmático sacerdote chamado Berenger Saunière. Sinclair
tinha o maior orgulho de seu homônimo.
— O abbé batizou meu avô naquela igreja — informou Sinclair. —
Não é de admirar que o velho Alistair fosse tão dedicado a esta terra.
— E é evidente que ele passou essa dedicação para você —
comentou Maureen.
— É isso mesmo. Quando resolveu me dar meu nome em
homenagem a Berenger Saunière, meu avô impôs uma bênção em minha
cabeça. Meu pai protestou, mas Alistair era feito de aço e ninguém podia
se opor a ele por muito tempo, e certamente não meu pai.
Sinclair não deu mais explicações. Maureen e Peter não insistiram,
pois era óbvio que se tratava de uma questão íntima e sensível. O jantar
encerrado, Sinclair saiu com os dois da sala.
— Venham comigo. Quero voltar a Botticelli e à maravilhosa
descoberta que vocês fizeram no Louvre. Por aqui.
Ele levou-os para uma sala incongruentemente moderna, com os
mais novos equipamentos de home theatre e vários computadores. Roland
postava-se na frente de um monitor e ofereceu um cordial “bonsoir”,
quando eles entraram. O mordomo francês bateu em algumas teclas e
depois inclinou-se para apertar um botão num painel. Uma tela de pro-
jeção desceu na parede no outro lado.
Um mapa da região apareceu na tela. Sinclair apontou diversos
locais.
— Devem notar aldeias familiares. Rennes-le-Château é aqui. E
este lugar é Arques. Onde fica a tumba de Poussin que vocês viram
ontem.
— E tudo isso está dentro de sua propriedade? — perguntou
Maureen.
Sinclair acenou com a cabeça em confirmação.
— Temos certeza de que um dos mais preciosos tesouros da história
humana está nesta área.
Ele gesticulou para Roland, que baixou uma grade das constelações
para se sobrepor ao mapa da região. As constelações estavam indicadas.
Escorpião ficava por cima da aldeia de Rennes-le-Château. Arques
situava-se entre Escorpião e Sagitário.
— Botticelli desenhou um mapa para nós. Foi o seu presente de
casamento para o casal de nobres. Na verdade, o que ele criou era tão
perigosamente acurado que teve de ser destruído o mais depressa
possível. Os afrescos estavam em paredes que eram parte da propriedade
Tornabuoni. Por isso, eles não podiam demoli-las. Em vez disso, passaram
tinta branca por cima. Os afrescos permaneceram ocultos até o final do
século XIX, quando foram descobertos por acaso.
Maureen começou a compreender a situação.
— É por isso que você vive aqui, em Arques. Acha que o evangelho de
Maria Madalena está escondido aqui?
— Tenho certeza. E agora vocês podem perceber que Botticelli
também sabia disso. Olhem de novo para os afrescos. Roland, por favor.
Roland bateu em várias teclas, o que projetou na tela os afrescos
expostos no Louvre. Sinclair apontou os elementos.
— A mulher com o escorpião está aqui. Deslocando-se para a
direita,há uma mulher que não segura qualquer tipo de símbolo.
Sentada por cima delas, num trono, está a mulher com o arco. Mas
observem atentamente. Esta mulher veste-se de vermelho, a cor de
Maria Madalena, e oferece o sinal de bênção sobre a cabeça da mulher
sentada entre ela e a mulher do escorpião. Este é o '“X” que marca o
local no mapa, entre Escorpião e Sagitário. Sandro Botticelli conhecia a
localização do tesouro, assim como Nicholas Poussin. E foram bastante
generosos para nos deixar as pistas para encontrá-lo.
Isso não fazia sentido para Peter.
— Mas por que esses pintores fizeram mapas de exposição
pública para revelar a localização de um tesouro de valor inestimável?
— Porque esse tesouro tem de ser conquistado. Não pode ser
descoberto por qualquer pessoa. Podemos ficar de pé sobre o próprio local
em que Madalena escondeu o seu tesouro, em todos os dias de nossa
vida, mas nunca o veremos, até que ela decida mostrá-lo. Foi
ostensivamente escondido por processos alquímicos, uma tranca que só
pode ser aberta por... energias apropriadas, digamos assim. A lenda
afirma que o tesouro se revelará na ocasião apropriada, quando a pessoa
escolhida pela própria Madalena vier procurá-lo. Botticelli e Poussin
esperavam que fosse descoberto em seu tempo e tentaram ajudar no
processo.
Sinclair olhou para a tela, enquanto continuava:
— No caso de Botticelli, acreditava-se que Giovanna Albizzi tinha o
potencial para descobrir o tesouro. Por todos os relatos, era excepcional
mente virtuosa e espiritualizada, além de inteligente e instruída. No
retrato dela que pintou, Ghirlandaio incluiu um epigrama que dizia: “Se
a arte pudesse mostrar caráter e inteligência, não haveria quadro mais
belo no mundo.” Foi lamentável, mas não aconteceu o que se previa. A
pobre e adorável Giovanna morreu de parto, apenas dois anos depois de
seu casamento.
Maureen absorvia tudo, tentando processar a história italiana com
o que vira antes em Rennes-le-Château. Um pensamento ocorreu-lhe:
— Acha que Saunière pode ter encontrado o evangelho de
Madalena? Foi isso que o tornou tão rico?
— Não, absolutamente não. — Sinclair foi enfático nesse ponto. —
Mas não resta a menor dúvida de que Saunière procurava o tesouro. A
lenda local diz que ele costumava andar por quilômetros nesta área,
examinando rochedos e cavernas, à procura de pistas.
— Como pode ter tanta certeza de que ele não encontrou? —
indagou Peter.
— Porque minha família saberia se ele tivesse encontrado. Além do
mais, só pode ser encontrado por uma mulher... uma mulher da
linhagem, escolhida pela própria Madalena.
Peter não podia mais reprimir suas suspeitas.
— E você acha que Maureen é a escolhida.
Sinclair pensou por um momento, antes de responder, com a
franqueza habitual:
— Admiro a maneira como vai direto ao ponto, padre. E para
responder do mesmo modo... Sim, acho que Maureen é a escolhida.
Ninguém jamais conseguiu, e milhares já tentaram. Sabemos que o
tesouro está aqui, mas até mesmo os mais intrépidos fracassaram em
suas tentativas de descobri-lo. Inclusive eu.
Quando ele se virou para Maureen, sua expressão e o tom de sua
voz se tornaram mais suaves:
— Espero que isso não seja assustador para você, minha cara. Sei
que tudo deve parecer estranho, até mesmo chocante. Tudo o que peço é
que me escute. Nunca lhe será pedido para fazer qualquer coisa
contra a sua vontade. Sua presença aqui é totalmente voluntária e
espero que opte por ficar.
Maureen balançou a cabeça, sem dizer nada. Não sabia o que
dizer, como reagir a uma revelação como aquela. Nem mesmo sabia
como se sentia a respeito. Era uma honra ser considerada daquela
maneirai? Um privilégio? Ou apenas assustador? Talvez não passasse
de um peão de um excêntrico e seu culto. Parecia impossível que tudo
aquilo pudesse ser não apenas verdade, mas também relacionado
com ela. Por outro lado, havia alguma coisa na atitude de Sinclair
que, em última análise, parecia-lhe sincera. Apesar de todas as suas
opiniões radicais e excentricidades, Maureen não o considerava
desequilibrado. Finalmente, ela respondeu com uma única palavra:
— Continue.
Peter pressionou por mais detalhes:
— O que o faz pensar que Maureen seja a escolhida?
Sinclair acenou com a cabeça para Roland.
— Primavera, por favor.
Roland apertou algumas teclas, até que apareceu na tela uma
versão da obra-prima de Botticelli, Primavera, em cores gloriosas.
— Mais do nosso Botticelli. Conhecem o quadro, é claro.
— Conheço.
A resposta de Maureen foi quase inaudível. Ela não sabia para
onde aquilo levava, mas sentia o estômago todo embrulhado.
— É um dos quadros mais famosos do mundo — respondeu
Peter.
— Alegoria da primavera. Poucas pessoas sabem da verdade
por trás deste quadro, mas outra vez Botticelli prestou um tributo à
Senhora. A figura central aqui é a Maria Madalena grávida...
observem a capa vermelha. Sabem por que a nossa Maria representa
a primavera?
Peter tentava acompanhar o pensamento de Sinclair da
melhor forma possível.
— Por causa da Páscoa?
— Porque a primeira Páscoa caiu no equinócio vernal. Cristo foi
crucificado a 20 de março e ascendeu a 22 de março. Uma lenda
esotérica desta região diz que Madalena também nasceu no dia 22
de março. O primeiro grau do primeiro signo do zodíaco, Áries, o
carneiro. É a data de novos começos e da ressurreição, com a bênção
adicional do número 22, um número espiritual, o número do divino
feminino. Essa data significa alguma coisa para você, minha cara
Maureen?
Peter já registrara a ligação e virou o rosto para verificar como
Maureen reagia à revelação. Ela se manteve calada por um longo
momento. Quando a resposta veio, a voz era rouca, um mero sussurro:
— É o meu aniversário.
Sinclair olhou para Peter.
— Nascida no dia da ressurreição, nascida na linhagem da
Pastora. Nascida no signo do carneiro, no primeiro dia da primavera e do
renascimento.
Ele fez uma pausa, antes de arrematar para Maureen:
— Minha cara, você é o Cordeiro Pascal.
Maureen pediu licença e se retirou no instante seguinte. Precisava
de tempo para pensar e processar todas as informações e as implicações
do que Sinclair dissera. Em seu quarto, recostou a cabeça e fechou os
olhos.
A batida na porta era inevitável, mas veio mais cedo do que ela
esperava. Ainda bem que era a voz de Peter no outro lado.
— Maureen, sou eu. Posso entrar?
Maureen levantou-se da cama e atravessou o quarto para abrir a
porta.
— Como se sente?
— Sufocada. Entre.
Maureen gesticulou para que ele se sentasse em uma das
confortáveis poltronas de couro vermelho que ladeavam a lareira. Peter
sacudiu a cabeça em negativa. Estava tenso demais para se acomodar
numa poltrona.
— Escute bem o que vou dizer, Maureen. Quero que saia daqui
antes que a situação se torne ainda mais estranha.
Maureen suspirou e sentou-se numa poltrona.
— Mas estou começando a obter as respostas que vim procurar...
que nós viemos procurar.
— Não posso dizer que gosto das respostas de Sinclair. E acho
que você corre um grande risco aqui.
— Da parte de Sinclair?
— Isso mesmo.
Maureen assumiu uma expressão irritada:
— Ora, por favor. Por que ele haveria de me fazer qualquer mal se
me considera a resposta para seu objetivo durante toda a vida?
— Porque seu objetivo é uma ilusão, envolta por séculos de
superstição e lenda. E muito perigoso, Maureen. Estamos falando de
cultos religiosos. Fanáticos. O que preocupa aqui é o que ele fará com você
depois que compreender que não é a salvadora dele.
Maureen permaneceu em silêncio por um momento. Sua pergunta
seguinte foi feita com uma calma surpreendente:
— Como sabe que não sou?
Peter ficou atordoado com a pergunta.
— Está aceitando tudo isso?
— Pode encontrar explicações para todas as coincidências, Pete? As
vozes, as visões? Porque fora a explicação de Sinclair, eu não consigo.
O tom de Peter era firme, como se ele estivesse falando com uma
criança:
— Vamos partir pela manhã. Podemos pegar um vôo de Toulouse
para Paris. Ou podemos voar de Carcassonne para Londres.
Maureen não cedeu.
— Não vou embora, Pete. Não sairei daqui enquanto não tiver as
respostas que vim procurar.
A escalada da agitação começava a dominar Peter.
— Maureen, jurei para sua mãe, quando ela estava morrendo,
que sempre cuidaria de você, que não deixaria o que aconteceu com seu
pai...
Peter parou de falar de repente, mas o dano já fora causado.
Maureen dava a impressão de que levara uma bofetada. Peter tratou de
voltar atrás no que tinha dito.
— Sinto muito, Maureen. Eu...
Ela interrompeu-o:
— Meu pai. Obrigada por me lembrar de mais um motivo para
minha permanência aqui. Descobrir o que Sinclair sabe sobre meu pai.
Passei a maior parte da minha vida especulando sobre ele, enquanto
minha mãe se limitava a dizer que não passava de um criminoso insano.
Suponho que ela lhe tenha dito isso também. Mas pelas lembranças
que tenho dele, por mais vagas que sejam, sei que isso não é verdade.
Se alguém pode me oferecer um retrato mais amplo de meu pai, farei tudo
o que for necessário para vê-lo. Devo isso a ele. E a mim mesma.
Peter fez menção de dizer alguma coisa, mas mudou de idéia. Em vez
disso, virou-se para deixar o quarto, com uma expressão atormentada.
Maureen observou-o por um momento, antes de chamá-lo de volta:
— Por favor, tente ser paciente comigo. Preciso descobrir tudo.
Como poderemos saber se as visões significam alguma coisa se não
seguirmos isso até o fim? E se... apenas se... até mesmo uma fração
do que Sinclair disse esta noite for verdade? Preciso encontrar a
resposta para essa pergunta, Pete. Se partir agora, tenho certeza de
que me arrependerei até o dia da minha morte e não quero viver
assim. Passei toda a minha vida fugindo... fugindo de tudo. Quando
criança, fugi da Louisiana... e fugi para tão longe e tão depressa
que não me lembro de nada. Depois que minha mãe morreu, fugi da
Irlanda e voltei para os Estados Unidos. Fugi para uma cidade em
que não havia memórias, para um lugar em que todo mundo se
torna diferente do que era ao nascer. Los Angeles é uma cidade em
que todos são como eu, em que todos fugiram do lugar em que se
encontravam antes. Mas eu não quero mais fugir.
Ela atravessou o quarto ao seu encontro, frente a frente.
— Agora, pela primeira vez na vida, sinto que estou
correndo ao encontro de alguma coisa. Reconheço que é
assustador, mas não posso parar. E prefiro não enfrentar isso sem
você. Mas posso... e farei... se você decidir partir pela manhã.
Peter ouviu calado o que Maureen tinha a dizer. Parado com a
mão na maçaneta da porta, pensou por um momento e disse, antes
de sair:
— Não vou para lugar algum. Mas, por favor, não me faça me
arrepender dessa decisão pelo resto da minha vida... ou da sua.
Peter voltou para seu quarto e passou o resto da noite rezando.
Descobriu-se a refletir durante muito tempo sobre os ensinamentos
de Santo Inácio de Loiola, o fundador da ordem dos jesuítas. Um texto em
particular, escrito pelo santo em 1556, destacou-se em sua mente:
Já que o demônio demonstrava grande habilidade em tentar os
homens para a perdição, a mesma habilidade devia ser demonstrada para
salvá-los. O demônio estudava a natureza de cada homem, captava as
características de sua alma, ajustava-se a elas e se insinuava pouco a pouco
na confiança de sua vítima... sugerindo esplendores para os ambiciosos,
ganhos para os gananciosos, prazer para os sensuais e uma falsa
aparência de devoção para os devotos... e um conquistador de almas devia
agir da mesma maneira cautelosa e hábil.
O sono lhe escapou, enquanto as palavras de Santo Inácio
martelavam em seu coração e mente.
Roma
3 de junho de 2005
O bispo Magnus O'Connor limpou a gota de suor da testa. A sala de
reunião no Vaticano tinha ar-condicionado, mas isso não o ajudava no
momento. Sentava-se no meio de uma enorme mesa oval, cercado por
autoridades de sua Igreja. As pastas vermelhas que entregara no dia
anterior estavam nas mãos do carrancudo e intimidador cardeal DeCaro,
que agia como um interrogador.
— E como sabe que as fotos são autênticas?
O cardeal pôs as pastas em cima da mesa, mas não as abriu ainda
para mostrar o conteúdo aos outros.
— Eu estava presente quando foram tiradas. — Magnus tinha de
fazer um grande esforço para dominar a gagueira, que se revelava em
situações estressantes. — O problema me foi encaminhado pelo padre da
paróquia.
O cardeal DeCaro tirou agora uma série de fotos 8 x 10 de uma
pasta. Haviam sido batidas em preto e branco e estavam amareladas
pelo tempo, mas isso não diminuiu o impacto que as imagens
causaram quando as fotos circularam ao redor da mesa.
A primeira a ser mostrada, marcada com a etiqueta de PROVA I, era
uma foto macabra, mostrando os braços de um homem. Lado a lado, as
palmas viradas para cima, exibiam enormes ferimentos sangrentos nos
pulsos.
A PROVA II mostrava os pés do homem, ambos com horríveis
buracos sangrentos.
A terceira foto, PROVA III, mostrava um homem sem camisa. Um
talho longo e irregular, sangrando, destacava-se na parte inferior direita
do tórax.
O cardeal esperou que as fotos chocantes terminassem de circular
pela mesa. Guardou-as de volta no envelope antes de falar. Os rostos em
torno da mesa eram solenes quando ele confirmou o que todos já
desconfiavam:
— Acabamos de ver estigmas autenticados. Os cinco exatos
pontos, incluindo os pulsos.
Château des Pommes Bleues
24 de junho de 2005
Sinclair não estava na manhã seguinte. Maureen e Peter foram
recebidos por Roland, que os levou até a sala do café da manhã. Peter não
tinha certeza de se a extraordinária atenção que recebiam no castelo era
um sinal de impecável hospitalidade ou algo mais próximo da prisão
domiciliar. Obviamente, Sinclair tomava todo o cuidado para não deixar
Maureen e Peter sozinhos.
— Monsieur Sinclair pediu-me para assegurar que tenham à sua
disposição belos trajes para o baile desta noite. Está ocupado com os
preparativos finais para a festa, mas pôs o motorista à disposição, se
quiserem visitar os arredores hoje. Ele achou que poderiam gostar de
conhecer os castelos cátaros na região. Terei o maior prazer em guiá-los.
Maureen e Peter aceitaram a oferta. Conheceram vários locais
importantes da região, levados pelo gigante Roland, que fazia
excelentes comentários. Roland mostrou as ruínas de outrora, poderosos
baluartes cátaros. Descreveu como os ricos condes de Toulouse haviam
rivalizado com os reis da França em termos de poder e privilégio. Os
nobres de Toulouse eram todos cátaros ou pelo menos simpatizantes
dos ideais cátaros. Fora uma das razões para que as brutais cruzadas
contra os Puros recebessem o apoio do rei francês, que pudera confiscar o
que antes pertencia a Toulouse. Com isso, aumentara suas terras e sua
fortuna, ao mesmo tempo em que diminuía a influência dos rivais.
Roland falou com orgulho de sua terra e do dialeto local, chamado
“Oc”, que dera seu nome à região. A “Língua de Oc” era “Languedoc” em
francês. Quando Peter referiu-se a ele como francês, em determinado
momento da conversa, Roland rebateu no mesmo instante. Ele era um
occitano.
Roland relatou em detalhes as numerosas atrocidades que
devastaram sua terra e seu povo no século XIII. Era um apaixonado pela
história do lugar.
— Muitos estrangeiros nem sequer sabem da existência dos
cátaros. Ou se sabem, pensam que é um culto pequeno e desimportante,
no meio das montanhas. Não compreendem que os cátaros foram a raça
e a cultura dominantes em uma grande e próspera área da Europa. O que
aconteceu aqui foi nada menos do que genocídio. Quase um milhão de
pessoas foram massacradas pelas tropas papais.
Ele fitou Peter com uma expressão complacente.
— Não tenho ressentimentos contra o clero moderno pelos
pecados da Igreja medieval, abbé Healy. É um padre porque tem
vocação. Qualquer um pode perceber isso.
Roland conduziu-os em silêncio depois disso, enquanto Maureen e
Peter admiravam os enormes castelos construídos em picos escarpados
por quase mil anos. Aquelas fortalezas eram essencialmente
impenetráveis, considerando a localização nas montanhas, mas
também eram insondáveis em termos de arquitetura. Especularam sobre
os recursos de uma cultura que era capaz de construir aqueles imensas
fortificações num terreno tão inóspito, sem o benefício da tecnologia
moderna.
Durante o almoço, na aldeia de Limoux, Maureen sentiu-se
bastante à vontade na companhia de Roland para perguntar sobre seu
relacionamento com Sinclair. Estavam sentados num restaurante à
margem do rio Aude, que dava nome à região. O corpulento criado era
surpreendentemente simpático e afável, até mesmo divertido,
contradizendo sua aparência intimidadora.
— Fui criado no Château des Pommes Bleues, mademoiselle.
Minha mãe morreu quando eu era bebê. Meu pai trabalhou para
monsieur Alistair e para monsieur Berenger. Morávamos na propriedade.
Quando meu pai morreu, insisti em tomar seu lugar no castelo. E o meu
lar e os Sinclair são a minha família.
A imponente estatura de Roland parecia suavizar enquanto ele
falava da perda dos pais e da lealdade à família Sinclair.
— Deve ter sido muito difícil para você perder pai e mãe —
comentou Maureen, simpática.
Roland ficou tenso, empertigado, ao responder:
— Foi, sim, mademoiselle Paschal. Como já expliquei, minha mãe
morreu quando eu era bebê, de uma doença que não podia ser controla
da. Aceitei como a vontade de Deus. Mas a morte de meu pai foi diferente...
ele foi assassinado de maneira brutal, há poucos anos.
Maureen deixou escapar uma exclamação aturdida.
— O Deus! Sinto muito, Roland.
Ela não queria pressioná-lo para arrancar detalhes. Peter, no
entanto, achou que a necessidade de saber superava sua propensão
normal para a sensibilidade e por isso fez a pergunta:
— O que aconteceu?
Roland levantou-se, para sinalizar o fim da refeição e da conversa.
— Há amargas rivalidades em nossa terra, abbé Healy. Projetam-se
ao longo de muitos anos e não admitem a voz da razão. Esta região... é
inundada pela luz mais bela. Mas essa luz às vezes atrai as trevas mais
terríveis. Lutamos contra as trevas da melhor forma possível. Mas, como
aconteceu com os nossos ancestrais, nem sempre vencemos.
Ele respirou fundo:
— Mas uma coisa é certa. Nenhuma tentativa de genocídio jamais
teve êxito aqui. Ainda somos cátaros, sempre fomos cátaros e sempre
seremos cátaros. Podemos praticar nossa fé de uma forma discreta, em
particular, mas é hoje uma parte tão grande de nossas vidas quanto
sempre foi. Não deixem que qualquer livro ou historiador diga o contrário.
Quando Maureen voltou ao castelo, naquela tarde, uma das
camareiras a esperava no quarto.
— O cabeleireiro chegará em breve, mademoiselle. E seu vestido já foi
entregue. Se há mais alguma coisa que eu possa fazer...
— Não há nada. Merci.
Depois que a camareira se retirou, Maureen fechou a porta. Queria
descansar antes da festa. Fora um lindo dia, em que pudera contemplar
algumas das vistas mais maravilhosas que já conhecera em suas viagens.
Mas também sentia-se esgotada. E mais do que um pouco apreensiva
com as enigmáticas revelações de Roland sobre o assassinato de seu pai.
Avistou um saco de roupa enorme, estendido na cama, quando
atravessou o quarto. Presumiu que era o traje para o baile. Puxou o zíper
do saco de plástico e tirou o vestido. Levou um momento para
compreender o que era e soltou um grito de espanto quando veio o
reconhecimento.
Levantou o vestido na frente do quadro de Ribera e viu que era igual
ao traje de saia vermelha que Maria Madalena usava na interpretação do
pintor espanhol.
Peter não sentia a menor atração por usar uma fantasia. Não
planejara comparecer ao baile e achava que sua presença seria imprópria.
Mas, com escalada das intrigas de Sinclair — e com a reação de Maureen —
, ele estava determinado a mantê-la dentro de seu campo de visão. Isso
significava usar a túnica rebuscada e as perneiras do século XIII que lhe
haviam sido reservadas.
— É demais! — resmungou Peter, enquanto tirava o traje do saco
de plástico e tentava descobrir como vesti-lo.
Peter bateu na porta de Maureen, ajustando seu traje, meio
desajeitado. Ficou esperando no corredor. Poderia dispensar o chapéu. Era
pesado e assentava em sua cabeça de uma maneira incômoda, um
lembrete constante de que parecia ridículo.
A porta foi aberta. Uma Maureen transformada saiu do quarto. O
traje do quadro de Ribera assentava-lhe como se tivesse sido feito para
ela. A renda da blusa que deixava os ombros à mostra terminava num mar
do mais rico tafetá vermelho. Os longos cabelos ruivos haviam sido
arrumados de um jeito que lhes acrescentava plenitude e volume, caindo
em torno dos ombros como uma cortina lustrosa. Mas o que mais
impressionou Peter foi o ar de confiança e serenidade que Maureen
irradiava. Era como se ela tivesse assumido um papel a que se ajustava
com absoluta perfeição.
— O que você acha? Está demais?
— Pode ter certeza de que sim. Mas você parece... uma visão.
— Uma interessante escolha das palavras. Foi intencional?
Peter piscou e acenou com a cabeça para confirmar, feliz por
estarem gracejando de novo, pelo fato do relacionamento não ter sido
abalado pela discussão da noite anterior. A excursão pelo extraordinário
território cátaro fora restauradora para ambos.
Peter escoltou-a pelos sinuosos corredores do castelo, a caminho do
salão de baile, numa ala distante. Maureen riu quando ele se queixou de
seu traje.
— Você parece elegante e galante — assegurou ela.
— Pois eu me sinto um rematado idiota.
Carcassonne
24 de junho de 2005
Numa antiga igreja de pedra, fora da cidade murada de Carcassonne,
estavam sendo feitos os preparativos para um evento de outro tipo. Os
membros da Guilda dos Justos estavam reunidos ali em absoluta
solenidade. Mais de duzentos homens, em túnicas formais, compareciam
ao serviço, usando as grossas cordas vermelhas de sua ordem em torno
do pescoço.
Não havia mulheres no grupo. Nenhuma fêmea jamais profanara os
salões ou as capelas particulares da Guilda. Placas gravadas, citando a
opinião de São Paulo sobre as mulheres, destacavam-se em todos os
pontos de encontro da Guilda. A primeira era um versículo de Coríntios:
Façam com que suas mulheres mantenham silêncio nas igrejas;
pois não lhes é permitido falar. São obrigadas a permanecer em
obediência, como também determina a lei. E se quiserem aprender
alguma coisa, que perguntem a seus maridos em casa. E lamentável
que as mulheres falem na igreja.
A segunda era de Timóteo:
Não se permita que uma mulher ensine, nem que usurpe a
autoridade para ensinar, nem que usurpe a autoridade sobre o homem,
pois deve se manter em silêncio.
Mas embora a Guilda reverenciasse essas palavras de Paulo, ele não
era seu Messias..
As relíquias de seu mestre ancestral estavam expostas em
almofadas de veludo, em cima do altar: o crânio faiscava à luz das velas,
assim como o resto de osso do dedo indicador direito, removidos do
relicário para aquela exposição anual. Depois do serviço formal e da
apresentação do Mestre da Guilda, cada membro teria permissão para
tocar nas relíquias. Era um privilégio normalmente reservado apenas ao
conselho da Guilda, depois do juramento de sangue para defender os
ensinamentos dos Justos. Mas o dia da festa anual era uma
peregrinação de membros da Guilda do mundo inteiro. Naquela noite,
todos os fiéis podiam ter a honra de tocar nas relíquias.
O líder subiu ao púlpito para iniciar seu discurso de introdução. O
sotaque inglês aristocrático de John Simon Cromwell ressoou dentro das
antigas paredes de pedra da igreja.
— Meus irmãos, esta noite, não muito longe daqui, a prole da
prostituta e o padre ímpio se reuniram. Celebram sua impureza
hereditária na devassidão. Decidiram intencionalmente profanar
esta noite sagrada, ao ostentarem sua lascívia e nos mostrarem sua
força.
“Mas não permitiremos que nos intimidem. Desfecharemos
nossa vingança muito em breve, uma vingança que esperou dois mil
anos para alcançar a plena luz da justiça. Abatemos seu iníquo
pastor antes e abateremos seus descendentes agora. Destruiremos
o Grão-Mestre e seus fantoches. Eliminaremos a mulher que eles
chamam de sua Pastora e cuidaremos para que essa rainha das
meretrizes seja lançada no inferno, antes que possa espalhar
mentiras sobre a bruxa de que descende.
“Fazemos isso em nome do Primeiro e Único Verdadeiro
Messias, pois ele me falou e esse é o seu desejo. Fazemos isso em
nome do Mestre da Justiça e com as bênçãos do Senhor nosso
Deus.”
Cromwell iniciou a procissão diante das relíquias. Tocou
primeiro no crânio e depois no osso do dedo, reverente. Pronunciou em
voz alta ao fazê-lo:
— Neca eos omnes.
Matem todos.
Aqueles que me falaram sobre Paulo disseram que ele se
manifestou contra o papel das mulheres n'O Caminho. É a prova mais
certa de que esse homem não pode ter conhecido a verdade dos
ensinamentos de Easa nem a essência do próprio Easa. A imensa
reverência de Easa pelas mulheres é bem conhecida dos eleitos e tenho,
eu própria, servido como prova disso.
Ninguém pode mudar esse fato, a menos que me apaguem por
completo da história.
Sou ainda informada de que esse Paulo reverenciava a maneira
como Easa morreu, não as palavras que Easa disse. Isso me entristece
como uma grande falha de compreensão.
Esse homem Paulo foi prisioneiro de Nero durante um longo
tempo. Sou informada de que ele escreveu muitas cartas para seus
fiéis, apresentando ensinamentos que alegava serem de Easa. Mas
aqueles que me procuraram sempre disseram que ele não falava em
defesa d'O Caminho, que seus ensinamentos eram falsos.
Lamento por qualquer homem que foi torturado e assassinado no
tenebroso reinado do homem chamado Nero. E, no entanto, isso me
enche de medo. Receio que esse homem Paulo seja considerado um
grande mártir d'O Caminho e que muitos acreditem que seus falsos
ensinamentos eram de Easa.
Não eram.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPITULO DEZ
Le Château des Pommes Bleues
24 de junho de 2005
Maureen e Peter seguiram o som melodioso dos madrigais através
dos corredores. Ao se aproximarem do salão de baile, tiveram o primeiro
vislumbre da suntuosa e requintada festa de Sinclair.
Maureen experimentou a sensação de que fora transportada para
outra época. O vasto salão de baile estava ornamentado com tapeçarias
de veludo e com milhares de velas e flores. Criados de libré e peruca
circulavam pelo salão, silenciosos, discretos e eficientes, oferecendo comida
e bebida, limpando com cuidado e discrição as sujeiras deixadas pelos
convidados mais turbulentos.
Mas eram os próprios convidados que se revelavam as jóias mais
preciosas daquela caixa de veludo. As fantasias eram elaboradas e
extravagantes, trajes de época através de várias eras da história francesa
e occitana ou representando elementos das tradições misteriosas. O
convite para o baile de Sinclair era cobiçado pela elite esotérica do mundo
inteiro. Os felizes contemplados empenhavam muito tempo e dinheiro
em projetar e fazer um traje apropriado. Havia um concurso para a
fantasia mais original, a mais bonita e a mais engraçada. Sinclair era o
único juiz e júri e os prêmios concedidos muitas vezes equivaliam a uma
pequena fortuna... e ainda mais importante, uma vitória garantia um
cobiçado lugar na lista dos convidados para o baile do ano seguinte.
A música, o riso, o retinir dos copos de cristal, tudo parou
abruptamente quando Maureen e Peter entraram no salão.
Um homem de libré soprou algumas notas formais numa
trombeta. Roland adiantou-se, numa túnica cátara simples, para
anunciar os recém-chegados. Maureen ficou surpresa ao ver Roland
vestido como um convidado naquela noite, em vez de estar usando o
uniforme de empregado. Mas não teve tempo para pensar a respeito,
arrebatada pela surpresa na chegada.
— É meu privilégio anunciar nossos convidados de honra,
mademoiselle Maureen de Paschal e abbé Peter Healy.
A multidão ficou paralisada, como bonecos de cera, todos olhando
aturdidos para os dois. Roland apressou-se em gesticular para que a
banda recomeçasse a tocar, a fim de superar o constrangimento
momentâneo. Depois, estendeu o braço para Maureen e levou-a pelo
salão de baile. O espanto persistiu, mas não tão óbvio. Os mais hábeis no
decoro trataram de disfarçar o choque com um desinteresse simulado.
— Não se importe com eles, mademoiselle — disse Roland, incisivo.
— É um rosto novo e um novo mistério para ser descoberto. Mas vão
aceitá-la num instante. Não têm opção.
Maureen também não teve tempo de pensar no significado das
palavras de Roland, pois ele levou-a para a pista de dança. Peter ficou
para trás, observando com um crescente interesse.
— Reenie!
O sotaque americano de Tamara Wisdom era incompatível com
aquele cenário europeu. Ela atravessou o salão de baile até o lugar em que
Maureen acabara de completar uma dança com Roland. Tammy parecia
bastante exótica, num traje de cigana. Os cabelos extraordinários
estavam pintados de preto lustroso e desciam até a cintura. Argolas de
ouro cobriam seus braços. Roland piscou para Tamara — como se estivesse
flertando, Maureen notou —, antes de fazer uma reverência para
Maureen e pedir licença para se afastar.
Maureen abraçou Tammy, exultante por encontrar outro rosto
familiar naquela terra cada vez mais estranha.
— Mas você está deslumbrante! Está vestida de quê?
Tammy girou, graciosa, os cabelos pretos esvoaçando.
— Sara, a Egípcia, também conhecida como a Rainha Cigana. Ela
era a serva de Maria Madalena.
Tammy levantou o tafetá vermelho da saia de Maureen com um
dedo.
— E não preciso perguntar quem você é. Foi Berry quem lhe deu
esse traje?
— Berry?
Tammy riu.
— É assim que os amigos chamam Sinclair.
— Não sabia que vocês dois eram tão íntimos.
Maureen esperava ter evitado que o desapontamento
transparecesse em sua voz. Mas Tammy não teve tempo para responder.
Foram interrompidas por uma jovem, não muito mais do que uma
adolescente, vestida com uma túnica cátara simples. Trazia na mão um
único copo-de-leite e entregou-o a Maureen.
— Marie de Nègre — murmurou ela, fazendo uma reverência e se
afastando no instante seguinte.
Maureen virou-se para Tammy, à espera de uma explicação.
— O que isso significa?
— Você é o alvo de todas as conversas esta noite. Há apenas uma
regra para este baile anual, a de que ninguém deve se vestir como Ela. E,
de repente, você aparece como a Maria Madalena do retrato. Sinclair
está anunciando-a para o mundo. Esta é a sua festa de apresentação.
— Que beleza! Seria melhor se eu fosse informada desse pequeno
detalhe. De que aquela garota me chamou?
— Marie de Nègre. Maria Negra. É uma gíria local para designar
Maria Madalena, a Madona Negra. Em cada geração, uma mulher da
linhagem recebe esse nome, como um título oficial, e o mantém até a
morte. É uma imensa honra aqui. É como se a garota tivesse acabado de
dizer “Sua Majestade”.
Maureen teve pouco tempo para observar, no caos que
turbilhonava ao seu redor. O salão estava repleto de fascinantes
distrações: muita música, muitas pessoas excêntricas e interessantes.
Sinclair não era visto em parte alguma. Maureen perguntara por ele
enquanto dançava com Roland, mas o gigante do Languedoc dera de
ombros e respondera de um modo vago e enigmático, como sempre.
Ela corria os olhos pelo salão quando Tammy perguntou:
— Procura seu cão de guarda?
Maureen lançou-lhe um olhar rápido, mas acenou com a cabeça,
preferindo deixar Tammy pensar que sua preocupação era apenas com
o paradeiro de Peter. Tammy indicou que Peter se aproximava, por trás de
Maureen.
— Comporte-se, por favor — sussurrou Maureen para a amiga.
Tammy ignorou-a. Já se adiantara para cumprimentar Peter.
— Seja bem-vindo à Babilônia, padre.
Peter riu.
— Obrigado... eu acho.
— Chegou na hora certa. Eu ia oferecer à Senhora aqui presente
uma excursão pelo show de variedades. Não quer nos acompanhar?
Peter acenou com a cabeça em aceitação. Sorriu desamparado
para Maureen, enquanto Tammy levava-os através do salão, em passos
rápidos.
Tammy conduziu Maureen e Peter entre os convidados,
sussurrando em tom de conspiração para os pequenos grupos por que
passavam. Fazia as apresentações apropriadas quando encontrava amigos
ou conhecidos na multidão. Maureen sabia que era o centro das atenções
ao percorrerem o salão.
Os três passaram por um pequeno grupo de homens e mulheres
em trajes sumários. Tammy cutucou Maureen.
— São representantes do culto sexual. Acreditam que Maria
Madalena era a alta sacerdotisa num conjunto bizarro de rituais
sexuais que vieram do antigo Egito.
Maureen e Peter assumiram expressões escandalizadas.
— Não atirem na mensageira. Apenas os designo pelo que são. Mas
esperem... não digam nada agora. Olhem primeiro para aquelas pessoas.
Era o grupo mais bizarro, em trajes de alienígenas, inclusive com
antenas, parado no fundo do salão.
— Rennes-le-Château é um Stargate, um portal estelar, com
acesso direto a outras galáxias.
Maureen desatou a rir. Peter balançou a cabeça em incredulidade.
—Você não estava brincando sobre o show de variedades.
— E eu pensei que você tinha inventado aquelas coisas.
Os três pararam para observar um grupo que escutava
atentamente um homenzinho rotundo, de cavanhaque. Ele parecia falar
em rimas, os admiradores absorvendo cada palavra.
— Quem é aquele? — sussurrou Maureen.
— Nostradiota — gracejou Tammy.
Maureen fez um esforço para reprimir o riso, enquanto Tammy
acrescentava:
— Ele alega ser a reencarnação de vocês sabem quem. Fala apenas
em quadras rimadas. Um chato insuportável. Lembre-me de contar
mais tarde por que detesto todo esse culto de Nostradamus. — Ela
estremeceu, dramática. — Não passam de charlatães. Poderiam muito
bem vender óleo de cobra como cura para todos os males.
Tammy manteve-os em movimento através do salão.
— Ainda bem que nem todos aqui são aberrações. Algumas pessoas
são extraordinárias... e estou vendo duas neste momento. Venham
comigo.
Aproximaram-se de um grupo de homens vestidos em trajes da
nobreza dos séculos XVII e XVIII. Um aristocrata inglês se abriu num
enorme sorriso quando viu Tammy.
— Tamara Wisdom! É um prazer tornar a vê-la, minha cara. Você
está maravilhosa.
Ela deu dois beijos no inglês, ao estilo europeu, no ar, sem tocar-lhe
o rosto.
— Onde está sua maçã?
Ele riu.
— Deixei na Inglaterra. Por favor, apresente-nos a seus amigos.
Tammy fez as apresentações, referindo-se ao inglês apenas como Sir
Isaac. Ele explicou a escolha de sua fantasia.
— Há muito mais em Sir Isaac Newton do que a maçã. A
descoberta das leis da gravidade foi um subproduto de sua obra maior.
Isaac Newton foi indiscutivelmente um dos mais talentosos alquimistas
da história.
Ao final do discurso de Sir Isaac, o grupo foi abordado por um jovem
americano, alto e parecendo um pouco desconfortável no seu traje de
Thomas Jefferson, com a peruca empoada.
— Tammy, querida!
O abraço que ele deu em Tammy foi bem apertado, ao melhor estilo
americano, acompanhado por um teatral beijo nos lábios. Tammy riu e
explicou para Maureen:
— Este é Derek Wainwright. Foi meu primeiro guia na França,
quando comecei a pesquisar essa loucura. Ele fala um francês impecável, o
que salvou minha vida em mais ocasiões do que posso me lembrar.
Derek fez uma reverência para Maureen. Seu sotaque era puro
Cape Cod com as vogais prolongadas de Massachusetts.
— Thomas Jefferson a seu serviço, madame. — Ele meneou a
cabeça para Peter. — Olá, padre.
Derek era o primeiro do grupo a sequer assinalar a presença de
Peter, notou Maureen. Mas ela não teve muito tempo para pensar a
respeito porque Peter perguntou:
— Qual é a associação de Thomas Jefferson... com tudo isso?
— Nosso grande país foi fundado por maçons. Todos os
presidentes americanos, de George Washington a George W. Bush, têm
sido descendentes da linhagem... de um jeito ou de outro.
Maureen ficou surpresa.
— É mesmo?
Foi Tammy quem respondeu:
— É, sim. Derek pode provar. Teve tempo demais sem fazer nada
no colégio interno.
Isaac adiantou-se para bater de leve no ombro de Derek e anunciou
solene:
— Paulo foi o primeiro corruptor das doutrinas de Jesus, não é
mesmo, Tammy?
Peter fitou-o.
— Como assim?
— É uma das citações mais controvertidas de Jefferson — explicou
o inglês.
Foi a vez de Maureen se tornar surpresa.
— Jefferson disse isso?
Derek acenou com a cabeça, mas parecia não estar prestando
muita atenção. Olhava ao redor, examinando a festa. Tammy indagou:
— Onde está Draco? —- Acho que Maureen gostaria de conhecê-lo.
Três dos homens riram. Isaac respondeu:
— Eu o ofendi, e ele nos deixou à procura dos outros Dragões
Vermelhos. Tenho certeza de que está metido em algum canto, com
suas câmeras ocultas, espionando todo mundo. Estão vestidos a caráter
esta noite e por isso não será possível deixar de vê-los.
A curiosidade de Maureen fora atiçada.
— Quem são eles?
— Os Cavaleiros do Dragão Vermelho — respondeu Derek, com
uma ênfase dramática simulada.
— Uma coisa horrível — comentou Tammy, torcendo o nariz em
repulsa. — Usam um traje que parece o uniforme da Ku Klux Klan, só
que em cetim vermelho brilhante. Disseram que eu poderia aprender os
segredos de seu respeitável clube se doasse meu sangue menstrual
para experimentos alquímicos. Claro que aceitei a oferta.
— Quem não aceitaria? — A resposta de Maureen foi seca, antes
que desatasse a rir. — Quem são esses caras? Preciso dar uma olhada
neles.
Ela correu os olhos pelo salão, mas não viu ninguém que
correspondesse à bizarra descrição.
— Eu os vi lá fora — informou Newton, prestativo. — Mas não sei
se é aconselhável expor Maureen a essa gente por enquanto. Ela pode
não estar preparada.
Tammy acrescentou:
— É uma sociedade secreta. Todos alegam ser descendentes de
alguém real e famoso. O líder é um cara que eles chamam de Draco
Ormus.
— Por que o nome me parece familiar? — perguntou Maureen.
— Ele é escritor. Temos a mesma editora esotérica na Inglaterra e é
por isso que o conheço. Pode encontrar um de seus livros em suas
viagens pelo território de Madalena. A ironia é que ele escreve sobre a
importância do culto da deusa e o princípio feminino, mas não permite
mulheres em seu clube masculino.
— Uma atitude muito britânica — disse Derek, cutucando Sir
Isaac, que não gostou do comentário.
— Não me inclua na companhia desse lunático, caubói. Nem todos
os britânicos são iguais.
— Isaac é um dos bons — garantiu Tammy. — Claro que há
muitos gênios de boa-fé na Inglaterra e alguns são meus grandes amigos.
Mas na minha experiência muitos esotéricos ingleses são esnobes. Todos
pensam que possuem o segredo do universo e que o resto das pessoas... os
americanos em particular... são idiotas da Nova Era, que só sabem fazer
pesquisas medíocres. Eles acham que sabem tudo só porque podem
escrever trezentas páginas sobre a geometria sagrada do Languedoc e criar
mais duzentas páginas sobre árvores genealógicas fictícias. Mas se
largarem suas bússolas e se permitirem sentir alguma coisa, vão descobrir
que há muito mais para se apreciar aqui do que apenas o que pode ser
quantificado no papel.
Tammy acenou com a cabeça para um grupo em trajes da era
elisabetana, no outro lado do salão.
— Ali estão alguns assim, diga-se de passagem. Eu os chamo de
Turma do Transferidor. Passam a vida inteira analisando a geometria
sagrada dos mapas. Você quer uma opinião sobre o significado de Et In
Arcádia Ego? Eles podem oferecer anagramas em doze línguas diferentes e
traduzir esses anagramas em equações matemáticas.
Ela apontou para uma mulher atraente, mas de aparência
arrogante, num traje elaborado, ao estilo Tudor. Uma letra “M” em ouro
pendia de uma corrente em seu pescoço. A Turma do Transferidor
reunida ao seu redor dava a impressão de que a adulava.
— A mulher no centro alega ser descendente de Maria I, da Escócia.
Como se sentisse que falavam a seu respeito, a mulher virou-se
para olhar na direção deles. Fitou Maureen de alto a baixo, com uma
expressão de absoluto desdém, antes de se virar de novo para seus
aduladores.
— Uma vaca altiva — murmurou Tammy, ríspida. — Está no
centro de uma sociedade não muito secreta que quer restaurar a dinastia
Stuart no trono britânico. Com ela como rainha, é claro.
Maureen sentia-se fascinada pela enorme variedade dos sistemas de
crenças representados no salão, para não mencionar as personalidades
individuais extremadas. Peter inclinou-se para ela e gracejou:
— Freud teria um prato cheio aqui.
Maureen riu, mas tornou a concentrar sua atenção no grupo
britânico no outro lado do salão.
— Como Sinclair se sente em relação a ela? Ele é escocês... e não
tem parentesco com os Stuart?
A curiosidade de Maureen sobre Sinclair não parava de aumentar...
e a mulher que se apresentava como Maria I, da Escócia, era muito
bonita.
— Ele sabe que aquela mulher é um caso de hospício. Não
subestime Berry. Ele pode ser obsessivo, mas não é estúpido.
— Olhem ali! — interrompeu Derek, à sua maneira um tanto
juvenil de atenção limitada. — Hans e seu bando famoso. Ouvi dizer que
Sinclair quase proibiu a presença deles este ano.
— Por quê?
Maureen estava cada vez mais fascinada pelo Languedoc e a
estranha subcultura esotérica que produzira.
— Eles são caçadores de tesouros no sentindo mais literal —
explicou Sir Isaac. — Circulam rumores de que é o bando o mais
recente a usar dinamite nas montanhas de Sinclair.
Maureen olhou para o grupo de alemães enormes e exuberantes. A
reputação não era melhorada pelos trajes que vestiam: todos estavam
fantasiados de bárbaros.
— As fantasias são de quê?
— Visigodos — respondeu Isaac. — Esta parte da França era
território dos visigodos nos séculos VII e VIII. Os alemães acreditam que o
tesouro de um rei visigodo está escondido na região.
Tammy acrescentou:
— Seria o equivalente europeu de descobrir a tumba de
Tutankhamon. Ouro, jóias, artefatos de valor inestimável. Tudo o que se
costuma encontrar num tesouro.
Um grupo bastante turbulento atravessou o salão, esbarrando
em Peter e Tammy. Cinco homens de túnica perseguiam uma mulher
vestindo véus coloridos do Oriente Médio. Ela carregava uma grotesca
cabeça humana numa bandeja. Os homens em seu encalço gritavam,
aparentemente se dirigindo à cabeça cortada:
— Fale conosco, Baphomet! Fale conosco!
Tammy deu de ombros e limitou-se a dizer, depois que eles
passaram:
— Batistas.
— Não os verdadeiros, é claro — ressaltou Derek.
— Não, não os verdadeiros.
Peter estava intrigado pelo ângulo religioso.
— O que significa que não são os verdadeiros?
Tammy virou-se para ele.
— Tenho certeza de que você sabe que dia é hoje no calendário
cristão, não sabe?
Peter acenou com a cabeça.
— É o dia de São João Batista.
— Os seguidores de João Batista nunca compareceriam a uma
festa como esta em seu dia — explicou Derek. — Seria blasfêmia.
— É um grupo muito conservador, pelo menos o ramo europeu.
— Tammy acenou na direção da mulher com a cabeça. — Eles são uma
paródia. Um tanto brutal, posso acrescentar. Não que não seja
justificada.
As pessoas no salão observavam a brincadeira extravagante com
diferentes reações. Alguns riam, alguns sacudiam a cabeça, outros
ficavam escandalizados. Derek comentou, incapaz de se ater a um
assunto por muito tempo:
— Preciso de um drinque. Alguém quer alguma coisa do bar?
Peter aproveitou a partida de Derek para pedir licença e se afastar. O
traje não lhe assentava bem, e ele sentia-se desesperadamente
desconfortável, por razões que não eram apenas de elegância. Disse a
Maureen que ia procurar um banheiro. Na verdade, seguiu direto para o
pátio. Estava na França, no final das contas... e tinha certeza de que
encontraria no pátio alguém para lhe dar um cigarro.
Um francês de excepcional elegância, apesar da simplicidade da
túnica cátara, aproximou-se de Maureen e Tammy. Balançou a cabeça
para Tammy e fez uma reverência diante de Maureen.
— Bienvenue, Marie de Nègre.
Constrangida com a atenção, Maureen soltou uma risada.
— Lamento, mas meu francês é horrível.
O francês falou num inglês impecável, embora com sotaque:
— Eu disse que a cor fica muito bem em você.
Uma voz chamou Tammy do outro lado do salão. Maureen olhou,
achando que a voz era de Derek. Tornou a fitar Tammy, que estava
radiante.
— Ei, Derek conseguiu acuar no bar um dos meus investidores
potenciais. Pode me dar licença por um momento?
Tammy afastou-se numa fração de segundo, deixando Maureen
com o misterioso francês. Ele beijou a mão direita de Maureen, hesitando
por um instante para examinar o anel, antes de se apresentar
formalmente.
— Sou Jean-Claude de la Motte. Berenger me disse que somos
parentes, você e eu. O nome de minha avó também era Paschal.
— É mesmo?
Maureen sentiu-se excitada com a ligação.
— E, sim. Ainda há alguns Paschal no Languedoc. Conhece a
história, não é?
— Não. Envergonho-me de dizer que tudo o que sei a respeito
aprendi com Lorde Sinclair nos últimos dias. Adoraria ouvir mais sobre
minha família.
Dançarinos em trajes de Versailles no século XVIII passaram por eles,
enquanto Jean-Claude falava:
— O nome Paschal é um dos mais antigos da França. Foi adotado
por uma das grandes famílias cátaras, descendentes diretos de Jesus e
Maria Madalena. A maior parte da família foi eliminada na cruzada
contra nosso povo. No massacre de Montségur, os sobreviventes foram
queimados vivos como hereges. Mas alguns escaparam. Membros da
família se tornaram mais tarde conselheiros de reis e rainhas da França.
Jean-Claude gesticulou para um casal na pista de dança, em trajes
requintados de Maria Antonieta e Luís XVI.
— Maria Antonieta e Luís? — indagou Maureen, surpresa.
— Isso mesmo. Maria Antonieta era uma Habsburgo, e Luís, um
Bourbon... dois ramos diferentes da linhagem. Os dois ramos se uniram e
foi por isso que as pessoas ficaram com tanto medo. A revolução foi causa
da em parte pelo medo de que a união das duas famílias formasse a mais
poderosa dinastia do mundo. Já esteve em Versailles, mademoiselle?
— Já, sim. Fiz uma visita durante a minha pesquisa sobre
Maria Antonieta.
— Então conhece o refúgio?
— Claro.
O refúgio fora um dos lugares prediletos de Maureen no terreno do
vasto palácio de Versailles. Sentira uma profunda compaixão pela rainha,
enquanto percorria a residência real. Cada uma das atividades de Maria
Antonieta, de sentar-se no vaso a se preparar para dormir, era
testemunhada pelos cães de guarda da nobreza. Seus filhos nasceram na
presença de bandos de nobres reunidos no quarto.
Maria, a rainha, rebelara-se contra as sufocantes tradições da
realeza francesa e inventara um meio para fugir de sua prisão
dourada. Construíra um refúgio, uma pequena aldeia ao melhor estilo
da Disneylândia, à beira de um laguinho com patos e botes a remo. Um
moinho em miniatura e uma pequena casa de fazenda eram os cenários
para as festas pastorais, com pequenos grupos de amigos de confiança.
— Então você sabe que Maria gostava muito de se vestir como a
Pastora. Em todas as suas reuniões particulares, ela era a única que se
vestia assim.
Maureen balançou a cabeça em espanto, enquanto as peças se
ajustavam em seus lugares.
— Maria Antonieta sempre se vestia como a Pastora. Eu sabia
disso quando estive em Versailles, mas na ocasião ignorava todo o resto.
— Foi por isso que ela mandou construir o refúgio longe do palácio,
com rigorosas medidas de segurança. Era a sua maneira de celebrar as
tradições da linhagem em privacidade. Mas é claro que outros sabiam, já
que nada era segredo naquele palácio. Havia muitos espiões, muito poder
em jogo. Seria um dos fatores que levaram à morte de Maria... e à
revolução. Os Paschal, é claro, eram leais à família real. Com bastante
freqüência, eram convidados para as festas particulares de Maria. Mas a
família foi obrigada a fugir da França durante o Grande Terror.
Maureen ficou toda arrepiada. A história trágica da rainha da
França nascida na Áustria sempre fora uma fonte de profundo fascínio e
tornara-se um dos principais fatores que haviam motivado seu livro.
Jean-Claude acrescentou:
— A maioria foi para os Estados Unidos e muitos se instalaram
na Louisiana.
Maureen empertigou-se ao ouvir isso.
— Meu pai era da Louisiana.
— Sei disso. Qualquer pessoa com olhos para ver saberia que você
é desse ramo da linhagem real. Tem as visões, não é?
Maureen hesitou. Relutava em falar sobre suas visões até mesmo
para os mais íntimos e aquele homem era um completo estranho. Mas
havia alguma coisa que parecia liberá-la por estar na companhia de
outros como ela... pessoas que achavam que era perfeitamente natural
ter aquelas visões. Ela respondeu com toda a simplicidade:
— Tenho, sim.
— Muitas mulheres da linhagem têm visões de Madalena. Às vezes
até os homens, como Berenger Sinclair. Ele tem as visões desde que era
criança. É bastante comum.
Mas não me parece tão comum, pensou Maureen. Ela ficou curiosa com
aquela revelação.
— Sinclair tem visões?
Ele não mencionara isso. Mas ela teria a oportunidade de perguntar
ao próprio, pois Sinclair atravessava o salão naquele instante, vestido
como o conde de Toulouse.
— Vejo que já encontrou sua prima há muito perdida, Jean-
Claude.
— Oui. E ela é um crédito para o nome da família.
— Um grande crédito. Posso roubá-la por um momento?
— Só se você me permitir levá-la para um passeio de carro amanhã.
Eu gostaria de lhe mostrar alguns dos locais da região ligados ao
nome Paschal. Já esteve em Montségur, ma chérie?
— Não. Saímos com Roland hoje, mas não chegamos a Montségur.
— É um lugar sagrado para a família Paschal. Importa-se que eu a
leve até lá, Berenger?
— Claro que não. Mas Maureen é perfeitamente capaz de tomar
suas próprias decisões.
— Quer me conceder essa honra? Posso mostrar Montségur e
depois a levarei a um restaurante tradicional. Só servem comida
preparada ao autêntico estilo cátaro.
Maureen não conseguia encontrar nenhuma maneira graciosa de
dizer não, mesmo que quisesse. Mas a combinação de charme francês e a
perspectiva de ter mais uma percepção da história da família era
irresistível.
— Terei o maior prazer.
— Então até amanhã, prima. Posso vir buscá-la às onze horas?
Jean-Claude beijou-lhe de novo a mão, depois que ela concordou.
Despediu-se de Berenger.
— Tenho de partir agora, pois preciso fazer planos para amanhã.
Maureen e Sinclair sorriram quando ele se afastou.
— Você causou uma impressão e tanto em Jean-Claude. O que não
é de surpreender. Está maravilhosa nesse traje, como eu sabia que ficaria.
— Obrigada por tudo.
Maureen sabia que corava, pois não estava acostumada a tanta
atenção masculina. Resolveu retomar a conversa sobre Jean-Claude:
— Ele parece muito simpático.
— É um estudioso brilhante, um dos maiores conhecedores de
história francesa e occitana. Trabalhou durante anos na Bibliothèque
Nationale, onde tinha acesso aos mais espantosos materiais de pesquisa.
Foi de grande ajuda para Roland e para mim.
— Roland?
Maureen ficou surpresa pela maneira deferente com que Sinclair se
referiu ao mordomo. Não parecia um comportamento típico para um
aristocrata. Sinclair deu de ombros.
— Roland é um leal filho do Languedoc. E possui o maior interesse
pela história de seu povo. — Sinclair pegou Maureen pelo braço e
começou a levá-la através do salão. — Venha comigo. Quero lhe mostrar
uma coisa.
Os dois subiram um lance de escada e entraram numa pequena
sala, com um terraço particular. Dava para o pátio e um vasto jardim que
se estendia além. Havia um portão com flores-de-lis douradas, protegidos
Por guardas, nos dois lados.
— Por que há tantos guardas no portão?
— Este é o meu domínio particular, um terreno sagrado. Eu o
chamo de Jardim da Trindade e só permito o acesso a bem poucas
pessoas... e pode ter certeza de que muitos dos convidados aqui esta
noite fariam qualquer coisa para passar por aquele portão.
Depois de uma breve pausa, Sinclair acrescentou:
— O baile à fantasia é uma tradição... minha reunião anual para
determinadas pessoas, que partilham um interesse comum. — Ele
gesticulou para as pessoas no pátio. — Algumas eu respeito... até mesmo
reverencio, algumas eu chamo de amigas, outras... outras são divertidas.
Mas todas eu vigio atentamente... algumas muito atentamente. E achei
que você poderia achar interessante observar como as pessoas vêm do
mundo inteiro para investigar os mistérios do Languedoc.
Maureen correu os olhos pelas pessoas no pátio, desfrutando a
brisa, que trazia a fragrância do roseiral próximo, no início do verão.
Notou que Tammy parecia muito íntima de Derek... e que Derek se
mostrava fascinado pela exuberante rainha das ciganas. Viu alguém que
poderia ser Peter, mas chegou à conclusão de que não era. Aquele homem
estava fumando. E Peter não fumava desde que era adolescente. Ela
virou-se abruptamente para Sinclair e perguntou:
— Como me descobriu?
Ele levantou a mão direita de Maureen, gentilmente.
— Pelo anel.
— O anel?
— Estava com o anel na foto em que aparece na capa do livro.
Maureen balançou a cabeça, começando a compreender.
— Sabe o que o padrão significa?
— Tenho uma teoria a respeito e foi por isso que a trouxe até
aqui. Venha comigo.
Sinclair tornou a segurá-la pelo braço. Levou-a até uma obra de arte
na parede, protegida por um vidro. Era pequena, não maior que uma foto
8 x 10. Mas estava bem no meio da parede, com uma iluminação
cuidadosa, para destacar todos os detalhes.
— É uma gravura medieval — explicou ele. — Representa a
filosofia. E as sete artes liberais.
— Como o afresco de Botticelli.
— Exatamente. Vem da perspectiva clássica de que alguém que
se dedica às sete artes liberais pode alcançar o título de filósofo. É por
isso que a figura feminina no centro é apresentada aqui como a
deusa, Filosofia, e as artes liberais estão a seus pés, a seu serviço. Mas
aqui está o que pensei que você acharia mais interessante.
Sinclair começou pela esquerda, dando os nomes das artes liberais,
enquanto as indicava com o dedo. Parou na sétima e última.
— Aqui estamos. Cosmologia. Percebe alguma coisa que parece
familiar?
Maureen não pôde conter uma exclamação de espanto.
— Meu anel!
A figura representando a cosmologia segurava um disco
ornamentado com o padrão do anel de Maureen. Ela contou as estrelas e
ergueu a mão para a comparação com a gravura.
— E idêntico, até no espaçamento do centro para os círculos.
Maureen ficou calada por um momento, absorvendo tudo, antes
de se virar para Sinclair.
— Mas o que tudo isso significa? Como se aplica a Maria Madalena?
E a mim?
— Há aplicações espirituais e alquímicas. Em relação aos mistérios
de Madalena, creio que esse símbolo aparece com freqüência como uma
pista, um lembrete de que precisamos dispensar toda a atenção à crítica
relação entre a Terra e as estrelas. Os antigos sabiam disso, mas esquece
mos em nossa era moderna. “Como acima é abaixo.” As estrelas nos
lembram todas as noites que temos a oportunidade de criar o paraíso
na
Terra. Creio que é isso que eles queriam nos ensinar. Foi sua suprema
dádiva para nós, sua mensagem de amor.
— Eles?
— Jesus Cristo e Maria Madalena. Nossos ancestrais.
E como se um cronômetro cósmico estivesse armado para pontuar
a frase, os fogos de artifício começaram a explodir nesse instante,
promovendo um espetáculo de luzes sobre o jardim, deixando todos
maravilhados. Sinclair levou Maureen de volta ao terraço, a fim de
contemplar as explosões de cores sobre o terreno do castelo. E, quando
ele estendeu o braço ao seu redor, Maureen deixou, sentindo-se
estranhamente confortável naquele abraço forte e afetuoso.
Lá embaixo, no pátio, o padre Peter Healy não olhava para os
fogos de artifício. Pelo menos não os que brilhavam no céu. A sua
atenção concentrava-se em Berenger Sinclair, no terraço, com o braço
em torno da cintura da prima ruiva de Peter, num gesto firme e
possessivo. Em contraste com Maureen, ele não se sentia nem um pouco
tranqüilo... em relação a Sinclair e a todas aquelas pessoas e seus planos.
Havia outros pares de olhos observando a evolução da química entre
Sinclair e Maureen naquela noite. Derek também observava lá de baixo, de
sua posição no outro lado do pátio. Ao correr os olhos pelo terraço, ele
notou que seu colega francês estava bem posicionado lá em cima, talvez
até bastante perto para ouvir a conversa entre o anfitrião e a mulher
vestida como Maria Madalena.
Derek Wainwright apalpou seu corpo discretamente, para ter
certeza de que a corda vermelha cerimonial de sua Guilda estava bem
escondida nas dobras do traje de Thomas Jefferson. Precisaria usá-la
mais tarde, ainda naquela noite, quando voltasse para Carcassonne.
... Talvez eu seja a única defensora da princesa chamada
Salomé, porém obrigo-me a assumir tal posição. Lamento ter esperado
tanto, pois ela não merecia seu terrível destino. Houve um tempo em
que falar a respeito dela e de suas ações era a morte. Por isso eu não
podia defendê-la sem pôr em risco os seguidores de Easa e os
ensinamentos mais elevados d'O Caminho. Como muitos de nós,
entretanto, ela foi julgada por aqueles que não conheciam a verdade,
nem sequer um eco da verdade.
Em primeiro lugar, cumpre-me afirmar algo: Salomé me amava e
amava Easa ainda mais. Se tivesse a oportunidade, em outro tempo,
outro lugar ou outras circunstâncias, ela poderia ter sido uma
autêntica discípula, uma sincera seguidora d'0 Caminho da Luz. Por
isso, não há como furtar-me a incluí-la neste Livro dos Discípulos, pois
ela poderia ter-se tornado um deles. Como Judas, Pedro e os outros, a
Salomé foi garantido um determinado papel, e pouca chance de escapar
ao seu destino. Seu nome foi gravado nas pedras de Israel com o
sangue de João e talvez também com algum sangue de Easa.
Se suas ações se revelaram precipitadas e infantis, como uma
jovem que não pensa nas coisas antes de falar, então ela é culpada por
isso. Porém ser lembrada como ela é, injuriada e desprezada como uma
meretriz que ordenou a morte de João Batista, é uma das maiores
injustiças de que posso me lembrar.
No Dia do Juízo Final, talvez ela me perdoe por isso.
E talvez João perdoe todos nós.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPITULO ONZE
Château des Pommes Bleues
24 de junho de 2005
Maureen foi deitar pouco depois da queima dos fogos de artifício.
Peter apareceu quando ela descia a escada, oferecendo-se para
acompanhá-la até seu quarto. Ela aceitou a oferta sem hesitar, mais do
que ansiosa em escapar para uma solidão muito necessária. As últimas
vinte e quatro horas haviam sido vertiginosas e sua cabeça latejava.
Mais tarde, ainda naquela noite, Maureen foi despertada por vozes
no corredor. Pensou reconhecer a voz de Tammy, falando num sussurro.
Uma voz abafada de homem respondeu. Depois, ela ouviu uma risada
gutural, uma característica tão específica de Tammy quanto as
impressões digitais. Ficou feliz em pensar que a amiga se divertia na
festa.
E Maureen sorria quando tornou a mergulhar no sono, com uma
noção vaga, sonolenta, de que a voz sussurrando em intimidade para
Tammy não era de um americano.
Carcassonne
25 de junho de 2005
Derek Wainwright soltou um grunhido quando o sol da manhã
entrou inexorável pela janela de seu quarto no hotel. Havia duas coisas
com que ele não queria lidar naquele dia: sua ressaca e as oito mensagens
no celular.
Levantou-se devagar, a fim de avaliar a extensão da dor de cabeça.
Arrastou-se até a mala de couro italiano e pegou um vidro. Abriu-o para
revelar um amplo sortimento de pílulas. Tomou um Vicodin,
acompanhado por três cápsulas de Tylenol, por precaução. Assim,
fortalecido, ele olhou para o telefone na mesinha-de-cabeceira. Desligara-o
quando voltara ao hotel, tarde da noite. Não podia suportar os bips
incessantes e não queria ouvir as mensagens.
Derek passara a maior parte de sua vida escapando da
responsabilidade dessa maneira. Nascido numa família muito rica e
influente na Costa Leste dos Estados Unidos, o filho mais novo do
magnata do ramo imobiliário Eli Wainwright sempre tivera uma vida fácil.
Ingressara em Yale sem a menor dificuldade, com base nos legados do pai
e dos irmãos mais velhos. Obtivera um cargo de executivo numa empresa
de investimentos de alta classe, apesar de seu medíocre desempenho
acadêmico. Deixara o emprego menos de um ano depois, quando chegara
à conclusão de que o horário de trabalho não era compatível com seu
estilo de vida, de noitadas e festas freqüentes. Não que precisasse
trabalhar. O fundo de investimentos que fora criado para ele era
suficiente para sustentá-lo pelo resto da vida. Daria também para
sustentar seus filhos e netos, se algum dia se assentasse o suficiente para
tê-los.
Eli Wainwright se mostrara surpreendentemente paciente com as
deficiências do filho caçula. Derek carecia do empenho nos estudos e da
aptidão para os negócios dos irmãos. Demonstrara, porém, o maior
interesse por um elemento essencial na vida e sucesso da família: a
participação na Guilda dos Justos. Batizado, primeiro, quando bebê e
depois outra vez aos quinze anos, como era tradição na organização, Derek
parecia ter uma afinidade natural pela sociedade e seus ensinamentos. O
pai escolhera Derek para tomar o seu lugar como um dos principais
membros americanos da Guilda, uma organização que se estendia não
apenas por todo o mundo ocidental, mas também por partes da Ásia e
Oriente Médio. A Guilda dos Justos contava entre os seus membros com
alguns dos homens mais influentes na comunidade empresarial e na
política internacional.
A participação era estritamente para herdeiros de sangue. Os
homens batizados deviam casar com as Filhas da Justiça. Eram as filhas
dos membros da Guilda, criadas num rigoroso código de decoro. As garotas
recebiam um treinamento especial para se tornar esposas e mães. As
lições vinham de um documento antigo conhecido como O verdadeiro
livro do Santo Graal, que havia séculos era passado de uma geração para
outra. Alguns dos maiores bailes de debutantes da Costa Leste e do Sul
dos Estados Unidos, em particular no Texas, eram em essência “festas de
apresentação” das Filhas da Justiça, anunciando que estavam
preparadas para entrar no mundo como esposas obedientes e
apropriadas de membros da Guilda.
Os filhos mais velhos de Eli haviam se casado com Filhas da Justiça
e estavam todos bem instalados em suas vidas de classe superior. Assim,
era cada vez maior a pressão sobre o Wainwright mais novo, agora na
casa dos trinta anos, para assentar-se de uma maneira similar. Derek não
estava interessado, embora não ousasse dizer isso ao pai. Achava que as
Filhas da Justiça eram chatas demais, em sua virgindade imaculada. A
idéia de ir para a cama todas as noites com uma daquelas princesas do gelo,
de criação perfeita, fazia-o estremecer. Claro que podia fazer o que seus
irmãos e todos os outros membros da Guilda faziam: casar com a mãe
apropriada e aprovada para seus filhos e arrumar uma vagabunda ardente
para manter as coisas interessantes por fora. Mas por que tomar juízo
naquela altura da vida? Ainda era jovem, com uma imensa riqueza, e
tinha poucas responsabilidades. E enquanto houvesse mulheres exóticas e
sensuais para atraí-lo, como Tamara Wisdom, ele não tinha a menor inten-
ção de se acorrentar a uma reprodutora insuportável e premiada, que o
faria se lembrar da mãe. Se o pai continuasse convencido de que ele só esta-
va interessado em executar os planos da Guilda, Derek poderia se esquivar
de suas outras responsabilidades, pelo menos por mais alguns anos.
O que Eli Wainwright não percebia, com os olhos cegos de um pai
que opta por não admitir os defeitos do filho, era que Derek não sentia
afinidade pela filosofia da Guilda. O fascínio era pela mística de uma
sociedade proscrita, os rituais, o senso de elitismo que vinha de conhecer
segredos legados ao longo dos séculos e protegidos com sangue. A
verdadeira atração vinha da compreensão de que praticamente qualquer
ato de um membro da Guilda, por mais abominável que fosse, podia ser
apagado e encoberto pela rede global de influência. Derek adorava essas
coisas, assim como a maneira pela qual era tratado, aonde quer que
fosse, por causa da riqueza e influência do pai. Ou pelo menos era o que
acontecia antes, até que o antigo Mestre da Justiça morrera, de uma
maneira um tanto misteriosa, sendo substituído pelo novo, o fanático
inglês que agora dominava a Guilda com mão de ferro.
O novo líder mudara tudo. Gabava-se de sua ligação hereditária
com Oliver Cromwell, ao mesmo tempo que estudava as táticas
implacáveis e muitas vezes sinistras de seu antepassado para lidar com a
oposição. Ao assumir o título de Mestre da Justiça, John Simon
Cromwell efetuara sua primeira declaração dramática de princípios,
através de uma brutal execução. Era verdade que o homem
assassinado era um inimigo da Guilda e líder de uma organização que se
opunha a eles havia centenas de anos. Mas a mensagem fora evidente:
“Eliminarei qualquer um que me desafiar e farei isso da maneira mais
brutal.” Decapitar o homem com uma espada e cortar o dedo indicador
direito eram atos que demonstravam o toque pessoal do fanatismo
incontrolável do novo líder.
Derek tentou bloquear essa imagem específica de sua mente
atordoada ao pegar o celular e ligá-lo, acessando a caixa postal. Era
tempo de enfrentar a música. Assumira o compromisso de cumprir uma
missão e estava determinado a fazê-lo, a fim de demonstrar para o
desgraçado do britânico, de uma vez por todas, do que ele era capaz.
Estava cansado de ser escarnecido pelo britânico e pelo francês. Tratavam-
no como se fosse um idiota e ninguém jamais tivera permissão para fazer
isso antes.
Enquanto ouvia os recados, Derek respirou fundo, contra a voz com
sotaque de Oxford que se tornava mais e mais ameaçadora a cada
mensagem. Ao ouvir as palavras finais, na oitava mensagem, Derek já
sabia o que tinha de fazer.
Château des Pommes Bleues
25 de junho de Z005
Tamara Wisdom escovava os cabelos negros lustrosos, enquanto se
contemplava no enorme espelho de moldura dourada. O sol vibrante da
manhã iluminava seu quarto, que era tão espetacular quanto o de
Maureen. Havia rosas, em tonalidades de creme e púrpura, em vasos de
cristal, em todas as mesas. Veludos e brocados de cor púrpura envolviam
a enorme cama, um lugar que ela raramente ocupava sozinha.
Tammy sorriu, deleitando-se por um momento com as recordações
da noite anterior. O calor do corpo do homem deixara uma impressão em
sua pele por muito tempo depois que ele se retirara, pouco antes do
amanhecer. Em sua atitude intrépida e experimental em relação à vida,
ela conhecera muitas paixões intensas, mas nenhuma fora como
aquela. Finalmente compreendia o que os alquimistas queriam dizer
quando falavam da Grande Obra, a união perfeita de um homem e uma
mulher... um encontro de corpo, mente e espírito.
Mas o sorriso se desvaneceu quando ela voltou à realidade do que
tinha de ser feito naquele dia.
Tudo fora muito divertido a princípio, como um grande jogo de
xadrez entre dois continentes. Ela passara a gostar de Maureen muito
depressa. Todos gostavam. Até o padre não se mostrara a criatura
intrometida que todos temiam. Era um místico, à sua maneira, muito
longe do dogmático rígido que haviam previsto.
Havia também a questão de seu próprio envolvimento, cada vez
mais profundo. O elemento Mata Hari fora divertido no começo, mas
agora estava se tornando repulsivo. Teria de equilibrar tudo com muito
cuidado hoje, a fim de obter a informação de que precisava, mas sem se
perder no processo. Tinha vários objetivos a alcançar, por si mesma, pela
Sociedade e por Roland. Mantenha o foco, Tammy, ela lembrou a si mesma.
Há muito a ganhar, se você for bem-sucedida, e tudo a perder, se
fracassar.
O jogo mudara. E estava se tornando mais perigoso do que qualquer
um previra.
Tammy largou a escova e passou uma fragrância floral nos pulsos e
na garganta, em preparativo para o que ia acontecer. Ao se virar para
deixar o quarto, ela parou diante do quadro espantoso na parede. Era de
Gustave Moreau, pintor simbolista francês, e mostrava a princesa
Salomé envolta pelos sete véus e segurando uma bandeja com a cabeça
de João Batista.
— Essa é a minha garota — murmurou Tammy para si mesma,
antes de partir para sua última e mais crucial participação na intriga.
Maureen tomou o café da manhã sozinha na copa. Roland,
passando pelo corredor, viu-a ali e entrou.
— Bonjour, mademoiselle Paschal. Está sozinha?
— Bom-dia, Roland. Desci sozinha. Peter ainda dormia e eu não
quis acordá-lo.
Roland balançou a cabeça.
— Tenho um recado de sua amiga, Srta. Wisdom. Ela está agora
hospedada no Château e gostaria que jantassem juntas esta noite.
— Vou adorar. — Maureen estava ansiosa em se encontrar com
Tammy para conversar sobre a festa. — Onde ela está agora?
Roland deu de ombros.
— Ela foi cedo para Carcassonne. Para tratar de alguma coisa
relacionada com o filme que está fazendo. Só me pediu para lhe dar esse
recado. E agora, mademoiselle, vou procurar monsieur Berenger, pois
tenho certeza de que ele ficará consternado ao saber que está comendo
sozinha.
Sinclair interrompeu os pensamentos de Maureen, entrando na
copa pouco depois de Roland se retirar.
— Dormiu bem?
— Como poderia ser de outra forma naquela cama? É como
dormir nas nuvens.
Maureen notara, logo na primeira noite, que havia um enorme
colchão de plumas por baixo dos lençóis de algodão egípcio.
— Isso é ótimo. Tem planos para esta manhã?
— Não até onze horas. Lembra que vou me encontrar com
Jean-Claude hoje?
— Claro que lembro. Ele vai levá-la para Montségur. Um lugar
extraordinário. Só lamento não ter mostrado para você na primeira vez.
— Não gostaria de nos acompanhar?
Sinclair riu.
— Minha cara, Jean-Claude trataria de me enforcar, esfolar e
esquartejar se eu fosse junto hoje. Você é a estrela da região agora, depois
de sua apresentação na noite passada. Todo mundo quer saber mais a
seu respeito. A cotação de Jean-Claude na região vai subir mais de cem
pontos se ele for visto escoltando-a sozinho. Mas não o invejo por isso.
Também tenho uma coisa para lhe mostrar, assim que acabar de
comer... e tenho certeza de que você vai achar memorável.
Os dois estavam parados no mesmo terraço de onde haviam
assistido aos fogos de artifício, na noite anterior. O extraordinário jardim
do castelo estendia-se à frente.
— É muito mais fácil contemplar e apreciar o jardim à luz do dia —
comentou Sinclair, orgulhoso, apontando para as três seções separadas.
— Está vendo como formam um padrão de flor-de-lis?
— É um jardim magnífico.
Maureen estava sendo absolutamente sincera. O jardim era
impressionante em sua beleza escultural, visto de cima.
— Esse jardim pode contar a história de nossos ancestrais
melhor do que eu sou capaz. Gostaria que me concedesse a honra
de mostrá-lo. Vamos?
Maureen aceitou o braço oferecido. Desceram para o átrio. Ela
notou que o castelo estava impecável, apesar das várias centenas de
convidados que recebera na noite anterior. Os criados deviam ter
realizado uma limpeza meticulosa logo em seguida, pois não havia
qualquer coisa que não fosse uma ordem imaculada por ali.
Passaram pelas enormes portas de vidro e saíram para o pátio
de mármore. Seguiram até o portão dourado. Sinclair tirou uma
chave do bolso e a inseriu no cadeado. Soltou a corrente e empurrou
o portão por uma barra dourada. Entraram em seu santuário
pessoal.
Um chafariz de mármore rosa borbulhava bem à frente, na
entrada do jardim. O sol faiscava nas gotas de água que caíam pelos
ombros de uma estátua em tamanho natural de Maria Madalena,
esculpida em mármore cor de marfim. Havia uma rosa na mão
esquerda da imagem; uma pomba pousava na mão direita. Na base
do chafariz, estava esculpida a onipresente flor-de-lis.
— Você conheceu muitas pessoas ontem à noite. Todas têm
teorias sobre esta região e o tesouro misterioso. Tenho certeza de que
ouviu muitas, do sublime ao ridículo.
Maureen riu:
— A maioria era ridícula.
Sinclair sorriu para ela.
— Todos têm suas teorias e acreditam... ou seria melhor
dizer, sabem... que Maria Madalena é nossa rainha, aqui no sul da
França. Na verdade, isso é a única coisa com que todos que estavam
no salão ontem à noite concordam.
Maureen escutava com total atenção. A voz de Sinclair tinha
um ar de excitamento, de expectativa. Era contagiante.
— E todos sabem também que há uma linhagem. Uma
linhagem real, que vem de Maria Madalena e seus filhos. Mas bem
poucos conhecem toda a verdade. A história inteira está reservada
para aqueles que são os verdadeiros seguidores d'O Caminho. O
Caminho como foi ensinado por nossa Madalena. O Caminho como foi
ensinado pelo próprio Jesus Cristo.
Maureen deteve-o, com alguma hesitação:
— Não sei se é apropriado ou não perguntar, mas é esse o objetivo
de sua Ordem das Maçãs Azuis?
— A Ordem das Maçãs Azuis é antiga e complexa. Eu lhe contarei
mais a respeito depois. Por enquanto, basta dizer que a Ordem existe
para defender e preservar a verdade. E a verdade é que Maria Madalena
foi mãe de três crianças.
Maureen ficou surpresa.
— Três?
Sinclair acenou com a cabeça em confirmação.
— Bem poucas pessoas conhecem a história em sua totalidade,
porque os detalhes foram intencionalmente encobertos para a proteção
dos descendentes. Três crianças. Uma trindade. E cada uma fundou uma
linhagem de sangue real que mudaria a face da Europa e do mundo. O
jardim celebra as dinastias instituídas pelas três crianças. Meu avô
criou tudo isso. Ampliei o jardim e assumi o compromisso de preservá-lo.
Três arcadas levavam às diferentes partes do jardim.
— Começaremos por nosso próprio ancestral.
Ele conduziu uma aturdida Maureen pela arcada central.
— O que foi? Ficou surpresa por saber que somos parentes? Muito
distantes, é verdade, mas descendemos da mesma linhagem original.
— Não é fácil absorver tudo isso. Sei que é um conhecimento
antigo para você, mas é chocante para mim descobrir. Não posso
imaginar como o resto do mundo reagiria.
Eles entraram num roseiral de viço extraordinário. Várias espécies
de lírios estavam plantadas num círculo, em torno de outra estátua. A
combinação formava a fragrância magnífica que Maureen aspirara na
noite anterior.
Uma pomba branca arrulhou e sobrevoou as roseiras requintadas e
entrelaçadas, enquanto Maureen e Sinclair caminhavam juntos, em
silêncio. Ela parou por um momento para aspirar, absorvendo o perfume
das rosas vermelhas desabrochadas.
— Rosas... São simbólicas para todas as mulheres da linhagem.
E lírios... O lírio é um símbolo específico de Maria Madalena. A rosa pode
se referir a qualquer mulher descendente, mas, em nossa tradição, só
Madalena tem permissão para ostentar o lírio.
Ele conduziu Maureen até a estátua, que dominava tudo ao redor.
Era de uma jovem esguia, com cabelos lisos e soltos. Maureen teve
dificuldade para falar. Sua pergunta foi pouco mais que um sussurro:
— Essa é a filha?
— Posso apresentá-la a Sara-Tamar, a única filha de Jesus Cristo
e Maria Madalena? A fundadora das dinastias reais francesas. E nossa
antepassada comum, há mil e novecentos anos.
Maureen ficou olhando por um longo momento para a estátua,
antes de tornar a se virar para Sinclair.
— É tudo incrível demais. E, no entanto, não estou achando tão
difícil aceitar. Muito estranho, mas ao mesmo tempo parece... certo.
— Isso acontece porque sua alma reconhece a verdade.
Uma pomba arrulhou em concordância, do alto de uma roseira.
— Está ouvindo as pombas? São o símbolo de Sara-Tamar,
emblemas de seu coração puro. Mais tarde, tornou-se o símbolo de seus
descendentes... os cátaros.
— E foi por isso que os cátaros foram exterminados como hereges
pela Igreja?
— E, sim... pelo menos em parte. Porque podiam provar,
mediante determinados objetos e documentos em seu poder, que eram
descendentes de Jesus e Maria. O que fazia com que sua mera existência
se tornasse uma ameaça para Roma. Homens, mulheres e crianças. A
Igreja tentou exterminar todos eles para manter o segredo. Mas há mais
para ver. Vamos.
Sinclair levou Maureen num semicírculo, através das roseiras,
proporcionando-lhe a oportunidade de experimentar a beleza do jardim
ao sol do verão, numa manhã dourada no Languedoc. Voltaram pela
arcada e contornaram o chafariz de Maria Madalena.
— É hora de conhecer o irmão caçula.
Maureen podia sentir que o seu excitamento tornava a crescer.
Especulou como devia ser a manutenção de um segredo daquela
magnitude. Pensou por um instante, com uma pontada de apreensão,
que em breve saberia em primeira mão.
Sinclair passou pela arcada da direita, para um trecho do jardim
mais meticuloso e bem tratado.
— Parece muito inglês — comentou Maureen.
— É isso mesmo, minha cara. E agora lhe mostrarei por quê.
Uma estátua de um jovem de cabelos compridos, levantando um
cálice, era o ponto focal do chafariz grande que havia ali. Uma água
cristalina despejava-se do cálice.
— Yeshua-Davi, o filho mais novo de Jesus e Maria. Ele não
conheceu o pai, pois Madalena estava grávida por ocasião da crucificação.
Nasceu em Alexandria, no Egito, onde a mãe e sua comitiva se refugiaram,
antes de partir para a França.
Maureen parou de repente. Num gesto inconsciente, levou a mão à
barriga.
— O que houve?
— Ela estava mesmo grávida. Eu vi. Estava grávida na Via
Dolorosa e... na crucificação.
Sinclair começou a acenar com a cabeça, à sua maneira distraída,
mas ficou imóvel abruptamente. Foi a vez de Maureen perguntar:
— O que houve?
— Você disse crucificação? Teve uma visão da crucificação?
Maureen começava a sentir um aperto na garganta e as
lágrimas ardendo no fundo dos olhos. Teve medo de falar por um
momento, achando que não seria capaz de controlar a voz. Sinclair
percebeu e falou com extrema gentileza:
— Maureen, minha querida, pode confiar em mim. Diga-me, por
favor. Teve uma visão de Madalena na crucificação?
Uma lágrima escorreu, incontrolável, mas Maureen não sentiu
mais a necessidade de tentar reprimi-la. Havia um sentimento de
liberação, se não mesmo de segurança, em partilhar aquilo com alguém
que compreendia.
— Tive — sussurrou ela. — Aconteceu na Notre Dame.
Sinclair estendeu a mão para remover a lágrima de seu rosto.
— Minha cara Maureen, pode imaginar como isso é extraordinário?
— E por que é tão importante?
— A profecia.
Maureen esperou pela explicação que sabia que viria.
— Há uma profecia que passou de geração em geração, por
tanto tempo quanto alguém pode se lembrar. A lenda diz que era parte de
um livro maior de profecias e revelações que outrora existiu, escrito
em grego. O livro era atribuído a Sara-Tamar e por isso seria um
evangelho. Sabemos que uma importante princesa da linhagem,
Mathilda da Toscana, a duquesa de Lorena, possuía o livro original,
quando construiu a Abadia de Orval, no século XI.
— Onde fica Orval?
— No que é agora a fronteira belga. Há vários locais religiosos
muito importantes na Bélgica que pertencem à nossa história,
mas foi em Orval que as profecias de Sara-Tamar ficaram
guardadas durante alguns anos. Sabemos que o original de seu
livro passou algum tempo, depois disso, em poder dos cátaros do
Languedoc. É lamentável que o livro tenha desaparecido por
completo da história. Pouco se sabe sobre o que aconteceu. E
nossa única percepção sobre o conteúdo vem de Nostradamus.
— Nostradamus?
Maureen sentia a cabeça girar. Tinha a impressão de que
nunca deixaria de ficar chocada com a maneira como tudo se
entrelaçava. Sinclair revirou os olhos.
— Isso mesmo. Ele recebeu todo o crédito por sua espantosa
visão e clarividência, mas as profecias não eram suas. Eram de
Sara-Tamar. Ao que tudo indica, Nostradamus teve acesso a uma
versão copiada à mão do original, numa visita a Orval. Essa cópia
desapareceu pouco depois. Pode tirar suas conclusões.
Maureen soltou uma risada.
— Não é de admirar que Tammy fale dele de uma maneira tão
desdenhosa. Nostradamus era um plagiário.
— E muito esperto. Temos de lhe conceder o crédito pela
criação das quadras. Foram uma invenção sua. Ele reescreveu as
profecias de Sara-Tamar de maneira a disfarçar a fonte original e ter
o máximo de impacto em seu tempo. O velho Michel era mesmo
brilhante. E seus amplos conhecimentos de alquimia lhe
proporcionaram a capacidade de decifrar o que devia ser um
documento muito complicado. Mas pouco nos ficou de nossa Sara-
Tamar, afora a obra de Nostradamus e a única profecia que está
arraigada em alguns de nós.
— E o que diz essa profecia?
Sinclair olhou para a água caindo do cálice. Depois, fechou os
olhos e recitou uma parte da profecia:
— Marie de Nègre dirá quando chegar o momento para A
Escolhida. Ela que nasceu do Cordeiro Pascal, quando o dia e a noite são
iguais, ela que é filha da ressurreição. Ela que carrega o Sangre-el
receberá a chave, ao contemplar o Dia Tenebroso do Crânio. Ela se
tornará a nova Pastora e nos mostrará O Caminho.
Maureen estava atordoada. Sinclair tornou a pegar sua mão.
— O Dia Tenebroso do Crânio. Gólgota, o monte em que ocorreu a
crucificação, é uma palavra que pode ser traduzida como “lugar do
crânio”. O Dia Tenebroso é o que chamamos agora de Sexta-feira da
Paixão. A profecia indica que a filha da linhagem que tiver uma visão da
crucificação receberá a chave.
— A chave para quê?
Maureen ainda não entendia direito. Sentia-se atordoada com
tanta informação.
— A chave para alcançar o segredo de Maria Madalena. Seu
evangelho. Um relato na primeira pessoa de sua vida e sua época. Ela
escondeu-o com um tipo de alquimia, como já expliquei. Só pode ser
encontrado se determinados critérios espirituais forem atendidos.
Sinclair gesticulou para a estátua do jovem. Indicou em particular
o cálice em sua mão.
— Ali está o que muitos têm procurado, há muito tempo.
Maureen tentava entender e ordenar os incontáveis
pensamentos que passavam por sua mente. O cálice. Ela teve um estalo.
— O cálice que ele está segurando... é o Santo Graal?
— Isso mesmo. A palavra “Graal” vem de um termo antigo, Sangre-
El, que significa o Sangue de Deus. Simbólico da linhagem divina, é
claro. Mas a procura não era por descendentes em geral da linhagem. A
maioria dos cavaleiros do Santo Graal também era da linhagem e
todos sabiam muito bem o que o legado significava. Na verdade, eles
procuravam uma descendente específica, uma Princesa do Graal, que é
também conhecida como A Escolhida. E a filha que tem a chave que
todos queriam.
— Espere um instante. Está querendo me dizer que a busca pelo
Santo Graal era na verdade a procura pela mulher de uma profecia?
— Em parte, é isso mesmo. O filho mais novo, Yeshua-Davi, foi
para Glastonbury, na Grã-Bretanha, com o tio-avô, o homem que
ficou conhecido na história como José de Arimatéia. Juntos, fundaram o
primeiro povoado cristão na Grã-Bretanha. Foi ali que surgiram as
lendas sobre o Santo Graal.
Sinclair gesticulou para outra estátua, a alguma distância. Parecia
ser a de um rei empunhando uma enorme espada.
— Por que você acha que o rei Artur era conhecido como O Único e
Eterno Rei? Porque descendia de Yeshua-Davi. Até hoje ainda temos a
nobreza britânica que descende dele. E há muitos também na Escócia.
— Inclusive você.
— Inclusive eu, pelo lado materno. Mas também sou descendente
de Sara-Tamar pelo lado paterno, como você.
Um bip inconveniente interrompeu-o. Ele soltou um som irritado,
pegou o celular, conversou rapidamente em francês e desligou.
— Era Roland. Jean-Claude chegou para tirá-la de mim.
Maureen não foi capaz de disfarçar seu desapontamento. Ainda
não se sentia disposta a deixar tudo aquilo.
— Mas ainda não vi a terceira parte do jardim.
A expressão de Sinclair tornou-se sombria. Era uma mudança
quase imperceptível, mas Maureen notou.
— Talvez seja melhor assim. É um lindo dia e ali... — Ele indicou
com um aceno de cabeça. — ...é o jardim do filho mais velho de
Madalena.
Sinclair respondeu à pergunta tácita de Maureen da maneira vaga e
enigmática que os nativos da região pareciam apreciar, o que sempre era
irritante.
— E já que o dia está lindo, não devemos empaná-lo com as
muitas sombras que se encontram naquela parte do jardim.
Ao sair do jardim com Maureen, Sinclair parou junto do portão
dourado.
— No dia em que chegou, você perguntou por que demonstro
tanta preferência pela flor-de-lis. Flor-de-lis significa “flor do lírio” e o lírio
é simbólico de Maria Madalena, como você já sabe. A “flor do lírio”
representa a prole de Madalena. São três filhos, representados pelas três
pétalas da flor.
Ele passou um dedo pelos contornos de uma flor-de-lis no portão.
— O primeiro ramo descende do filho mais velho, João-José, sobre
o qual falarei mais tarde, quando chegar o momento apropriado. Por
enquanto basta dizer que seus herdeiros floresceram na Itália. A pétala
do meio representa a filha, Sara-Tamar, enquanto a terceira é o filho
caçula, Yeshua-Davi.
Sinclair fez uma pausa, olhando para o jardim.
— Esse é o segredo bem guardado da flor-de-lis. O motivo
pelo qual representa tanto a nobreza italiana quanto a francesa.
O motivo para sua presença na heráldica britânica. Foi usada
pela primeira vez por aqueles que descendiam de Maria Madalena,
através de sua trindade de filhos. Já foi um símbolo arcano muito
protegido, para que apenas os iniciados nessas verdades pudessem
se reconhecer uns aos outros, enquanto viajavam pela Europa.
Maureen estava espantada com essa revelação.
— E agora é um dos símbolos mais comuns do mundo.
Aparece em jóias, roupas, móveis. Escondido à plena vista durante
todo esse tempo. E as pessoas não têm a menor idéia do que
simboliza.
O Languedoc
25 de junho de 2005
Maureen estava sentada no banco do carona do Renault
esporte de Jean-Claude, enquanto esperavam pela abertura do
portão eletrônico do castelo, a fim de sair para a estrada. Pelo
canto do olho, ela divisou um homem se deslocando de maneira
estranha pela cerca do perímetro.
— Qual é o problema? — perguntou Jean-Claude, ao notar a
mudança de expressão.
— Há um homem ali, junto da cerca. Não dá para vê-lo agora,
mas ele estava ali há um momento.
Jean-Claude deu de ombros, no despreocupado estilo gaulês.
— Deve ser um jardineiro. Ou um dos seguranças de Berenger.
Quem pode saber? Ele tem muitos empregados.
— Os seguranças no portão passam o tempo todo aqui?
Maureen sentia a maior curiosidade pelo castelo e as coisas
extraordinárias lá dentro, inclusive o proprietário.
— Oui. E quase nunca se pode vê-los, porque o trabalho deles
inclui a determinação de não serem vistos. Talvez tenha sido um
deles.
Mas Maureen não teve tempo para pensar nos aspectos
corriqueiros da administração da propriedade, pois Jean-Claude
começara a relatar a história da família Paschal como a conhecia.
— Seu inglês é impecável — comentou Maureen, enquanto ele
relatava alguns dados históricos bastante complicados.
— Obrigado. Passei dois anos em Oxford aperfeiçoando-o.
Maureen estava fascinada, absorvendo cada palavra, enquanto o
respeitado historiador francês guiava o Renault pelos espetaculares
contrafortes vermelhos. O destino era Montségur, o imponente e trágico
centro de resistência final dos cátaros.
Há locais na Terra que irradiam uma aura poderosa, a um só
tempo de mistério e tragédia. Banhados por rios de sangue e séculos de
história, esses lugares assediam nosso espírito por anos e anos, muito
depois que o visitante, que por eles passa, voltou a seu lugar seguro no
mundo moderno. Maureen conhecera alguns desses lugares em suas
viagens. Durante seus anos na Irlanda, experimentara esse sentimento
em cidades históricas, como Drogheda, onde outrora Oliver Cromwell
massacrara a população inteira, assim como nas aldeias devastadas pela
Grande Fome, na década de 1840. Em Israel, Maureen escalara a
montanha em Masada, para ver o sol nascer sobre o mar Morto. Ficara
comovida além das palavras e lágrimas ao caminhar pelas ruínas do lugar
em que centenas de judeus, no século I, haviam acabado com a própria
vida, a fim de não se submeter aos opressores romanos e à escravidão
inevitável.
Enquanto Jean-Claude manobrava o Renault no estacionamento,
no sopé do monte em que ficava Montségur, Maureen teve o sentimento
intenso de que aquele era outro desses lugares extraordinários. Mesmo
naquele dia claro de verão, a área parecia amortalhada pela neblina do
tempo. Ela ergueu os olhos para o topo, enquanto Jean-Claude a levava
pela trilha.
— Uma longa subida, não é mesmo? Foi por isso que eu lhe disse
para usar sapatos confortáveis.
Maureen sempre viajava com tênis, já que andar e correr eram suas
formas prediletas de exercício. Iniciaram a longa escalada em espiral.
Maureen refletiu que sua agenda recente não lhe deixara tempo para
fazer exercícios e por isso não se encontrava em sua forma atlética
habitual. Jean-Claude, no entanto, não tinha pressa. Foram andando
devagar, enquanto ele falava mais sobre os misteriosos cátaros e
respondia às perguntas de Maureen.
— O quanto sabemos sobre seus costumes? Isto é, o que sabemos
com certeza. Lorde Sinclair disse que muito do que se escreveu sobre os
cátaros não passa de especulação.
— É verdade. Seus inimigos escreveram muitos dos detalhes que
lhes foram atribuídos, para fazer com que parecessem mais hereges e
ultrajantes. O mundo não se importa se você massacra párias. Mas se
massacra outros cristãos, que talvez estejam mais próximos de Cristo do
que você, então pode ter um problema. Por isso, historiadores da época e
posteriores inventaram muitas histórias sobre os hábitos cátaros. Mas
você sabe o que temos certeza de que é verdadeiro? A base da fé cátara
era a Oração do Senhor.
Maureen parou ao ouvir isso, a fim de recuperar o fôlego e fazer mais
perguntas:
— É mesmo? A Oração do Senhor era o mesmo Pai-Nosso que
dizemos hoje?
Ele balançou a cabeça em confirmação:
— Exatamente. Só que recitado em occitano, é claro. Quando
esteve em Jerusalém, visitou a igreja de Pater Noster, no Monte das
Oliveiras?
— Claro!
Maureen conhecia o local exato. Havia uma igreja no lado leste de
Jerusalém, construída sobre uma caverna. Era considerado o lugar em
que Jesus ensinara pela primeira vez o Pai-Nosso. Um lindo claustro
externo mostra a oração em mosaicos, em mais de sessenta línguas.
Maureen tirara uma foto do mosaico que mostrava a oração numa forma
antiga de gaélico para dar a Peter.
— A oração é apresentada ali em occitano — informou Jean-
Claude. Todo cátaro a recitava pela manhã ao acordar. Não de cor,
mecanicamente, como muitos fazem hoje, mas como um ato de
meditação e autêntica oração. Cada frase era uma lei sagrada para eles.
Maureen ficou pensando a respeito enquanto andavam. Jean-
Claude continuou:
— Eram pessoas que viviam em paz e ensinavam o que chamavam
de O Caminho, uma vida baseada em ensinamentos de amor. Era uma
cultura que reconhecia o Pai-Nosso como sua mais sagrada escritura.
Maureen percebeu aonde ele queria chegar.
— Portanto, se você está no comando da Igreja e quer eliminar
essas pessoas, não pode deixar que os outros saibam que são bons
cristãos.
— Isso mesmo. Foi o motivo pelo qual inventaram rituais bizarros
e fizeram acusações contra os cátaros, para que massacrá-los se
tornasse aceitável.
Jean-Claude parou quando alcançaram o monumento no meio da
trilha. Era um enorme bloco de granito, encimado pela cruz do
Languedoc.
— Este é o monumento do mártir — explicou ele. — Foi erguido
aqui porque é o lugar em que ficava a pira.
Maureen estremeceu. Foi dominada pela mesma sensação
angustiante, mas ao mesmo tempo inebriante, o senso de se encontrar
num lugar terrível da história. Escutou Jean-Claude relatar a história
do último local de resistência dos cátaros.
Ao final de 1243, o povo cátaro já sofrera quase meio século de
perseguição dos exércitos do papa. Cidades inteiras haviam sido
dizimadas e ruas de lugares como Bèziers haviam sido inundadas pelo
sangue dos inocentes. A Igreja estava determinada a erradicar aquela
“heresia” a qualquer custo. O rei da França ficara feliz em ajudar com
suas tropas. Cada vitória sobre os nobres cátaros, outrora prósperos,
aumentava o território francês. Os condes de Toulouse haviam ameaçado
vezes demais criar seu próprio Estado independente. Se usar a ira da
Igreja era conveniente para detê-los, o rei da França era todo a favor dessa
solução, pois ele esperava que isso aliviasse um pouco sua culpa no legado
da história.
Os líderes restantes da sociedade cátara assumiram uma última
posição de resistência na fortaleza de Montségur, em março de 1244.
Como os judeus em Masada, mais de mil anos antes, eles se juntaram em
uma comunidade para orar pela salvação do opressor. Juraram que
nunca renunciariam à sua fé. Havia até alguma especulação de que os
cátaros haviam extraído sua força do legado dos mártires de Masada,
durante o sítio final. E, como os exércitos romanos que eram seus
próprios ancestrais, as tropas papais tentaram fazer com que a presa
morresse de inanição, cortando qualquer acesso à água e comida. Isso
foi tão difícil em Montségur quanto fora em Masada, já que as duas
fortalezas se equilibravam precariamente no alto de montes, tornando
quase impossível guarnecer todos os lados. Os rebeldes das duas
culturas encontraram meios de frustrar e confundir seus opressores.
Depois de vários meses de sítio, as tropas papais decidiram que
estavam cansadas de esperar. Apresentaram um ultimato à liderança
cátara. Se confessassem e se arrependessem, assumindo a condição de
hereges e se entregando à Inquisição, seriam poupados. Mas, se não o
fizessem, seriam todos queimados vivos, pelo insulto à Santa Igreja
Romana. Tinham duas semanas para tomar uma decisão.
No último dia do prazo, os comandantes do exército papal
mandaram acender uma pira fúnebre e pediram uma resposta. E a
resposta que tiveram nunca mais seria esquecida no Languedoc. Duzentos
cátaros saíram da fortaleza de Montségur, de mãos dadas, usando suas
túnicas simples. Entoavam em coro o Pai-Nosso, em occitano, enquanto
se encaminhavam para a pira. Morreram como haviam vivido, em perfeita
harmonia com sua fé em Deus.
As lendas em torno dos últimos dias dos cátaros eram muitas,
cada uma mais dramática do que a outra. A mais memorável era a dos
enviados franceses que foram conversar com os cátaros, em nome das
tropas reais. Os enviados eram mercenários calejados. Foram convidados a
permanecer dentro das muralhas de Montségur e testemunhar os
ensinamentos cátaros. O que viram, naqueles últimos dias, teria sido tão
milagroso e impressionante que os soldados franceses pediram para ser
admitidos na fé dos Puros. Mesmo sabendo que a morte os aguardaria, os
franceses tomaram o supremo sacramento cátaro, o consolamentum, e
marcharam para as chamas com seus irmãos e irmãs recém-descobertos.
Maureen removeu uma lágrima do rosto, enquanto olhava para o
pico e depois para a cruz.
— O que você acha que foi? O que os franceses viram que foi o
suficiente para tomar a decisão de morrer com aquelas pessoas? Alguém
sabe?
— Não. — Jean-Claude sacudiu a cabeça. — Há apenas
especulação. Alguns dizem que o Espírito Santo apareceu durante os
rituais cátaros e mostrou o reino do céu que os aguardava. Outros dizem
que teve alguma relação com o infame tesouro dos cátaros.
A lenda de Montségur continuou a ser relatada, enquanto
retomavam a escada da trilha íngreme.
No penúltimo dia da resistência final dos cátaros, quatro membros
do grupo foram baixados pelo paredão mais escarpado da fortaleza e
fugiram a salvo. Acredita-se que tiveram a ajuda das informações dos
enviados franceses convertidos ao catarismo, os mesmos que morreram
com os outros um dia depois.
— Levavam com eles o lendário tesouro dos cátaros. Mas o que era
o tesouro ainda é objeto de especulação. Devia ser um tesouro fácil de
carregar, pois duas moças foram escolhidas e pode-se presumir que
eram pequenas. Além disso, deviam estar fracas depois de meses de sítio,
com racionamento de água e comida. Alguns dizem que levavam o
Santo Graal ou a coroa de espinhos, ou até mesmo o tesouro mais
valioso do mundo, O Livro do Amor.
— Que é o evangelho escrito pelo próprio Jesus Cristo, não é?
Jean-Claude confirmou com um meneio de cabeça.
— Todas as lendas a respeito desapareceram da história mais
ou menos nessa ocasião.
A historiadora e jornalista em Maureen estavam em alerta.
— Há livros que possa me recomendar? Documentos que eu
possa pesquisar, enquanto estiver na França, para obter mais
informações a respeito?
O francês soltou uma risada e deu de ombros.
— Há folcloristas no Languedoc, mademoiselle Paschal. Eles
protegem seus segredos e lendas ao não registrá-los no papel. Sei que é
difícil para muitos compreender isso. Mas olhe ao redor, ma chérie. Quem
precisa de livros quando se tem tudo isso para contar a história?
Eles chegaram ao topo da colina para contemplar as ruínas da
outrora grande fortaleza. Diante daquelas muralhas maciças, que
pareciam irradiar a história de tudo o que acontecera ao redor. Maureen
compreendeu perfeitamente o argumento de Jean-Claude. Ainda assim,
sentia-se dividida entre seu senso inato e a necessidade da jornalista de
confirmar suas descobertas.
— É um estranho sentimento para um homem que se considera
um historiador — comentou ela.
Jean-Claude deu agora uma gargalhada, um som que ecoou pelo
vale verde lá embaixo.
— Eu me considero um historiador, mas não um acadêmico. Há
uma diferença, em particular num lugar como este. Os requisitos
acadêmicos não se aplicam a tudo, mademoiselle Paschal.
A expressão de Maureen deve ter indicado que não estava
entendendo direito. Ele explicou:
— Para se conquistar os mais prestigiosos títulos no mundo
acadêmico, basta ler todos os livros certos e escrever os ensaios
apropriados. Quando fui fazer uma conferência em Boston, conheci uma
americana que tinha doutorado em história francesa, com ênfase nas
heresias medievais. Ela é considerada agora uma das maiores
especialistas no assunto. Até escreveu livros didáticos para as
universidades. E quer saber de uma coisa muito engraçada? Ela nunca
esteve na França, nem uma única vez. Nem foi a Paris, muito menos
esteve no Languedoc. Pior ainda, acha que isso não é necessário. De
acordo com os melhores preceitos acadêmicos, considera que tudo de que
precisa está em livros ou em documentos disponíveis nos bancos de dados
da universidade. Sua noção do catarismo é tão realista quanto um livro
humorístico e duas vezes mais cômica. E, no entanto, ela é reconhecida
publicamente como uma autoridade maior do que qualquer um de nós,
por causa dos diplomas que possui e das iniciais de títulos depois do
nome.
Maureen escutava atentamente, enquanto avançavam entre
rochas e ruínas magníficas. Sempre pensara em si mesma como uma
acadêmica, mas a experiência de repórter também a levava a investigar
as histórias no local em que haviam ocorrido. Não podia imaginar que se
escrevesse sobre Maria Madalena sem visitar a Terra Santa. Fizera questão
de excursionar por Versailles e visitar a prisão revolucionária da
Conciergerie enquanto pesquisava sobre Maria Antonieta. Agora, mesmo
com tão pouco tempo em contato com a história viva do Languedoc, não
podia deixar de reconhecer que era uma cultura que exigia uma
compreensão experiencial. Mas Jean-Claude ainda não acabara.
— Deixe-me dar um exemplo. Você pode ler uma das cinqüenta
versões sobre a tragédia aqui em Montségur, escrita pelos historiadores.
Mas olhe ao redor. Se nunca subiu até aqui, se nunca viu o lugar em
que o fogo ardeu, se não observou como as muralhas eram
impenetráveis, como poderia compreender? Venha comigo. Quero lhe
mostrar uma coisa.
Maureen seguiu o francês até a beira do platô, onde as muralhas
da fortaleza outrora inexpugnável haviam desmoronado. Ele apontou do
penhasco para o abismo, dezenas de metros abaixo. O vento quente
parecia aumentar de intensidade, desmanchando os cabelos de Maureen,
enquanto ela tentava se projetar na situação de uma jovem cátara ali, no
século XIII.
— Foi por aqui que os quatro escaparam — explicou Jean-
Claude. — Imagine agora como você se sentiria aqui naquela ocasião. Na
calada da noite, com a relíquia mais preciosa de seu povo presa em seu
corpo, bastante fraca, depois de meses de estresse e fome. Você é jovem e
está apavorada. Sabe que pode sobreviver, mas também sabe que todas
as pessoas que ama neste mundo serão queimadas vivas. Com tudo
isso em mente, você é baixada por um precipício pelo nada, sob um frio
intenso, em plena escuridão, com uma enorme possibilidade de cair para
a morte.
Maureen deu um suspiro profundo. Era uma experiência
desconcertante estar parada ali, onde todas as lendas eram vivas e
bastante reais. Jean-Claude interrompeu seus pensamentos.
— Imagine, agora, apenas ler esse relato numa biblioteca em New
Haven. É uma experiência diferente, não é mesmo?
Maureen balançou a cabeça em concordância:
— Tem toda a razão.
— Ah, sim... esqueci de mencionar uma coisa. A garota mais
jovem que escapou naquela noite... é bem possível que fosse sua
ancestral. Assumiu mais tarde o nome de Paschal. Foi conhecida como
La Paschalina até o dia de sua morte.
Maureen ficou aturdida ao tomar conhecimento de mais uma
ancestral da família Paschal que fora excepcional.
- O que sabe sobre ela?
- Muito pouco. Ela morreu no mosteiro de Montserrat, na fronteira
espanhola, muito idosa. Ainda se encontram ali alguns registros de sua
vida. Sabemos que se casou na Espanha com outro refugiado cátaro e que
tiveram vários filhos. Está escrito que ela levou um presente de valor
inestimável para o mosteiro, mas a natureza desse presente nunca foi
revelada publicamente.
Maureen abaixou-se e arrancou uma das flores silvestres que cres-
ciam nas fendas das muralhas em ruínas. Foi até a beira do penhasco de
onde a jovem cátara, que mais tarde se tornaria La Paschalina,
corajosamente descera pelo abismo, como a última esperança de seu
povo. Maureen jogou a pequena flor púrpura pela beira do penhasco,
murmurando uma pequena oração pela mulher que podia ou não ter
sido sua ancestral. Quase que não importava. Com a história daquele
povo magnífico e a dádiva da própria terra, aquele dia já a mudara de
uma maneira irremediável.
— Obrigada — disse ela para Jean-Claude, num tom de voz que
era pouco mais que um sussurro.
Ele deixou-a sozinha nesse instante, a refletir como seu passado e
presente estavam entrelaçados, naquela terra tão antiga e enigmática.
Maureen e Jean-Claude almoçaram na pequena aldeia na base
de Montségur. Como ele prometera, o restaurante servia comida ao
estilo cátaro. O cardápio era simples, consistindo basicamente de
peixes e vegetais frescos.
— Há uma concepção equivocada de que os cátaros eram
vegetarianos rigorosos, mas eles também comiam peixe — explicou
Jean-Claude. — Eram muito literais em relação a certos elementos na
vida de Jesus. E como Jesus alimentava as multidões com pães e peixes,
eles achavam que isso era uma indicação de que deviam incluir peixe em
sua dieta.
Maureen achou a comida muito saborosa. Estava adorando a
excursão. Sinclair tinha razão. Jean-Claude era um historiador
brilhante. Maureen fizera inúmeras perguntas enquanto desciam e ele
respondera a todas com paciência e extraordinária percepção. Ao se
sentarem para almoçar, ela não hesitou em responder às perguntas de
Jean-Claude.
Ele começou a interrogá-la sobre seus sonhos e visões. Antes, isso a
deixaria constrangida. Mas aqueles últimos dias no Languedoc haviam
aberto sua mente para o assunto. Ali, visões como as suas eram tratadas
como coisas comuns, um simples fato da vida. Era um alívio falar a
respeito para pessoas que aceitavam tudo.
— Tinha visões quando era criança? — perguntou Jean-Claude.
Ela sacudiu a cabeça em negativa.
— Tem certeza?
— Se tive, não me lembro. E não tive nenhuma deste então, até
que visitei Jerusalém. Por que pergunta?
— Apenas curiosidade. Por favor, continue.
Maureen entrou em detalhes, que Jean-Claude ouviu com a maior
atenção, fazendo perguntas a intervalos variados. Seu interesse tornou-
se maior quando ela descreveu a visão da crucificação na Notre Dame.
Ela comentou:
— Lorde Sinclair também achou essa visão muito importante.
— E é mesmo — confirmou Jean-Claude. — Ele falou sobre a
profecia?
— Falou. É fascinante. Mas me preocupa um pouco o fato de que
ele parece pensar que sou A Escolhida da profecia. O que acarreta
ansiedade pelo desempenho.
O francês riu:
— Não se preocupe. Essas coisas não podem ser forçadas. Ou você
é ou não é e, se for, isso será revelado muito em breve. Quanto tempo
pretende permanecer no Languedoc?
— Prevíamos quatro dias antes de voltar a Paris. Mas já não
tenho tanta certeza. Há muita coisa para ver e aprender aqui. Estou
ampliando meus conhecimentos.
Jean-Claude tornou-se um tanto pensativo enquanto a escutava.
— Aconteceu alguma coisa estranha ontem à noite, depois da festa?
Qualquer coisa fora do comum para você? Algum novo sonho?
Maureen sacudiu a cabeça.
— Não houve nada. Estava exausta e mergulhei num sono
profundo. Por quê?
Jean-Claude deu de ombros. Pediu a conta. Quando falou, era
quase para si mesmo:
— Isso estreita as possibilidades.
— Que possibilidades?
— Muito simples. Se você pretende partir em breve, precisamos
pensar no que podemos fazer para determinar se é mesmo uma
descendente de La Paschalina. Se é mesmo A Escolhida que nos levará
ao grande tesouro secreto.
Ele piscou para Maureen, jovial, e puxou a cadeira para que ela se
levantasse. Comentou pouco depois, ao deixarem o solo sagrado que era
Montségur:
— É melhor voltarmos logo, antes que Berenger ponha minha
cabeça a prêmio.
... Como se pode começar a escrever a respeito de um tempo que
transformou o mundo?
Esperei muito para começar, porque sempre temi que esse dia
chegasse e tivesse de viver tudo de novo. Tenho revisto em meus
sonhos aqueles anos, muitas e muitas vezes, e agora eles retornam
sem me atormentar. Porém tomar a decisão de reconstituir tudo, trazer
tudo de volta, intencionalmente, jamais foi uma opção que me
agradasse. Pois, embora tenha perdoado todos que, de alguma forma,
tiveram participação no sofrimento de Easa, a verdade é que o perdão
não traz o esquecimento.
E assim que tem de ser, no entanto, pois sou a única que restou
capaz de contar o que realmente aconteceu durante aqueles dias de
trevas.
Há quem diga que Easa planejou tudo, desde o início. Essa não
é a verdade. Foi planejado para Easa e ele viveu em sua força e
obediência a Deus. Bebeu da taça que lhe foi dada com uma coragem e
uma graça nunca vistas antes ou depois, a não ser em sua mãe.
Apenas sua mãe, a Grande Maria, ouviu o chamado do Senhor com a
mesma clareza e apenas sua mãe respondeu a esse chamado com a
mesma coragem.
Nós, os outros, tivemos de nos tornar humildes para aprender
com a graça dos dois.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS
CAPÍTULO DOZE
Carcassonne
25 de junho de 2005
Tamara Wisdom e Derek Wainwright pareciam com qualquer
outro típico casal americano de turistas, nos arredores da cidade-
fortaleza murada de Carcassonne. Encontraram-se no saguão do
hotel de Derek, que a beijou com paixão. O sorriso de Tammy foi
tímido quando se desvencilhou gentilmente de seus braços.
— Haverá bastante tempo para isso mais tarde, Derek.
— Promete?
— Claro que prometo. — Ela passou a mão pelas costas de
Derek, para confirmar o compromisso. — Mas você sabe como sou
viciada em trabalho. Depois que eu resolver o problema, podemos
tirar o resto do dia para... nos divertir.
— Está certo. Vamos embora. É melhor eu guiar.
Derek pegou a mão de Tammy e levou-a até o carro que
alugara, que os esperava no estacionamento. Ele saiu para a rua,
contornou a cidade murada e pegou a estrada que seguia pelas
colinas.
— Tem certeza de que é seguro? — perguntou Tammy.
Derek balançou a cabeça.
— Todos partiram para Paris esta manhã. Todos, a não ser...
— A não ser quem?
Parecia que ele estava prestes a contar, mas reconsiderou.
— Nada. Um deles continua no Languedoc, mas está ocupado
demais hoje e não há a menor possibilidade de nos encontrar.
— Pode explicar?
Derek riu:
— Ainda não. Já é um absurdo eu estar correndo esse risco.
Sabe qual é a penalidade se eu for apanhado?
Tammy sacudiu a cabeça em negativa.
— Não. Qual é? Uma cerimônia de iniciação duplamente secreta?
Ele lançou-lhe um olhar rápido.
— Pode gracejar quanto quiser, mas os caras não são de
brincadeira.
Derek passou o dedo indicador direito pela garganta num gesto de
corte.
— Não pode estar falando sério.
— Estou, sim. A penalidade por revelar segredos da Guilda para
quem não é membro dela é a morte.
— Já aconteceu alguma vez? Ou é apenas o bicho-papão que
inventaram para aumentar a mística da sociedade secreta e controlar
seus membros?
— Há um novo Mestre da Justiça... é assim que chamamos
nosso líder... e o cara é radical.
Tammy pensou a respeito por um momento, a sério. Derek lhe
confessara sua participação na Guilda havia alguns anos, numa
indiscrição de bêbado. Mas depois se calara e não quisera mais falar sobre
o assunto. Tammy arrancara mais informações dele na noite passada,
durante a festa. Ao final, a combinação de álcool e o desejo por ela, havia
muito frustrado, fizeram com que ele revelasse que o quartel-general
ficava nos arredores de Carcassonne. Derek até se oferecera para lhe
mostrar o santuário. Mas, se ele falava sério sobre as terríveis
conseqüências da descoberta, então era um peso que Tammy não queria
ter na consciência.
— Se é tão perigoso assim, Derek, não quero pressioná-lo a fazer
isso. Não quero mesmo. Posso usá-lo como uma fonte anônima se
decidir incluir a Guilda em meus projetos. Vamos voltar para
Carcassonne e almoçar. Você pode me revelar alguns segredos ali, na
segurança de um café, em plena luz do dia.
Pronto. Ela lhe oferecera uma saída fácil. Mas Derek surpreendeu-a
ao não aceitar.
— Não. Quero mostrar para você. Para ser franco, agora mal
posso esperar para mostrar tudo.
Tammy sentiu-se apreensiva com o entusiasmo na reação de
Derek.
— Por quê?
— Você vai ver.
Derek estacionou atrás de uma sebe, a várias centenas de metros
da entrada para a propriedade. Foram andando com toda a cautela. Saíram
da estrada para pegar um caminho estreito e sem pavimentação.
Percorreram mais cem metros até que a capela de pedra apareceu. Era o
local em que os membros da Guilda haviam realizado seu culto na noite
anterior.
— Aquela é a igreja. Entraremos ali mais tarde, se você quiser ver
o que tem dentro.
Tammy balançou a cabeça, contente em segui-lo, para descobrir
para onde ele a levava. Havia anos que conhecia Derek, mas sempre fora
um contato superficial. Compreendia agora que não o conhecia
bastante bem para avaliar quais eram seus verdadeiros motivos. Pensara
a princípio que eram impulsos masculinos básicos e primitivos, que ela
poderia controlar. Mas havia agora uma súbita determinação, algo que
nunca percebera antes. E que a deixava assustada. Graças a Deus que
Sinclair e Roland sabiam onde ela se encontrava.
Derek levou-a para um bangalô comprido por trás da igreja. Tirou
uma chave do bolso e abriu a porta. A fachada banal na construção não
preparou Tammy para o tamanho e o interior ornamentado do Salão da
Guilda. Era suntuoso, cada palmo do espaço de parede coberto por obras
de arte... e cada uma delas era uma cópia de um quadro de Leonardo Da
Vinci. Na parede em frente à porta, o primeiro espaço visível quando se
entrava no salão, havia duas versões do São João Batista, de Leonardo,
penduradas lado a lado.
— Meu Deus! — sussurrou Tammy. — Então é verdade. Leonardo
Da Vinci era um joanita. Um herege total.
Derek riu.
— Por que padrões? Para a Guilda, os “cristãos” que seguem Cristo são
os verdadeiros hereges. Gostamos de chamá-lo de “O Usurpador” e “O
Sacerdote Ímpio”.
Derek fez um gesto de 360 graus para indicar as obras de arte,
falando num tom solene, que Tammy nunca ouvira antes:
— Leonardo Da Vinci foi o Mestre da Justiça em sua época, o líder
de nossa Guilda. Acreditava que João Batista era o único verdadeiro
Messias e que Jesus roubou sua posição por meio de um complô das
mulheres.
— Complô das mulheres?
Derek confirmou com um meneio de cabeça.
— É um dos fundamentos de nossa tradição. Salomé e Maria
Madalena conspiraram para a morte de nosso Messias, a fim de pôr seu
falso profeta no trono. A Guilda refere-se a ambas como as meretrizes.
Sempre foram, sempre serão.
Tammy fitou-o, incrédula.
— Acredita mesmo nisso? Até que ponto está comprometido com
essa filosofia, Derek? E como manteve isso em segredo?
Ele deu de ombros.
— O segredo faz parte de nossos princípios. Quanto à filosofia, fui
criado para acreditar e estudei os textos sagrados por anos. É tudo muito
convincente.
— O que é convincente?
— O material que temos em mãos. Chamamos de O verdadeiro livro
do Santo Graal. Vem sendo passado de geração em geração, desde a época
dos romanos. São textos escritos pelos seguidores originais do Batista. O
livro descreve em detalhes os eventos relacionados com sua morte. Você
acharia fascinante.
— Posso vê-lo?
— Darei uma cópia para você. Tenho uma em meu quarto no hotel.
Havia mais do que um toque de insinuação na declaração.
Tammy fez uma anotação mental e tentou conter um arrepio exterior.
Podia imaginar o que Derek esperava em troca daquele documento tão
valioso. Ela virou-se e foi andando devagar pelo vasto salão, sempre
olhando para os quadros.
— Já notou o que todos têm em comum? — perguntou Derek.
— A não ser pelo fato de que são todos de Leonardo? — Tammy
sacudiu a cabeça em negativa. Não podia perceber outra ligação além
da óbvia. — Não. Pensei a princípio que todos mostravam João Batista,
mas não é o que acontece. Aquele ali parece um detalhe da Ultima Ceia,
mas isso não faz sentido, baseado no que acabou de me contar. Por que
estaria aqui se a Guilda despreza Jesus como um usurpador e culpa
Maria Madalena pela morte de João?
— É por isso.
Derek ergueu a mão direita na frente de seu rosto, num gesto
específico. O dedo indicador apontava para o céu, o polegar estava virado
de lado para cima, enquanto os outros três dedos estavam virados para
baixo. Tammy olhou mais atentamente. Um dos apóstolos no famoso
quadro de Leonardo fazia o mesmo gesto com a mão... e na frente do
rosto de Jesus, de uma maneira quase ameaçadora.
— O que isso significa? Já vi o gesto antes, no quadro de João
Batista, no Louvre. — Tammy apontou para a cópia na parede. —
Aquele ali. Presumi que fosse uma referência ao paraíso, o dedo
indicando o céu.
Derek estalou a língua para ela, num desapontamento zombeteiro.
— Pense bem, Tammy. Você deve saber que Leonardo nunca foi óbvio.
Chamamos esse gesto de “Lembre-se de João”. Tem vários significados.
Primeiro, se você observar bem, vai verificar que os dedos formam a letra
J, de João. O indicador direito também representa o número um. Assim,
o gesto significa “João é o primeiro Messias”. E há uma coisa ainda mais
importante no gesto “Lembre-se de João”... a relíquia.
— Vocês têm uma relíquia de João?
O sorriso de Derek foi insinuante.
— Eu gostaria que estivessem aqui para poder lhe mostrar, mas
o Mestre da Justiça nunca as deixa longe de sua vista. Temos os ossos
do dedo indicador direito de João, o mesmo dedo usado para fazer o
gesto que tem sido o nosso código público há mil anos. Permitia que
cavaleiros e nobres se reconhecessem na Idade Média. Ainda usamos o
código hoje. O dedo de João é usado em nossas cerimônias de iniciação. E
sua cabeça também.
Isso deixou Tammy perplexa.
— Vocês têm a cabeça de João?
Derek soltou uma risada.
— Temos, sim. O Mestre da Justiça a lustra todos os dias. É a
parte central de todos os rituais da Guilda.
— Como sabe que é mesmo a cabeça de João?
— Pela tradição. Vem passando de uma geração para outra. Há
uma grande história por trás de tudo isso, mas deixarei que você leia em O
verdadeiro livro do Santo Graal. Mas há mais do que apenas o dedo
indicador. Aparece em todos esses quadros.
Mesmo enquanto conversava sobre um assunto tão importante,
Tammy notou que o âmbito da atenção de Derek parecia limitado e que
ele pulava de um assunto para outro. Seria intencional? Ele tinha uma
meta? Ela não dera muito crédito antes à sua inteligência, mas agora
experimentava a sensação assustadora de que o subestimara. Sua mente
estava em disparada, enquanto ela tentava manter uma aparência
tranqüila. O homem seria um fanático? Por que ela não notara antes
que suas opiniões eram tão arraigadas? Tammy tinha de fazer um esforço
para não se deixar dominar pela idéia angustiante de que havia uma
possibilidade de perder sua linda cabeça de cabelos negros.
Derek mostrou os outros quadros, apontando o gesto “Lembre-se
de João” em cada um. Havia quadros em que o próprio João Batista fazia
o gesto. Na Última Ceia, o gesto era feito por um dos apóstolos, Tomás,
visivelmente agitado.
— Vários apóstolos eram seguidores de João muito antes de Jesus
aparecer — explicou Derek. — O importante nesta versão da Última
Ceia é que Jesus está anunciando que um deles o trairá. Tomás confirma
isso e explica o motivo com o gesto “Lembre-se de João”... será em
memória de João. O destino de João se tornará seu destino. É o que ele diz
com o indicador no rosto do falso profeta. Você será martirizado como
João foi e esse será seu castigo.
Tammy sentia-se chocada com essa nova e surpreendente
interpretação de um dos quadros mais famosos do mundo. E não pôde
resistir à pergunta seguinte:
— Então você provavelmente não acredita que Maria Madalena
sentou ao lado de Cristo na Última Ceia?
Derek cuspiu no chão em resposta.
— E isso o que penso dessa teoria e de todos os que acreditam nela.
Derek acenou com a mão para encerrar as explicações sobre a
Última Ceia. Mas ainda não encerrara a aula de história para Tammy.
Levou-a para o lugar em que havia cópias das duas versões dos quadros
famosos de Leonardo conhecidos como A madona das rochas. Apontou
primeiro para a tela à direita.
— Leonardo foi incumbido de pintar um quadro da Virgem e do
Menino Jesus para a festa da Imaculada Conceição. Aparentemente, não
era isso o que a Irmandade da Imaculada Conceição queria e o quadro foi
rejeitado. Mas tornou-se um clássico de nossa Guilda e todos têm uma
cópia em casa.
O quadro focalizava a Madona com o braço direito em torno de um
bebê, com a mão esquerda sobre outro bebê, sentado por baixo. Um anjo
observava a cena.
— Todos acham que é Maria, mas estão enganados. O título
original do quadro era A madona das rochas, não A virgem das rochas.
Olhe bem. A mulher é Isabel, a mãe de João Batista.
Tammy não estava convencida.
— O que o faz pensar assim?
— A tradição da Guilda, em primeiro lugar. Sabemos que é. — A
resposta era arrogante em sua certeza. — Mas há também a história da
arte para nos apoiar. Leonardo teve uma tremenda briga com a
Irmandade por causa do pagamento do quadro. Por isso, tratou de se
vingar, fazendo com que todos pensassem que entregava a cena
tradicional encomenda da. Na realidade, porém, ele pintou uma versão de
toda a nossa filosofia, como um tapa na cara. Era sua ironia insidiosa.
Grande parte da arte de Leonardo expressava sua maneira de escarnecer
da Igreja e escapar impune, porque era muito mais esperto do que os
papistas idiotas em Roma.
Tammy tentou não demonstrar sua surpresa pelo fanatismo
ostensivo. Nunca antes observara esse aspecto de Derek, que a deixava
cada vez mais apreensiva. Tateou o bolso para sentir a segurança do
celular. Podia ter de transmitir um SOS, se a situação ali se tornasse
perigosa. Mas sentia-se dividida. Como escritora e cineasta, estava
recebendo ouro em pó naquela conversa... mas ousaria usá-lo? Derek
continuava entusiasmado com seu ídolo, Leonardo Da Vinci.
— Sabia que a Mona Lisa é na verdade um auto-retrato?
Leonardo desenhou a si mesmo e depois alterou o desenho para a Mona
Lisa que conhecemos hoje. Foi tudo uma grande piada para ele. E é
uma piada para nós agora, ver as filas imensas de pessoas que querem
ver o quadro. Ele odiava as mulheres por causa da mãe, como deve saber.
Até aumentou as restrições às mulheres na Guilda, como meio de puni-
las por sua infância miserável. Isso está registrado em O verdadeiro livro
do Santo Graal, como você vai descobrir.
Derek apresentou uma breve história de Leonardo... como o artista
fora abandonado pela mãe natural e tivera uma infância confusa, com
uma mãe adotiva difícil. Todos os relacionamentos documentados de
Leonardo com as mulheres haviam sido negativos, até mesmo
traumáticos. Sua aversão às mulheres fora bem pesquisada por
historiadores, que também informaram que o artista fora preso e
condenado por sodomia. Mas a pior mácula em sua reputação ocorrera
quando Da Vinci adotara um menino de dez anos como seu aprendiz e o
mantivera como companheiro por muitos anos. A vida pessoal de
Leonardo era com freqüência escandalosa, mas ele conseguia se manter
a salvo, na maior parte do tempo, de problemas com as autoridades, ao
pintar quadros para a Igreja e muitos patronos ricos, que sempre davam
um jeito de ajudá-lo.
— Cada vez que era obrigado a pintar uma mulher, como a Mona
Lisa, ele a transformava em alguma espécie de piada, acima de tudo
para se divertir. Era assim que reagia quando tinha de pintar coisas de
que não gostava.
Derek tornou a se virar para A madona das rochas.
— Pelo que sabemos, a única mulher que Leonardo respeitou foi
Isabel, a perfeita mulher e mãe. A verdadeira Madona. Aqui ela está com
o braço em torno deste menino... seu filho. Obviamente, é João.
Tammy balançou a cabeça em concordância. Não havia a menor
dúvida de que o bebê aninhado nos braços da mulher era mesmo João
Batista.
— Repare agora na mão esquerda de Isabel. Ela está afastando o
menino Cristo, mostrando que ele é inferior a seu filho. Leonardo até
posicionou Jesus fisicamente abaixo de João, para demonstrar sua
inferioridade. E, finalmente, observe os olhos do anjo Uriel. Para quem
ele olha com adoração? Notou no primeiro quadro? Ele aponta para João,
mas também faz o gesto de “Lembre-se de João”.
Derek fez uma pausa.
— O pessoal da Imaculada Conceição ficou infeliz com o quadro
original e a mensagem joanita óbvia. Obrigaram Leonardo a pintar um
segundo quadro, exigindo que desta vez Maria e Jesus tivessem halos e
que o anjo não apontasse para João. Olhe aqui e verá que eles receberam
o que pediram... mais ou menos. Maria e Jesus têm um halo, mas João
também tem. Leonardo também deu a João um bastão batismal, para
deixar ainda mais claro quem ele é e indicar mais autoridade. Nos dois
quadros, Jesus concede sua bênção a João. Mas, olhando para os quadros
agora, quem você acha que Leonardo reverenciava como o verdadeiro
Messias e profeta?
Tammy não podia deixar de dar uma resposta honesta.
— João Batista. Isso é evidente.
— Exatamente. O arcanjo Uriel afirma a superioridade do
Batista, assim como a mãe de João. Em nossa tradição, cultuamos
Isabel, da mesma maneira com que os iludidos cristãos reverenciam a mãe
de Jesus. Nossas meninas são criadas à imagem de Isabel, para se
tornarem Filhas da Justiça.
Tammy alteou uma sobrancelha.
— E o que isso significa?
Derek deu um sorriso insinuante e chegou mais perto.
— Que as mulheres devem saber qual é seu lugar, que devem ser
obedientes e subservientes para com os homens. Mas, na verdade, não é
tão ruim assim. Depois que se tornam mães de um filho homem,
elas ganham o título de “Uma Isabel” e passam a ser tratadas como
rainhas. Devia ver os diamantes que minha mãe ganhou para cada um
de seus filhos. E pode ter certeza de que, se conhecesse sua vida
superprivilegiada, não sentiria nem um pouco de pena.
— E você apóia essa idéia de mulheres subservientes?
Tammy mantinha uma aparência firme, sem deixar transparecer
seu crescente nervosismo.
— Como eu disse, fui criado assim. E é certo para mim.
Derek deu de ombros. Tammy sacudiu a cabeça, mas depois
desatou a rir, meio irônica, meio nervosa.
— O que foi? — perguntou Derek.
— Pensei neste salão com toda a heresia de Da Vinci, em
comparação com o salão de Sinclair, com toda a heresia de Botticelli. Como
se fosse o “Combate Mortal da Renascença”. Da Vinci contra Botticelli.
Derek não riu.
— Seria engraçado se não fosse tão sério. A rivalidade entre os
descendentes de João e os descendentes de Jesus tem causado muito
derramamento de sangue. E ainda causa problemas agora, mais do que
você imagina.
Tammy fitou Derek com uma confusão simulada. Sabia exatamente
aonde ele queria chegar, mas não podia deixá-lo perceber. Perguntou com
uma cara inocente:
— Os descendentes de João?
Derek parecia surpreso.
— Claro. Vai me dizer que não sabia disso?
Tammy sacudiu a cabeça, mantendo a fachada.
— Não, não sabia.
A expressão de Tammy suplicava que ele continuasse.
— Não sabia que João teve um filho? A Guilda foi fundada assim,
pelos descendentes de João. É uma longa história, porque a metade da
família acabou se vendendo aos papistas e aos seguidores de Cristo,
como os Medici.
Derek fez uma careta de aversão à menção da primeira família
histórica da Itália.
— Até mesmo Da Vinci acabou a serviço do inimigo, no final de sua
vida. Mas achamos que ele foi mantido cativo na França contra a sua
vontade. Mas os outros, o núcleo propriamente dito, formaram nossa
Guilda. Na verdade, você está olhando para um descendente de João
Batista.
Tammy temia o inevitável... acabar no quarto de hotel de Derek e
pior ainda. Mas não havia alternativa. Tinha de pegar O verdadeiro livro
do Santo Graal e descobrir a história dos descendentes de João. Tinha
a oportunidade de ser a primeira pessoa fora da Guilda a obter essas
informações valiosas e não queria perdê-la. O problema era muito mais
profundo do que qualquer um deles imaginara. Por isso, não podia
partir sem o livro. Faria isso por seu futuro filme, por seus amigos na
Ordem das Maçãs Azuis e, acima de tudo, por Roland. É claro que Roland
nunca saberia o que ela tivera de fazer para obter os documentos.
Precisaria inventar uma história verossímil a respeito. Ainda bem que o
motorista do Château des Pommes Bleues só viria buscá-la no final da
tarde. Teria tempo de imaginar uma história plausível durante a viagem
de volta para Arques.
Tammy insistiu em almoçar antes de ir para o hotel de Derek.
Pediu o vinho tinto Pays d'Oc. Vira Derek tomar algumas pílulas para a
ressaca da noite anterior e tinha alguma esperança de que a mistura
com o vinho pudesse deixá-lo mais dócil, ou mesmo inconsciente.
Durante o almoço, Derek explicou que revelara os segredos da Guilda
para Tammy porque queria que ela os divulgasse em livro e num filme.
Nunca poderia ser citado expressamente — tinha seus planos, mas não
era louco —, mas queria que alguém revelasse a verdade sobre a Guilda.
— Mas por quê?
Não fazia sentido para Tammy. Derek era leal à Guilda e
obviamente influenciado por seus ensinamentos. A Guilda era
responsável em parte pela riqueza que sua família acumulara. Por que
Derek se viraria contra eles?
— Preste atenção, Tammy — sussurrou ele, inclinado sobre a
mesa. — Estou disposto a lhe contar uma porção de coisas... crimes
graves, até mesmo assassinato. Mas não pode deixar ninguém saber que
sou a fonte das informações ou serei um homem morto.
— Ainda não estou entendendo. Por que se vira contra uma
organização que é tão importante para você e sua família?
— Por causa do novo Mestre da Justiça, Cromwell. É um
desgraçado insano e vai arrastar todos para o fundo do poço. Na
verdade, estou sendo leal, não desleal. A única esperança que temos de
salvar a Guilda é afastá-lo antes que ele cause danos permanentes. Quero
que você denuncie Cromwell, não a Guilda. Faça com que ele pareça uma
ameaça incontrolável, um fanático enlouquecido.
— Por que me confia essa missão?
Tammy sentia-se cada vez mais apreensiva. Aquela história era
muito maior do que previra e muito mais tenebrosa do que desejava.
Derek fitou-a com uma expressão presunçosa, enquanto roçava os dedos
por seus braços.
— Porque você é ambiciosa e vai adorar as informações exclusivas
para um livro e um filme. E porque meu fundo de investimentos é maior
do que o PIB de muitas nações independentes, portanto você também
sabe que assinarei todos os cheques de que precisar para financiá-la.
Não estou certo?
Tammy ofereceu um sorriso meigo e pôs a mão sobre a dele,
fazendo um esforço para não vomitar. Tinha de ir até o fim, da melhor
forma possível.
— Claro que está.
O que Derek não revelou na conversa foi que a delegação americana
planejava dar um golpe dentro da Guilda. Primeiro, precisavam atar os
fios soltos na Europa, eliminando os homens mais poderosos ali. Seu pai,
Eli Wainwright, estava preparado para se tornar o próximo Mestre da
Justiça — com Derek como seu eventual sucessor —, se pudessem
neutralizar a estrutura de poder européia.
Derek Wainwright sorriu para Tammy, com a expressão astuta de
um predador. Vinha preparando Tammy para aquele propósito desde o
início. Se ela pensava que o enganara para que revelasse segredos da
Guilda, usando a astúcia feminina, então era uma vagabunda estúpida
que merecia ser usada exatamente da maneira como ele tencionava. De
qualquer forma, seria uma maneira bastante agradável de encerrar a
tarde. Afinal, aquela meretriz já não o provocara demais?
Tammy tomou cuidado para não acordar Derek enquanto recolhia
suas coisas. Precisava sair dali, o mais depressa possível. Mal podia
esperar para voltar à segurança do castelo e tomar um longo banho de
chuveiro. Tammy especulou por um instante quanto tempo levaria para
tirar da pele o fedor dos fanáticos da Guilda.
Ainda bem que o pior resultado possível fora evitado. Tammy
calculara de forma acurada: o consumo de pílulas por Derek combinara
com o vinho e o cansaço, levando-o a apagar assim que chegaram ao
quarto no hotel.
A princípio, tivera de se esquivar. Derek ainda estava bem desperto
quando entraram no quarto, mas Tammy o desviara para sua obsessão
óbvia: derrubar seu rival, John Simon Cromwell. Ela enfatizara que
precisava de tanta informação quanto possível, se ia se tornar sua
parceira num jogo tão perigoso. Derek entregara o que prometera e muito
mais, outros documentos e segredos, como uma descrição minuciosa e
chocante de um brutal assassinato cometido em Marselha.
Tammy precisara recorrer a todo o seu controle para não vomitar
ao ouvir o relato da execução de um homem do Languedoc, dois anos
antes. O homem fora decapitado e o dedo indicador direito cortado, como
um símbolo da vingança da Guilda. O conhecimento desse ato seria
abominável para Tammy em quaisquer circunstâncias. Mas ela
conhecia o homem: era o Grão-Mestre da Ordem das Maçãs Azuis. Não
podia deixar que Derek percebesse que reconhecera o crime ao ouvir a
descrição. Tomara o cuidado de se manter tão impassível quanto
possível.
Tammy se esforçava para pegar tudo em silêncio, mas esbarrou
num abajur, que caiu no chão com um baque alto. Ouviu Derek se mexer
na cama com o barulho e ficou irritada com o descuido.
— Ei... — balbuciou ele, atordoado. — Para onde você vai?
— O carro de Sinclair está aqui para me levar de volta a Arques.
Tenho de chegar a tempo para o jantar que marquei com Maureen.
Ele tentou se sentar na cama, levou as mãos à cabeça e gemeu.
Tornou a arriar na cama, murmurando:
— Ah, Maureen... Já ia me esquecendo de contar.
Tammy ficou imóvel.
— Contar o quê?
— Ela pode ter um problema hoje.
— Como assim?
— Ela ia sair com Jean-Claude de la Motte hoje, não é mesmo?
Tammy meneou a cabeça, pensando tão depressa quanto podia,
num esforço para imaginar a situação. Derek rolou na cama e
espreguiçou-se, lânguido.
— Acorde, menina. Jean-Claude é um dos nossos. Ou talvez
eu deva dizer um deles. É o braço-direito do caso de hospício
que é o nosso Mestre da Justiça e líder do capítulo francês da
organização. Está conosco desde que era garoto. Seu verdadeiro
nome nem mesmo é Jean-Claude, mas Jean-Baptiste.
Ele fez uma pausa, para soltar uma risada, antes de
acrescentar:
— Mas é provável que ele não faça nada com ela. Pelo
menos por enquanto. Estão muito interessados em saber se ela
pode ou não descobrir o tesouro durante sua permanência aqui. E
ambos sabemos que há um limite de tempo para essa
possibilidade.
Tammy sentia a cabeça girar. Não podia processar a traição de
Jean-Claude, não tão depressa. Ele era amigo de Sinclair e Roland
havia anos. Os dois depositavam nele confiança total. Há quanto
tempo aquela infiltração começara? Mas havia outra coisa que a
incomodava e precisava saber. Rezou para não parecer tão abalada
quanto estava, ao fazer a pergunta, com uma calma que não sentia:
— Em termos históricos, A Escolhida sempre foi eliminada
antes que o tesouro fosse descoberto. Por que agora seria
diferente? Se Jean... Baptiste e seu líder acreditam que Maureen é
a mulher da profecia, por que não se livrariam dela antes que possa
assumir esse papel? Como fizeram com Joana e Germana?
Derek bocejou.
— Porque querem que ela os leve ao livro de Madalena, para
que possam destruí-lo. Depois disso, sua amiga também se
tornará história... antes que tenha uma chance de escrever a
respeito.
— Por que está me contando isso? — indagou Tammy,
cautelosa.
— Porque quero que Jean-Baptiste caia junto com seu líder. E
calculo que, assim que souber que foi enganado, seu Grão-Mestre
Sinclair vai eliminá-lo por mim.
Tammy teve vontade de gritar com ele, explicar que Sinclair
e os outros em sua organização não eram como Derek e os
fomentadores de ódio na Guilda. Mas não ousava revelar qualquer
coisa sobre sua posição antes de passar pela porta, sã e salva.
Derek ainda não acabara.
— Enquanto isso, eu diria apenas que, se fosse você, tiraria
aquela ruiva do Languedoc o mais depressa possível.
Tammy virou-se para sair, mas parou de repente. Tinha de
fazer uma última pergunta. Precisava saber até que ponto fora
enganada por Derek durante todos aqueles anos.
— Como você se sente em relação a tudo isso?
— Para ser franco, não me importo com uma coisa nem com
outra. — Derek parecia extremamente entediado, ansioso em voltar ao
sono induzido pelo vinho. — Embora sua amiga seja bastante
simpática, ainda é uma descendente de Jesus, o que a torna minha
inimiga natural. E é assim que tem de ser. Talvez você não possa
compreender, mas nossas crenças são muito antigas. Quanto à
descoberta dos pergaminhos da prostituta, todos parecem ter certeza
de que acontecerá desta vez, por que sua amiga atende a todos os
requisitos da profecia, não apenas alguns. Mas não estou preocupado
com isso. Afinal, por que isso é tão importante?
Ele riu pela segunda vez. Virou-se de lado, ergueu o tronco, apoiado
no cotovelo, e fitou-a nos olhos.
— A situação é muito engraçada. Ninguém quer o que está nos
pergaminhos. O Vaticano não quer reconhecê-los por causa do
conteúdo, o que também acontece com as outras correntes cristãs. Os
historiadores não querem porque fará com que todos os acadêmicos e
estudiosos da Bíblia pareçam idiotas. Portanto é bem possível que
nossos inimigos escondam os pergaminhos antes que o público saiba o
que contêm. O que nos pouparia o trabalho de resolver o problema.
Ele bocejou de novo, como se o assunto fosse irrelevante demais
para continuar a falar a respeito. Tornou a se virar de costas, enquanto
acrescentava:
— Claro que desprezamos os pergaminhos porque sabemos que
apregoam mentiras sobre João Batista. E porque eles foram escritos por
uma prostituta.
Tammy queria sair correndo do hotel, escapar o mais depressa
possível de Derek e de sua abominável filosofia da Guilda. Apertava o
telefone com toda a força e tirou-o do bolso assim que saiu. Não havia
tempo para pensar, não havia tempo para fazer qualquer outra coisa que
não descobrir onde Maureen se encontrava naquele momento.
Ela apertou o código para o número de Roland. Teve vontade de
chorar quando ouviu seu confortador sotaque occitano. A ligação
estava péssima e ela teve de gritar várias vezes para ser ouvida:
— Maureen! Você sabe onde Maureen está agora?
Droga! Ela não conseguiu entender a resposta. Gritou de novo:
— Como? Não consigo ouvir! Grite, Roland! Grite para que eu possa
ouvi-lo!
Roland gritou:
— Maureen está aqui!
— Tem certeza?
— Tenho. Ela está à sua procura. Quer...
A ligação foi interrompida. Melhor assim, pensou Tammy. Não quero
explicar nada para Roland enquanto não tiver tempo de pensar a respeito.
Como Maureen estava sã e salva no Château des Pommes Bleues, havia
tempo para recuperar o controle. Teria de conversar com Sinclair antes
do jantar para determinar uma estratégia.
Tammy verificou a hora no celular. Deveria se encontrar com o
motorista em menos de meia hora, perto dos portões da cidade. Não era
uma longa caminhada, mas ela sentia-se fraca e não tinha certeza de que
poderia confiar em suas pernas trêmulas para andar depressa e chegar na
hora combinada. Começou a andar, tentando normalizar a respiração,
enquanto avaliava tudo o que descobrira com e sobre Derek. Ao recordar
tudo, com absoluta nitidez, ficou com o estômago embrulhado. Avistou o
jardim de um pequeno hotel, bem à sua frente. Ao alcançar os arbustos,
teve um violento acesso de vômito.
Maureen sentia-se culpada por negligenciar Peter. Mas não o
encontrou em parte alguma quando voltou de sua excursão com Jean-
Claude.
— Não vejo o abbé desde esta manhã — informou Roland. — Ele
tomou o café da manhã tarde e saiu em seguida, no seu carro alugado.
Mas hoje é domingo. Ele pode ter ido à igreja. Temos muitas por aqui.
Maureen não pensou mais a respeito. Peter era um homem vivido e
falava um francês fluente. Portanto era lógico que saísse à procura de
uma missa e depois decidisse ver mais alguma coisa daquela
extraordinária região.
Marcara um jantar no castelo com Tammy. Sentia-se ansiosa por
isso, mas também não queria magoar os sentimentos de Peter. Perguntou
a Roland:
— Tem algum meio de fazer contato com Tamara Wisdom? Esqueci
de perguntar se ela tem um celular.
— Ela tem, sim. E posso falar com ela por você, já que tenho de
lhe perguntar uma coisa, a pedido de Lorde Sinclair. Algum problema?
— Não. Eu só queria saber se ela se importaria se Peter
jantasse conosco.
— Tenho certeza de que ela não vai se incomodar, mademoiselle
Paschal. Creio até que ela conta com a presença do abbé, pois pediu-me
para providenciar um jantar para quatro pessoas, às oito horas.
Maureen agradeceu e retirou-se para seu quarto. Passou primeiro
pelo quarto de Peter e bateu na porta. Não houve resposta. Ela virou a
maçaneta e empurrou a porta devagar. Deu uma espiada no quarto.
Avistou as coisas de Peter no lado da cama, a Bíblia encadernada em
couro e o rosário de contas de cristal. Mas ele não se encontrava ali.
Maureen voltou para sua enorme suíte. Pegou o maior dos
cadernos de anotações. Queria escrever sobre Montségur, enquanto as
impressões ainda eram intensas em sua mente. Mas ao tirar a faixa
elástica e abrir as páginas, ficou surpresa quando outra história de
martírio aflorou em sua mente.
Maureen escalou a montanha escarpada na região do mar Morto ao
amanhecer, em sua visita à Terra Santa. Subiu pela trilha rochosa em
ziguezague, junto com um grupo numeroso. Não sabia o que a levava a
efetuar a árdua escalada. Mesmo ainda tão cedo, o calor já era intenso.
Todos os outros na trilha naquela manhã eram judeus. Para eles, era uma
peregrinação óbvia e emocional. Maureen não podia fazer qualquer
alegação de herança ou religião.
Ela parou muitas vezes na subida, para admirar a paisagem de
uma beleza quase angustiante, as cores faiscando no que parecia ser uma
planície lunar, refletindo-se nos cristais de sal da água estranha e
parada.
Ouviu fragmentos de conversa dos peregrinos enquanto subiam.
Ela não falava hebraico, mas a paixão dos judeus pela escalada era
inegável. Especulou se eles falavam sobre os mártires de Masada, que
preferiram morrer a viver no cativeiro, ou sujeitar suas mulheres e
crianças à escravidão e degradação nas mãos dos romanos.
Ao chegar ao pico, ela explorou o que restava do que fora outrora
uma grande fortaleza. Vagueou pelas câmaras em ruínas e muralhas
desmoronando. Porque o espaço era surpreendentemente vasto, ela
se descobriu sozinha, separada dos outros peregrinos, que exploravam,
por razões pessoais, outros pontos das ruínas sagradas. Havia uma
serenidade envolvente naquele lugar, um silêncio tranqüilo, que era uma
ruína por si mesmo, tão tangível quanto as pedras. Maureen estava
dominada por esse sentimento, olhando quase distraída para as
ruínas de um mosaico romano, quando a viu.
Aconteceu tão depressa e de uma forma tão inesperada quanto as
outras visões. Não podia recordar como sabia que a criança se encontrava
ali, mas tinha certeza de uma presença próxima. A cerca de três
metros de distância, uma criança que não devia ter mais que quatro ou
cinco anos fitava-a, com olhos enormes e escuros. As roupas estavam
rasgadas e sujas, as lágrimas misturavam-se com a lama salpicada no
rosto. Ela não falou, mas naquele momento Maureen soube que o nome
da criança era Hannah... e que testemunhara acontecimentos que
nenhuma criança deveria jamais suportar.
Maureen também soube que a criança sobrevivera de alguma
forma à indescritível tragédia de Masada. Deixara aquele lugar, levando
suas histórias. Era o seu legado, partilhar a verdade do que ocorrera ali
com seu povo.
Ela não sabia determinar por quanto tempo a criança
permaneceu em sua presença. Havia um senso intemporal nas visões.
Seriam minutos? Segundos? Ou uma eternidade?
Mais tarde, Maureen conversou com um dos guias israelenses em
Masada. Ele era jovem e franco. Maureen se surpreendeu ao descobrir
que lhe relatava a visão. O guia deu de ombros e disse que não era anti-
natural ou incomum ver uma coisa assim num lugar com tamanha carga
emocional. Explicou que havia lendas sobre sobreviventes de Masada,
uma mulher e várias crianças que se esconderam numa caverna e
escaparam, levando a verdadeira história para o mundo.
Maureen tinha certeza de que a pequena Hannah era uma dessas
crianças.
Especulara muitas vezes desde então por que tivera a visão, por
que acontecera com ela. Sentia-se indigna, achava que não merecia
um encontro tão profundo com a história sagrada do povo judeu. Mas,
depois da experiência em Montségur, tudo começou a se juntar, num
belo padrão, que Maureen começava finalmente a compreender. A
pequena Hannah e a jovem cátara conhecida como La Paschalina eram
relacionadas, em espírito, se não também no sangue. Eram as crianças
destinadas a transmitir e guardar as histórias, para que nunca se
perdesse a verdade. O destino de ambas fora o de se tornarem mestras
sagradas da humanidade. Aquelas meninas — e o que se tornaram ao
crescer — representavam a história e a sobrevivência da raça humana.
Suas experiências não tinham limites; as histórias pertenciam a todos os
povos, independentemente de identidade étnica ou crenças religiosas.
Ao aceitar essa ligação, não poderiam todos se unir, na certeza de
que formavam, em última análise, uma única tribo?
Maureen agradeceu a Hannah e Paschalina num sussurro,
enquanto terminava de escrever as anotações.
Tammy entrou correndo no castelo, esperando evitar o contato
com qualquer pessoa até tomar um banho. Sentia-se exausta, com a
sensação de que cada palmo de seu corpo estava sujo. Mas a solidão não
foi tão fácil, pois Roland interceptou-a na porta do quarto dela. Abriu a
porta para ela e entrou em seguida, indagando com a maior preocupação:
— Você está bem?
— Estou, sim.
Ensaiara um discurso durante a viagem de volta, mas seu coração
se derreteu quando viu o enorme occitano. Ficou tão aliviada por estar ali,
segura no castelo e segura com ele, que jogou-se em seus braços e chorou.
Roland se espantou. Nunca vira tanta vulnerabilidade naquela mulher
antes.
— O que aconteceu, Tamara? Ele a machucou? Deve me contar tudo.
— Não, não me machucou, mas...
— O que aconteceu?
Ela ergueu a mão e tocou no rosto de Roland, aquele rosto
masculino e anguloso que tanto amava.
— Roland... Roland... você tinha razão sobre quem matou seu pai.
E agora acho que podemos provar isso.
... Easa era a criança da profecia, coisa que todos sabiam. E a profecia
traçava um destino que tinha de ser cumprido da maneira exata. Easa
procedeu dessa maneira; não por qualquer glória pessoal, mas a fim de
facilitar a compreensão e a aceitação, pelos Filhos de Israel, de seu papel de
Messias. Quanto mais o papel de Easa se aproximasse da natureza exata
da profecia, mais fortes as pessoas seriam depois que ele partisse.
Porém, apesar de tudo isso, não era esperado que acontecesse da
maneira como aconteceu.
Easa entrou em Jerusalém, montado num jumento, cumprindo,
assim, as palavras do profeta Zacarias sobre a chegada do ungido. Nós o
seguíamos com palmas, entoando hosanas. Uma enorme multidão passou
a nos acompanhar tão logo entramos na cidade. Um sentimento de alegria e
esperança pairava no ar. Muitos vinham conosco desde Betânia. Fomos
recebidos pelos companheiros de Simão, os zelotes. Até mesmo os
representantes de um movimento essênio recluso deixaram sua comunidade
no deserto para nos acompanhar naquele dia triunfante.
Os filhos de Israel regozijavam-se porque aquele eleito viera libertá-los de
Roma, do jugo, da opressão e da miséria. Aquele filho da profecia crescera
para se tornar homem e Messias. Havia força em nossos corações e em
nossos números.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS
CAPITULO TREZE
Château des Pommes Bleues
25 de junho de 2005
O jantar no castelo era sempre mais elaborado quando havia
convidados e naquela noite não foi diferente. Berenger Sinclair exigira o
máximo do pessoal da cozinha e de sua adega de vinhos para oferecer um
banquete típico do Languedoc, em proporções medievais e desregradas. A
conversa era também fascinante. Tammy recuperara o controle, com
um aprumo merecedor de um prêmio. Com a atitude provocante e jovial
que era sua marca registrada, voltou a ser o que sempre fora.
Maureen gostou de acompanhar o duelo de Sinclair e Tammy com
Peter, segura no conhecimento de que o primo podia se defender sozinho
em qualquer debate teológico. Tinha certeza disso por experiência pessoal.
Sinclair lançou-se num discurso:
— Sabemos, em termos históricos, que o Novo Testamento como
existe agora foi formulado no Concilio de Nicéia. O imperador
Constantino e seu concilio tinham muitos evangelhos para escolher, mas
selecionaram apenas quatro... quatro que foram alterados de uma
maneira drástica. Foi um ato de censura que mudou a história.
— Não se pode deixar de especular sobre tudo o que ele decidiu
esconder de nós — comentou Tammy.
Peter não se perturbou nem um pouco com um argumento que já
ouvira uma centena de vezes. E surpreendeu os dois supostos
antagonistas com sua resposta:
— Não parem por aí. Lembrem-se de que nem mesmo sabemos
com certeza quem escreveu esses quatro evangelhos. Na verdade, a
única coisa de que temos uma relativa certeza é de que não foram
escritos por Mateus, Marcos, Lucas e João. Provavelmente foram
atribuídos aos evangelistas em algum momento do século II, mas
alguns dizem que nem mesmo isso é um bom palpite. E mais uma coisa:
mesmo com toda a documentação disponível no Vaticano, não podemos
dizer com certeza em que língua os evangelhos originais foram escritos.
Tammy mostrou-se surpresa:
— Pensei que tivessem sido escritos em grego.
Peter sacudiu a cabeça.
— As versões mais antigas conhecidas são em grego, mas é bem
possível que sejam traduções de uma forma anterior. Não podemos
simplesmente ter certeza.
— Por que a língua original é importante? — perguntou Maureen.
— Isto é, exceto pelos erros de tradução.
— Porque a língua original é a primeira indicação da identidade
do autor e do local em que ele vivia — explicou Peter. — Por exemplo, se
os evangelhos originais foram escritos em grego, isso indicaria autores
que eram helenizados... uma influência grega reservada para a elite, os
sofisticados e instruídos. Tradicionalmente, não pensamos nos
apóstolos dessa maneira. Por isso esperamos outra coisa deles, um
vernáculo aramaico ou hebraico. Se tivéssemos certeza de que os originais
foram escritos em grego, teríamos de fazer uma avaliação sobre o que isso
significa em relação aos seguidores originais de Jesus.
— Os evangelhos gnósticos encontrados no Egito foram escritos
em copta — acrescentou Tammy.
Peter corrigiu-a, gentilmente:
— Há textos coptas, mas muitos foram escritos originalmente
em grego e depois copiados em copta:
— E o que isso nos diz? — indagou Maureen.
— Não temos o menor conhecimento de egípcios entre os
seguidores originais. Portanto isso nos diz que alguns levaram seu
ministério logo no início para o Egito e que o cristianismo inicial
floresceu ali. Ou seja, cristãos coptas.
— Mas o que sabemos com certeza sobre os quatro evangelhos?
Maureen estava curiosa sobre o rumo da conversa. Não tivera
tempo disponível durante sua pesquisa para esmiuçar as questões
relacionadas com a história do Novo Testamento. Concentrara-se
estritamente nas passagens relevantes para Maria Madalena.
— Sabemos que Marcos foi o primeiro e que Mateus é quase uma
cópia exata de Marcos, com cerca de seiscentas passagens idênticas —
respondeu Peter. — Lucas é também muito parecido, embora o autor
revele algumas poucas novas percepções, que não são encontradas em
Marcos e Mateus. E o Evangelho de João é o maior mistério dos quatro, já
que assume uma posição muito diferente da dos outros três em termos
políticos e sociais.
— Sei que há pessoas que até acreditam que Maria Madalena
escreveu o quarto evangelho, o que foi atribuído a João — comentou
Maureen. — Durante a minha pesquisa, entrevistei um estudioso
brilhante que fez essa alegação. Não concordo necessariamente com ele,
mas achei que a idéia era fascinante.
Sinclair sacudiu a cabeça e declarou, com alguma veemência:
— Não acredito nisso. Acho que a versão de Maria ainda está por
aí, esperando para ser descoberta.
— O quarto evangelho é o maior mistério do Novo Testamento —
reiterou Peter. — Há muitas teorias a respeito, inclusive a teoria do
comitê: foi escrito por várias pessoas, ao longo de um prazo determinado,
numa tentativa de relatar os acontecimentos da vida de Jesus de uma
certa maneira.
Tammy ouvia Peter com o maior interesse e respondeu:
— Mas tenho a impressão de que muitos cristãos tradicionais
querem apenas tapar os ouvidos e ignorar esses fatos. — Ela era
apaixonada pelo assunto e já se envolvera em muitas discussões ao longo
dos anos. — Não querem saber dessa história. Querem apenas acreditar
cegamente no que a Igreja lhes diz. Ou no que os clérigos dizem.
Peter respondeu também com paixão:
— Não é isso. Você não está percebendo o ponto importante. Não
é cegueira, é fé. Para as pessoas de fé, os fatos simplesmente não
importam. Mas não cometa o erro comum de confundir fé com
ignorância.
Sinclair deu uma risada, um som irônico.
— Estou falando sério — insistiu Peter. — As pessoas de fé
acreditam que o Novo Testamento teve inspiração divina. Portanto não
importa quem escreveu os evangelhos ou em que língua foram escritos.
Os autores foram inspirados por Deus. E quem tomou a decisão de
editar os evangelhos, nos concílios de Constantinopla e Nicéia, também
devia ter inspiração divina. E assim por diante. É uma questão de fé e não
há espaço para a história aqui. Nem se pode debater. A fé é uma coisa
que não pode ser questionada.
Ninguém respondeu, esperando para saber o que mais ele tinha
a dizer.
— Pensam que não conheço a história da minha própria
Igreja? Conheço muito bem e é por isso que a pesquisa de Maureen e
suas opiniões não me ofendem nem um pouco. Por falar nisso, sabiam
que há alguns estudiosos que até acreditam que o evangelho de Lucas foi
escrito por uma mulher?
Foi a vez de Sinclair se mostrar surpreso:
— E mesmo? Eu nunca soube disso. Essa possibilidade não o
incomoda?
— Claro que não. A importância das mulheres no início da
Igreja, assim como na continuação do cristianismo, é uma coisa que não
podemos negar. Nem queremos, quando consideramos grandes
mulheres como Clara de Assis, que manteve o movimento
franciscano firme depois que Francisco morreu tão jovem. — Peter
olhou para os rostos espantados de Sinclair e Tammy. — Lamento
estragar um argumento tão bom, mas concordo com a idéia de que Maria
Madalena merece o título de “Apóstola dos Apóstolos”.
— Concorda?
A indagação incrédula foi de Tammy.
— Claro que concordo. Em Atos, Lucas oferece os requisitos
específicos para se tornar um apóstolo: era preciso ter participado do
ministério de Jesus enquanto ele viveu, era preciso ter sido testemunha
de sua crucificação e era preciso ter sido testemunha de sua
ressurreição. Para ser absolutamente literal a respeito, só há uma
pessoa que atende a todos esses requisitos... e essa pessoa é Maria
Madalena. Os apóstolos homens não testemunharam a crucificação, o
que é um tanto embaraçoso. E Maria Madalena foi a primeira pessoa
para quem Jesus apareceu no momento de sua ascensão.
Maureen teve de fazer um esforço para não rir das expressões de
Sinclair e Tammy. Os dois estavam atordoados com aquela demonstração
de inteligência e personalidade de Peter.
— Não resta a menor dúvida de que as únicas outras pessoas que
se ajustam tecnicamente à descrição de apóstolos são as outras Marias...
a Virgem Maria, além de Maria Salomé e Maria Jacobina, ambas presentes
na crucificação e no sepulcro no dia da ressurreição.
Quando Peter olhou em sua direção, Maureen não pôde mais se
conter. Sua risada ressoou pela sala.
— O que foi? — perguntou Peter, malicioso.
— Desculpem. — Maureen tomou um gole de vinho para ter tempo
de se controlar. — É que... Peter tende a pegar as pessoas de surpresa e
sempre acho divertido observar isso.
Sinclair balançou a cabeça.
— Admito que é um homem muito diferente do que eu
imaginava, padre Healy.
— E o que imaginava, Lorde Sinclair? — indagou Peter.
— Com todas as desculpas devidas, acho que imaginava um
cão de guarda romano. Alguém dominado pelo dogma e pela
doutrina.
Peter riu.
— Esqueceu uma coisa muito importante, Lorde Sinclair. Não
sou simplesmente um padre, mas também um jesuíta. E irlandês
ainda por cima.
— Touché, padre Healy.
Sinclair ergueu seu copo na direção de Peter. A ordem de
Peter, Companhia de Jesus, mais conhecida pelo mundo como os
jesuítas, concentrava-se na educação e em estudos acadêmicos.
Embora constituíssem a maior ordem no catolicismo, os
conservadores na Igreja Católica Romana achavam que os jesuítas
eram independentes demais, há várias centenas de anos. Tinham o
apelido de “Missionários do Papa”, mas havia rumores de que fazia
séculos que os jesuítas elegiam seu próprio líder dentro da ordem e
só se submetiam ao pontífice romano por uma questão de
formalidade e cerimônia. Tammy estava curiosa agora.
— Os outros de sua ordem também pensam assim sobre o
papel das mulheres?
— É sempre insensato generalizar — respondeu Peter. —
Como Maureen disse, as pessoas tendem a estereotipar o clero,
presumindo que todos pensamos com um único cérebro, o que não é
verdade. Os padres são pessoas e muitos de nós são muito
inteligentes e estudiosos, além de dedicados à nossa fé. Cada
homem tira suas próprias conclusões.
Peter fez uma pausa.
— Mas há uma coisa que temos discutido a fundo sobre
Maria Madalena e a veracidade dos quatro evangelhos. Os
apóstolos deviam achar um tanto embaraçoso que Jesus confiasse
toda a sua missão a essa mulher, qualquer que fosse a posição
que ela ocupasse em sua vida e ministério. Ela ainda era uma
mulher, numa época em que as mulheres não eram consideradas
iguais aos homens. Os evangelistas seriam força dos a escrever isso,
porque era verdade, por mais embaraçoso que fosse para eles.
Mesmo que os autores dos evangelhos manipulassem outros
fatos, não alterariam esse elemento importante da ressurreição de
Jesus... que ele apareceu primeiro para Maria Madalena. Não para
os apóstolos, mas sim para ela. Portanto acredito que os autores
dos evangelhos não tinham outra opção além de escrever isso,
porque era a verdade.
A admiração de Tammy por Peter aumentava cada vez mais. Era
visível em seu rosto expressivo.
— Quer dizer que está disposto a explorar a possibilidade de
que Maria Madalena foi a discípula mais importante? Ou mesmo que
ela possa ter sido mais do que isso?
Peter fitou Tammy nos olhos e desta vez respondeu muito sério:
— Estou disposto a explorar qualquer coisa que nos leve mais
para perto de uma compreensão honesta da natureza de Jesus Cristo,
Nosso Senhor e Salvador.
Foi uma grande noite para Maureen. Peter era o conselheiro
espiritual em que mais confiava, mas passara a admirar Sinclair, que
achava fascinante. O fato de seu primo encontrar elementos em comum
com o excêntrico escocês era um profundo alívio para ela. Talvez todos
pudessem agora trabalhar juntos para explorar as estranhas
circunstâncias das visões de Maureen.
Ao final do jantar, Peter, que passara o dia explorando a região
sozinho, alegou cansaço e pediu licença para se retirar. Tammy disse que
precisava trabalhar no roteiro de seu documentário e também se
retirou. Maureen e Sinclair ficaram a sós. Estimulada pelo vinho e pela
conversa, ela pressionou Sinclair:
— Acho que é tempo de você cumprir sua promessa.
— Que promessa, minha cara?
— Quero ver a carta de meu pai.
Sinclair pareceu pensar a respeito por um momento. Depois de uma
breve hesitação, ele concordou:
— Está bem. Venha comigo.
Sinclair levou Maureen por um corredor sinuoso até uma sala
trancada. Tirou do bolso um chaveiro grande, abriu a porta e fez
Maureen entrar em seu escritório. Ele apertou um interruptor no lado
direito da parede assim que entraram, iluminando um enorme quadro
na parede no outro lado. Maureen soltou uma exclamação de prazer.
— É o meu quadro!
Sinclair riu.
— Lucrécia Bórgia reina no Vaticano na ausência do papa
Alexandre VI.
Maureen aproximou-se do quadro com reverência. Sentia uma
grande admiração pelo talento nos traços e no uso das cores
demonstrado por Frank Cadogan Cowper, o pintor britânico do
século XIX que criara aquela obra-prima. O quadro mostrava
Lucrécia Bórgia entronizada no Vaticano, cercada por um vasto
mar de cardeais de vermelho. Para Maureen, aquela única imagem
explicava as centenas de anos de vilanias contra o caráter da filha do
papa. Lucrécia fora chamada das piores coisas possíveis, inclusive
assassina e prostituta incestuosa. Era uma punição imposta pelos
cronistas renascentistas, todos homens, por ter a audácia de
sentar no trono de São Pedro... e dar instruções papais durante as
ausências do pai.
— Lucrécia foi uma força propulsora na criação de meu livro —
comentou Maureen. — Sua vida personificou o tema da mulher
menosprezada e privada de seu verdadeiro papel na história.
A pesquisa de Maureen revelara que as terríveis acusações de
incesto haviam sido inventadas pelo primeiro marido de Lucrécia,
um homem rude e violento, que ficara arruinado depois da
anulação do casamento. Fora ele quem lançara os rumores de que
Lucrécia queria a anulação porque tinha um envolvimento sexual
com o pai e o irmão. Essas mentiras insidiosas perduraram por
séculos, perpetuadas pelos inimigos da invejada família Bórgia.
— Eles são da linhagem — comentou Sinclair.
— Os Bórgia? — Maureen estava incrédula. — Como?
— Pela linha de Sara-Tamar. Seus ancestrais eram cátaros que
fugiram para a Espanha. Procuraram refúgio no mosteiro em
Montserrat. Foram assimilados em Aragão, onde adotaram o nome
Bórgia, antes de emigrarem para a Itália. Mas a escolha do local para
onde foram não foi acidental, nem sua lendária ambição. César Bórgia
estava determinado a assumir o trono, a fim de restaurar em Roma
aqueles que acreditava serem seus legítimos soberanos.
Maureen balançou a cabeça, aturdida, enquanto Sinclair
continuava:
— A instalação de sua filha no trono foi emblemática da
descendência cátara. As mulheres são iguais aos homens n'O Caminho, em
todos os aspectos, inclusive na liderança espiritual. Lamentavelmente, a
história só lembra dos Bórgia como violentos e manipuladores. Maureen
concordava com essa posição.
— Alguns autores chegaram ao cúmulo de escrever que eles foram
a primeira família do crime organizado. É uma injustiça brutal.
— Para não dizer que é absolutamente inverídico.
— Essa informação sobre a linhagem acrescenta um novo ângulo
à história — murmurou Maureen, ainda absorvendo tudo.
— Posso prever o embrião de um novo livro, minha cara? — gracejou
Sinclair.
— Pode prever pelo menos vinte anos de pesquisa. Estou
fascinada. Mal posso esperar para descobrir aonde tudo isso me leva.
— Mas primeiro acho que é hora de tomar conhecimento de um
capítulo em sua própria vida.
Maureen ficou tensa. Suplicara por aquele momento, até insistira.
Era o motivo de sua vinda para a França, em primeiro lugar. Mas agora
não tinha certeza de querer saber.
— Você está bem? — perguntou Sinclair, com sincera preocupação.
Ela acenou com a cabeça.
— Estou, sim. Acontece apenas que agora que estou aqui... eu
me sinto nervosa.
Sinclair indicou uma cadeira e Maureen sentou, agradecida. Ele
abriu um arquivo embutido, com outra chave, e tirou uma pasta.
Explicou para Maureen, enquanto andava:
— Descobri esta carta nos arquivos de meu avô há alguns
anos. Quando tomei conhecimento de seu trabalho e vi sua foto e o anel,
campainhas de alarme soaram em minha cabeça. Conhecia os
descendentes de Paschal aqui na França, mas também lembrei que
existira um americano chamado Paschal que fora importante. Não
podia me lembrar o porquê, até que encontrei esta carta.
Sinclair pôs a pasta na frente de Maureen, gentilmente. Abriu-a
para revelar o papel amarelado e a tinta desbotada.
— Gostaria que eu a deixasse sozinha?
Maureen fitou-o, mas viu apenas compreensão e segurança em seu
rosto.
— Não. Fique comigo, por favor.
Sinclair inclinou a cabeça em concordância. Bateu de leve na mão
de Maureen e depois foi se sentar no outro lado da mesa, em silêncio.
Maureen pegou a pasta e começou a ler.
“Meu caro Monsieur Gelis”, começava a carta.
— Gelis? — indagou Maureen. — A carta não era dirigida a seu
avô?
Sinclair sacudiu a cabeça em negativa.
— Não, não era. Estava nos arquivos de meu avô, mas foi escrita
para um morador daqui, de uma antiga família cátara chamada Gelis.
Maureen achou por um instante que já ouvira o nome antes, mas
não passou muito tempo pensando a respeito. Estava preocupada
demais com o conteúdo da carta.
Prezado Monsieur Gelis
Por favor, perdoe-me, mas não tenho mais ninguém a quem
recorrer. Soube que tem um conhecimento profundo das coisas do
espírito. Que é um autêntico cristão. Espero que sim. Há muitos meses
que sou atormentado por pesadelos e visões de Nosso Senhor na cruz.
Sou visitado por Ele, que me transmite sua dor.
Mas não escrevo por mim. Escrevo por minha filha pequena,
minha Maureen. Ela grita durante a noite e me relata os mesmos
pesadelos. É pouco mais que um bebê. Como isso pode acontecer com
ela? Como posso fazer com que pare, antes que ela experimente a
mesma dor que venho sentindo?
Não suporto mais ver minha filha assim. Sua mãe me culpa e
ameaça afastá-la de mim para sempre. Por favor, ajude-me. Por favor,
diga-me o que posso fazer para salvar minha filha.
Com meus mais profundos agradecimentos, Edouard Paschal
Maureen não podia ver através das lágrimas, enquanto largava a
pasta e se permitia soluçar.
Sinclair ofereceu-se para ficar com Maureen, mas ela recusou.
Estava abalada demais pela carta e precisava ficar sozinha. Pensou por
um instante em acordar Peter, mas decidiu não o fazer. Precisava pensar
a respeito, primeiro. E o recente deslize de Peter, ao dizer que prometera
à mãe de Maureen que não permitiria que nada lhe acontecesse, deixara-
a desconfiada e apreensiva. Peter sempre fora sua âncora, a figura
masculina em sua vida. Confiava nele e sabia que Peter nunca faria
qualquer coisa que não considerasse de melhor interesse e segurança
da prima. Mas Peter não poderia estar se baseando em alguma
informação equivocada? O conhecimento que tinha da primeira parte
da infância de Maureen — sobre a qual ele sempre se recusava a falar em
termos concretos — vinha exclusivamente da mãe dela.
Sua mãe... Maureen se sentou na cama enorme, recostando-se
nos travesseiros bordados. Bernadette Healy fora uma mulher dura e
inflexível ou pelo menos era assim que Maureen a recordava. As únicas
indicações que ela podia ter sobre uma disposição diferente anterior
vinham das fotos. Maureen tinha algumas fotos da mãe na Louisiana,
com a filha recém-nascida no colo. Bernadette olhava radiante para a
câmera, mãe orgulhosa.
Muitas vezes Maureen especulara sobre o que mudara
Bernadette, transformando-a da mãe jovem e esperançosa, nas fotos,
para a disciplinadora fria de suas lembranças. Quando foram viver na
Irlanda, Maureen passara a ser criada em grande parte pela tia e o tio...
os pais de Peter. Maureen ficara na segurança e no anonimato da remota
comunidade rural, no oeste da Irlanda, enquanto Bernadette ia para
Galway.
Maureen só a via raramente, quando Bernadette voltava à fazenda,
por algum senso de dever ou obrigação. Essas visitas eram tensas, à
medida que a mãe se tornava mais e mais estranha. Maureen adotara a
família de Peter como sua, sendo absorvida pelo afeto curativo da prole
grande e exuberante. A tia Ailish, mãe de Peter, preenchera o papel
maternal. Maureen desenvolvera seu afeto e humor por influência da
família de Peter. A tendência ao comedimento, à ordem e cautela vinha
da mãe.
Em umas raras ocasiões, em geral depois de uma das desastrosas
e destrutivas visitas de Bernadette, Ailish chamara a sobrinha para uma
conversa.
— Não deve julgar sua mãe com muito rigor, Maureen — disse ela
uma vez, em seu tom paciente. — Bernadette a ama. E talvez seja assim
por amá-la demais. Mas saiba que ela teve uma vida difícil e que isso a
mudou. Quando for mais velha, você poderá compreender.
O tempo e o destino eliminaram toda e qualquer possibilidade de
Maureen conhecer e compreender melhor a mãe ao crescer. Bernadette
tivera um linfoma quando Maureen estava na adolescência e morrera
rapidamente. Peter fora chamado ao seu leito de morte e fora o padre que
ministrara a extrema-unção. Ouvira a confissão final e passara a carregar
em seus ombros o peso das chocantes revelações da tia, durante todos os
dias de sua vida. Mas não dizia nada a respeito para Maureen, alegando
o sigilo da confissão.
E agora havia uma nova peça no quebra-cabeça. Maureen precisava
tentar interpretar a carta do pai, ter um vislumbre do complexo legado que
ele poderia ter deixado. Dormiria com o problema na mente naquela noite e
na manhã seguinte conversaria com Peter com mais lucidez.
Carcassonne
25 de junho de 2005
Derek Wainwright estava mergulhado num sono pesado. O
coquetel de remédios e vinho tinto se misturara com a exaustão e o
estresse para produzir um estado de total apagamento.
Se estivesse um pouco mais consciente, talvez tivesse sido
alertado... pelos passos, o som da porta do quarto sendo aberta e o canto
sussurrado do atacante.
— Neca eos omnes. Neca eos omnes. Deus suos agnoset.
Matem todos. Matem todos. Deus reconhecerá os seus.
Mas quando a corda vermelha foi amarrada em torno de seu
pescoço, já era tarde demais para Derek Wainwright. Ao contrário de
Roger-Bernard Gelis, ele não teve a boa sorte de já estar morto quando o
ritual começou.
Maureen ficou toda arrepiada quando alguém bateu em sua porta.
Não estava preparada para Sinclair ou Peter naquele momento. Sentiu
alívio ao ouvir uma voz de mulher do outro lado:
— Reenie? Sou eu.
Maureen abriu a porta para Tammy, que deu uma olhada nela e
soltou um gemido.
— Você está horrível!
— Obrigada. Eu me sinto maravilhosa.
— Quer conversar a respeito?
— Ainda não. Estou apenas processando algumas coisas pessoais.
Tammy hesitou. A atenção de Maureen foi aguçada no mesmo
instante, ao compreender que deparava com um fato absolutamente
novo: Tamara Wisdom estava nervosa.
— Qual é o problema, Tammy?
Tammy suspirou. Passou a mão pelos cabelos compridos.
— Detesto fazer isso com você, num momento em que sua carga
emocional já é enorme, mas precisamos conversar.
Maureen gesticulou para as poltronas.
— Vamos sentar.
Tammy sacudiu a cabeça.
— Não. Preciso que você venha comigo. Tenho de lhe mostrar uma
coisa.
— Está bem.
Maureen seguiu Tammy pelo labirinto de corredores do Château des
Pommes Bleues. Depois de tudo o que acontecera, achava que não havia
muita coisa que pudesse surpreendê-la. Estava enganada.
Entraram na moderna sala de comunicações em que Sinclair
mostrara para Maureen e Peter os mapas da região comparados com as
constelações. Tammy apontou para um sofá de couro na frente de uma
enorme tela de televisão. Foi pegar um controle remoto e se sentou ao
lado de Maureen. Respirou fundo e iniciou a explicação:
— Quero lhe mostrar algumas imagens que registrei para o meu
próximo documentário. É sobre a linhagem. Preciso que preste total
atenção, porque é muito importante e, em última análise, envolve você e
seu papel em toda essa situação. Como já sabe, o mistério de Maria
Madalena inspirou muitas sociedades secretas e grupos de aventureiros.
Eles sussurram sobre a linhagem e realizam rituais secretos.
Tammy apertou um botão no controle remoto para ligar a televisão.
Uma série de slides apareceu na tela, um de cada vez. As primeiras
imagens eram de quadros de Maria Madalena, pintados por mestres da
arte renascentista e barroca.
— Alguns desses grupos são formados por fanáticos, mas outros
são de pessoas boas e espiritualizadas. Sinclair é um dos mocinhos.
Portanto você está em terreno seguro aqui. Quero ser bem clara nesse
ponto.
Ela fez uma pausa, ordenando os pensamentos.
— Eu queria fazer um filme que mostrasse a extensão de todo
esse conceito... até que ponto a idéia de uma linhagem sagrada projeta-
se no mundo ocidental e em nossa história. O objetivo é apresentar quem
seus descendentes foram... e são. Dos famosos aos infames e aos
anônimos.
Retratos familiares de figuras históricas e religiosas surgiram na
tela, enquanto Tammy continuava a falar:
— Algumas dessas pessoas podem surpreendê-la. Carlos Magno.
Rei Artur. Roberto da Escócia. São Francisco de Assis.
— Espere um instante. São Francisco de Assis?
Tammy confirmou com um meneio de cabeça.
— Isso mesmo. A mãe dele, Pica, nasceu em Tarascon. Sangue
cátaro, da linha de Sara-Tamar, da nobre família de Bourlemont. Foi
assim que ele recebeu seu nome. Nasceu Giovanni, mas os pais
chamavam-no de Francisco porque ele lembrava o lado franco-cátaro da
família da mãe. Já esteve em Assis1?
Maureen sacudiu a cabeça em negativa. Cada nova revelação era
espantosa, atordoante. Ela ficou observando, fascinada, enquanto
surgiam na tela imagens da aldeia italiana de Assis, o berço do
movimento franciscano.
— Precisa ir até lá. É um dos lugares mais mágicos do mundo. E
os espíritos de São Francisco e Santa Clara ainda estão muito vivos ali.
Creio que eles reviveram os papéis de Jesus e Maria Madalena. Preste
atenção às obras de arte na Basílica de São Francisco. O mestre italiano
Giotto, que foi contemporâneo de Francisco, dedicou as obras de uma
capela inteira a Maria Madalena. Há um mural de Maria Madalena
chegando à França, depois da crucificação. É incontestavelmente uma
declaração. E há muito sentimento cátaro no que consideramos o
pensamento franciscano.
Tammy parou no quadro de Giotto mostrando São Francisco
recebendo os estigmas do céu.
— Francisco é o único santo conhecido a apresentar todos os
cinco pontos de estigmas. Por quê? A linhagem. Ele é um descendente de
Jesus Cristo. Creio que há uma argumentação pela qual todo
estigmatizado autêntico é da linhagem. Mas o importante em Francisco é
que ele teve todos os cinco estigmas. Ninguém jamais teve isso.
Maureen estava contando, enquanto acompanhava o relato de
Tammy;
— As palmas das mãos, os pés... são quatro... e...
— O flanco direito, onde o centurião espetou Jesus com a lança.
Mas tenho de corrigi-la. Os estigmas autênticos não ocorrem nas palmas,
mas sim nos pulsos. Ao contrário da crença popular, Cristo não foi
pregado na cruz pelas mãos, mas sim através dos ossos dos pulsos. As
mãos não são bastante fortes para suportar o peso do corpo.
Tammy fez uma pausa.
— Embora já tenham sido autenticados estigmas nas mãos, como
os do santo padre Pio, são os estigmas nos pulsos que realmente atraem
a atenção da Igreja. É o que torna Francisco tão importante. Artistas
como Giotto podem nos mostrar os estigmas nas mãos, pelo efeito
dramático, mas os relatos históricos nos contam uma história diferente.
Francisco teve todos os cinco pontos, inclusive nos pulsos.
Tammy soltou o botão de pausa para mostrar a imagem seguinte,
a estátua dourada de Joana d'Arc na Rue de Rivoli, em Paris. Foi
substituída por outra imagem de Joana, a estátua no jardim de
Saunière, que haviam visto dois dias antes.
— Lembra quando Peter me perguntou sobre essa estátua de
Joana? Ele comentou que o mundo a considera um símbolo do
catolicismo francês. Aqui está por que ela é qualquer coisa menos isso.
Tammy projetou na tela um retrato de Joana d'Arc segurando sua
marca registrada, o estandarte de “Jesus-Maria”.
— Os cristãos sempre acharam que o lema de Joana era uma
referência a Cristo e sua mãe, porque o estandarte dizia “Jhesus-Maria”.
Mas não era. Em vez disso, era uma referência a Cristo e Maria Madalena.
Foi por isso que ela pôs um hífen, para mostrar que os dois estavam
juntos. Jesus e sua esposa, ancestrais de Joana.
— Mas pensei que ela era uma camponesa... uma pastora.
Maureen soltou uma exclamação de surpresa ao compreender o
que acabara de dizer.
— Exatamente. Uma pastora. E seu nome? “D'Arc” indica que tinha
alguma relação com esta região, com Arques, embora tenha nascido em
Domrémy. Joana de Arques... é uma referência à sua linhagem. E a seu
perigoso legado. Berry lhe falou sobre a profecia, não é mesmo? Sobre A
Escolhida?
Maureen confirmou com um lento balanço de cabeça.
— Não creio que o mundo esteja preparado para isso. Não creio que
eu esteja preparada.
Tammy tornou a apertar o botão de pausa e concentrou sua
atenção em Maureen.
— Preciso que você escute o resto da história de Joana, porque
é importante. O que você sabe sobre ela?
— Provavelmente o que a maioria das pessoas no mundo sabe.
Ela lutou para restaurar o Delfim no trono da França. Comandou
batalhas contra os ingleses. Foi queimada viva na fogueira como bruxa,
embora todos soubessem que não era...
— Foi queimada viva porque tinha visões.
Maureen avaliava tudo, tentando determinar aonde Tammy queria
chegar. Ainda não estava entendendo direito e por isso Tammy explicou,
com alguma ênfase.
— Joana tinha visões... visões divinas. E era da linhagem. O que
isso significa para você?
Tammy não esperou por uma resposta.
— Joana era A Escolhida e todos sabiam disso. Ia realizar a
profecia. Tinha visões que a levariam até o evangelho de Madalena. Foi
por isso que tiveram de silenciá-la para sempre.
Maureen sentia-se atordoada.
— Mas... a data de nascimento de Joana é a mesma que a minha?
— É, sim. Só que não encontrará isso registrado nos livros de
história. De um modo geral, os historiadores indicam um dia em janeiro.
A data foi deliberadamente alterada, num esforço para proteger sua
verdadeira identidade, como bastarda real e como a tão aguardada
princesa do Graal.
— Como sabe disso? Há alguma documentação para apoiar esses
dados?
— Há, sim. Mas você tem de parar de pensar como uma
acadêmica. Precisa ler nas entrelinhas, porque está tudo ali. E não
descarte as lendas locais. É irlandesa e por isso conhece o poder da
tradição oral e como é transmitida. Os cátaros não eram tão diferentes
dos celtas. Existe até uma tonelada de evidências de que as duas
culturas se misturaram através da França e Espanha. Protegiam suas
tradições ao não escrevê-las. Dessa forma, não deixavam qualquer
evidência para seus inimigos. Mas a lenda de Joana como A Escolhida é
predominante aqui, quando se vai além da superfície.
— Sempre pensei que tropas inglesas tivessem executado Joana.
— Errado. Os ingleses prenderam Joana, mas foi o clero francês que
a processou e insistiu em sua morte. O algoz de Joana foi um clérigo chama
do Cauchon. O que é uma piada por aqui, já que Cauchon significa
“porco” em francês. Foi esse porco que arrancou a confissão de Joana e
depois distorceu as evidências para forçar seu martírio. Cauchon tinha de
matar Joana antes que ela pudesse cumprir seu papel como A Escolhida.
Maureen ficou calada, escutando atentamente, enquanto
Tammy continuava:
— E Joana não foi a última pastora a morrer. Lembra a estátua
da santa sobre a qual você me perguntou em Rennes-le-Château? A jovem
com rosas no avental?
— Santa Germana. Tive um sonho sobre ela na noite passada.
— Isso acontece porque ela é outra filha do equinócio vernal e da
ressurreição. E representada com um cordeiro pascal por razões óbvias,
mas também com um carneiro, para indicar seu nascimento no começo
de Áries.
Maureen se lembrava muito bem da estátua. Ficara comovida com
a expressão solene da jovem pastora.
— A mãe dela tinha uma posição elevada na linhagem, a Marie de
Nègre de seu tempo. Quando Germana era bebê, a mãe morreu
misteriosamente. Germana foi criada por uma família adotiva que a
maltratava. Acabou sendo assassinada enquanto dormia, ao final da
adolescência.
Tammy pegou a mão de Maureen, muito séria agora.
— Há mil anos que há pessoas dispostas a matar para impedir a
descoberta do evangelho de Maria, Maureen. Compreende o que estou
querendo lhe dizer?
A solenidade da ocasião começava a impressionar Maureen.
Subitamente, ela sentiu um frio intenso, enquanto Tammy concluía:
— Ainda há pessoas que matariam para impedir que a profecia
seja consumada. E você corre um grave perigo se essas pessoas
acreditarem que é A Escolhida.
Tammy tivera a previdência de levar uma garrafa do excelente vinho
local para a sala. Tornou a encher o copo de Maureen. As duas
permaneceram em silêncio por algum tempo. Maureen finalmente falou.
Olhou para Tammy e disse, num tom um tanto acusador:
— Sabia muito mais do que me deixou perceber em Los Angeles,
não é mesmo?
Tammy suspirou. Recostou-se no sofá.
— Sinto muito, Maureen. Não podia lhe contar tudo o que sabia
naquela ocasião.
Ainda não posso, pensou ela, desolada, antes de acrescentar:
— Não queria assustá-la. Você nunca faria essa viagem e nós
não podíamos correr esse risco.
— Nós? Está se referindo a você e Sinclair? Pertence à Sociedade das
Maçãs Azuis?
— Não é tão simples assim. Mas posso garantir que Sinclair fará
tudo o que for possível para protegê-la.
— Porque ele acha que sou a mulher que tanto espera?
— E também porque ele gosta sinceramente de você. Dá para
perceber. Mas Berry também sente a responsabilidade. Levou-a para o
sacrifício, como o proverbial cordeiro pascal, ao apresentá-la no baile
com aquela roupa. Em seu excitamento, não pensou nas conseqüências.
Maureen tomou outro gole do vinho.
— O que você sugere que eu faça? Este lugar é um território
estrangeiro para mim, Tammy. Devo ir embora? Tratar de esquecer que
tudo isso aconteceu e voltar à minha vida antiga? — Ela soltou uma risada
irônica. — Claro. Não há problema.
Tammy exibia uma expressão compadecida.
— Talvez você devesse mesmo partir, em benefício de sua
segurança física. Berry pode dar um jeito de tirar você e Peter daqui
amanhã, sem que ninguém perceba. Isso vai matá-lo, mas ele não
hesitará em fazer, se você pedir.
— E o que acontece depois? Volto para Los Angeles, passando o resto
da vida atormentada por pesadelos e visões? E meu trabalho será
prejudicado, porque nunca mais poderei considerar a história da mesma
maneira, mas também não ousaria investigar mais a fundo por causa
de alguns lacaios furtivos que querem me eliminar? E quem são essas
pessoas perigosas? Por que querem tanto impedir a consumação da
profecia, a tal ponto que estão dispostas até a matar?
Tammy levantou-se e começou a andar de um lado para outro.
— Há diversas facções que têm um interesse velado em manter
em segredo as palavras de Maria Madalena. Há os representantes da
Igreja tradicional, é claro. Mas eles não são os perigosos.
— Então quem são? Estou cansada de enigmas, Tammy, e não
agüento mais nenhum jogo. Alguém me deve uma explicação completa.
Quero saber de tudo, o mais depressa possível.
Tammy balançou a cabeça, uma expressão sombria.
— E você saberá de tudo pela manhã. Mas não cabe a mim dar
as explicações.
— Então quem vai dar? Sinclair? Quero falar com ele. Agora.
Tammy deu de ombros, com um ar desamparado.
— Infelizmente, isso não será possível. Ele saiu pouco depois que
você deixou o escritório dele. Não sei aonde foi, mas disse que só
voltaria muito tarde. Mas prometo que ele lhe contará tudo amanhã de
manhã.
Mas quando Berenger Sinclair voltou ao Château des Pommes
Bleues, o mundo havia mudado.
...A chegada de Easa foi notada por todas as autoridades em
Jerusalém, dos Sacerdotes do Templo à Guarda de Pilatos. Os romanos
estavam preocupados com a Páscoa. Temiam que um levante ou um
distúrbio pudessem ser insuflados por qualquer erupção de sentimento ou
nacionalismo judaico. E, porque havia zelotes entre nós, Pilatos não podia
deixar de se manter em alerta.
Dentre os nossos havia aqueles cujos irmãos pertenciam à casta
sacerdotal. Informaram-nos de que o Sumo Sacerdote Caifás, o genro de
Jônatas Anás, que tanto nos odiava, convocara uma reunião, sobre “essa
idéia do Nazareno transformado em Messias”.
Já manifestei minha opinião sobre esse homem Anás, no passado, e
aqui tornarei a falar sobre seus feitos. Porém cumpre-me fazer uma
advertência: não condenem muitos pelas ações de um só. Pois a casta
sacerdotal é igual a todas as outras: alguns são justos e bons em seus
corações, outros não são. Há aqueles que seguiram as ordens de Jônatas
Anás nos dias tenebrosos, sacerdotes e homens comuns. Alguns o fizeram
porque eram obedientes ao Templo, porque eram homens bons e justos,
assim como meu próprio irmão fora ao fazer aquela terrível opção.
Nosso povo foi enganado por líderes corruptos, foi cegado para a verdade
por aqueles que tinham o dever de lhe dar algo mais. Alguns opuseram-se a
nós porque temiam mais derramamento de sangue judaico e queriam apenas
encontrar a paz para o povo durante a Páscoa. Não posso culpar quem quer que
seja por essa opção.
Devemos condenar aqueles que não viram a luz? Não. Easa ensinou-
nos que não devemos rechaçá-los. Em vez disso, devemos perdoar-lhes.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS
CAPÍTULO CATORZE
Château des Pommes Bleues
25 de junho de 2005
Maureen voltou para seu quarto sentindo-se sufocada de medo e
ansiedade. Estava atordoada e não tinha a menor idéia do que fazer.
Vestiu-se para dormir, lentamente, tentando pensar de forma objetiva,
apesar do cérebro confuso pela sobrecarga emocional e o excesso de
vinho tinto. Isto é um esforço inútil, pensou ela. Não conseguirei
dormir esta noite.
Entregou-se, no entanto, ao conforto acolhedor da enorme cama e
o sono envolveu-a em questão de minutos. E o sonho também.
A mulher pequena com o véu vermelho seguia em silêncio na
escuridão. O coração batia em ritmo acelerado, enquanto ela tentava
acompanhar os dois homens e suas passadas largas. Aquilo era tudo
ou nada... um risco terrível para cada um, mas o momento mais
importante de sua vida.
Desceram apressados pela escada externa; aquele era o risco
maior na missão. Ficariam expostos à noite de Jerusalém e só podiam
orar para que os guardas tivessem sido afastados, conforme o
prometido.
Olharam uns para os outros, aliviados, ao se aproximarem da
entrada subterrânea. Não havia guardas. Um homem ficou do lado de
fora, para se manter de vigia. O outro homem, que conhecia o caminho
através dos corredores da prisão, continuou a conduzir a mulher. Parou
diante de uma pesada porta e pegou a chave que escondera sob as
dobras da túnica.
Ele olhou a mulher e disse alguma coisa, enfático. Todos sabiam
que havia pouco tempo antes que o risco de descoberta fosse grande
demais... ela mais do que os outros.
O homem virou a chave na fechadura e abriu a porta para deixá-la
entrar. Tornou a fechá-la assim que ela passou, a fim de proporcionar
privacidade à mulher e ao prisioneiro.
Ela não sabia o que esperava, mas com certeza não era aquilo. Seu
belo homem fora tratado brutalmente; quanto a isso, não podia haver a
menor dúvida. Tinha as roupas rasgadas e exibia equimoses no rosto. Apesar
de todos os ferimentos, no entanto, ofereceu um sorriso de afeto e amor para a
mulher, que se jogou em seus braços.
Ele abraçou-a apenas por um breve instante, já que o tempo conspirava
contra os dois. Depois, segurou-a pelos ombros e começou a dar instruções...
enfáticas, urgentes. Ela balançou a cabeça, várias vezes, assegurando que
compreendia e que todos os seus desejos seriam cumpridos. Finalmente, ele
passou a mão de leve por sua barriga e deu a última instrução. Quando
acabou, a mulher caiu em seus braços, pela última vez, fazendo um bravo
esforço para reprimir o som dos soluços que sacudiam seu corpo.
Os mesmos soluços sacudiram Maureen. Ela chorou,
incontrolavelmente, o rosto comprimido contra o travesseiro, para que as
outras pessoas no castelo não pudessem ouvi-la. O quarto de Peter era o
mais próximo e ela não queria atrair sua atenção.
Aquele sonho fora o pior de todos. Era muito real, muito nítido. Ela
sentia cada segundo de tensão e dor, sentia a urgência das instruções
transmitidas. E sabia o motivo. Eram as instruções finais de Jesus Cristo
para Maria Madalena, na véspera da Sexta-feira da Paixão.
E havia outra instrução urgente no sonho, esta dada para
Maureen. Ouvira a voz do homem em seu ouvido... seria mesmo o seu
ouvido? Ou o ouvido de Maria? Ela observava Maria de fora, mas sentia
tudo o que Maria experimentava por dentro. E ouvira a instrução final:
— Porque o tempo chegou. Vá e cuide para que nossa mensagem
continue a viver.
Maureen se sentou na cama e tentou pensar. Operava por instinto
agora e por algo mais... algo indefinível, sem lógica e sem razão. Era algo
em que tinha de confiar, com toda a força de seu coração, em vez de
analisar demais com o cérebro.
Era plena noite no Languedoc, suave, com os raios do luar
entrando pelo quarto de Maureen. Iluminaram o rosto adorável de Maria
Madalena no deserto, a Madona de Ribera, erguendo os olhos para o céu, à
procura de orientação divina. Maureen decidiu seguir a direção de Maria.
Pela primeira vez desde que tinha oito anos de idade, ela começou a rezar
por orientação.
Mais tarde, Maureen não conseguiu lembrar quanto tempo passara
antes de ouvir a voz. Segundos? Minutos? Não tinha importância.
Quando ouviu, ela teve certeza. Foi como no Louvre, a mesma voz feminina
insistente, chamando-a, levando-a para a frente. Só que desta vez dizia
seu nome.
— Maureen... Maureen...
E sussurrava com uma urgência crescente. Ela se vestiu e calçou os
sapatos, com medo de demorar demais e perder o contato com a guia
etérea que queria conduzi-la. Abriu a porta de seu quarto, com todo o
cuidado, rezando para que não rangesse e acordasse alguém. Como Maria
Madalena no sonho, os movimentos furtivos eram de extrema
importância. Não podia ser vista... ainda não. Era uma coisa que tinha de
fazer sozinha.
O coração de Maureen batia forte, vibrando em seus ouvidos,
enquanto atravessava o castelo na ponta dos pés, sem fazer barulho.
Sinclair saíra e todos os outros dormiam. Ao se aproximar da porta da
frente, ela parou de repente, quando um pensamento lhe ocorreu. O
alarme. A porta da frente tinha um alarme de código. Observara
quando Roland o desligara certa manhã, depois do café, para abrir a
porta. Ele batera três vezes no teclado. Três números. O código de alarme
tinha três dígitos.
Parada diante do painel, ela tentou pensar como Sinclair. Que
código ele usaria? Uma idéia ocorreu-lhe. A festa de Maria Madalena era
em julho, no dia 22. Ela bateu os números no teclado, como vira Roland
fazer. 7-2-2. Nada. Uma luz vermelha piscou e um bip alto soou,
provocando um sobressalto em Maureen. Droga! Por favor, não deixe que
o som desperte alguém.
Maureen fez um esforço para se controlar. Pensou de novo. Sabia
que não dispunha de muita margem de erro. O alarme seria acionado se
ela continuasse a bater códigos incorretos. Maureen ergueu a cabeça e
olhou para o alto, sussurrando:
— Por favor, ajude-me.
Não sabia o que esperava... que a voz respondesse? Para lhe dar o
número? Que a porta se abrisse, como num passe de mágica, para deixá-la
sair? Ela esperou por um momento, mas nada aconteceu.
Não seja idiota. Vamos, Maureen, pense bem. E foi então que ela
ouviu. Não a voz efêmera da mulher, mas uma voz que vinha de sua
memória. Era a voz de Sinclair, na primeira noite que passara no castelo.
— Minha cara, você é o cordeiro pascal.
Maureen tornou a se virar para o painel e bateu os números 3-2-
2. Março, dia 22, seu aniversário. E o dia da ressurreição.
Dois bips curtos soaram, uma luz verde acendeu e uma voz
mecânica disse algo em francês. Maureen não esperou para ver se aquilo
acordara alguém. Abriu a pesada porta e saiu. O luar iluminava o
caminho de pedras do castelo.
Maureen sabia exatamente para onde ia. Não sabia por que e não
sabia como, apenas sabia qual devia ser o seu destino. A voz não era mais
audível, mas não precisava dela. Alguma coisa assumira o controle,
alguma coisa interior que sabia e que ela seguia sem questionar.
Contornou rapidamente o lado da casa, o mesmo caminho que
Sinclair seguira quando a levara na excursão pelo jardim. Havia um
caminho ali, invadido pelo mato e difícil, que seria impossível percorrer
numa noite escura, sem luar. Mas o luar iluminava seu caminho. Ela
avançou quase correndo, até avistar seu objetivo, a distância. A Loucura
de Sinclair. A torre que Alistair Sinclair construíra no meio da propriedade,
sem qualquer razão aparente.
Só podia haver uma razão e agora ela a conhecia. Era uma torre de
vigia, como a Torre Magdala, de Berenger Saunière, em Rennes-le-
Château. Os dois homens mantinham-se atentos à região, para o dia em
que Maria decidisse revelar seus segredos. As duas torres davam para a
área que fora definida como o esconderijo do tesouro. Maureen
encaminhou-se para a torre na maior expectativa. Mas sentiu um aperto
no coração ao lembrar que Sinclair mantinha a porta trancada. Ele
usara uma chave para abri-la quando subiram até lá.
Mas... o que acontecera quando saíram? Maureen vasculhou a
memória, enquanto se aproximava. Estavam absortos na conversa e ela
não se lembrava de Sinclair ter trancado a porta. Seria possível que ele
estivesse tão distraído que esquecera? Teria voltado mais tarde para
reparar a negligência? Ou a tranca era automática?
Ela não precisou esperar muito para descobrir. Ao contornar a torre
para a entrada, viu que a porta estava entreaberta. Deixou escapar um
suspiro de alívio e gratidão.
— Obrigada — murmurou ela, erguendo o rosto para o céu.
Maureen não sabia se fora um esquecimento de Sinclair ou
intervenção divina, mas sentia-se exultante, o que quer que tivesse sido.
Subiu a escada, com o maior cuidado. A escuridão era total dentro
da estranha construção de pedra e não podia ver coisa alguma. Tratou de
reprimir a tendência à claustrofobia e continuou a subir, apesar do medo.
Ouviu a voz de Tammy em sua mente, lembrando que Sinclair e
Saunière haviam construído suas torres de acordo com a numerologia
espiritual. Contou meticulosamente e soube quando estender a mão
para a porta à frente, no 22° degrau. A porta se abriu e o luar inundou a
escada da torre, enquanto Maureen saía para o deque.
Ela ficou imóvel ali por um longo momento, absorvendo toda a
fantástica beleza da noite quente. Sem saber o que procurar, limitou-se a
esperar. Chegara àquele ponto e tinha de manter a fé em que a jornada
não acabaria ali. O luar lhe mostrou uma coisa que não notara antes,
quando estivera ali com Sinclair. Esculpido na parede de pedra, por trás
da porta, havia um relógio de sol, parecido com o que ela vira em Rennes-
le-Château. Maureen passou a mão pelas marcas. Não tinha
conhecimento suficiente dos símbolos para ter certeza de que era
idêntico ou apenas comparável ao outro. Pensou a respeito, enquanto
seguia para o ponto central do deque de observação. Teve a impressão de
divisar alguma coisa no horizonte, por um momento. Esperou,
contemplando a noite do Languedoc.
E depois tornou a ver, primeiro como um clarão, em sua visão
periférica. Reagiu com surpresa, como acontecera na primeira vez em que
estivera ali, com Sinclair. Alguma coisa intangível, um ponto de luz ou um
movimento, atraiu seus olhos para um local determinado no horizonte.
Virou-se nessa direção e ficou observando, enquanto o luar parecia
aumentar, focalizando um raio intenso, num ponto distante, bem à sua
frente. A luz refletia em alguma coisa... uma pedra? Um prédio?
E, depois, ela soube o que era. A tumba. A luz era mais intensa no
local da tumba de Poussin.
Claro. Escondido à plena vista, como tudo até agora.
A luz continuou a se movimentar e mudar, tornando-se mais
opaca, como se assumisse uma forma humana alongada. Era agora uma
mancha iridescente, viva e dançando. Deslocou-se pelos campos em sua
direção, para depois tornar a se afastar. Maureen observava com
absoluto fascínio, por tanto tempo quanto ousou, antes de tomar a única
decisão possível: tinha de segui-la.
Maureen escorou a porta, a fim de que o luar iluminasse a escada
para a descida. E desceu o mais depressa possível. Saiu da torre. Parou de
repente. Alcançar a tumba no escuro era um problema logístico. Não
havia um caminho direto, nenhum atalho que a levasse até lá. Era um
terreno acidentado, coberto por mato baixo e denso.
O único percurso que Maureen conhecia bem era o que passava pelo
caminho de carro até o castelo e depois a estrada principal, contornando a
propriedade, até a tumba. Mas teria de passar pela frente do castelo e ficar
exposta na estrada. Saiu andando tão depressa quanto podia, pela trilha
coberta de mato. Avistou o castelo à sua frente. Estava escuro e silencioso.
Até ali, tudo bem. Ela correu pelo caminho de pedras, até o portão.
Ficou aliviada ao descobrir que o portão naquele lado tinha
detectores de movimento e se abriu com um sussurro mecânico quando
ela se aproximou. Passou pelo portão e virou à esquerda na estrada. Era o
meio da noite e por isso bastante improvável que houvesse muitos
carros naquela área remota. O silêncio da região ameaçava engolfá-la...
um silêncio estranho, fantástico, desconcertante. O castelo ocupava
um vasto terreno e não havia vizinhos próximos. O único som vinha do
coração de Maureen, batendo forte dentro do peito.
Ela tentou se manter junto da sebe à beira da estrada, observando
ao redor com o máximo de atenção, enquanto andava.
O coração subiu pela garganta quando um som rompeu o silêncio.
Ela tentou não entrar em pânico. Um motor de carro. De que direção
vinha? A acústica na região montanhosa tornava difícil determinar.
Maureen não esperou para descobrir. Em vez disso, jogou-se no chão,
rezando para que os arbustos e a relva alta a escondessem dos faróis.
Ficou absolutamente imóvel enquanto o carro passava, os faróis
iluminando a área ao redor. O motorista devia estar preocupado com
outras coisas, pois não diminuiu a velocidade ao passar pela ruiva
deitada de bruços no lado da estrada.
Quando teve certeza de que o carro já estava longe, Maureen
levantou-se e limpou as roupas. Continuou a andar, seguindo a estrada.
Olhou na direção do castelo, agora distante... havia uma luz acesa numa
janela lá em cima? Maureen contraiu os olhos por um momento, tentando
identificar onde ficava a janela. Mas o castelo era grande demais e ela não
tinha tempo para ficar ali e calcular.
Tornou a se apressar, o coração cada vez mais excitado, ao contornar
uma curva que reconheceu. Podia avistar, à encosta à sua frente, a tumba
de Poussin brilhando ao luar.
— Et in Arcadia Ego — sussurrou Maureen para si mesma.
Ela procurou o caminho que descobrira com Peter poucos dias
antes, aquele que obviamente havia sido escondido. Encontrou-o,
através de uma mistura de sorte e memória, talvez algo mais. Subiu até o
ponto em que a tumba estava, havia séculos, impassível, testemunha
silenciosa de um legado antigo, que ainda não revelara seus segredos.
E agora? Maureen olhou ao redor da área próxima, depois se
adiantou e parou ao lado da tumba, pensando e esperando. Foi assaltada
por um breve momento de dúvida, ao ouvir de novo a voz de Tammy em
sua memória:
— O avô de Sinclair escavou cada palmo da propriedade por um
quilômetro quadrado ao redor da tumba. Berenger utilizou todo tipo de
tecnologia imaginável à procura do tesouro enterrado... ultra-som, radar
e outras coisas.
E não era só isso. Milhares de caçadores de tesouros haviam
percorrido a região, muitas e muitas vezes. Ninguém jamais encontrara
qualquer coisa. Por que ela seria diferente? O que a fazia pensar que tinha
o direito de esperar mais?
E foi então que ela ouviu, a voz de seu sonho... a voz dele:
— Porque é o momento.
Um farfalhar nos arbustos assustou-a tanto que ela pulou para
trás, perdeu o equilíbrio e caiu. A mão direita bateu numa pedra afiada
e Maureen sentia que a palma era cortada. Mas não podia se dar ao luxo
de pensar na dor, pois tinha medo demais do som. O que seria aquilo?
Maureen esperou, absolutamente imóvel. Não podia respirar. Ouviu o
som de novo, enquanto duas pombas brancas perfeitas alçavam vôo dos
arbustos para a noite do Languedoc.
Maureen voltou a respirar. Levantou-se e seguiu para o
emaranhado de arbustos que escondia o amontoado de blocos de pedra
na frente da tumba. Empurrou os arbustos para os lados, a fim de
verificar se havia alguma coisa por trás. Apenas os blocos de pedra. Ela
empurrou um, mas não houve qualquer movimento, nada cedeu. Parou
para descansar por um momento, tentando pensar. A mão latejava no
talho. O sangue escorria pela palma. Quando ergueu a mão direita, para
verificar o ferimento, o luar refletiu no anel, faiscando no padrão circular
gravado no cobre antigo.
O anel... Ela sempre tirava as jóias antes de se deitar, mas naquela
noite sentia-se exausta demais para seguir a rotina normal e acabara
dormindo com o anel no dedo. O padrão circular das estrelas. Como acima
é abaixo. Havia uma duplicata do padrão no lado posterior da tumba.
Ela deu a volta para o outro lado da tumba. Empurrou os arbustos
ali para ter acesso ao padrão. Passou a mão pela inscrição. O sangue da
palma de sua mão caiu dentro do círculo. Ela prendeu a respiração, em
total imobilidade, esperando pelo que viria.
Nada aconteceu. O silêncio prolongou-se por minutos, até que
Maureen sentiu que estava acuada num vácuo... como se todo o ar da
noite fosse sugado. E de repente, num momento atordoante, um som
alcançou-a. Vinha de uma distância desconhecida, talvez do alto da
estranha colina que é Rennes-le-Château... o repicar de um sino de igreja.
O som profundo vibrou pelo corpo de Maureen. Era o som mais sagrado
que ela já ouvira, ou o mais ímpio. Mas o incongruente repicar do sino de
igreja na calada da noite parecia monumental.
O som sacudia a escuridão em torno de Maureen. Foi seguido um
instante depois por um estalo forte e ominoso. Era alto e vinha das
pedras por trás dela, o lugar de onde as pombas haviam voado. O
estranho foco de luar incidia sobre aquele lugar agora... só que estava
diferente. Onde antes ela vira apenas arbustos e blocos de pedras, havia
agora uma abertura, uma fenda na encosta da montanha, convidando-a
a entrar.
Maureen avançou para a caverna que acabara de se abrir. Tremia
agora, de uma maneira quase incontrolável. Mas seguiu em frente. Ao se
aproximar da abertura, que mal dava para passar de pé, ela avistou uma
tênue claridade. Fez um esforço para reprimir o medo, depois baixou a
cabeça e entrou na caverna.
Ela prendeu a respiração assim que entrou. Lá dentro havia uma
arca, antiga e escalavrada. Maureen vira-a num sonho, em Paris. A velha
a mostrara, gesticulando em sua direção. Tinha certeza de que era a
mesma arca. Um brilho estranho envolvia aquela peça. Maureen
ajoelhou-se e pôs as mãos na arca, reverente. Não havia tranca. Ao
estender os dedos por baixo da tampa, para levantá-la, estava tão
concentrada no que fazia que não ouviu os passos. Depois, não teve
consciência de qualquer outra coisa que não a dor intensa que se irradiou
detrás do seu crânio, antes do mundo escurecer.
Roma
26 de junho de 2005
Se o bispo Magnus O'Connor esperava uma recepção de herói no
conselho do Vaticano, ficou bastante desapontado. Os homens estóicos,
sentados em torno da mesa antiga, mantiveram-se impassíveis, os
lábios comprimidos. O cardeal DeCaro era o principal inquisidor.
— Pode explicar para o conselho, por favor, por que o primeiro
homem a apresentar os cinco estigmas desde São Francisco de Assis não
foi leva do a sério?
O bispo O'Connor suava bastante agora. Apertou o lenço no colo,
que usava para limpar o acúmulo de gotas de suor no rosto. Pigarreou
antes de responder, com a voz um pouco mais trêmula do que gostaria:
— Sua Graça, Edouard Paschal tinha transes perturbadores.
Gritava e chorava, alegava ter visões. Foi determinado que não passavam
de delírios lunáticos de uma mente perturbada.
— E quem foi o responsável por essas determinações oficiais?
— Fui eu, Sua Graça. Mas deve compreender que era um
homem comum, um cajun do Bayou...
DeCaro não conseguiu esconder sua irritação. Não estava mais se
importando com as explicações do bispo. Havia muita coisa em jogo e
precisavam agir depressa. Suas perguntas eram cada vez mais incisivas, o
tom mais áspero.
— Descreva as visões para aqueles que não tiveram a oportunidade
de ler os arquivos.
— Ele tinha visões de Nosso Senhor com Maria Madalena... visões
perturbadoras. Falava sobre... a união dos dois... e falava de filhos. Os
delírios se tornaram mais intensos depois... dos estigmas.
Os membros reunidos do conselho sentiam-se cada vez mais
apreensivos. Mudaram de posição em suas cadeiras e trocaram
comentários, em sussurros. DeCaro continuou o interrogatório
implacável:
— E o que aconteceu com esse Edouard Paschal?
O'Connor respirou fundo antes de responder:
— Ele se tornou tão atormentado com as ilusões que... matou-se
com um tiro na cabeça.
— E o que houve depois de sua morte?
— Como um suicida, não podíamos permitir que ele fosse
sepultado em terreno consagrado. Guardamos os registros e esquecemos.
Até... até que a filha dele atraiu nossa atenção.
O cardeal DeCaro balançou a cabeça, pegando outra pasta
vermelha. Correu os olhos pelos membros do conselho.
— O que nos leva à questão da filha...
... Muitos ficarão chocados ante a minha decisão de incluir a
romana Cláudia Prócula, neta de Augusto César e filha adotiva do
imperador Tibério, entre nossos seguidores. Porém não era a sua posição
como romana que a tornava uma seguidora tão improvável. Era o fato de
Cláudia ser esposa de Pôncio Pilatos, o mesmo procurador que condenou
Easa à crucificação.
Entre as muitas pessoas que se dispuseram a nos ajudar, nos dias de
trevas, Cláudia Prócula arriscou tanto ou mais que qualquer outra por Easa.
Na verdade, tinha muito mais a perder do que outros.
Porém, naquela noite em que nossas vidas se cruzaram em
Jerusalém, nós duas ficamos ligadas pelo coração e pelo espírito. E assim
permanecemos, ligadas, desse dia em diante, como esposas, como mães,
como mulheres. Por seus olhos apreendi que ela se tornaria uma filha d'O
Caminho quando chegasse o momento. Testemunhei ali a luz que provém da
conversão, quando um homem ou uma mulher encontra Deus claramente
pela primeira vez.
E Cláudia possui um coração pleno de amor e perdão. O fato de ter
permanecido com Pôncio Pilatos, apesar de tudo o que aconteceu, é um
sinal indelével de sua fidelidade. Até o fim, ela sofreu pelo marido, como só
uma mulher que ama verdadeiramente é capaz de sofrer. E isso é uma
afirmativa que permito-me fazer porque sei.
A história de Cláudia ainda não foi contada. Espero que lhe faça
justiça.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS
CAPITULO QUINZE
Château des Pommes Bleues
27 de junho de 2005
Maureen tinha a boca ressequida e sentia que a cabeça pesava uma
tonelada. Onde estava? Tentou se virar. Uma dor intensa irradiou-se da
sua cabeça. Não fosse por isso, porém, estava confortável. Muito
confortável. Estendida numa cama, no castelo. Mas como?
Confusa... nada era claro. Teve um breve pensamento de que podia
ter sido drogada, além de levar a pancada na cabeça. Por quem? E onde
estava Peter?
Vozes no outro lado da porta. Alteradas. Transtornadas e
preocupadas. Furiosas? Homens. Ela tentou identificar sotaques.
Occitano, com certeza. Roland. A voz mais alteada era... escocesa?
Irlandesa? Só podia ser Peter. Ela tentou chamá-lo, mas só conseguiu
emitir um som fraco. Ainda assim, foi suficiente para atrair a atenção.
Os dois entraram correndo no quarto.
Peter nunca se sentiu tão aliviado em toda a sua vida quanto no
momento em que ouviu o barulho no quarto de Maureen. Empurrou para
o lado o gigante Roland e ultrapassou Sinclair para ser o primeiro a
entrar no aposento. Foi seguido de perto pelos outros. Maureen tinha
os olhos abertos. Parecia atordoada, mas estava consciente. O médico lhe
enfaixara a cabeça, depois de estancar a hemorragia. Ela parecia uma
vítima de guerra.
— Graças a Deus, Maureen! Pode me ouvir?
Peter pegou sua mão. Maureen tentou balançar a cabeça para
confirmar que o ouvia. Uma péssima idéia. Teve uma vertigem com o
movimento e perdeu a visão por um minuto inteiro. Sinclair
aproximou-se por trás de Peter. Roland ficou para trás, em silêncio.
— Não se mexa, se puder evitar. O médico disse que é melhor
você permanecer tão imóvel quanto possível.
Maureen piscou para indicar que compreendia. Queria falar,
mas descobriu que não podia. Mal conseguiu balbuciar:
— Água...
Sinclair pegou uma tigela de cristal com uma colher na
mesinha-de-cabeceira. Fez um esforço para parecer jovial:
— Ainda não pode tomar água, por ordem do médico. Mas
pode chupar pedaços de gelo. Se tiver uma boa reação, poderá tomar
água daqui a pouco.
Juntos, Sinclair e Peter ajudaram Maureen. Peter levantou-a,
gentilmente, enquanto Sinclair usava a colher para pôr pedaços de
gelo em sua boca. Ao sentir a reidratação, Maureen tentou falar de
novo:
— O que...?
— O que aconteceu? — Peter olhou para Sinclair e depois para
Roland, mais atrás, antes de acrescentar: — Contaremos tudo
depois que descansar mais um pouco. Roland... é o seu herói. E o
meu também.
Os olhos de Maureen deslocaram-se para Roland, que
meneou a cabeça, solene. Ela passara a gostar do enorme occitano e
sentia-se grata pelo que ele fizera para trazê-la de volta ao castelo.
Sua maior preocupação, no entanto, não era consigo mesma. A
resposta de que precisava ainda não viera. Sinclair pôs mais lascas
de gelo em sua boca. Ela tornou a tentar falar:
— A... arca?
Sinclair sorriu, pela primeira vez em dias:
— Está segura. Foi trazida para cá, junto com você, e ficou
trancada em meu escritório.
— O que...?
— O que tem dentro? Ainda não sabemos. Não vamos abri-la
sem você, minha cara. Seria um erro. A arca lhe foi confiada e você
deve estar presente quando o conteúdo for revelado.
Maureen fechou os olhos, aliviada. Deixou que o sono
profundo do sedativo a envolvesse de novo, segura de que não
fracassara.
Quando Maureen tornou a se mexer, Tammy estava sentada ao
lado da cama, em uma das poltronas de couro vermelho.
— Bom-dia, minha linda. — Ela largou o livro que estava lendo.
— Enfermeira Tammy, a seu serviço. O que posso lhe servir? Margarita?
Piña colada?
Maureen teve vontade de sorrir, mas ainda não podia.
— Pode se contentar com lascas de gelo? Ah, vejo o sinal
internacional do polegar para cima! Lá vamos nós!
Tammy pegou a tigela de cristal e foi para o lado de Maureen. Usou
a colher para pôr algumas lascas de gelo em sua boca.
— Uma delícia, não é mesmo? São fresquinhas, feitas esta manhã.
Desta vez Maureen sorriu um pouco, mas ainda doía. Melhor ainda,
podia pensar. A cabeça latejava, mas a vertigem era mínima e a memória
começava a voltar.
— O que aconteceu comigo?
Todo o humor desapareceu do rosto de Tammy. Ela tornou a
sentar ao lado de Maureen, muito séria.
— Esperamos que possa nos contar a primeira metade. E depois
pode remos relatar a segunda. Não agora, é claro. Podemos esperar até
você ter condições de falar. Mas a polícia...
— Polícia?
— Calma, calma... eu não deveria ter dito isso. Está tudo bem agora
e isso é o que nos interessa.
— Não é, não. — Maureen sentia que recuperava o controle da
voz, junto com sua força. — Preciso saber o que aconteceu.
— Como você quiser. Vou chamar os homens.
Os quatro entraram no quarto de Maureen, primeiro Sinclair,
seguido por Peter, depois Roland com Tammy. Sinclair aproximou-se da
cama e sentou na única cadeira ao lado.
— Maureen, não tenho palavras para exprimir o quanto lamento
o que aconteceu. Eu a trouxe para cá e a expus ao perigo. Mas nunca
imaginei que qualquer coisa assim pudesse lhe acontecer. Tinha certeza
de que conseguiria protegê-la dentro do terreno do castelo. Não previmos
que você se aventuraria a sair sozinha, ainda mais no meio da noite,
como aconteceu.
Tammy também se aproximou da cama.
— Lembra o que eu lhe disse? Que havia pessoas que tentariam
impedi-la de encontrar o tesouro?
Maureen balançou a cabeça, apenas o suficiente para que o
movimento fosse percebido.
— Quem são eles? — sussurrou ela.
Sinclair inclinou-se para a frente:
— A Guilda dos Justos. Um bando de fanáticos que opera na
França há séculos. Suas metas são complicadas, e acho melhor deixar
para explicar quando você estiver plenamente recuperada.
Maureen fez menção de protestar. Queria respostas concretas.
Surpreendentemente, foi Peter quem se manifestou em apoio a Sinclair:
— Ele tem razão, Maureen. Seu estado de saúde ainda é precário.
Por isso devemos poupar os detalhes mais sórdidos para o momento em
que você estiver um pouco mais forte.
— Você foi seguida — continuou Sinclair. — Eles vigiavam seus
movimentos desde que chegou à França.
— Mas como?
Sinclair parecia muito pálido e exausto ao se inclinar para a frente,
a fim de explicar. Maureen notou as olheiras quando ele passou a mão pelo
rosto.
— Foi nesse ponto que eu falhei, minha cara. Alguém se infiltrou
aqui. Eu não tinha a menor idéia, mas um dos nossos foi um traidor,
durante anos.
A angústia e a vergonha por esse fracasso haviam cobrado um
tributo de Berenger Sinclair. Mas, enquanto ele parecia desesperado,
Roland, um pouco atrás, exibia uma expressão ameaçadora, de fúria
total. Foi para ele que Maureen endereçou sua pergunta:
— Quem?
O gigante soltou um grunhido.
— De la Motte.
Ele se pôs a falar em sua língua natal, não francês, mas occitano.
Quando fez uma pausa, Sinclair explicou:
— Jean-Claude era o culpado. Mas você não precisa se sentir
traída por um parente. Ele não tem o sangue da família Paschal. Isso,
como todo o resto nele, era uma mentira. Eu tinha plena confiança em
Jean-Claude ou nunca teria permitido que ele chegasse perto de você.
Ontem, quando veio buscá-la, ele deixou um espião na propriedade.
Maureen pensou no encantador Jean-Claude, que fora tão
respeitoso e gentil durante a excursão. Seria possível que aquele homem
conspirasse contra ela desde o início? Era difícil acreditar. E havia outra
coisa que não fazia sentido. Ela tentou formular a pergunta:
— Como eles sabiam? O momento...
Roland, Sinclair e Tammy trocaram olhares, um visível sentimento
de culpa em seus rostos. Tammy ergueu a mão, num gesto de quem se
oferecia como voluntária.
— Eu contarei.
Ela ajoelhou-se ao lado da cama de Maureen. Olhou para Peter, a
fim de incluí-lo na explicação.
— É parte da profecia. Lembra o estranho relógio de sol em Rennes-
le-Château? Aponta para um alinhamento astrológico indicado na
profecia, que ocorre a intervalos aproximados de vinte e dois anos, por
um período total de dois dias e meio.
Sinclair continuou:
— Quando esse alinhamento acontece, os habitantes locais
mantêm uma vigilância permanente sobre a região, à espera de qualquer
indicação de atividade excepcional. É para isso que as torres foram
originalmente construídas... a de Saunière e a minha. Era onde eu
estava ontem à noite. Devo ter perdido sua passagem por pouco. Fiquei
de vigia na Loucura de Sinclair por várias horas, antes de pegar o carro e
seguir até RLC para observar de lá. E essa a tradição em minha família.
Sinclair respirou fundo antes de continuar:
— Da Tour Magdala avistei um ponto brilhante, que parecia se
tornar cada vez maior, na área de Arques. Sabia que precisaria voltar
imediatamente. Liguei para Roland pelo celular, mas ele já havia saído à
sua procura. A área em torno da tumba é monitorada por
equipamentos de segurança avançados, inclusive sensores de
movimento, o alarme soara nos aposentos de Roland. Claro que ele
estava atento aos monitores por causa do alinhamento... e ainda mais
porque Tammy avisara que nossos inimigos podiam estar mais próximos
do que pensávamos. Roland saiu assim que um alarme perto da tumba
foi acionado. Chegou ao local segundos depois que você foi atacada. E eu
cheguei logo depois, de carro. Com relação a seu atacante... posso
assegurar que não se sente hoje tão bem quanto você. E, quando receber
alta do hospital, vai se recuperar dos ossos quebrados na prisão.
Tudo começava a se ajustar para Maureen, que entendeu que a
porta da torre estava aberta... porque Sinclair acabara de sair de lá.
— Jean-Claude conhecia a ocasião tão bem quanto nós, porque
até ontem integrava nosso círculo — continuou Sinclair. — Quando
descobri mos sobre você e seu trabalho, a dois anos do alinhamento,
tivemos quase certeza de que o momento chegaria, se pudéssemos
trazê-la para cá durante a configuração.
Peter fez uma pergunta que também aflorava na cabeça de
Maureen. Ele fitou Tammy com uma expressão acusadora.
— Há quanto tempo você sabe disso?
Foi a vez de Tammy se mostrar constrangida. Tinha os olhos
vermelhos de estresse, insônia e lágrimas não derramadas.
— Maureen... — A voz saiu trêmula, mas ela fez um esforço para
continuar. — Sinto muito. Não fui franca com você. Quando a conheci
em Los Angeles, há dois anos, reconheci você e seu anel. Escutei as
histórias que me contou, em sua absoluta inocência... Não fiz nada na
ocasião, mas tomei o cuidado de me manter em seu círculo de conhecidos
e observar seu progresso. Assim que o livro foi publicado, mandei um
exemplar para Berry. Somos amigos há anos e eu sabia o que ele
procurava. O que todos nós procurávamos...
Peter não ficou satisfeito com a explicação, pois passara a gostar de
Tammy. E sentia-se diferente agora que sabia que ela usara Maureen.
— Mentiu para ela durante todo o tempo.
Tammy deixou as lágrimas escorrerem.
— É verdade. E lamento muito... mais do que posso dizer.
Roland estendeu o braço protetor em torno de Tammy, mas foi
Sinclair quem falou em sua defesa.
— Não a julguem com muito rigor. Podem não gostar do que
Tammy fez, mas ela tinha razões para isso. E há muito mais que Tammy
arriscou e que você ignora. É uma mulher altruísta, uma autêntica
guerreira d'O Caminho.
Maureen ainda tentava juntar tudo... as mentiras, as manobras
deliberadas, a consumação de anos de estranhos sonhos e visões. Era
demais para o estado em que se encontrava. A agitação deve ter ficado
aparente em seu rosto, pois Peter se apressou em interferir:
— Já chega por enquanto. Depois que você se recuperar, eles
contarão o resto.
Maureen hesitou por um momento. Ainda havia uma pergunta
crucial para a qual precisava de uma resposta:
— Quando abriremos a arca?
Sentia-se sinceramente surpresa com o fato de que isso
ainda não houvesse sido feito. Aquelas pessoas haviam dedicado a
maior parte de suas vidas a buscar o tesouro. No caso de Sinclair,
várias gerações de sua família haviam gasto milhões de dólares com
esse intuito. Embora a considerassem A Escolhida, ela não achava
que merecia conhecer o conteúdo da arca antes dos outros. Mas
Sinclair insistira que ninguém abrisse a arca até que Maureen
estivesse preparada para fazê-lo. Roland mantinha guarda
pessoalmente durante a noite, dormindo entre a porta e a arca.
— Assim que você estiver em condições de descer —
respondeu Sinclair.
Roland deslocava o peso do corpo de um pé para outro,
irrequieto, um espetáculo fascinante para um homem tão grande.
Tammy notou e perguntou, preocupada:
— O que é, Roland?
O corpulento occitano aproximou-se de Maureen.
— A arca... É uma relíquia sagrada, mademoiselle. Eu acho...
creio que tocá-la poderia curar seus ferimentos.
Maureen ficou comovida com tanta fé. Pegou a mão de Roland.
— Talvez você tenha razão. Vamos ver se consigo me levantar...
Foi a vez de Peter se mostrar preocupado.
— Tem certeza de que quer tentar isso tão rápido? É uma longa
caminhada pelos corredores e há vários lances de escada.
Roland sorriu para Peter, depois para Maureen.
— Não vai precisar andar, mademoiselle.
E quando Maureen indicou que estava pronta, Roland
levantou-a sem o menor esforço e carregou-a no colo através do
castelo.
O padre Peter Healy seguiu em silêncio atrás do gigante que
carregava sua prima ferida com tanta facilidade. Nunca se sentira
tão desamparado em toda a sua vida, tão desprovido do controle
de uma situação. Tinha a impressão de que Maureen se encontrava
agora em algum lugar em que não poderia alcançá-la. A descoberta
da arca ocorrera graças a algum tipo de intervenção divina; ele via
isso em Maureen e sabia que os outros também podiam perceber.
Havia um clima de presciência no vasto castelo. Alguma coisa
monumental estava acontecendo e nenhum deles chegaria ao fim
inalterado.
E havia também a condição clínica de Maureen. O médico ficara
assustado cora o ferimento em sua cabeça; dissera que era um milagre
que ela continuasse viva. Peter refletira até que ponto isso podia ser
literal. Talvez Roland estivesse certo. Peter até argumentara que a prima
devia ser hospitalizada. Fora Roland — não Sinclair — quem resistira à
sugestão. O gigante assumira a firme posição de que Maureen não devia
ser afastada da arca. O contato de Maureen com a arca já podia ter
causado alguma espécie de cura divina, pois sua sobrevivência era
inacreditável.
Ao se aproximarem da porta do escritório de Sinclair, Peter percebeu
que a pressão de sua mão no rosário dentro do bolso fazia com que as
contas de cristal cortassem-lhe a palma.
A arca estava no chão, perto de um enorme sofá. Roland pôs
Maureen nas almofadas de veludo, com todo o cuidado. Ela agradeceu
em voz baixa. Tammy se sentou de um lado, Peter no outro, enquanto
Sinclair e Roland permaneciam de pé. Ninguém se mexeu ou falou por
um longo momento. O silêncio foi rompido por um pequeno soluço que
escapou dos lábios de Maureen.
Ninguém mais se mexeu enquanto ela se inclinava para a frente,
cautelosa. Maureen pôs as mãos na tampa da arca e fechou os olhos. As
lágrimas passaram pelas pálpebras e escorreram pelas faces. Finalmente,
ela abriu os olhos e fitou cada um.
— Está tudo aqui — sussurrou ela. — Posso sentir.
— Acha que já pode? — perguntou Sinclair, gentilmente.
Maureen sorriu para ele, um sorriso sereno e consciente, que
transformou seu rosto. Por um momento, não era mais Maureen Paschal.
Era uma pessoa muito diferente, uma mulher com luz e paz interior.
Mais tarde, ao recordar aquele momento, Berenger Sinclair diria que viu a
própria Maria Madalena sentada no lugar de Maureen.
Ela virou-se para Tammy com um sorriso de radiante compaixão.
Inclinou-se e apertou a mão da amiga por um instante. Nesse segundo,
Tammy compreendeu que fora perdoada. Todos haviam sido trazidos
para aquela sala com algum propósito divino, algo bem superior... e
todos sabiam disso. Era esse conhecimento que os transformava, ao
mesmo tempo em que os uniria pela eternidade. Tammy baixou o rosto
para as mãos e chorou baixinho.
Sinclair e Roland ajoelharam-se dos dois lados da arca e fitaram
Maureen, à espera de uma confirmação. Quando ela balançou a cabeça,
os dois enfiaram os dedos por baixo da tampa, preparados para uma
abertura difícil. Mas as dobradiças não reagiram com a ferrugem do
tempo, como esperavam. A tampa foi aberta sem qualquer dificuldade, de
tal forma que Roland quase perdeu o equilíbrio. Não que alguém
notasse. Todos estavam concentrados demais, olhando para os dois
jarros de barro, em perfeito estado de conservação, dentro da arca.
Apesar de toda a tensão, Peter foi o primeiro a romper o silêncio:
— Os jarros... são quase idênticos aos que foram usados para
guardar os pergaminhos do mar Morto.
Roland, ajoelhado ao lado da arca, passou a mão pela tampa de
um dos jarros, reverente.
— Estão perfeitos — murmurou ele.
Sinclair mexeu a cabeça em concordância.
— Tem toda a razão. Não há poeira ou erosão, nem qualquer sinal
de desgaste. É como se os jarros tivessem permanecido suspensos no
tempo.
— Parecem lacrados com alguma coisa — comentou Roland.
Maureen passou a mão pela tampa de um dos jarros. Teve um
sobressalto, como se levasse um choque de uma corrente elétrica.
— Pode ser cera?
— Esperem um instante — interveio Peter. — Se esses jarros
contêm o que vocês esperam e no que acreditam, não temos o direito de
abri-los.
— Então, quem tem? — indagou Sinclair incisivo. — A Igreja? Esses
jarros não sairão daqui enquanto não verificarmos seu conteúdo. E o
último lugar em que gostaria que acabassem seria um cofre no
Vaticano, onde ficariam escondidos do mundo por mais dois mil anos.
— Não era a isso que eu me referia — declarou Peter, parecendo
mais calmo do que se sentia. — Se há documentos nesses jarros,
lacrados há dois mil anos, a súbita exposição ao ar pode afetá-los, até
mesmo destruí-los. Estou apenas sugerindo que encontremos um local
neutro aceitável... talvez por intermédio do governo francês... para abrir
os jarros. Se arruinarmos o conteúdo, vocês não terão nada para
mostrar por uma vida inteira de busca. Seria um crime... em termos
literais e espirituais.
O rosto de Sinclair deixava transparecer seu dilema. A perspectiva de
arruinar o conteúdo dos jarros era horrível demais para sequer
considerar. Mas era difícil resistir à tentação quando se tinha o sonho de
uma vida inteira ao alcance das mãos. Além disso, havia sua suspeita
inata de todos os forasteiros que se envolviam nos interesses da linhagem.
Ele não sabia o que fazer. Roland virou-se para Maureen e disse:
— A decisão é sua, mademoiselle. Creio que Ela a trouxe para nós
e que nos dirá o que deseja por seu intermédio.
Maureen começou a responder, mas parou de repente, quando
uma vertigem a envolveu. Peter e Tammy estenderam a mão ao mesmo
tempo para ampará-la. Tudo ficou escuro para Maureen, mas apenas por
um momento. E depois a certeza aflorou, com absoluta clareza. Quando
as palavras saíram, foi em tom de ordem:
— Abra os jarros, Roland.
A instrução saiu de sua boca, mas a voz não era a de Maureen.
Sinclair e Roland retiraram os jarros da arca, com todo o cuidado, e
os puseram em cima da enorme mesa de mogno. Roland perguntou a
Maureen, com excepcional reverência:
— Qual deles abrimos primeiro?
Maureen, amparada por Peter e Tammy, encostou um dedo em um
dos jarros. Não podia dizer por que escolhera aquele para ser o primeiro,
apenas sabia que era a opção certa. Roland seguiu a instrução, passando
o dedo pela beira da tampa. Sinclair pegou uma espátula antiga em sua
mesa e começou a remover a cera do lacre. Tammy ficou imóvel, sem desviar
os olhos de Roland.
Peter estava apavorado. Era o único ali que sabia o que era lidar com
documentos antigos e dados do passado de valor inestimável. O potencial
de danos graves era imenso. Até mesmo danificar os jarros seria
lamentável.
Como se para pontuar seu pensamento, um ruído assustador de
algo esfarelando ressoou na tensão da sala. A espátula de Sinclair
espatifara a tampa do primeiro jarro e arrancara uma lasca da beirada.
Peter teve um arrepio e cobriu o rosto com as mãos. Mas não pôde se
manter assim por muito tempo. O som da respiração profunda de
Maureen forçou-o a olhar.
— Minhas mãos são muito grandes, mademoiselle —
murmurou Roland para Maureen.
Maureen deu um passo para a frente, as pernas trêmulas, e enfiou
a mão dentro do jarro danificado.
Quando a retirou — devagar, cautelosa — segurava o que pareciam
ser dois livros, escritos em papel antigo. A tinta preta se destacava, em
nítido contraste com as páginas que pareciam de papel de linho. As
letras eram pequenas, precisas, perfeitamente legíveis.
Peter inclinou-se por cima de Maureen, incapaz de conter seu
crescente entusiasmo pelo que se encontrava na mesa. Olhou para os
rostos extasiados ao seu redor, mas fez seu julgamento direto para
Maureen. A voz tremia quando ele informou:
— O texto está escrito... em grego.
A respiração de Maureen ficou presa na garganta. Ela perguntou,
esperançosa:
— Pode ler o que está escrito?
Mas ela já sabia a resposta antes que Peter falasse. Toda a cor se
esvaíra do rosto dele. Ficou evidente para as pessoas na sala nesse
momento que o mundo nunca mais seria o mesmo para o padre Peter
Healy.
— Sou Maria, chamada Madalena — traduziu ele, a voz pausada.
— E...
Peter parou, não pelo efeito dramático, mas porque não tinha
certeza se podia continuar. Mas um olhar para o rosto de Maureen fez
com que tivesse certeza de que não havia outra opção.
— ... sou a legítima esposa de Jesus, chamado o Messias, um filho
real da Casa de Davi.
CAPITULO DEZESSEIS
Château des Pommes Bleues
28 de junho de 2006
Peter trabalhou durante a noite nas traduções. Maureen recusou-
se a deixar a sala, cochilando de vez em quando no sofá de veludo.
Roland trouxera travesseiros e uma manta. Maureen sorriu-lhe,
tranqüilizadora, para acalmar sua preocupação. Por mais estranho que
pudesse parecer, sentia-se bem. A cabeça não doía nem um pouco e
sentia-se espantosamente forte.
Permaneceu no sofá, pois não queria pairar junto de Peter. Sinclair
já fazia isso por todos. Mas Peter parecia não se importar; Maureen teve a
impressão de que ele nem notava. Estava completamente absorto na
natureza sagrada de sua tarefa como escriba.
Tammy aparecia na sala a intervalos para verificar o progresso da
tradução, mas acabou se retirando de vez... junto com Roland. Maureen
observara-os durante o dia inteiro e chegara à conclusão de que não era
uma coincidência. Lembrou-se da noite da festa, quando ouvira a voz de
Tammy no corredor, acompanhada por uma voz de homem com sotaque.
Tammy e Roland... Havia alguma coisa acontecendo ali, e tudo indicava
que era um novo casal. Depois que a situação acalmasse, ela arrancaria
toda a história de Tammy. Queria saber a verdade sobre os
relacionamentos no Château des Pommes Bleues.
Sua atenção foi atraída subitamente para os pergaminhos
quando Sinclair exclamou:
— Meu Deus! Dê uma olhada nisso!
Ele estava parado ao lado de Peter, nervoso, observando. Peter
escrevia depressa nos blocos, fazendo uma tradução literal das palavras
gregas. Não fazia o menor sentido, por enquanto. Precisava primeiro fazer
a transcrição, depois usaria sua experiência em línguas para colocar as
frases de uma forma lógica para o século XXI.
— O que é? — perguntou Maureen.
Peter levantou os olhos e passou a mão pelo rosto.
— Você precisa ver. Venha até aqui, se puder. Não ouso levar o
pergaminho até você no momento.
Maureen levantou-se do sofá lentamente, ainda preocupada com o
ferimento na cabeça, apesar da recuperação milagrosa. Aproximou-se da
mesa e ficou à direita de Peter, cujas anotações estavam espalhadas sobre
a mesa. Sinclair apontou para o pergaminho original, enquanto Peter
explicava:
— Isto aparece ao final de cada segmento, que chamaremos de
capítulos. Parece um lacre de cera.
Maureen olhou para o símbolo indicado por Sinclair. O padrão,
agora familiar, do anel de Maureen — nove círculos em torno de um
décimo central — havia sido aplicado no fundo da página.
— O lacre pessoal de Maria Madalena — comentou Sinclair, com
a maior reverência.
Maureen estendeu o anel para o lado da imagem. Os padrões eram
idênticos. Era como se as marcas na cera tivessem sido feitas pelo mesmo
anel.
Quando o sol se levantou sobre o Château des Pommes Bleues,
grande parte do primeiro livro, o relato em primeira pessoa da vida de
Maria Madalena, já fora traduzida. Peter trabalhava como um possesso
naquele Livro de Madalena. Sinclair tomara o chá servido. Mas, exceto por
uma pausa de dois minutos, para sorver alguns goles da bebida, Peter não
parara. Parecia muito pálido, o que deixava Maureen bastante preocupada.
— Pete, você tem de fazer uma pausa. Precisa dormir por
algumas horas.
— Não posso. — Ele foi enfático. — Não dá para parar agora. Você
não compreende porque ainda não viu o que está aqui. Tenho de
continuar. Tenho de saber o que mais ela dirá.
Todos haviam decidido esperar até que Peter estivesse certo da
tradução antes de ler qualquer coisa. Todos respeitavam a capacidade do
padre e a enorme responsabilidade que sabiam estar depositada em
seus ombros, mas ainda assim era difícil esperar. Naquele momento,
apenas Peter conhecia o que havia nos pergaminhos.
— Não posso parar agora — reiterou ele, incisivo, os olhos
brilhando com uma febre que Maureen nunca vira antes.
— Apenas por cinco minutos. Vamos sair para que possa respirar
um pouco do ar fresco da manhã. Será bom para você. Poderá voltar
em seguida e tomaremos o café da manhã aqui mesmo, se você quiser.
— Nada de comida. Preciso jejuar até que a tradução seja
concluída. Não quero parar agora.
Sinclair podia compreender o que Peter sentia, mas também via
como ele parecia fisicamente esgotado. Tentou uma tática diferente.
— Padre Healy, tem feito um trabalho admirável, mas sua
precisão será prejudicada se estiver cansado demais. Pedirei a Roland
para vir até aqui e vigiar os documentos, enquanto você descansa.
Sinclair apertou uma campainha para chamar Roland. Peter
olhou para o rosto preocupado de Maureen.
— Está bem — admitiu ele. — Cinco minutos, só para respirar
um pouco de ar fresco.
Sinclair abriu o portão para o jardim da trindade e Maureen entrou
com Peter. Uma pomba alçou vôo do meio das roseiras, enquanto o
chafariz de Maria Madalena borbulhava ao sol da manhã. Peter falou
primeiro, a voz suave e reverente:
— O que está acontecendo, Maureen? Como chegamos aqui e nos
tornamos parte de tudo isso? É como um sonho, um milagre. Parece real
para você?
Maureen meneou a cabeça numa resposta afirmativa:
— Parece, sim. Não sei como explicar, mas experimento uma
sensação de serenidade em tudo que está acontecendo. Como se ocorresse
de acordo com um plano. E você é parte disso tanto quanto eu, Pete. Não
é por acaso que veio comigo ou que ensina línguas antigas e pode
traduzir do grego. Tudo foi... orquestrado.
— Tenho mesmo a sensação de que estou desempenhando um
papel num plano. Só não sei ainda qual é esse papel e por que logo eu.
Maureen parou para aspirar a fragrância das rosas vermelhas
desabrochadas. Tornou a se virar para Peter:
— Há quanto tempo tudo isso está sendo preparado? Foi planejado
antes mesmo de nascermos? Até muito antes? — Seu avô tinha de
trabalhar na biblioteca de Nag Hammadi, a fim de prepará-lo para este
momento específico? Ou foi tudo planejado há dois mil anos, quando Maria
escondeu seu evangelho?
Peter ficou calado por um momento, antes de murmurar:
— Até a noite passada, eu teria uma resposta muito diferente da
que tenho agora.
— Por quê?
— Por causa de Maria e do que escreveu em seus pergaminhos. Ela
diz exatamente o que você acaba de enunciar... uma coisa
espantosa. Segundo Maria, algumas coisas estão gravadas nos desígnios
de Deus e algumas pessoas estão fadadas a desempenhar um
determinado papel. É incrível, Maureen. Estou lendo um relato de Jesus e
dos apóstolos escrito por alguém que se refere a eles em termos
humanos. Não há nada como esse... — Peter hesitou apenas por um
instante, antes de usar a palavra — ...evangelho na literatura da Igreja. Eu
me sinto indigno de traduzi-lo.
— Ao contrário, você é mais do que digno — assegurou Maureen,
enfática. — Foi escolhido para isso. Pense em toda a intervenção divina que
foi necessária para nos reunir, neste lugar e neste momento, para contar
esta história.
— Mas que história vamos contar? — Peter parecia atormentado
e, pela primeira vez, Maureen compreendeu que ele lutava contra
poderosos demônios interiores. — Que história eu posso contar? Se esse
evangelho é mesmo autêntico...
Maureen parou abruptamente. Virou-se para fitá-lo, incrédula:
— Como pode duvidar? Depois de tudo o que aconteceu para nos
trazer até aqui?
— É agora uma questão de fé para mim, Maureen. Os
pergaminhos estão em perfeito estado de preservação, sem uma única
falha, sem qualquer palavra faltando. Os jarros nem mesmo os sujaram.
Como é possível? Só pode ser uma de duas coisas: ou uma falsificação
moderna ou um ato da vontade divina.
— Em que você realmente acredita?
— Passei vinte horas consecutivas traduzindo o mais espantoso
documento que já conheci. E muito do que estou lendo é...
essencialmente herético. Mas também apresenta uma visão de Jesus
Cristo que é bela, de uma maneira extraordinária e humana. Mas o que
eu penso não terá importância. Será preciso autenticar os
pergaminhos pelos processos mais rigorosos para que o mundo em geral
possa aceitá-los.
Ele fez uma pausa, para chegar a uma conclusão pessoal:
— Se for possível provar que são autênticos, será um desafio para
o sistema de convicções da raça humana durante os últimos dois mil
anos. E um desafio a tudo o que sempre me foi ensinado, tudo em que
sempre acreditei.
Maureen fitou o homem, seu primo e melhor amigo, por um longo
momento. Sempre o conhecera como um rochedo, um pilar de força e
absoluta integridade. Era também um homem de fé intensa e absoluta
lealdade à sua Igreja. Ela limitou-se a perguntar:
— O que pretende fazer?
— Ainda não tive tempo de pensar a respeito. Preciso saber o que
há no resto dos pergaminhos para verificar o quanto contesta... ou
confirma, assim espero... os relatos evangélicos como os conhecemos.
Ainda não alcancei a descrição de Maria sobre a crucificação... nem sobre
a ressurreição.
Maureen compreendeu subitamente por que Peter relutava tanto
em largar os pergaminhos antes de terminar a tradução. O relato
autenticado dos acontecimentos depois da crucificação poderia ser crítico
para a fé de um terço da população do mundo. O cristianismo baseava-se
na convicção de que Jesus ressurgira dos mortos no terceiro dia. E como
Maria Madalena era a principal testemunha de sua ressurreição,
segundo os evangelhos, sua versão pessoal dos acontecimentos era vital.
Maureen aprendera, durante suas pesquisas, que os teóricos que
haviam escrito sobre Maria Madalena como esposa de Jesus também
presumiam, em sua grande maioria, que Jesus não era o Filho de Deus e
não ressuscitara dos mortos. Havia várias hipóteses de que Jesus
sobrevivera à crucificação; outra teoria comum era a de que seu corpo
físico fora retirado do sepulcro por seus seguidores. Ninguém jamais
teorizara que Jesus fora casado e também era o Filho de Deus. Por alguma
razão, essas duas circunstâncias sempre foram consideradas como
mutuamente exclusivas. Talvez fosse por isso que a existência de Maria
como a primeira apóstola sempre tivesse sido ameaçadora para a Igreja,
ao longo de toda a história.
Não podia haver a menor dúvida de que todas essas coisas haviam
passado pela mente de Peter durante as últimas horas. Ele acrescentou,
respondendo a Maureen:
— Tudo vai depender da posição que a Igreja assumir.
— E se a Igreja negar? O que você pretende fazer? Vai optar pela
instituição que é a Igreja ou pelo que sabe, no fundo de seu coração, que é
a verdade?
— Espero que essas coisas não sejam mutuamente exclusivas —
murmurou Peter, com um sorriso amargo. — Talvez eu esteja sendo
otimista demais. Mas, se por acaso acontecer, então creio que será o
momento.
— O momento para quê?
— Elige Magistrum. O momento de escolher o mestre.
Os dois acabaram o passeio e voltaram ao castelo. Maureen
convenceu Peter a tomar pelo menos uma ducha para se revigorar, antes
de reiniciar a tradução. Ela também foi até seu quarto, a fim de lavar o
rosto e ordenar os pensamentos. A exaustão ameaçava dominá-la, mas
ainda não podia se entregar. Não até saber o que havia nos pergaminhos.
Enquanto Maureen enxugava o rosto, numa elegante toalha
vermelha, ouviu uma batida na porta. Tammy entrou, animada como
sempre.
— Bom-dia. Perdi alguma coisa?
— Ainda não. Peter vai ler para nós o texto do primeiro livro assim
que achar que a tradução está pronta. Ele diz que é espantoso, mas isso
é tudo o que eu sei.
— Onde ele está agora?
— Em seu quarto, descansando um pouco. Não queria largar os
pergaminhos, mas nós insistimos. Peter enfrenta uma situação difícil,
embora não queira admitir para ninguém. É uma tremenda
responsabilidade para ele. Talvez até um enorme sacrifício.
Tammy se sentou na beira da cama.
— Sabe o que não posso compreender? Por que incomoda tanto as
pessoas a idéia de que Jesus foi casado e teve filhos? Como isso pode
diminuir sua mensagem? Por que os cristãos se sentiriam ameaçados?
Tammy continuou a falar, com alguma veemência, pois era evidente
pensara muito a respeito:
— O que significa aquela famosa passagem do evangelho de Marcos
que é lida nas cerimônias de casamento? “Mas no começo do mundo
Deus os fez homem e mulher; por isso o homem deixará seu pai e sua
mãe e se ligará a sua mulher e os dois se tornarão uma só carne. Assim
eles não são mais dois, mas uma só carne.”
Maureen estava surpresa.
— Não imaginei que você fosse capaz de citar os evangelhos com
tanta precisão.
Tammy piscou para ela:
— Marcos, capítulo dez, versículo seis. As pessoas sempre usam
os evangelhos contra nós para tentar diminuir a importância de Maria.
Por isso, empenhei-me em descobrir os versículos de acordo com as
nossas convicções. E é isso que Jesus prega no evangelho. Encontre uma
esposa e fique com ela. Por que pregaria algo que fosse errado para ele,
pessoalmente?
Maureen considerou a indagação de Tammy com o maior cuidado:
— Boa pergunta. Para mim, a idéia de Jesus casado parece mais
acessível.
Tammy ainda não acabara:
— E se Deus é referido como o pai, por que não deveria Cristo,
como o filho de Deus feito à sua imagem, ter filhos? Como isso influi em
sua divindade? Não consigo entender.
Maureen sacudiu a cabeça, pois não tinha a resposta para uma
questão tão importante.
— Suponho que, em última análise, seja uma questão a ser
interpretada pela Igreja e pelas pessoas, de acordo com sua fé.
No final da tarde, Peter anunciou que já completara a tradução
inicial do primeiro livro. Sinclair levantou-se.
— Está preparado para ler para nós, padre? Se estiver, eu gostaria
de chamar Roland e Tamara, pois eles também participaram de tudo.
Peter balançou a cabeça em concordância.
— Está bem. Pode chamá-los. — Ele fitou Maureen, com uma
combinação indecifrável de sombra e luz nos olhos. — Porque o momento
chegou.
Tammy e Roland desceram apressados para o escritório de
Sinclair. Com todos reunidos ao seu redor, Peter explicou que ainda
havia diversos trechos em esboço na tradução, pois precisaria de
tempo e da opinião de especialistas para chegar a um texto
definitivo. Mas, de um modo geral, fizera uma tradução objetiva,
mostrando quem Maria realmente fora e o papel que desempenhara
na vida de Jesus.
— Ela se refere a estes pergaminhos como O livro do Grande
Tempo.
Pegando um bloco, o padre Healy começou a ler em voz baixa:
— Sou Maria, chamada Madalena, uma princesa da tribo de
Benjamim, uma filha dos nazarenos. Sou a esposa legítima de Jesus,
o Messias d'O Caminho, que era um filho da casa de Davi e descendia da
casta sacerdotal de Aarão.
Muito já se escreveu sobre nós e mais ainda se escreverá nos dias que
virão. E muitos dos que escrevem a nosso respeito não têm conhecimento da
verdade e não estavam presentes durante o Grande Tempo. As palavras
que escreverei aqui são a verdade diante de Deus. Isto é o que ocorreu
durante minha vida, durante o Grande Tempo, o Tempo das Trevas e tudo o
que virá depois.
Deixo estas palavras para as crianças do futuro, a fim de que
possam encontrá-las quando chegar o momento e conhecer a verdade
daqueles que seguiram O Caminho.
A história da vida de Maria Madalena desenrolou-se diante
deles, em todos os seus detalhes inesperados e surpreendentes.
CAPITULO DEZESSETE
Galiléia
O Ano 26
A terra era macia e fresca entre os dedos dos pés de Maria. Ela
baixou os olhos, consciente de que as pernas à mostra estavam
completamente sujas. Não se importava, nem um pouco. Além do mais,
era apenas um dos muitos elementos impróprios de sua aparência
naquele dia. Os cabelos castanho-avermelhados lustrosos caíam soltos
até a cintura, um pouco emaranhados, enquanto a túnica descia solta,
sem cinto.
Antes, ao tentar sair da casa despercebida, fora descoberta por
Marta, que indagara, em tom de desaprovação:
— Aonde você pensa que vai desse jeito?
Maria soltou uma risada rápida, imperturbável por ter sido
interceptada em sua tentativa de fuga.
— Só vou até o jardim. E o jardim é murado. Ninguém me verá.
Marta não ficara convencida.
— É impróprio para uma mulher de sua classe e posição sair com
as roupas soltas e descalça, como uma serva.
A desaprovação de Marta era mais rotineira do que sincera. Ela já se
acostumara ao comportamento livre da jovem cunhada. Maria era uma
singular e refinada criação de Deus e Marta a mimava. Além do mais, a
jovem tinha bem poucas oportunidades de ser indulgente consigo
mesma. Sua vida era sufocada pela responsabilidade. Na maior parte do
tempo ela suportava esse fato com graça e coragem. Nos raros dias em
que Maria tinha um momento livre para vaguear pelo jardim, seria injusto
lhe negar esse pequeno prazer.
— Seu irmão voltará antes do pôr-do-sol — lembrou Marta, com
alguma ênfase.
— Sei disso. Mas não se preocupe pois ele não me verá. E voltarei
a tempo de ajudá-la com o jantar.
A mulher mais jovem deu um beijo na face da esposa do irmão e
saiu apressada para desfrutar a privacidade do jardim. Marta observou-a
se afastar com um sorriso triste. Maria era tão pequena e delicada que
era fácil tratá-la como criança. Mas ela não era uma criança, Marta
lembrou. Era agora uma jovem em idade de se casar, uma mulher com
um senso firme de seu profundo destino.
Maria não pensava no destino ao sair para o jardim. Haveria tempo
suficiente para pensar a respeito no dia seguinte. Agora, ela erguia o
rosto para aspirar a intensa fragrância de outubro no jardim, misturada
com a brisa forte que soprava do mar da Galiléia. O monte Arbel
projetava-se a noroeste, sólido e tranqüilizador ao sol da tarde. Sempre
pensava no Arbel como sua montanha pessoal, uma elevação rochosa no
rico solo vermelho, ao lado do lugar em que nascera. E ela sentia muita
saudade. A família vinha passando mais e mais tempo em Betânia, pois a
proximidade de Jerusalém era importante para o trabalho de seu irmão.
Mas Maria adorava a beleza selvagem da Galiléia e exultara quando o
irmão anunciara que passariam o outono ali.
Aquele era o momento que tanto prezava, sozinha, cercada por
flores silvestres e oliveiras. A solidão se tornava cada vez mais rara e ela
saboreava cada segundo daquelas oportunidades roubadas. Ali, era capaz
de apreciar plenamente a beleza de Deus em paz, sem as restrições das
rigorosas normas de vestimenta e tradição, uma parte inerente à sua
posição na vida.
O irmão a encontrara ali certo dia e perguntara o que ela fazia
durante as horas em que “desaparecia”.
— Nada. Absolutamente nada.
Lázaro olhara com severidade para a irmã caçula, mas logo
abrandara. Ficara furioso quando Maria não aparecera para a refeição da
tarde, uma ira derivada do medo. Gostava muito daquela irmã linda e
inteligente, mas também era seu guardião. A saúde e o bem-estar de
Maria eram sua maior prioridade. Devia protegê-la a qualquer custo, pois
era seu dever sagrado, com sua família, seu povo e seu Deus.
Quando a encontrara estendida na relva, os olhos fechados, imóvel,
Lázaro experimentara um momento de puro terror. Mas Maria logo se
mexera, como se tivesse sentido o seu pânico. Protegera os olhos
sonolentos do sol, para fitar o rosto irritado do irmão. Ele parecia
mesmo ameaçador.
A raiva de Lázaro se dissipara, contudo, quando a irmã lhe falara.
Ele começara a compreender, pela primeira vez, como Maria precisava
desesperadamente daquelas raras oportunidades de solidão. A única
filha da linhagem de Benjamim, seu futuro fora determinado desde a
infância. Tinha o destino privilegiado do sangue e da profecia. A irmã
teria um casamento dinástico, um casamento que fora previsto pelos
grandes profetas de Israel... um casamento que muitos acreditavam ser
nada menos do que a vontade absoluta de Deus.
Ombros tão pequenos para suportar um peso tão grande, pensara
Lázaro, enquanto a escutava. E Maria falara de uma maneira como em
geral não se permitia: franca e com emoção. O que levara o irmão a
compreender, com uma pontada de culpa, que ela sentia um medo real
por seu papel predestinado na história. Era estranho, mas ele quase
nunca pensava na irmã como totalmente humana. Era um tesouro
precioso, tinha de ser protegida e bem cuidada. Lázaro cumprira todas as
suas tarefas com absoluta diligência, de uma forma admirável. Mas
também a amava... embora só depois de conhecer sua esposa, Marta, se
permitisse compreender isso plenamente e aceitar qualquer tipo de
emoção.
Lázaro ainda era muito jovem quando o pai morrera. Talvez jovem
demais para assumir a enormidade das responsabilidades de sua
família, além das obrigações como proprietário de terras. Mas o jovem
prometera ao pai, durante os seus dias finais, que não desapontaria a
Casa de Benjamim. Não desapontaria seu povo e não desapontaria o
Deus de Israel.
Com a intensidade de sua determinação, Lázaro enfrentara as
inúmeras responsabilidades, entre as quais a de se tornar o guardião da
irmã Maria. Ele levava uma vida de obrigação e dever. Providenciara a
educação e criação da irmã de acordo com seu nascimento, mas nunca se
permitira sentir qualquer coisa. A emoção era um luxo... e muitas vezes
um luxo perigoso.
Mas depois Deus lhe trouxera Marta.
Ela era a mais velha de três irmãs de Betânia, nascida de uma das
famílias nobres de Israel. Fora essencialmente um casamento arranjado,
embora Lázaro tivesse a oportunidade de escolher entre as três. Escolhera
Marta por razões práticas, inicialmente. Como a mais velha, era mais
equilibrada e responsável, com mais experiência na administração de
uma casa. As irmãs menores eram um tanto frívolas e mimadas, e Lázaro
se preocupara que pudessem exercer uma influência negativa sobre
Maria. Todas as três eram adoráveis, mas a beleza de Marta era mais
serena. Ela exercia um efeito tranqüilizador em Lázaro.
A união prática se transformara num grande amor. Marta abrira o
coração de Lázaro. Quando a mãe dele morrera, deixando a pequena
Maria sem uma influência maternal, Marta assumira esse papel sem
qualquer dificuldade.
Maria pensava em Marta quando parou para descansar à sombra
de sua árvore predileta. No dia seguinte, o sumo sacerdote Jônatas
Anás estaria em sua casa, a fim de iniciar os preparativos para o
casamento. Não haveria mais oportunidades de escapulir sozinha para o
jardim, durante muito tempo. Por isso Maria tinha de aproveitar ao
máximo aqueles momentos. Na verdade, chegaria o tempo, como todos
sabiam, em que teria de deixar a casa que tanto amava e viajar para o sul,
com seu futuro marido... seu marido!
Easa.
O mero pensamento do homem que era seu prometido
proporcionou a Maria um ardor intenso. Qualquer mulher invejaria sua
posição. Mas era mais do que a posição que trazia tanta alegria a Maria;
era o próprio homem. O povo chamava-o de Yeshua, aquele filho da Casa
de Davi. Mas Maria chamava-o por um apelido da infância, Easa, para
grande consternação de seu irmão e de Marta.
— Não é apropriado chamar o líder escolhido do povo por um
apelido de criança, Maria — repreendera Lázaro, durante a última visita
de Easa.
— Ela pode — dissera a voz profunda e gentil que exigia atenção
sem qualquer esforço.
Lázaro ficara imóvel ao ouvir isso. Olhara para trás e vira Yeshua
parado ali.
— Maria me conhece desde que era pequena e sempre me chamou
de Easa. E eu não gostaria que ela mudasse.
O irmão de Maria se mostrara mortificado, até que Easa dissipara a
tensão com seu sorriso. Havia magia naquela expressão, a transformação
a que era impossível resistir. O resto da noite fora maravilhoso, com as
pessoas que Maria mais amava, reunidas em torno de Easa, desfrutando
sua sabedoria.
Deitada sob a maior de duas oliveiras, Maria mergulhou no sono, ao
sol da tarde, imagens de seu futuro marido passando por sua mente.
Quando sentiu a primeira sombra passar por seu rosto, Maria
entrou em pânico, pensando que dormira demais. Estava escurecendo! E
Lázaro ficaria furioso!
Mas quando sacudiu a cabeça para desanuviá-la, compreendeu
que ainda era meio-dia e o sol brilhava sobre o monte Arbel. Maria
levantou os olhos abruptamente para descobrir a causa da sombra que
passara por seu rosto sonhador. Soltou uma exclamação de espanto.
Ficou imobilizada pela surpresa por um instante, antes de se levantar
com toda a exuberância de uma jovem apaixonada.
— Easa! — gritou ela, a voz estridente e alegre.
Ele abriu os braços e envolveu-a num abraço apertado por um
momento, antes de recuar para contemplar seu rosto delicado.
— Minha pombinha — murmurou ele, utilizando a expressão
que usava para ela desde menina —, como é possível que você se torne
mais bela a cada dia que passa?
— Easa! Eu não sabia que você viria. Ninguém me contou...
— Eles não sabiam. Será uma surpresa também para os outros. Mas
eu não podia permitir que fizessem os preparativos para o casamento sem
a minha participação.
Ele concentrou em Maria toda a força de seu sorriso. Ela contemplou
seu rosto por um momento, os olhos muito escuros, os malares salientes.
Era o homem mais bonito que já vira... o homem mais bonito do mundo.
— Mas meu irmão diz que não é seguro você vir até aqui agora.
— Seu irmão é um grande homem que se preocupa demais.
Deus haverá de prover e proteger.
Enquanto Easa falava, Maria olhou para baixo e compreendeu,
horrorizada, como estava desarrumada. Tinha os cabelos emaranhados,
com fragmentos de relva, até mesmo uma folha solta, o que combinava
com braços e pernas à mostra, sujos de terra. Naquele momento, não
parecia com uma futura rainha, nem mesmo remotamente. Começou a
balbuciar uma desculpa, mas Easa interrompeu-a com uma sonora
risada.
— Não se preocupe, minha pombinha. É você que eu vim ver, não
suas roupas nem suas maneiras.
Ele tirou a folha dos cabelos de Maria com um sorriso divertido. Ela
sorriu, ajeitando a túnica e limpando a terra.
— Meu irmão não pensará assim — murmurou Maria, com uma
falsa preocupação.
Lázaro era firme com ela em questões de protocolo e honra. Ficaria
consternado se soubesse que a irmã estava parada no jardim sem uma
acompanhante e vestida de maneira imprópria... e na presença de um
descendente de Davi.
— Posso cuidar de Lázaro — garantiu Easa. — Mas, apenas como
precaução, por que você não entra correndo e finge que não me viu? Sairei
pelos fundos e voltarei ao final da tarde, para ser anunciado de forma
apropriada. Assim, nem você nem Marta terão uma surpresa.
— Então voltaremos a nos ver esta noite — murmurou Maria,
com uma súbita timidez.
Ela hesitou por um breve instante, antes de se virar e correr para
a casa.
— Finja que está surpresa! — acrescentou Easa, rindo, enquanto
observava a futura esposa correr pelo jardim, na direção da casa do
irmão.
Aquele dia e a noite subseqüente ficariam gravados na memória de
Maria pelo resto de sua vida. Foi a última vez em que se sentiria
despreocupada, jovem, apaixonada e feliz.
Jônatas Anás apareceu no dia seguinte, mas chegou com uma nova
proposta. O clima político e espiritual em Jerusalém era cada vez mais
instável e os planos haviam sido mudados, para evitar a crescente ameaça
dos romanos. Os sacerdotes haviam escolhido um novo líder, durante
uma reunião secreta em que Yeshua fora considerado impróprio para
assumir os deveres do ungido. Os membros do conselho acompanharam
Anás para apresentar as conclusões.
Maria recebera a ordem de deixar a sala, junto com Marta, mas
recusou-se a permanecer distante, enquanto seu futuro era discutido
pelos mais poderosos entre seu povo. Easa sorriu para tranqüilizá-la, mas
ela percebeu em seus olhos algo que a assustou. Incerteza. Nunca o vira
indeciso antes, mas era o que acontecia agora, deixando-a apavorada.
Contra os desejos de Marta, Maria escondeu-se no corredor, perto da
sala, para escutar a conversa.
Ouviu vozes alteadas, alguns gritos, homens falando ao mesmo
tempo que outros. Muitas vezes era difícil ouvir direito o que diziam. A voz
ríspida, alta e rouca pertencia a Jônatas Anás.
— Você mesmo causou essa situação ao se aliar aos zelotes. Os
romanos nunca nos permitirão fazer qualquer tipo de aliança com você
por causa dos assassinos e revolucionários entre seus partidários.
Estaríamos propiciando o massacre de nosso próprio povo.
A voz calma e melodiosa que se manifestou em seguida era a de
Easa.
— Aceito todo e qualquer um que decidir me seguir e procurar o
Reino de Deus. Os zelotes reconhecem que sou descendente de Davi.
Sou o legítimo líder deles. E também o de vocês.
— Você não compreende o que temos de enfrentar — declarou
Anás. — O novo procurador romano, Pôncio Pilatos, é um bárbaro. Vai
derramar tanto sangue quanto achar necessário para silenciar nossas
demandas mais básicas. Ostenta seus estandartes pagãos em nossas
ruas, grava seus símbolos de blasfêmia em nossas moedas... tudo para
nos lembrar que somos impotentes contra isso. Não hesitaria em
eliminar qualquer um aqui se achasse que estamos apoiando a
insurgência contra Roma dentro do Templo.
— O tetrarca nos apoiará — respondeu Easa. — Talvez interfira
junto ao novo procurador.
Anás disse, desdenhoso:
— Herodes Antipas não apóia qualquer coisa que não seja sua
luxúria e prazer. E Roma faz tudo para agradá-lo. Ele só é judeu
quando isso serve a seus interesses e ambições.
— Sua esposa é uma nazarena.
O comentário foi recebido com silêncio. Easa adotara os
ensinamentos liberais do povo nazareno, do qual sua mãe era líder. Os
nazarenos não consideravam a lei da mesma maneira rigorosa dos
judeus do Templo. Entre as tradições diferentes, havia a inclusão das
mulheres em seus rituais e até mesmo seu reconhecimento como
profetisas. Também permitiam que os gentios escutassem seus
ensinamentos e participassem de seus serviços religiosos.
Embora Anás apontasse a facção zelote como a razão primária
para o conselho retirar seu apoio a Easa, todos ali sabiam que isso não
passava de uma cortina de fumaça para a verdade. Os ensinamentos de
Easa eram muito revolucionários, muito influenciados pelos nazarenos.
Os sacerdotes do Templo não podiam controlá-lo.
Ao levantar a questão da esposa de Herodes ser nazarena, Easa
lançara um desafio aos sacerdotes do Templo. Assumiria seu papel
profetizado de Messias sem eles e ainda faria isso como um nazareno.
Era uma opção muito arriscada. Podia diminuir o poder dos sacerdotes do
Templo, mas também podia ser desfavorável a Easa, se o povo retirasse o
apoio popular a ele, em favor dos líderes tradicionais.
Mas Anás ainda não concluíra seu ataque. Sua voz ressoou
através da tensão na sala:
— Aquele que tem a noiva é o noivo.
O silêncio reinou na sala. Em seu esconderijo no corredor, Maria
ficou paralisada. Era uma alusão às profecias que celebravam a suprema
união dinástica das nobres casas de Israel. Era uma referência direta ao
noivado de Easa com Maria. Para que reinasse sobre o povo, a tradição
proclamava que o líder devia ter uma noiva também de linhagem real.
Maria, como descendente benjamita do rei Saul, tinha a mais alta
posição em Israel pelo sangue. Como tal, fora prometida a Yeshua, um
Filho do Leão de Judá, desde a infância. As tribos de Judá e Benjamim se
uniam desde os tempos antigos. O casamento das duas linhagens fora
garantido desde que Mical, filha de Saul, se casara com Davi.
Mas para governar dentro da lei, era preciso ter uma noiva
dinástica. Anás estava fazendo uma ameaça direta à união.
Foi o irmão de Maria quem falou em seguida. Lázaro era um homem
que mantinha um controle total de suas emoções, em todas as ocasiões.
Apenas os que eram muito próximos perceberiam a tensão em sua voz
ao se dirigir ao sumo sacerdote:
— Jônatas Anás, minha irmã está noiva de Yeshua por lei. Os
profetas têm comprovado que ele é o Messias de nosso povo. Não sei como
pode mos nos desviar desse curso que Deus escolheu para nós.
— Ousa me dizer o que Deus escolheu? — indagou Anás, ríspido.
No corredor, Maria ficou toda arrepiada. Lázaro era um homem
justo e ficaria mortificado por qualquer ofensa ao sumo sacerdote.
— Acreditamos que Deus escolheu outro homem — acrescentou
Anás. — Um legítimo defensor da lei, um homem que apoiará tudo o que é
sagrado para o nosso povo, sem criar qualquer ofensa política aos
romanos.
Ali estava a verdade para quem quisesse ouvi-la. Um legítimo defensor
da lei. Era o modo de Anás indicar a Easa que não tolerariam reformas
nazarenas, apesar de sua linhagem impecável.
— E quem é esse homem? — perguntou Easa.
— João.
— O Batista? — indagou Lázaro, incrédulo.
— Ele é da família do Leão — interveio outra voz, ríspida.
Maria não a reconheceu. Era possível que fosse de um sacerdote
mais jovem, Caifás, o genro de Jônatas.
— Ele não é um Davi — argumentou Easa, sempre calmo.
— Não, não é — disse Anás. — Mas sua mãe é da linha de
sacerdotes de Aarão e seu pai dos saduceus. O povo acha que ele é
herdeiro do profeta Elias. Será o suficiente para levar o povo a segui-lo,
ainda mais se ele tiver a esposa apropriada.
O círculo fora completado. Anás estava ali para garantir o noivado de
Maria com o candidato a Messias dos sacerdotes. Era o instrumento que
todos exigiam para legitimar um novo líder.
A voz seguinte era furiosa, aos gritos. Maria jamais conhecera Tiago,
um irmão mais jovem de Easa, mas adivinhou que era ele quem berrava
agora. Aquele homem falava como Easa, mas sem o controle e serenidade
do irmão mais velho.
— Não podem escolher seu Messias como mercadorias num
bazar. Todos sabemos que Yeshua é o eleito para libertar nosso povo da
servidão. Como ousam propor um substituto apenas porque receiam por
suas posições privilegiadas?
Seguiram-se gritos, cada um querendo falar mais alto do que os
outros. Maria tentou discernir as vozes e palavras, mas tremia demais
agora para entender direito. Só sabia que tudo se relacionava com a
mudança.
A voz irritada de Anás prevaleceu sobre as outras:
— Lázaro, como guardião dessa jovem, você pode tomar a decisão
de romper o noivado e conceder a mão da filha de Benjamim ao
candidato que escolhemos. Tudo depende de você agora. Mas quero
lembrar-lhe que seu pai era um fariseu, um leal servidor do Templo. Eu
o conheci muito bem. Ele esperaria que você fizesse o que é melhor para
o povo.
Maria podia sentir a angústia de Lázaro. Era verdade, o pai fora
dedicado ao Templo e um servidor da lei até o dia de sua morte. A mãe
fora uma nazarena, mas não faria a menor diferença para homens
assim. Lázaro jurara ao pai, no leito de morte, que defenderia a lei e
preservaria a posição da Casa de Benjamim a qualquer custo. Enfrentava
agora uma terrível opção.
— Deseja casar minha irmã com o Batista? — indagou ele,
cauteloso.
— Ele é um homem justo e um profeta — respondeu Anás. — E
depois que João for ungido como profeta, sua irmã terá a mesma
posição que teria como esposa desse homem.
— João é um eremita, um asceta — interveio Easa. — Não tem o
menor desejo ou necessidade de uma esposa. Prefere viver em isolamento,
por que acha que assim pode ouvir a voz de Deus. Acabaria com sua
solidão e suas boas obras ao impor-lhe um casamento, com todas as
obrigações que isso acarreta, nos termos da lei?
— Não — declarou Anás. — Não obrigaríamos João a fazer
qualquer coisa. Ele se casará com a jovem para confirmar sua
posição como Messias perante o povo. Depois da cerimônia, ela
continuará a viver na casa de sua família e João poderá voltar às suas
pregações. Ela desempenhará os deveres de acordo com a lei. João fará a
mesma coisa.
Maria escutava, rezando para que o enjôo no fundo do estômago
não a dominasse, para não ter de revelar seu esconderijo. Sabia que
“deveres de acordo com a lei” significavam a procriação, ter filhos com...
João, o asceta. Já era bastante terrível que aqueles homens tentassem
despojá-la da maior felicidade com que já sonhara, que era o casamento
com Easa. Ainda por cima, tentavam tirar de Easa sua posição.
E havia também a perspectiva do próprio Batista. Maria nunca vira
o homem, que pregava nas margens do rio Jordão, mas ele era lendário
entre o povo. Era um primo mais velho de Easa, mas os dois eram muitos
diferentes no temperamento. Easa reverenciava João, falava a seu respeito
com freqüência, como um grande servidor de Deus, um homem sincero
e justo. Mas Easa também conhecia os limites de João. Explicara isso para
Maria um dia, quando ela perguntara sobre o arrebatado pregador que
batizava com água. João rejeitava as mulheres, os gentios, os aleijados
ou quaisquer outros que considerasse impuros. Easa, por sua vez,
acreditava que a palavra de Deus pertencia a todas as pessoas que
quisessem ouvi-la. Não era uma mensagem para a elite, explicara Easa.
Era uma mensagem de boas novas para todos. Essas divergências haviam
sido a causa das discussões entre Easa e João.
João passara muito tempo nas praias áridas do mar Morto depois
que os pais morreram. Vivera ali com os essênios de Qumran, uma seita
rigorosa de ascetas, de onde ele tirara muitas de suas observâncias
estritas. A seita de Qumran vivia em condições difíceis e desdenhava
“aqueles que procuravam coisas fáceis”. Falavam de um Mestre da Justiça,
que traria o arrependimento e a total adesão à lei.
Easa também passara algum tempo entre os essênios, e explicara
seus costumes a Maria. Respeitava a devoção dos essênios a Deus e à lei e
enaltecia seus atos generosos e caridosos. Contava com muitos essênios
entre seus companheiros mais íntimos ao longo da vida e muitas vezes
se retirava para a solidão absoluta de Qumran, para períodos de
meditação. Mas, enquanto João adotara as observâncias mais rigorosas
dos essênios, Easa rejeitara muitas de suas convicções como exageradas
demais, implicando um julgamento.
Easa também contara para Maria outros detalhes sobre João, como
a estranha dieta que ele adotara em Qumran, de gafanhotos e mel, além
das roupas exóticas, feitas de peles de animais e pêlos de camelo, que
coçavam e arranhavam a pele. Explicara como o primo, conhecido como
Batista, optava por viver no deserto, direto sob o céu, onde se sentia mais
próximo de Deus. Não era uma existência apropriada para uma mulher
nobre ou uma criança. E não era certamente o que Maria Madalena
esperava para sua vida.
Tudo dependia de Lázaro agora, pensou Maria, desolada. Os homens
discutiam de novo na sala, enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto de
Maria. Não podia mais distinguir uma voz de outra. Que voz era de
Lázaro e o que ele dizia? O irmão amava e respeitava Easa, como um
homem e um descendente de Davi, embora nunca tivesse aceitado as
reformas d'O Caminho dos nazarenos. Lázaro era um tradicionalista. O
pai fora um fariseu e sempre dera um forte apoio financeiro ao Templo em
Jerusalém.
Jônatas Anás forçava-o a fazer uma opção angustiante: se apoiasse
Easa, o legítimo rei e herdeiro de todas as profecias, seria banido do
Templo. Isso estava implícito nas palavras do sumo sacerdote. Assim,
Lázaro não teria alternativa que não se aliar aos nazarenos, aceitando
um credo reformista em que não acreditava.
Os mais moderados entre o povo, como Lázaro, haviam se mostrado
contentes por Easa ser aceito tanto pelas nazarenos quanto pelos
sacerdotes do Templo. Mas aquilo era a véspera de um cisma terrível,
uma total separação das duas partes, o que criaria hostilidade entre as
grandes famílias dinásticas de Israel, provocando uma amarga rivalidade.
Exigiria uma opção que seria angustiante para muitas pessoas.
Naquele momento, porém, Maria só estava preocupada com uma
única opção a ser feita ali.
A decisão de Lázaro, de apoiar os sacerdotes do Templo, causaria
muito mais do que a destruição dos sonhos de Maria, obrigando-a a um
casamento detestável. Mudaria o curso da história, de uma forma
indelével, pelos séculos futuros.
Easa fez um acordo com Lázaro naquela noite: queria dar a notícia
pessoalmente a Maria. Lázaro concordou, provavelmente com um
profundo alívio. Maria foi levada a uma sala para se encontrar com o
homem que sempre acreditara que seria seu marido.
Quando viu o seu corpo trêmulo e o rosto molhado pelas lágrimas,
Easa compreendeu que ela já sabia. E quando viu a tristeza nos olhos de
Easa, Maria soube que seu destino estava selado. Jogou-se nos braços
dele e chorou até que não lhe restassem mais lágrimas.
— Mas por quê? — indagou ela. — Por que você tinha de concordar?
Por que deixou que tirassem o reino que é seu?
Easa afagou seus cabelos para acalmá-la. Sorriu à sua maneira
tranqüilizadora.
— Talvez meu reino não seja deste mundo, pombinha.
Maria sacudia a cabeça; não podia compreender. Easa continuou a
explicar:
— Meu trabalho é ensinar O Caminho, Maria, mostrar às pessoas
que o Reino de Deus está à mão, que temos o poder para nos libertar,
aqui e agora, de toda e qualquer opressão. Não preciso de uma coroa ou
um reino deste mundo para fazer isso. Preciso apenas alcançar tantas
pessoas quanto puder para partilhar a palavra de Deus sobre O
Caminho.
Ele fez uma pausa, sorrindo:
— Sempre pensei que herdaria o trono de Davi e que você se
sentaria ao meu lado. Mas se isso não acontecer, devemos nos submeter
à vontade de Deus.
Maria considerou suas palavras, fazendo um esforço para ser
corajosa e aceitar. Fora criada para isso; era por isso que recebera o nome
de Maria, um título reservado para as filhas de famílias nobres, dentro da
tradição nazarena. Também fora instruída por mulheres nazarenas,
tendo à frente a mãe de Easa. A Grande Maria assumira sua educação
quando ainda era jovem, a fim de prepará-la para a vida com o Filho de
Davi, mas também para dar lições espirituais sobre o credo reformista
Depois que casasse com Easa, Maria Madalena passaria a usar o véu
vermelho da sacerdotisa nazarena, o mesmo véu vermelho usado pela
Grande Maria.
Agora, porém, isso não mais aconteceria.
Maria não podia suportar a perda e começou a chorar outra vez. Ao
fazê-lo, um pensamento terrível aflorou em sua mente. E um soluço
sacudiu todo o seu corpo.
— Easa... — balbuciou ela, com medo de fazer a pergunta.
— O que é?
— Com quem... com quem você vai se casar agora?
Easa fitou-a com tanta ternura que Maria pensou que seu coração
ia explodir. Pegou as mãos de Maria e disse, a voz suave, mas firme:
— Lembra o que minha mãe disse na última vez em que você
esteve em nossa casa?
Maria meneou a cabeça, sorrindo através das lágrimas.
— Nunca esquecerei. Ela me disse: “Deus fez de você a
companheira perfeita para meu filho. Vocês dois se tornarão uma só
carne. Não haverá mais duas pessoas, mas apenas uma. E o que Deus
uniu nenhum homem pode separar.”
— Isso mesmo. Minha mãe é a mais sábia das mulheres e uma
grande profetisa. Percebeu que você foi feita para mim por Deus. Se Deus
decidiu em seus desígnios que não terei você, então não terei nenhuma
outra.
O alívio envolveu Maria. Dentre todas as coisas que não podia
suportar, outra mulher ao lado de Easa era a mais inconcebível. E nesse
instante outra realidade ocorreu-lhe, com uma força surpreendente:
— Mas... se devo ser a esposa de João... ele nunca permitirá que eu
me torne uma sacerdotisa nazarena.
O rosto de Easa era muito sério quando ele respondeu:
— Não, Maria. João exigirá que você mantenha a mais estrita
observância da lei. Ele despreza as reformas de nosso povo e pode ser
muito rigoroso com você, impondo uma severa penitência. Mas lembre o
que eu disse e que minha mãe também ensinou. O Reino de Deus está em
seu coração e nenhum opressor... nem os romanos, nem mesmo João...
pode tirá-lo de você.
Ele ergueu o queixo de Maria e fitou seus olhos castanho-dourados,
enquanto acrescentava:
— Escute com toda a atenção, minha pombinha. Devemos seguir
o nosso curso em graça e fazer tudo o que é certo para os filhos de Israel.
Isso significa que não posso no momento me opor a Jônatas Anás e ao
Templo. Manterei essa decisão para que o ensinamento d'O Caminho
possa continuar em paz, crescer por toda a terra. Concordei com duas
coisas, como demonstração de meu apoio. Comparecerei a seu casamento
com João em companhia de minha mãe e permitirei que João me batize
em público, para indicar que reconheço sua autoridade espiritual.
Maria balançou a cabeça, solene. Seguiria pelo curso que se
estendia à sua frente, pois era sua responsabilidade como uma filha de
Israel. As palavras de amor e força de Easa serviriam para ampará-la.
Ele beijou de leve a cabeça de Maria, para depois se despedir.
— Você é muito forte para uma mulher tão pequena. Sempre
percebi essa força em você. Será um dia líder de nosso povo.
Easa parou na porta para fitá-la pela última vez e deixá-la com um
pensamento final. Levou a mão ao coração, enquanto murmurava:
— Sempre estarei com você.
João Batista não podia ser manipulado com a facilidade que Jônatas
Anás e seu conselho haviam previsto.
Quando o procuraram e apresentaram a proposta, João censurou-
os por sua falta de integridade e chamou-os de víboras. Lembrou que já
havia um Messias, seu primo Yeshua, um profeta escolhido por Deus, e
ressaltou que ele, João, não era digno de ocupar essa posição. Os
sacerdotes argumentaram que o povo chamava João de maior profeta, o
herdeiro de Elias. Mas João declarou:
— Não sou nenhuma dessas coisas.
— Então nos diga o que você é, para que possamos avisar o povo
de Israel, que o seguiria como um profeta e um rei.
João respondeu à sua maneira enigmática:
— Eu sou a voz no deserto.
Ele mandou os fariseus embora. Mas o jovem e astuto sacerdote
Caifás entendera o estranho pronunciamento de João, “Eu sou a voz no
deserto”, como uma referência ao profeta Isaías. João estaria mesmo se
anunciando como um profeta, através de um labirinto das escrituras?
Estaria testando os sacerdotes de alguma forma?
Os enviados dos sacerdotes voltaram no dia seguinte e desta vez
solicitaram o batismo a João. Ele insistiu que se arrependessem de todos
os pecados, antes de sequer considerar o pedido. Isso irritou os
sacerdotes mas eles sabiam que deviam jogar de acordo com as regras de
João ou se arriscariam a perdê-lo... e ele era a chave para sua estratégia.
Receber o batismo de João fortaleceria a posição dos sacerdotes entre a
multidão que o considerava um profeta. Era justamente esse o objetivo.
Depois que os sacerdotes proclamaram seu arrependimento, João
submergiu-os no Jordão. Mas ressaltou:
— Eu os batizarei com água, mas aquele que vier depois será
mais poderoso do que eu aos olhos de Deus.
Os sacerdotes permaneceram com João durante aquele dia e
relataram seu plano, depois que a maior parte da multidão na margem
do rio se dispersou. João não queria participar. Opunha-se a tomar uma
esposa, ainda mais sendo uma mulher que fora noiva de seu primo. Mas
o conselho estava preparado para suas objeções. Havia considerado
todas as possibilidades com o maior cuidado, por causa da veemência de
João no dia anterior. Falaram de Lázaro, um homem justo e nobre da
Casa de Benjamim, e como esse bom homem temia que sua devota irmã
casasse dentro da influência nazarena.
O Batista teve um sobressalto ante tal revelação. Essa noção era a
fraqueza de João. Embora aceitasse as profecias de que Yeshua fosse o
eleito, sentia uma preocupação crescente com o fato do primo caminhar
com os nazarenos e de seu clamoroso desrespeito à lei. Mas João
dispensou os sacerdotes, dando a conversa por encerrada.
Os sacerdotes partiram sem ter obtido qualquer alteração na
determinação de João.
Mais tarde, ainda naquele dia, Easa apareceu na margem oriental
do Jordão para cumprir a promessa que fizera a Anás. Uma grande
multidão de seguidores acompanhava Easa. O encontro entre os dois
homens tão celebrados atraiu incontáveis pessoas para as margens do rio.
João estendeu a mão para deter a aproximação de Easa.
— Veio à minha procura para o batismo? Talvez eu precise ser
batizado por você, já que é o eleito de Deus.
Easa sorriu:
— Primo, é assim que deve ser agora. Cabe a nós fazer o que é
certo.
João moveu a cabeça em concordância, não demonstrando
surpresa ou qualquer outra emoção diante da declaração de aceitação de
Easa. Era a primeira vez que os dois se encontravam desde que Jônatas
Anás iniciara suas manipulações, a primeira oportunidade de
avaliarem um ao outro. O Batista afastou Easa da multidão e falou com
todo o cuidado, para determinar a perspectiva do primo.
— Aquele que tem a noiva é o noivo.
Easa não deixou transparecer qualquer reação às palavras de
João. Limitou-se a acenar com a cabeça em concordância com a
disposição. João acrescentou:
— Mas o amigo do noivo que se aproxima e ouve o que ele tem a
dizer, regozija-se com suas palavras. Posso sentir alegria por isso, por sua
dádiva altruísta, se é verdade que dá por sua livre e espontânea vontade.
Easa tornou a balançar a cabeça positivamente:
— Estarei realizado em ser o amigo do noivo. Devo decrescer para
que você possa crescer. Que assim seja.
Era um jogo de palavras, uma espécie de dança, entre dois grandes
profetas, cada um verificando a posição política do outro. Convencido de
que o primo concordara pacificamente em renunciar à sua posição, além
de ceder a noiva, João virou-se para as multidões reunidas nas margens
do Jordão. Fez um pronunciamento para o povo, antes de pedir que Easa
se adiantasse:
— Depois de mim virá este homem, que é preferido à minha
frente... porque ele foi escolhido antes de mim.
Easa foi submergido no rio, enquanto as palavras de João
ressoavam. Haviam sido escolhidas com todo o cuidado, indicando que se
João assumisse o lugar do Messias, então Yeshua seria o herdeiro do trono,
se alguma coisa lhe acontecesse. “Ele foi escolhido antes de mim” era uma
clara indicação de que João ainda reconhecia as profecias do nascimento
de Yeshua. A formulação protegeria João entre os moderados que o
apoiavam e temiam as reformas nazarenas, embora ainda
homenageassem Easa como a criança das profecias. As primeiras
palavras, “depois de mim virá este homem”, eram uma indicação de que
João considerava assumir o papel do ungido. João, o pregador do deserto,
com suas roupas extravagantes e estilo fervoroso, talvez fosse um homem
fácil de subestimar. Mas suas ações e palavras na margem do rio Jordão,
naquele dia, indicavam que era um político muito mais astuto do que
muitos imaginavam.
Quando Easa saiu da água, a multidão aclamou os dois grandes
homens, parentes e profetas, tocados por Deus. Mas depois houve
silêncio no vale, enquanto uma única pomba branca descia do céu e
voava graciosa sobre a cabeça de Easa, o Leão de Davi. Um momento que
seria lembrado pelos habitantes do vale do Jordão e além, por tanto
tempo quanto o mundo durasse.
Caifás voltou ao rio Jordão no dia seguinte, com seu contingente de
fariseus. Planejara sua estratégia em relação a João com todo o cuidado.
O batismo de Yeshua no dia anterior não servira ao propósito que ele e
Anás queriam. Acreditavam que Easa, ao se submeter ao batismo,
reconheceria publicamente a autoridade de João. Em vez disso, o evento
servira para lembrar às pessoas que o agitador nazareno era o eleito das
profecias. Agora, mais do que nunca, os fariseus tinham de reduzir o
impacto da idéia de Yeshua como o Messias. A única maneira de fazer isso
era transferir o título de Messias para outro, tão depressa quanto
possível... e o único candidato aceitável era João.
Mas João estava perturbado pelo sinal da pomba. O fato de ter
surgido no céu logo depois do batismo não provava que Easa era o eleito
de Deus? João vacilava, querendo voltar a apoiar a posição do primo.
Caifás, um aluno aplicado do sogro Anás, estava preparado para essa
possibilidade. Tratou de desfechar logo o ataque:
— Seu primo nazareno esteve hoje com os leprosos — informou ele.
João ficou espantado. Não havia nada mais impuro do que aqueles
miseráveis, que haviam sido abandonados por Deus. E era inconcebível
que o primo fosse se encontrar com aquelas criaturas depois do batismo.
— Tem certeza de que isso é verdade?
Caifás inclinou a cabeça, solene.
— É, sim. Lamento informar que Yeshua esteve no lugar mais
impuro esta manhã. Disseram-me que ele pregou as palavras do Reino
de Deus para eles. Até permitiu que o tocassem.
João estava espantado por Yeshua ter caído tanto, tão depressa.
Sabia muito bem que os nazarenos haviam exercido uma influência
profunda sobre o primo. A mãe de Yeshua não era uma Maria e líder
daquele grupo? Mas era uma mulher e tinha pouca importância, exceto
por sua grande influência sobre o filho. Mas se Yeshua mergulhava no
mundo dos impuros, menos de um dia completo depois do batismo, talvez
Deus tivesse lhe virado as costas.
E havia que pensar na mulher, aquela filha de Benjamim. João
sentia-se profundamente perturbado por ela se chamar Maria... um nome
nazareno, indicando que a mulher fora educada em suas tradições
impróprias.
Mas a profecia em torno da mulher tinha de ser considerada com
toda a seriedade, pelo bem do povo. Acreditava-se que ela era a Filha de
Sião, como estava descrito no livro do profeta Miquéias. A passagem
referia-se a Migdal-Eder, a Torre do Rebanho, uma pastora que levaria o
povo: E tu, torre do rebanho, alto da filha de Sião, a ti voltará a soberania
de outrora, a realeza que compete à filha de Jerusalém.
Se Maria era mesmo a mulher profetizada, João tinha a obrigação
de cuidar para que ela permanecesse no caminho dos justos. Caifás
assegurava que a mulher era bastante jovem para ser instruída como
João julgasse mais conveniente, nos mais tradicionais cursos da lei. O
irmão até lhe suplicava para que fizesse isso antes que fosse tarde demais.
O noivado daquela jovem da Casa de Benjamim com Yeshua fora rompido
por causa de suas inclinações nazarenas. O que era perfeitamente
aceitável dentro da lei. O próprio sumo sacerdote, Jônatas Anás, não
escrevera o documento de dissolução do compromisso?
Mais importante ainda, Yeshua e seus seguidores nazarenos não
haviam protestado contra essa decisão. Além disso, prometeram que
apoiariam João em sua posição de ungido. Yeshua até concordara em
comparecer à festa de casamento, como demonstração de seu apoio. Não
havia nada naquela proposta que merecesse objeção. Se João casasse com
a benjamita e se tornasse o ungido, seus números de batismo seriam
multiplicados por dez. Alcançaria muito mais pecadores e mostraria o
caminho do arrependimento. Ele se tornaria o Mestre da Justiça das
profecias de seus ancestrais.
Com a oportunidade de converter mais pecadores e ensinar o
caminho da penitência a mais filhos de Israel, João concordou em casar
com a benjamita e assumir o lugar que lhe era devido na história de seu
povo.
O casamento de Maria, a filha da casa de Benjamim, com João
Batista da linhagem sacerdotal de Aarão e Sadoq, ocorreu na colina de
Caná, na Galiléia. Contou com a presença de nobres, nazarenos e
fariseus. Como prometido, Easa compareceu com a mãe, seus irmãos e
um grupo de discípulos.
A devota mãe de João, Isabel, era prima da mãe de Easa, Maria.
Mas, por ocasião do casamento do filho, tanto Isabel quanto o marido
Zacarias estavam mortos havia alguns anos. Não havia parentes
imediatos para tomar as providências para a celebração, e João não
conhecia nem se preocupava com o protocolo. Quando a Grande Maria
observou que os convidados não recebiam a devida atenção, assumiu o
comando das comemorações, como a mulher mais velha da família de
João. Foi para o lugar em que o filho sentava, com vários seguidores, e
disse:
— Não há mais vinho para a festa do casamento.
— O que isso tem a ver comigo? — perguntou Easa. — Não é o
meu casamento. Não seria apropriado que eu interferisse.
A Maria mais velha disse ao filho que discordava de sua posição.
Primeiro, ela sentia-se na obrigação de providenciar tudo o que fosse
necessário para que a festa de casamento corresse bem, em memória de
Isabel. Mas, além disso, Maria era uma sábia mulher, que conhecia o
povo e as profecias. Aquele seria um momento oportuno para lembrar
aos nobres e sacerdotes ali reunidos a posição singular de seu filho na
comunidade. Easa concordou, com alguma relutância. Maria chamou os
servos e deu instruções:
— Qualquer coisa que ele pedir façam sem questionar.
Os servos esperaram pelas ordens de Easa. Depois de um
momento, ele mandou que trouxessem seis enormes jarros, cheios de
água até a borda. Os servos assim o fizeram, pondo na sua frente os
jarros de barro. Easa fechou os olhos e disse uma oração, passando as
mãos em cada um dos jarros. Quando acabou, disse aos servos para
tirarem um pouco do líquido dos jarros. Uma mulher foi a primeira a fazê-
lo... e largou a caneca, surpresa. Os jarros não continham mais água. Um
vinho tinto suave substituíra a água.
Easa instruiu um servo para levar uma taça de vinho a Caifás, que
presidia a cerimônia. Caifás ergueu o copo para João, o noivo, e elogiou-o
pela qualidade do vinho.
— A maioria serve o melhor vinho no início da festa e deixa o vinho
de qualidade inferior para o final, quando poucos notam a diferença —
comentou Caifás. — Mas você guardou o melhor vinho para o final.
João fitou Caifás sem entender. Nem ele nem o sacerdote tinham a
menor idéia do que acontecera. A única indicação de que havia alguma
coisa fora do normal foram os murmúrios de uns poucos servos e os
comentários de alguns discípulos nazarenos. Mas não demoraria muito
para que todos na Galiléia soubessem exatamente o que acontecera no
lamentável casamento em Caná.
Depois do casamento de João e Maria, ninguém mais falava sobre
os recém-casados. A fusão dinástica fora ofuscada por algo muito mais
extraordinário. Os comentários de todos eram sobre a milagrosa
transformação de água em vinho pelo profeta mais jovem. Na região do
norte da Galiléia, o nome de Yeshua estava na boca de todos. Era
considerado o único Messias, independentemente das manipulações do
Templo.
O poder e popularidade de João estendiam-se para o sul, das
margens do Jordão, perto de Jericó, através de Jerusalém, continuando
pelas áreas de deserto do mar Morto. Estimulados pelos sacerdotes do
Templo, os seguidores de João aumentavam mais e mais, até que as
margens do rio transbordavam de pessoas querendo ser batizadas. A
insistência de João para que esses homens aderissem à lei, em suas
normas mais rigorosas, aumentou o número de sacrifícios... e, com isso,
encheu os cofres do Templo. Todos estavam satisfeitos com o resultado
do arranjo.
Isto é, todos menos Maria Madalena, que agora era casada com o
Batista.
Talvez fosse uma bênção o fato da união não ser desejada nem por
um nem pelo outro. João queria apenas permanecer no deserto e realizar
a obra de Deus. Respeitaria a lei, que exigia que o homem fosse fértil e se
multiplicasse, e visitaria a esposa nos momentos apropriados por razões
de procriação. Mas fora desses períodos, expressamente determinados
pela lei e pela tradição, ele não tinha o menor interesse na companhia de
qualquer mulher.
Providenciar um lugar para Maria viver era uma das primeiras
obrigações do recém-casado João. Ele não fez segredo que a esposa não
seria bem-vinda nas proximidades de seu ministério. Os essênios de
Qumran não permitiam que as mulheres vivessem com eles. Preferiam
exilá-las em habitações separadas, porque eram naturalmente impuras.
E a situação era problemática porque a mãe de João já morrera. Se Isabel
fosse viva, Maria passaria a viver com a sogra.
O problema foi tratado por João e Lázaro antes do casamento, e
Maria conseguiu fazer com que o irmão propusesse o que ela desejava
Lázaro insistiu que a irmã continuasse a viver com ele e Marta, nas
propriedades da família, em Magdala e Betânia. Isso proporcionaria uma
constante companhia a Maria, com a presença de um homem e uma
mulher devotados à lei. E Betânia ficava a pouca distância de Jericó, para
as raras ocasiões em que João deveria visitar a esposa.
Era uma solução apropriada e fácil para João, que tinha pouco
interesse nas atividades de Maria, a não ser pela garantia de que ela se
comportasse como uma mulher devota e arrependida em todas as
ocasiões. Se aquela mulher deveria ser a mãe de seu filho, tinha de ser
acima de qualquer censura. Maria assegurou a João que em sua ausência
obedeceria ao irmão, como sempre fizera. Tentou não deixar
transparecer sua alegria quando foi decidido o acordo para que
continuasse a viver com Lázaro e Marta.
O prazer de Maria, no entanto, teve curta duração, pois João
impôs o cumprimento do resto de suas determinações. Não queria que
Maria fosse exposta aos ensinamentos nazarenos. Não permitia que ela
fosse à casa da Grande Maria, sua mais reverenciada mestra e amiga. E
não admitia que ela se apresentasse em público em qualquer lugar em
que Easa estivesse falando. João andava irritado porque alguns de seus
discípulos haviam deixado as margens do Jordão para seguir o primo.
O Batista condenava-os por se tornarem nazarenos e dizia que eram
“aqueles que procuravam coisas fáceis”. Pouco a pouco, aumentava a
rivalidade entre os diferentes ministérios do nazareno Easa e do asceta
Batista. João não seria envergonhado pela esposa; ela nunca deveria ficar
na presença de nazarenos. E João arrancou uma promessa solene de
Lázaro.
Jovem, ingênua e nunca exposta a qualquer outra coisa que não
amor e aceitação, Maria tentou argumentar com João. Mas recebeu as
primeiras agressões do marido ao protestar. A mão de João deixou uma
marca no rosto de Maria pelo resto do dia, como um firme lembrete de
que não deveria contestar o marido em questões de obediência. O Batista
abandonou a esposa na casa do irmão em Magdala naquele mesmo dia,
sem sequer se despedir.
Maria temia as visitas de João e sentia-se grata porque só ocorriam
raramente, a longos intervalos. João só aparecia em Betânia quando
se encontrava nas proximidades, para seus próprios propósitos, quase
sempre ao viajar do santuário à beira do rio para Jerusalém. Perguntava
pela saúde de Maria, formalmente, e, quando era apropriado, nos termos
da lei, desempenhava os deveres de marido. Durante essas visitas, João
passava algum tempo instruindo Maria sobre a lei e determinando
tarefas penitentes, ao mesmo tempo em que alegava que o Reino de
Deus estava à mão.
Como uma mulher da Casa de Benjamim, Maria sabia que era
inadmissível comparar seu marido com outro homem, mas ela não podia
evitar. Seus dias e noites eram povoados por pensamentos de Easa e tudo
o que ele lhe ensinara. Surpreendia-a que tanto Easa quanto João
pregassem a mesma coisa — que o Reino de Deus se aproximava —,
porque o significado era muito diferente para cada profeta. No caso de
João, era uma mensagem sinistra e ameaçadora, uma terrível advertência
de terror para os ímpios. No caso de Easa, era uma bela oportunidade
para todos que abrissem o coração a Deus.
Quando soube que Easa viria para Betânia, com a mãe e um grupo
de seguidores nazarenos, Maria sentiu a alegria retornar a seu coração,
durante muitos e muitos dias.
— Eles não ficarão aqui. E você não pode visitá-los, Maria. Seu
marido proibiu.
Lázaro assumiu uma expressão firme contra as súplicas da irmã.
— Como pode fazer isso comigo? São meus amigos mais antigos... e
alguns são seus amigos também. Os pescadores, Pedro e André,
brincaram conosco em Cafarnaum e nas praias da Galiléia. Como pode
lhes recusar a hospitalidade?
A tensão da decisão era evidente no rosto do irmão de Maria
Afastar-se de seus amigos de infância, além de Easa e da Grande Maria
descendentes reverenciados de Davi, fora uma decisão angustiante. Mas
Lázaro tinha ordens do sumo sacerdote para não hospedar a facção
nazarena em sua passagem por Betânia, a caminho de Jerusalém. Além
disso o marido de sua irmã dera instruções expressas para que ela não
fosse exposta a ensinamentos nazarenos. Lázaro tinha de cumprir a
promessa de manter a devoção de Maria dentro dos limites
determinados pelo marido.
— Faço isso em seu benefício, irmã.
— E me casou com o Batista em meu benefício?
Maria não esperou pela resposta, nem para ver a expressão
chocada de Lázaro. Atravessou a casa, furiosa, e saiu para o jardim, onde
se permitiu chorar.
— Ele faz realmente o que é melhor para você.
Maria não ouvira Marta segui-la, pois estava absorta demais em seu
sofrimento para prestar atenção. Por mais que amasse Marta, no entanto,
não queria ouvir mais preleções sobre obediência. Maria começou a falar,
mas Marta interrompeu-a:
— Não estou aqui para repreendê-la, mas sim para ajudá-la.
Maria fitou-a, cautelosa. Nunca soubera de qualquer ocasião em
que Marta ficasse contra o desejo do marido ou se opusesse a ele de
qualquer forma. Mas Marta irradiava uma força suave e Maria percebeu
essa força na expressão da cunhada naquele momento.
— Maria, você é como minha irmã... em alguns aspectos, como
minha própria filha. Não posso suportar o sofrimento pelo qual passou
durante o último ano. E me orgulho de você, assim como seu irmão. Sei
que ele não lhe diz isso, mas me fala a respeito com freqüência. Você
cumpriu seu dever como uma filha nobre de Israel e sempre manteve a
cabeça erguida.
Maria enxugou as lágrimas, enquanto Marta acrescentava:
— Lázaro irá a Jerusalém a trabalho. Não voltará antes da noite
de amanhã. Os nazarenos estarão aqui em Betânia para uma reunião
na casa de Simão.
Os olhos de Maria foram se arregalando enquanto ela ouvia. Seria
mesmo a devota e obediente Marta quem expunha um plano de
subterfúgio?
— A casa de Simão... aquela casa?
Maria apontou para a casa, que era visível do jardim. Marta
confirmou com um meneio de cabeça.
— Se você for bastante cuidadosa e discreta, olharei para o outro
lado se decidir visitar seus amigos mais antigos.
Maria abraçou a cunhada, exclamando:
— Eu amo você!
— Fale baixo! — Marta desvencilhou-se do abraço de Maria. Olhou
ao redor, para ter certeza de que não eram observadas. — Se Lázaro for
falar com você antes de partir para Jerusalém, deve se mostrar furiosa. Ele
não pode desconfiar de qualquer coisa ou nós duas estaremos metidas
em apuros.
Maria balançou a cabeça, solene, fazendo um esforço para não
sorrir. Marta voltou apressada para a casa, a fim de se despedir de Lázaro,
deixando Maria a dançar entre as oliveiras.
Maria aproximou-se da casa de Simão por um caminho lateral, os
cabelos castanho-avermelhados, tão fáceis de reconhecer, cobertos por um
de seus véus mais grossos. Disse a palavra de admissão e deixaram-na
entrar no mesmo instante. Ela exultou ao ver diversos rostos familiares.
Correu os olhos pela sala, mas não encontrou o mais importante e
amado. Easa ainda não chegara com a mãe. Mas teve pouco tempo para
pensar a respeito, pois foi surpreendida por uma voz de mulher, às
suas costas, dizendo seu nome.
Maria virou-se para deparar com o sorriso exuberante de Salomé,
filha de Herodíades e enteada do tetrarca da Galiléia, Herodes. Maria
soltou um grito de alegria ao reconhecê-la, já que as duas haviam sido
instruídas pela Grande Maria. Abraçaram-se felizes, com um profundo
afeto.
— O que está fazendo tão longe de casa? — perguntou Maria.
— Minha mãe me deu permissão para seguir Easa e continuar o
aprendizado, para poder assumir os sete véus.
Os sete véus só eram usados pelas mulheres que haviam passado
pelo aprendizado para alta sacerdotisa.
— Herodes Antipas faz tudo o que minha mãe quer e ainda por
cima é simpático aos nazarenos — acrescentou Salomé. — Ele só
detesta o Batista.
Salomé tapou a boca no exato momento em que as palavras foram
pronunciadas. Parecia mortificada.
— Desculpe. Eu havia esquecido.
Maria deu um sorriso triste.
— Não precisa se desculpar, Salomé. Às vezes eu também esqueço.
Salomé assumiu uma expressão compadecida.
— É horrível para você?
Maria balançou a cabeça. Amava Salomé como uma irmã e as duas
até se tratavam assim, o que era tradicional para as sacerdotisas
nazarenas. Mas Maria ainda era uma princesa e fora instruída a se
comportar como tal. Não falaria mal do marido para ninguém.
— Não, não é horrível. Quase nunca vejo João.
Salomé falou depressa, como se sentisse uma imensa necessidade
de corrigir sua gafe.
— Espero não a ter ofendido, irmã. Mas acontece que o Batista diz
coisas terríveis sobre minha mãe. Ele a chama de prostituta e adúltera.
Maria já ouvira todas essas coisas. A mãe de Salomé, Herodíades, era
neta de Herodes, O Grande, e herdara algumas das características mais
voluntariosas do infame rei. Descartara o primeiro marido para se casar
com Herodes Antipas, que reinava sobre a Galiléia. O tetrarca fizera a
mesma coisa, divorciando-se da esposa árabe para casar com Herodíades.
João ficara indignado por um monarca judeu demonstrar um desrespeito
tão clamoroso pela lei. Denunciara abertamente o casamento de
Herodes Antipas com Herodíades como adultério. Até então, Herodes
apenas manifestara sua irritação, mas demonstrara pouco interesse em
efetuar uma ação real contra João pedindo sua condenação. Como
tetrarca da Galiléia, ele já tinha o suficiente com que se ocupar, lidando
com os caprichos de um César e as exigências daquele difícil posto
avançado. Não precisava da dor de cabeça de um profeta ascético e
inflamado.
O fato de Herodíades ser uma nazarena não ajudava em sua
posição perante João. Também não melhorava a opinião de João sobre a
cultura nazarena. Se tanto, provava por que as mulheres nunca deveriam
ocupar posições de autoridade, nem mesmo ter liberdades sociais, o que as
transformaria em libertinas. Com bastante freqüência, João usava
Herodes e Herodíades como exemplo da corrupção nazarena.
Porém, enquanto o Batista tornava o tetrarca seu inimigo, Easa era
muito admirado pela esposa de Herodes. Ela enviara sua única filha para
iniciar o aprendizado d'O Caminho, assim que Salomé alcançara a
maioridade. Salomé e Maria tornaram-se amigas durante o tempo em
que passaram juntas na Galiléia, unidas ainda mais no amor espiritual
pela Grande Maria e seu filho.
— Nossa irmã Verônica também está aqui — informou Salomé,
ansiosa por mudar de assunto.
A sobrinha de Simão, Verônica, era uma jovem adorável e de
profunda espiritualidade, que estudara com elas na casa da mãe de Easa.
Maria amava Verônica. Olhou ao redor, à procura do rosto da amiga tão
querida.
— Lá está ela!
Salomé pegou a mão de Maria e levou-a através da sala até Verônica,
agora radiante. As três mulheres, irmãs no credo nazareno, abraçaram-se
afetuosamente. Mas não tiveram tempo para conversar, pois Easa entrou
na sala.
Estava acompanhado pela mãe e dois irmãos mais jovens, Tiago e
Judas, além dos irmãos pescadores da Galiléia e de um homem de cara
triste que Maria achava que se chamava Filipe. Easa cumprimentou a
todos na sala. Parou diante de Maria. Abraçou-a com imenso afeto, mas
com o decoro e respeito devidos a uma nobre, esposa de outro homem. E
fitou-a com uma expressão que indicava surpresa por ela ter desobedecido
ao irmão. Mas não disse nada. Maria sorriu e levou a mão ao coração:
— O Reino de Deus está comigo e nenhum opressor poderá tirá-lo
de mim.
Easa retribuiu o sorriso, com imensa ternura, depois foi para a
frente da sala e começou a ensinar.
Foi uma noite maravilhosa, com o amor dos amigos e as palavras
sobre O Caminho. Maria quase esquecera como o Verbo se tornara
importante e como Easa era um mestre inspirador. Mas sentar-se à sua
frente e ouvir sua pregação era experimentar o Reino de Deus neste
mundo. Ela não podia imaginar como alguém seria capaz de condenar
palavras tão belas ou por que alguém negaria deliberadamente aqueles
ensinamentos de amor, compaixão e caridade.
Quando se levantou para ir embora, Easa foi até Maria e tocou
gentilmente em sua barriga.
— Você está esperando uma criança, pombinha.
Maria deixou escapar um murmúrio de surpresa. João passara
uma noite com ela para cumprir seus deveres, na última estação, mas
não tinha a menor idéia de que concebera.
— Tem certeza?
Easa meneou a cabeça em confirmação.
— Uma criança cresce em seu ventre. Cuide-se bem, pombinha. Pois
quero que tenha essa criança em segurança.
Uma sombra passou pelo rosto de Easa por um instante, antes
que ele acrescentasse:
— Diga a seu irmão que deve ter a criança na Galiléia. Peça que ele
permita sua partida à primeira claridade do amanhecer.
Maria ficou perplexa. Afinal, Betânia ficava perto de Jerusalém, onde
se encontravam as melhores parteiras e os melhores medicamentos, se
ocorresse alguma complicação. Fazia mais sentido ficar. Além disso,
Lázaro não voltaria por mais um dia. Mas Easa vira alguma coisa, naquele
momento de sombra, que o levara a exortar Maria a deixar Betânia e
seguir imediatamente para as praias da Galiléia.
O que Maria não podia saber era que Easa, num claro momento de
profecia, vira a necessidade de afastá-la de João o máximo possível.
— Prostituta! — berrou João, enquanto dava tapas em Maria. —
Eu sabia que era tarde demais para você e seus devassos costumes
nazarenos. Como ousou desobedecer a seu marido e a seu irmão?
Marta e Lázaro estavam no outro lado da casa em Betânia, mas
podiam ouvir os sons da violência. Marta chorava baixinho, deitada em
seu lado da cama, enquanto escutava os golpes aplicados na pequena
Maria. A culpa era sua. Encorajara Maria a desobedecer as ordens
expressas do marido e do irmão. Marta sentia que era ela quem merecia a
surra.
Lázaro estava sentado, imóvel, paralisado pelo medo e impotência.
Sentia-se furioso com Marta e Maria, mas ainda mais preocupado com a
surra que a irmã levava do marido. E não podia fazer absolutamente
nada. Qualquer interferência aumentaria o insulto a João, algo que ele
não ousava fazer. Além do mais, era bastante comum um marido
espancar uma esposa desobediente. Nas famílias mais tradicionais, era
até esperado. As ações de João estavam de acordo com sua interpretação
da lei.
Ainda não sabiam como João descobrira que Maria estivera na
reunião nazarena. Havia um informante entre eles na noite anterior? Ou a
dádiva da profecia em João era tão intensa que ele via a própria Maria em
suas visões?
Qualquer que fosse o catalisador, João viera para Betânia na tarde
seguinte num acesso de fúria incontrolada, determinado a punir todas as
pessoas envolvidas na farsa. Sabia que sua jovem esposa se sentara devota
diante do primo na noite anterior. Pior ainda, se sentara ao lado da prole
devassa da prostituta Herodíades. O fato de Maria ostentar suas
simpatias nazarenas e sua ligação com Salomé era uma fonte de
vergonha e embaraço para João. Tinha o potencial de arruinar sua
reputação.
Maldita mulher! Será que ela não compreendia que qualquer
mancha em seu nome causaria um impacto em sua obra e afetaria a
mensagem de Deus? Aquilo era a prova de que as mulheres não tinham o
menor juízo, não tinham capacidade alguma de pensar nas
conseqüências de suas ações. As mulheres eram criaturas pecaminosas
por natureza, filhas de Eva e Jezebel. João começava a concluir que talvez
todas estivessem além da possibilidade de redenção.
João gritou essas coisas e muitas outras, enquanto continuava a
agredir Maria. Ela se encolhia no canto, os braços erguidos sobre a cabeça,
no esforço inútil de proteger o rosto. Era tarde demais; um círculo roxo
expandia-se em torno de um olho, o lábio inferior estava inchado e
sangrava, rasgado por um dente, a um golpe de João. Ela conseguiu
gritar:
— Pare! Vai fazer mal ao bebê!
João manteve a mão no ar, sem desferir o golpe seguinte.
— O que você disse?
Maria respirou fundo, num esforço para se acalmar.
— Estou esperando uma criança.
João fitou-a com absoluta frieza.
— Você é uma prostituta nazarena que passou a noite na casa de
outro homem sem uma acompanhante. Não posso sequer ter certeza de
que essa criança é minha.
Maria falou devagar, enquanto tentava se levantar:
— Não sou o que você me chama. Fui para você como noiva
virgem e nunca conheci qualquer outro homem. Só meu marido, de
acordo com a lei. — Ela enfatizou as últimas cinco palavras. — Está
furioso porque eu desobedeci a você, e mereço sua ira.
Ela assumiu uma posição firme agora. Uma cabeça mais baixa
que ele, empertigou-se para fitá-lo no rosto:
— Mas sua criança não merece ser questionada. Ele se tornará
um dia príncipe do nosso povo.
João emitiu um som gutural e virou as costas para sair:
— Apresentarei a Lázaro as condições estritas para o
nascimento.
Ele abriu a porta e passou para o corredor. Sem olhar para trás,
desfechou um golpe verbal final:
— Se a criança for uma menina, terei o maior prazer em
abandonar as duas.
Já era o final da tarde seguinte quando Maria decidiu se
aventurar até o jardim, para respirar um pouco de ar fresco. Passara
a maior parte do dia na cama, recuperando-se da surra que levara. O
jardim era privado, cercado por muros, e por isso não havia qualquer
possibilidade de alguém ver as marcas da desgraça que cobriam-lhe o
rosto. Ou pelo menos era o que ela pensava.
Maria, entretanto, ouviu um barulho nas moitas que fez seu
coração parar. O que seria? Quem seria?
— Quem está aí? — perguntou ela, hesitante.
— Maria?
Era uma voz de mulher, seguida por mais farfalhar nos
arbustos. Subitamente, uma figura saiu de trás de uma sebe, perto
do muro.
— Salomé! O que está fazendo aqui?
Maria correu para abraçar a amiga, uma princesa herodiana
que se esgueirava como uma ladra comum. Salomé não respondeu.
Estava paralisada, olhando para o rosto todo machucado de Maria.
— Está tão horrível assim? — perguntou Maria, num
sussurro, virando a cabeça.
Salomé soltou um murmúrio de raiva:
— Minha mãe tem razão. O Batista é um animal. Como ele
ousa tratá-la dessa maneira? Você é uma nobre.
Maria preparou-se para defender João, mas compreendeu que
não tinha energia para isso. Sentia uma súbita exaustão, esgotada pelos
eventos dos últimos dias e pelo crescente tributo que a gravidez cobrava
de seu corpo miúdo. Sentou-se num banco de pedra, acompanhada pela
amiga.
— Eu lhe trouxe isto. — Salomé entregou uma bolsa de seda a
Maria. — Há um ungüento curativo no pote. Servirá para aliviar os
machucados.
— Como você soube?
Ocorreu de repente a Maria que Salomé sabia de uma coisa que só
Lázaro e Marta haviam testemunhado. Salomé deu de ombros.
— Ele viu. — Só podia haver um Ele. — Não me contou o que
aconteceu. Apenas disse: “Leve seu melhor ungüento curativo para sua
irmã Maria. Ela vai precisar imediatamente.” E aconselhou a ter cuidado
para que ninguém me visse, por causa de João.
Maria tentou sorrir à revelação da visão de Easa, mas o corte no
lábio fez com que estremecesse. O adorável rosto de Salomé contraiu-se
em raiva, ao observar a dor da amiga.
— Por que ele fez isso?
— Porque desobedeci a uma ordem.
— Como?
— Ao comparecer à reunião nazarena.
Salomé começou a compreender a situação.
— Então agora somos o inimigo para o Batista. Quando será que
ele vai denunciar Easa publicamente? Tenho certeza de que é o que vai
acontecer em seguida.
Maria soltou uma exclamação de espanto:
— Eles são primos. E João anunciou Easa como Messias em seu
batismo. Ele não faria isso.
— Não? — Não tenha tanta certeza, irmã. — Salomé pensou por
um instante. — Minha mãe diz que João é astuto como uma serpente.
Pense a respeito. Ele se casou com você para legitimar seu reinado.
Agora, você está grávida de seu herdeiro. O Batista denuncia minha mãe
como adúltera e usa o fato de ela ser uma nazarena como um
opróbrio... e uma arma contra nós. Qual é o próximo passo? Retirar
publicamente seu apoio a Easa, baseado no que João acredita ser o
desrespeito nazareno à lei. Ele não ficará satisfeito enquanto não
destruir O Caminho.
— Não creio que João faria isso, Salomé.
— Não? — Salomé riu, um som duro para alguém tão jovem. —
Não passou tanto tempo quanto eu convivendo com os Herodes. É
espantoso o que os homens são capazes de fazer para conquistar
posições.
Maria suspirou e sacudiu a cabeça:
— Sei que é difícil para você acreditar, mas João é um bom homem
e um profeta de verdade. Eu não me casaria com ele se não acreditasse
nisso... nem meu irmão concordaria com o casamento. João é diferente
de Easa, um homem duro e agressivo, mas acredita no Reino de Deus.
Vive apenas para ajudar os homens a encontrarem Deus, pelo
arrependimento e pela lei.
— É verdade, ele acredita em ajudar homens. Quanto às mulheres,
João prefere que todas nos afoguemos naquele seu precioso rio, em vez de
nos oferecer a salvação. — Salomé fez uma careta para demonstrar seu
desdém. — E ele se tornou um joguete nas mãos dos fariseus, quanto
menos não seja porque não tem habilidades sociais ou políticas. Segue o
que eles indicam. E garanto que será orientado para questionar ainda
mais a legitimidade de Easa, se não for detido.
Maria fitou a amiga. Alguma coisa na maneira como Salomé falava
agora deixava-a nervosa, mas era um medo misturado com respeito. Sua
amiga de infância adquirira uma profunda compreensão da política de
seu tempo nos palácios de Herodes.
— O que você propõe?
Quando Maria levantou os olhos, um raio de sol iluminou seu
rosto, realçando as marcas roxas e pretas dos machucados. A princesa
herodiana estremeceu à vista do rosto lindo e delicado de Maria
desfigurado pela surra. E quando Salomé falou, foi com suave
determinação:
— Farei com que João Batista pague por seus atos... contra você,
contra Easa e contra minha mãe. De um jeito ou de outro.
Um tremor percorreu o corpo de Maria ao ouvir essas palavras.
Apesar do calor ao sol do meio-dia, ela sentiu frio, muito frio.
A rapidez com que prenderam João foi espantosa. Maria
descobriria muito mais tarde que Salomé seguira para o palácio de
inverno do tetrarca, perto do mar Morto, onde se realizava uma festa pelo
aniversário de Herodes Antipas. Herodes pedira que Salomé dançasse
para ele e seus convidados, pois a graça e a beleza da jovem eram
lendárias. Além disso, havia convidados que haviam percorrido longas
distâncias para prestar tributo a Herodes. O tetrarca achava que seria
um gesto de cordialidade apresentar sua linda enteada.
Salomé entrou na sala em que se realizava a festa, ao melhor estilo
romano. Usava sedas reluzentes e correntes de ouro, dadas pelo padrasto
apaixonado. Sua entrada provocou uma comoção, com os convidados
esticando o pescoço para contemplar melhor a deslumbrante princesa.
— Você é a jóia de maior valor em meu reino, Salomé — declarou
o padrasto. — Dance para nós. Será uma grande emoção para os nossos
convidados descobrir como você é graciosa.
Salomé aproximou-se do trono em que Herodes presidia o banquete.
Era uma imagem de linda petulância.
— Não sei se posso dançar, padrasto. Meu coração ficou tão
oprimido pelo que suportei na viagem que não creio que tenha
disposição para dançar.
Herodíades, numa almofada ao lado do marido, empertigou-se:
— O que aconteceu que lhe causou um efeito tão ruim, criança?
Salomé contou uma história triste sobre o homem horrível que
era chamado de Batista, e como suas palavras atormentavam-na e
pareciam segui-la, aonde quer que fosse.
— Quem é esse homem... esse Batista? — perguntou um nobre
romano em visita à terra.
Herodes fez um gesto desdenhoso.
— Ninguém. Um dos vários Messias que surgiram este ano. É um
agitador, mas não muito importante.
Ao ouvir isso, Salomé desatou a chorar. Jogou-se aos pés da mãe.
Falou sobre os nomes horríveis que o Batista usara contra Herodíades.
Ela ficou apavorada, pois aquele profeta previra que Herodes seria
derrubado e o palácio desmoronaria, com todos dentro. Ele incitava o ódio
aos Herodes entre o povo, a tal ponto que Salomé não podia mais viajar
em segurança com os nazarenos, a não ser que estivesse bem disfarçada.
— Ele parece mais um rebelde do que um profeta — comentou o
nobre romano. — É melhor lidar com gente desse tipo o mais depressa
possível.
Herodes não tinha a menor vontade de tratar de política, mas não
podia se dar ao luxo de parecer fraco na presença de um enviado romano.
Por isso chamou os guardas e deu uma ordem:
— Prendam esse homem chamado Batista e tragam-no para cá.
Quero ver se ele tem a coragem de dizer essas coisas na minha frente.
Os convidados aplaudiram a decisão e seguiram o exemplo do nobre
romano, levantando seus copos para um brinde ao anfitrião. Salomé
limpou as lágrimas dos olhos e sorriu ternamente para Herodes Antipas:
— Que dança gostaria que eu apresentasse esta noite, padrasto?
João Batista era um prisioneiro que acarretava problemas.
Herodes Antipas não previra a força dos seguidores de João, que haviam
aumentado em proporções extraordinárias. Suplicantes compareciam ao
palácio todos os dias, pedindo a libertação de seu profeta. Apelavam para
Herodes como a um judeu, querendo seu apoio. Como o palácio de inverno
ficava perto de Qumran, a comunidade essênia mandava enviados todos
os dias, para pedir a liberdade do prisioneiro. Não se tratava de um mero
profeta regional que podia ser punido e silenciado com facilidade. João
Batista era um fenômeno.
Herodes assumiu o encargo de interrogar João pessoalmente.
Mandou que trouxessem o pregador ascético à sua presença. Esperava
respostas indignadas e comentários desvairados, como costumava
acontecer com aqueles pregadores do deserto, supostos Messias. Era
quase um esporte para Herodes, ansioso em fazer com que o homem que
tanto perturbava sua esposa e enteada mordesse a isca. Depois de brincar
com o prisioneiro por algum tempo, ele decidiria qual seria a sentença.
O interrogatório, no entanto, não transcorreu como o tetrarca
planejara. Embora João se vestisse de uma maneira extravagante e não
houvesse nada de civilizado em sua aparência, suas palavras não eram as
de um louco delirante. Herodes achou-o inteligente, talvez mesmo um
sábio, o que era desconcertante. João falou com severidade dos pecadores
e da necessidade de arrependimento. Não hesitou em fitar Herodes nos
olhos quando advertiu que o Reino do Céu seria negado a alguém com os
pecados do tetrarca. Mas ainda havia tempo para a redenção, se Herodes
se separasse de sua esposa adúltera e se arrependesse de suas muitas
violações da lei.
Ao final do interrogatório, Herodes estava muito preocupado com a
prisão de João. Tinha vontade de soltá-lo, mas não podia fazer isso sem
parecer fraco e ineficiente aos olhos de Roma. Um enviado romano não
estava presente quando fora dada a ordem para prender João? Libertar o
homem agora faria com que Herodes parecesse incoerente, talvez
mesmo incompetente para lidar com os rebeldes judeus. Não, ele não
ousaria libertar o Batista, pelo menos por enquanto.
Quando soube o que acontecera, Maria de Magdala mandou um
mensageiro ao palácio para saber se o marido gostaria de recebê-la ou de
ter notícias da criança que esperava. João ignorou a mensagem. As
únicas palavras que Maria recebeu de João, durante sua prisão, foram
de condenação. Soube pelos seguidores mais íntimos que João continuava
a questionar a paternidade da criança e só se referia a ela nos termos mais
desdenhosos. Culpava a jovem esposa por sua prisão e os seguidores mais
fanáticos haviam feito ameaças à família. Finalmente, Maria convenceu o
irmão e Marta a levarem-na para a Galiléia, tão longe quanto possível do
Batista e seus seguidores. Não podia compreender como uma noite de
desobediência inocente se transformara numa reputação maculada
como meretriz, mas era essa a realidade que agora enfrentava. Maria
preferia ficar no santuário de seu lar, na base do monte Arbel, mais perto
dos nazarenos e seus simpatizantes.
João continuou seu ministério da prisão, sua lenda e influência
crescendo na região sul. Mas o ministério de seu primo, o carismático
nazareno, desabrochava com crescente vigor na região ao norte do Jordão e
na Galiléia. Os seguidores de João levavam ao seu conhecimento, na
prisão, as notícias das grandes obras e das curas milagrosas que eram
atribuídas a Easa. Mas também informavam sobre a persistente
indulgência do nazareno com os gentios e os impuros. Ele até impedira
que uma mulher adúltera fosse justamente apedrejada! Era evidente que o
primo de João perdera por completo a noção da lei. Era tempo de João
assumir uma posição firme.
Por instrução de João, seus seguidores compareceram a uma
grande reunião de nazarenos. Quando Easa se apresentou à multidão,
para iniciar sua pregação, dois enviados ascéticos se adiantaram. O
primeiro disse, dirigindo-se a Easa e à multidão:
— Viemos da cela de João Batista. Ele pede que transmitamos esta
mensagem a todos. Ele diz, Yeshua, o Nazareno, que o contesta. Que
acreditou outrora que você era o Messias enviado por Deus, mas não
pode acreditar que sua aceitação dos impuros esteja dentro da lei. Por
isso, ele pergunta: “Você é aquele que era esperado? Ou as pessoas devem
esperar por outro?”
A multidão tornou-se irrequieta ao ouvir essas palavras. O batismo
de Jesus por João fora o momento de definição para alguns dos mais
novos discípulos nazarenos. O dia mágico na margem do Jordão, em que
João anunciara o primo como o eleito e Deus demonstrara-lhe ser
favorável, sob a forma de uma pomba, transformando muitos em
seguidores d'O Caminho. Agora, João Batista estava, em essência,
retirando seu apoio, ao questionar publicamente o primo.
Jesus, o Nazareno, mostrou-se impassível diante da pergunta e
indiferente ao insulto. Fez um gesto para silenciar a multidão:
— Não há maior profeta neste mundo que João Batista.
Para os homens que o haviam questionado, ele acrescentou:
— Por favor, apresentem todas as minhas considerações a meu
primo. Contem a ele todas as coisas que viram e ouviram entre nós hoje.
E haveria muito a contar. O líder nazareno circulou entre a
multidão, dispensando bênçãos aos doentes. Naquele dia, pelo que
disseram, ele devolveu a visão a muitos que eram cegos. Curou
enfermidades dos idosos, expulsou maus espíritos dos aflitos. E durante
todo o tempo pregou a palavra d'O Caminho, ensinou às pessoas a luz de
Deus. Contou uma história, uma parábola sobre uma mulher perdoada
por seus pecados porque tinha o coração cheio de fé e amor. Esta foi a
mensagem final do dia:
— Os pecados são perdoados naqueles que têm o coração cheio
de amor. Mas, se o homem mais virtuoso tem pouco amor no coração,
conhecerá pouco perdão.
Foi um dia que definiria o ministério de Jesus, o Nazareno, como O
Caminho curativo de perdão e amor, um curso para a salvação para todas
as pessoas que optassem por seguir na luz.
Herodes Antipas tinha um problema. O enviado romano que
testemunhara a ordem para prender João Batista, meses antes, voltara
à terra. Quando o romano perguntou a subordinados do tetrarca por
que havia tantos judeus cercando o palácio, foi informado de que o
profeta aprisionado continuava a atrair seguidores. O enviado ficou
atônito ao saber que Herodes ainda não tomara uma atitude contra o
rebelde.
Ao jantar, naquela noite, o nobre de Roma falou com Herodes
sobre o problema, em tom firme:
— Você não pode ser frouxo em relação a esses agitadores. Está
aqui porque César confia em você para representar Roma e porque ele
acha que leva uma vantagem sobre outros por ser judeu. Mas seria um
erro terrível se mostrar apaziguador. Esse homem insulta Roma todos
os dias da própria prisão em que é mantido e você permite.
O tetrarca defendeu sua posição:
— A região do deserto é controlada por seitas essênias e outras
que consideram esse homem um profeta. Executá-lo provocaria grandes
tumultos.
— Você, um cidadão romano e um rei, permite ser tratado como
um refém por esses habitantes do deserto?
A indagação era uma censura. Herodes sabia quando se
encontrava acuado. Aquele enviado voltaria a Roma no dia seguinte e
ele não podia permitir que o homem comunicasse a César qualquer
fraqueza percebida. Tinha muitos inimigos que gostariam de
testemunhar a queda dos Herodes de uma vez por todas. Isso não podia
acontecer. Antipas não nascera com o sangue desses reis por nada. O
avô não executara os próprios filhos quando percebera uma ameaça ao
trono? Herodes sabia como lutar pelo que lhe pertencia por direito.
Herodes Antipas bateu palmas duas vezes para chamar os servos.
Mandou que os centuriões fossem trazidos à sua presença.
— Executem imediatamente a sentença contra o prisioneiro João
Batista. Ele deve ser executado com uma espada.
O enviado romano balançou a cabeça vigorosamente em
aprovação, enquanto Herodes Antipas preparava-se para ocupar seu
lugar na história pela primeira vez... mas não pela última.
Antes de sua execução, João pediu apenas uma coisa: que uma
mensagem fosse enviada à sua esposa na Galiléia. Ele teve permissão
para receber um seguidor, que serviria como mensageiro. João lhe
transmitiu suas palavras finais, de instruções e arrependimento, antes
que a espada do centurião o executasse. A cabeça foi separada do corpo
pelo primeiro golpe e João Batista, profeta do Jordão, foi para o Reino de
Deus.
Herodes mandou que a cabeça de João fosse colocada na ponta de
uma lança e exposta no portão da frente do palácio, para mostrar ao
enviado romano como ele lidava de forma rápida e severa com atos de
traição. A cabeça permaneceu por alguns dias ali, bicada por aves de
rapina, até a noite em que desapareceu misteriosamente. O resto do corpo
de João foi entregue aos seguidores essênios para sepultamento.
Maria, em avançado estágio de gravidez, em Magdala, recebeu a
notícia da execução de João. O mensageiro lhe transmitiu pessoalmente
as últimas palavras de João:
— Arrependa-se, mulher. Faça penitência todos os dias pelos
pecados que nos levaram a essa situação. Faça isso pela minha memória
e pelo bem da criança que você espera. Para que haja alguma esperança
de que a criança seja aceita no Reino de Deus, você deve se arrepender e
batizá-la no nascimento.
Se João morreu acreditando ou não que a criança era sua, Maria
nunca soube. O fato de ter se dado ao trabalho de enviar uma mensagem,
com o seu último pedido, era uma indicação de que talvez acreditasse
que o fosse. Maria gravou suas palavras no coração e rezou todos os dias,
durante o resto de sua longa vida, pelo perdão de João. Ele fora grosseiro e
agressivo, mas ela não guardava qualquer ressentimento. Easa e a Grande
Maria haviam ensinado que o perdão era divino e ela adotou esse princípio
com toda a sinceridade.
João fora um enigma para ela desde o início. Era um homem rude,
que nunca pedira o que lhe fora impingido, nunca tivera a intenção de
tomar uma esposa. Ela fizera o melhor que podia para se comportar de
uma maneira que João julgasse obediente, mas nada jamais o agradava.
Lamentavelmente, Maria se casara com o único homem em Israel que
não daria qualquer coisa para tê-la. Era bonita, virtuosa, rica e herdara o
sangue real de seu povo. Mas nenhuma dessas qualidades tinha qualquer
interesse para João Batista.
O casamento fora uma espécie de sentença para ambos. E a bênção
para ambos era o fato de permanecerem separados durante a maior parte
do tempo, só se encontrando quando os fariseus pressionavam João para
ter um herdeiro. No final das contas, o casamento fora mais detestável
para João do que para Maria. Agora, estavam livres, mas Maria daria
qualquer coisa para mudar a maneira que a fizera recuperar a liberdade.
Assim como fora culpada pela prisão de João, Maria também foi
acusada por sua execução pelos seguidores mais leais. A mulher mais
injuriada na terra no momento era Salomé. A princesa herodiana era
acusada de atos terríveis, inclusive de incesto com o padrasto.
Espalharam-se histórias fantásticas sobre a sexualidade dissoluta de
Salomé, como ela a usara para exigir a cabeça de João numa bandeja de
prata. Nenhuma dessas coisas era verdadeira. Salomé apenas usou sua
manobra infantil para conseguir que João fosse preso, mas confessou em
lágrimas para Maria, mais tarde, que nunca imaginara que ele seria
executado. Só queria afastar João por algum tempo, conter o seu
crescente poder entre o povo, para que não pudesse fazer mal a Easa ou
Maria. Salomé, em última análise, era muito jovem e inexperiente, em
política e religião, para prever que a prisão de João o tornaria ainda mais
popular entre o povo. Pior ainda, não imaginara o terrível dilema de
Herodes nem sua dramática solução.
Um mensageiro anônimo de João levou uma última e inesperada
relíquia de arrependimento para sua jovem esposa, algumas semanas
depois. Sem dizer nada, o asceta entregou-lhe um cesto de vime e deixou a
casa em seguida. Não havia qualquer mensagem e o mensageiro não a
fitou nos olhos em momento algum. Curiosa, Maria levantou a tampa do
cesto para descobrir o conteúdo.
Sobre uma almofada de seda, dentro do cesto, estava o crânio
esbranquiçado pelo sol de João Batista.
Maria entrou em trabalho de parto antes do tempo. Foi uma bênção
disfarçada, já que seu corpo pequeno não seria capaz de dar à luz o bebê
com a gestação completa. Mesmo prematuro, o menino era grande e
robusto. Nasceu berrando com grande força à indignidade do mundo.
Com um único dia de idade, era a imagem física de João. E qualquer
pessoa que ouvisse a insistência do choro do bebê poderia reconhecê-lo
como filho legítimo do Batista.
Maria de Magdala mandou para a Grande Maria e Easa a notícia de
que a criança nascera, sã e salva, junto com seus agradecimentos pelas
orações dos dois.
Ela deu ao menino o nome de João-José, em homenagem ao pai.
Depois da execução de João, houve uma tremenda pressão sobre
Easa para que assumisse uma posição entre os seguidores do Batista. Ele foi
para o deserto e se reuniu com os essênios e discípulos de João, pregando
o Reino de Deus à sua maneira. Alguns essênios aceitaram Easa como seu
novo Messias e passaram a segui-lo, porque ele era da linha de Davi.
Muitos outros, no entanto, opunham-se às suas reformas nazarenas,
porque João se manifestara veementemente contra elas até o final de sua
vida. Para a maioria dos habitantes do deserto, João era o único Mestre
da Justiça; qualquer outro que tentasse tomar o seu lugar era um
impostor.
A profunda divisão entre os seguidores de João e os fiéis a Easa foi
definida naqueles primeiros dias. O espírito nazareno aflorou como
amor e perdão, acessível a qualquer pessoa que quisesse assumi-lo. A
filosofia joanita era muito diferente, baseada em julgamentos rigorosos e
normas estritas da lei. Enquanto eram acolhidas e respeitadas por Easa e
os nazarenos, as mulheres eram desprezadas pelos seguidores de João. O
Batista sempre mantivera as mulheres em baixa estima. Sua descrição de
Maria e Salomé para os seguidores, como prostitutas de Babilônia
encarnadas, consolidou a idéia das mulheres como seres inferiores.
Surgiu um retrato imperfeito e injusto de Maria Madalena como
uma pecadora arrependida, e de Salomé como uma meretriz decadente.
Os seguidores de João Batista atiçaram as chamas dessa injustiça,
desencadeando uma conflagração que arderia ao longo dos séculos.
Easa, o Nazareno, príncipe da Casa de Davi, tencionava mudar a
percepção do público da princesa difamada e agora viúva. Mais do que
qualquer outro, ele sabia que aquela boa e virtuosa mulher era vítima de
uma terrível injustiça. Ela não era menos filha de Benjamim agora. Seu
sangue ainda era real, o coração ainda puro e ele ainda a amava.
Lázaro ficou surpreso quando o Filho do Leão apareceu em sua
porta sozinho, sem os seguidores.
— Vim visitar Maria e a criança — anunciou ele.
Gaguejando, Lázaro chamou Marta e convidou Easa a entrar.
Marta veio e tentou disfarçar sua reação, de surpresa ou alegria. Havia
muito era simpatizante dos nazarenos, apesar de sua criação
conservadora. Sempre amara e reverenciara Easa.
— Vou trazer Maria e o bebê — disse ela, deixando a sala,
apressada.
Quando ficaram a sós, Lázaro tentou se explicar:
— Yeshua, tenho de pedir muitas desculpas por...
Easa levantou a mão:
— Paz, Lázaro. Nunca soube que você tenha feito qualquer coisa
em que não acreditasse em seu coração, que não fosse certa e justa. E
sincero consigo mesmo e sincero para com o Senhor. Por isso não precisa
pedir desculpas, para mim ou para qualquer outra pessoa.
Lázaro sentiu um tremendo alívio. Sentira por muito tempo a
tristeza de ter rompido o noivado entre Easa e sua irmã. Também
lamentava ter negado hospedagem aos nazarenos em Betânia, naquela
noite que redundara numa calamidade para Maria. Mas não teve tempo
para dizer isso, já que o pequeno João-José anunciou sua entrada na sala
com um choro vigoroso.
Easa sorriu para Maria e o bebê. Estendeu os braços para o menino,
que tinha o rosto vermelho de tanto chorar.
— Ele é bonito como a mãe e determinado como o pai —
comentou Easa, rindo.
Ao primeiro contato da mão de Easa, João-José parou de chorar.
Ficou quieto, olhando para aquela presença nova com um grande
interesse. Arrulhou feliz quando Easa embalou-o nos braços, gentilmente.
— Ele gosta de você — murmurou Maria, com uma súbita timidez
na presença daquele homem que se tornara uma lenda entre o povo.
Easa fitou-a, muito sério.
— Espero que seja mesmo verdade. — Ele olhou para Lázaro. —
Lázaro, meu querido irmão, eu gostaria de falar em particular com Maria
sobre um assunto importante. Ela é viúva e por isso não é indecoroso que
converse comigo sem a presença de outras pessoas.
— Claro — respondeu Lázaro, deixando a sala.
Easa, ainda com o pequeno João no colo, gesticulou para que
Maria se sentasse. Ele também se sentou. Os dois ficaram em silêncio por
um momento, enquanto o pequeno João continuava a arrulhar para Easa
e a puxar seus cabelos compridos, ao estilo nazareno.
— Maria, tenho uma pergunta para lhe fazer.
Ela balançou a cabeça, sem dizer nada. Não sabia o que estava para
acontecer, mas sentia uma felicidade intensa por estar outra vez na
presença de Easa. Era um verdadeiro bálsamo para seu espírito arrasado.
— Você sofreu muito, em grande parte por causa de sua fé em mim
e n'O Caminho. Quero reparar tudo com você e essa criança. Maria, eu
gostaria que se tornasse minha esposa e me desse permissão para criar o
filho de João como se fosse meu.
Maria ficou paralisada. Ouvira direito? Não, aquilo era impossível.
— Não sei o que dizer, Easa. — Ela fez uma pausa, procurando
ordenar os pensamentos que disparavam por sua mente surpresa. —
Passei toda a minha vida acalentando o sonho de me casar com você. E,
quando isso não aconteceu... nunca mais pensei nesse sonho. Mas não
posso permitir que faça isso. Prejudicaria você e sua missão. Há muitos
que me culpam pela morte de João, homens que me odeiam e que me
chamam de pecadora.
— Isso não faz diferença para mim. Qualquer pessoa que me
segue agora conhece a verdade... e ensinaremos a verdade para aqueles
que ainda não a conhecem. E os seguidores não poderão se opor. Na
verdade, é apropriado que eu a tome como esposa. Você é viúva de João,
que era meu primo. Sou o parente mais próximo de João e como tal devo
criar seu filho, pelas próprias tradições que os seguidores dele juraram
respeitar. E eu o criarei como um príncipe de seu povo, como meu
herdeiro escolhido e o filho de um profeta. É uma união correta, perante
a lei e o povo de Israel. Ainda sou o filho de Davi e você ainda é a
filha de Benjamim.
Maria estava atordoada. Nunca imaginara que alguma coisa assim
pudesse acontecer. Na melhor das hipóteses, esperava que Easa batizasse
o menino, como João pedira. Mas adotar o pequeno João como seu
próprio filho e tomá-la como esposa? Era mais do que ela podia agüentar.
Maria baixou o rosto para as mãos e começou a chorar.
— O que a faz chorar, pombinha? Não somos agora menos perfeitos
um para o outro aos olhos de Deus do que éramos quando Ele nos
escolheu para uma união.
Maria removeu as lágrimas dos olhos e fitou o nazareno, seu Easa,
o homem que Deus lhe devolvera.
— Nunca pensei que saberia o que era ser feliz de novo — sussurrou
ela.
Ao contrário da festa suntuosa em Caná, Easa e Maria se casaram
numa pequena cerimônia privada, com a presença da Grande Maria e dos
nazarenos mais leais. O casamento foi realizado numa praia da Galiléia,
na aldeia de Tabga.
Mas a notícia da união espalhou-se depressa. No dia seguinte,
multidões começaram a chegar a Tabga. Alguns eram seguidores, outros
apenas curiosos pela idéia da união dos noivos da profecia de Salomão.
Havia também os que não se sentiam satisfeitos pelo casamento de seu
amado profeta da Galiléia com aquela mulher de reputação maculada.
Mas Easa ficou contente pela presença de todos. Disse a Maria, várias
vezes, que cada dia trazia uma nova oportunidade de mostrar O Cami-
nho para alguém que nunca o conhecera, uma nova oportunidade de
proporcionar a visão aos cegos.
A notícia do casamento atraiu milhares de pessoas durante dois
dias.
A Grande Maria procurou Easa ao final do segundo dia. Lembrou-o
do milagre do primeiro casamento, em Caná, quando não havia vinho
suficiente para os convidados. Agora, as praias da Galiléia transbordavam
de viajantes que não comiam havia vários dias e restava bem poucos
alimentos para tantas pessoas. A mãe o aconselhou a considerar que
aquele era seu banquete de casamento.
Easa chamou os seguidores mais próximos. Pediu um cálculo do
número total de convidados. Filipe respondeu:
— Há quase cinco mil pessoas, mas o que temos para comer não
dá para duzentas.
André, o irmão de Pedro, acrescentou:
— Conheço um filho de pescador que tem cinco pães de cevada e
dois peixes pequenos. Mas isso é tudo. E não é nada em comparação com
o que precisamos.
Easa disse:
— Digam a todos para se sentarem. E me tragam os pães e os
peixes.
Isso foi feito por André, que pôs os pães e os peixes, num cesto, aos
pés do mestre. Easa fez uma oração de graça e abundância sobre os
alimentos. Depois, entregou o cesto a André.
— Comece por esse cesto, passando-o pelos convidados. Recolham
todos os fragmentos, para que nada se perca. Ponham esses fragmentos
em novos cestos, para distribuir entre as pessoas.
André seguiu as instruções, ajudado por Pedro e os outros. Ficaram
espantados quando viram os cestos que continham apenas algumas
migalhas transbordarem de pães e peixes. Não demorou muito para que
houvesse doze cestos grandes cheios de alimentos. Foram distribuídos
pela multidão, até que todos comeram o suficiente.
Todos os que participaram do banquete nas praias de Tabga ficaram
convencidos, acima e além de qualquer dúvida, de que Easa, o Nazareno,
era mesmo o Messias da profecia. Sua reputação como alguém que fazia
milagres e curava os doentes continuou a se espalhar. Seus seguidores
não paravam de aumentar. E já havia muitos agora que se mostravam
dispostos a aceitar Maria de Magdala. Afinal, se um profeta tão poderoso
escolhera aquela mulher, ela devia ser digna.
A posição de Maria apresentava um problema. Numa época em que
as mulheres eram definidas por suas relações com os homens, sua
situação era complicada e politicamente difícil. Não seria apropriado
referir-se a ela como a viúva de João. Tampouco seria de todo aceitável
indicá-la apenas como a esposa de Easa. Nessa ocasião, ela tornou-se
conhecida por seu próprio nome, como uma mulher de liderança.
Reinaria para sempre como a Filha de Sião, a Torre de seu Rebanho... a
Migdal-Eder. Passaria a ter uma posição própria, com o nome de uma
rainha. O povo a chamava simplesmente de...
Maria Madalena.
Foi a esse período do ministério, depois da milagrosa multiplicação
de pães e peixes em Tabga, que Maria Madalena se referiu como O Grande
Tempo. Pouco depois do casamento, os nazarenos, agora acompanhados
por Maria, partiram para a Síria. Easa curou uma quantidade espantosa
de pessoas durante a jornada. Passava o tempo ensinando nas sinagogas
e levando a palavra d'O Caminho para novos ouvidos. Mas depois de
alguns meses, eles voltaram à Galiléia. Maria Madalena estava grávida e
Easa queria que a criança nascesse onde a mãe se sentiria mais
confortável... em sua casa.
Maria e Easa tiveram uma menina pequena e perfeita pouco depois
de voltar. Deram-lhe o nome composto de uma princesa, Sara-Tamar. O
nome Sara invocava uma nobre hebréia das escrituras, a esposa de
Abraão. Tamar era um nome da Galiléia, uma referência às abundantes
tamareiras que cresciam na região. Havia gerações era usado por casas
reais como um dos prediletos para suas filhas.
A família aumentava, o ministério se expandia, e os filhos de Israel
experimentavam um sentimento de esperança pelo futuro. Era mesmo
um Grande Tempo.
CAPITULO DEZOITO
Château des Pommes Bleues
28 de junho de 2005
Ninguém falou por um longo momento, depois que Peter terminou
de ler sua tradução do primeiro livro. Todos permaneceram calados, cada
um absorvendo, à sua maneira, a enormidade da informação. Todos
haviam chorado a intervalos variados, os homens mais reservados, as
mulheres mais abertamente, ante os acontecimentos na história de
Maria. Foi Sinclair quem rompeu o silêncio:
— Por onde começamos?
Maureen sacudiu a cabeça.
— Não tenho a menor idéia.
Ela levantou os olhos para verificar como Peter reagia às
circunstâncias. Ele parecia surpreendentemente calmo e até sorriu
quando seus olhos se encontraram.
— Você está bem, Pete?
— Nunca me senti melhor. É muito estranho, mas não me sinto
chocado nem preocupado. Sinto-me apenas... contente. Não posso
explicar, mas é assim que me sinto.
— Parece exausto — comentou Tammy. — Mas fez um
trabalho extraordinário.
Sinclair e Roland manifestaram sua concordância, agradecendo a
Peter pelo incansável empenho na tradução.
— Por que não descansa um pouco? — sugeriu Maureen,
gentilmente. — Pode começar o trabalho nos outros livros amanhã. Você
precisa dormir, Pete.
Peter sacudiu a cabeça, determinado.
— Não há a menor possibilidade. Há mais dois livros para
traduzir... O livro dos discípulos e o seguinte, que ela chama de O livro
do Tempo das Trevas. Acho que podemos presumir que seja seu relato
pessoal da crucificação e não vou descansar enquanto não descobrir.
Quando compreenderam que seria impossível fazer Peter mudar de
idéia, Sinclair mandou que trouxessem uma bandeja com chá para ele.
Peter continuava se recusando a comer, convencido de que deveria jejuar
enquanto estivesse traduzindo. Deixaram-no sozinho. Sinclair, Maureen e
Tammy foram para a sala de jantar, a fim de fazer uma refeição leve.
Roland foi convidado a acompanhá-los, mas recusou polidamente,
alegando que tinha muitas coisas a fazer. Ele olhou para Tammy, no
outro lado da sala, antes de se retirar.
A refeição foi leve, já que nenhum deles sentia muita disposição para
comer. Ainda tinham dificuldades para converter em palavras sua reação ao
primeiro livro. Tammy finalmente comentou as informações sobre João:
— Depois de passar o dia com Derek, tudo faz mais sentido
ainda. Posso entender agora por que os seguidores de João reunidos na
Guilda guardam tanto ódio contra Maria e Salomé. Mas é muito injusto.
Maureen estava confusa. Ainda não tomara conhecimento das
descobertas de Tammy.
— O que está querendo dizer? São essas pessoas que me atacaram?
Tammy relatou tudo o que descobrira por intermédio de Derek, na
terrível visita a Carcassonne. Maureen escutou num silêncio atordoado.
— Mas vocês já sabiam que Maria tinha um filho de João Batista?
— Ela dirigiu a pergunta aos dois. — Porque é uma tremenda surpresa
para mim... desconcertante.
Sinclair concordou, balançando a cabeça.
— Será um choque para a maioria das pessoas. E uma tradição
que conhecemos aqui, mas poucas pessoas fora de nossas seitas
orgulhosa mente heréticas sabem disso. Houve um esforço conjunto para
remover esses fatos da história... dos dois lados. Ostensivamente, os
seguidores de Jesus não queriam que qualquer informação sobre João
ofuscasse a história de Jesus, conforme foi contada, com o maior cuidado
e habilidade, pelos autores dos evangelhos.
Tammy interrompeu-o:
— Os seguidores de João não falam a respeito porque
desprezam Maria Madalena. Comecei a ler os documentos da Guilda, o
chamado O verdadeiro livro do Santo Graal. Dão esse nome porque
acreditam que o único sangue sagrado vem de João e seu filho. O que
faz com que sua linhagem seja o único Santo Graal, o verdadeiro cálice
do sangue sagrado. Se pudessem impor sua vontade, eles teriam
eliminado toda e qualquer menção a Maria Madalena não apenas nas
escrituras, mas também na história. Há uma lei na Guilda de que ela
nunca deve ser mencionada sem o epíteto de prostituta acrescentado ao
nome.
— Isso não faz sentido — comentou Maureen. — Ela foi a mãe do
filho de João e eles o reconhecem como legítimo. Por que ainda sentem
tanto ódio contra Maria Madalena?
— Porque acham que Maria e Salomé conspiraram para a morte
de João, a fim de que ela pudesse casar com Jesus... Easa... para que
Jesus pudesse assumir a posição de ungido. E para que Jesus pudesse
usurpar a posição de pai do filho de João, para treiná-lo nos costumes
nazarenos. É parte do ritual deles negar Cristo, cuspindo na cruz e
chamando-o de O Usurpador.
Maureen fitou um e outro:
— Hesito em levantar a questão, mas é difícil para mim acreditar
que Jean-Claude seja parte disso.
— Está falando de Jean-Baptiste — murmurou Tammy, o desdém
evidente ao enunciar o nome.
— Quando visitamos Montségur... ele demonstrou que sabia
muita coisa sobre os cátaros. Não apenas isso, mas também se mostrou
reverente e respeitoso. Era tudo uma encenação?
Sinclair suspirou e passou as mãos pelo rosto.
— Era, sim... e foi apenas uma pequena parte de uma grande
encenação, pelo que sei. Roland descobriu que Jean-Claude foi preparado
desde a infância para se infiltrar em nossa organização. Sua família é
rica. Contando ainda com os recursos da Guilda, ele pôde criar essa
identidade. E verdade que ele acrescentou o elemento Paschal mais
tarde, o que deveria me deixar desconfiado. Mas eu não tinha motivos
para suspeitar. E persiste o fato de que ele é um estudioso e historiador
competente, um profundo conhecedor de nossa história. Só que em seu
caso não era por uma questão de reverência, mas sim de acordo com
aquela máxima antiga: “Conheça seu inimigo.”
— Há quanto tempo existe essa rivalidade?
— Dois mil anos — respondeu Sinclair. — Mas é unilateral. Nosso
povo não guarda ressentimento contra João. Sempre acolhemos as
pessoas da linhagem do Batista como nossos irmãos e irmãs. Afinal,
somos todos descendentes de Maria Madalena, não é mesmo? É assim
que sempre consideramos.
— Os agitadores estão no outro ramo da família — gracejou
Tammy.
Sinclair acrescentou:
— Mas é importante lembrar que nem todos os seguidores do
Batista são extremistas. Esses fanáticos da Guilda não passam de uma
minoria. Um grupo sempre irado e assustador, surpreendentemente
poderoso, mas, ainda assim, uma minoria. Vamos sair, pois eu gostaria
de mostrar uma coisa.
Os três se levantaram. Tammy disse que não podia ir junto, pois
tinha outra coisa a fazer. Pediu a Maureen para encontrá-la mais tarde na
sala de comunicações.
— Agora que chegamos a esse ponto, quero também lhe revelar
mais algumas coisas que descobri em minhas pesquisas.
Maureen concordou em procurá-la dali a uma hora. Saiu com
Sinclair. O céu ao crepúsculo ainda brilhava com o resto do sol de verão,
enquanto passavam pelo portão do Jardim da Trindade.
— Lembra-se do terceiro jardim? O que não conheceu naquele dia?
Vou mostrá-lo agora.
Sinclair pegou o braço de Maureen. Passaram pelo chafariz de Maria
Madalena e atravessaram a arcada da esquerda. Um caminho de mármore
levava para um jardim requintado, parecido com o de uma villa italiana.
— Parece... um jardim romano medieval — comentou Maureen.
— E isso mesmo. Sabemos pouco sobre João-José. Até onde eu sei,
não há nada escrito a seu respeito... ou pelo menos não havia até hoje.
Temos apenas um punhado de tradições e lendas locais, passadas de
geração em geração.
— E o que você sabe?
— Apenas que o menino não era filho de Jesus... que era de
João. Também sabíamos o nome certo, João-José, embora algumas
lendas se refiram a ele como João-Yeshua e até João-Marcos. A lenda diz
que em algum momento ele foi para Roma, deixando a mãe e os
irmãos na França. Se isso aconteceu por sua própria iniciativa ou como
parte de um plano geral, é pura especulação. E também não sabemos
qual foi o seu destino. Há duas linhas de pensamento a respeito.
Sinclair levou-a até uma estátua de mármore de um jovem, ao
estilo da Renascença. Ele estava de pé na frente de uma cruz enorme,
mas tinha um crânio na mão.
— Ele foi criado por Jesus. Portanto é possível que tenha integrado
a florescente comunidade cristã em Roma. Mas, se isso aconteceu, é
provável que tenha sofrido uma morte prematura, como muitos dos
primeiros líderes da Igreja, exterminados por Nero. O historiador
romano Tácito disse que Nero “punia com todos os tipos de crueldade os
membros do grupo notoriamente depravado conhecido como
cristãos”. Sabemos que isso era verdade, pelos relatos sobre a morte de
Pedro.
— Acha então que João-José foi martirizado?
— É bem possível. Talvez até tenha sido crucificado junto com Pedro.
É difícil acreditar que alguém com sua origem fosse qualquer outra coisa
que não um líder. E todos os líderes eram executados. Mas há também
outra perspectiva.
Sinclair apontou para o crânio na mão de mármore de João-José.
— Aqui está outra possibilidade. Uma lenda diz que os seguidores
mais fanáticos de João procuraram seu herdeiro em Roma e
convenceram-no de que os cristãos haviam usurpado o lugar que lhe
pertencia por direito. Que João era o único e verdadeiro Messias e João-
José, como seu filho, era herdeiro do trono do ungido. Alguns dizem que
ele virou-se contra a mãe e a família, aceitando os ensinamentos dos
seguidores de seu pai. Não sabemos onde ele acabou, mas sabemos que
há uma seita muito forte de fiéis de João no Irã e Iraque. São os mandeus.
São pessoas pacíficas, mas muito rigorosas em suas leis e na crença de
que João foi o único e verdadeiro Messias. É possível que sejam
descendentes diretos, que João-José ou seus herdeiros tenham seguido
para o leste, depois de um cisma com os primeiros cristãos. E agora você
já conhece a Guilda dos Justos. Eles alegam que são os verdadeiros
descendentes aqui no Ocidente.
Maureen olhava atentamente para o crânio, enquanto escutava
a explicação de Sinclair. Um pensamento súbito ocorreu-lhe:
— Mas é João! O crânio... aparece em toda a iconografia de Maria...
nos quadros! Ela é sempre mostrada com um crânio e ninguém jamais
foi capaz de me dar uma boa explicação para isso. Sempre há apenas uma
vaga referência à penitência. O crânio representa o arrependimento. Mas
por quê? Agora eu compreendo o motivo. Maria era pintada com o crânio
porque fazia penitência por João... literalmente com o crânio de João.
Sinclair meneou a cabeça de acordo.
— É isso mesmo. E o livro... ela é sempre mostrada com um livro.
— Pode ser apenas a escritura.
— Pode ser, mas não é. Maria é mostrada com um livro porque é o
seu próprio livro, a mensagem que ela deixou para que a encontrássemos.
E espero que nos ofereça a compreensão do mistério do filho mais velho e
seu destino, porque não sabemos o que aconteceu. Torço para que a
própria Madalena esclareça os fatos.
Eles caminharam em silêncio por um momento, ao crepúsculo, no
jardim, a primeira poeira de estrelas surgindo no céu. Maureen finalmente
comentou:
— Você disse que havia outros seguidores de João que não eram
fanáticos.
— É verdade. São milhões. Nós os chamamos de cristãos.
Maureen lançou-lhe um olhar surpreso. Sinclair acrescentou:
— Falo sério. Pense no seu país. Quantas igrejas se intitulam
batistas? Esses são cristãos que aceitaram a idéia de João como um
profeta. Alguns o chamam de O Precursor e consideram que foi ele
quem anunciou o advento de Jesus. Na Europa, há algumas famílias da
linhagem que se fundiram, misturando o sangue do Batista com o do
Nazareno. A mais famosa dessas famílias foi a dinastia Medici. Eram
integrados, celebrando tanto João quanto Jesus. E nosso Botticelli
também era um deles.
Maureen ficou surpresa.
— Botticelli descendia das duas linhagens?
— Isso mesmo. Quando entrarmos, dê outra olhada na Primavera
de Botticelli. Na extrema esquerda, verá a figura de Hermes, o
alquimista, erguendo o símbolo do caduceu. Suas mãos fazem o gesto de
“Lembre-se de João”, sobre o qual Tammy lhe falou. Ele está nos dizendo,
nessa alegoria à Maria Madalena e ao poder do renascimento, que
devemos também reconhecer João. A alquimia é uma forma de integração
e a integração não deixa margem para o fanatismo e a intolerância.
Maureen observou-o atentamente, uma sincera admiração por
aquele homem aflorando. Ele, que no início considerara um imenso
enigma. Sinclair era um místico e um poeta, um homem que procurava
as verdades espirituais. Mais do que isso, era um bom homem... afetuoso,
dedicado e, obviamente, leal. Ela o subestimara, o que se tornou ainda
mais evidente quando ele fez seu comentário final:
— Na minha opinião, uma atitude de perdão e tolerância é a base
da verdadeira fé. E nas últimas quarenta e oito horas passei a acreditar
nisso mais do que nunca.
Maureen sorriu, deu-lhe o braço e voltaram pelo jardim. Juntos.
Cidade do Vaticano, Roma
28 de junho de 2005
O cardeal DeCaro terminava um telefonema quando a porta de sua
sala foi aberta abruptamente. Sempre ficava espantado com o fato de o
bispo O'Connor ainda não ter compreendido como era precária sua
posição em Roma. O homem não tinha a menor idéia de sua situação.
DeCaro ainda não determinara se era pura ambição ou completa falta de
tato o que afligia O'Connor. Talvez fossem as duas coisas.
O cardeal escutou com paciência simulada e surpresa irônica,
enquanto o homem falava sobre a descoberta na França. Mas depois o
bispo mencionou algo que fez DeCaro se empertigar. Aquilo era
informação confidencial. Ninguém naquele nível deveria saber por
enquanto sobre os pergaminhos... muito menos sobre seu conteúdo.
— Quem é seu informante? — perguntou o cardeal, assumindo
um tom de indiferença.
O'Connor remexeu-se na cadeira. Ainda não estava preparado para
revelar sua fonte.
— Podemos confiar nele... e confiar muito.
— Lamento não poder considerar o assunto a sério se você reluta ou
é incapaz de me dar mais detalhes, Magnus. Deve compreender quanta
desinformação passa por aqui. Não podemos investigar tudo.
O bispo Magnus O'Connor tornou a mudar de posição na cadeira,
embaraçado. Não ousava revelar sua fonte, pelo menos ainda não... era o
único trunfo que lhe restava. Se entregasse a fonte, não tinha a menor
dúvida de que a procurariam diretamente. O que deixaria O'Connor sem
poder ou envolvimento naquela situação histórica tão importante. Além
disso, havia outros a que teria de se submeter, não apenas DeCaro e o
Conselho do Vaticano.
— Falarei com o informante para saber se posso revelar sua
identidade.
O cardeal DeCaro deu de ombros, o que deixou o bispo muito
irritado. A indiferença na recepção de uma notícia tão fantástica não era o
que ele queria ou esperava.
— Muito bem. Obrigado pela informação. Pode sair agora e voltar
para suas obrigações.
— Mas não quer saber o que exatamente descobriram, Sua Graça?
O cardeal DeCaro fitou o clérigo irlandês por cima dos óculos de
leitura.
— Fontes anônimas não me interessam. Boa-noite, senhor. Que
Deus o abençoe e acompanhe.
DeCaro virou as costas, pegou uma pilha de papel e passou a
examiná-la, como se o bispo lhe tivesse dito uma coisa corriqueira, algo
como o sol nascia pela manhã e se punha ao final da tarde. Onde estava a
surpresa? A preocupação? A gratidão?
Fervendo de indignação, o bispo O'Connor murmurou uma
resposta e deixou a sala. Não tinha mais o que fazer em Roma, pelo
menos por enquanto. Iria para a França. E mostraria a todos do que era
capaz.
Château des Pommes Bleues
28 de junho de 2005
Como prometera, Maureen encontrou-se com Tammy na sala de
comunicações depois do passeio pelo jardim com Sinclair. Primeiro,
passou pelo escritório para ver como andava Peter, que estava absorvido
na tradução do segundo livro. O primo levantou os olhos e soltou um
som ininteligível, ansioso por voltar ao trabalho. Maureen compreendeu
que não era um bom momento para interrompê-lo e foi procurar Tammy.
Havia um clima de exultação por todo o castelo, um burburinho de
história e excitamento. Maureen especulou o quanto os criados
saberiam, mas também presumiu que fossem todos leais, de absoluta
confiança. Roland e Sinclair estavam reunidos para discutir as medidas
de segurança até que o resto do evangelho de Maria estivesse traduzido e
tomassem uma decisão sobre o que fazer depois. Ninguém ainda falara
abertamente a respeito e Maureen sentia-se curiosa em relação ao que
Sinclair tencionava fazer... e quando.
— Entre logo! — exclamou Tammy, quando viu Maureen parada
na porta.
Maureen foi se sentar no sofá, ao lado de Tammy. Recostou a
cabeça, com um gemido.
— O que há de errado?
— Nada... e tudo ao mesmo tempo. Eu só queria saber de uma
coisa. Minha vida algum dia voltará a ser como antes?
Tammy respondeu com uma risada gutural:
— Não. Portanto é melhor você se acostumar com isso logo. —
Ela pegou a mão de Maureen e acrescentou, num tom mais
compreensivo: — Sei que a maior parte é novidade para você e que teve
muito para processar em pouco tempo. Só quero que você saiba que é
minha heroína, está bem? E Peter é meu herói, diga-se de passagem.
— Obrigada. — Maureen suspirou. — Mas acha mesmo que o
mundo está preparado para esse rompimento de seu sistema de
crença mais sagrado? Eu acho que não.
— Discordo — declarou Tammy, com sua convicção habitual. —
Creio que o momento nunca foi melhor. Estamos no século XXI. Não
queimamos mais as pessoas na fogueira por heresia.
— Tem razão. Apenas esmigalhamos seus crânios.
Maureen passou a mão atrás da cabeça para dar ênfase.
— Aceito o argumento. Sinto muito.
— Estou apenas sendo dramática. Já me sinto bem. — Maureen
gesticulou para a tela da televisão. — Em que está trabalhando agora?
Tammy tinha o controle remoto na mão. Apontou-o para a
televisão, enquanto continuava a falar:
— Lembra que estávamos olhando para retratos de pessoas da
linhagem? — Ela soltou o botão de pausa e imagens surgiram na tela.
— Rei Fernando da Espanha. Lucrécia Bórgia. Maria I, da Escócia. Bonnie
Prince Charlie. A imperatriz Maria Teresa, da Áustria, e sua filha mais
famosa, Maria Antonieta. Sir Isaac Newton.
Tammy parou de falar por um momento, enquanto surgiam na
tela as imagens de vários presidentes americanos.
— E é nesse ponto que chegamos aos americanos, a começar
por Thomas Jefferson. E vamos avançando até os tempos modernos.
Uma foto da reunião de uma grande família americana apareceu
na tela.
— Quem são eles?
— A reunião da família Stewart, em Cherry Hill, New Jersey. Tirei no
ano passado. Esta outra foto também. Pessoas que parecem comuns,
em lugares comuns, mas são todas da linhagem.
Maureen lembrou-se de uma coisa.
— Alguma vez esteve em McLean, na Virgínia?
Tammy ficou perplexa.
— Não. Por quê?
Maureen relatou as inesperadas experiências em McLean e a
adorável dona de livraria que conhecera ali.
— Seu nome era Rachel Martel e...
Tammy interrompeu-a:
— Martel? Você disse Martel?
Maureen confirmou com um movimento de cabeça, ao que Tammy
desatou a rir.
— Não é de admirar que ela tenha visões, Reenie. Martel é um
dos mais antigos nomes da linhagem. Carlos Martel foi o avô de
Carlos Magno. Se você procurar naquela parte da Virgínia, aposto que
vai encontrar uma grande concentração de famílias da linhagem. É bem
provável que tenham pedido asilo durante o Grande Terror... foi assim
que muitas famílias nobres francesas mudaram-se para os Estados
Unidos. A Pensilvânia também tem muitas.
Maureen riu.
— Então é por isso que há tantas visões ali. Terei de ligar para
Rachel quando voltar aos Estados Unidos e informá-la.
As duas tornaram a concentrar sua atenção na tela, onde
apareceu outra foto de reunião de família. Tammy explicou:
— Essa é a reunião da família St. Clair, em Baton Rouge, no verão
passado. A Louisiana tem a maior concentração de famílias da linhagem
por causa do legado francês ali. Você tem um conhecimento pessoal
disso. Está vendo esse homem aqui?
Tammy clicou no controle remoto, parando na imagem de um jovem
músico de rua, os cabelos compridos, tocando um saxofone no
Quarteirão Francês. Soltou o botão de pausa para permitir que a bela
música do sax se espalhasse pela sala, antes de apertar de novo.
— Seu nome é James St. Clair. Desabrigado. Sobrevive à custa
de expedientes ilícitos. Mas toca um sax que deixa a gente com vontade
de chorar. Sentei-me na esquina e conversei com ele durante três horas.
Um homem bonito e inteligente.
— Todas essas pessoas sabem que são da linhagem?
— Claro que não. Essa é a beleza de tudo e o ponto final em meu
filme. Em dois mil anos de história e evolução, há provavelmente cerca de
um milhão de pessoas no mundo com o sangue de Jesus Cristo nas
veias.
Talvez mais. E não há nada de elitista ou secreto nisso. Pode ser o
cara que põe suas compras em sacos no supermercado ou o caixa do
banco. Ou o desabrigado que parte seu coração cada vez que pega um
saxofone.
Peter trabalhava incessantemente, mas seu perfeccionismo
prevaleceu e mais dois dias passaram antes que estivesse pronto para
partilhar a tradução do último pergaminho. O Livro do Tempo das Trevas.
Maureen adormecera no sofá na tarde do segundo dia, satisfeita
por se encontrar perto do evangelho de Maria, enquanto era traduzido.
Foi despertada pelo som dos soluços do primo.
Levantou os olhos e viu Peter, com a cabeça nas mãos, entregando-
se à exaustão e à emoção. Maureen não foi capaz de determinar, no
entanto, qual era a emoção. Seria de pesar ou alegria? Exultação ou
devastação? Maureen olhou para Sinclair, sentado no outro lado da mesa,
na frente de Peter. Ele sacudiu a cabeça para Maureen, também
aturdido, sem entender o que desencadeara aquela reação tão intensa de
Peter. Ela aproximou-se do primo e pôs a mão em seu ombro,
gentilmente.
— O que houve, Pete?
Peter removeu as lágrimas dos olhos e fitou-a.
— Prefiro deixar que ela conte — sussurrou ele, apontando para a
tradução à sua frente. — Pode chamar os outros, por favor?
Tammy e Roland foram imediatamente para o escritório de Sinclair.
Fora fácil encontrá-los, pois agora os dois estavam sempre juntos,
abertamente. E também não queriam ficar muito longe dos
pergaminhos, com medo de perder alguma coisa. Ambos notaram a
expressão febril de Peter quando entraram na sala.
Roland chamou uma criada e pediu chá para todos. Depois que ela
se retirou e a porta foi fechada, Peter começou a falar.
— Ela dá o nome de O Livro do Tempo das Trevas. Relata a última
semana na vida de Cristo.
Sinclair já se preparava para fazer uma pergunta quando Peter o
deteve:
— Ela conta a história muito melhor do que eu.
E ele passou a ler.
... E importante saber quem Judas Iscariotes foi para compreender sua
relação comigo, com Easa, e com os ensinamentos d'O Caminho. Como
Simão, ele era um zelote, fervoroso em seu desejo de expulsar os romanos de
nossas terras. Já matara por essa causa e se sentia mais do que disposto a
matar de novo. Até que Simão levou-o a Easa.
Judas adotou O Caminho, mas sua conversão não foi rápida nem
fácil. Judas era de uma família de fariseus e tinha uma perspectiva estrita
da lei. Seguira João quando era jovem e era desconfiado por tudo o que
ouvira a meu respeito. Com o passar do tempo, acabamos nos tornando
amigos, irmão e irmã n'0 Caminho... por causa de Easa, que era o grande
unificador. E, no entanto, havia ocasiões em que as antigas convicções de
Judas afloravam, o que causava tensão entre os seguidores. Era um líder
natural e apregoava sua posição de autoridade. Easa admirava isso, o que
não acontecia com outros seguidores. Mas eu entendia Judas. Como eu,
seu destino era ser incompreendido.
Judas achava que deveríamos aproveitar todas as oportunidades
para expandir o número de seguidores e insistia que poderíamos conseguir
isso destinando donativos aos pobres. Easa designou-o tesoureiro. Era sua
responsabilidade levantar dinheiro para distribuição entre os necessitados.
Era um homem honesto e consciencioso em suas obrigações, mas também
um homem que não fazia concessões.
A maior discussão ocorreu na noite em que ungi Easa, em Betânia, na
casa de Simão. Peguei um vaso de alabastro lacrado, que nos fora
enviado de Alexandria. Estava cheio de uma mistura dispendiosa e
aromática, nardo e mirra. Rompi o lacre e ungi a cabeça e os pés de Easa
com o bálsamo, proclamando-o nosso Messias, de acordo com as tradições
de nosso povo e com o Cântico dos Cânticos, que nos foi dado por Salomão.
Foi um momento espiritual para todos nós, repleto de esperança e
simbolismo.
Mas Judas não aprovou. Ficou furioso e me censurou na frente de
todos. Ele disse: “Esse bálsamo era valioso. Lacrado, teria alcançado um
bom preço, um dinheiro que poderíamos acrescentar às nossas coletas para
os pobres.”
Não precisei defender minhas ações, porque Easa fez isso por
mim. Censurou Judas, dizendo: “Vocês sempre terão os pobres, mas nem
sempre me terão. E deixem-me dizer mais uma coisa. Onde quer que os
feitos de minha vida sejam pregados, através do mundo, o nome dessa
mulher será pronunciado junto com o meu. E que isso seja um memorial
para ela e para as boas obras que realizou por nós.”
Foi um momento que demonstrou que Judas não compreendia
plenamente os rituais d'O Caminho. Deixou alguns dos eleitos
perturbados e houve quem nunca mais sentisse total confiança em
Judas depois disso.
Como eu disse, não guardo ressentimento contra ele, por esse ou
qualquer outro ato. Judas não podia superar quem era em seu coração e
sempre foi autêntico nesse ponto.
Ainda lamento sua perda.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS
CAPITULO DEZENOVE
Jerusalém
33 AD
Fora um dia memorável para os nazarenos. A entrada de Easa em
Jerusalém recebera o apoio popular que haviam previsto. Na verdade, até
ultrapassara as expectativas. Quando os seguidores foram chamados
para aprender a Oração do Caminho — Easa chamava-a agora de Oração
do Senhor ou Pai-Nosso —, a gruta no monte das Oliveiras provou ser
muito pequena. Os seguidores que acompanhavam a pregação de Easa
espalharam-se pelas encostas, esperando sua vez de chegar perto do
ungido, seu Messias, para que ele pudesse lhes ensinar também a oração.
Easa permaneceu ali até ter certeza de que cada homem, mulher e
criança conhecia e compreendia a oração, gravada para sempre em seu
coração.
Na descida do monte, a caminho da cidade, os nazarenos foram
parados por uma dupla de centuriões romanos. Eram guardas na
entrada leste da cidade, o portão mais próximo da residência de
Pilatos, na Fortaleza Antonia. Interrogaram o grupo num aramaico
precário, querendo saber para onde ia. Easa adiantou-se e surpreendeu-
os, ao falar num grego perfeito. Apontou para um dos centuriões, com a
mão toda enfaixada, e perguntou:
— O que aconteceu?
O centurião não esperava por uma pergunta, mas não hesitou em
responder:
— Caí nas rochas quando estava na vigia noturna.
— Vinho demais — gracejou seu parceiro, um homem que
parecia detestável, com uma cicatriz na face esquerda.
O centurião machucado lançou-lhe um olhar irritado:
— Não dêem atenção ao que Longinus diz. Perdi o equilíbrio.
Easa limitou-se a comentar:
— É doloroso para você.
O centurião balançou a cabeça para confirmar que doía muito.
— Devo ter quebrado, mas ainda não tive tempo para procurar
alguém que me cure. O serviço dobrou com a multidão que veio a
Jerusalém para a Páscoa.
— Posso ver? — perguntou Easa.
O homem estendeu a mão enfaixada, que pendia do pulso num
ângulo insólito. Easa pôs uma das mãos por baixo e a outra por cima,
gentilmente. Fechou os olhos, fez uma oração silenciosa, enquanto
apertava a mão do centurião, com todo o cuidado, mas firme. Os olhos
do romano ferido ficaram arregalados, enquanto os nazarenos
observavam a cura que estava ocorrendo. Até mesmo o centurião com a
cicatriz no rosto parecia extasiado. Easa abriu os olhos e fitou o romano:
— Você deve se sentir melhor agora.
Quando ele soltou a mão, ficou patente para todos que estava agora
curada. O romano gaguejou, incapaz de falar. Removeu as ataduras e
flexionou os dedos. Os olhos azuis ficaram turvos com as lágrimas não
derramadas, enquanto tornava a fitar Easa. Não ousou falar, com medo
de perder sua posição entre os outros soldados. Easa percebeu isso e
salvou-o de qualquer embaraço.
— O Reino de Deus é seu, se quiser alcançá-lo. Dê a boa nova
aos outros.
E ele seguiu em seu caminho, em torno das muralhas da cidade,
acompanhado por Maria, as crianças e os eleitos.
Maria sentia-se exausta, mas não se queixava. O peso da criança
em seu ventre retardava-lhe os movimentos, mas experimentava tanta
alegria que se recusava a fazer qualquer queixa. Estavam na casa de José,
tio de Easa, um homem rico e influente, com terras nos arredores da
cidade. Felizmente o pequeno João e Tamar dormiam. O dia também
deixara-os esgotados.
Maria tinha tempo de refletir sobre a capacidade de curar de Easa,
enquanto sentava à sombra fresca do jardim de José, sozinha. Easa, o tio
e alguns seguidores planejavam visitar o Templo no dia seguinte. Maria
optara por deixá-los conversando a respeito, enquanto levava as crianças
para a cama e tirava um momento para descanso e oração. As outras
Marias e as muitas mulheres que seguiam Easa haviam se reunido
naquela noite para uma cerimônia de oração. Mas Maria Madalena
preferira não comparecer. A solidão era um privilégio cada vez mais raro e
tinha de aproveitar sempre que podia.
Mas ao recordar a cura do soldado romano, ela se descobriu
apreensiva e desconcertada, sem entender o motivo. Não sabia por que a
deixava nervosa. O centurião era bastante decente para um soldado
romano, quase simpático. E ela também pudera sentir a aflição do
homem, como Easa, quando ele ficara quase às lágrimas pelo milagre da
cura. O outro soldado era muito diferente, um homem rude e agressivo,
como todos esperavam dos mercenários que haviam derramado tanto
sangue judeu. Aquele homem com a cicatriz no rosto, chamado
Longinus, fora surpreendido pela cura, mas não seria afetado
positivamente. Era muito calejado pelas batalhas para permitir que isso
acontecesse.
O homem de olhos azuis, entretanto, não ficara apenas curado,
mas também mudara. Ao recordar a ocasião, Maria sentiu uma carga
elétrica percorrer-lhe o corpo, a estranha sensação à margem da profecia
que sempre a advertia quando estava prestes a vislumbrar o futuro. Ela
fechou os olhos e tentou captar a imagem, mas nada encontrou. Sentia-
se muito cansada ou talvez simplesmente não estivesse fadada a ver
aquilo.
O que poderia ser? A reputação de Easa como grande curador
espalhara-se por Israel durante os últimos três anos. Ele era famoso e
respeitado por isso entre o povo. E, ultimamente, parecia não exigir
qualquer esforço. O poder curativo de Deus manifestava-se por
intermédio de Easa com tanta facilidade que era uma alegria contemplar.
Easa não curara o próprio irmão de Maria depois que os médicos de
Betânia declararam que ele estava morto? No ano anterior, Maria e Easa
haviam voltado às pressas da Galiléia, ao receberem o aviso de Marta de
que Lázaro estava muito doente. A viagem, contudo, demorara mais
tempo do que o previsto. Ao chegarem, Lázaro já exalava o mau cheiro da
morte. Era tarde demais, todos diziam. Os poderes de cura de Easa eram
espantosos, mas ele nunca levantara ninguém dos mortos. Era pedir
demais a qualquer homem, Messias ou não.
Mas Easa entrara com Maria na casa de Marta e dissera às duas
que mantivessem sua fé, enquanto oravam com ele. Depois, entrara
sozinho no quarto de Lázaro e começara a orar sobre o morto.
Easa saíra do quarto e fitara os rostos pálidos de Maria e Marta.
Sorrira tranqüilizador para as duas, antes de voltar ao quarto.
— Lázaro, meu querido irmão, levante-se da cama e cumprimente
sua esposa e sua irmã, que oraram com tanto fervor para você voltar para
nós.
Marta e Maria observaram atônitas Lázaro passar pela porta.
Estava pálido e fraco, mas vivo.
Houve uma celebração por toda a Betânia quando se espalhou a
notícia de que Lázaro ressuscitara dos mortos. As fileiras dos
nazarenos aumentavam à medida que as boas obras de Easa se
tornavam lendárias por toda a terra. Ele continuara em seu caminho de
cura, parando no rio Jordão, perto de Jericó, para batizar novos
seguidores, da maneira como João ensinara. As multidões reunidas para
batismo eram imensas. Com isso, os nazarenos permaneceram à
margem do rio por mais tempo do que tencionavam.
O fato de Easa ter assumido o manto de João era popular entre
muitos moderados, que oravam para que ele fosse mesmo o Messias. O
próprio Herodes Antipas, o tetrarca da Galiléia, proclamara que via em
Easa o espírito do Batista redivivo. Mas nem todos estavam satisfeitos
com esses acontecimentos. O apoio de Herodes a Easa não foi bem
recebido pelos seguidores mais devotados de João nem pelos ascetas
essênios mais radicais. Condenaram Easa por usurpar a posição de João.
A ira mais intensa, contudo, não era contra o nazareno, mas sim contra a
mulher com quem ele se casara.
No dia seguinte, no rio, Maria Madalena caíra no chão de repente,
as mãos comprimindo a barriga. Começara a passar mal e a vomitar
violentamente, enquanto os seguidores se reuniam ao seu redor. Easa
correra para o seu lado assim que soube que estava doente.
A Grande Maria estava presente na ocasião e cuidara de Maria
Madalena. Examinara a nora com todo o cuidado, avaliando seus
sintomas. Virara-se para o filho e dissera, solene:
— Já vi isso acontecer antes. Não é uma doença natural.
Easa balançara a cabeça compreendendo:
— Veneno.
A Grande Maria confirmara a avaliação do filho e acrescentara:
— E não é um veneno qualquer. Reparou como as pernas
ficaram paralisadas? Ela não pode movimentar a parte inferior do corpo
e tende a expelir as entranhas com o vômito. É um veneno oriental
conhecido como Veneno dos Sete Demônios. Tem esse nome por causa
dos sete ingredientes mortais que contém. Mata, de uma forma lenta e
dolorosa. Não há antídoto conhecido. Terá de trabalhar com Deus para
salvar sua esposa, meu filho.
A Grande Maria esvaziara a área ao redor, a fim de criar a paz e a
privacidade necessárias para Easa trabalhar na cura da esposa. Easa
segurara as mãos de Maria e rezara, até sentir que o veneno evaporava do
corpo e que a cor da saúde voltava. Enquanto Easa desempenhava a
obra de Deus, seus discípulos se empenharam em descobrir quem
envenenara Maria Madalena.
O culpado nunca foi descoberto. Deduziram que um fanático
seguidor de João chegara ao Jordão disfarçado em convertido e dera o
veneno para Maria, sempre confiante. Desse dia em diante, Maria
Madalena tomara o cuidado de não beber ou comer em público, a menos
que soubesse exatamente de onde vinha a comida. E passou o resto de
sua vida memorável sob ataque daqueles que a desprezavam ou
invejavam.
A cura de Maria Madalena do Veneno dos Sete Demônios, efetuada
por Easa, espalhou-se para se tornar uma das grandes lendas do
ministério do nazareno. Como tantas coisas na história de Maria
Madalena, esse evento também seria distorcido e usado contra ela.
As recordações de Maria foram interrompidas por um grito no pátio.
Era Judas e procurava desesperado por Easa. Maria foi ao seu encontro.
— O que aconteceu?
— Minha sobrinha, a filha de Jairo. — Judas ofegava. Correra para
chamar Easa. — Talvez seja tarde demais, mas preciso de sua ajuda.
Onde ele está?
Maria levou-o ao local na casa de José em que os homens estavam
reunidos. Easa percebeu a agitação no rosto de Judas. Levantou-se no
mesmo instante para cumprimentá-lo. Judas explicou que a sobrinha
fora acometida por uma febre que vinha afligindo as crianças de
Jerusalém e arredores. Muitas haviam morrido. Quando Judas soubera e
procurara Jairo, os médicos já diziam que era tarde demais. Por causa de
sua posição no Templo e acesso a Pôncio Pilatos, Jairo podia contar com os
melhores médicos. Judas sabia que a menina provavelmente já deveria ter
morrido, àquela altura, se os médicos haviam desistido de salvá-la. Mesmo
assim, tinha de tentar.
Judas tinha mais ternura em seu coração do que permitia que os
outros vissem. E como um homem que rejeitara o curso da vida familiar
para servir como um revolucionário, ele passara a adorar as sobrinhas e
sobrinhos. Ismédia, de doze anos, a criança que estava doente, era sua
predileta.
Easa percebeu o medo e a angústia de Judas pela possibilidade de
perder a sobrinha. Olhou para Maria Madalena:
— Pode viajar esta noite?
Ela concordou com a cabeça. Claro que iria. Haveria uma mãe
desesperada naquela casa. Maria teria de confortá-la, por todos os meios
possíveis.
— Então vamos partir agora — declarou Easa.
Ele nunca hesitava, como Maria já sabia. Não importava qual fosse a
hora, não importava quão cansado pudesse estar se sentindo. Nunca se
recusava a uma pessoa que precisava de sua ajuda. Nunca mesmo.
Judas seguiu atrás deles, lançando um olhar de gratidão a Maria.
O que a deixou animada. Talvez Judas se aprofunde n'O Caminho, no fundo de
seu coração, depois desta noite, pensou ela com uma grande esperança em
seu espírito.
A posição de Jairo na comunidade era excepcional. Era um fariseu e
um líder no Templo, mas também o enviado especial junto ao
procurador. Nessa função, reunia-se com Pôncio Pilatos todas as
semanas, para tratar dos problemas de Roma e do relacionamento pacífico
com o Templo e os judeus de Jerusalém.
Jairo desenvolvera um vínculo especial com Pilatos. Os dois
conversavam sobre política diante de um tabuleiro de xadrez, durante
horas a fio. Raquel, a esposa de Jairo, acompanhava-o nessas visitas à
Fortaleza Antonia. Passava horas com a esposa de Pilatos, Cláudia Prócula.
A amizade entre as duas era cada vez maior, apesar das óbvias diferenças.
Cláudia era uma romana de imensa envergadura. Não apenas era a esposa
do procurador da Palestina, mas também a neta de um césar e a filha
adotiva predileta de outro. Em contraste, Raquel era uma judia de uma
das famílias mais nobres de Israel. Mas essas duas mulheres de origens
tão diversas encontravam-se para partilhar o que tinham em comum,
como esposas de homens poderosos e, acima de tudo, como mães.
A filha de Raquel, Ismédia, muitas vezes acompanhava a mãe
nessas visitas. A menina adorava brincar nas salas elegantes. À medida
que foi se tornando mais velha, Cláudia permitiu-lhe o acesso a seus
cosméticos e loções. Aos doze anos, Ismédia estava a caminho de se tornar
Ismédia.
Cláudia sentia um afeto especial por Ismédia, que costumava
brincar com seu próprio filho, Pilo. Com sete anos de idade, o filho de
Pôncio Pilatos e Cláudia Prócula era um mistério para a maioria das
pessoas em Jerusalém. Eram bem poucos os que sequer sabiam que
Pilatos tinha um filho. Pilo tinha uma deformidade na perna esquerda
que limitava seus movimentos, deixando-o confinado na fortaleza. Pilatos
não revelava a existência do filho para o mundo porque sabia que o
menino jamais cresceria para se tornar um soldado, nunca seguiria os
passos do pai. Uma criança nascida em desprazer tão óbvio dos deuses
era um péssimo presságio para um romano.
Cláudia, porém, via um lado de Pilatos que os outros não
conheciam. Sabia como ele chorava pelo menino na calada da noite,
quando julgava que ninguém podia vê-lo ou ouvi-lo. Pilatos gastara
metade de sua fortuna em médicos caríssimos da Grécia, em curandeiros
de muitos outros lugares. Cada uma dessas sessões terminara com Pilo se
desmanchando em lágrimas de dor e frustração. Cláudia abraçava o
menino enquanto ele soluçava até dormir. O pai saía furioso da fortaleza e
permanecia por longas horas à distância de ambos cada vez que isso
acontecia.
A jovem Ismédia tinha infinita paciência com o menino. Sentava-se
com ele contando histórias e cantando as mais diversas canções. Cláudia
sorria para si mesma ao observá-los pelo canto dos olhos, enquanto
trabalhava em bordados com Raquel. O que Pilatos diria se ouvisse o filho
cantando em hebraico? Mas Pilatos quase nunca entrava nos aposentos da
esposa e por isso ela sabia que nunca teria de se preocupar com essa
possibilidade.
Foi numa dessas visitas que Cláudia Prócula ouviu falar pela
primeira vez de Easa, o nazareno. Raquel mostrava-se fascinada pelo
homem e seus feitos. Regalava Cláudia com as histórias das curas e
milagres de Easa. O marido de Raquel, Jairo, não permitia que ela falasse
do nazareno, que era considerado um adversário de Jônatas Anás e
Caifás. Esses homens consideravam Easa um renegado, alguém
desrespeitoso com a autoridade do Templo. Jairo não podia se permitir
qualquer relação com esse homem.
E, no entanto, o primo de Jairo, Judas, era agora um dos
seguidores eleitos de Easa. Isso era às vezes embaraçoso para Jairo,
mas ele conseguia conciliar muito bem a situação. E Raquel exultava
sempre que ouvia mais relatos sobre os milagres do nazareno.
— Você deveria levar Pilo para ver esse Easa — sugerira Raquel
um dia.
Os olhos de Cláudia tornaram-se turvos de pesar.
— Como poderia? Meu marido nunca nos permitiria sermos vistos
na companhia de um pregador nazareno itinerante. Seria inadmissível.
Raquel não tornara a mencionar o assunto, por deferência à
amiga. Cláudia, contudo, nunca parara de pensar a respeito. Ismédia
contraíra a febre terrível que a fazia definhar. Poucos dias depois, Pilo
também ficara doente.
Já havia uma multidão enlutada em torno da casa de Jairo.
Famílias de agregados do Templo e muitos cidadãos de Jerusalém,
beneficiados pela generosidade de Jairo e Raquel, compareceram para
expressar seu apoio. Ismédia, a filha amada, havia morrido.
Judas abriu caminho através da multidão, avançando apressado
para a casa do primo. Easa e Maria seguiam logo atrás. Easa segurava
firme a mão de Maria, a fim de não perder a esposa tão pequena no
meio da multidão. André e Pedro vinham em seguida, como proteção
extra. Era óbvio para os nazarenos que a criança sucumbira à febre,
mas isso não os desanimou. Entraram na casa.
Na Fortaleza Antonia, Pôncio Pilatos e Cláudia Prócula ouviram a
sentença de morte do filho único. Os médicos haviam desistido. Não
havia mais nada que pudessem fazer pela criança e, no final das contas,
ele já não nascera fraco? Pôncio Pilatos deixou o quarto sem dizer nada
e passou o resto da noite trancado, sozinho, lendo filósofos estóicos.
Encontrara um meio de aceitar a perda, ao melhor estilo romano.
Cláudia ficou sozinha com Pilo, que definhava cada vez mais.
Mantivera-o na cama e chorava baixinho porque seu filho tão doce e
corajoso estava morrendo. Foi assim que o escravo grego encontrou sua
ama ao entrar no aposento.
O escravo adiantou-se
— Minha ama, trago notícias da casa de Raquel e Jairo. São de
grande tristeza, mas talvez haja também uma esperança. A adorável
Ismédia acaba de morrer.
— Não!
Cláudia ficou angustiada. Era demais para suportar. Que
justiça podia haver quando uma jovem tão adorável quanto a filha de
Rachel deixava este mundo na mesma noite em que o seu amado filho
fora desenganado?
— Espere, minha ama, pois há mais. Raquel me pediu para avisar
que Easa, o curador nazareno, estará em sua casa esta noite. Mesmo que
seja tarde demais para Ismédia, pode não ser para Pilo.
Cláudia tinha pouco tempo para considerar as conseqüências.
Era evidente que Pilo se encontrava à beira da morte.
— Vamos agasalhá-lo e levá-lo para casa de Raquel. Providencie o
transporte. E depressa, por favor.
O grego, que amava muito o menino, providenciou tudo. Carregou o
menino até o veículo, acompanhado por Cláudia. Ela não deixou qualquer
aviso para Pilatos. Achava que o marido nem notaria sua ausência. Além
do mais, era perfeitamente capaz de tomar sozinha uma decisão tão
importante. Afinal, não era a neta de um césar?
Pilo resistiu. Ainda respirava quando o grego e a mãe o levaram.
Cláudia tinha o rosto coberto por véus, pois não queria parecer
ostensivamente imperial ao chegar à casa de uma família judia enlutada.
O escravo grego conduziu o veículo tão depressa quanto podia através da
multidão, até que não dava mais para continuar. Então saltou, ajudou
sua ama a descer e seguiram pelo resto do caminho a pé. Não foi fácil.
Espalhara-se a notícia de que o milagroso Messias da Galiléia estava a
caminho e havia inúmeros curiosos ocupando as ruas próximas, além
dos fiéis. Mas o pequeno grupo que saíra da Fortaleza Antonia era
determinado e conseguiu alcançar a porta da casa.
— Gostaríamos de falar com Raquel, a esposa de Jairo — disse o
escravo grego. — Por favor, avise que Cláudia, sua amiga querida, está
aqui.
A porta foi aberta, mas eles não puderam passar no mesmo
instante, pois Judas montava guarda no lado de dentro. Disse ao guarda
no lado de fora que nenhum observador poderia entrar até que Easa
fosse embora. Judas não queria testemunhas, para a proteção de Easa.
Jairo era um fariseu e havia outros membros do Templo rondando a casa,
esperando para ver o que aconteceria... homens que não eram tão
favoráveis à missão do nazareno. Se Easa não conseguisse ressuscitar
Ismédia, seria condenado como um impostor. Se fosse bem-sucedido em
seus esforços, poderiam alegar feitiçaria ou algum tipo de embuste. A
acusação seria terrível não apenas para Easa, mas também para Jairo.
Afinal, se fosse feita por um fariseu que testemunhara a cena, poderia
acarretar a pena de morte. O curso de ação mais seguro era manter toda
e qualquer testemunha fora da casa, onde só ficariam as pessoas mais
próximas da família.
Cláudia Prócula ouviu apenas a instrução de Judas de que não
eram permitidos visitantes. Mas quando a porta foi aberta, ela teve um
vislumbre da atividade no interior da casa. Viu Ismédia no leito de morte,
branca e sem vida, sua pira fúnebre ao lado, através da densa cortina de
incenso. Raquel se sentava ao seu lado, segurando a mão da filha, a
cabeça baixa, em rendição à dor angustiante. Uma mulher com o véu
vermelho de sacerdotisa nazarena estava de pé ao lado de Raquel, uma
torre de força e compaixão no cenário trágico. Jairo, um homem que
Cláudia conhecia como orgulhoso e forte, estava arriado no chão, inerte,
aos pés de Easa, o Nazareno. E suplicava a Easa que curasse sua filha.
Mais tarde, depois que tudo naquela noite assentara, Cláudia falou
sobre sua primeira visão de Easa:
— Nunca me senti assim antes. Apenas vê-lo me proporcionou um
sentimento de calma, como se estivesse na presença de amor e luz.
Mesmo naquele breve instante, compreendi o que ele era... que era mais
do que humano, que estávamos todos abençoados pela eternidade por
nos encontrarmos em sua presença, mesmo que apenas por alguns
segundos.
A porta não foi logo fechada, como Cláudia esperava. Judas
amparava o primo Jairo, dominado pelo desespero, enquanto o guarda do
lado de fora se mantinha fascinado demais pelo que acontecia lá dentro
para lembrar que devia fechá-la. Cláudia observou quando Easa deslocou-
se para o lado da cama. Olhou para a mulher de vermelho, que Cláudia
saberia mais tarde que era sua esposa, Maria Madalena, e pôs as mãos
nos ombros de Raquel. Sussurrou em seu ouvido alguma coisa que
ninguém mais pôde ouvir, mas Raquel ergueu a cabeça pela primeira vez.
Depois, Easa inclinou-se para a criança e beijou sua testa. Pegou a mão de
Ismédia entre as suas e fechou os olhos para orar. Depois de um momento
longo e silencioso, em que ninguém ousava sequer respirar, Easa abriu os
olhos e disse:
— Levante, criança.
Cláudia não recordou depois tudo o que aconteceu em seguida. Foi
como um sonho estranho, que nunca é lembrado duas vezes da mesma
maneira. A criança mexeu-se lentamente, a princípio, depois sentou-se
na cama e chamou a mãe. Raquel e Jairo gritaram, ao se adiantar para
abraçar a filha. Em determinado momento, Cláudia caíra de joelhos,
enquanto a multidão avançava. Houve aclamações entre os seguidores
do nazareno e amigos da família, celebrando o milagre da ressurreição de
Ismédia. Mas também houve vaias e assovios, com fariseus e adversários
do nazareno gritando que era uma blasfêmia, alegando ser tudo aquilo
magia.
Cláudia entrou em pânico. Com o avanço da multidão, ela e o grego
foram afastados da porta. Pilo estava desesperadamente doente e ela
sabia que o filho poderia morrer ali mesmo, na frente da casa de Jairo.
Fora arriscado, até mesmo cruel, trazer o menino para aquele lugar,
quando ele poderia exalar o último suspiro no conforto de sua cama. E,
agora, tudo parecia inútil. O nazareno estava indo embora, cercado por
seus seguidores, e Cláudia não conseguiria alcançá-lo.
Toda a esperança já se esvaía de Cláudia quando viu Maria Madalena
parar no meio da multidão. Alguma coisa aconteceu entre as duas nesse
instante, a comunicação mística entre mães em momentos difíceis.
Seus olhos se encontraram por alguns segundos. Depois, Maria olhou
para a criança nos braços do escravo grego. Sem dizer nada, Maria
pôs a mão no ombro de Easa. Ele parou, virando-se para ver o que
Maria queria. Fitou Cláudia e sorriu para ela, uma expressão de pura
esperança e luz. Cláudia nunca foi capaz de dizer quanto tempo isso
durou, já que sua atenção foi logo desviada pelos gritos do filho.
— Mamãe! Mamãe! — Pilo debatia-se nos braços do grego. — Ponha-
me no chão!
Cláudia podia ver que a cor voltava ao rosto de Pilo. Ele parecia
saudável e forte outra vez. Em menos de um instante, o filho agonizante
de Pilatos e Cláudia recuperara por completo a saúde. E quando o
menino ficou de pé no chão, tornou-se patente para Cláudia e o grego
que Pilo não tinha mais a perna deformada. Ele se encaminhou para a
mãe, em passos firmes.
— Olhe só, mamãe! Posso andar!
Cláudia abraçou seu lindo filho, enquanto observava os vultos do
curador nazareno e da pequena esposa, se afastando e desaparecendo no
meio da multidão delirante de Jerusalém.
— Obrigada — sussurrou ela.
E por mais estranho que pudesse parecer, embora os dois
estivessem agora tão longe que não podia mais vê-los, Cláudia teve certeza
de que a ouviram.
A cura de Pilo foi uma espada de dois gumes para Pôncio Pilatos.
Sentia-se maravilhado porque o filho estava completamente curado. Era
agora saudável de uma maneira que ele e a mulher jamais haviam julgado
que fosse possível. Era agora um herdeiro apropriado de um legado
romano, um menino que poderia se tornar um homem e um soldado.
Mas o método da cura era perturbador. Pior ainda, Cláudia e Pilo
mostravam-se agora obcecados pelo nazareno, que se tornava um
problema cada vez maior para as autoridades romanas e os sacerdotes
do Templo.
Pilatos reunira-se com Caifás e Anás, a pedido deles, no início do
dia, para discutir os acontecimentos no portão leste da cidade. O
nazareno chegara montado num burro, do modo previsto por um dos
profetas judeus. Isso desagradara os sacerdotes, que achavam que a
atitude era uma declaração de proporções messiânicas. Embora as brigas
religiosas dos judeus não fossem um problema imediato para Pilatos,
corria o rumor de que aquele nazareno vinha se intitulando Rei dos
Judeus, o que era considerado traição contra o césar. A medida que a
Páscoa se aproximava, Pilatos sentia a pressão para agir contra Easa, se
ele efetuasse mais algum ato controvertido em Jerusalém.
Para complicar a situação, Herodes, o tetrarca da Galiléia,
manifestara-se contra Easa, numa mensagem particular que mandara
para Pilatos: “Tenho informações de que esse homem quer se tornar rei
de todos os judeus. Ele se tornou perigoso para mim, para você e para
Roma.”
Esses eram os problemas logísticos para Pilatos. Suas preocupações
filosóficas eram muito diferentes.
Que força aquele nazareno controlava ou canalizava que lhe
permitia fazer coisas como ressuscitar uma criança? Se não fosse por
Pilo, Pilatos teria considerado que os milagres de Easa não passavam
de embuste e aceitaria as acusações de blasfêmia feitas pelos fariseus.
Mas Pilatos sabia melhor do que ninguém que a doença e a deformidade
de Pilo eram muito reais. Ou pelo menos haviam sido. Porque agora não
existiam mais.
Havia alguma coisa que tinha de ser explicada. A razão romana
exigia uma resposta, uma compreensão do que ocorrera. E Pôncio Pilatos
sentia-se muito frustrado porque não conseguia encontrar nada.
Sua esposa, entretanto, não precisava ser convencida de coisa
alguma. Testemunhara dois grandes milagres, exultara na presença e
glória do nazareno e seu Deus. Ficara ao mesmo tempo insatisfeita e
desapontada quando o marido recusara-se a permitir que comparecesse
a qualquer das pregações de Easa em Jerusalém. Gostaria de levar o filho,
permitir que Pilo conhecesse aquele espantoso nazareno, que era mais
do que um homem. Mas Pilatos proibira, veementemente.
O procurador romano era um homem complexo, cheio de dúvidas,
medo e ambição. A tragédia de Pôncio Pilatos viria quando todas essas
coisas superassem o que outrora tivera de amor, força ou gratidão.
Já era bem tarde quando os nazarenos chegaram à casa de José.
Easa, como sempre, estava bem desperto e pronto para mais uma
reunião com seus seguidores, antes de se retirar. Precisavam avaliar as
opções em Jerusalém no dia seguinte. Maria permaneceu na sala para
ouvir a conversa, a fim de obter uma indicação do que o dia seguinte lhes
reservaria. O incidente na casa de Jairo deixava claro que o povo de
Jerusalém estava dividido na questão de Easa como o Messias. Havia
mais partidários do que detratores. Todos, porém, desconfiavam de que
os detratores eram homens poderosos, ligados ao Templo.
Judas falou para os homens reunidos. Parecia esgotado e exausto,
mas a exultação do que testemunhara no leito de morte de Ismédia
mantinha-o desperto.
— Jairo me chamou de lado quando estávamos de partida. Sente-
se mais propenso a nos apoiar, agora que constatou que Easa é o
verdadeiro Messias. Ele advertiu que os conselhos de fariseus e saduceus
ficaram perturbados pelas multidões de partidários nazarenos que
entraram na cidade. Somos mais fortes em número do que eles jamais
imaginaram. Sentem medo de nós e podem fazer alguma coisa, se
acharem que representamos uma ameaça, para eles ou para a paz do
Templo durante a Páscoa.
Pedro cuspiu no chão, indignado:
— Todos nós sabemos qual é o motivo. A Páscoa é a época mais
lucrativa do ano no Templo, a ocasião em que se fazem mais sacrifícios,
em que entra mais dinheiro.
— O tempo da colheita para os mercadores e agiotas —
acrescentou seu irmão, André.
— E, entre todos, os que mais lucram são Jônatas Anás e seu
genro, Caifás — concordou Judas. — Não será surpresa se
constatarmos que os dois se encontram à frente da campanha para
nos desacreditar. Precisamos tomar todo o cuidado ou eles vão
pressionar Pilatos a ordenar a prisão de Easa.
Easa ergueu a mão quando os discípulos começaram a falar ao
mesmo tempo, em sua agitação.
— Paz, meus irmãos. Iremos ao Templo amanhã e mostraremos a
nossos irmãos Anás e Caifás que não temos a intenção de desafiá-los.
Podemos coexistir pacificamente e não precisamos excluir uns aos
outros. Participaremos como celebrantes na semana sagrada, junto com
nossos irmãos nazarenos. Eles não podem nos negar a admissão e talvez
possamos decidir uma trégua.
Judas hesitava.
— Não creio que consiga arrancar qualquer concessão de Anás.
Ele nos despreza e a tudo que ensinamos. A última coisa que Anás e
Caifás querem neste momento é que as pessoas acreditem que não
precisam do Templo para alcançar Deus.
Maria levantou-se de seu lugar no chão e sorriu afetuosa para
Easa, no outro lado da sala. Seus olhos se encontraram e ele respondeu
com o mesmo sorriso terno. Maria virou-se para sair pela porta dos
fundos. Sentia-se cansada demais para tratar de estratégia naquele
momento. Além do mais, se Easa decidira fazer uma demonstração no
Templo, no dia seguinte, ela tinha um forte pressentimento de que todos
precisariam descansar um pouco.
Maria partilhava um quarto com as crianças, como sempre fazia
quando viajavam. Achava que isso lhes proporcionava uma sensação de
segurança, um elemento necessário para crianças que muitas vezes leva-
vam uma existência nômade. Os dois eram angelicais no sono. João-José
com suas pestanas escuras sobre as faces azeitonadas e Sara-Tamar,
aninhada numa nuvem de cabelos castanho-avermelhados lustrosos.
A mãe resistiu ao impulso de beijá-los. Tamar em particular tinha
um sono leve e Maria não queria acordá-la. As crianças precisariam
descansar se quisessem acompanhá-la a Jerusalém no dia seguinte;
achavam a cidade excitante e pitoresca. Enquanto permanecessem sãs e
salvas em Jerusalém, ela permitiria a visita. Mas se a situação se
tornasse difícil para Easa, teria de tirar as crianças da cidade o mais
depressa possível. Se o pior acontecesse, nem mesmo as terras de José
seriam seguras. Teria de levá-las para Betânia, para a segurança da casa
de Marta e Lázaro.
Maria finalmente acomodou-se em sua cama e fechou os olhos
para o dia movimentado. Mas o sono não veio com facilidade, embora ela
desejasse e precisasse muito. Havia muitos pensamentos e imagens em
sua cabeça. Em sua imaginação, viu a mulher de véu, a que trazia uma
criança, na frente da casa de Jairo. Maria compreendera duas coisas no
mesmo instante em que olhou para ela. Primeiro, que não era uma judia
nem uma plebéia. Havia algo em sua atitude e na qualidade do véu que
não correspondia a qualquer tentativa de se fundir com as pessoas
comuns. E Maria sabia muito bem quando uma mulher tentava se
disfarçar; não fizera isso muitas vezes, quando a situação exigia?
A segunda coisa notada por Maria fora o profundo desespero da
mulher. A angústia emanava dela, quase como se sua dor clamasse pela
ajuda de Easa. Quando observara a mulher, Maria percebera o mesmo
senso de perda que toda mãe experimenta quando se descobre impotente
para salvar sua criança. E um sofrimento que não distingue raça, credo
ou classe, uma aflição que só pode ser partilhada por pais que também
sofrem. Durante os três últimos anos de ministério, Maria já vira aquela
expressão inúmeras vezes. Mas também observara a expressão passar do
desespero à alegria.
Easa salvara muitas crianças de Israel. E, agora, ao que tudo
indicava, também salvara uma criança de Roma.
Easa e seus seguidores foram para o Templo, conforme combinado,
no dia seguinte. Maria levou as crianças para Jerusalém, parando para
testemunhar a atividade e debate que ocorriam fora dos muros sagrados.
Easa se encontrava no centro de uma multidão cada vez maior,
pregando o Reino de Deus. Alguns homens na multidão contestavam e
faziam perguntas, a que Easa respondia com a calma habitual. As
respostas eram meticulosas e incorporavam os ensinamentos das
escrituras. Não demorou muito para que se tornasse evidente para todos
que seu conhecimento da lei não podia ser questionado.
Mais tarde, mediante informações fornecidas por Jairo, eles
descobriram que Anás e Caifás haviam infiltrado seus agentes na
multidão. Tinham instruções para fazer perguntas deliberadamente
desafiadoras. Se qualquer das respostas de Easa pudesse ser
interpretada como uma blasfêmia, ainda mais tão perto do Templo e na
presença de tantas testemunhas, os sacerdotes teriam provas adicionais
para usar contra ele.
Um homem adiantou-se para fazer uma pergunta sobre a questão
do casamento. Judas reconheceu-o. Sussurrou no ouvido de Easa que
era um fariseu que descartara a esposa mais velha para se casar com
outra mais jovem.
— Gostaria que me dissesse uma coisa, rabino — questionou o
homem. — É legítimo para um homem deixar a esposa por qualquer
causa? Ouvi-o dizer que não é, embora a lei mosaica determine o
contrário. Moisés até escreveu uma lei para o divórcio.
Easa elevou a voz, para que soasse alta e clara por toda a multidão.
A resposta foi incisiva, pois ele sabia das muitas transgressões daquele
homem.
— Moisés escreveu esse preceito por causa da dureza de seu
coração.
A maior parte dos homens na multidão era de habitantes de
Jerusalém, que conheciam aquele fariseu. Houve um murmúrio geral,
por causa do insulto implícito. Mas Easa ainda não acabara. Cansara-se
daqueles fariseus corruptos, que viviam, como reis decadentes, dos
donativos de judeus pobres e devotados. Considerava o atual grupo de
sacerdotes, homens que eram incumbidos de respeitar a lei com absoluta
integridade, como hipócritas. Pregavam uma vida santificada, mas não
era assim que viviam. Durante os últimos anos de seu ministério, Easa
passara a compreender que o povo de Jerusalém fora intimidado por
aqueles homens; temia o poder dos fariseus tanto quanto o de Roma. Sob
muitos aspectos, os homens do Templo eram tão perigosos para os
judeus comuns quanto os romanos, porque tinham a autoridade de
interferir em vários pontos de sua existência cotidiana.
— Não leu as escrituras? — A pergunta de Easa era outra agressão
ao homem que sabia ser um sacerdote. Ele correu os olhos pela multidão.
— Aquele que criou tudo fez o homem e a mulher e disse: “Por isso o
homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à mulher e os dois se
tornarão uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu.” E
eu digo que aquele que abandona uma esposa, o que só se justifica se
houver adultério, também estará cometendo adultério.
— Se assim é, talvez seja melhor não casar — gracejou alguém na
multidão.
Easa não riu. O sacramento do casamento e a importância da
vida familiar eram fundamentais para o modo de vida dos nazarenos.
Ele manifestou-se contra a idéia:
— Alguns homens nascem eunucos, enquanto outros se
tornam eunucos. O casamento só é inaceitável para esses homens.
Todos os homens capazes de receber o sacramento do casamento devem
recebê-lo, pois essa é a vontade do Senhor Nosso Pai. E que cada um se
mantenha fiel à sua esposa até que a morte os separe.
Furioso, o fariseu revidou:
— E qual é o seu caso, Nazareno? A lei de Moisés determina que
qualquer homem que for o ungido deve se casar com uma virgem, nunca
com uma prostituta, nem mesmo com uma viúva.
Era um ataque ostensivo a Maria Madalena, que se mantinha um
pouco afastada da turba, com as crianças. Optara por se vestir com
simplicidade naquele momento, para se fundir à multidão, sem usar o véu
vermelho de sua posição. Sentiu-se contente por isso naquele momento,
enquanto esperava pela resposta de Easa, que foi outra indagação para o
fariseu:
— Sou da casa de Davi?
— Não é essa a questão — protestou o homem.
— E Davi foi um grande rei, um ungido de nosso povo?
O fariseu respondeu na afirmativa, consciente de que era levado
para uma armadilha, mas sem saber como se esquivar.
— Não pediria que eu emulasse Davi, se fosse seu herdeiro? Quem
aqui não pensaria que é uma coisa certa e honrada seguir pelo mesmo
caminho de Davi?
A pergunta de Easa ressoou pela multidão, os homens
reconhecendo com movimentos de cabeça e gestos que seria mesmo certo
acompanhar os passos do Grande Leão de Judá.
— Pois é exatamente isso o que eu fiz. Assim como Davi se casou
com a viúva Abigail, uma filha de Israel bem criada, também me casei
com uma viúva de sangue nobre.
O fariseu sabia que caíra em sua própria armadilha e sumiu no
meio da multidão. Mas os homens da estrutura de poder do Templo não
se deixavam dissuadir com tanta facilidade. À medida que disparavam
perguntas para Easa, as repostas se tornaram como flechas afiadas,
atingindo o alvo em cheio. Outro homem, esse vestido com um traje
sacerdotal fez uma pergunta agressiva:
— Ouvi dizer que você e seus discípulos violam a tradição dos
anciãos. Por que eles não lavam as mãos quando comem pão?
A multidão se tornava mais e mais irrequieta a cada pergunta.
Havia dissidência no ar e Easa sabia que teria de assumir uma posição
firme. Aqueles homens de Jerusalém não eram como os cidadãos da
Galiléia e outras regiões. Ali, na cidade grande, os homens exigiam ação.
Podiam seguir um rei que os livraria do cativeiro, mas primeiro ele teria de
provar sua força e valor.
A voz sonora de Easa ressoou ao redor, não em defesa dos
nazarenos, mas em condenação aos sacerdotes:
— Por que vocês violam os mandamentos de Deus com sua tradição?
São todos hipócritas. — O insulto ricocheteou nas paredes de pedra do
Templo. — Meu primo João chamava-os de víboras e tinha toda a razão.
A referência ao Batista era uma hábil inclusão, a fim de conquistar
o apoio dos mais conservadores entre a multidão.
— João era conhecido como Isaías reencarnado e foi Isaías quem
disse: “Esta pessoa me honra com os lábios, mas seu coração está
longe de mim.” Vejo agora que os fariseus se fazem limpos por fora, mas
por dentro estão cheios de ganância e iniqüidade. O Senhor não fez o
que está fora tanto quanto o que está dentro?
Easa ergueu a voz para o argumento final:
— E essa é a diferença entre os nazarenos e os sacerdotes.
Gostamos da pureza de nossas almas, a fim de podermos manter o Reino
de Deus assim na Terra como no céu.
— Isso é blasfêmia contra o Templo! — gritou alguém.
Houve um grande tumulto, alguns se manifestando em
concordância, outros em oposição.
A escalada na agitação não parava. Observando de um espaço
elevado, perto do Templo, Maria pensou a princípio que era apenas uma
reação às palavras ousadas de Easa. Na verdade, boa parte da
consternação dos homens de Jerusalém derivava disso. Mas vários
discípulos nazarenos abriam caminho pela multidão para alcançar
Easa, levando um grupo de homens e mulheres que haviam ouvido falar
das curas milagrosas. Era um bando lamentável, tragédias que eram
consideradas menos do que humanas em sua cegueira ou aleijão.
Os agiotas e mercadores protestaram contra a invasão do complexo
do Templo por essas pessoas estropiadas. Aquela era sua semana mais
lucrativa e o bando afastaria os visitantes. Quando um cego esbarrou na
mesa de um mercador, derrubando os produtos ali expostos, os tempera-
mentos se exaltaram. O mercador foi atrás do cego com uma vara,
gritando insultos contra o pobre coitado e os nazarenos. Easa partiu
em ajuda do cego. Ajudou-o a se levantar quando caiu, gentilmente, e
sussurrou alguma coisa em seu ouvido. Gesticulou para que os
discípulos levassem a massa de estropiados para o lado, depois virou-se
para o cruel mercador, que atacara o cego. Gritou bem alto, a ser ouvido
acima do burburinho crescente:
— Está escrito que o Templo de Deus deve ser uma casa de
orações. Vocês o transformaram num covil de ladrões.
Outros mercadores gritaram em desafio a Easa, enquanto ele
atravessava o complexo do Templo. O caos beirava uma explosão quando
Easa ergueu as mãos e pediu que os discípulos o seguissem até a frente
do complexo do Templo. Os infelizes com suas enfermidades e deformações
foram levados até ali. E Easa, começando pelo cego, curou cada um e
todos.
As multidões em torno do Templo se tornaram ainda mais
numerosas. Apesar das palavras incisivas de Easa — ou talvez por causa
delas —, os homens e mulheres de Jerusalém se mostravam cada vez
mais interessados naquele nazareno, o homem que curava em segundos
as enfermidades de muitos anos. Maria não podia mais vê-lo. Além disso,
Tamar e João estavam irrequietos, tinham a energia de crianças
pequenas num ambiente excitante. Maria afastou-se do espetáculo,
levando-os para o mercado.
Ao percorrerem as ruas de calçamento de pedras, Maria avistou à
sua frente as túnicas pretas de dois fariseus. Teve certeza de ouvir um
deles mencionar o nome de Easa. Puxou o véu para cobrir a maior parte
do rosto e decidiu acompanhá-los, exortando as crianças a andarem
mais depressa. Os homens falavam em voz alta, mas em grego...
provavelmente porque pensavam que as pessoas comuns ao redor não
entenderiam. Mas Maria, nobre e instruída, falava grego fluentemente.
E compreendeu muito bem quando um dos fariseus olhou para o
outro e declarou:
— Enquanto esse nazareno estiver vivo, não teremos paz. Quanto
mais cedo nos livrarmos dele, melhor para todos nós.
Maria encontrou Bartolomeu no mercado. Ele fora incumbido de
comprar provisões para os outros discípulos. Maria pediu-lhe que
procurasse Easa, para avisar que ele e os discípulos não deveriam passar
aquela noite na casa de José. Precisavam sair de Jerusalém, pela
segurança de Easa. Maria achava que a casa que outrora partilhara com
Lázaro e Marta, em Betânia, era a melhor opção. Ficava a uma distância
segura de Jerusalém, mas não precisariam de muito tempo para voltar à
cidade... ou sair às pressas.
Easa encontrou-se com Maria e as crianças em Betânia, ao final
daquela tarde. Alguns discípulos permaneceram com eles na casa de
Lázaro, enquanto os outros iam para a casa vizinha de Simão, um amigo
de confiança. Fora com a ida à casa de Simão que Maria desobedecera às
ordens de Lázaro e João, tantos anos atrás, com conseqüências tão
desastrosas. Os discípulos reuniram-se naquela noite para avaliar os
acontecimentos do dia e planejar o que os aguardava.
Maria estava preocupada. Sentia que a opinião em Jerusalém se
dividia, metade a favor do extraordinário nazareno que fazia milagres e
defendia os pobres, metade contra um arrivista que desafiava o Templo e
suas tradições, de uma maneira tão agressiva. Maria relatou a conversa
dos sacerdotes que ouvira no mercado. Enquanto ela falava, Judas
chegou da casa de Jairo, trazendo mais notícias.
— Ela tem razão — disse ele para Easa. — Jerusalém está se
tornando um lugar perigoso para você. Jairo diz que Caifás e Anás pedem
sua execução como blasfemo.
Pedro ficou furioso.
— Mas que absurdo! Easa nunca disse uma blasfêmia... não
poderia, mesmo que quisesse. Eles é que são os blasfemos, aquelas
víboras!
Easa não parecia preocupado.
— Não tem importância, Pedro. Os sacerdotes não têm
autoridade para condenar um homem à morte. Somente Roma pode
fazer isso e os romanos não reconhecem as leis de blasfêmia dos judeus.
Os homens discutiram noite afora sobre o melhor curso de ação
para o dia seguinte. Maria queria manter Easa fora de Jerusalém por um
dia, para permitir que alguma calma retornasse à cidade. Mas ele não
quis saber. Esperavam multidões ainda maiores no dia seguinte, à medida
que se espalhassem por Jerusalém as notícias sobre os ensinamentos e
as curas extraordinárias de Easa. Não desapontaria os que viajassem
até Jerusalém para vê-lo. Também não se curvaria à pressão dos
sacerdotes. Agora, mais do que nunca, precisava ser um líder.
Maria preferiu permanecer em Betânia, com as crianças e Marta,
no dia seguinte. O peso da gravidez já cobrava seu tributo e a longa
caminhada de volta a Betânia, às pressas, deixara-a exausta. Manteve
as crianças ocupadas em casa, enquanto tentava não pensar nos
perigos que Easa poderia enfrentar dentro dos muros da cidade.
Sentada no jardim da frente, observando Tamar brincar na relva,
Maria avistou uma mulher toda de preto se aproximar. Tinha o rosto e
os cabelos cobertos. Era impossível determinar se a visitante era
conhecida ou não. Não poderia ser uma amiga de Marta ou uma nova
vizinha que Maria não conhecia?
A mulher chegou mais perto e Maria pôde ouvir uma risada
reprimida:
— Qual é o problema, irmã? Não me reconhece depois de tanto
tempo?
O véu foi retirado para revelar a mulher como sendo Salomé, a
princesa herodiana. Seu rosto perdera a aparência roliça da infância e
adquirira o viço intenso da maturidade. Maria correu para abraçá-la e
assim ficaram por um minuto inteiro. Depois da morte de João,
tornara-se muito perigoso para Salomé ser vista em companhia dos
nazarenos. Sua presença era uma ameaça para Easa. Se queriam
conquistar os seguidores de João, não podiam manter qualquer ligação
com a mulher que era injuriada como a responsável pela prisão de João,
se não mesmo por sua morte.
A separação compulsória fora difícil para ambas. Salomé sentia-se
desesperada por não poder completar o treinamento para sacerdotisa e
pela separação das pessoas que passara a amar mais do que a sua própria
família. Para Maria, era amargura também, depois do julgamento injusto
sobre as duas pela execução de João.
Salomé soltou um grito de alegria quando viu a pequena Tamar na
relva.
— Olhe só para ela! Está igual a você!
Maria acenou com a cabeça, sorrindo.
— Por fora. Porque por dentro ela já está se desenvolvendo na
imagem do pai.
Maria relatou algumas histórias de Tamar, como ela se mostrara
especial desde o momento em que começara a andar. Curara um cordeiro
que caíra numa vala, em Magdala, com o toque de sua mão infantil.
Tinha apenas três anos, mas já falava tudo... em grego e aramaico.
— Ela é uma criança afortunada por ter pais assim —
comentou Salomé, com uma expressão sombria. — Deve continuar a ter
pai e mãe, o que é o motivo para minha presença aqui. Recebi informações
do palácio, Maria. Easa corre um grande perigo.
— Vamos entrar, para conversar num lugar em que poderemos ter
certeza de que pequenos ouvidos como aqueles... — ela gesticulou
para Tamar — ...não poderão nos ouvir.
Maria inclinou-se para pegar Tamar, mas a barriga enorme
dificultou o movimento. Salomé estendeu os braços.
— Venha com sua irmã Salomé.
Tamar hesitou. Olhou para a desconhecida, depois para a mãe, à
espera de uma garantia. Um sorriso de dentes pequenos e perfeitos
surgiu no rosto de Tamar, quando foi para o colo da princesa herodiana.
Entraram na casa juntas. Maria pediu a Marta para ficar com
Tamar. Marta pegou a menina.
— Vamos procurar seu irmão, minha princesinha.
João estava lá fora, andando pelas terras, em companhia de Lázaro.
Marta compreendeu que devia sair também, a fim de permitir que
houvesse privacidade na conversa entre Maria e Salomé.
— Quero que preste atenção, porque é muito urgente. Meu
padrasto esteve hoje na casa de Pôncio Pilatos e fui em sua companhia.
Ele deve viajar para Roma dentro de dois dias e precisava de um relatório
completo do procurador. Usei a desculpa de visitar Cláudia Prócula, a
esposa de Pilatos, para ir junto. Sabia que meu padrasto não negaria
esse pedido. Mas é claro que não era esse o meu motivo. Sabia que
você, Easa e os outros estavam aqui. E onde está a Grande Maria?
— Também veio para cá. Passará a noite com algumas mulheres
na casa de José. Mas posso levá-la ao seu encontro amanhã, se você
quiser.
Salomé assentiu com a cabeça e continuou o relato:
— Usei a desculpa de visitar Cláudia para saber quais eram as
notícias em Jerusalém sobre os nazarenos. Não imaginava o quanto
Cláudia tinha para me contar. Não é espantoso, Maria?
Maria não sabia a que Salomé se referia.
— O quê?
Os olhos escuros e exóticos de Salomé se tornaram ainda maiores.
— Ainda não sabe? Ah, Maria, é extraordinário! Na noite em que
Easa ressuscitou a filha de Jairo, se lembra de uma mulher que apareceu
na multidão no momento em que vocês saíam? Estava acompanhada
por um grego, que carregava uma criança doente, um menino.
Tudo voltou à mente de Maria agora. Por duas noites vira o rosto
daquela mulher antes de dormir.
— Claro que me lembro. Falei com Easa, que se virou para curar
a criança. Isso é tudo o que sei com alguma certeza, além do fato de a
mulher não parecer plebéia nem judia.
Salomé riu:
— Maria, aquela mulher é Cláudia Prócula. Easa curou o filho
único de Pôncio Pilatos!
Maria ficou atônita. Tudo fazia sentido agora... o sentimento de
presciência, de saber que alguma coisa estava acontecendo além da
própria cura.
— Quem sabe disso, Salomé?
— Ninguém além de Cláudia, Pilatos e o escravo grego. Pilatos
proibiu a esposa de falar a respeito. E diz a quem indaga sobre a milagrosa
recuperação do menino que foi a vontade dos deuses romanos. — Salomé
fez uma careta para demonstrar seu desagrado. — A pobre Cláudia estava
morrendo de vontade de contar a alguém e sabia que eu fui uma
nazarena.
— Você ainda é uma nazarena — disse Maria, gentilmente,
enquanto se levantava para deixar que o bebê crescendo em seu ventre
ajustasse a posição.
Ela precisava refletir sobre aquela importante informação. Era
sensacional, mas ainda não ousava esperar muito do fato. Com toda a
certeza, a ocorrência só podia ser parte dos desígnios de Deus para Easa.
Ele dera a Cláudia uma criança doente, para que Easa pudesse curá-la e
provar sua divindade para Pilatos? E se o destino de Easa fosse parar nas
mãos de Pôncio Pilatos, ele não poderia aplicar uma sentença ao homem
que salvara a vida de seu filho, não é mesmo?
— Mas há mais, irmã. — A expressão de Salomé voltou a se
tornar sombria. — Quando eu estava lá, o horrível Jônatas Anás e seu
genro apareceram, para conversar com Pilatos e meu padrasto.
Ela fez uma pausa, sorrindo.
— Quando ouvi os dois serem anunciados, supliquei a Cláudia que
me indicasse o melhor esconderijo para escutar a conversa.
Maria também sorriu para Salomé, que continuava tão impetuosa
quanto antes.
— Pilatos não queria saber dos sacerdotes e seus argumentos e
tentou descartá-los, como se não fossem importantes, a fim de terminar
a reunião com Herodes. Pilatos só está interessado na apresentação de
um relatório favorável em Roma, realçando sua competência como
governador. Quer obter um posto no Egito.
Maria escutava, paciente, o coração batendo forte, enquanto
Salomé continuava:
— Mas meu padrasto... o arrogante Herodes... ficou do lado
daqueles dois sacerdotes idiotas. Conseguiram envolvê-lo, dizendo que
Easa se intitulava Rei dos Judeus e queria roubar o trono dos Herodes.
Maria sacudiu a cabeça ao ouvir isso. Era um absurdo, é claro.
Easa não tinha o menor desejo de se sentar num trono deste mundo. Era
o rei no coração do povo, aquele que lhes daria o Reino de Deus. Não
precisava de palácio ou trono para isso. Mas um Herodes inseguro
sentia-se ameaçado por causa das manipulações de Anás e Caifás.
— Ouvi Pilatos procurar Cláudia pouco depois... ele não podia ver
onde eu me escondia... e dizer: “Minha querida, receio que o destino esteja
contra seu Easa, o Nazareno. Os sacerdotes clamam por sua cabeça e
darão um jeito de prendê-lo antes da Páscoa.” Também ouvi Cláudia
dizer: “Mas é claro que você providenciará para que ele seja poupado.”
Pilatos não disse nada e Cláudia insistiu: “Não é?” Depois, não ouvi mais
nada, até que Pilatos se retirou. Quando tive certeza de que ele não estava
mais ali, saí do esconderijo e encontrei Cláudia desesperada. Ela disse
que o marido não a fitara ao sair. Ah, Maria, ela está tão preocupada com
o que pode acontecer com Easa! E eu também estou. Você deve tirá-lo de
Jerusalém.
— Onde seu padrasto pensa que você está agora?
Salomé deu de ombros.
— Eu disse a ele que passaria o dia comprando sedas. Ele está
preocupado demais com sua viagem a Roma para saber ou se importar
onde passarei a noite. Tem suas próprias diversões em Jerusalém.
Maria tentava criar uma estratégia. Devia esperar até que Easa
voltasse para casa naquela noite, para lhe contar tudo. E sabia que não
precisaria de muito estímulo para convencer Salomé a ficar e relatar os
detalhes.
Salomé ficou e sentiu a maior alegria quando a Grande Maria
apareceu para visitá-las, ao final da tarde. A estimada mãe de Easa levara
as duas outras Marias mais velhas, sua irmã, Maria Jacobina, e sua
prima, Maria Salomé, que era a mãe dos dois mais leais seguidores de
Easa. Era uma honra para Salomé estar na companhia daquelas sábias
mulheres, as fortes — embora com freqüência silenciosas — líderes da
tradição nazarena. Sua alegria, porém, foi de curta duração, assim
como a de Maria Madalena.
— Vejo muitas trevas no horizonte, minhas filhas — disse a
Grande Maria. — Vim até aqui para me encontrar com meu filho.
Devemos todos estar preparados para o teste de força e fé que a Páscoa
nos trará.
As notícias de Jerusalém eram perturbadoras. Multidões ainda
maiores haviam recebido Easa e os nazarenos à entrada da cidade naquela
manhã, causando inquietação entre os guardas romanos. Os nazarenos
haviam se instalado fora do Templo, onde Easa pregara e respondera às
perguntas e desafios. Como acontecera no dia anterior, representantes do
sumo sacerdote e do Templo infiltraram agentes na multidão. A
inquietação aumentara quando mercadores e agiotas censurados no dia
anterior se adiantaram para protestar contra a presença nazarena.
Finalmente, num esforço para manter a paz e evitar um possível
derramamento de sangue, Easa se retirara, com os nazarenos mais leais.
Mais tarde, naquela noite, em Betânia, a combinação das
observações de Salomé, das informações de Jairo e da profecia da Grande
Maria criou um clima de consternação e preocupação. Somente Easa
parecia indiferente às circunstâncias cada vez mais ameaçadoras,
enquanto formulava planos para o dia seguinte.
Simão e Judas, que haviam passado o dia reunidos com seus
irmãos zelotes, tinham um plano:
— Há quantidade suficiente de homens para lutar contra
qualquer um que queira prendê-lo — garantiu Simão. — A multidão
no Templo amanhã será imensa. Se você enfatizar para o povo que o
Reino de Deus como o conhecemos libertará o povo da opressão de
Roma, a multidão haverá de segui-lo.
— Com que finalidade? — indagou Easa, calmamente. — O resultado
de uma ação assim seria o derramamento do sangue de muitos judeus
inocentes. Esse não é O Caminho. Não, Simão, não estimularei uma
revolta que derrame o sangue de nosso povo na véspera de um dia
sagrado. Como posso mostrar que o Reino de Deus está em cada um e
em todos os homens e mulheres se peço que sangrem e morram por
isso? Não estão considerando o sentido d'O Caminho, meus irmãos.
— Mas O Caminho não existe sem você — interveio Pedro,
bruscamente.
A tensão dos últimos dias aparecia em Pedro mais do que nos
outros discípulos. Ele sacrificara tudo por sua fé em Easa e n'O Caminho.
E não suportava admitir qualquer resultado adverso.
— Está enganado, meu irmão. — Não havia censura no tom de
Easa, que acrescentou para Pedro, afetuoso: — Pedro, tenho dito isso
para você desde que éramos crianças. Você é a pedra sobre a qual nosso
ministério vai florescer. Seu legado viverá por tanto tempo quanto o meu.
Pedro não parecia confortado, nem os outros discípulos. Easa
percebeu isso. Levantou as mãos.
— Meus irmãos e irmãs, quero que me escutem. Lembrem-se do
que eu lhes dei, a compreensão de que o Reino de Deus vive dentro de
cada um e que nenhum opressor jamais poderá tirá-lo. Se mantiverem
essa verdade em seus corações, nunca conhecerão um dia de dor ou
medo.
Depois, ele estendeu as mãos para os discípulos e conduziu-os na
Oração do Senhor.
Easa deixou seus seguidores naquela noite para uma conversa em
particular com a Grande Maria. Depois, ele se despediu da mãe e procurou
a esposa.
— Não deve ter medo do que vai acontecer, pombinha — disse
Easa, gentilmente.
Maria examinou seu rosto. Easa costumava esconder suas visões dos
seguidores, mas raramente fazia isso com ela. Era a pessoa com quem ele
partilhava quase tudo. Mas, naquela noite, Maria sentiu que ele se
continha.
— O que está vendo, Easa?
— Vejo que meu Pai no Céu formulou Seus desígnios e que devemos
segui-los.
— Para a realização das profecias?
— Se for Sua vontade.
Maria ficou calada por um momento. As profecias eram específicas:
indicavam que o Messias deveria ser levado à morte por seu próprio
povo.
— E o que me diz de Pôncio Pilatos? — indagou Maria, com alguma
esperança. — Tenho certeza de que foi enviado para curar seu filho para
que ele pudesse testemunhar pessoalmente quem e o que você é. Não
acha que isso faz parte dos desígnios de Deus?
— Maria, escute com atenção o que vou dizer, pois é uma grande
compreensão do Caminho Nazareno. Deus cria seu plano e põe cada
homem e mulher em seu lugar. Mas não os obriga a entrarem em ação.
Como qualquer bom pai, o Senhor orienta seus filhos, mas também lhes
dá a oportunidade de tomarem suas próprias decisões.
Maria aplicou a filosofia de Easa à situação atual.
— Acredita que Pôncio Pilatos foi posto em seu lugar por Deus?
— Acredito. Pilatos, sua boa esposa, seu filho.
— E se Pilatos vai ou não nos ajudar... isso não é uma determinação
de Deus?
Easa sacudiu a cabeça.
— O Senhor não nos determina nada, Maria. Ele nos orienta. Cabe
a cada pessoa escolher seu mestre e isso se reduz a uma opção entre
o plano de Deus e os desejos terrenos. Não se pode servir a Deus e servir
também a essas necessidades terrenas. O Reino do Céu vem para aqueles
que optam por Deus. Não posso dizer o que o senhor Pôncio Pilatos vai
escolher quando chegar seu momento.
Maria escutava com absoluta atenção. Conhecia bem as idéias
nazarenas, mas o exemplo de Pôncio Pilatos apresentado por Easa tornava
seu postulado claro e convincente. Num relance de presciência, ela sentiu
a necessidade de saborear as palavras do marido, de lembrá-las com
precisão, mesmo enquanto ele falava. O momento viria em que teria de
ensiná-las a outros, da mesma forma como Easa ensinara.
— O sumo sacerdote e seus partidários estão determinados a
mandar me prender... e sabemos que não podemos evitar isso —
continuou Easa. — Mas pediremos que me mandem para Pilatos, a
quem apresentarei minha defesa. Caberá, então, à sua fé e consciência
tomar uma decisão. Não importa qual seja, devemos demonstrar por
nossas ações o que sabe mos ser a verdade: quando permitimos que o
Reino de Deus viva dentro de nós, nada neste mundo pode mudar isso...
nem um império, nem um opressor, nem o sofrimento. Nem mesmo a
morte.
Os dois conversaram a noite toda e Easa apresentou seus planos
para o dia seguinte. Maria fez a pergunta que pesava em seu coração
apenas uma vez.
— Não podemos simplesmente deixar Jerusalém esta noite? Voltar
a nossas pregações nas colinas da Galiléia, até que Anás e Caifás
encontrem outra presa para perseguir?
— Você, entre todas as pessoas, devia saber que isso não é
possível, minha Maria. As pessoas nos observam atentamente agora.
Devo dar o exemplo.
Ela moveu a cabeça compreendendo. Easa relatou sua conversa
com a Grande Maria. Haviam decidido que o comparecimento ao Templo
em Jerusalém no dia seguinte seria muito perigoso. Havia a possibilidade
de inúmeros inocentes saírem feridos em tumultos. A maior
preocupação de Easa era com a proteção de seus discípulos. Era ele que o
sumo sacerdote queria pegar, não os outros. Era essa a informação de
Jairo. Não havia motivo para arriscar os outros desnecessariamente. Os
seguidores mais chegados teriam uma reunião particular, numa
propriedade de José, para uma refeição da Páscoa. Ali, Easa daria
instruções a cada um sobre seu papel no ministério, se ele enfrentasse
um longo período de encarceramento, como acontecera com João... ou
se algo pior acontecesse. Passariam a noite na propriedade de José em
Getsêmani, sob as sagradas estrelas de Jerusalém.
E, ali, Easa deixaria que o prendessem.
— Vai se entregar às autoridades do Templo? — perguntou Maria,
incrédula.
— Não posso fazer isso. As pessoas perderiam toda a fé em nosso
Caminho, se isso acontecesse. Mas devo cuidar para que minha prisão
ocorra fora da cidade, de tal maneira que não haja tumultos e sangue der
ramado. Pedirei a um dos nossos para “me trair”, denunciando às
autoridades onde me encontro. Os guardas irão a Getsêmani, onde não
haverá multidões. Evitaremos, assim, qualquer tumulto.
A mente de Maria era um turbilhão. Tudo acontecia muito
depressa. Um pensamento terrível ocorreu-lhe:
— Ah, Easa... quem poderia ser? Qual entre os nossos teria coragem
suficiente para fazer isso? Não pode imaginar que Pedro ou André seriam
capazes. Muito menos Filipe ou Bartolomeu. Seu irmão Tiago derramaria
o próprio sangue primeiro e Simão, o sangue de outros.
A resposta aflorou de repente e os dois disseram ao mesmo tempo:
— Judas.
A expressão de Easa era solene:
— E é isso o que tenho de fazer agora, minha pombinha. Devo
conversar com Judas e dizer a ele que foi escolhido para essa missão por
causa de sua força.
Ele beijou o rosto da esposa ao se levantar para sair. Ela observou-
o partir com um senso crescente de medo pelo que o dia seguinte traria.
Eles se reuniram na tarde seguinte para fazer uma refeição juntos,
como fora planejado. Easa, seus doze eleitos e todas as Marias. As crianças
permaneceram em Betânia, com Marta e Lázaro.
Easa iniciou a noite com uma versão do ritual da unção. Era a sua
própria versão, em que ele lavou os pés de cada pessoa na sala. Explicou
que assim reconhecia cada uma como uma criança de Deus, com a
missão especial de pregar a palavra do Reino.
— Dou este exemplo para que façam com outros o que foi feito aqui
com vocês. Para que reconheçam os outros como seus iguais perante
Deus. E lhes darei esta noite um novo mandamento... que amem uns aos
outros da maneira como amo vocês. Pois quando saírem para o mundo,
as pessoas reconhecerão que são nazarenos pela maneira como amam
uns aos outros.
Depois de lavar os pés de todos os seguidores ali reunidos, Easa
levou-os à mesa, para a ceia da Páscoa. Partiu um pedaço de pão ázimo,
abençoou-o e disse:
— Peguem isto e comam, pois este pão é o meu corpo.
Ele pegou também um cálice com vinho e murmurou uma prece de
graças, antes de fazê-lo circular pela mesa.
— Este é meu sangue do novo testamento, que é derramado por
muitos.
Maria observava em silêncio, junto com os outros. Só ela e as
outras Marias conheciam os detalhes dos acontecimentos iminentes.
Quando Easa desse o sinal, Judas deixaria a ceia e procuraria Jairo. Este o
levaria a Anás e Caifás, apresentando Judas como um traidor. Judas
pediria trinta moedas de prata, o que faria com que sua traição parecesse
autêntica. Em troca pelo dinheiro, ele levaria os sacerdotes ao refúgio de
Easa. Ali, longe das multidões imprevisíveis da cidade, seria fácil prendê-
lo.
A tensão era evidente no rosto de Judas, para aqueles que
quisessem ver. Os outros discípulos não haviam sido informados do
plano, pois Easa não queria correr qualquer risco. Não queria que
argumentassem, muito menos que tentassem resistir. Mais tarde,
Maria choraria por Judas e a injustiça da situação. A esta altura, porém,
já seria tarde demais para Judas Iscariotes. Deus criara um lugar para
ele e Judas decidira ocupá-lo.
Easa virou-se para Judas agora. Entregou-lhe um pedaço de pão
embebido em vinho, dando o sinal combinado.
— O que deve fazer, faça depressa.
Enquanto observava Judas sair da sala, Maria sentiu um aperto
no coração. Não haveria como voltar atrás. Ela fitou a Grande Maria, que
também observava Judas sair, com o destino de Easa nas mãos. As duas
trocaram um olhar nesse instante, cada uma orando silenciosamente
para que Deus protegesse o amado Easa.
Os guardas apareceram em maior número e com uma
impetuosidade que Maria não previra. A noite já seguia avançada quando
Judas surgiu no alto da colina com os soldados do sumo sacerdote. Houve
caos quando o grupo fortemente armado apareceu no local, acordando os
apóstolos. As mulheres mantinham vigília a alguma distância, ao lado de
uma fogueira. Com exceção de Maria Madalena, que esperava junto com
Easa.
Pedro levantou-se de um pulo. Arrancou a espada de um dos
soldados mais jovens, que ficou tão chocado que não reagiu a tempo.
— Senhor, lutaremos por você! — gritou Pedro.
Ele avançou para um homem que reconheceu, Malco, um servo do
sumo sacerdote. Cortou a orelha do homem com a espada. O sangue
escorreu abundante do ferimento. Easa levantou-se e adiantou-se, muito
calmo.
— Já chega, irmãos — disse ele, para Pedro e os outros. Para os
guardas, ele acrescentou: — Guardem suas armas. Ninguém aqui vai
atacá-los. Dou-lhes minha palavra.
Ele foi até Malco, que caíra de joelhos e comprimia a túnica contra a
orelha, a fim de estancar o sangue. Encostou a palma na orelha ferida.
— Você já sofreu o suficiente por isso.
Quando ele retirou a mão, o fluxo de sangue cessara e a orelha
estava curada. Easa ajudou Malco a se levantar e lhe disse:
— Caifás envia este grupo de homens armados contra mim, como
faria com um ladrão ou assassino? Por quê? Quando eu ia todos os dias
ao Templo, ele não fez qualquer tentativa de me prender, nem de indicar
que eu era um perigo. Esta é mesmo uma hora de trevas para o nosso
povo.
Um dos soldados, um homem usando o emblema de líder,
adiantou-se e perguntou, numa tentativa gutural de falar o aramaico:
— Você é Easa, o Nazareno?
— Sou eu mesmo — respondeu ele, em grego.
Vários seguidores gritaram acusações e perguntas para Judas.
Easa aconselhara-o a não dizer nada se isso acontecesse e Judas
permaneceu obediente. Em vez disso, deu um beijo no rosto de Easa,
gentilmente, esperando com esse gesto que alguns dos discípulos
compreendessem o que ele fora encarregado de fazer.
O soldado no comando do grupo leu as acusações para a prisão e
Easa foi levado para seu destino nas mãos dos sacerdotes.
Maria Madalena manteve-se em vigília, junto com as outras Marias.
Não podiam chegar perto dos homens, pois seria muito arriscado. As
emoções eram intensas e as mulheres não podiam dar a perceber o
quanto já sabiam sobre os acontecimentos da noite.
As Marias empenharam-se em orações e confortaram umas às
outras. Já era de madrugada quando viram uma tocha atravessar o vale
de Quidom, na direção do refúgio. Era um grupo pequeno, dois homens e
o que parecia ser uma mulher pequena. Maria levantou-se quando o
grupo se aproximou e ela pôde reconhecer a princesa herodiana. Correu
para Salomé e abraçou-a. Foi somente então que ela percebeu que o
homem com a tocha era um centurião sem o uniforme... o mesmo
homem de olhos azuis a quem Easa curara do doloroso braço quebrado.
— Irmã, há pouco tempo — disse Salomé, ofegante, indicando
que haviam corrido para chegar ali. — Venho da Fortaleza Antonia.
Cláudia Prócula enviou-me para apresentar seus respeitos e sua
profunda compaixão pela injusta prisão de seu marido.
Maria meneou a cabeça, encorajando Salomé a continuar e
reprimindo o medo que provocava um frio em suas entranhas. Se a esposa
do procurador romano enviava mensageiros reais no meio da noite, era
porque havia alguma coisa muito errada.
— Easa será levado a julgamento perante Pilatos pela manhã —
continuou Salomé. — Mas Pilatos está sob uma terrível pressão para
condená-lo à morte. Ele não quer fazer isso, Maria. Cláudia diz que
Pilatos sabe que Easa curou seu filho, ou pelo menos se mostra disposto,
à sua maneira romana, a tentar aceitar esse fato. Mas meu
abominável padrasto insiste em exigir a morte de Easa, o mais depressa
possível. Herodes viajará para Roma no Sabá. Disse a Pilatos que quer
uma solução para o “Problema do Nazareno” antes de sua partida. Você
precisa compreender como a situação é grave, Maria. Eles podem executar
Easa. Amanhã.
Tudo acontecia muito depressa. Nenhum deles esperava por isso,
não daquela maneira. Esperavam um longo período de encarceramento,
em que Easa teria a oportunidade de argumentar em sua defesa perante
Roma e perante Herodes. Sempre houvera uma possibilidade de que o
pior acontecesse, mas não tão depressa.
— Cláudia Prócula nos mandou até aqui para buscá-la. Esses
dois homens são de confiança.
Maria levantou os olhos e viu a luz se refletir no rosto do homem
silencioso por trás da tocha. Reconheceu-o agora. Era o grego que
carregava o menino doente na frente da casa de Jairo.
— Eles a levarão até o lugar em que Easa está preso. Cláudia
providenciou para que os guardas não interferissem, até o amanhecer.
Esta pode ser sua última oportunidade de vê-lo. Mas tem de partir o mais
depressa possível.
Maria pediu que esperassem um momento, enquanto ia falar com
a Grande Maria. Sabia que a mulher mais velha nunca seria capaz de
caminhar com a rapidez necessária para alcançar Easa a tempo, mas
era um sinal de respeito oferecer seu lugar à mãe. A Grande Maria
beijou-lhe o rosto.
— Dê um beijo em meu filho. Diga a ele que estarei lá amanhã,
aconteça o que acontecer. Vá com Deus, minha filha.
Maria e Salomé tiveram de se apressar para acompanhar os
homens silenciosos, que seguiram em passos largos para o leste da
cidade. Maria trocara o véu vermelho, que a identificava como
sacerdotisa nazarena, por um véu preto simples, como o que Salomé
usava. A princesa herodiana disse a Maria, enquanto andavam:
— Mandei um mensageiro para Marta. Easa quer ver as crianças.
Foi o que disse ao mensageiro de Cláudia. — Ela indicou o escravo grego.
— Easa sabia que você não teria tempo de ir a Betânia e voltar com as
crianças, se quisesse vê-lo.
Os pensamentos de Maria eram tumultuados. Não queria que
Tamar e João testemunhassem qualquer coisa traumática no dia
seguinte. Mas, se o pior acontecesse, Easa precisaria ver as crianças pela
última vez. O pequeno João era seu filho tanto quanto Tamar; ele tinha
um amor incondicional pelos dois. A proteção e segurança de todos seria
um problema quando amanhecesse. Maria orou silenciosamente por
um momento, mas agora tinha pouco tempo para pensar a respeito.
Aproximaram-se da prisão em que Easa estava. Até agora, a escuridão os
protegera e não haviam atraído qualquer atenção. Mas seriam obrigados a
descer por um longo lance de escada externa, iluminada por tochas.
O centurião sussurrou instruções. Esperaram por um
instante, enquanto o grego fazia um reconhecimento da área. O escravo
foi até o fundo da escada e fez sinal de que podiam descer. Salomé
permaneceu no alto da escada, de vigia, enquanto o grego assumia o
mesmo papel lá embaixo. Maria e o centurião desceram apressados e
entraram nos corredores da prisão. Ele estendeu a tocha à sua frente,
para iluminar o caminho no espaço subterrâneo. Maria seguia logo
atrás, tentando bloquear os gritos de dor e desespero que ecoavam pelas
paredes de pedra ao seu redor. Sabia que nenhum daqueles sons vinha
de Easa... não importava quanta dor sofresse, ele nunca gritaria, pois não
estava em sua natureza. Mas ela sentia uma profunda compaixão pelos
outros pobres coitados, que aguardavam seu destino numa prisão
romana.
O centurião tirou uma chave de sob a túnica e a enfiou na
fechadura. Abriu a porta e deixou Maria entrar na cela do marido. Maria
descobriu, muitos anos depois, como Cláudia e Salomé conseguiram
obter as chaves e afastar os guardas. Envolvera grandes quantias em
suborno e um alto custo pessoal para a princesa herodiana. Maria seria
grata pelo resto da vida à romana, Cláudia Prócula, e à sua amiga, a
incompreendida Salomé... não apenas pelo que aconteceu naquela noite,
mas também pelo dia terrível que se seguiria.
Maria teve de resistir ao impulso de gritar em desespero quando viu
Easa. Ele fora espancado... brutalmente. Havia equimoses em seu belo
rosto e ela o viu estremecer quando se levantou para abraçá-la. Ela
sussurrou uma pergunta, enquanto examinava o rosto desfigurado:
— Quem fez isso em você? Os homens de Caifás e Anás?
— Quero apenas que me escute, minha Maria. Há pouco tempo
e muito para dizer. Não há lugar para atribuição de culpa, pois isso só
acarreta a vingança. Quando perdoamos, estamos mais próximos de
Deus. Estamos aqui para ensinar isso aos filhos de Israel e ao resto do
mundo. Leve isto com você e ensine a todos que quiserem escutar, em
minha memória.
Foi a vez de Maria estremecer. Não suportava ouvir Easa falar de si
mesmo daquela maneira, como se a morte fosse inevitável. Ao sentir o
desespero de Maria, ele falou gentilmente:
— Ontem à noite, em Getsêmani, fui orar para o Senhor Nosso
Pai. Pedi-Lhe que me tirasse esse cálice, se fosse essa a Sua vontade. Mas
Ele não o fez. E não fez porque é essa a Sua vontade. Não há outro
meio, entende? O povo não poderá compreender o Reino de Deus sem
um exemplo supremo. Serei esse exemplo. Mostrarei que posso morrer
pelos outros sem dor ou medo. Nosso Senhor me mostrou o cálice e eu
bebi dele, com alegria. Está feito.
Maria não podia conter o fluxo de lágrimas, mas fazia um esforço
para não soluçar. Qualquer barulho poderia denunciar sua presença. Easa
tentou confortá-la.
— Deve ser forte agora, minha pombinha, porque levará com você o
verdadeiro Caminho Nazareno e terá de ensiná-lo ao mundo. Os outros
também farão o melhor que puderem. Dei instruções a cada um depois
da ceia. Mas só você conhece tudo que há em meu coração e minha
cabeça. Por isso, deve se tornar a próxima líder de nosso povo e nossos
filhos depois de você.
Maria tentava pensar com clareza. Precisava se concentrar nos
últimos pedidos de Easa, não em sua própria dor. Teria tempo para
lamentar mais tarde. Agora, precisava se mostrar à altura da confiança
de Easa, como líder dos nazarenos.
— Nem todos os homens me amam, Easa, como você sabe muito
bem. Alguns não me seguirão. Embora os tenha ensinado que devem
tratar as mulheres como iguais, receio que depois de sua morte... essa
compreensão vá definhar. Como devo comunicar a todos que você me
escolheu para liderar os nazarenos?
— Pensei a respeito esta noite. Primeiro, você é a única que tem
O Livro do Amor.
Easa passara uma grande parte de seu ministério escrevendo sobre
as convicções nazarenas e seus comentários pessoais, num volume que
chamavam de O Livro do Amor. Os outros discípulos sabiam de sua
existência, mas Easa nunca o partilhara com ninguém além de Maria. Era
guardado em segurança na casa da Galiléia.
— Eu sempre disse que O Livro do Amor nunca veria a luz enquanto
eu vivesse, pois seria incompleto durante minha permanência aqui.
Cada pessoa que conheci me ensinou mais sobre a natureza de Deus.
Escrevi tudo n'O Livro do Amor. Quando eu partir, você deve fazer com
que seja a base de todos os ensinamentos que se seguirão.
Maria acenou com a cabeça em compreensão. O Livro do Amor era,
sem dúvida, um vigoroso memorial a tudo que Easa pregara ao longo da
vida. Os discípulos se sentiriam honrados e reverentes por aprender do
livro.
— Há mais uma coisa, Maria. Darei um sinal aos homens,
alguma coisa para demonstrar de maneira clara que você é a
escolhida para minha sucessora. Não tenha medo, minha
pombinha, pois farei o mundo saber que você é minha discípula mais
amada.
Easa pôs as mãos na barriga estufada de Maria. Ainda havia muito
para dizer.
— Esta criança que você espera, nosso filho, tem o sangue de
profetas e reis, assim como nossa filha. Os descendentes ocuparão seu
lugar no mundo, pregando o Reino de Deus e as palavras escritas n'O
Livro do Amor, para que todas as pessoas conheçam a paz e a justiça, no
mundo inteiro.
O bebê se mexeu em resposta à profecia feita pelo pai.
— Esta criança tem um destino especial nas ilhas ocidentais, por
onde se espalhará a palavra d'O Caminho. Dei a meu tio José instruções
sobre sua criação. Você deve confiar em José e permitir que esta criança vá
para onde Deus a levar.
Maria aceitou. José era um grande homem, sábio, forte e experiente.
Viajava muito, em seu ofício de mercador de estanho. Quando jovem, Easa
acompanhara José até as ilhas verdes e nevoentas a oeste da Gália. Dissera
uma ocasião a Maria que tivera ali a premonição de que O Caminho
conquistaria fiéis entre o povo feroz e de olhos azuis que habitava as ilhas.
— E você deve lhe dar o nome de Yeshua-Davi, por mim e pelo
fundador de nossa linhagem real. O maior rei a reinar neste mundo sairá
de seu sangue.
Maria concordou com o pedido de Easa e perguntou em seguida:
— O que devo fazer em relação a Sara-Tamar?
Easa sorriu à menção de sua preciosa filha.
— Ela deve ficar com você até que seja crescida, quando fará sua
opção. Nossa Tamar tem a sua força. Mas Israel não será um lugar seguro
para você e as crianças. Já combinei com José para levar vocês e todos
os outros que quiserem para o Egito. Alexandria é um importante centro
de estudos e um lugar seguro para nossa gente. Você pode ficar ali ou
continuar a viagem para terras do oeste. Deixarei a decisão a seu critério,
Maria. Deve decidir o que é melhor para que os ensinamentos dos
nazarenos se espalhem pelo mundo. Siga o seu coração e confie em Deus
para guiá-la.
— E o que fazer com o pequeno João?
Easa sempre tratara a criança como a um filho, mas seu sangue e
destino sempre seriam diferentes, como ambos sabiam.
Os olhos de Easa ficaram turvos de preocupação.
— Mesmo ainda tão pequeno, João tem uma vontade forte e é
irrequieto. Você é a mãe e terá de orientá-lo, mas João precisará da
influência de homens para moldar sua inquietação. Ele é muito amado por
Pedro e André. Quando ficar mais velho, pode ser guiado por Pedro ou
seu irmão.
Easa não precisava explicar mais nada; Maria sabia o que ele queria
dizer com isso. Pedro e André haviam sido seguidores do Batista. Todos
se conheciam desde crianças na Galiléia, freqüentando o templo em
Cafarnaum. Pedro e André reverenciavam o pequeno João como ao filho
de um grande profeta, além de ser o filho adotado por Easa.
— Tenho palavras de agradecimento e conforto para mais uma
pessoa — continuou Easa. — Para a romana, Cláudia Prócula, eu
gostaria de dizer que deixei este mundo em débito com ela. A mulher
sacrificou muito para trazê-la até aqui e lhe sou grato por isso. Diga a ela
que não deve julgar o marido com muito rigor. Pôncio Pilatos precisa
escolher seu senhor e já vi que escolherá mal. Ao final, no entanto, sua
decisão consumará os desígnios de Deus para todos nós.
Easa deu outras instruções para a esposa, algumas de natureza
espiritual, algumas práticas, antes das palavras finais para confortá-la:
— Seja forte, não importa o que aconteça amanhã. Não tenha
medo por mim, já que eu mesmo não sinto medo. Sinto-me contente em
aceitar o cálice de nosso Pai e ir ao Seu encontro no céu, Maria. Seja uma
líder do povo e não tema. Lembre-se de quem você é, em todas as ocasiões.
E uma nobre, é uma nazarena e é minha esposa.
Uma abalada Maria caminhou pelas ruas de Jerusalém, os passos
trôpegos, atrás de Salomé, no momento em que começava a amanhecer, a
primeira claridade espalhando-se pelo céu. A princesa tinha uma casa
em que ficariam seguras. Instruíra o mensageiro a levar Marta e as
crianças para lá. Depois que Maria se encontrava abrigada na casa, sã e
salva, esperando que a cunhada aparecesse com João e Tamar, Salomé
saiu à procura de outro mensageiro, para avisar a Grande Maria e os
outros, em Getsêmani.
Em outro lugar de Jerusalém, outra nobre, Cláudia Prócula,
sentia o enorme fardo que aguardava sua família naquele dia. Tivera
um sono irrequieto, quando a exaustão finalmente a dominara, já de
madrugada. Depois que o grego viera comunicar que sua missão com a
esposa do nazareno fora bem-sucedida, ela se permitira fechar os olhos.
Acordou suando frio. O sonho angustiante a sufocava. Podia sentir
que se agitava por todo o quarto, ao seu redor. Fechou os olhos, mas as
imagens persistiram, assim como o som de um canto que enchia sua
cabeça. Um coro de vozes, centenas e centenas, talvez milhares, repetia a
frase: “Crucificado sob Pôncio Pilatos, crucificado sob Pôncio Pilatos.”
Havia outras coisas no canto, repetidas obedientemente pelas vozes em
seu sonho, mas ela registrava apenas essas quatro palavras.
Por mais perturbadores que fossem os sons do pesadelo, as cenas
eram ainda piores. Começara como um sonho lindo, com crianças
dançando numa colina coberta de relva, ao sol da primavera. Easa estava
no meio de um círculo, cercado pelas crianças, vestidas de branco. Pilo era
uma das crianças queriam e dançavam, como Ismédia. A colina era
ocupada agora por pessoas de todas as idades, vestidas de branco,
sorrindo e cantando.
Cláudia reconheceu um dos homens. Era Pretório, o centurião que
tivera a mão curada. O homem lhe contara em confidência sua própria
cura, depois de ouvir os rumores sussurrados sobre o milagre de Pilo.
Mas quando ela compreendeu que cada uma das almas risonhas no
sonho, adultos e crianças, haviam sido curadas por Easa, a paisagem
mudou. A dança cessou e o céu foi se tornando mais e mais escuro,
enquanto o canto se tornava mais e mais alto: “Crucificado sob Pôncio
Pilatos, crucificado sob Pôncio Pilatos.”
Cláudia contemplava a paisagem de sonho quando seu amado Pilo
caiu no chão. A imagem à sua frente, quando acordou, foi de Easa, o
nazareno, inclinando-se para levantá-lo. Ele carregou Pilo sem olhar para
trás, enquanto os outros ao redor também caíam. Ela avistou Pôncio,
gritando numa agonia inútil para o vulto se afastando de Easa, o
Nazareno, que levava no colo o corpo sem vida de Pilo. Um raio riscou o
céu, enquanto o som do canto seguia-os pela encosta abaixo.
— Crucificado sob Pôncio Pilatos!
— Crucifiquem-no!
Aquele era um som novo, não o canto fantástico do pesadelo, mas
um som real de ódio, ressoando além das muralhas da Fortaleza Antonia.
— Crucifiquem-no!
Cláudia levantou-se e vestiu-se. O escravo grego entrou correndo no
quarto.
— Deve ir antes que seja tarde demais, minha senhora. O amo
preside o julgamento e os sacerdotes clamam por sangue.
— Quem está gritando lá fora?
— Uma enorme multidão. Como ainda é cedo, presumo que os
homens do Templo devam ter trabalhado durante a noite para mobilizá-
la. A sentença será dada antes que o resto de Jerusalém tenha a
oportunidade de se reunir para protestar.
Cláudia terminou de se vestir sem o cuidado habitual. Não tinha
interesse por sua aparência naquele dia. Só precisava estar bastante
decente para se mostrar aos homens no tribunal. Ao se contemplar no
espelho, um pensamento ocorreu-lhe:
— Onde está Pilo? Ainda não acordou?
— Não, minha senhora. Continua deitado.
— Melhor assim. Fique com ele e não o deixe sair do quarto. Não
quero que ele veja ou escute o que está acontecendo na cidade.
— Claro, minha senhora.
Cláudia saiu correndo do quarto, na missão mais importante de
sua vida.
Cláudia Prócula fez o melhor que podia para esconder o desespero
e a repulsa quando entrou no pátio, convertido num tribunal
improvisado. Pilatos fizera essa concessão aos sacerdotes, que não
queriam entrar nas câmaras romanas formais, para não correr o risco
de profanação na Páscoa. Era uma área murada e privada, que não os
expunha à multidão crescente lá fora. Pôncio Pilatos mandara levar sua
cadeira romana para o pátio, a fim de presidir o julgamento. Por trás dele,
havia dois guardas de confiança, Pretório, de olhos azuis, e o homem
rude que Cláudia detestava, chamado Longinus. Pilatos era flanqueado
no tablado por Anás e Caifás, de um lado, com um enviado de Herodes
no outro. O enviado do Templo, Jairo, era conspícuo por sua ausência.
No chão, na frente deles, amarrado e sangrando, estava Easa, o
Nazareno.
Cláudia ficou observando Easa de trás da cortina. Ele levantou os
olhos como se sentisse sua presença, antes de vê-la. Nesse momento,
Cláudia experimentou o mesmo sentimento de puro amor e luz que
sentira na noite em que Pilo fora curado. Não tinha o menor desejo de
desviar o olhar ou se desviar do calor daquele homem. Será que os outros
não sentiam? Como era possível que se mantivessem naquele espaço
fechado sem serem afetados pelo brilho e calor de sol que se irradiava
daquela criatura sagrada?
Ela limpou a garganta, a fim de alertar o marido para sua presença.
Pilatos virou o rosto e avistou-a.
— Cavalheiros, peço que me dêem licença.
Pilatos deixou o julgamento para ir ao encontro da esposa. Cláudia
levou-o para um ponto em que os outros não poderiam ouvi-los. Entrou
em pânico ao ver o rosto muito pálido do marido. O suor escorria pela
testa e têmporas do procurador romano, embora a manhã estivesse fresca.
— Acho que o resultado não será fácil, Cláudia.
— Não pode permitir que eles matem esse homem, Pôncio. Sabe o
que ele é.
Pilatos sacudiu a cabeça:
— Não, não sei o que ele é, e é isso que torna tão difícil determinar
uma sentença.
— Mas sabe que ele é apenas um homem que semeou boas ações
por toda parte. Sabe que ele não cometeu qualquer crime que exija
uma punição severa.
— Estão dizendo que ele é um rebelde. Se for considerado uma
ameaça a Roma, não posso permitir que continue a viver.
— Mas sabe que isso não é verdade!
Pilatos desviou os olhos da esposa por um longo momento. Respirou
fundo, antes de tornar a fitá-la:
— Cláudia, estou num tormento. Esse homem desafia toda a razão
e lógica romana. Toda filosofia que já estudei é contestada pela situação
com que nos defrontamos agora. Meu coração e meu instinto dizem que
ele é inocente... e não devo condenar um homem inocente.
— Então não condene! Por que é tão difícil assina? Você tem o poder
de salvá-lo, Pôncio. Salve o homem que nos devolveu nosso filho.
Pilatos passou as mãos pelo rosto para remover o suor.
— É difícil, porque Herodes exige a execução, o mais depressa
possível.
— Herodes é um chacal!
— É verdade, mas é um chacal que parte para Roma ao final da
tar de e tem o poder de me destruir junto a César, se eu desagradar-lhe.
O homem pode nos liquidar, Cláudia. Vale a pena? A vida de mais um
rebelde judeu vale a perda de nosso futuro?
— Ele não é um rebelde!
A conversa foi interrompida pelo enviado de Herodes, que chamou
Pilatos de volta ao julgamento. Quando ele se virou, Cláudia segurou-o
pelo braço.
— Pôncio, tive um sonho terrível na noite passada. Temo por você e
por Pilo se não salvar esse homem. A ira de Deus cairá sobre todos nós.
— É possível. Mas que Deus? Devo acreditar que o Deus dos judeus
tem poder sobre Roma?
Outros homens chamaram-no de volta ao julgamento, Pilatos
fitou a esposa nos olhos e acrescentou:
— É um dilema, Cláudia. O maior desafio que já enfrentei. Pensa
que sinto esse fardo menos do que você?
Ele voltou ao pátio, a fim de interrogar o prisioneiro. Cláudia
continuou a observar por trás da cortina.
— Os sacerdotes de sua nação trouxeram-no para mim, pedindo
a pena de morte — disse Pilatos ao prisioneiro nazareno. — O que você fez?
É o Rei dos Judeus?
Easa respondeu com sua calma habitual:
— Você mesmo formulou essa pergunta, pelo que conhece a meu
respeito? Ou os outros pediram que a fizesse?
— Responda à pergunta. Você é um rei? Se disser que não é, eu o
devolverei aos sacerdotes, para que seja julgado por suas próprias leis.
Jônatas Anás apressou-se em interferir:
— Não temos leis para condenar um homem à morte, procurador.
Foi por isso que viemos procurá-lo. Se ele não fosse um malfeitor e
perigoso, nunca o teríamos incomodado com esse problema.
— O prisioneiro terá de responder — insistiu Pilatos, ignorando a
intervenção de Anás.
Easa respondeu, olhando apenas para Pilatos. Cláudia teve a
impressão de que os dois homens não viam nem ouviam as outras
pessoas no pátio. Tudo acontecia só entre os dois, uma dança de destino
e fé que mudaria o mundo. Cláudia sentiu um calafrio percorrer seu
corpo.
— Vim a este mundo para mostrar às pessoas O Caminho de Deus
e dar testemunho da verdade.
O filósofo romano em Pilatos não podia deixar passar aquela
oportunidade:
— A verdade... Diga-me, nazareno, qual é a verdade?
Os dois fitaram-se em silêncio por um longo momento, seus
destinos entrelaçados. Pilatos rompeu a interação ao se virar para os
sacerdotes:
— Eu direi o que é a verdade. A verdade é que não encontro
qualquer culpa neste homem.
Pilatos foi interrompido pelo anúncio da chegada de um
retardatário. A sessão parou quando Jairo entrou e cumprimentou os
outros sacerdotes. Pediu desculpas a Pilatos pelo atraso, alegando
questões urgentes relacionadas com a Páscoa.
— Não tem importância, Jairo. — Pilatos sentia-se aliviado pela
presença do judeu que se tornara seu amigo. Tinham um segredo
partilhado. — Acabo de comunicar a seus irmãos que não encontro
qualquer culpa nesse homem e não posso condená-lo.
Jairo balançou a cabeça, com uma expressão compreensiva:
— Entendo...
Caifás virou-se para Jairo:
— Você sabe como esse homem é perigoso.
Jairo olhou para seu irmão sacerdote e de novo para Pilatos, fazendo
um esforço para não fitar o prisioneiro.
— Mas é a Páscoa, meus irmãos. Um tempo de justiça e paz entre
nosso povo. — Para Pilatos, ele acrescentou: — Conhece o nosso costume
nesta época do ano?
Pilatos percebeu o que Jairo tentava fazer e aproveitou a
oportunidade:
— Claro que conheço. Todos os anos, nesta época, vocês escolhem
um prisioneiro para receber clemência e ser libertado. Levaremos esse
prisioneiro à presença do povo para que decida seu destino?
— Excelente!
Jairo sabia que Anás e Caifás estavam acuados, e não podiam
recusar a generosa oferta de Roma. Também sabia que na multidão lá fora
havia muitos partidários dos sacerdotes... e mais do que uns poucos
mercenários, que haviam sido bem pagos para criar uma manifestação
contra o nazareno, se isso fosse necessário. Jairo só podia torcer para que
os nazarenos e seus partidários já tivessem chegado, trazendo
seguidores em grande quantidade.
Pilatos mandou que os centuriões levassem o prisioneiro para a
muralha da fortaleza. Caifás e Anás pediram licença para não segui-los,
porque não queriam ser vistos em companhia de romanos naquela
manhã. Voltariam depois que fosse tomada a decisão de salvar um
prisioneiro. Pilatos desconfiou de que os sacerdotes quisessem sair para
incitar a multidão contra Easa, mas não podia fazer nada. Olhou para
Jairo quando ele também pediu licença para se retirar. Os dois trocaram
um olhar significativo, pouco antes de cada um se afastar para cumprir
seus deveres.
Pilatos fez o anúncio da Páscoa diante da multidão cada vez maior,
a voz ressoando na manhã de Jerusalém:
— Sei que vocês têm um costume. Por isso, libertarei um dos
prisioneiros em homenagem à sua Páscoa.
Easa foi arrastado bruscamente para o lado de Pilatos. O
procurador lançou um olhar furioso para Longinus por sua brutalidade
desnecessária.
— Já chega! — disse ele ao centurião, em voz baixa, antes de se virar
de novo para a multidão. — Devo soltar este homem, o Rei dos Judeus?
Houve uma atividade frenética na multidão, vozes disputando
umas com as outras para serem ouvidas. Alguém gritou:
— Não temos rei além de César!
Outro homem acrescentou:
— Soltem Barrabás, o zelote!
Essa sugestão foi recebida com gritos de aprovação. Algumas vozes
intrépidas ainda tentaram:
— Soltem o nazareno!
Mas foi em vão. Os seguidores do Templo haviam sido bem
instruídos e o coro para soltar Barrabás tornou-se ensurdecedor.
— Barrabás! Barrabás! Barrabás!
Pilatos não tinha opção que não soltar o prisioneiro favorecido pela
multidão. Barrabás, o zelote, foi libertado para celebrar a Páscoa,
enquanto Easa, o Nazareno, era condenado ao flagelo. Cláudia Prócula
interceptou o marido quando ele descia da muralha.
— Vai açoitá-lo?
— Paz, mulher! — disse Pilatos, ríspido, puxando-a para o lado. —
Ele terá de ser açoitado publicamente, mas ordenarei que Pretório
e Longinus sejam brandos. Talvez isso satisfaça a sede de sangue da
multidão e as pessoas deixem de clamar por sua crucificação.
Ele suspirou fundo, soltou a esposa, e acrescentou:
— É tudo o que ainda posso fazer, Cláudia.
— E se não for suficiente?
— Não me faça a pergunta se não quiser ouvir a resposta.
Cláudia balançou a cabeça, consternada. Já desconfiara que era
essa a situação.
— Pôncio, eu queria lhe pedir mais uma coisa. A família desse
homem... a esposa e os filhos... estão nos fundos da fortaleza. Queria
que você adiasse o flagelo apenas pelo tempo suficiente para que ele possa
vê-los. Pode ser sua última oportunidade de falar com as pessoas que
ama. Por favor.
Pilatos concordou, com um brusco movimento de cabeça.
— Está bem, mas não por muito tempo. Mandarei Pretório levar o
prisioneiro. Ele merece confiança em tudo que se relaciona com o
nazareno. Mandarei Longinus preparar a punição pública.
Pôncio Pilatos cumpriu sua palavra. Permitiu que Easa fosse levado
a um aposento nos fundos da fortaleza, para um encontro com Maria e
as crianças. Easa abraçou o pequeno João e Tamar, disse-lhes que
deveriam ser corajosos e cuidar da mãe. Beijou-os e acrescentou:
— Lembrem-se, meus filhos queridos, que estarei sempre com
vocês, não importa o que possa acontecer.
Quando o tempo estava quase esgotado, ele abraçou Maria
Madalena pela última vez.
— Preste atenção, minha pombinha, pois é muito importante.
Depois que eu deixar meu corpo de carne, não deve se apegar a ele. Deve
me deixar partir, com a certeza de que estarei sempre com você em
espírito. Feche os olhos e vai me encontrar.
Ela tentou sorrir através das lágrimas, fazendo um grande esforço
para se mostrar corajosa. O coração estava abalado e sentia-se atordoada
de angústia e terror, mas não queria deixar que ele percebesse. Sua força
era a dádiva final que podia lhe oferecer.
Pouco depois, Pretório entrou na sala para levar Easa. Os olhos
azuis do centurião estavam avermelhados. Easa procurou confortá-lo:
— Faça o que tem de fazer.
— Vai se arrepender de ter curado minha mão — balbuciou o
centurião, quase sufocando com as palavras.
Easa sacudiu a cabeça em negativa:
— Não, não vou. Prefiro saber que o homem no outro lado é um
amigo. Saiba agora que o perdôo. Mas, por favor, pode me dar mais um
momento?
Pretório balançou a cabeça e saiu para esperar lá fora. Easa virou-
se para as crianças. Pôs a mão em seu coração.
— Lembrem-se de que estou bem aqui. Sempre estarei.
João e Tamar inclinaram a cabeça, solenemente. Os olhos escuros
de João estavam imensos e sérios, enquanto os olhos da pequena
Tamar enchiam-se de lágrimas, embora não compreendesse a terrível
situação. Easa virou-se para Maria e sussurrou:
— Prometa que não deixará as crianças verem o que vai
acontecer hoje. E eu não gostaria que você testemunhasse o que
acontecerá em seguida. Mas no final...
Ela não o deixou terminar. Abraçou-o e apertou-o com toda a
força, por um último momento, marcando em seu cérebro e corpo como o
sentia exatamente em carne e osso. Guardaria aquela lembrança
enquanto vivesse.
— Estarei lá com você — sussurrou Maria. — Não importa o que
possa acontecer.
— Obrigado, minha Maria.
Easa desvencilhou-se, gentilmente. Disse as palavras finais com um
sorriso, como se fosse voltar para jantar em casa ao final da tarde.
— Nunca sentirá minha falta, porque não irei embora. Será melhor
do que é agora, porque nunca mais vamos nos separar.
Maria e as crianças deixaram a Fortaleza Antonia com o escravo
grego de Cláudia Prócula. Maria pediu para se encontrar com Cláudia,
pois queria agradecer pessoalmente. Mas o escravo sacudiu a cabeça em
negativa e respondeu em sua língua nativa:
— Minha ama está consternada com os acontecimentos deste dia.
Ela me disse que não pode encará-la. Tentou tudo que podia para salvá-
lo.
— Diga-lhe que sei disso. E que Easa também sabe. Diga ainda
que espero que um dia possamos nos encontrar e transmitirei
pessoalmente meus agradecimentos e de Easa.
O grego inclinou a cabeça, humilde, e depois se retirou para ir ao
encontro de sua ama.
Maria e as crianças saíram para o caos que era Jerusalém
naquela sexta-feira sagrada. Precisava tirar as crianças dali, levá-las
para o mais longe possível, antes que os sons da flagelação alcançassem os
seus ouvidos. A casa segura oferecida por Salomé ficava ali perto. Maria
decidiu ir até lá para encontrar Marta e instruí-la a levar as crianças de
volta para Betânia.
A Grande Maria e as duas Marias mais velhas estavam na casa.
Mas Marta saíra para procurar Madalena e as crianças, sem saber que
voltariam para a casa. Maria Madalena tinha o difícil encargo de relatar
os acontecimentos da manhã para a mãe de Easa. A Grande Maria
balançou a cabeça, as lágrimas aflorando aos olhos idosos, que
revelavam uma imensa sabedoria e compaixão.
— Ele viu isso acontecer há muito tempo — murmurou ela, depois
de um longo momento. — E eu também vi.
As mulheres decidiram sair e enfrentar a multidão de Jerusalém.
Encontrariam Marta e providenciariam para que João e Tamar fossem
levados para um lugar seguro, longe dali... e depois procurariam Easa. Se
ele fosse condenado e crucificado hoje, não o deixariam. Maria prometera.
Easa clamara apenas por ela e a mãe naquelas horas finais.
Ao se prepararem para deixar a casa, a Grande Maria aproximou-se
da nora, estendendo o véu vermelho de sua posição.
— Use isto, minha filha. Você é uma nazarena e uma rainha,
agora mais do que nunca.
Maria Madalena pegou o véu vermelho e passou-o em torno do
corpo, plenamente consciente de que sua vida nunca mais seria a
mesma.
— Crucifiquem-no! Crucifiquem-no!
O coro da multidão ressoava por toda parte. Pilatos observava com
uma mistura de impotência e repulsa. O brutal derramamento de sangue
do nazareno não satisfizera a multidão. Ao contrário, parecia ter insuflado
as pessoas a clamarem com mais veemência pela morte do prisioneiro.
Um homem se adiantou com uma coroa de espinhos afiados. Jogou-a na
direção de Easa, ainda arriado no poste em que fora açoitado, os
ferimentos abertos ao sol forte da manhã.
— Aqui está sua coroa, se você é mesmo um rei! — escarneceu ele,
arrancando risadas desdenhosas dos espectadores.
Pretório desamarrou Easa. Tirava-o do poste quando Longinus
pegou a coroa de espinhos e fincou-a cruelmente na cabeça de Easa. A
carne do couro cabeludo e da testa foi rasgada. O sangue misturou-se
com o suor e escorreu para os olhos de Easa, enquanto a multidão hostil
berrava em aprovação.
— Já chega, Longinus! — resmungou Pretório para seu
companheiro.
Longinus soltou uma risada, um som estridente e amargo:
— Você está ficando mole. — Ele cuspiu na direção dos pés de
Pretório. — Não demonstrou a menor satisfação ao açoitar esse Rei dos
Judeus.
Quando Pretório respondeu, foi com uma voz tão ameaçadora que
fez um calafrio subir pela espinha do calejado Longinus:
— Toque nele sem necessidade outra vez e cuidarei para que
tenha uma cicatriz igual na outra face.
Pilatos interpôs-se entre os dois, sentindo a possibilidade de
violência entre seus próprios homens. Não podia permitir que isso
acontecesse, não hoje. O que os dois quisessem fazer um com o outro,
mais tarde, longe da vista da multidão, era uma coisa; mas ali e naquele
momento ele tinha de assumir o controle antes que a situação se
deteriorasse ainda mais. O procurador romano levantou as mãos para
falar à multidão:
— Olhem para esse homem. Apenas um homem, eu digo, porque
acho que não é um rei. Não vejo culpa nesse homem e ele já foi flagelado
de acordo com a lei romana. Não há mais nada que possamos fazer aqui.
— Crucifiquem-no! Crucifiquem-no!
O coro da multidão era implacável, como se fosse ensaiado e
encenado. Pilatos ficou furioso com a manipulação da multidão, que o
deixava numa situação difícil. Encostou a mão em Easa e inclinou-se
para lhe falar.
— Escute, Nazareno, esta é sua última oportunidade de se salvar.
Por isso, eu lhe pergunto. Você é um Rei dos Judeus? Porque, se disser
que não é, não terei motivos para crucificá-lo, pela lei romana. E tenho
o poder para libertá-lo.
A última frase foi dita em tom de extrema urgência. Easa fitou
Pilatos em silêncio por um longo momento.
Maldito seja! Fale logo!
Foi como se Easa lesse os pensamentos de Pôncio Pilatos, pois
respondeu num sussurro:
— Não posso tornar a situação mais fácil para você. Nossos
destinos foram escolhidos para nós, mas você deve agora escolher seu
senhor.
A tensão na multidão aumentava, com mais berros ressoando no
cérebro de Pôncio Pilatos. Havia muitos gritos em favor do nazareno,
mas eram abafados pelos clamores sedentos de sangue dos mercenários
que haviam recebido um generoso pagamento dos sacerdotes para
realizar aquele serviço sórdido. Os nervos de Pilatos estavam tão
tensos quanto um arco esticado, enquanto via pesarem seus deveres,
suas ambições, sua filosofia e sua família, sobre os ombros daquele frágil
nazareno. Um grito à sua esquerda surpreendeu-o. Virou-se para avistar
o enviado de Herodes, o tetrarca da Galiléia.
— O que é? — perguntou Pilatos.
O homem entregou um pergaminho com o sinete de Herodes.
Pilatos leu o que estava escrito ali.
Gostaria que resolvesse imediatamente o problema do nazareno, pois
quero partir mais cedo para Roma, sabendo que poderei apresentar a César
um relatório favorável sobre a maneira como você lida com as ameaças
contra Sua Majestade Imperial.
Era o golpe final para Pôncio Pilatos. Ele releu o pergaminho, só
então percebendo que estava manchado de sangue... o sangue do
nazareno, que escorrera para suas mãos quando o tocara. Chamou um
servo e pediu que lhe trouxesse uma bacia de prata com água. Pilatos
lavou as mãos, fazendo um esforço para não ver a água se tornando
vermelha com o sangue do prisioneiro.
— Lavo o sangue desse homem de minhas mãos! — gritou ele para
a multidão. — Crucifiquem seu rei, se é isso o que estão decididos a fazer.
Pilatos virou-se, sem olhar mais para Easa, e voltou para a
Fortaleza Antonia. Mas ainda não acabara para ele. Caifás foi procurá-lo
momentos depois, acompanhado por vários homens do Templo.
— Já não fiz o suficiente para vocês em um dia? — perguntou Pilatos
ao sacerdote.
— Quase, Excelência — respondeu Caifás, com um sorriso
presunçoso.
— O que mais vocês querem de mim?
— A tradição determina que uma placa seja pendurada na cruz,
um título para mostrar ao mundo o crime que o homem cometeu.
Gostaríamos que escrevesse que ele era um blasfemo.
Pilatos pediu os materiais para escrever o título para a placa que
seria pendurada na cruz.
— Escreverei aquilo pelo qual o condenei, não o que vocês me pedem.
Essa é a tradição.
E ele escreveu a abreviação INRI, com o significado logo abaixo: Easa,
o Nazareno, Rei dos Judeus. Pilatos olhou para seu servo.
— Providencie para que isso seja pregado na cruz, acima do
prisioneiro. E mande o escriba escrever a mesma coisa em hebraico e
aramaico.
Caifás ficou consternado.
— Não deve dizer isso! Se for preciso, escreva: “Ele alegou que era o rei
dos judeus”, para que as pessoas saibam que não o respeitamos como tal.
Pilatos já se cansara daquele homem e suas manipulações, hoje e
para sempre. Irradiava uma ira intensa ao responder:
— O que escrevi, está escrito.
E ele virou as costas para Caifás e os outros. Retirou-se para o
sossego de seus aposentos, onde permaneceu trancado pelo resto do dia.
A multidão cada vez maior parecia se movimentar como se
fervilhasse, arrastando Maria e as crianças. Ela agarrava os filhos com
firmeza, um em cada mão, enquanto tentava atravessar, à procura de
Marta. Pelos comentários, Maria sabia que Easa fora condenado e estava
sendo levado para o Gólgota, onde seria executado. Avaliando o
movimento da turba, ela compreendeu que Easa se encontrava no meio
da procissão que se arrastava pela rua. Seu desespero aumentava cada
vez mais. Tinha de encontrar Marta, providenciar para que as crianças
fossem levadas para longe, sãs e salvas, a fim de que ela pudesse passar
os momentos finais ao lado de Easa.
E foi nesse instante que ela ouviu. A voz de Easa soou tão nítida em
sua cabeça como se ele estivesse ao seu lado:
— Peça e receberá. É simples assim. Deve pedir ao Senhor Nosso
Pai pelo que queremos e ele providenciará para as crianças que ama.
Maria Madalena apertou as mãos das crianças e fechou os olhos.
— Por favor, Senhor, ajude-me a encontrar Marta, para que ela
leve meus filhos até um lugar seguro. Assim, poderei ficar junto de
meu amado Easa em seu momento de sofrimento.
— Maria! Estou aqui, Maria!
A voz de Marta atravessou a multidão para alcançar a cunhada,
segundos depois da oração. Maria abriu os olhos para avistá-la se
aproximando. As duas se abraçaram, emocionadas.
— Eu a descobri no meio de todo esse povo porque está usando o
véu vermelho — explicou Marta.
Maria fez um esforço para conter as lágrimas. Não havia tempo a
perder, mas a presença de Marta era um grande conforto para ela.
— Venha comigo, minha princesinha. — Marta pegou Tamar no
colo. Segurou João pela mão. — Você também, meu jovem.
Maria deu um abraço apertado em cada criança, prometendo
que voltariam a se encontrar em Betânia, o mais depressa possível.
— Vá com Deus, irmã — sussurrou Marta para Maria. —
Cuidaremos das crianças até que você possa voltar para casa. Tome
cuidado.
Ela beijou a cunhada, mais jovem, agora uma mulher adulta com
porte de rainha, depois tornou a enfrentar a multidão, levando as
crianças.
Maria Madalena precisou fazer um grande esforço para avançar
pelo meio da multidão. Conseguiu ficar à frente de todos, mas não foi
capaz de se aproximar de Easa. Avistou os véus vermelhos da Grande
Maria e das outras Marias e seguiu-as, pelo caminho sinuoso que levava
ao Gólgota. Tentou alcançá-las, mas foi ficando para trás, espremida pela
multidão que seguia sua presa.
Quando os centuriões chegaram ao alto do morro conhecido como o
Lugar do Crânio, ela verificou que estavam pelo menos cem metros à sua
frente. Lá estavam o vulto encurvado de Easa e os véus vermelhos de sua
mãe e das outras Marias. A multidão à frente ainda era densa,
bloqueando a passagem de Maria. Ela não se importava com mais nada.
Não havia tempo para pensar em qualquer outra coisa que não alcançar
Easa. Maria contornou a multidão, deixou o caminho e começou a escalar
a encosta rochosa. Havia pedras pontiagudas e espinheiros, mas nada
disso tinha qualquer importância para Maria Madalena.
Estava tão empenhada em alcançar seu destino que não notou a
princípio que o céu começava a escurecer. Escorregou numa rocha,
rasgando a parte inferior do véu. Um espinheiro abriu cortes em sua
perna. Ao cair, ouviu o som, o estrépito angustiante e comovente que a
atormentaria todas as noites, pelo resto de sua vida: metal contra
metal, martelo batendo em prego. Houve um grito de agonia quando
Maria escorregou de novo, mas só mais tarde ela compreendeu que o grito
saíra de seus próprios lábios.
Encontrava-se tão perto agora que não podia permitir que nada a
detivesse. Enquanto subia, Maria percebeu, aturdida, que as rochas
estavam molhadas e escorregadias. O céu se tornara negro e a chuva
caía, como lágrimas divinas sobre a Terra ressequida e condenada,
onde o Filho de Deus acabara de ser pregado numa cruz de madeira.
Maria Madalena alcançou a cruz momentos depois, juntando-se à
sogra e às outras Marias em sua vigília. Havia dois outros homens
sofrendo no Gólgota naquele dia, em cruzes que ladeavam a de Easa.
Maria não olhou para eles; só tinha olhos para Easa. Estava determinada
a não ver os ferimentos; em vez disso, concentrou-se no rosto, que
parecia sereno e calmo, os olhos fechados. As mulheres mantinham-se
paradas ali, juntas, amparando umas às outras, orando a Deus para
livrar Easa do sofrimento. Maria olhou ao redor e constatou que não
conhecia ninguém na multidão... e pelo resto do dia não viu nenhum dos
discípulos.
Os romanos mantinham as pessoas afastadas do local da
execução. Ao olhar para os centuriões, Maria constatou que Pretório
estava no comando. Fez uma oração silenciosa de agradecimento a ele,
pois tinha certeza de que era o responsável por permitir que a família
tivesse alguma privacidade ao pé da cruz.
Todas ficaram imóveis quando ouviram Easa tentar falar. Era
muito difícil, pois o peso do corpo sobre o diafragma tornava quase
impossível respirar e falar ao mesmo tempo.
— Mãe... olhe para seu filho.
As mulheres chegaram mais perto da cruz para ouvir suas
palavras. O sangue escorria do corpo todo ferido, misturando-se com as
gotas de chuva que caíam nos rostos das mulheres.
— Minha amada... — sussurrou ele para Maria Madalena. — Olhe
para sua mãe.
Easa fechou os olhos e acrescentou, a voz baixa, mas muito clara:
— Está acabado.
Ele baixou a cabeça e ficou imóvel. Houve silêncio. Ninguém se
mexia na multidão. O céu ficou todo preto nesse instante, não da cor de
um céu com nuvens de tempestade, mas preto como breu, desprovido de
toda e qualquer luz.
A multidão no monte começou a entrar em pânico, com gritos de
confusão espalhando-se pelo ar. Mas a escuridão durou apenas um
instante, logo passando para um cinza opaco. Dois soldados
aproximaram-se de Pretório.
— Temos ordens para apressar a morte dos prisioneiros, para que
seus corpos possam ser removidos antes do Sabá dos judeus.
Pretório olhou para o corpo de Easa.
— Não há necessidade de quebrar as pernas desse homem. Ele já
morreu.
— Tem certeza? — perguntou um dos soldados. — Normalmente
os homens levam muitas horas para sufocar da crucificação, às vezes
até alguns dias.
— Esse homem está morto — insistiu Pretório. — Não toquem nele.
Os dois soldados eram bastante perceptivos para compreender
a ameaça no tom de seu chefe. Com seus porretes, foram cumprir a
desagradável tarefa de quebrar as pernas dos outros dois prisioneiros, a
fim de apressar o processo de sufocação.
Pretório estava tão ocupado em dar ordens que não viu Longinus
se aproximar do outro lado da cruz. Já era tarde demais quando tornou
a focalizar Easa com seus olhos azuis. Longinus, com a lança na mão,
espetou-a na lateral do corpo do prisioneiro nazareno. Maria Madalena
gritou em protesto. A risada de Longinus em resposta foi dura e sádica:
— Só estou conferindo. Mas é verdade. O nazareno está morto. —
Ele virou-se para Pretório, que estava pálido de raiva. — O que
pretende
Pretório fez menção de falar, mas logo se conteve. Quando
finalmente respondeu, sua voz era calma:
— Nada. Não preciso fazer nada. Você criou sua própria maldição
pelo que fez.
— Baixem esse homem! — ordenou Pretório.
Um mensageiro da fortaleza de Pilatos trouxera uma mensagem
para tirar da cruz o corpo do nazareno e entregá-lo à família, para ser
sepultado antes do pôr-do-sol. Era uma decisão excepcional, pois de um
modo geral as vítimas de crucificação eram deixadas em suas cruzes, os
corpos se decompondo, como uma advertência para o povo. Mas o caso de
Easa, o Nazareno, era diferente.
O tio rico de Easa, José, o mercador de estanho, fora à Fortaleza
Antonia, em companhia de Jairo, e conversara com Cláudia Prócula. Fora
ela quem Obtivera permissão para a remoção imediata do corpo, para
sepultamento. Ao chegar ao Gólgota, José confortou a Grande Maria,
enquanto seu filho era retirado da cruz. A mãe de Easa estendeu os
braços quando os soldados pegaram o corpo, murmurando:
— Quero abraçar meu filho pela última vez.
Pretório pegou o corpo de Easa e foi depositá-lo, gentilmente, no colo
da Grande Maria. Ela abraçou-o, permitindo-se chorar pela perda de seu
amado filho. Maria Madalena ajoelhou-se ao seu lado. A Grande Maria
estendeu um braço para incluí-la no abraço, enquanto o outro braço
aninhava a cabeça de Easa.
As duas permaneceram nessa posição de luto, juntas, por um
longo tempo.
José comprara um sepulcro para a família num cemitério não
muito longe do Gólgota. Foi para lá que os nazarenos levaram o corpo de
Easa. Nicodemo, um nazareno que trabalhava para José, levou mirra e
aloé para o túmulo. As Marias iniciaram a preparação do corpo para o
sepultamento, envolvendo-o com a mortalha. Mas, quando chegou o
momento de ungir Easa com a mirra, a Grande Maria estendeu o pote
para Maria Madalena.
— Só você pode ter essa honra.
Madalena cumpriu os deveres de uma viúva no ritual fúnebre.
Beijou Easa na testa e despediu-se, as lágrimas misturadas com a mirra.
Ao fazê-lo, teve certeza de ouvir a voz de Easa no sepulcro, fraca, mas
firme:
— Estou sempre com você.
Juntas, as nazarenas despediram-se e deixaram a tumba. Uma
enorme laje de pedra fora providenciada para tapar a tumba, a fim de
proteger o corpo de Easa. Foi preciso recorrer à força de vários homens,
uma roldana e tábuas, para colocar o bloco de pedra em seu lugar. Isso
feito, o grupo desolado retirou-se para a segurança da casa de José.
Maria Madalena desfaleceu ao chegar lá e dormiu até o dia seguinte.
Na tarde de sábado, diversos apóstolos foram à casa de José para
uma conversa com Maria Madalena e as Marias mais velhas. Partilharam
seus relatos sobre os acontecimentos do dia anterior e consolaram-se
mutuamente. Foi um tempo de desespero, mas também um tempo que
serviu para uni-los ainda mais. Ainda era cedo para tratar do futuro do
movimento, mas aquele espírito de união era um bálsamo para as
sensibilidades abaladas.
Maria Madalena, contudo, estava preocupada. Ninguém vira ou
tivera notícias de Judas Iscariotes desde a prisão de Easa. Jairo esteve na
casa de José para saber de seu paradeiro. Informou que Judas ficara
desesperado depois da prisão. Chorara para Jairo toda a noite,
indagando:
— Por que ele me escolheu para esse ato? Por que fui o indicado para
cometer esse crime contra o meu povo?
Maria explicou para o círculo íntimo de discípulos que Easa
instruíra Judas a entregá-lo às autoridades. Mas as outras pessoas não
sabiam — e não podiam saber — da verdade. Por isso, o nome de Judas
estava se transformando rapidamente em sinônimo de “traidor” por toda
Jerusalém, uma fama que se espalhava além. A reputação adquirida de
Judas era mais uma da longa série de injustiças ocorridas naquele curso
de destino e profecia. Maria orou para que um dia pudesse restaurar o
nome de Judas. Mas ela ainda tinha de saber como fazê-lo.
Judas nunca saberia se Maria seria capaz de restaurar a honra
para seu nome. Descobririam depois que já era tarde demais, que outra
tragédia ocorrera naquela tarde sinistra. Incapaz de aceitar que seu
nome ficasse ligado para sempre à morte de seu Senhor e Mestre,
Judas Iscariotes acabou com a própria vida no Dia das Trevas. Foi
encontrado numa árvore, enforcado, fora das muralhas de Jerusalém.
Maria Madalena teve um sono irrequieto naquela noite. Havia
muitas imagens em sua mente, muitos sons e lembranças. Começou
com um sentimento de apreensão, uma vaga noção de que havia algo
errado. Maria levantou-se e atravessou, em silêncio, a casa de José. O céu
ainda estava escuro, pois faltava pelo menos uma hora para o amanhecer.
Não havia ninguém acordado e tampouco qualquer coisa errada na casa.
E, de repente, ela soube. Teve aquele relance de profecia, que
combina saber com ver. Easa. Precisava ir até sua tumba. Havia alguma
coisa acontecendo no lugar em que ele fora sepultado. Maria hesitou por
um momento. Deveria acordar José ou um dos outros para acompanhá-
la? Talvez Pedro?
Não! Você deve ir sozinha.
Ela ouviu a resposta dentro da cabeça, mas ressoou ao seu redor.
Envolta pela fé e um véu de luto, Maria Madalena saiu pela porta sem
fazer barulho. Fora da casa, correu para a tumba, tão depressa quanto
suas pernas podiam levá-la.
Ainda estava escuro quando ela alcançou a parte do jardim em que
ficava o sepulcro. O céu era púrpura em vez de preto; o amanhecer viria
em breve. Havia claridade apenas suficiente para que Maria pudesse ver
que o enorme bloco de pedra — que precisara da força de uma dúzia de
homens para deslocá-lo — fora removido da entrada da tumba.
Maria correu até lá, o coração disparado de medo. Baixou a cabeça
para entrar na tumba, e viu que Easa não se encontrava mais ali.
Estranhamente, havia luz no sepulcro, um brilho diferente, que iluminava
toda a câmara. A mortalha de linho estava estendida sobre o bloco de
pedra. Os contornos do corpo de Easa eram visíveis na mortalha, mas
essa era a única indicação de que ele estivera ali.
Como acontecera? Os sacerdotes sentiam tanto ódio de Easa que
haviam chegado ao extremo de roubar seu corpo? Não, não podia ser.
Então quem fizera aquilo?
Ofegante, Maria saiu da tumba, voltando ao jardim. Desabou no
chão, chorando pelo que pensava ser mais uma indignidade sofrida por
Easa. Enquanto chorava, os raios do sol iniciaram a jornada de luz
através do céu. Os primeiros raios dançavam em seu rosto quando ela
ouviu uma voz de homem por trás dele:
— Mulher, por que chora? A quem procura?
Maria não levantou os olhos no mesmo instante. Pensou que
talvez um jardineiro tivesse chegado ao amanhecer para cuidar da relva e
das flores em torno das tumbas. E depois pensou que talvez ele tivesse
visto alguma coisa e pudesse ajudá-la. Ela falou através das lágrimas,
enquanto erguia o rosto:
— Alguém levou meu Senhor e não sei para onde. Se sabe onde ele
está, suplico que me diga.
— Maria...
A voz que a chamava agora era inconfundível. Ela ficou imóvel, por
um momento com medo de se virar, sem saber o que encontraria quando
olhasse.
— Maria, estou aqui.
Maria Madalena virou-se, enquanto o sol da manhã iluminava o
belo homem à sua frente. Easa estava parado ali, vestindo uma túnica
branca impecável, sem qualquer vestígio dos ferimentos que sofrera.
Sorriu para ela, seu lindo sorriso de afeto e ternura. Quando ela se
adiantou, Easa ergueu a mão.
— Não se apegue, Maria. Meu tempo neste mundo passou, embora
eu ainda não tenha ascendido ao encontro de meu Pai. Tinha de lhe dar
este sinal agora. Procure nossos irmãos e diga-lhes que subirei agora ao
encontro de meu Pai no céu, aquele que também é seu Pai e o deles.
Maria acenou com a cabeça, reverente diante de Easa. Podia sentir
a luz pura e terna de sua bondade irradiando-se ao redor.
— Meu tempo aqui passou. Agora é o seu tempo.
CAPÍTULO VINTE
Château des Pommes Bleues
29 de junho de 2005
Maureen estava sentada no jardim com Peter. O chafariz de Maria
Madalena borbulhava suavemente atrás deles. Ela tivera de levá-lo para
respirar um pouco de ar fresco, longe dos outros. O rosto do primo estava
pálido e contraído, de insônia e estresse dos acontecimentos daquela
semana. Parecia ter envelhecido pelo menos dez anos nos últimos dias.
Maureen até notou que, nas têmporas, havia alguns fios de cabelos
brancos, que nunca vira antes.
— Sabe qual é a parte mais difícil de tudo isso?
A voz de Peter era um sussurro quase inaudível. Maureen sacudiu
a cabeça. Para ela, aquela era a mais inebriante de todas as
circunstâncias possíveis. Mas sabia que muito do que Peter acreditara,
por que vivera, fora contestado pelas coisas que lera no evangelho de
Maria. E, no entanto, as palavras de Maria confirmavam a mais sagrada
premissa do cristianismo, a ressurreição.
— Não, não sei. Qual é?
Peter fitou-a, os olhos injetados. Queria que ela compreendesse o
que estava pensando.
— E se... e se negamos durante dois mil anos o derradeiro desejo
de Jesus Cristo? E se negamos o que o evangelho de João tentava nos
dizer desde o início, quando Jesus aparece primeiro para Maria
Madalena... que ela é a sucessora escolhida? Não seria irônico se
tivéssemos negado em seu nome um lugar a Maria Madalena, não
apenas como apóstola, mas também como líder dos apóstolos?
Ele fez uma pausa, tentando definir os desafios que haviam
aflorado em sua mente... e também em sua alma.
— Não se apegue. É o que ele diz a Maria Madalena. Sabe como isso é
importante?
Maureen sacudiu a cabeça e esperou pela explicação.
— Os evangelhos não são traduzidos assim... mas como “não me
toque”. É possível que o verbo grego nos originais tenha sido apegar em
vez de tocar, mas ninguém jamais pensou dessa maneira. Entende a
diferença? — Todo o conceito era uma revelação para Peter, como
estudioso e como lingüista. — Percebe como a tradução de uma única
palavra pode mudar tudo? Mas nos evangelhos de Maria o verbo usado é
com certeza apegar. Ela até usa duas vezes, citando Jesus.
Maureen tentava acompanhar a intensa reação de Peter a essa
única palavra.
— Não resta a menor dúvida de que há uma diferença entre não
me toque e não se apegue.
— Isso mesmo — confirmou Peter, enfático. — A tradução “não
me toque” tem sido usada contra Maria Madalena, para demonstrar
que Cristo a repelia. O que constatamos aqui, quando Cristo diz para ela
não se apegar quando ele partir, é uma indicação de que ela deve seguir
seu próprio caminho, se destacar por si mesma.
O suspiro de Peter foi profundo, impregnado de exaustão.
— É uma imensa diferença, Maureen... imensa!
Maureen estava começando a perceber os desdobramentos da
história de Maria.
— Acho que a descrição das mulheres como líderes no movimento é
um dos elementos mais importantes na história — comentou ela. —
Pete, detesto piorar as coisas para você neste momento, mas o que acha
dessa perspectiva sobre a Virgem? Madalena chama-a de Grande Maria
e refere-se a ela, claramente, como uma líder de seu povo. Maria é um
título dado a uma líder feminina. E há também o véu vermelho...
Peter sacudiu a cabeça, como se pudesse dessa maneira desanuviá-
la.
— Ouvi uma ocasião o argumento de que o Vaticano declarou que a
Virgem seria apresentada apenas em branco e azul como um meio de
reduzir seu poder, de esconder sua importância original como líder
nazarena... que usava um véu vermelho, como vimos. Sinceramente,
sempre achei que tudo isso era bobagem. Parecia óbvio para mim que a
Virgem era apresentada em azul e branco para demonstrar sua pureza.
Peter fez uma pausa. Levantou-se, cansado, enquanto
acrescentava:
— Mas agora nada mais me parece óbvio.
Cape Cod, Massachusetts
30 de junho de 2005
No outro lado do Atlântico, em Cape Cod, Eli Wainwright, o magnata
do mercado imobiliário, estava sentado numa poltrona, olhando pela
janela, através do gramado de sua extensa propriedade. Não recebia
notícias de Derek havia quase uma semana, o que o deixava muito
preocupado. Existia um contingente americano na França para celebrar o
dia de João Batista. O líder desse grupo telefonara para Eli quando Derek
não apareceu para recebê-los. Eli vasculhava o cérebro, tentando pensar
como Derek. O filho sempre fora um pouco independente, mas sabia o
quanto aquilo era importante. Tudo o que tinha de fazer era se ater ao
plano, permanecer perto do Mestre da Justiça e descobrir tanto quanto
pudesse sobre seus movimentos e motivações. Depois que tivessem um
relatório completo, os americanos poderiam começar a planejar seu
golpe para tirar do contingente europeu a estrutura de poder da Guilda.
Na última reunião, nos Estados Unidos, Derek mostrara-se
insatisfeito com o prazo dilatado que Eli propusera para alcançarem os
objetivos. Eli era um estrategista, mas o filho não herdara as qualidades
de paciência e planejamento que convertera os Wainwright em bilionários.
Seria possível que Derek tivesse feito alguma coisa precipitada e estúpida?
A resposta veio naquela tarde, quando o grito da esposa de Eli
Wainwright abalou o tranqüilo ar marinho de Cape Cod. Eli saltou da
poltrona e correu para o vestíbulo, onde a esposa caíra no chão, tremendo
toda.
— Pelo amor de Deus, Susan, o que aconteceu?
Susan não conseguiu responder. Os soluços eram histéricos e a
tentativa de falar resultou apenas numa algaravia ininteligível. Ela
apontou para a caixa da Federal Express internacional caída no chão, ao
seu lado.
Eli respirou fundo. Tirou da caixa um pequeno caixão de madeira.
Abriu-o para ver o anel de formatura de Derek em Yale.
E o anel estava enfiado no que restava do dedo indicador cortado
da mão direita de Derek Wainwright.
Château des Pommes Bleues
30 de junho de 2005
Mesmo em circunstâncias normais, Maureen tinha um sono leve. E,
com tantos problemas relacionados aos pergaminhos agitando seus
pensamentos, ela descobriu que o sono era esquivo, apesar do cansaço
geral. Ouviu passos no corredor, perto de sua porta, e se sentou na
cama. Os passos eram leves, como se a pessoa estivesse fazendo um
esforço para não ser ouvida. Maureen escutou atentamente, mas não se
mexeu. Era um vasto castelo, com muitos cômodos e criados que
provavelmente nem conhecia, pensou ela.
Maureen tornou a se deitar e tentou dormir, mas foi perturbada de
novo pelo barulho de um carro lá fora. O relógio indicava que eram quase
três horas da madrugada. Quem poderia ser? Maureen levantou-se e foi
até a janela, que dava para a frente do castelo. Esfregou os olhos para ter
certeza de que via direito.
O carro que passou em frente à janela e saiu pelo portão era o seu
carro alugado... com o primo Peter ao volante.
Maureen correu até o quarto de Peter. Acendeu a luz, confirmando
a ausência das coisas do primo. A mala preta desaparecera, assim como
os óculos, a Bíblia e o rosário de contas, todos os itens que ele mantinha
ao lado da cama.
Por um minuto, Maureen procurou, frenética, por alguma
informação deixada por Peter. Um bilhete? Qualquer coisa? Mas ela nada
encontrou.
O padre Peter Healy sumira.
Maureen tentou analisar os acontecimentos das últimas vinte e
quatro horas. Haviam conversado ao lado do chafariz, quando Peter
explicara a importância das palavras “não se apegue”. Ele parecia
transtornado, mas Maureen atribuíra isso à insônia e às emoções da
semana. O que o levara a pegar suas coisas em plena madrugada e
partir? Peter não era de fazer isso. Nunca a abandonara, nem mesmo a
decepcionara. Ela sentiu o pânico se insinuar. Se perdera Peter, não teria
mais ninguém. Ele era toda a sua família, a única pessoa no mundo em
quem depositava uma confiança implícita.
— Reenie?
Maureen teve um sobressalto ao ouvir a voz atrás de si. Tammy
estava parada na porta, esfregando os olhos para afugentar o sono.
— Desculpe. Ouvi o carro e depois movimentos aqui. Acho que esta
mos todos um pouco nervosos. Onde está o padre?
— Não sei. — Maureen fez um esforço para não parecer exaltada.
— Peter guiava o carro que deixou o castelo. Não sei por que ou para
onde ele foi. O que isso pode significar?
— Por que não liga para o celular dele?
— Peter não tem um celular.
Tammy fitou-a, perplexa.
— Claro que tem. Eu o vi falando a um celular.
Foi a vez de Maureen se mostrar confusa.
— Peter detesta celulares. Diz que não tem tempo para
aprender novas tecnologias e acha os celulares bastante desagradáveis.
Sempre se recusou a levar um celular para emergências, mesmo quando
eu suplicava.
— Eu o vi falando ao celular duas vezes, Maureen. E, pensando a
respeito agora, nas duas ocasiões ele estava sentado no carro. Detesto
dizer isso, mas acho que há algo de podre em Arques.
Maureen teve a sensação de que ia vomitar. E, pela expressão de
Tammy, compreendeu que as duas pensavam a mesma coisa.
— Vamos!
Maureen saiu em disparada pelo corredor do castelo. Desceu a
escada para o escritório de Sinclair. Tammy seguiu-a, a meio passo de
distância.
Pararam na porta. Estava entreaberta. Desde a chegada dos
pergaminhos, a porta permanecia fechada e trancada, mesmo que um
deles estivesse ali. Maureen engoliu em seco e respirou fundo ao entrar
na sala escura. Por trás dela, Tammy encontrou o interruptor da luz... e
as duas viram que não havia nada na mesa. A superfície de mogno
faiscava no reflexo da luz. Vazia.
— Os pergaminhos sumiram... — balbuciou Maureen.
Ela e Tammy revistaram a sala, mas não encontraram qualquer
sinal dos pergaminhos de Maria Madalena. As únicas provas restantes de
sua existência eram os jarros de barro no canto, fora do caminho das
pessoas. Mas os jarros estavam vazios. O verdadeiro tesouro
desaparecera.
E tudo indicava que o padre Peter Healy, a pessoa em quem
Maureen mais confiara em toda a sua vida, levara os pergaminhos.
Maureen sentou-se no sofá de veludo, as pernas trôpegas. Não
podia falar. Não sabia o que dizer, nem mesmo o que pensar. Apenas
deixou-se cair no sofá, olhando fixamente para a frente.
— Maureen, tenho de falar com Roland. Vai ficar aqui? —
Voltaremos num instante.
Maureen acenou com a cabeça, atordoada demais para falar.
Continuava na mesma posição quando Tammy e Roland entraram na
sala, acompanhados por Berenger Sinclair. Roland ajoelhou-se ao lado do
sofá e disse, gentilmente:
— Mademoiselle Paschal, lamento muito pelo sofrimento que esta
noite lhe causará.
Maureen fitou o enorme occitano, que se inclinava para ela com
tanta preocupação. Mais tarde, quando pudesse se dar ao luxo de
recordar aquele tempo em detalhes, pensaria em como ele se revelara
um homem extraordinário. O mais valioso tesouro de seu povo acabara de
ser roubado e sua preocupação principal era com o sofrimento de
Maureen. Roland, mais do que qualquer outra pessoa que ela já
conhecera, ensinava-lhe muita coisa sobre a verdadeira espiritualidade. E
passaria a compreender por que eles eram chamados de les bons hommes.
Os bons homens.
— Ah, estou vendo que o padre Healy escolheu seu senhor —
comentou Sinclair. — Eu já desconfiava de que isso poderia acontecer.
Sinto muito, Maureen.
Maureen sentiu-se ainda mais confusa.
— Esperava que isso acontecesse?
Sinclair confirmou com um movimento de cabeça.
— Esperava, minha cara. Suponho que tudo ficará às claras
agora. Sabíamos que seu primo trabalhava para alguém, só não tínhamos
certeza de quem era.
Maureen estava incrédula.
— O que está insinuando? Que Peter me traiu? Que planejava
desde o início me trair?
— Não posso alegar que sei quais são os motivos do padre Healy.
Mas sabia que ele tinha motivos. E desconfio de que saberemos a
verdade antes do final do dia de amanhã.
— Alguém pode fazer o favor de me explicar o que está acontecendo?
A pergunta foi de Tammy, e Maureen compreendeu que ela também
não sabia de nada. Roland se sentou ao seu lado e ela fitou-o com uma
expressão acusadora:
— Estou vendo que há muita coisa que vem escondendo de mim.
Roland deu de ombros.
— Era para sua proteção, Tamara. Todos temos segredos, como
sabe. Eram necessários. Mas acho que agora é hora de revelarmos tudo de
uma forma objetiva. Creio que é justo que mademoiselle Paschal saiba
de tudo. Ela já demonstrou seu valor.
Maureen teve vontade de gritar, em estresse e confusão. A
frustração deve ter transparecido em seu rosto, porque Roland inclinou-
se para ela e pegou sua mão.
— Venha, mademoiselle. Quero lhe mostrar algumas coisas.
Depois, ele virou-se para Sinclair e Tammy e fez algo que Maureen
nunca o vira fazer antes: deu ordens.
— Berenger, peça aos criados para nos levarem café e depois se
encontre conosco na Sala do Grão-Mestre. Tamara, venha conosco.
Percorreram corredores sinuosos e entraram numa ala do castelo
em que Maureen nunca estivera antes.
— Devo lhe pedir que seja um pouco paciente, mademoiselle
Paschal — disse Roland, olhando para trás. — Preciso explicar algumas
coisas primeiro, antes de responder às suas perguntas mais urgentes.
— Está bem.
Maureen sentia-se atordoada, enquanto seguia Roland e Tammy.
Não sabia o que dizer. Pensou no dia em que se encontrara com Tammy
na marina, na Califórnia Meridional. Era muito ingênua na ocasião;
parecia ter acontecido duas vidas atrás. Tammy a comparara a Alice no
País das Maravilhas. A comparação parecia bastante apropriada agora,
pois Maureen tinha a sensação de que passara pelo espelho. Tudo o que
pensava que sabia sobre a vida mudara por completo.
Roland destrancou a enorme porta dupla à frente com uma chave
que tinha pendurada ao pescoço. Um bip estridente soou quando
entraram na sala. Roland digitou o código no painel para desligar o
alarme. A luz ativada iluminou uma sala enorme e toda ornamentada.
Era uma linda sala de reunião para reis e rainhas da França. Em sua
elegância, parecia-se com as salas do trono em Versailles e
Fontainebleau. Duas cadeiras de braços iguais, lavradas e douradas,
destacavam-se num estrado no centro. Cada uma exibia as maçãs azuis
em destaque.
— Este é o coração de nossa organização, a Ordem das Maçãs Azuis
— explicou Roland. — Todos os seus membros são da linhagem real, em
particular da linha de Sara-Tamar. Somos descendentes dos cátaros e
fazemos o melhor que podemos para manter suas tradições vivas, na
forma mais pura possível.
Ele levou-as até um retrato de Maria Madalena, pendurado atrás
das cadeiras que pareciam tronos. Era parecido com o quadro de
Madalena pintado por George de la Tour que Maureen vira em Los
Angeles, com uma importante diferença.
— Lembra-se da noite em que Berenger lhe disse que um dos
quadros mais importantes de De la Tour não estava à disposição do
público? É porque o quadro está aqui. De la Tour era membro de nossa
sociedade e nos deixou este quadro. Foi chamado de Madalena penitente
com o crucifixo.
Maureen contemplou o quadro com reverência e admiração. Como
todos os quadros do pintor francês, era uma obra-prima de luz e sombra.
Mas naquele quadro Maria Madalena posava de uma maneira diferente
da que Maureen já vira em todos os outros. Aquela versão mostrava
Maria com a mão esquerda no crânio — que ela compreendia agora ser o
crânio de João Batista —, enquanto a mão direita erguia um crucifixo. Ela
olhava para o rosto de Cristo.
— O quadro era muito perigoso para ficar à vista do público. A
referência é clara para os olhos que quiserem ver: Maria faz penitência
por seu primeiro marido e olha com amor para Jesus, seu segundo
marido.
Ele levou as duas até um quadro imenso, em outra parede.
Mostrava dois santos idosos sentados numa paisagem rochosa,
empenhados numa conversa animada, talvez mesmo uma discussão.
— Tamara pode contar a história deste quadro.
Roland sorriu para Tammy e deu um passo para o lado. Maureen
olhou para Tammy, à espera da explicação.
— O quadro é do pintor francês David Teniers, o Jovem. E
chamado Santo Antonio, o Eremita, e São Paulo no deserto. Não é o
mesmo São Paulo das cartas do Novo Testamento, mas outro santo
regional, que também era um eremita. Berenger Saunière, o sacerdote
de Rennes-le-Château, adquiriu esse quadro para a Sociedade. Isso
mesmo, ele era um dos nossos.
Maureen estudou o quadro atentamente e começou a ver os
elementos que agora se tornavam familiares. Apontou-os.
— Vejo um crucifixo e um crânio.
— Isso mesmo — confirmou Tammy. — Este aqui é Antonio. Usa
aquele símbolo que parece a letra T na manga, mas é na verdade a
versão grega da cruz, chamada Tau. São Francisco de Assis
popularizou-a entre nós. Antonio levanta os olhos de seu livro... que é
uma representação d'O Livro do Amor, e contempla o crucifixo. Olhe agora
para Paulo. Ele está fazendo o gesto de “Lembre-se de João” com a mão.
Debate com o amigo quem foi o primeiro Messias, João ou Jesus. Há livros
e pergaminhos espalhados em torno de seus pés, para indicar que há
muito material a considerar na discussão. É um quadro muito
importante... na verdade, esses dois quadros são indiscutivelmente os
mais importantes em nossa tradição. A aldeia representa Rennes-le-
Château, no alto da colina, e ali na paisagem... já viu quem está aqui?
Maureen sorriu.
— É a pastora e suas ovelhas.
— Isso mesmo. Antonio e Paulo estão debatendo, mas a pastora
assoma por trás deles para lembrar que A Escolhida um dia encontrará
os evangelhos ocultos de Maria Madalena, para acabar com toda a
controvérsia, revelando a verdade.
Berenger Sinclair entrou na sala em silêncio, enquanto Roland dizia:
— Eu queria mostrar essas coisas, mademoiselle Paschal, para
que saiba que meu povo não guarda qualquer ressentimento contra os
seguidores de João Batista. Somos todos irmãos e irmãs,
descendentes de Maria Madalena. Gostaria que pudéssemos viver em
paz.
Sinclair entrou na conversa.
— Infelizmente, alguns desses seguidores são fanáticos e sempre
foram. Constituem uma minoria perigosa. E o que acontece em todos os
lugares do mundo em que um grupo de fanáticos ofusca as pessoas
pacíficas que acreditam na mesma coisa. Mas a ameaça desses homens
permanece muito real, como Roland pode lhe dizer.
O rosto expressivo de Roland se tornou sombrio.
— É verdade. Sempre tentei viver de acordo com as convicções de
meu povo. Amar, perdoar, ter compaixão por todas as coisas vivas. Meu
pai tinha a mesma convicção... e eles o mataram.
Maureen sentiu a profunda tristeza do occitano pela perda do pai,
mas também pelo intenso desafio a seu sistema de convicção que derivava
do assassinato.
— Mas por quê? — indagou Maureen. — Por que mataram seu pai?
— Minha família é muito antiga nesta região, mademoiselle
Paschal. Aqui, só ouviu as pessoas me chamarem de Roland. Mas o
nome de minha família é Gelis.
— Gelis? — Maureen sabia que o nome era familiar. Olhou para
Sinclair. — A carta de meu pai foi escrita para um monsieur Gelis.
Roland acenou com a cabeça.
— Isso mesmo. Foi escrita para meu avô quando ele era Grão-
Mestre da Ordem.
Tudo começava a se tornar compreensível. Maureen olhou para
Roland e depois para Sinclair. O escocês respondeu à pergunta que não
fora formulada:
— É verdade, minha cara. Roland Gelis é o nosso Grão-Mestre,
embora seja muito humilde para anunciar isso pessoalmente. É o líder
oficial de nosso povo, como foram seu pai e seu avô antes. Ele não me
serve nem eu o sirvo... servimos juntos como irmãos, como determina a
lei d'O Caminho.
“As famílias Sinclair e Gelis assumiram o compromisso de servir a
Madalena, na medida em que qualquer um de nós pode traçar a
linhagem.” Tammy interveio:
— Maureen, lembra quando estávamos na Tour Magdala, em
Rennes-le-Château, e eu falei sobre o velho sacerdote que foi assassinado,
ao final do século XIX? Seu nome era Antoine Gelis... o tio-bisavô de
Roland.
Maureen olhou para Roland.
— Por que toda essa violência contra sua família?
— Porque sabíamos demais. Meu tio-bisavô era o guardião de um
documento chamado O livro da Escolhida, em que as revelações de todas
as pastoras, por mais de mil anos, foram registradas pela Sociedade. Era
o nosso instrumento mais valioso para tentar encontrar o tesouro de
nossa Madalena. A Guilda dos Justos matou-o por isso. Mataram meu
pai por razões similares. Eu não sabia na ocasião, mas Jean-Claude era o
informante. Mandaram a cabeça e o dedo de meu pai para mim num
cesto.
Maureen estremeceu ante a macabra revelação.
— Esse derramamento de sangue vai acabar agora? O que acha
que eles farão?
— E difícil saber — disse Roland. — Eles têm um novo líder, que é
muito radical. E o mesmo homem que matou meu pai.
Sinclair acrescentou:
— Falei com as autoridades locais, as que ainda são simpáticas às
nossas convicções, digamos assim. Maureen, você ainda não sabe disso,
mas se lembra de Derek Wainwright, o americano?
— O que se vestia como Thomas Jefferson — explicou Tammy. —
Meu velho amigo.
Ela sacudiu a cabeça, desolada, à lembrança dos anos de impostura
de Derek... e pela probabilidade de seu trágico destino. Maureen esperou
que Sinclair continuasse.
— Derek desapareceu em circunstâncias macabras. Seu quarto
no hotel estava... — Ele observou a crescente palidez de Maureen e
decidiu poupá-la dos detalhes. — Digamos apenas que havia indícios
evidentes de um crime.
Sinclair fez uma pausa.
— As autoridades acham que os aspectos desagradáveis envolvidos
no desaparecimento do americano... seu assassinato, quase com
certeza... farão com que a Guilda dos Justos se mantenha retraída por
algum tempo. Jean-Claude está escondido em algum lugar de Paris. E
desconfiamos de que o líder, um inglês, tenha voltado para o Reino Unido,
pelo menos temporariamente. Não creio que eles nos incomodem no
futuro imediato. Ou pelo menos espero que não.
Maureen olhou subitamente para Tammy.
— E a sua vez. Também não me contou tudo. Levei bastante
tempo para chegar a essa conclusão, mas agora quero saber o resto. E
também gostaria de saber o que está acontecendo entre vocês dois.
Ela apontou para Tammy e Roland, quase colados um no outro.
Tammy soltou sua risada gutural:
— Sabe como adoramos esconder as coisas à plena vista por
aqui. Qual é meu nome?
Maureen franziu o rosto. O que ainda não percebera?
— Tammy... — E, de repente, ela compreendeu: — Tamara. Tamar-a.
Ó Deus, como sou idiota!
— Não é, não — disse Tammy, ainda rindo. — Mas recebi esse nome
por causa da filha de Madalena. E tenho uma irmã chamada Sara.
— Mas você me disse que nasceu em Hollywood! Ou isso também era
uma mentira?
— Não, não era uma mentira. E mentira é uma palavra muito
dura. Vamos chamar de inverdades necessárias. Nasci e fui criada na
Califórnia. Meus avós maternos eram occitanos, profundamente
envolvidos na Ordem. Mas minha mãe, que nasceu aqui, no Languedoc,
foi para Los Angeles trabalhar como estilista de moda. Entrou no
cinema graças à amizade com o pintor e diretor de filmes francês Jean
Cocteau... outro membro da Ordem. Ela conheceu meu pai americano e
ficou por lá. A mãe dela foi morar conosco quando eu era criança. Creio
que é desnecessário dizer que fui muito influenciada por minha avó.
Roland virou-se para apontar as duas cadeiras, lado a lado.
— Em nossa tradição, homens e mulheres são completamente
iguais, como Jesus ensinou, pelo seu exemplo com Maria Madalena.
Escolhi Tamara para ser minha Maria e se sentar ao meu lado aqui.
Agora, tenho de convencê-la a se mudar para a França, a fim de poder lhe
pedir que se torne uma parte ainda maior de minha vida.
Roland passou o braço em torno de Tammy, que se aconchegou
contra ele.
— Estou pensando a respeito — murmurou ela, timidamente.
Foram interrompidos por dois criados, que trouxeram o café, em
bandejas de prata. Havia uma mesa de reuniões no outro lado da sala.
Roland indicou que pusessem as bandejas ali. Os quatro se sentaram e
Tammy serviu o café, puro e forte. Roland olhou para Sinclair, no outro
lado da mesa, e meneou a cabeça para que ele começasse.
— Maureen, vamos contar tudo o que sabemos sobre o padre Healy
e os evangelhos de Madalena, mas achamos que, antes, você precisava
conhecer alguns fatos, para poder compreender a situação.
Maureen tomou um gole do café, grata pelo calor e a energia.
Escutou atentamente, enquanto Sinclair explicava:
— A verdade é que permitimos que seu primo levasse os
pergaminhos.
Maureen quase deixou a xícara cair.
— Permitiram?
— Isso mesmo. Roland deixou a porta destrancada de propósito.
Desconfiávamos de que o padre Healy pudesse tentar levar os
pergaminhos para a pessoa para quem trabalhava.
— Espere um instante. Para quem ele trabalhava? O que isso
significa? Que meu primo Peter era um espião da Igreja?
— Não exatamente.
Maureen notou que Tammy também escutava com toda a
atenção, o que indicava que ela também não sabia de tudo.
— Não sabemos com certeza de quem ele é espião — continuou
Sinclair. — Foi por isso que permitimos que levasse os pergaminhos... e
porque não estamos muito preocupados. Pusemos um rastreador em seu
carro alugado. Sabemos exatamente onde ele está e para onde vai.
— Qual é o lugar? — indagou Tammy. — Roma?
— Achamos que seu destino é Paris.
A informação partiu de Roland.
— Maureen... — Sinclair pôs a mão de leve em seu braço. —
Lamento informar-lhe, mas seu primo vem relatando o que você tem
feito para autoridades da Igreja desde o dia em que chegou à França... e
provavelmente há mais tempo.
Maureen ficou atordoada; experimentou a sensação de que levara
um tapa na cara.
— É impossível. Peter não faria isso comigo.
— Durante a semana passada, enquanto o observávamos
trabalhar, tornou-se cada vez mais difícil para nós a idéia de um espião
como seu primo, tão simpático e erudito. A princípio, pensamos que ele
queria apenas protegê-la de nós. Mas acho agora que estava vinculado
demais às pessoas que o empregavam para conseguir se desvencilhar,
mesmo depois de ler a verdade nos pergaminhos.
— Não respondeu à minha pergunta. Acha que é para o Vaticano
que ele trabalha? Os jesuítas? Quem?
Sinclair recostou-se na cadeira.
— Ainda não sabemos. Mas posso lhe dizer uma coisa. Temos
pessoas em Roma investigando. Talvez você fique surpresa se souber
das altas esferas a que estendemos nossa influência. Tenho certeza de
que teremos todas as respostas amanhã à noite... ou no dia seguinte, o
mais tardar. Agora, precisamos ter paciência.
Maureen tomou outro gole do café, olhando para o retrato da
penitente Maria Madalena. Teria de esperar quase vinte e quatro horas
para ter todas as respostas.
Paris
1° de julho de 2005
O padre Peter Healy estava além da exaustão quando chegou a
Paris. A viagem de carro desde o Languedoc não fora fácil. Mesmo sem o
tráfego intenso na cidade, ao final da manhã, a viagem exigira oito horas.
Também parara, a fim de preparar o pacote para Maureen, o que levara
mais tempo do que previra. Mas a energia emocional necessária para
tomar a decisão fora enorme e ele sentia que toda a vida fora sugada de
seu organismo.
Peter levava sua carga preciosa na mala preta. Atravessou o rio, a
caminho da enormidade gótica da Notre Dame, onde foi recebido numa
entrada lateral pelo sacerdote francês, padre Marcel. Foram para os
fundos da catedral e entraram numa sala, a porta camuflada por uma
ornamentada treliça.
Peter esperava encontrar ali seu mentor, o bispo Magnus O'Connor.
Em vez disso, foi recebido por uma importante autoridade eclesiástica,
um italiano imponente, usando a batina vermelha de cardeal.
— Sua Eminência... — balbuciou ele. — Perdoe-me, mas eu não
esperava por isso.
O italiano manteve o rosto impassível, enquanto estendia a mão
para a mala.
— Posso presumir que trouxe os pergaminhos?
Peter moveu a cabeça afirmativamente.
— Ótimo. — O cardeal pegou a mala. — Agora, meu filho, vamos
conversar sobre os acontecimentos da última semana. Ou talvez
devamos conversar sobre os acontecimentos dos últimos anos? Deixarei
que você decida por onde começar.
Château des Pommes Bleues
1° de julho de 2005
Houve uma atividade frenética no castelo durante o dia inteiro.
Sinclair e Roland se encontravam a todo instante, conversando em
francês e occitano, falando com os criados e pelos celulares. Em duas
ocasiões, Maureen teve a impressão de ouvir Roland falar em italiano,
mas não teve certeza e não quis perguntar.
Ela passou algum tempo na sala de comunicações, em companhia
de Tammy, que procurava imagens para seu documentário sobre a
linhagem real. Conversaram sobre a maneira como os pergaminhos de
Maria Madalena mudariam a perspectiva de Tammy como cineasta.
Maureen sentiu um respeito ainda maior pela amiga ao verificar como era
competente e criativa, capaz de se dedicar ao trabalho mesmo quando
estava estressada, como acontecia com todos naquele momento.
Maureen, por outro lado, sentia-se absolutamente inútil. Não
conseguia se concentrar em coisa alguma, não era capaz do menor foco.
Sentia que devia tomar notas, tentar extrair da memória tanto quanto
pudesse sobre o material de Madalena. Mas descobria-se incapaz de
fazê-lo. Sentia-se desanimada demais pela traição pessoal de Peter.
Quaisquer que fossem seus motivos, ele partira sem dizer nada e levara
uma coisa que não lhe pertencia. Maureen pensou que muito tempo
passaria antes que se recuperasse desse golpe.
O jantar naquela noite foi um tanto silencioso, apenas os três,
Maureen, Tammy e Sinclair. Roland saíra, mas não deveria demorar,
segundo Sinclair e Tammy. Fora buscar um visitante no aeroporto
particular em Carcassonne, explicou Tammy. Depois que esse misterioso
visitante chegasse, teriam mais informações. Maureen meneou a cabeça
em compreensão. Há muito que aprendera que pressionar por explicações
ali de nada adiantava. As pessoas só revelavam segredos no momento em
que decidiam fazê-lo; era parte da cultura em Arques. Mas ela notou que
Sinclair parecia mais tenso do que o habitual.
Pouco depois de tomarem café no escritório, um criado apareceu
para falar com Sinclair, em francês.
— Nosso visitante chegou — informou ele para Tammy e Maureen.
Roland entrou na sala em companhia de um homem igualmente
imponente. Vestia um terno escuro, elegante, feito com o melhor tecido
italiano. Tinha um ar aristocrata e era evidente que se sentia à vontade
em sua posição de poder e influência. Passou a comandar a energia na
sala desde o momento em que entrou. Roland adiantou-se:
— Mademoiselle Paschal, mademoiselle Wisdom, é com imenso
prazer que apresento nosso estimado amigo, cardeal DeCaro.
DeCaro estendeu a mão para Maureen primeiro e depois para
Tammy. Ofereceu um sorriso efusivo às duas.
— É um prazer. — Ele apontou para Maureen e perguntou a Roland:
— Essa é a nossa Escolhida?
Roland confirmou com a cabeça.
— Desculpe, mas você disse cardeal? — indagou Maureen.
— Não se deixe enganar pelo terno — comentou Sinclair, por trás
dela. — O cardeal DeCaro é um dos homens de maior influência no
Vaticano. E talvez seu nome completo possa ajudá-la a compreender. É
Francesco Bórgia DeCaro.
— Bórgia? — repetiu Tammy.
O cardeal inclinou a cabeça para confirmar, uma resposta simples
para a indagação tácita de Tammy. Roland atravessou a sala.
— Sua Eminência gostaria de passar algum tempo a sós com
mademoiselle Paschal. Por isso, vamos nos retirar agora. Por favor,
avisem se precisarem de qualquer coisa.
Roland abriu a porta para Sinclair e Tammy, enquanto o cardeal
DeCaro gesticulava para que Maureen se sentasse à mesa de mogno. Pôs-
se sentado à frente dela.
— Signorina Paschale, quero lhe dizer primeiro que me encontrei
com seu primo.
Maureen ficou surpresa. Não sabia o que esperava, mas não era
aquilo.
— Onde está Peter?
— A caminho de Roma. Estive hoje com ele em Paris. Seu primo está
bem e os documentos que você descobriu estão seguros.
— Seguros onde? E com quem? O que...
— Tenha paciência e lhe contarei tudo. Mas há uma coisa que eu
gostaria de lhe mostrar primeiro.
O cardeal tirou algumas pastas de arquivo vermelhas da mala que
levara para a sala. Tinham uma etiqueta com o nome EDOUARD PAUL
PASCHAL. Maureen ficou aturdida.
— Mas é o nome de meu pai!
— Isso mesmo. E estas pastas contêm fotos de seu pai. Mas
preciso prepará-la. O que está prestes a ver é perturbador, mas muito
importante para que compreenda a situação.
Maureen abriu a pasta de cima. Largou-a na mesa quando suas
mãos começaram a tremer. O cardeal DeCaro explicou, enquanto ela
olhava as fotos impressionantes dos ferimentos do pai.
— Ele era um estigmatizado. Sabe o que é isso? Significa que tinha no
corpo os mesmos ferimentos de Cristo. Aqui estão os pulsos e os pés.
Este quinto ferimento, por baixo das costelas, é o lugar em que o
centurião Longinus espetou Nosso Senhor com uma lança.
Maureen, atordoada, não conseguia desviar os olhos das fotos.
Vinte e cinco anos de especulações sobre a suposta “doença” do pai
corroeram a opinião que ela tinha a seu respeito. Agora, tudo se
encaixava: o medo e a hostilidade da mãe, a raiva que nutria pela Igreja. E
explicava também a carta de seu pai para a família Gelis, que estava nos
arquivos do castelo. Ele escrevera para os Gelis por causa de seus
estigmas... e porque queria proteger a filha do mesmo destino torturante.
Maureen fitou o cardeal através das lágrimas.
— Eu... sempre fui informada de que ele cometeu suicídio por
causa de sua doença mental. Minha mãe disse que ele estava insano
quando morreu. Não tinha a menor idéia... ninguém jamais me disse
nada a respeito...
O cardeal moveu a cabeça, solene.
— Seu pai foi incompreendido por muitas pessoas, infelizmente.
Mesmo por aqueles que poderiam ajudá-lo, os membros de sua Igreja. É
neste ponto que seu primo entra em cena.
Maureen escutava com toda a atenção. Podia sentir um calafrio
percorrer todo o seu corpo, enquanto o cardeal continuava:
— Seu primo é um bom homem, signorina. Espero que não o
julgue com muito rigor pelo que aconteceu, depois que eu lhe contar
tudo. E devemos começar pelo tempo em que era criança. Quando seu pai
desenvolveu os estigmas, foi pedir ajuda a um padre que integrava uma
organização clandestina dentro da Igreja. Somos, como todas as
pessoas... humanos. E, embora a maior parte da Igreja seja dedicada ao
caminho do bem, há alguns que querem proteger certas convicções a
qualquer custo.
DeCaro fez uma pausa.
— O caso de seu pai deveria ter sido comunicado a Roma, mas
isso não aconteceu. Nós poderíamos tê-lo ajudado, trabalhado com ele
para encontrar a fonte ou compreendido o significado sagrado dos
ferimentos. Mas os homens que interceptaram seu pai decidiram por
conta própria que ele era perigoso. Como eu disse, formavam uma
organização clandestina dentro da Igreja, com propósitos exclusivos. E
tinham uma influência que se estendia aos altos níveis, como só
recentemente descobri.
O cardeal discorreu sobre a vasta rede que se irradia do Vaticano, as
dezenas de milhares de homens e mulheres que trabalham no mundo
inteiro para preservar a fé. Com tantas pessoas envolvidas, por toda parte,
é impossível descobrir os motivos pessoais de indivíduos ou mesmo de
grupos. Uma organização clandestina radical surgira depois do Vaticano
II, um quadro de sacerdotes que se opunha com veemência às reformas na
Igreja. Um jovem padre irlandês chamado Magnus O'Connor fora recrutado
para ingressar na organização, assim como vários outros irlandeses. Era
O'Connor quem estava na paróquia nos arredores de Nova Orleans
quando Edouard Paschal aparecera em busca de ajuda.
O'Connor ficara assustado com os estigmas de Paschal, mas se
mostrara ainda mais perturbado com as visões de Jesus com uma
mulher ao seu lado e Jesus como um pai com crianças. O padre irlandês
avaliara o caso em sua organização secreta, em vez de consultar os
canais oficiais da Igreja. Depois que Edouard Paschal se matara, por
desespero e confusão pelos estigmas, a organização clandestina passara a
vigiar sua esposa e filha. A pequena Maureen Paschal tinha visões como as
do pai desde o momento em que começara a andar. O'Connor
convencera a mãe, Bernadette, a afastar a criança da família Paschal.
Fora nessa ocasião que a mãe de Maureen voltara para a Irlanda e
revertera ao nome de solteira, Healy. Tentara mudar o nome da filha,
mas aos oito anos de idade Maureen já era bastante determinada. A
criança recusara, insistindo que seu nome era Paschal e que não o
mudaria por motivo algum.
Fora bastante conveniente para Magnus O'Connor, agora elevado a
bispo, que a menina Paschal tivesse um parente próximo com vocação
religiosa. Quando Peter Healy ingressou no seminário, O'Connor traba-
lhou o vínculo irlandês da mesma maneira com que dera certo com
Bernadette. Peter foi informado da história de Edouard Paschal e instado
a ficar de olho na prima, fazendo relatórios regulares sobre seu progresso.
Maureen interrompeu o cardeal para pedir um esclarecimento.
— Está querendo dizer que meu primo me vigiava e relatava
minhas ações para esses homens desde que eu era criança?
— Essa é a verdade, signorina. O padre Healy, no entanto, só fez isso
por amor. Esses homens manipularam-no, levaram-no a pensar que era
tudo no interesse de protegê-la. Não sabia que eles haviam se recusado a
ajudar seu pai. Ou pior, que talvez fossem culpados, por seu triste
falecimento.
O cardeal fitou-a com profunda compaixão.
— Creio que os motivos de seu primo em relação a você sejam
puros e louváveis. Também acredito que ele tenha optado por entregar os
pergaminhos à Igreja pelas razões certas.
— Mas como é possível? Ele sabe o que há nos pergaminhos. Como
pode querer suprimir as revelações?
— Seria fácil julgá-lo de forma errada com base nas informações
limitadas que você tem. Mas não creio que o padre Healy quisesse
suprimir qualquer coisa. Temos razões para desconfiar de que o bispo
O'Connor e sua organização pressionaram-no com ameaças à sua
segurança. Quero que compreenda, por favor, que isso está inteiramente
fora das atividades oficiais da Igreja e não é aprovado por Roma. Mas seu
primo levou os pergaminhos para O'Connor em troca de sua segurança.
Maureen permitia-se absorver tudo, sem saber como deveria se
sentir. Havia algum senso de alívio por saber que Peter, o único aliado
autêntico e confiável que tivera em toda a sua vida, não a traíra em
qualquer sentido real. Mas havia muita informação nova para digerir.
— Como descobriu tudo isso? — perguntou ela.
— A ambição de O'Connor levou a melhor. Ele esperava utilizar a
descoberta dos evangelhos de Maria para promover sua ascensão na
hierarquia aceita da Igreja. Com isso, teria mais poder e acesso a
informações do mais alto nível, em benefício de sua organização
clandestina e seu programa de intolerância. — O sorriso do cardeal
DeCaro era apenas um pouco presunçoso. — Mas não se preocupe.
Estamos trabalhando para dar um jeito em O'Connor e seus
companheiros, agora que identificamos todos. Nossa rede de inteligência
não fica atrás de nenhuma outra.
Isso não surpreendeu Maureen, que sempre pensara na Igreja
Católica como uma organização onipotente, com braços que se
estendiam pelo mundo inteiro. Sabia que era a organização mais rica do
planeta e dispunha dos melhores recursos que o dinheiro pode comprar.
— O que acontecerá com os pergaminhos de Maria? — perguntou ela,
preparando-se para uma resposta desagradável.
— Se quiser ser honesto com você, devo dizer que é difícil saber.
Tenho certeza de que pode compreender que essa é a descoberta mais
importante de nosso tempo, se não mesmo a mais importante na
história da Igreja. É uma questão que terá de ser discutida nos mais
altos níveis, depois que os pergaminhos forem autenticados.
— Peter contou o que há neles?
O cardeal inclinou a cabeça numa resposta afirmativa:
— Contou. Também li algumas de suas anotações. Signorina
Paschal, isso pode surpreendê-la, mas não nos sentamos em tronos de
prata no Vaticano e planejamos conspirações durante o dia inteiro.
Maureen riu com ele por um momento, para depois perguntar,
séria de novo:
— A Igreja tentará me deter se eu escrever sobre minhas
experiências aqui... e, ainda mais importante, se eu escrever sobre o que
está nos pergaminhos?
— É livre para fazer qualquer coisa que quiser e ir para onde seu
coração e sua consciência a guiarem. Se Deus trabalhou por seu
intermédio para revelar as palavras de Maria, ninguém teria o direito de
impedi-la de cumprir seu dever sagrado. A Igreja não se empenha em
suprimir informações, como muitos acreditam. Está interessada na
sobrevivência e propagação da fé... e tenho a convicção pessoal de que a
descoberta do evangelho de Maria Madalena pode nos proporcionar uma
nova oportunidade de atrair mais pessoas, ainda por cima mais jovens,
para o nosso rebanho. Mas... — Ele ergueu a mão. — ...sou apenas um
homem. Não posso falar pelos outros, muito menos pelo Santo Padre. O
tempo dirá.
— Até lá, o que acontece?
— Até lá, o Evangelho de Arques segundo Maria Madalena será
preservado na biblioteca do Vaticano, sob os cuidados de um certo
padre Peter Healy.
— Peter vai ficar em Roma?
— Vai, sim, signorina Paschal. Será o supervisor da equipe oficial de
tradutores. É uma grande honra, mas achamos que ele merece. E não
pense que esquecemos a sua contribuição. — O cardeal tirou um cartão de
sua pasta e entregou-o. — É o meu telefone particular na Cidade do
Vaticano. Quando estiver disposta, gostaríamos que aceitasse um convite
para ser nossa hóspede. Seria ótimo ouvir seu relato sobre a jornada
que a trouxe até aqui. E também pode falar com seu primo por este
número, até que ele tenha sua própria linha. Ele vai trabalhar
diretamente comigo.
Maureen olhou para o nome no cartão.
— Francesco Bórgia DeCaro — leu ela, em voz alta. — Se me perdoa
por perguntar...
O cardeal riu agora, um sorriso sincero, espalhando-se por todo o
rosto.
— É verdade, signorina. Sou filho da linhagem, assim como você é
filha. Ficará surpresa ao saber quantos de nós existem... e onde vai nos
encontrar, quando souber onde procurar.
— É uma noite perfeita de lua cheia. Concederia a honra de me
acompanhar num passeio pelo jardim, antes de se retirar para seu
quarto?
Berenger Sinclair fez o convite para Maureen depois que o cardeal foi
embora. Ela aceitou. Sentia-se agora à vontade em sua companhia, como
costuma ocorrer com freqüência a duas pessoas que suportaram juntas
circunstâncias difíceis. E havia poucas coisas mais belas do que uma
noite de verão no sudoeste da França. Com os refletores iluminando o
imponente castelo e o luar refletido nos caminhos de mármore, o Jardim
da Trindade se transformara num lugar de pura magia.
Maureen relatou toda a conversa com o cardeal. Sinclair escutou
com interesse sincero. Quando ela acabou, Sinclair perguntou:
— O que fará agora? Acha que escreverá um livro sobre sua
experiência? Pretende revelar ao mundo as palavras do evangelho de
Maria?
Maureen contornou o chafariz de Madalena, passando um dedo
pelo mármore frio e liso, enquanto pensava na resposta.
— Ainda não decidi que forma terá. — Maureen levantou os olhos
para a estátua. — Espero que ela me oriente. Mas, qualquer que seja a
forma, espero fazer justiça a Maria.
Sinclair sorriu.
— Tenho certeza de que fará. Ela escolheu-a por uma razão.
Maureen retribuiu a expressão afetuosa:
— Ela também o escolheu.
— Creio que todos nós fomos escolhidos para desempenhar
papéis, cada um à sua maneira. Você, eu, Roland, Tammy. E o padre
Healy também, é claro.
— Quer dizer que não despreza Peter pelo que ele fez?
Sinclair respondeu sem hesitar:
— Não. Absolutamente não. Peter pode ter feito a coisa errada, mas
foi pelas razões certas. Além do mais, que tipo de hipócrita eu seria se
sentisse ódio contra um homem de Deus depois da descoberta desse
tesouro? A mensagem de nossa Madalena é de compaixão e perdão. Se
todos no mundo assumissem essas duas virtudes, não acha que teríamos
um planeta muito melhor para viver?
Maureen fitou-o com admiração... e com o despertar de uma
emoção que era novidade para ela. Pela primeira vez em sua vida tão
agitada, sentia-se segura.
— Não sei como lhe agradecer, Lorde Sinclair.
O sotaque escocês ficou ainda mais patente na maneira como ele
prolongou o erre em seu nome.
— Agradecer pelo quê, Maureen?
— Por isso. — Ela gesticulou para o exuberante jardim ao redor. —
Por me apresentar a um mundo que a maioria das pessoas nunca
sequer sonhou existir. Por mostrar meu lugar em tudo isso. Por me fazer
sentir que não estou sozinha.
— Nunca mais ficará sozinha. — Sinclair pegou a mão de Maureen
e levou-a pelo jardim, em que predominava a fragrância das rosas. —
Mas deve parar de me chamar de Lorde Sinclair.
Maureen sorriu e chamou-o de “Berry”, pela primeira vez, um
momento antes de ser beijada.
Na manhã seguinte, Maureen recebeu um pacote no castelo. Fora
enviado de Paris no dia anterior. Não havia nome nem endereço do
remetente, mas ela não precisava disso para saber quem o enviara.
Reconheceria a letra de Peter em qualquer lugar.
Maureen abriu a caixa, ansiosa em saber o que Peter mandara.
Embora não sentisse raiva dele, o primo ainda não sabia disso. Teriam de
passar por um período embaraçoso de desculpas e manter uma conversa
séria sobre a história partilhada, mas Maureen não tinha a menor dúvida
de que voltariam a ser tão íntimos quanto antes.
Ela deixou escapar um pequeno grito de surpresa e satisfação ao
descobrir o que havia na caixa. Eram cópias de todas as anotações de
Peter sobre os três livros do evangelho de Maria Madalena. Tudo estava ali,
das primeiras transcrições às traduções finais. Na página de cima,
arrancada de um dos blocos de anotações, havia um bilhete de Peter:
Minha querida Maureen
Até que eu possa explicar tudo pessoalmente, quero lhe confiar isto.
Afinal, você é a legítima guardiã, muito mais do que as pessoas a que me
vejo obrigado a entregar os originais.
Por favor, apresente minhas desculpas e meus agradecimentos
aos outros. Espero poder fazer isso em pessoa o mais depressa possível.
Entrarei em contato com você muito em breve.
Peter . .
... Só muitos anos mais tarde é que tive a oportunidade de
agradecer pessoalmente a Cláudia Prócula pelos riscos que ela correra
para ajudar Easa. A tragédia de Pôncio Pilatos e sua decisão de escolher
Roma como seu senhor foi o fato de que não salvou sua carreira nem
serviu para realizar suas ambições, no final. Herodes foi para Roma no
dia seguinte à paixão de Easa, mas não falou bem de Pilatos para o
imperador. Um autentico Herodes até o fim, ele tinha outros planos,
um primo que desejava ver no cargo de procurador. Disse palavras
insidiosas no ouvido de Tibério. Pilatos foi chamado a Roma para ser
submetido a julgamento pelos erros cometidos na administração da
Judéia.
As próprias palavras de Pôncio Pilatos foram usadas contra ele
em seu julgamento. Enviara uma carta para Tibério relatando os
milagres de Easa e os acontecimentos do Dia das Trevas. Os romanos
usaram suas palavras contra ele, não apenas para privá-lo de seu
título e sua posição, mas também para exilá-lo e confiscar suas terras.
Se Pilatos perdoasse Easa e enfrentasse Herodes e os sacerdotes, seu
destino não seria diferente.
Cláudia Prócula permaneceu leal ao marido nos momentos mais
difíceis. Contou-me que o filho, Pilo, morreu poucas semanas depois
da execução de Easa. Não houve explicação para isso. O menino
simplesmente definhou diante dos olhos da mãe. Cláudia disse que a
princípio tivera de recorrer a toda a sua força para não culpar o marido
pela morte do filho, pois sabia que Easa não gostaria de que fizesse
isso. Só precisava fechar os olhos para ver o rosto de Easa na noite em
que curara Pilo... e foi assim que Cláudia Prócula encontrou o Reino de
Deus. Essa romana de sangue real tinha uma extraordinária
compreensão do Caminho Nazareno. E vivia-o sem qualquer esforço.
Cláudia e Pilatos mudaram-se para a Gália, onde ela vivera
quando era criança. Disse que Pilatos passou o resto de sua vida
tentando compreender Easa... quem ele era, o que queria, o que
pregava. Durante muitos anos, ela lhe disse que O Caminho de Easa
não era algo a que ele pudesse aplicar sua lógica romana. Era preciso
ser como uma criança para compreender a verdade. As crianças são
puras, receptivas e honestas. São capazes de aceitar o bem e a fé sem
questionar. Embora Pilatos não pensasse que podia assumir O
Caminho da maneira como Cláudia fizera, ela sentia que ele também se
tornara um convertido, à sua maneira.
Cláudia relatou-me uma história extraordinária sobre o dia
anterior à sua partida da Judéia para sempre. Pôncio Pilatos foi ao
Templo, à procura de Jônatas Anás e Caifás, exigindo que o recebessem.
Pediu que o fitassem nos olhos, no local mais sagrado de seu povo e
respondessem a uma pergunta: “Executamos ou não o Filho de Deus?”
Não sei o que é mais extraordinário, o fato de Pilatos procurar os
sacerdotes para fazer a pergunta ou o fato de ambos os sacerdotes
confessarem que haviam cometido um erro terrível.
Depois da ressurreição de Easa para Nosso Pai no céu, diversos
homens se apresentaram para dizer que nossos seguidores haviam
removido seu corpo físico do sepulcro. Esses homens haviam sido pagos
pelo Templo para fazer isso, pois os sacerdotes temiam agora uma reação
implacável se as pessoas descobrissem a verdade. Anás e Caifás
confessaram isso. Pilatos contou para a esposa que achava que aqueles
homens estavam sinceramente arrependidos, que sofreriam todos os dias
pelo resto de suas vidas neste mundo pelo conhecimento de suas ações
inomináveis.
Se ao menos eles tivessem me procurado para dizer isso, eu lhes
daria os ensinamentos d'0 Caminho e lhes asseguraria que Easa os
perdoara. Pois no dia em que o Reino de Deus despertar em seu coração,
você nunca mais precisará sofrer.
O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA
O LIVRO DOS DISCÍPULOS
CAPITULO VINTE E UM
Nova Orleans
Outubro de 2005
Maureen guiava o carro alugado pelo suave crepúsculo do
outono no sul dos Estados Unidos. Tinha as janelas abaixadas. O ar
que entrava era fresco, trazendo o aviso de que o verão ficara mesmo
para trás e o outono chegara para ficar. Ao parar o carro no
estacionamento ao lado do cemitério suburbano, a claridade
evanescente ainda iluminava a pequena igreja logo depois dos
portões do cemitério.
Desta vez, ela não se desviou dos portões. A filha de Edouard
Paschal entrou no cemitério de cabeça erguida. Nunca mais alguém
teria de visitar as sepulturas de pessoas amadas num cemitério
dos desajustados, dominado pelo mato. Ou pelo menos não ali. Os
portões haviam sido mudados para incorporar as sepulturas antes
patéticas, graças à influência e à subvenção de um certo cardeal
italiano.
O mármore branco da nova lápide na sepultura do pai parecia
brilhar por dentro quando Maureen se aproximou. Havia uma coroa
de rosas e lírios encostada no mármore, pouco abaixo da enorme
flor-de-lis dourada e da inscrição que dizia:
EDOUARD PAUL PASCHAL
Amado pai de Maureen
Ela ajoelhou-se junto da sepultura e teve uma conversa longa
e há muito adiada com o pai.
O senso de paz interior de Maureen era uma novidade para ela, e
muito bem recebida. Tinha apreensões pelo que o amanhã traria, mas no
geral sentia mais a antecipação do que o medo. No dia seguinte, em
Nova Orleans, teria um encontro, na hora do almoço, com membros do
clã Paschal, tios e primos que jamais conhecera. Depois disso, voaria para
o aeroporto Shannon, na Irlanda, de onde seguiria de carro para a
pequena cidade de Galway. Ficaria hospedada na fazenda da família
Healy. Peter se encontraria com ela ali. Seria a primeira vez em que os dois
se veriam, desde que o primo deixara o Château des Pommes Bleues.
Haviam se falado pelo telefone várias vezes, mas sem qualquer contato
pessoal. Peter marcara um encontro na Irlanda, longe das multidões e de
olhos curiosos. Ali, poderiam conversar à vontade e ele teria tempo e
oportunidade de informá-la sobre a posição oficial do Evangelho de
Arques.
Maureen pensava em todas essas coisas ao passear pelo Quarteirão
Francês, que começava a se agitar, ao lindo crepúsculo daquela sexta-
feira, ao final de outubro. Enquanto ela andava, o som suave de música
de saxofone flutuou na brisa sulista. Ao virar uma esquina, atraída pela
música, Maureen avistou o músico. Os cabelos escuros eram compridos, o
que realçava sua aparência frágil e romântica. Quando ela chegou mais
perto, o músico levantou o rosto. Seus olhos se encontraram por um
momento.
James St. Clair, o músico de rua de Nova Orleans, piscou para
Maureen. Ela sorriu ao passar, os acordes em saxofone de “Amazing
Grace” flutuando no ar em sua esteira.
CAPITULO VINTE E DOIS
Condado de Galway, Irlanda
Outubro de 2005
Há um silêncio que existe no coração dos campos irlandeses, um
sossego que envolve a terra depois que o sol se põe. É como se a noite
exigisse que não houvesse barulho, fizesse questão de uma tranqüilidade
absoluta.
Para Maureen, essa paz era uma trégua, um descanso necessário
do caos dos meses anteriores. Ali, em seu isolamento, estava segura...
uma solidão que incluía seu próprio coração e mente. Não se permitira
processar os acontecimentos recentes de uma perspectiva pessoal; isso
viria mais tarde. Ou talvez nem acontecesse. Era tudo muito sufocante,
de conseqüências profundas... e absurdo demais. Ela cumprira seu
papel como A Escolhida, por força do destino para o qual fora escolhida...
talvez mesmo a providência divina.
Seu trabalho acabara. A Escolhida era uma criatura espectral,
vinculada no tempo e no espaço ao Languedoc... e felizmente deixada na
França. Mas Maureen Paschal era uma mulher de carne e osso, exausta
ainda por cima. E aspirando o doce aroma do lar de sua infância, Maureen
foi se deitar, conquistando um repouso por muito tempo esperado.
Seu sono não seria isento de sonhos.
Ela vivenciara uma cena similar antes... uma figura na sombra,
um homem inclinado sobre uma mesa antiga, o rangido da pena, as
palavras fluindo sobre o papel. Quando observou por cima do ombro do
escritor, viu que um brilho azul parecia emanar do papel. Quando o vulto
se virou e ficou sob o foco da luz do lampião, Maureen prendeu a
respiração.
Já tivera vislumbres daquele rosto em sonhos anteriores,
momentos fugazes de reconhecimento, que se evaporavam no instante
seguinte. Ele agora concentrava toda a força de sua atenção em Maureen.
Paralisada no estado de sonho, ela ficou olhando para o homem à sua
frente. O homem mais bonito que já vira.
Easa.
Ele sorriu para Maureen, uma expressão de tanta divindade e
carinho que ela sentiu como se fundisse nele. Era como se o próprio sol
se irradiasse daquela expressão simples. Maureen permaneceu imóvel,
incapaz de fazer qualquer coisa que não contemplar sua beleza e graça.
— Você é minha filha, com quem estou muito satisfeito.
A voz era uma melodia, uma canção de união e amor que ressoava
no ar ao redor de Maureen. Ela flutuou naquela música por um momento
de eternidade, antes de baixar ao som das palavras seguintes:
— Mas seu trabalho ainda não acabou.
Com outro sorriso, Easa, o Nazareno, o Filho do Homem, tornou a se
virar para a mesa, onde estavam as páginas que escrevera. A luz que
emanava das páginas foi se tornando mais brilhante, as letras
tremeluzindo com uma claridade azul e violeta, as cores dançando no
papel que parecia linho.
Easa deslizou sem esforço pelo espaço que os separava e foi parar na
frente de Maureen. Não falou mais nada. Em vez disso, inclinou-se para a
frente e deu um único beijo, paternal, no alto de sua cabeça.
Maureen acordou encharcada de suor. O couro cabeludo ardia,
como se tivesse sido marcado a fogo, sentia-se completamente tonta e
desorientada.
Olhou para o relógio na mesinha-de-cabeceira e sacudiu a cabeça
para desanuviá-la. A primeira claridade do amanhecer insinuava-se
através das cortinas. Mas ainda era cedo demais para telefonar para a
França. Permitiria a Berry mais algumas horas de sono.
Depois, ligaria para ele... e pediria todos os detalhes sobre o último
paradeiro conhecido d'O Livro do Amor, o único e verdadeiro evangelho de
Jesus Cristo.
POSFÁCIO
“Que é a verdade?”
— Pôncio Pilatos, João 18:38
Minha jornada pela Linhagem Madalena, à procura da resposta
para a indagação de Pôncio Pilatos, começou com Maria Antonieta,
Lucrécia Bórgia e uma rainha-guerreira celta do século I. Conhecida pela
história como Boadicea, esta última tinha um grito de guerra impetuoso:
“Y gwir erbyn y byd”, que traduzido do galês significa: “A verdade
contra o mundo.” Mantive essas palavras como meu mantra pessoal,
numa busca que se estendeu por toda a minha vida adulta e me levou
por um caminho tortuoso, através de dois mil anos de história.
Há muito tempo me sinto compelida a desenterrar grandes
histórias que não foram contadas, camadas da experiência humana
que estão sepultadas de forma silenciosa e muitas vezes deliberada nos
relatos acadêmicos. Como minha protagonista Maureen nos lembra: “A
história não é o que aconteceu. A história é o que foi escrito.” Com
bastante freqüência, o que sabemos e aceitamos como história foi criado
por um cronista com uma visão política comprometida. Essa
compreensão me transformou numa folclorista desde cedo. Obtenho
imensa satisfação em explorar culturas diretamente, em procurar o
historiador local ou o contador de histórias para descobrir as
verdadeiras crônicas humanas, que não estão disponíveis nas bibliotecas
ou nos livros didáticos. Minha herança irlandesa me faz sentir um enorme
apreço pelo poder dos registros orais e tradições vivas.
Meu sangue irlandês também me induziu a tornar-me escritora e
ativista e, como tal, envolvi-me na tumultuada política da Irlanda do
Norte ao longo da década de 1980. Foi durante esse período que desenvolvi
uma perspectiva cada vez mais cética sobre a história registrada e, por
isso mesmo, aceita. Como testemunha de eventos históricos,
compreendi que, em todas as circunstâncias, a versão relatada quase
nunca correspondia ao que eu observara acontecer. Em muitos casos, os
relatos das ocorrências, em jornais, noticiários de televisão e, mais tarde,
em livros de “história”, eram quase irreconhecíveis para mim. Todas essas
versões documentadas foram escritas sob camadas de distorções
políticas, sociais e pessoais. A verdade estaria perdida para sempre...
exceto, talvez, para aqueles que observaram os acontecimentos
pessoalmente. De um modo geral, essas testemunhas eram apenas
pessoas das classes trabalhadoras, que só queriam continuar suas vidas;
não escreveriam várias cartas não publicadas para os jornais de
circulação nacional, nem procurariam uma editora para registrar a sua
versão para a posteridade. Enterrariam seus mortos, rezariam pela paz
e fariam o melhor possível para seguir em frente. Mas também
preservariam sua experiência como testemunhas da história de uma
forma pessoal, através dos relatos para a família e a comunidade.
Minhas experiências na Irlanda reforçaram a convicção na
importância das tradições orais e culturais, porque costumam ser a fonte
mais rica à nossa disposição para a compreensão da experiência humana.
Aqueles acontecimentos nas ruas de Belfast tornaram-se meu
microcosmo. Se foram considerados muito importantes para serem
reconstituídos e alterados pela grande imprensa, como se aplicaria o
conceito ao macrocosmo da história do mundo? A tendência a manipular a
verdade não se tornaria maior e mais absoluta ao lançarmos um olhar
mais distante para o passado, para um tempo em que apenas os muito
ricos, muito instruídos e politicamente vitoriosos eram capazes de
registrar os acontecimentos?
Comecei a sentir uma obrigação premente de questionar a história.
Como mulher, queria levar essa idéia um passo adiante. Desde o início
dos registros escritos, que a vasta maioria dos materiais que os
estudiosos consideram aceitáveis, em termos acadêmicos, foi criada por
homens de determinado nível social e político. Acreditamos, em geral sem
questionar, na veracidade de documentos simplesmente porque podem
ser “autenticados”, ou seja, remontando a um período específico.
Quase nunca levamos em consideração que foram escritos durante dias
mais sombrios, quando as mulheres eram menos valiosas que o gado e
até mesmo se acreditava que não tinham alma. Quantas histórias
magníficas se perderam porque as mulheres que as estrelaram não eram
consideradas bastante importantes, nem sequer humanas o bastante,
para merecer qualquer mérito? Quantas foram completamente removidas
da história? E isso não se aplicaria com mais certeza às mulheres do
primeiro século da era cristã?
Há também aquelas mulheres que foram tão poderosas e
fundamentais em governos mundiais que não podiam ser ignoradas.
Muitas que encontraram seu lugar nos livros de história foram descritas
como notórias vilãs... adúlteras, conspiradoras, impostoras, até mesmo
assassinas. Essas caracterizações seriam justas ou não passavam de
propaganda política usada para desacreditar mulheres que ousaram
asseverar sua inteligência e poder? Armada com essas indagações e com
meu crescente senso de desconfiança daquilo que o mundo acadêmico
aceita como prova histórica, empenhei-me em pesquisar e escrever um
livro sobre mulheres infames, que foram denegridas e incompreendidas ao
longo do tempo. Comecei estudando as já mencionadas, Maria Antonieta,
Lucrécia Bórgia e Boadicea.
Maria Madalena foi inicialmente apenas um dos múltiplos objetos
de minha pesquisa. Esforcei-me em adquirir uma percepção maior desse
enigma do Novo Testamento, em termos de sua importância como
seguidora de Cristo. Sabia que a noção de Madalena como uma prosti-
tuta era preponderante na sociedade cristã e que o Vaticano envidara
algum esforço para corrigir essa injustiça. Esse foi o meu ponto de parti-
da. Era minha intenção incorporar a história de Maria Madalena como
uma das muitas dentro do contexto de trabalho, que se estendia por
vinte séculos.
Mas Maria Madalena tinha um plano diferente para mim.
Comecei a ter uma série de sonhos angustiantes e recorrentes, que
se concentravam nos acontecimentos e personagens da Paixão.
Ocorrências inexplicáveis, como as experiências de Maureen, levaram-me a
investigar indicações de pesquisa envolvendo as lendas de Maria
Madalena, em locais tão diversos quanto McLean, na Virgínia, e o
deserto do Saara. Viajei da montanha de Masada às ruas medievais de
Assis, das catedrais góticas da França às colinas ondulantes do sul da
Inglaterra e através das ilhas rochosas escocesas.
Tive de fazer um esforço para equilibrar os elementos cada vez mais
surrealistas da minha vida, andando por uma linha ao melhor estilo de
Dalí, oscilando entre a típica mãe da pequena comunidade suburbana e
Indiana Jones. Viria a compreender que a maior parte da minha vida fora
vivida em preparação para essa jornada específica de descoberta. Minhas
experiências pessoais e profissionais começaram a se enquadrar num
padrão elaborado, levando-me a descobrir uma série de segredos de família
que antes me seriam inconcebíveis. Cheguei até a lidar com o choque de
saber que muita coisa que eu fora induzida a acreditar, sobre determi-
nadas pessoas da família, era completamente inverídica. Quase vinte
anos depois que eles se foram, descobri que meus avós paternos, conser-
vadores e muito tradicionais — minha doce avó, uma típica beldade sulista
dos Estados Unidos, e seu devotado marido, um batista do sul —, esti-
veram profundamente envolvidos com a atividade de sociedades secretas e
com a maçonaria. Descobri que minha avó tinha um parentesco de sangue
com algumas das mais antigas famílias da França, um fato que
mudaria não apenas o curso da minha pesquisa, mas também minha
vida. O supremo choque ocorreu com a revelação de que minha data de
nascimento era o assunto de uma profecia relacionada com Maria
Madalena e seus descendentes, a Profecia de Orval, tal como foi enunciada
por Berenger Sinclair. Essas “coincidências” pessoais tornaram-se a
chave mestra para destrancar portas que haviam sido proibidas para pes-
quisadores que me precederam.
Meu interesse pelo folclore de Maria transformou-se em obsessão à
medida que vivenciei antigas e fascinantes tradições culturais, preserva-
das com amor e uma fervorosa paixão por toda a Europa Ocidental. Fui
convidada para o santuário interior de sociedades secretas e me reuni
com os guardiões de informações tão sagradas que me espanta até hoje
que eles existam com o conhecimento que protegem... há dois mil anos.
Posso afirmar que não tinha a menor intenção de explorar
assuntos que questionam o sistema de convicções de um bilhão de
pessoas. Nunca pensei em escrever um livro que tratasse de um problema
tão importante como a natureza de Jesus Cristo ou seu relacionamento
com as pessoas mais íntimas em sua vida. Como minha protagonista,
no entanto, descobri que às vezes o caminho é traçado para nós. Depois
que descobri a maior história de todos os tempos sob a perspectiva de
Maria Madalena, não havia como voltar atrás. A idéia me possuiu na
ocasião, como o faz até hoje. E tenho certeza de que sempre será assim.
Dois mil anos de controvérsias fizeram com que Maria Madalena se
tornasse a pessoa mais difícil de compreender no Novo Testamento. Em
minha busca para descobrir a mulher real por trás do mito, compreendi
que não tinha o menor desejo de reaproveitar todas as fontes tradicio-
nais, conforme interpretadas pelos suspeitos habituais. Envolvi-me com
o manto quente da folclorista e parti em busca de um mistério mais pro-
fundo. Descobri que o vasto folclore e a mitologia envolvendo Maria
Madalena, na Europa Ocidental, é tão rico quanto antigo. O segredo do
anel e os livros subseqüentes nesta série exploram teorias sobre a identi-
dade e impacto dessa controvertida Maria, inspiradas por subculturas no
sul da França e outros lugares da Europa.
O folclore e tradições da Europa também proporcionaram uma nova
percepção sobre alguns mistérios de Maria, aqueles que nunca foram
explicados, por qualquer teoria plausível, pelos estudiosos tradicionais.
Um trecho no evangelho de Marcos (16:9) tem sido usado contra Maria há
séculos: “Tendo ressuscitado na manhã do primeiro dia da semana,
Deus apareceu primeiro a Maria de Magdala, da qual expulsara sete
demônios.” Essa única frase levou a alegações radicais sobre o estado
mental de Maria, inclusive livros dedicados à idéia de que era possuída
por demônios ou mentalmente doente. Foi só depois que tomei conheci-
mento da perspectiva de Arques — segundo a qual Jesus curou Maria
depois que ela foi envenenada por uma mistura letal conhecida como
Veneno dos Sete Demônios —, é que a frase de Marcos passou a fazer sen-
tido para mim.
Numa época em que as mulheres eram definidas por seus relaciona-
mentos, Maria Madalena não é identificada como a esposa de ninguém
no Novo Testamento, muito menos de Jesus Cristo. Esse fato isolado
levou os estudiosos a proclamarem definitivamente que a idéia de casa-
mento entre Maria e Jesus é uma impossibilidade. Mas isso cria outro
enigma, já que ela é também a única mulher nos quatro evangelhos a ser
identificada como uma pessoa independente. Ela é uma personagem iso-
lada, indicando que seu nome seria facilmente reconhecido pelas pessoas
de seu tempo e logo depois. Creio que os relacionamentos complicados de
Maria — sua situação como nobre que se torna viúva e casa com outro —
eram algo problemático. Seria constrangedor e até politicamente incorreto
tentar identificar Maria em termos de seus relacionamentos com os
homens. Em conseqüência, ela torna-se conhecida apenas por seu nome
e título: Maria Madalena.
Além disso, a iconografia de Madalena sempre me deixou perplexa.
Apesar da natureza enigmática de sua lenda, ela virou um dos temas
mais populares dos grandes pintores da Idade Média, Renascença e
período barroco. Há centenas de retratos de Maria Madalena, de mestres
italianos como Caravaggio e Botticelli a modernos europeus, como
Salvador Dali e Jean Cocteau. Há um elemento comum nos retratos
muito diferentes de Madalena. Ela é apresentada muitas e muitas vezes
com os mesmos acessórios: um crânio, que representaria a penitência;
um livro, que simbolizaria os evangelhos; e o pote de alabastro, que ela
usou para ungir Jesus. Usa sempre vermelho, uma tradição antiga na his-
tória, o que em geral se acredita ter uma relação com a concepção de
Madalena como uma prostituta.
Mas acredito agora que a iconografia esteja ligada a essa versão
secreta de sua história, preservada pelo movimento clandestino europeu.
Para mim, o crânio é obviamente uma representação de João, por quem
ela sempre fará penitência. O livro é uma referência a seu próprio
evangelho, ou a O Livro do Amor, escrito por Easa. E a túnica e véu
vermelhos são representativos de sua posição de rainha na tradição
nazarena. Creio no fundo do coração que muitos dos grandes pintores e
escritores da Europa aceitavam a “heresia” de Maria Madalena... e a rica
herança que ela deixou no continente.
Ao longo desta estrada, as histórias jamais contadas de heróis e
anti-heróis do Novo Testamento são reveladas, em detalhes
surpreendentes. O leitor encontra nestas páginas uma interpretação
muito diferente — e espero que muito humana — do papel da infame
Salomé. João Batista é um homem diferente quando visto através dos
olhos de Maria Madalena... e daqueles que a reverenciaram durante dois
mil anos. Tenho uma fervorosa esperança de que o leitor não considere
muito rigorosa minha descrição de João Batista. Tanto Maria quanto
Easa reiteram que João Batista foi um grande profeta. Também creio que
ele foi um homem de seu tempo e de sua terra, um homem empenhado
no cumprimento da lei, sem concessões, um homem que era inflexível
em sua oposição a reformas. Creio que não sou a primeira pessoa a
indicar uma rivalidade entre os seguidores de João e Jesus — e não serei
a última —, mas também sei que essa idéia de João como o primeiro
marido de Maria é chocante para muitos. Literalmente, levei anos para
processar a informação, antes de me sentir preparada para escrever a
respeito. O legado de João, por intermédio de seu filho com Maria
Madalena, continuará a se revelar em meus futuros livros.
Apaixonei-me pelos apóstolos Filipe e Bartolomeu durante esse pro-
cesso. Vistos pelos olhos de Maria, eles foram heróis extraordinários.
Pedro adquiriu vida para mim de uma maneira muito além do “homem
que negou Jesus”. Também desenvolvi uma nova perspectiva sobre Judas
e seu papel trágico e eterno na Paixão.
Talvez eu tenha ficado muito sensibilizada pelas informações que
surgiram sobre Pôncio Pilatos e sua heróica e comovente esposa, uma
nobre romana conhecida como Cláudia Prócula. Há documentos catalo-
gados nos arquivos do Vaticano e uma fascinante tradição real francesa
para apoiar a incrível história do envolvimento de Jesus com a família de
Pilatos. É um relato que confere autenticidade a seus milagres e explica
as ações mais enigmáticas de Pilatos no evangelho de João. Creio que o
material de Pilatos é fundamental para uma compreensão dos aconteci-
mentos relacionados com a Paixão. Fiquei fascinada ao descobrir que
Cláudia é uma santa dentro das tradições ortodoxas, assim como Pôncio
Pilatos também é, nas igrejas abissínias/etíopes.
Trabalhei para validar o novo material de Madalena por muitos
ângulos diferentes, usando a correspondência de Cláudia Prócula do
século I, conforme publicada pela Issana Press, as múltiplas versões dos
Apócrifos do Novo Testamento, os primeiros textos dos Pais da Igreja,
diversas e valiosas fontes gnósticas e até mesmo os Pergaminhos do mar
Morto. Compreendo que esta versão dos acontecimentos pode ser sur-
preendente, até assombrosa, mas tenho a esperança de que cada leitor
será pessoalmente inspirado a explorar sua compreensão desses misté-
rios. Há um vasto tesouro de informações, a maior parte escrita entre os
séculos II ao IV, que não estão incluídas nos cânones tradicionais da
Igreja. Há milhares de páginas de material a descobrir, como evangelhos
alternativos, Atos de Apóstolos e textos diversos, que revelam detalhes e
percepções sobre a vida e os tempos de Jesus que serão completamente
novos para os leitores que nunca foram além dos quatro evangelistas.
Creio que a exploração de todo esse material, com a mente e o coração
abertos, pode construir uma ponte de luz e compreensão entre as muitas
divisões do cristianismo e além.
Ao longo de meus anos de pesquisas, discuti, questionei,
argumentei e até admiti muitos pontos com clérigos e adeptos de várias
fés. Sou abençoada por ter amigos e colegas de muitas arenas espirituais,
inclusive padres católicos, ministros luteranos, praticantes gnósticos e
sacerdotisas pagãs. Em Israel, conheci estudiosos e místicos judeus,
assim como guardiões ortodoxos dos lugares sagrados do cristianismo.
Meu pai é batista, meu marido é um devoto católico. Todas essas
pessoas tornaram-se uma parte do mosaico de meu sistema de convicções
e, em última análise, uma parte desta história. Apesar das inúmeras
diferenças em suas filosofias, cada uma dessas pessoas me abençoou
com a mesma dádiva: a capacidade de trocar idéias e se empenhar num
diálogo livre e sem raiva.
Há elementos desta história que não posso confirmar por meio de
qualquer das fontes acadêmicas “aceitáveis”. Existem nas tradições orais
e foram preservados em ambientes altamente protegidos pelos que
temiam repercussões por séculos. Ao preparar este livro, decidi optar por
desenvolver uma argumentação para minha teoria através de dois mil
anos de provas circunstanciais. Embora não possa apresentar uma prova
inequívoca, tenho muitas testemunhas interessantes e uma enorme
quantidade de evidências corroborativas, muitas criadas por nada menos
que os grandes mestres da Renascença e barrocos. Apresento minha
argumentação no contexto dessas evidências e deixarei que o júri dos
leitores determine seu veredicto.
Devo ser circunspecta sobre a fonte primária das novas
informações apresentadas aqui, por razões de segurança. Mas uma coisa
posso dizer. O conteúdo do evangelho de Maria Madalena, como o
interpreto neste livro, é extraído de material nunca antes revelado.
Nunca foi liberado para o conhecimento público. Tomei uma licença
poética na interpretação para torná-lo mais acessível a leitores do século
XXI. Mas creio que a história relatada é genuína e sobrevive por si
mesma.
Em minha necessidade de proteger a natureza sagrada dessas
informações e as pessoas que as guardam, não tive opção que não
escrever este livro — e os subseqüentes nesta série — como ficção.
Contudo muitas das aventuras da protagonista e quase todos os seus
encontros sobrenaturais estão baseados em experiências da minha própria
vida. Em numerosos casos, Maureen recebe informações exatamente da
mesma maneira com que as obtive durante as minhas pesquisas... como
acontece com Tammy. Embora os personagens modernos sejam todos
fictícios, fiz o melhor possível para proporcionar aos leitores uma
experiência autêntica.
Este livro levou quase vinte anos para ser preparado. Ao longo do
caminho, muitas vezes traiçoeiro, recebi a valiosa ajuda de inúmeras
almas intrépidas. Sou grata pelos conhecimentos que me foram confia-
dos e partilhados, pelas pessoas mais extraordinárias, algumas das quais
correram enormes riscos para me ajudar. Em muitas e muitas oportuni-
dades, especulei sobre meu mérito para escrever esta história. Não creio
que tenha dormido uma noite inteira durante os últimos dez anos,
enquanto me afligia pelos detalhes neste livro e as suas repercussões em
potencial.
Só posso torcer para que o produto final esteja à altura desses
guardiões da verdade de Maria Madalena, que contam comigo para
contar sua história. Acima de tudo, espero que transmita a mensagem de
Maria, de amor, tolerância, perdão e responsabilidade pessoal, de uma
maneira que os leitores possam achar inspiradora. É uma mensagem de
união e de não-julgamento para todas as pessoas e todos os sistemas de
convicções. Ao longo desse processo, permaneci devotada aos
ensinamentos de paz de Cristo e com a convicção de que podemos criar o
céu na Terra. Minha fé n'Ele — e n'Ela — amparou-me através de algumas
noites muito escuras da alma.
Compreendo que me tornarei o alvo de estudiosos e acadêmicos,
muitos dos quais me chamarão de irresponsável por apresentar uma ver-
são que não pode ser confirmada pelas fontes aceitáveis. Mas não pedirei
desculpas pelo fato de ter me oposto às práticas acadêmicas aceitas, no
relato desta história. Minha perspectiva baseia-se na convicção pessoal,
talvez radical, de que é irresponsabilidade aceitar o que foi escrito. Usarei o
emblema escarlate de “antiacadêmica”, com algum orgulho e com o grito
de guerra de Boadicea. Só os leitores poderão determinar que versão da
história de Maria encontra um eco em seus espíritos.
A todos os autores e pesquisadores que têm teorizado, postulado,
argumentado, especulado e formulado intrepidamente, ao longo de dois
mil anos de indícios e pistas falsas, no caminho da compreensão da natu-
reza de Maria Madalena e seus filhos, estendo a mão em amizade. As
divergências veementes sobre o papel da nossa Madalena — e os muitos
escritores e artistas plásticos que a representaram — talvez estejam na
própria essência da busca pela verdade. Espero que eles julguem por bem
me chamar de irmã, depois de que tudo for dito e feito.
Dois mil anos depois, ainda é a verdade contra o mundo.
KATHLEEN McGOWAN
22 de março de 2006 Cidade dos Anjos
AGRADECIMENTOS
Agradecer a todas as pessoas que me ajudaram ao longo dos
últimos vinte anos é uma tarefa digna de um livro inteiro e,
infelizmente, não seria possível neste espaço tão finito. Farei o melhor
que puder para incluir aqueles que foram fundamentais para me
ajudar a terminar este livro.
A meu agente e amigo, Larry Kirshbaum, que se tornou meu
arcanjo pessoal através desse processo, ofereço minha ilimitada
admiração e gratidão. Sua paixão pela história de Maria e sua
determinação em me ajudar a levá-la ao conhecimento do público
foram a força orientadora que permitiu que tudo acontecesse.
Sou grata além das palavras pelo apoio firme, orientação
profissional e conselhos fraternais de minha editora, Trish Todd. Meu
reconhecimento a ela — e a toda a equipe de extraordinários
profissionais na Simon and Schuster/Touchstone Fireside — não tem
limites.
Foi preciso um enorme sacrifício para minha família me apoiar ao
longo dos anos de pesquisa. Durante todo o processo, meu
marido, Peter McGowan, foi o meu fiel. Apoiou-me em termos
financeiros e emocionais, defendendo o forte e mantendo a família
unida enquanto eu viajava. Nunca duvidou de minhas experiências
nem perdeu a fé em minhas descobertas, por mais extravagantes que
parecessem, a princípio... o que é muito mais do que posso dizer de
mim mesma. Meus maravilhosos filhos, Patrick, Conor e Shane,
aturaram uma mãe que às vezes estava ausente e perdeu muitas das
competições esportivas de que eles participaram. E, no entanto, meu
marido e meus filhos testemunharam tantos milagres comigo, ao longo
do caminho de descoberta, que todos achamos que não havia opção se
não seguir até a conclusão, apesar dos riscos muitas vezes
consideráveis. Espero que este livro esteja à altura de seus sacrifícios.
Foi mesmo uma história de família e uma parte de tudo o que faço
e tudo o que sou pertence a meus pais, Donna e Joe. Seu amor e apoio
foram a base de minha vida e eles sofreram alguns momentos difíceis em
conseqüência do espírito cigano da filha. Agradeço-lhes por tudo, mas
me sinto abençoada em particular pelo amor incondicional que
demonstram pelos netos.
Partilho este e os meus futuros trabalhos com meus irmãos,
Kelly e Kevin, e suas famílias. A meus extraordinários sobrinhos e
sobrinhas, Sean, Kristen, Logan e Rhiannon, espero que as revelações
deste livro os inspirem um dia para realizarem seus destinos singulares.
No mesmo dia em que concluí a versão final do manuscrito, recebemos
neste mundo minha mais nova sobrinha, Brigit Erin. Ela nasceu no dia
22 de março de 2006. Ficarei observando com interesse afetuoso,
enquanto seus pezinhos crescem para calçar os sapatos da Escolhida
que veio antes dela.
Toda a minha família deve a nossa felicidade à Unidade de
Tratamento Intensivo da UCLA por salvar o bebê Shane. Na verdade,
eles salvaram todos nós. Para alguém que duvida de milagres, sugiro
que passe alguns dias na UTI neonatal. Ali, pode-se constatar que há
mesmo anjos neste mundo. Usam jalecos brancos e estão disfarçados
de médicos, enfermeiras e terapeutas de respiração. O milagre de Shane
foi o catalisador que me forçou a terminar este livro.
Viajei por quilômetros incontáveis desta jornada com Stacey K,
que tem sido minha irmã, companheira de pesquisa e amiga querida.
Ela merece uma menção especial por aceitar as missões mais
extravagantes sem hesitar... como seguir vozes desencarnadas
chamando “Sandro” através do Louvre ou ir atrás de homenzinhos
estranhos através da Basílica do Santo Sepulcro. Eu não seria capaz de
completar este livro sem sua fé e lealdade.
Tenho uma dívida e um apreço interminável por “Auntie Dawn”,
por sua generosidade sobre-humana e por agir como uma espantosa
âncora de amizade e lealdade.
Uma gratidão literalmente eterna vai para Olivia Peyton, minha
irmã espiritual e mestra na pesquisa. Curvo-me à sua genialidade
como mulher e como sibila cibernética e presto uma homenagem a seu
brilhante romance, Bijoux, que tem a chave para tantos mistérios.
Apresento agradecimentos especiais a Marta Collier, por sua
contribuição e convicção na música de Finn MacCool, além de seu apoio
decidido ao clã McGowan em todas as circunstâncias.
Ofereço os mais sinceros agradecimentos a Ted Grau, meu grande
amigo e sempre corajoso cavaleiro do Graal. Não creio que ele tenha
compreendido realmente como sua contribuição foi importante. Mas eu
sei.
Obrigada a Stephen Gaghan por seus comentários perceptivos —
embora agoniantes — sobre os primeiros esboços da história. Sua
honestidade inflexível obrigou-me a efetuar melhorias críticas.
Go raibh mile math agat a Michael Quirke, o místico entalhador do
condado de Sligo, que por acaso também é o maior contador de
histórias do mundo. Desde o dia em que entrei em sua loja “por
acaso”, quando estava perdida, no verão de 1983, tenho vivido no outro
lado do espelho. Mais do que qualquer outra pessoa ou acontecimento,
Michael me fez compreender que a história não é o que está registrado
no papel, mas sim o que foi escrito nos corações e almas dos seres
humanos... e gravados na terra em que viveram suas maiores alegrias e
seus mais profundos pesares. Mil agradecimentos por me dar olhos para
ver e ouvidos para escutar.
Agradecimentos adicionais vão para:
Patrick Ruffino, que me ensinou o significado da amizade e por
evitar que eu me perdesse na Zsx Avenue;
Linda G, que faz malabarismos com os arquétipos de Martha e
Vivienne com tanta graça;
Verdena, por incorporar o espírito de Madalena e me ensinar
mais do que umas poucas coisas sobre fé, milagres e imensa coragem;
R. C. Welch, por atuar como tradutor no Museu Moreau e por
uma extraordinária conversa sobre a vida e escrever, num banco de
Saint-Sulpice;
Branimir Zorjan, por levar sua amizade, luz e cura a nossa casa;
Jim McDonough, o mais adorável magnata da mídia no planeta e
um grande amigo nosso;
Carolyn e David, que estão apenas começando a perceber seu
papel em tudo isso;
Joyce e Dave, meus mais novos amigos;
Joel Gotler, por combater o bom combate e trabalhar para que a
história de Maria tenha uma audiência maior;
Larry Weinberg, meu advogado e amigo, por acreditar em mim
tanto quanto no livro;
Don Schneider, por me fazer rir;
Glenn Sobel, por sua ilimitada paciência e apoio no passado;
Cory e Annie, que compraram o primeiro exemplar.
Também tenho uma dívida de gratidão com a rainha de Áries,
Linda Goodman, a falecida astróloga e escritora que foi a primeira
pessoa que sussurrou esse segredo em meu ouvido, muito antes de eu
estar preparada para compreendê-lo. Ela alterou o curso de minha vida
com essa informação e ao me deixar suas traduções das Tábuas de
Esmeralda (cuja importância se tornará evidente em livros posteriores).
Meu destino permanece estranhamente entrelaçado com o de Linda, um
fato que proporcionou a ambas uma angústia surpreendente, mas
também uma imensa alegria. Gostaria que ela tivesse permanecido
conosco pelo tempo suficiente para ver a prova revelada de suas próprias
ligações com a linhagem.
Também sou grata porque o caminho através da vida de Linda me
levou a outra grande escritora e astróloga, Carolyn Reynolds. Carolyn
foi meu rochedo em dias muito sombrios, com o seu grito de batalha:
“Ninguém pode roubar seu destino.” Agradeço a ela com toda a força do
meu coração.
Também apresento agradecimentos especiais às iluminadas
mulheres do Foro das Tábuas de Esmeralda, por seu apoio e amor ao
longo dos anos.
Às vezes é preciso metade de uma vida para compreender por que
determinados acontecimentos moldam seu destino. Jackson Browne
mudou minha vida jovem e impressionável quando completei dezessete
anos, nos bastidores do Pantages Theater. Creio sinceramente que este
livro não existiria se ele não tivesse feito isso. Como ativista adolescente,
fui o alvo de seu discurso arrebatado sobre o poder de uma pessoa de
fazer uma diferença no mundo... e de seu elogio à minha jovem
necessidade de questionar qualquer situação injusta. Ele me segurou
pelos ombros para dar ênfase, ao dizer: “Nunca pare de fazer o que você
faz. Nunca.” Agradeço a ele por esse catalisador (embora meus pais prova-
velmente não agradeceriam) e por uma vida inteira de música inspirada,
em particular por “The Rebel Jesus”. Creio que Easa aprovaria.
Também apresento meus agradecimentos sinceros a Ted Neeley
e às lembranças afetuosas do falecido Carl Anderson. Eles e muitos
outros me comoveram com seus retratos de inspiração divina de Easa e
Judas. (É uma coincidência que Andrew Lloyd Weber tenha nascido no
dia 22 de março?) Qualquer um bastante afortunado para passar
algum tempo na presença radiante de Ted sabe o quanto ele
personifica a beleza do espírito nazareno.
Os talentosos membros do Screenwriter's Refuge me
proporcionaram terapia de grupo e um tremendo apoio durante os
últimos anos. Cindy, Robert, James, Mel, Kathy, Fitchy, Teddy, Chris e
Wenonah, vocês merecem minha admiração e meus mais profundos
agradecimentos. É maravilhoso estar nas trincheiras com amigos de
confiança.
Meu coração vive na Irlanda e minha gratidão está
especificamente no condado de Cavan, onde meus parentes afins, John
e Mary, sempre me trataram como se fosse de seu próprio sangue.
Meu amor e agradecimentos também se estendem a toda a minha
família irlandesa: Brian, Bridie & Pat, Susan, Philomena, Pam & Paul,
Geraldine & Eugene, Peter & Laura, e Noeleen, David & Daniel.
Agradeço a toda a turma de Drogheda por me mostrar a
essência da cidade que sobreviveu a Cromwell. São pessoas muito
especiais e amigos maravilhosos. E aquele ponto de referência é
chamado de Torre de Madalena por uma razão, não é mesmo?
Durante a pesquisa, Los Angeles foi meu lar, a Irlanda meu
refúgio, e a França minha inspiração. Sou grata à equipe do Hotel Place
du Louvre, que sempre me fez sentir bem-vinda em Paris, e por me
apresentar à história da Cave dos Mosqueteiros. Há muitas pessoas na
França que me deram pedacinhos de seu coração e alma. Não se passa
um dia sem que eu suspire pela beleza do Languedoc, Camargue, Midi,
Provence... e pelas pessoas extraordinárias que habitam essas regiões
mágicas.
A essência da Madalena é de compaixão e perdão e, nesse
espírito, eu ofereceria um ramo de oliveira às pessoas a quem posso
ter ofendido ao longo do caminho. Em particular, a meu tio, Ronald
Paschal, pois sua paixão pela nossa excepcional herança francesa foi
uma coisa que não pude absorver na ocasião em que ele tentou me
mostrar.
Também ofereço este livro a Michele-Malana. Nossa amizade não
sobreviveu ao caminho tumultuado em que nos lançamos, mas sua
generosidade e inspiração nunca serão esquecidas. Se ela algum dia ler
isto — e seu amor por nossa Madalena indica que pode ler —, espero
que me encontre.
Devo agradecer às pessoas maravilhosas na Issana Press por
publicarem as traduções das cartas de Cláudia Prócula. Recomendo o
livreto Relíquias de arrependimento... bem pequeno, mas sem dúvida
poderoso. Agradeço-lhes por me confirmarem que Pilo era mesmo o nome
do filho de Pilatos... e por desafiar meu cérebro com a informação de que
pode haver outros filhos de Pilatos!
Creio que é necessário que os escritores homenageiem aqueles
que abriram as portas para passarmos. Assim, devo agradecer a autores
bastante controvertidos, Michael Baigent, Henry Lincoln e Richard Leigh,
que levaram ao mundo O Santo Graal e a linhagem sagrada, na década de
1980. Esse livro foi o terremoto que despertou o público para a idéia de
que alguma coisa importante estava acontecendo no sudoeste da
França. Obviamente, cheguei a conclusões diferentes e encontrei um
foco alternativo para minhas pesquisas. Mesmo assim, respeito a
coragem, tenacidade e espírito pioneiro desses três homens honrados e
o que conseguiram realizar... e por introduzir o mundo esotérico por
intermédio do enigmático e misterioso Berenger Saunière.
Finalmente, a todos os brilhantes artistas que ansiaram para
que as informações fossem descobertas em suas próprias vidas, ofereço
minha gratidão por nos proporcionarem os mapas e indicações que
eram necessários para descobri-las. Agradeço em particular a
Alessandra Filipepi, que foi de fato “um filho dileto dos deuses” e
continua a me encantar, através do tempo e do espaço.
Encontrarei todos muito em breve, na Catedral de Chartres, na
entrada do labirinto, ao iniciarmos nossa busca por O Livro do Amor.
Vocês já têm um mapa. Mas podem querer levar seus velhos exemplares
das obras completas de Alexandre Dumas e se envolverem com uma
tapeçaria de unicórnio...
Lux et veritas, KDM
Et In Arcadia Ego
On the road to Sion, I met a woman
A shepherdess so fair
She spoke these words in a secret whisper
Et In Arcadia Ego
I traveled east through the red mountains
By the cross and this horse of God
Saint Anthony the hermit said,
“begone, begone”
I hold the secrets of God.
In the harvest time I rested
seeking the fruit of the vine
in the mid-day sun I saw them
blue apples, blue apples
Et In Arcadia Ego
In the shadow of Mary
I found the secrets of God
(Et In Arcadia Ego
Na estrada para Sião encontrei uma mulher
Uma pastora tão bela
Ela falou essas palavras em segredo
Et In Arcadia Ego
Viajei para leste através das montanhas vermelhas
Pela cruz e este cavalo de Deus
Santo Antonio, O Eremita, disse:
“vá embora, vá embora”
eu tenho os segredos de Deus.
No tempo da colheita descansei
procurando o fruto da videira
ao sol do meio-dia eu vi
maçãs azuis, maçãs azuis
Et In Arcadia Ego
A sombra de Maria encontrei
os segredos de Deus)
Do álbum Music of the Expected One, de Finn MacCool Letra e música de Peter McGowan e Kathleen McGowan Visite www.theexpectedone.com para ouvir o áudio
P A P E L
CHAMOIS-FINE a l c a l I n o
Este livro foi impresso em papel Chamois Fine Dunas 75g/m2, da Ripasa S/A., fabricado em harmonia com o meio ambiente.
Este livro foi impresso na Editora JPA Ltda. Av. Brasil, 10.600 — Rio de Janeiro — RJ
para a Editora Rocco Ltda.
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