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O Movimento de Natal e a gênese da colusão entre catolicismo e
marxismo em meados da década de 1950
RENATO AMADO PEIXOTO*
Esta comunicação pretende colocar certas premissas de diálogo acerca das
transformações na atuação e organização da Igreja no Brasil durante as décadas de 1940 e
1950, principalmente no que se refere à relocação do seu centro de decisão, à sua opção por
uma Pastoral de Conjunta baseada no esforço dos leigos e à aproximação de leigos e
religiosos com a produção de um pensamento e uma prática ligada à esquerda política.
Colocando essas premissas a partir da comparação do caso brasileiro com o caso
argentino por meio das colocações de José Zanca (2013), penso que, no caso do país vizinho o
campo católico antifascista foi dinamizado pela visita de Jacques Maritain à América Latina
em meados da década de 1930, mas, no caso brasileiro ela serviu para transformar posições já
comprometidas com uma aproximação com a versão brasileira do fascismo, exemplificada
nas falas e atuação de padre Hélder Câmara e dos intelectuais Alceu Amoroso Lima e Otto de
Brito Guerra.
Nesse sentido, acredito que é necessário pensar essa diferença, através de uma
analítica sensível às diferenças e transformações. Na continuidade de nosso trabalho temos
buscado refletir em torno da teoria da ‘Religião Política’ e procurado desenvolver um de seus
conceitos de reflexivos, a ‘colusão’, i.e., a confluência e síntese de posições antitéticas, com a
transformação das crenças religiosas para que estas se adaptassem ao político. na busca de
conseguir discernir não apenas as razões de aproximação do catolicismo com o fascismo, mas
considerar a aproximação do catolicismo com o político enquanto um processo, cuja produção
* Professor Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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é orientada na direção de um dado espécime do político. No exame de uma amostra do caso
brasileiro, fornecida pela Diocese de Natal, no Rio Grande do Norte, acreditamos ser possível
apontar este processo, desde sua primeira aproximação com o político tradicional, para sua
colusão com o fascismo, e, na sua reaproximação com o tradicional, até uma nova colusão,
desta vez com o marxismo (PEIXOTO, 2015; 2016; 2017a; 2017b).
Contudo, outra complexidade há que ser destrinchada, a questão de ter de se
empreender uma analítica do catolicismo no Brasil que considere as suas traduções locais e
regionais, mesmo porque ela impõe diante do consenso de que o processo de recatolicização
foi acompanhado pela estratégia da expansão diocesana.
Neste ponto, cabe dizer que muitos repisam duas noções que atrapalham o raciocínio
das transformações do político e do religioso nas escalas espaciais. A primeira noção é aquela
que considera a relação entre o centro e a periferia em termos puramente hegemônicos e/ou
mecanicistas e que descortina no exame dessa relação a imposição dos padrões centrais e a
subsequente transferência para a periferia dos instrumentos que regulam a sua dominação. A
segunda é a que resulta em pensar a incorporação dos valores centrais pela cultura periférica
nos termos de uma adesão irrefletida e/ou da mistura não criativa.
Ao contrário disto, a partir de Edward Shils (1992), procuramos pensar as ideias de
centro e periferia enquanto um processo de integração e partilha de certas culturas comuns,
resultantes de vários processos ou fatores independentes (p. 150-152). Neste sentido, a
integração entre o centro e as periferias nunca seria homogênea, constante ou contínua, mas a
resultante do acordo entre suas várias partes, por meio do que se estabeleceria não apenas a
legitimidade do centro, mas também sua transcendência, possibilitando a este prescindir de
localização no tempo e no espaço e situar-se cada vez mais na promoção da cultura partilhada
e na proteção dos seus agentes (SHILS, 1992, p. 165).
Todavia, ainda caberia salientar que o raciocínio da relação entre o político e o
religioso nas escalas espaço-temporais deve ser desenvolvido a partir de posições como
àquela esposa por Homi Bhabha, i.e., que a hibridização das culturas central e periférica forja
continuamente um ‘entre-lugar’, onde a cultura central é interpretada e rearticulada para ser
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devolvida à cultura partilhada (1998, p. 256-261), inclusive porque esta é uma prática cujo
nexo pode ser remetido às articulações de alguns dos principais contendores no campo
católico, especialmente no que tange à Sociedade de Jesus.
Entendemos que essa ‘espacialização’ se constitui numa operação no sentido em que
vários espaços e tempos são ali tomados conjuntamente – outras espacializações, locais,
regionais e nacionais, instruindo uma operação de ‘espacialização’ do próprio centro. Assim,
o sentido da operação não é apenas passivo ou dirigido, mas ativo e também reflexivo: toda
espacialização se constitui como uma des-espacialização e uma des-constituição de outras
espacializações precedentes ou contemporâneas, porquanto desloca – ativa e masculinamente
–, mas, recebe e concebe – passiva e femininamente. Assim, compreendemos que o raciocínio
das transformações do político e do religioso nas escalas espaciais deve empregar a noção de
que vários espaços e tempos locais, regionais e nacionais foram conjuntamente
tomados/recebidos –, e, por conseguinte, se possibilita o deslizamento do tempo para a
alocação do inventado, fabricado ou reelaborado. Penso que podemos dizer da cumplicidade
de uma origem comum a partir desse comparecer e que podemos investigá-lo como a
condição de todo aparecer das suas representações, e, seria nesse sentido de com-
parecimentos e de re-apareceres que situamos um roteiro possível para a investigação do
amálgama do catolicismo e do político nos casos regionais e locais (PEIXOTO, 2014, p. 56).
Numa preocupação já esboçada na organização do livro “Olhares sobre os
catolicismos no Centro-Oeste, Nordeste e Norte do Brasil” (PEIXOTO & RODRIGUES,
2016) buscamos pensar nas traduções locais e regionais dos temas fornecidos pelo catolicismo
e de sua reincorporação ao sistema central desse mesmo catolicismo.
Essa questão ganha ainda mais relevância se pensarmos nas transações e transições
políticas e espaciais que foram características da recatolicização: a compressão espaço-
política do sistema central num mesmo local, o Rio de Janeiro, junto à Nunciatura Apostólica,
na Capital da República, em torno da Arquidiocese do Rio de Janeiro, do Centro Dom Vital e
da figura do único cardinalato da América Latina. Há que se pensar que essa liderança se
ancorava numa polaridade diocesana centro-sul que forneceu o modelo da Liga Católica e sua
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transição para o modelo Nordeste-Norte da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
(PEIXOTO, 2017b: 308-309).
A Gênese do Movimento de Natal
Deve se colocar que essa nos ficou apontada a partir da reedição, expandida e
atualizada, do livro “Igreja e Movimento – O Movimento de Natal” e se torna necessário
explicitar que certas questões podem ser descortinadas a partir do exame de sua escrita.
Afinal, Ferraro chegou ao Brasil poucos dias de acontecer o Golpe Militar de 1964;
alcançou o Recife e rumou para a cidade de Natal antes que a Repressão pudesse suprimir o
seu objeto de pesquisa. Na manhã mesmo do anúncio do Ato Institucional nº 5 conseguiu
retirar duzentos exemplares de Igreja e Desenvolvimento da gráfica onde seguia a sua
impressão; auxiliado por simpatizantes de sua causa nos Correios, logrou enviar para Roma
boa parte dos livros que lhe restaram, onde estavam sendo aguardados para cumprimento da
exigência de seu doutorado.
A maior parte dos exemplares retirados da gráfica ficou escondida num porão em
Natal para serem resgatados pelo autor apenas vinte anos depois. Apesar disto tudo, Igreja e
Desenvolvimento foi passado de mão em mão, e, dos militantes do Movimento de Natal até
os pesquisadores, acabando por se tornar um livro bastante citado nas áreas da História do
Catolicismo, da Pedagogia, das Ciências Sociais e da História do Rio Grande do Norte.
No auge da Ditadura, em 1969, Alceu Ferraro foi solto da prisão por uma enxurrada de
fiéis, endossados, inclusive, por aqueles que defendiam o Regime Militar; depois conseguiu
alcançar o cargo de professor universitário na UFRGS apesar de estar fichado no DOPS/RS e,
de Igreja e Desenvolvimento ter sido apontado como “altamente subversivo”.
E, passados mais de cinquenta anos da sua publicação, poucas pessoas leram ou
mesmo pousaram suas mãos sobre um exemplar de Igreja e Desenvolvimento – O Movimento
de Natal, mas, ainda assim, este livro permanece sendo lembrado e citado. Por que isto?
Por um lado, apontei ao leitor os acontecimentos curiosíssimos que uniram o autor e
seu texto, e, apenas por isso já se poderia justificar a sua publicação, instigando, se vivo fosse,
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Jorge Luis Borges a tecer, com seus dedos, um daqueles contos onde o leitor descuidaria de
conhecer o limite entre o sonho e a realidade.
Por outro lado, cabe revelar a importância e a originalidade de Igreja e
Desenvolvimento. Este era, originalmente, parte do esforço de doutoramento desenvolvido
por Alceu Ferraro na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (PUG), instituição ligada à
Companhia de Jesus. Por conta disto, seu trabalho contava com um cuidadoso e rigoroso
aporte metodológico e teórico, gozando de acesso facilitado às fontes. Ferraro recebeu auxílio
direto da Arquidiocese de Natal e da Fundação José Augusto, na forma de equipamento, de
pessoal técnico, e de auxiliares de pesquisa, um esforço relativamente raro para o Brasil de
sua época e, que resultou num alcance investigativo muito abrangente e profundo do seu
objeto, o Movimento de Natal.
Este Movimento era então a principal frente de aplicação do método Paulo Freire e,
vinha se constituindo numa experiência inédita no catolicismo brasileiro, o da ‘Pastoral de
Conjunto’, incentivada pela CNBB, apoiada diretamente por D. Hélder Câmara e
administrada por D. Eugênio Salles e, que tinham interesse direto na pesquisa de Alceu
Ferraro. È interessante observar que D, Hélder e D. Eugênio seriam grandes protagonistas no
embate religioso e político do país nas décadas seguintes, inclusive, liderando correntes
divergentes da Igreja Católica do Brasil. A narrativa das origens destes protagonismos e dos
problemas que explicariam os seus afastamentos já garantiria a Igreja e Desenvolvimento o
status de texto obrigatório para aqueles que desejassem aprofundar o entendimento de
questões fundamentais acerca da relação entre a História Política e a História da Religião na
América Latina da segunda metade do século XX.
Além disso, devemos observar que Natal era também um palco da atuação direta do
Estado brasileiro, resultado do interesse pessoal demonstrado pelos presidentes Juscelino
Kubitschek e Jânio Quadros (ver a ‘Introdução’ desta obra) e que acabaria se
consubstanciando no Movimento de Educação de Base (MEB). Este foi então articulado como
uma atividade de alfabetização e de inscrição da cidadania, destinada a desarticular a
dominação tradicional das oligarquias nordestinas, contando com a arregimentação de novos
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eleitores desligados das práticas tradicionais. A Igreja era naquele período um aliado
necessário do Estado brasileiro, por conta de ser a única instituição capaz de projetar esse
esforço tanto nas periferias das grandes cidades da região quanto nos seus grotões profundos.
Esta circunstância derivava daquilo que Alceu Ferraro descreveu enquanto uma
atividade continuada da Diocese de Natal a qual fora urdida numa trama inédita, onde a seca e
o subdesenvolvimento se reuniam à saída dos efetivos estadunidenses e ao fechamento das
Bases aliadas no Rio Grande do Norte com o fim da Segunda Guerra Mundial.
Na visão de Alceu Ferraro, a atividade continuada da Arquidiocese de Natal visaria,
por conseguinte, colocar a Igreja a frente tanto da ultrapassagem da dominação oligárquica
quanto do desenvolvimento da região. Estas circunstâncias excepcionais permitiam a
transformação da Igreja Católica brasileira e o experimento, no ‘Movimento de Natal’, de
uma nova organização lastreada no trabalho dos leigos e baseada no trabalho com os mais
humildes.
O experimento inédito da ‘Pastoral de Conjunto’ era colocado então, pela própria
CNBB e pelos organizadores do ‘Movimento de Natal’, enquanto inspiração para as ideias
que visavam a transformação da Igreja universal, entrevistas no Concílio Vaticano II, e, para a
Igreja latino-americana, na Conferência de Medellín em 1968, o que explica o interesse direto
de D. Hélder Câmara e D. Eugênio Salles no projeto de pesquisa liderado por Alceu Ferraro.
Fato é que “Igreja e Desenvolvimento” apenas aponta, mas não explica (caso do livro
homônimo de Cândido Camargo, de 1971), que essas novas ideias sinalizavam a ascensão da
esquerda católica brasileira, então motivada pelo pensamento do padre Henrique Lima Vaz
(FÁVERO, 2006, p. 64-65) e, que estas juntavam o catolicismo ao marxismo, gestando
algumas das correntes e atuações progressistas que influenciariam o catolicismo nas décadas
seguintes, como a Juventude Universitária Católica (JUC), a Ação Popular (AP), as
Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e a Teologia da Libertação.
Assim, a reedição, expandida e atualizada, do livro “Igreja e desenvolvimento’ – O
movimento de Natal” de Alceu Ferraro nos coloca pelo menos três questões:
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Em relação ao político, o binômio ‘conscientização e politização’ nos revela a colusão
do catolicismo com o marxismo, considerado o peso do pensamento de padre Henrique Vaz e
da atuação de Paulo Freire no “Movimento de Educação de Base” (MEB).
No que tange ao econômico a questão do desenvolvimentismo mostra-se já sendo
transacionada pelo ativismo político, conforme pode ser notada no primeiro capítulo
suprimido da edição original do livro, o qual relatava a movimentação de Eugênio Salles
frente às contingências da política nacional e local, o que reflete certas preocupações da
Constituição Apostólica “Gaudium et Spes”, núcleo das elucubrações do Concílio Vaticano II
e que, poderiam insinuar um precedente para aquilo que viria a ser denominado como a
“Teologia da Libertação”.
No caso da movimentação dos leigos no Movimento de Natal e da questão mesma de
que este era visto como um protótipo da Pastoral de Conjunto pelo CRB e pela CNBB nos
apresenta mesmo a oportunidade de recolocar o Movimento de Natal como uma atividade de
importância fundamental para a compreensão das transformações da Igreja no Brasil e, talvez,
para o desdobramento de certas questões colocadas da Conferência de 1968 em Medellín.
A insistência na colusão como instrumento analítico
O ponto em que se nos apresenta a discussão é a gênese da colusão com o marxismo
nos coloca defronte de um paradoxo, afinal ela decorreria do afastamento em relação ao
fascismo e pela repetição de vários de seus personagens.
E, por que insistir no conceito de colusão? Este nos permite trabalhar uma perspectiva
combinada da História Política e da História da Religião orientada por uma analítica capaz de
articular a categoria 'Religião' a um metajogo do 'Político', por conseguinte, permitindo a
ultrapassagem do discurso moderno que constituiu uma autoidentidade para o historiador
secular, histórica e conceitualmente parasitária da invenção do religioso e da Religião. Esta
perspectiva tem sido amplamente testada nos últimos cinco anos no cerne da teoria da
'Religião Política' [Political Religion] e, se mostrado bastante frutífera, tanto na explicação
dos acontecimentos pregressos quanto para aplicação na História do Tempo Presente
(PEIXOTO, 2017b).
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Em nosso exame, isto nos propicia primeiro, compreender um fenômeno que se
repetiu no âmbito da Igreja do Brasil, a transição abrupta de líderes católicos em termo de
suas posições no campo político e religioso, da direita para a esquerda, tais como Alceu
Amoroso Lima e Hélder Câmara. Segundo, nos ajuda a bem distinguir a transformação da
estrutura de decisão e organização na Igreja do Brasil, de uma posição espacialmente
concentrada na cidade do Rio de Janeiro e marcada por uma liderança personalista e
distinguida na figura de seu cardeal e arcebispo, para uma posição espacialmente difusa e uma
liderança colegiada na forma tomada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB).
Por que argumentar-se com a investigação do caso da Arquidiocese de Natal?
Primeiro, por conta do Movimento de Natal ter sido identificado e nomeado, em 1962,
em meio aos preparativos para o Concílio Vaticano II, pela CNBB e pela Conferência dos
Religiosos do Brasil (CRB) enquanto uma experiência piloto para a reorganização da Igreja
do Brasil na forma da 'Pastoral de Conjunto' e, nesse sentido, foi apoiado pela CNBB e
esquadrinhado por pesquisadores ligados à Igreja, caso de Alceu Ferraro.
Segundo, porque já mapeamos nesse mesmo recorte espacial a colusão do catolicismo
com o fascismo na década de 1930, fenômeno bastante marcado nas ideias manifestadas no
diário A Ordem, da Diocese de Natal, quanto na atuação do principal intelectual católico
norte-rio-grandense, Otto Guerra, um dos principais articuladores, junto com D. Eugênio
Salles, do Movimento de Natal.
Terceiro, porque acreditamos que a colusão do catolicismo com o Marxismo no final
da década de 1950 e início da década de 1960 pode ser observado em certas atividades
articuladas ao Movimento de Natal, especialmente no caso da campanha de alfabetização e
educação de adultos levada a cabo em colaboração com o Movimento de Educação de Base
(MEB), a partir dos experimentos de Paulo Freire e norteadas pelo pensamento de padre
Henrique Vaz.
No âmbito mais restrito desta comunicação visamos distinguir os pensamentos e
atividades que marcaram a colusão do catolicismo com o político, a qual se deslocou desde o
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fascismo até o marxismo. Neste sentido, se deve frisar que o trabalho com o conceito já
considera a aproximação do catolicismo com o político enquanto um processo, cuja produção
é orientada na direção de um dado espécime do político, seja o fascismo ou o marxismo, em
razão de certos contextos que devem ser explicados pelo analista. Por conseguinte, se torna
necessário, no trabalho com o conceito, explicitar as questões e ideias do religioso e do
político que possibilitaram tanto a interrupção do direcionamento para o primeiro espécime, o
fascismo, quanto sua manutenção enquanto processo, para, somente depois, discernir o
direcionamento para o segundo espécime, o marxismo.
A gênese da colusão no caso da Arquidiocese de Natal
Por conseguinte, visamos aqui apontar as ideias e condições que, no recorte da
Arquidiocese de Natal, possibilitaram a manutenção do processo de colusão com o político e
onde se podem já avistarem certas condições de um futuro deslocamento. Embora tanto a
tradução das tramas do catolicismo para o local quanto o seu retorno para o nacional devam
ser examinadas com cuidado, acreditamos ser possível, dadas as condições já apontadas, que
o exame dessas tramas permita a constituição de aproximações e relações noutros recortes e
escalas.
No caso da Arquidiocese de Natal há que se esclarecer que nesta já vinha se
desenvolvendo, desde o início da década de 1930, um grande envolvimento de seu bispo
diocesano, D. Marcolino Dantas, na política local, na forma de apoio aos interventores
federais contra as oligarquias afastadas do poder pela Revolução de 1930. Seu esforço se
dirigiu no período para buscar reunir o clero norte-rio-grandense sob sua liderança e organizar
uma base de apoio político ao seu projeto de influir na política estadual e recuperar na
Constituinte Estadual as prerrogativas perdidas com o advento da República. Como a
articulação da Liga Católica local não surgiu o efeito desejado nas eleições de 1932 e 1933,
D. Marcolino apoiou decisivamente a criação da seção estadual da Ação Integralista Brasileira
(AIB) pelos membros da Congregação Mariana de Moços e, ao mesmo tempo, investiu
frontalmente na formação de novos religiosos no Seminário de São Pedro, sediado em Natal.
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Boa parte da interpretação da manutenção do processo de colusão depende de
considerarmos que os iniciadores do processo, Luiz da Câmara Cascudo e Otto Guerra, então
os principais líderes e intelectuais católicos leigos norte-rio-grandenses, frequentaram ou
foram formados no influxo que reunia o reacionarismo católico ao fascismo, a Congregação
Mariana e a AIB, enquanto que os seus continuadores do processo já foram formados após o
seu desligamento do fascismo, sob a égide de D. Marcolino.
Nesse período D Marcolino entregou a publicação do jornal da Diocese aos cuidados
dos Marianos e, desde 1935 até 1952 este periódico foi editado por Otto Guerra sob o nome
de A Ordem. Otto Guerra era um dos principais dirigentes da AIB do Rio Grande do Norte e
era, como Cascudo, um dos membros da ‘Câmara dos Quatrocentos’, órgão consultivo do
chefe nacional da AIB.
A formação de um núcleo fascista na Congregação Mariana em 1929 antecedeu
mesmo a fundação da seção da AIB local, que se deu apenas em 1933 e, se a formação do
núcleo foi influenciada decisivamente pela Legião Cearense do Trabalho, chefiada por
Severino Sombra e padre Hélder Câmara, enquanto que a aproximação com o reacionarismo
católico se deu pela via da ‘Congregação Mariana Acadêmica de Recife’, liderada pelo padre
Antonio Paulo Ciríaco Fernandes.
No que tange ao argumento de nossa comunicação, antes mesmo do fechamento da
AIB local no final de 1937, parte dos insumos que levaram tanto ao desligamento da colusão
com o fascismo quanto à manutenção do processo colusivo já se aprontavam e, neste sentido,
um dos marcos foi a publicação no jornal A Ordem, de uma carta de Jacques Maritain, cuja
cópia foi enviada de Paris pelo próprio filósofo para Otto Guerra.
Este caso se alinha ao contexto da visita de Jacques Maritain à América do Sul, a qual
serviu para retirar do isolamento os católicos que se opunham ao caráter dado pela direita
religiosa à Guerra Civil Espanhola.
O texto publicado por Otto Guerra em 3 de outubro de pode ser considerado um
manifesto político e religioso, o qual servia para que um determinado grupo de católicos
marcasse posição no âmbito da Arquidiocese de Natal. A carta fora dirigida ao frei
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dominicano Sebastião Tauzin, residente no Rio de Janeiro e, dentre outras questões, Maritain
denunciava que muitas das notícias da Guerra não passavam de invenções de grupos e nações
envolvidos no conflito. O filósofo francês se colocava assim contra o sentido de Guerra
Religiosa emprestado ao conflito espanhol e, apontava que os extremistas de direita também
sufocavam o senso cristão por meio da violência política como os esquerdistas, sendo por isso
condenados com a mesma energia nas encíclicas “Divini Redemptoris” e “Mit Brennender
Sorge”. Ainda assim, Maritain lembrava que a política não estava separada da religião e, por
conseguinte, os católicos não deveriam abdicar dela, mas, procurar “vivificá-la”, tomá-la
pelos meios cristãos, ao invés de buscá-la pela via crua do poder.
A remissão da ideia mauritaniana da “vivificação” da política aos documentos
pontifícios seria a tônica de sua adaptação pelos católicos norte-rio-grandenses, opção esta
que deve ser contextualizada na disputa que então travada entre o próprio Maritain e o
influente padre Antonio Paulo Ciríaco Fernandes, que acusava de heréticas o pensamento
defendido pelo filósofo francês no livro “Humanismo Integral”.
Uma das preocupações de Maritain foi demonstrar que inexistiam quaisquer
rivalidades com a Sociedade de Jesus ou incompatibilidades dogmáticas entre o seu
pensamento e o corpo teológico do catolicismo, colocando todas as questões apenas no
âmbito do diálogo de ideias com o padre Ciríaco Fernandes e, para isto mostrando que seu
texto estava em sintonia com as autoridades canônicas e com as escrituras.
A acusação de Ciríaco Fernandes certamente possuía defensores no âmbito da
Congregação Mariana de Natal e, na medida em que se harmonizava com a “teoria dos dois
gládios” se inseria nos posicionamentos de alguns integrantes do fascismo local, liderado de
facto por Luiz da Câmara Cascudo e, cujos efeitos se podem depreender no impressionante
rito político e religioso conduzido por ele em 28 de outubro de 1937 e, que tinha como
pretexto reintroduzir os crucifixos nas salas de aula de Natal.
Contudo, o fechamento da AIB, a eclosão da Segunda Guerra Mundial e, a entrada do
Brasil no contencioso ao lado dos Aliados formou um consenso acerca das posições políticas
do catolicismo em relação ao nazismo e ao fascismo que levaram à ultrapassagem das
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posições reacionárias católicas na escala do local e ao subsequente desmonte de sua influência
na estrutura da Arquidiocese de Natal.
Essa transformação se deu por meio da adaptação do pensamento de Maritain às
circunstâncias da militância local, com a substituição progressiva da Congregação Mariana e
seu modelo de atuação, fechado, elitista e centrado no rito, por outro modelo, aberto aos
leigos, popular e focado no pragmatismo, substanciado no caso local, pela fundação do setor
masculino da Ação Católica em 1943, cuja chefia foi confiada, justamente, a Otto Guerra.
Sintomaticamente, a mensagem de solidariedade da Congregação Mariana de Recife à
Congregação Mariana de Natal pelo transcurso de seu 25º aniversário no mesmo ano de 1943,
subestabelecida por Ciríaco Fernandes e publicada no jornal A Ordem parecia mais um
lamento, o anúncio de sua passagem para uma posição subalterna no catolicismo norte-rio-
grandense do que a comemoração do lustre dessa agremiação.
O fato é que apenas um mês depois da mensagem, um sacerdote recentemente
ordenado, Francisco das Chagas Neves Gurgel, escreveu um texto publicado em duas partes
no jornal A Ordem: ‘Ação Católica’ e ‘Natureza da Ação Católica’, lembrando que a encíclica
“Miserentissimus Redemptor” (1928) do papa Pio XI coordenou a devoção do 'Coração de
Jesus' com a do 'Corpo Místico de Cristo'. Redenção.
E, pouco depois, o mesmo padre Gurgel aponta a encíclica “Mystici Corporis Christi”
como o novo denominador comum da atuação da Arquidiocese, para anunciar a Fundação do
setor Masculino da Ação Católica, para que os fiéis se integrem na vida da graça, no corpo
Místico de Cristo. No caso, se distinguia que a Ação Católica não vinha dificultar nem
substituir as associações existentes, mas comunicaria a todas as sociedades religiosas, fazendo
que os leigos participassem da hierarquia e, frisa, “penetrando onde a batina não consegue
entrar [...] para a execução das ordens do Sumo Pontificado”.
A encíclica “Mystici Corporis Christi” era então apresentada na fundação do setor
Masculino da Ação Católica, para que os fiéis se integrassem na vida da graça, no corpo
Místico de Cristo e, apontava que a AC não vinha dificultar nem substituir as associações
existentes, mas que comunicaria todas as sociedades religiosas, pois era preciso que os leigos
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participassem da hierarquia “penetrando onde a batina não consegue entrar [...] para a
execução das ordens do Sumo Pontificado”.
Assim, Neves Gurgel iria constituir uma “Natureza da Ação Católica”, atribuindo-lhe
o sentido de 'Redenção' entrevisto na encíclica “Miserentissimus Redemptor”. A relação entre
a “Miserentissimus Redemptor” e a “Mystici Corporis Christi” foi feita quando da publicação
da encíclica “Mystici Corporis Christi”: o 'Coração Eucarístico de Jesus' e o 'Corpo Místico
de [Jesus] Cristo' trabalhado a partir da ideia de uma economia da Redenção e da irradiação
da vida apostólica para uma maior compreensão das verdades eternas, tendo em vista
prevenir-se contra o paganismo pela formação e expansão da mentalidade católica. Explica-se
ainda uma atuação expandida do religioso para a política e a sociedade, visando “santificar o
indivíduo sem desarticulá-lo do meio em que se encontra, inoculando-lhe a ânsia de difundir a
verdade [...] uma confiança extrema na [...] maior expansão do Reino de Cristo na sociedade.”
E finalmente, se deve colocar que em 1944 a Segunda Guerra era vista por Gurgel
como uma guerra civil internacional, contra o nazismo e o racismo, se colocando a
necessidade de responder ao problema social e onde a ideia que se fazia do “Corpo Místico”
impelia a considerar como foco as virtudes cristãs da Justiça, Pobreza, Liberdade,
Solidariedade e Fraternidade e visando a uma planificação que levasse à melhoria das
condições materiais, ao desenvolvimento e á educação.
Conclusões parciais de nossa pesquisa:
Primeiro, o Movimento de Natal resulta de uma recepção diferenciada das
contribuições de Jacques Maritain, e, no caso, deve-se frisar o diálogo específico de Jacques
Maritain com a Sociedade de Jesus;
Segundo, a transformação da estrutura de atuação da Arquidiocese - do antigo clero
para o novo clero que atuará no Movimento de Natal é fruto da transição da colusão do
fascismo para o político tradicional, levando a transformação da atuação da Diocese: da
Congregação Mariana à refundação da Ação Católica, agora sob a liderança de Otto Guerra,
em lugar de Ulisses de Góis;
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Terceiro, a tradução local da Encíclica “Mystici Corporis Christi” à luz da encíclica
“Miserentissimo Redemptor” é uma das chaves não apenas para se compreender a gênese da
colusão do catolicismo com o marxismo, mas também para se entender a reinterpretação do
repertório da colusão com o fascismo e, inclusive, poderia se compreender enquanto uma
leitura local dos eventos internacionais, na medida em que a ocupação de Roma pelo exército
alemão havia colocado Pio XII sob a 'proteção de Hitler', apresentando a possibilidade de
imobilização dos religiosos pelo político e, tornado essencial para a sobrevivência do
catolicismo a ênfase na atuação dos leigos;
Quarto, se deve lembrar que o sentido do metajogo parte mesmo do conceito de
'colusão' e que este se exercita a partir da constatação que o reacionarismo católico cede o seu
lugar para uma recepção do marxismo pelo pensamento católico a partir de sua tradução
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