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Anais do III Seminário Nacional e I Seminário Internacional
Movimentos Sociais Participação e Democracia
11 a 13 de agosto de 2010, UFSC, Florianópolis, Brasil
Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais _ NPMS
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Do Movimento Social à Participação Popular no Direito à Moradia para a população das
Favelas: Desafio e oportunidades da trajetória brasileira - Exemplo da cidade de Piracicaba,
Estado de São Paulo, Brasil
Sheila Holz
Universidade de Coimbra, bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – FCT/Portugal –
sheila.holz@gmail.com
Tatiana Villela de Andrade Monteiro
Universidade de Aveiro/ Portugal – tativmonteiro@hotmail.com
Resumo:
A conquista do direito à moradia no Brasil teve como base a luta dos movimentos sociais contra uma
herança histórica de descaso, ausência ou ineficiência das políticas públicas para as questões sociais,
que resultaram, dentre outras coisas, no problema urbano das Favelas. Estas áreas são foco de
exclusão e degradação ambiental, que, sucessivamente às mudanças internacionais, o país
implementou diretrizes para enfrentar. Dentre as diretrizes destaca-se a gestão democrática das
cidades que dá prioridade à participação popular como eixo de garantia dos bens que a cidade pode
oferecer para todos. Nesse processo de transformação, que vai dos movimentos sociais à participação
popular, juridicamente o país avançou a passos largos, porém, social e politicamente, a
implementação dos direitos e conquistas mantiveram-se como um desafio por vir. No estudo de caso
que aqui se realiza, em Piracicaba, SP (de caráter bibliográfico, documental e com entrevistas
informais), percebe-se que as conquistas do movimento social local, expressa nas mudanças atuais
realizadas com base nos avanços jurídicos, não se traduziram em conquistas sociais e políticas. Nesta
vertente, o trabalho visa refletir sobre a trajetória dos movimentos sociais até a institucionalização da
democracia participativa para tornar a participação popular efetiva.
Palavras chaves: Movimento social, favela, direito à moradia, participação popular.
INTRODUÇÃO
O crescimento desordenado das cidades brasileiras fez surgir às favelas, que embora não
sendo um fenômeno recente, tem seu primeiro registro histórico de surgimento em 1887, na cidade
do Rio de Janeiro (Valladares, 2005), porém, a dimensão e complexidade do problema agravaram-se,
principalmente após 70.
Tendo-se em conta que os problemas habitacionais estavam presentes em diversos países, as
questões relacionadas à cidade começaram a receber a atenção de atores de todos os tipos:
intelectuais, políticos, sociedade civil, ambientalistas e outros. Organizações internacionais
realizaram conferências sobre meio ambiente e assentamentos humanos, com a intervenção da ONU,
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e discutiram questões relativas ao desenvolvimento econômico, o meio ambiente, o desenvolvimento
social e os direitos humanos (Monteiro, 2009).
O Brasil, signatário dos tratados e das declarações internacionais, realizou mudanças
significativas nos padrões jurídicos, políticos e sociais de enfrentamento dos problemas relacionados
às cidades e à moradia. Os avanços, contudo, não ocorreram sem a presença, perseverança e
iniciativa dos Movimentos Sociais, tanto em âmbito nacional quanto local. Principalmente a partir de
50, como signatário da Declaração de Direitos Humanos, iniciou-se no país o movimento pelos
direitos sociais, e dentre eles, o direito à moradia. Na então capital, Rio de Janeiro, e onde se
concentrava a maior parte das favelas, os Movimentos Sociais por moradia reivindicavam,
sobretudo, a permanência da população da favela na área ocupada.
No ano de 2001 foi aprovada a Lei de Desenvolvimento Urbano, “batizada” de Estatuto da
Cidade (EC). Essa lei regulamentou o capítulo constitucional da Política Urbana e instrumentalizou
os municípios para a garantia do pleno desenvolvimento das funções sociais e ambientais da cidade e
da propriedade.
O município, enquanto ente mais próximo e com maior conhecimento dos problemas
existentes em seu território, foi o responsável por assegurar, entre outros, o uso adequado do solo, a
moradia digna, a melhoria da qualidade de vida de seus habitantes, a provisão de equipamentos
públicos e infra-estrutura para todos os cidadãos (Funes, 2005). Às administrações públicas
municipais couberam a elaboração de leis (Lei Orgânica Municipal, Plano Diretor e outros), a
criação de fundos de habitação e de desenvolvimento urbano, assim como a obtenção de recursos e a
promoção da participação popular.
O presente trabalho visa analisar o percurso dos movimentos sociais e a garantia do direito à
moradia e apontar as diferenças que se verificam após a institucionalização da democracia
participativa, tendo como caso de estudo o município de Piracicaba, São Paulo. Para o estudo foi
utilizada a pesquisa documental e participativa, entrevistas, (realizada na fase de pesquisa da
Dissertação de Mestrado “Contributo a Reabilitação Sócio Territorial de Favelas” do ano de 2009),
que efetuadas no ano de 2007, com os atores do poder público local (secretários, arquitetos,
engenheiros, assistentes sociais, educadores), buscaram obter informações acerca do
desenvolvimento urbano e das atividades de urbanização e regularização fundiária. No presente
trabalho foram analisadas as respostas e declarações dos responsáveis, direta ou indiretamente
envolvida com a gestão democrática urbana, e feita reflexões sobre as possibilidades para que a
participação popular legitimada seja efetiva.
De acordo com Saule Junior (2007) para que as cidades sejam mais justas, humanas,
saudáveis e democráticas, é preciso incorporar os direitos humanos no campo da governança das
cidades, para que as formas de gestão e as políticas públicas tenham como resultado de impacto a
eliminação das desigualdades sociais, das práticas de discriminação em todas as formas da
segregação de indivíduos, grupos sociais e comunidades, em razão do tipo de moradia e da
localização dos assentamentos em que vivem (Monteiro, 2009). A Gestão Democrática, ou seja, a
Participação Popular efetiva, portanto, torna-se o instrumento principal da gestão urbana para a
concretização desses direitos, no qual apenas o direito de posse ou propriedade e a urbanização das
favelas, ou seja, intervenções jurídicas e físicas, não garantem a integridade dessa população nos
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benefícios, sociais e políticos, que a cidade pode oferecer. É este processo que será aqui analisado,
no caso de estudo da cidade de Piracicaba, SP.
1. MOVIMENTOS SOCIAIS E O DIREITO À MORADIA NO BRASIL
O crescimento urbano brasileiro não foi programado e a industrialização foi um processo
repentino que atraiu milhares de pessoas às áreas urbanas. Esta forma de urbanização, combinada
com a legislação excludente adota pelos municípios e com as políticas públicas de habitação
realizadas pelo Governo, em especial no final do século XX, ocasionaram o surgimento de grandes
áreas ilegais e irregulares.
No início da década de 60, no governo de João Goulart (1961-1964), houve um estímulo às
políticas estatais que visavam à transformação estrutural da sociedade brasileira, chamadas de
“reforma de base”. O contexto histórico era de grande mobilização da sociedade civil que fomentou
debates, em temas como agricultura, saúde, educação, cultura, etc., pelas reformas sociais. Embora
apenas 50% da população fossem urbanas, as maiores cidades já apresentavam problemas
habitacionais, como as favelas e zonas periféricas (Maricato, 2003).
Já sob o governo militar, e com um retrocesso em termos democráticos, no ano de 1964
criou-se o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que objetivava a dinamização da política de
captação de recursos para financiar habitações através do Banco Nacional de Habitação (BNH).
Estima-se que naquela época havia uma carência de 8 milhões de moradias adequadas (as casas em
favelas eram contadas no déficit). Porém, este sistema não foi eficaz, embora até sua extinção, mais
de 30 anos depois, tenha financiado cerca de 6 milhões de moradias (SANTOS, 1999). O
crescimento do país continuou na década de 70, com o auge do “milagre econômico”, que, contudo,
gerou a concentração da riqueza produzida nas mãos de poucos e a reforma urbana ocorrida fez com
que a classe trabalhadora fosse cada vez mais empurrada para fora da cidade, obrigando-a a se
instalar na zona periférica.
A instauração do regime militar, que durou até 1985, gerou uma crise dos canais político-
institucionais de representação, fazendo com que o canal político da eleição não pudesse mais ser
usado. Também neste período, de supressão das liberdades, os movimentos sociais são
desencorajados e enfraquecidos, por determinações dos Atos Institucionais, em especial o AI5. A
repressão do governo militar gerou medo e terror, o que dificultou a articulação de grupos na luta
popular, como partidos, sindicatos e associações, tendo, porém, estimulado o laço primário de
solidariedade entre a população e, por consequência, fortalecer os núcleos populares (Brant, 1981,
apud Almada, 2007).
Os movimentos sociais começaram a articular-se novamente em meados da década de 70 e
ganhou força, com os movimentos contra a carestia, pela regularização de loteamentos clandestinos,
movimentos de moradores de favelas por infra-estrutura básica e regularização fundiária e também
com o Movimento pela Reforma Urbana, que surgiu de iniciativas de setores da Igreja Católica,
como a CPT – Comissão Pastoral da Terra (Maricato, 2003).
Para Maricato (2003), alguns setores da Igreja Católica, em especial os da Teologia da
Libertação, tiveram um papel fundamental para reestruturar os movimentos sociais neste período,
pois funcionaram como novo espaço coletivo de reunião e reivindicação. Em 1975 a Conferência
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Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulga um documento onde critica a especulação imobiliária
e reivindica a função social da propriedade, que foi chamado de “Uso do Solo e Ação Pastoral”.
A mais valia deste período é que, com o fim da ditadura, os movimentos populares tiveram
maior participação na formulação dos programas governamentais para a reforma urbana. A maior
conquista do movimento urbano certamente é a inserção, na Constituição Federal de 1988 (CF/88),
do capítulo que trata da política urbana. Porém, o direito à moradia só é expresso no corpo da
Constituição através de emenda, em 2000, que alterou o conteúdo do art. 6º, que trata dos direitos
sociais. Para a regulamentação deste capítulo, na década de 90 começa a tramitar o Projeto de Lei
5.788, que levou mais de dez anos a ser aprovado, tendo como resultado o Estatuto da Cidade,
instituído pela Lei 10.257/2001. Esta lei instrumentaliza os Municípios para a garantia do pleno
desenvolvimento das funções sociais e ambientais da cidade e da propriedade. Pode-se dizer que:
“(…) poucas leis na história do Brasil foram construídas com tanto esforço coletivo
e legitimidade social. A aprovação do Estatuto da Cidade é uma conquista dos
movimentos populares, que se mobilizaram por mais de uma década na luta por sua
aprovação. Esta luta foi conduzida a partir da ativa participação de entidades civis
e de movimentos sociais em defesa do direito à cidade e à habitação e de lutas
cotidianas por melhores serviços públicos e oportunidades de uma vida digna.
(Estatuto da Cidade, 2001:9)
Com a aprovação do EC, o direito à moradia passa a ser mais “palpável” para os moradores
das favelas, através do reconhecimento da política de regularização fundiária e urbanização de áreas
ocupadas pela população de baixa renda e pela previsão de novos instrumentos legais, urbanísticos e
jurídicos de regularização fundiária. No inciso II do art. 2º, que trata das diretrizes gerais, a lei prevê
a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos
vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos,
programas e projetos de desenvolvimento urbano”.
Porém, após a aprovação da CF/88, que enfatiza a participação popular, foi necessário que os
movimentos sociais passassem a adotar outras estratégias de luta. Para Gohn (1997: 234) “muitos
movimentos que tiveram muito vigor nos anos 70 e 80, quando clamavam por direitos, passaram a
encontrar dificuldades para manter a mobilização após terem conquistado alguns daqueles direitos
em lei (…).”
2. A IMPORTÂNCIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA
Até 2002 poucos programas federais estavam direta ou indiretamente relacionados com a
questão do desenvolvimento urbano e não existia uma política nacional que os articulasse, nem que
expressasse os objetivos constitucionais. Devido ao histórico sociopolítico do país, mesmo após a
CF/88, as propostas para o problema das favelas ocorreram, com frequência, sem nenhum
compromisso com a ordem constitucional, política ou jurídica em vigor.
Assim, no ano de 2003 o Governo Federal criou o Ministério das Cidades e formulou a
Política Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável. A política orienta os programas
específicos em todas as esferas governamentais e prevê que no contexto da reforma urbana
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pretendida, os programas devem abranger um trabalho jurídico, físico, urbanístico e social, conjunto
e integrado, e deve ser conduzido em parceria entre o Poder Público e a população beneficiária. Entre
os mecanismos institucionais de participação previstos estão os orçamentos participativos, as
audiências públicas, os conselhos municipais ou estaduais e as associações de moradores.
O Ministério da Cidade torna-se um fator inovador na política urbana, pois integra os setores
da habitação, do saneamento básico, do transporte e da mobilidade e tem como base o uso e a
ocupação do solo. Visa estimular os municípios e os cidadãos a construírem novas práticas de
planejamento do território municipal através da gestão democrática, por meio de uma ação direta
traduzida em programas, ações e transferência de recursos financeiros e, uma ação indireta, de
disseminação de uma nova cultura urbana, democrática, inclusiva, redistributiva, sustentável,
traduzida em ações de sensibilização, mobilização e divulgação (Rolnik, 2002).
No ano de 2006 foi aprovada a Lei nº 11.124 que dispôs sobre o Sistema Nacional de
Habitação de Interesse Social (SNHIS), cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
(FNHIS) e institui o Conselho Gestor do FNHIS. Os pressupostos das ações previstas pelo SNHIS
incluem o respeito à autonomia municipal, a construção de parcerias locais e a participação cidadã na
concepção, execução e fiscalização das atividades desenvolvidas.
Para o UN-Habitat, a participação popular e sua mobilização social, enquanto parte de um
projeto social direcionado à população da área de favelas, é de suma importância devido à
necessidade de criar laços de cooperação, vizinhança, valores e responsabilidade quanto aos seus
direitos e deveres como cidadão. A confiança recíproca firmemente estabelecida entre vizinhos e
membros da comunidade é por si só, uma proteção eficaz contra a violência, o crime, a mobilidade
habitacional e a degradação física. O empoderamento da população acontece quando, postos em
prática mecanismos de informação e capacitação, ela percebe que, através da mobilização, da
possibilidade de decisão de suas necessidades, direitos e deveres, pode transformar em realidade seu
potencial para buscar a garantia dos direitos humanos. O processo de autoconfiança, novas
habilidades, conhecimento e compreensão do mundo, podem surgir com a aplicação de políticas de
educação, saúde, lazer e segurança.
3. CASO DE ESTUDO – PIRACICABA/SÃO PAULO
3.1. CARACTERÍSTICA POLÍTICO E SÓCIO TERRITORIAIS: AS FAVELAS
Piracicaba, cidade de porte médio do Estado de São Paulo, é reconhecida como um dos
centros agro-industriais do país, marcada por altos graus de desigualdade social e territorial. A cidade
convive com bairros formados pela pobreza, precariedade territorial, social e ambiental e concentra
grande demanda por melhores condições habitacionais, empregos, serviços e equipamentos básicos
de educação e saúde. Possui, em torno de 401 áreas de favelas formadas por, aproximadamente, 4 mil
1 Todos os entrevistados admitiram a existência de aproximadamente 40 áreas de favela na cidade de Piracicaba, mesmo
após alguns processos de urbanização e regularização fundiária. De acordo com o Engenheiro da EMDHAP (2007) essas
áreas ainda são consideradas favelas “pois não tem nenhuma regularizada totalmente. Mesmo o Algodoal (a primeira
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famílias. As favelas do Município, desde seu desenvolvimento até as iniciativas de regularização
fundiária e urbanização, tiveram como fatores determinantes o crescimento econômico, a
urbanização e a desigualdade social, associados à política de desenvolvimento urbano, a participação
do movimento social na cobrança de seus direitos e a política habitacional adotada pela Empresa
Municipal de Desenvolvimento Habitacional de Piracicaba – EMDHAP a partir da década de 90
(Monteiro, 2009).
Formada por cerca de 370 mil habitantes, tem um crescimento anual de 2,04%, e uma
economia historicamente vinculada à produção agrícola e industrial (IPPLAP, 2008). A economia é
muito influenciada pela cana-de-açúcar e seus derivados, possuindo como uma de suas
características a sazonalidade da produção. A instalação das usinas gerou o despejo dos pequenos
agricultores rurais e os transformou em trabalhadores assalariados, bóias-frias ou pessoas sem
emprego, direcionados ao trabalho informal (Funes, 2005). Devido à industrialização na agricultura,
a partir da década de 40, o êxodo rural na cidade começou a acontecer.
Na década de 50 a cidade cresceu cinco vezes o seu tamanho e chegou a atingir regiões
distantes da ocupação original quando da formação do Município. Na década de 70, devido à
intensificação do processo de industrialização, junto à conjuntura econômica da época, cresceu, além
do êxodo rural, a migração de pessoas de outras localidades. O rápido crescimento urbano gerou
reflexos imediatos e negativos nas condições de vida da população, principalmente com relação à
moradia. Nas décadas de 70 e 80 predominou a formação das favelas e o adensamento dessas áreas
aconteceu, de forma mais intensa, em finais dos anos de 80 e início de 90.
O histórico do desenvolvimento urbano da cidade associa-se ao contexto do desenvolvimento
urbano brasileiro. O período que se iniciou no final dos anos de 60 até os últimos anos de 70 foi
conhecido como a “década dos planos”. Nesse momento histórico foi adotada pelo Governo Federal
a política desenvolvimentista, em que o planejamento urbano apresentava-se fundamental para que
as cidades alcançassem o progresso de forma ordenada. O primeiro Plano Diretor de Piracicaba é de
1975 e, de acordo com o Diretor do IPPLAP (2007), antigamente a filosofia era diferente, pois eram
feitos de cima para baixo. A cidade deveria ser da maneira ideal, as cidades estavam erradas e
precisam ser corrigidas. Um dos Planos Diretores de Piracicaba propunha uma cidade nova do lado
da velha, ou seja, começar tudo de novo. A existência das favelas, contraditórias ao modelo da
cidade moderna, levou a administração pública, na década de 80, a dar início à política de remoção
das áreas em parceria com a política nacional e estadual da época, e a receber o apoio de programas
habitacionais elaborados pelo BNH.
A iniciativa local de remover as favelas fez surgir o movimento social da população moradora
dessas áreas para cobrar do poder público à urbanização e regularização da posse das áreas ocupadas,
formando-se assim a Associação dos Favelados de Piracicaba (ASFAP). Os programas de remoção
foram assim enfraquecidos, contudo, algumas ações foram realizadas e as famílias realojadas em
loteamentos periféricos e precários. Os programas foram realizados sem a participação da população
iniciativa de regularização do município), que teve um avanço, está cheio de problemas ainda, tem processos de
desmembramento, tem áreas erradas, tem gente que não está pagando, [está] vendendo, então ainda não é considerado
um bairro”.
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moradora das favelas, que “eram visitados pelas assistentes sociais, que apenas informavam, que
dentro de determinado período as famílias deveriam mudar-se” (Siqueira 1993:32).
A partir da década de 80, devido à luta da ASFAP e, posteriormente, com a CF/88, o
planejamento urbano e as demais políticas públicas municipais, principalmente a habitacional,
adquiriram outros rumos. O poder público deu início à regularização de favelas e ações de
urbanização dessas áreas no final dos anos de 80 e início dos anos de 90. Apesar da autonomia
municipal e dos avanços legais quanto aos direitos sociais, praticamente não ocorreu nenhuma ação
de intervenção concreta na possibilidade da garantia da moradia e melhores condições de vida.
A implantação da Empresa Municipal de Desenvolvimento Habitacional de Piracicaba
(EMDHAP) na década de 90, responsável pela elaboração e implementação da política habitacional
municipal e, consequentemente, pela viabilização dos programas de intervenção nas favelas, deu
início a legitimidade e obrigatoriedade da execução da política. Inicialmente, de acordo com a
postura internacional, atuou na remoção das áreas de preservação permanente e de risco, transferindo
as famílias para loteamentos, nos quais eram responsáveis pela construção da moradia. Os
loteamentos e conjuntos habitacionais produzidos pela administração, contudo, além de localizados
na periferia da cidade, e, normalmente nas áreas consideradas de risco ambiental, por vezes foram
entregues às famílias sem um mínimo de vias de circulação, escoamento de águas pluviais e outros.
Com relação às favelas localizadas em áreas seguras, públicas ou particulares, a EMDHAP
manteve a população no local e tentou regularizá-las, do ponto de vista urbanístico e jurídico,
contudo, “não obteve muito sucesso na conclusão dos processos, principalmente devido às
legislações restritivas da época, à falta de estrutura administrativa e técnica da empresa, à ausência
de coordenação, à complexidade dos processos de regularização fundiária e ao longo tempo para
sua conclusão” (Funes, 2005:130).
O Plano Diretor do período, revisado e atualizado com preceitos democráticos da nova
Constituição, previa indicações de estudos, metas e prazos que, contudo, não foram cumpridos. Com
relação à infra-estrutura básica para as áreas destinadas a habitação de interesse social, encontrava-se
na Lei Orgânica Municipal de 90, a função social da cidade e da propriedade e no Plano Diretor, a
previsão do planejamento e da execução, de forma programada, das obras de infra-estrutura e
equipamentos urbanos.
O não cumprimento da lei, de prazos e das metas não é uma atitude do passado na
administração pública da cidade. A pressão do movimento para a regularização das áreas públicas, de
bem comuns do povo, gerou controvérsias de que a terra era de todos, e que tinham que ser
desafetadas, sendo um dos projetos de lei elaborado pela ASFAP arquivado. Para Siqueira (1993:61)
“tal parecer foi eminentemente político, uma vez que haviam argumentos em nível da Constituição
Federal que poderiam dar uma interpretação favorável ao projeto, como ocorreu em vários outros
municípios do Estado de São Paulo, na época.” Essa briga durou até 2001 quando o Estatuto da
Cidade determinou a regularização das favelas em áreas públicas.
O Estatuto da Cidade, de acordo com o Diretor do Instituto de Pesquisa e Planejamento de
Piracicaba - IPPLAP (2007) “faz com que todos os Planos Diretores do Brasil inteiro sejam
parecidos, pois devem segui-lo, os mesmos instrumentos, etc. Baseado no Estatuto da Cidade, o
Plano tem que encarar a cidade como um desafio, ela existe, tem que enfrentar esse desafio como aí
está”. O Engenheiro da EMDHAP (2007) argumenta que “o Estatuto da Cidade é muito importante,
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mas cada Município tem que fazer o seu Plano, mas de 2001 para cá ainda não aconteceu muita
coisa, pelo menos no nosso município”. Apenas em 2003 iniciou-se a revisão do antigo Plano
Diretor da cidade para adequá-lo ao EC, e sua revisão foi aprovada em 2006.
O desafio de revisar e aprovar o Plano Diretor estiveram a cargo do IPPLAP, criado em 2003.
Seu diretor declara que “na verdade depois de comparar com outros Planos Diretores das cidades
da região, ou de outras regiões do país, vemos que o nosso Plano Diretor é um dos melhores, apesar
de cheio de pequenos erros e da necessidade de algumas correções que devem ser feitas ainda”
(2007). Para o Engenheiro da EMDHAP (2007) o Plano Diretor é, praticamente, um Plano de
Habitação, pois metade do plano trata das áreas irregulares e alertou para o fato da EMDHAP ter que
elaborar o Plano Municipal de Habitação de Interesse Social (PMHIS). O PMHIS deve seguir as
diretrizes do governo federal, que está a realizar a maior liberação de verba da história do país para a
área de habitação e saneamento básico, que nunca houve tanto recurso.
A primeira plenária para apresentação da proposta metodológica do PMHIS pela EMDHAP
ocorreu em Agosto de 2009. De acordo com informações fornecidas pelo site da empresa,
compareceram cerca de 200 pessoas entre líderes comunitários, vereadores, representantes de
associações, Poder Público e entidades de classes. O número de pessoas presentes na plenária
representa menos de 1% da população adulta do município. Com relação ao último cadastro das
famílias sem moradia inscritas na empresa, menos de 1,7% compareceram. E, com relação à
população moradora nas favelas, aproximadamente 5%. Após a primeira plenária, foram realizadas,
ainda, mais duas, de levantamento técnico do setor habitacional e de estratégias de ação, e dois
encontros com moradores de duas áreas de favela do Município. No mês de Junho de 2010 foi
concluído o PMHIS, depois de decorrido, aproximadamente, dois anos do primeiro prazo. Sobre as
últimas plenárias não foram divulgados os números dos participantes, além de não estarem
publicadas no site as propostas discutidas nas três fases, nem mesmo o Plano completo.
De acordo com os funcionários da EMDHAP que foram entrevistados para a pesquisa, não há
um comprometimento com a transparência das informações no que compete ao levantamento técnico
do setor habitacional, determinantes para a efetividade das estratégias de ação. De acordo com o
Assistente Social da EMDHAP (2007) existe um cadastro das famílias que não possuem moradia,
porém, este não é certo, pois muitas famílias fazem mais de um cadastro com nomes diferentes.
Além disso, os levantamentos sociais não são precisos. O mesmo é relatado pelo Engenheiro da
EMDHAP (2007) que afirma o fato de os dados não serem confiáveis, principalmente pela
desarticulação dos órgãos públicos, questões institucionais, políticas e administrativas e, também,
que os mesmos não são divulgados.
O Assistente Social da EMDHAP (2007) informa que desde 2006 o Ministério da Cidade
exige, quando destina verbas para intervenção urbana, que se faça um cadastro único2 das famílias, e
mesmo que não haja os dados, estes devem ser consultados na Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SEMDES). Contudo, de acordo com o Secretário da SEMDES (2007) os
2 É um cadastro completo do Governo Federal para unificação dos benefícios, que é utilizado tanto pela Bolsa Família,
pela habitação, como outros. Assim, qualquer benefício que uma família receber do Governo Federal será através deste
cadastro, sendo identificados quais e quantos benefícios cada família recebe.
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dados estão a ser organizados, com base nos dados para o Bolsa Família (cadastro único), e destaca
que, ainda, falta informação e intersetorialidade entre as diversas secretarias do município.
Pelas entrevistas, nota-se que os funcionários de diversas áreas da EMDHAP e de outras
secretarias municipais demonstram que a falta de articulação entre os setores internos do município
dificulta o trabalho de cadastramento e acompanhamento das famílias que precisam de habitação.
Também destacam que a falta de profissionais e a prevalência dos interesses políticos são
desvantagem para o trabalho.
O Conselho da Cidade no município tomou posse no mês de Abril de 2010, composto por 32
membros, sendo 16 do Governo Municipal e 16 da sociedade civil. De acordo com publicação
divulgada pelo IPPLAP, entre os titulares do governo municipal, todos são secretários das
Secretarias Municipais e Diretores das autarquias, ou seja, representantes do governo ligados
politicamente ao atual prefeito e convidados a assumir cargos de confiança. Entre os representantes
da sociedade civil, 3 são empresariado, 3 do movimento social, 3 outros (de Organizações Não
Governamentais, Entidades Técnicas ou Profissionais e Instituições de Ensino ou Pesquisa) e 6 do
planejamento urbano. Nota-se que no caso das Associações de Moradores, não há nenhum membro
da ASFAP, e dos representantes das instituições de ensino, não está presente a Universidade
Metodista de Piracicaba (UNIMEP), que historicamente apoiou o movimento.
Nos dados da SEMDES, o atual crescimento populacional desordenado da área urbana
aumentou. O número total de moradores em favelas, que em 2001 era de 14.856, subiu para 16.581,
em 2005 (Santos, 2007). A continuidade do aumento do número de pessoas em favelas pode ocorrer
devido a diversos fatores: taxa de natalidade, continuidade da migração e do êxodo rural,
empobrecimento da população, impossibilidade de acesso formal ao mercado de moradia. O
principal fator constatado foi o aumento da pobreza aliada ao déficit habitacional no Município, de
cerca de 12 mil famílias, e a migração.
O Secretário da SEMDES (2007) afirma que a principal população que busca a Secretaria é a
residente nas favelas e nos conjuntos habitacionais populares, formados por famílias das áreas de
remoção. Destaca que estas famílias têm, além do problema habitacional, problemas de falta de
rendimento, sendo extremamente vulneráveis, pois não têm acesso à saúde, creche e educação.
Ressalta que as mulheres são bastante participativas, o principal membro familiar na busca de
soluções. E relaciona a problemática da gestão das políticas sociais, entre elas a habitacional e seus
reflexos, no comportamento social, tais como o fenômeno da comercialização da habitação social
sem intermédio do poder público, violência contra os bens comum do povo, familiar e pessoal.
Apesar das mudanças ocorridas com o desenvolvimento social no país a partir de 2006, como
relatado pelo Secretário da SEMDES (2007) “hoje a Secretaria tem que exercitar o Sistema Único
da Assistência Social (SUAS). Na verdade, é o órgão executor da política pública na área da
Assistência Social com projetos para criança e adolescente, projeto de desenvolvimento de
habilidades de preparação para o trabalho, atendimento propriamente dito da família, atividades
sócio educativas, ações de integração de recursos e também, atendimento de ponta,
individualizado”. Nota-se que o trabalho não é integrado com as outras políticas municipais,
principalmente a habitacional. Essa se apresenta apenas como uma demanda e não como um meio de
promoção da inclusão social.
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3.2. MOVIMENTO SOCIAL E O DIREITO À MORADIA
As primeiras iniciativas de intervenção nas favelas pelo Município na década de 80, com os
programas de remoção, geraram a formação do Movimento Social denominado Associação dos
Favelados de Piracicaba (ASFAP). A ASFAP surgiu com o objetivo de lutar pela urbanização e
garantia da posse da terra ocupada, assim como por ações no sentido de melhorar as condições de
vida dos moradores. Entre os objetivos principais destacavam-se: ficar na terra ocupada, obter a terra
de forma gratuita, urbanizar a terra e construir moradias. Para a melhoria das condições de vida, a
ASFAP apontou a necessidade de propiciar a melhoria da habitação, da saúde, da alimentação, da
educação e do trabalho. Reivindicou e destacou a importância da implantação de programas de
geração de renda e de educação profissionalizante para a obtenção de alimentos e melhoria da
moradia (Siqueira, 1993).
As primeiras formas de resistência à remoção ocorreram por parte das mulheres, que tinham
necessidade e desejavam permanecer no local, devido a proximidade dos equipamentos
comunitários, que atendiam os filhos e proporcionavam laços de vizinhança e identidade cultural.
Inicialmente os próprios moradores das favelas tiveram resistência em apoiar as idéias e iniciativas
de um grupo de mulheres, porém, a remoção de duas áreas levou a ampliação da participação no
movimento. O preconceito social, contudo, marcou desde o início o processo de organização do
movimento, também pela sociedade (Siqueira, 1993). No ano de 1982 a ASFAP foi legalizada, com
o apoio da Igreja Católica, e foram formuladas normas e seu estatuto (Funes, 2005).
Nos anos seguintes à sua formação e com o apoio da Universidade Metodista de Piracicaba
(UNIMEP), a Associação organizou dois Congressos com temas direcionados à urbanização, posse
da terra e participação popular e realizou diversos atos públicos, passeatas e assembléias, com forte
repercussão na imprensa local. Nesse período, os moradores das favelas iniciaram de forma
autônoma a urbanização das áreas, com a medição de lotes, mudança de barracos, abertura de ruas e
vielas e ligação de redes de esgoto e água clandestinas. O movimento levantou uma questão
importante, pois através da urbanização e da construção das casas, tornou irreversível a garantia do
direito de posse (Siqueira, 1993).
As possíveis soluções apontadas pela ASFAP para as favelas foram apropriadas pelo governo
local, de forma ineficiente e parcial, com o objetivo de harmonizar a pressão popular. A
administração pública, para não agudizar os conflitos, foi orientada pelo governo estadual a dar
início às obras de urbanização das favelas, e atuou, prioritariamente, no fornecimento de água e
eletricidade. No período, a relação de confronto entre a Associação e o governo municipal, começou
a tomar um novo rumo. O governo municipal formou uma comissão paritária entre a Associação e a
Prefeitura, a fim de discutir e encaminhar as questões relativas às favelas. Porém, mesmo com a
criação da comissão, o poder público continuou a tratar as questões de forma autoritária e sem
diálogo (Siqueira, 1993:49).
Nos anos seguintes, contudo, as propostas governamentais insistiam na transferência das
famílias para áreas distantes e com infra-estrutura mínima. Contudo, frente à Associação e as
diversas instituições, políticas, religiosas, acadêmicas, locais, nacionais e internacionais que a
apoiavam, acabou por não atingir seus objetivos e ficou enfraquecido. Manteve-se, contudo, ineficaz
na intervenção urbana e social nas favelas.
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As mudanças na postura nacional e internacional com relação ao direito à moradia e a
valorização da autoconstrução das casas existentes nas favelas levaram a ASFAP a ser apoiada, no
ano de 1985, por uma agência holandesa que financia projetos. Em função do projeto foi inaugurada
uma fábrica de blocos de cimento e a construção das moradias em substituição dos barracos
(Siqueira, 1993). A Associação contou, cada vez mais, com o apoio de novas instituições e de grupos
defensores dos Direitos Humanos que apoiaram os movimentos sociais nacionais que culminaram na
elaboração da CF/88.
No momento de transição da política nacional, o governo local e o movimento social foram
envolvidos em uma campanha difamatória que envolveu a administração pública e a ASFAP na
ocupação de áreas verdes da cidade. A Associação perdeu credibilidade perante a sociedade civil e a
luta pelo direito de posse ou propriedade da terra ficou fragilizada. A difamação da Associação, além
de desmoralizá-la, construiu uma imagem da população moradora das favelas como sendo
“transgressores das leis, perturbadores da ordem e inimigos da cidade acusando-os de invasores
das áreas verdes, que são propriedade do Município” (Reboredo [1992] apud Siqueira, 1993:48).
Apesar da perda da credibilidade do movimento, a ameaça de remoção e desalojamento das famílias
tornou-se irrisória e a urbanização passou a ser a maior preocupação da Associação como uma das
maneiras de pressionar a consolidação da posse futura. Porém, as reivindicações permaneceram sem
grandes resultados.
Com base nos direitos constitucionais, a ASFAP, em 1991, realizou seu terceiro Congresso
com o tema “Pelo Direito à Vida – Uso Real da Terra, Urbanização, Saúde, Educação”, que se
baseou na recente Lei Orgânica do Município, responsável por reger os princípios estabelecidos na
Constituição. A Associação buscava, assim, retornar a questão do direito à moradia e a terra e a
credibilidade do movimento perante a sociedade civil. Porém, embora tenha feito uma rica discussão
acerca do assunto, a imprensa não fez cobertura do debate, que também não contou com a
participação dos atores políticos (Siqueira, 1993).
A Associação, contudo, foi um importante órgão de mobilização dos moradores da favela e
de luta para a garantia do direito à moradia. Através dela, foram alcançadas importantes conquistas.
Nas favelas, onde a população moradora esteve organizada, as zonas estão melhor estruturadas. O
grau de urbanização, no ano de 1995, encontrava-se tão notório que a maior reivindicação da
população era o asfalto, seguido da creche, do esgoto e do posto de saúde. Nesse período,
aproximadamente 50% das favelas tinham iluminação pública, rede elétrica e rede de água. As
favelas ainda tinham problemas com falta de asfalto, áreas de lazer e escolas (Romero, 1995).
Praticamente todas as favelas possuem 90% das residências em alvenaria; as ruas e vielas, em sua
maioria, estão definidas; os lotes praticamente demarcados por cercas e muros e tem divisas de
tamanho razoável (Funes, 2005).
3.3. URBANIZAÇÃO E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE FAVELAS E A
PARTICIPAÇÃO POPULAR
A urbanização e regularização fundiária das favelas do Município ocorreram após o advento
da CF/88 e a revisão do primeiro Plano Diretor, no ano de 1995. As atividades desenvolvidas
corresponderam à desapropriação de áreas particulares e desafetação de todas as áreas públicas de
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bem comum do povo e preservação permanente fora de risco. Ocorreram algumas intervenções
pontuais nos núcleos, levantamentos planialtimétrico cadastrais, redes de água, esgoto, energia
elétrica e iluminação pública que faltavam, pois grande parte foi realizada nos anos 80 devido à
pressão da ASFAP.
A administração pública elaborou Leis Específicas, porém as ações não foram transformadas
em programas, sendo apenas realizadas em projetos individualizados. Os levantamentos
planialtimétricos cadastrais, necessários a retratação da situação real do local, com definição de
arruamentos, lotes e outros, para instituir a lei e prosseguir com a regularização, não foram
concluídos. O processo de desafetação das áreas públicas, devido a vários motivos, entre eles, a má
elaboração do contrato para desafetação e as características físicas da área que seria afetada, levaram
ao retrocesso da ação.
Após o advento do Estatuto da Cidade e, embora presente no plano de trabalho da política
habitacional dos anos de 2001 a 2004: diretrizes que previam a resolução dos problemas das favelas
de forma integral, regularização das áreas consolidadas e a remoção das áreas de risco e preservação
permanente, ação preventiva de atendimento a demanda habitacional e reconhecimento da
necessidade de uma ampla e profunda interação entre as Secretarias; o governo municipal não
evoluiu na elaboração de programas e ações concretas.
No período, a administração pública desapropriou uma área para a implantação de
empreendimento habitacional para atendimento da população de baixa renda e estabeleceu parceria
com o governo estadual para a construção de 600 moradias. No empreendimento, aproximadamente
150 habitações foram destinadas às famílias de área de risco e preservação permanente3. No ano de
2003 iniciou-se um processo de regularização fundiária de favelas pela Concessão de Uso Especial
para Fins de Moradia, com a elaboração de leis e decretos pelo Poder Executivo sobre esse
instrumento. Foram entregues títulos de concessão à população moradora localizadas em algumas
áreas públicas, porém os títulos não foram registrados no Cartório de Registro de Imóveis, devido a
irregularidades, e os lotes não foram individualizados e cadastrados na Prefeitura Municipal,
inviabilizando o direito de posse ou propriedade.
Sobre este fato, de acordo com Funes (2005), o fracasso dessa ação deveu-se a falta de
conhecimento do processo pela Diretoria da EMDHAP, de equipe técnica especializada no assunto e
da entrega de título sem individualização dos lotes. A contratação de assessoria não integrada aos
problemas do Município, a não elaboração de programas e projetos de regularização, a dificuldade na
obtenção de dados e levantamento confiáveis, a gestão dos processos de maneira não participativa,
sem envolver os órgãos necessários à conclusão dos processos, cartório de registro, órgãos públicos,
entre outros, geraram ações desencontradas e a insuficiente organização dos processos em face da
complexidade do assunto.
Devido à nova postura do Governo Federal, a criação do Ministério da Cidade, da Política e
do Programa Nacional de Regularização Fundiária Sustentável, direcionados a orientação e
destinação de recursos, e o processo de revisão do Plano Diretor Municipal, no ano de 2004, foram
solicitados recursos federais para a urbanização de duas áreas de favelas, as mais antigas da cidade.
3 Observa-se que o conjunto habitacional e as remoções estavam a ser realizados, de acordo com o site da EMDHAP,
ainda no ano de 2009.
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O processo será destacado, devido a ser a primeira iniciativa completa de regularização fundiária do
Município.
Para a solicitação do recurso, a EMDHAP contratou uma sociedade sem fins lucrativos para a
elaboração do Plano de Urbanização, que propôs intervenções seguras e viáveis e atenderam as
normas mínimas de salubridade, segurança e habitabilidade para as áreas, prevendo a continuação do
processo de regularização jurídica. Os custos das intervenções propostas, porém, tornaram inviável a
sua realização pela administração, que não investiu na melhoria dos recursos administrativos e
humanos. Foram, assim, priorizadas as obras de drenagem e pavimentação, que tiveram início antes
da definição de um projeto, o que “pode causar gastos públicos desnecessários, por falta de
planejamento” (Funes, 2005:216).
Dentre as áreas, devido à pressão do movimento social local, em 1999 já havia sido elaborada
uma lei específica para a regularização fundiária, que foi alterada em 2003, devido a não efetivação
do processo e as mudanças legais e territoriais. As duas leis, iniciais e atuais, não têm importantes
definições para a regularização. A Lei e o Plano de Urbanização, que deveriam ser complementares,
foram realizados em momentos distintos e sem integração, o que mostra gasto de recursos públicos
repetitivos e sem cumprimentos das ações.
No final do ano de 2004 tiveram início as atividades do Trabalho Social planejados sem o
conhecimento das necessidades dos moradores, devido à pressão política num ano de eleições e
ausência de recursos humanos. A elaboração das propostas de mobilização, capacitação profissional,
geração de trabalho e renda, educação sanitária e ambiental, exigidos pelo Ministério da Cidade,
foram baseados na pesquisa realizada nas áreas, junto à população que procurava o posto de
atendimento da SEMDES. O Assistente Social da SEMDES entrevistado destaca que “Para saber a
necessidade desses cursos foi realizado um estudo empírico através do atendimento social, mas de
forma rápida, não havia tempo para aprofundá-lo. Era assim: tem tal curso, você quer?”. As
atividades de geração de trabalho e renda foram, praticamente, as mesmas dos programas previstos
pela SEMDES à comunidade, que foram implantados e/ou ampliados na área através de recurso
federal. A Secretária, apesar de atuar nas favelas, não possui programas destinados às necessidades
específicas dessa população (Monteiro, 2009).
O Trabalho Social, para realizar o diagnóstico e a avaliação das famílias, é previsto para
iniciar seis meses antes e terminar seis meses após as obras de urbanização, no total de um ano e
meio, contudo teve início com as obras e até o ano de 2007 ainda não havia terminado. As atividades
foram interrompidas durante todo o ano de 2005, devido à mudança da administração pública, e da
prioridade ter sido direcionada ao cadastro das famílias para formulação dos contratos de compra e
venda dos lotes.
O denominado Projeto Municipal de Regularização Fundiária dessas áreas que teve início no
fim dos anos 90, porém com ações pontuais e fragmentadas ao longo de aproximadamente 10 anos,
acarretaram no fato do projeto ainda estar em andamento no ano de 2007, com problemas referentes
à regularização jurídica, moradias em área de preservação permanente e de risco, obras de drenagem
inacabadas, áreas de lazer e institucionais abandonadas, ausência de equipamentos públicos e outros.
O cadastro sócio econômico realizado pelo setor de serviço social da EMDHAP não
objetivou a mobilização e participação comunitária. O mesmo foi utilizado para a elaboração do
contrato de compra e venda com a empresa e financiamento dos lotes, além de ter sido apresentado à
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população moradora apenas para a assinatura. A Assistente Social da EMDHAP (2007) demonstra
que
“(...) na regularização jurídica não houve estudo e nem trabalho social, somente um
trabalho de campo para o levantamento das famílias e execução de contratos de
compra e venda, foi um trabalho mais imediatista, visando a arrecadação por parte
da população. Nem quando o serviço social fez o trabalho de campo tinha as
informações necessárias para passar à comunidade. Não sabia como seria o
financiamento, como eles iriam pagar”.
Em todo o processo de urbanização e regularização fundiária dessas áreas, a participação da
população foi reduzida, embora tenham ocorrido algumas reuniões para discussão, e o poder público
acabou por apresentar e executar idéias e pré-projetos prontos. De acordo com a Assistente Social da
EMDHAP (2007) sobre a participação popular
“(…) [existiu] na urbanização, mas na regularização jurídica não. Nem quando o
serviço social fez o trabalho de campo tinha as informações necessárias para
passar a comunidade. O que existia era apenas a definição do valor do metro
quadrado do terreno que havia sido determinado entre a associação de moradores e
o antigo prefeito há alguns anos atrás na lei específica, pois era uma comunidade
antiga com mais de 20 anos de luta e reivindicações”.
Destacam-se, também durante esse processo, iniciativas políticas e não técnicas ou
participativas pela sociedade civil. Na opinião do Diretor da IPPLAP (2007) sobre quando refere à
revisão do Plano Diretor, aprovado em 2006, e a participação da população:
“Nos fizemos muitas audiências, talvez centenas de 2001 até aqui, o Estatuto pede
maior participação da população, maior autonomia do município. Porque
autonomia? Pois o município vai passar a ter instrumentos como o IPTU
progressivo, consórcio imobiliário, mas a população não participa. Eles vêm, mas
não é significativo, consegue-se grande participação dando um almoço, um
lanche, conjunto musical. Do contrário, se for uma reunião noturna, eles não vem.
Eles não entendem a linguagem técnica do Plano, eu critico muito meus colegas,
pois deve-se usar uma linguagem didática, explicativa, se não eles não entendem.”
O Engenheiro da EMDHAP (2007) diz que:
“A regularização pecou muito, pois não foi feito o levantamento correto, a
topografia correta, ficou coisa para trás devido ao curto prazo das ações, do
imediatismo para mostrar que estava sendo feito, em um ano desse atual governo, o
que tecnicamente não dava para fazer. Acho que os objetivos ainda não foram
alcançados, porque ainda não terminou o projeto, nem na parte de urbanização e
social. Tem um problema, a população é muito sem instrução, para ela está tudo
certo, ela vai para o cartório resolver os papéis do terreno, não consegue fazer, ai
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volta na EMDHAP, que põe a culpa no cartório. Não assume os problemas que a
empresa ainda não resolveu, Problemas de relação com a população, com o
levantamento topográfico. E problemas administrativos. Porém, acredito que toda
regularização que não for bem feita, gera mais problema”.
A partir de 2007 ocorreram outras ações nas demais favelas do Município, com recursos do
governo federal. No mesmo ano, 21 favelas foram beneficiadas, na maioria com urbanização, e essas
ações se encontram em andamento até os dias atuais, de acordo com o site da EMDHAP.
O Engenheiro da EMDHAP (2007), sobre a solicitação dos recursos, definição das
prioridades e planejamento das ações, refere que nos últimos anos foi realizado um programa de
regularização jurídica das habitações para nove favelas, beneficiando cerca de setecentas famílias,
porém, na época da entrevista (meados de 2007) referiu que estava parado desde janeiro de 2007.
Ainda refere que há outros programas, de iniciativa do Governo Federal, para habitação de interesse
social (50 casas), mais um programa de urbanização de sete núcleos de favelas. Ressalta que há
muitos recursos financeiros sendo disponibilizados, e que o recurso é a fundo perdido, porém, não
tem nenhuma regularização concluída.
Sobre os recursos já adquiridos e a participação popular na elaboração do trabalho social, o
Assistente Social entrevistado refere que a participação não está acontecendo na elaboração do
trabalho social, sendo o mesmo fato confirmado pelo Engenheiro da EMDHAP (2007), que diz que
“Nunca vi tanta falta de participação como agora. Acho que ainda teve, nos outros governos, com a
associação dos favelados, associação de moradores, vereadores. Agora, nunca mais vi essa
participação, antes essas pessoas eram ouvidas, mesmo que às vezes não fizessem o que elas
reivindicavam, eles ouviam o que elas tinham para dizer”.
Preocupante torna-se a situação da falta de participação popular quando se verifica que ela
também ocorre nos demais setores de intervenção pública. Nos argumentos do Diretor do IPPLAP
(2007) percebe-se um interesse econômico na urbanização e regularização fundiária das favelas,
sendo as leis específicas e os projetos de urbanização de interesse político:
“O Plano Diretor atual pede a Regularização de Favelas e o Prefeito atual já fez,
talvez sete ou oito, com luz, asfalto, todo o melhoramento possível. Primeiramente,
se faz o levantamento topográfico, estão lá terrenos quadrados, retangulares,
exagonais, porque foram feitos “a olho”. Então estamos regularizando favelas,
obedecendo ao EC que é enfrentar o problema que existe e regularizar, pois
estamos lidando com pessoas, seres humanos e esse é o espírito. O importante é
legalizar e recolher, dar o orgulho de recolher o IPTU. Depois de regularizada
aquela favela, ele paga a prefeitura em suaves prestações. É isso que está
acontecendo, para cada caso, para cada área específica, para ser aprovado aquele
loteamento naquelas condições que eles estão, com cada característica, são
enviados para a Câmara o projeto de lei para o loteamento ser aprovado como está,
e os vereadores, por causa de voto, vê isso com bons olhos, tem interesse, e é bom,
pois acabam ajudando essas famílias carentes, eles não vão contra essas coisas
nunca”.
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Contudo, o Engenheiro da EMDHAP (2007) alerta para a inexistência de projetos de acordo
com a realidade de cada área e que garantem requisitos básicos como mobilidade e acessibilidade,
destacando também que não há um trabalho em conjunto dentro da EMDHAP. E o Assistente Social
(2007) destaca as questões de habitabilidade dizendo que “Muitas vezes há a regularização fundiária
e urbanística, mas há a necessidade de melhorar a moradia que não apresenta condições dignas.
Questão da segurança, higiene, etc”.
Percebe-se que, na efetivação das ações, há a ineficiência ou ausência do desenvolvimento
dos programas direcionados a atender as questões socioeconômicas e culturais, eles não são voltados
à integralidade da cidade de forma que garantam a sustentabilidade urbana e, assim são favoráveis à
reprodução da desigualdade social. Este fato é claramente demonstrado pelo Secretário da SEMDES
(2007):
“(…) a periferia é formada por pessoas que sempre tiveram uma condição inferior
em termos habitacionais e mesmo que hoje essa moradia seja reconhecida como
propriedade, conjuntos habitacionais de baixa renda, muitas situações permanecem
de pobreza, ausência de emprego, baixa escolaridade. Então, assim, precisaria um
trabalho diferenciado nesse pós-desfavelamento, pós-regularização fundiária, para
que se trabalhasse isso. O que nós podemos fazer é alguma coisa no trabalho mais
de ponta (plantão), e nos projetos que promovem as atividades sócio-educativas. Eu
não tenho dados. No olhar a gente tem visto, porque também a gente observou que o
modelo novo da assistência tem correspondido mais. A secretaria teve que
trabalhar com o território, teve que priorizar aquele que precisa mais, identificar
onde esta a condição de vulnerabilidade. Não é parcerizado o trabalho de
urbanização, até acho que a EMDHAP tem que dar esse suporte, a Secretaria não
tem trabalho específico nessa área. A urbanização tem impacto maior na saúde e
também no acesso, transporte, mas na vida em si do indivíduo é muito pequena.
Muda o padrão, mas não muda a questão de renda, escolaridade etc”.
O mesmo profissional relata a dificuldade das famílias para pagar os impostos municipais
(água, luz, imóvel, etc) advindos do processo de regularização fundiária, pois não há incremento na
geração de trabalho e renda, nem na educação. Salienta que os moradores não dão prioridade ao
pagamento destas despesas, por falta de hábito e/ou de dinheiro e que, por outro lado, mantém um
elevado consumo. Além do que, a prioridade política é pela regularização fundiária através da
compra e venda o que gera mais um custo para as famílias.
De acordo o Assistente Social da SEMDES (2007), que atuava em uma área próxima a favela
mais antiga da cidade, uma das maiores demandas dessa área é o pagamento de água, luz e por cesta
básica. Explica que o objetivo do atendimento é “desenvolver toda aquela região, trabalhar com
recurso de parceria, trazer uma melhoria, fazer com que o povo participe fazer com que eles
percebessem, se apoderassem dos direitos”, porém, ao descrever o que ocorre na área, deixa claro
que há uma ineficiência no alcance do mesmo.
Para o mesmo profissional, apesar de visarem uma parceria com a associação de moradores
“há muito problema entre a Associação de Moradores e os órgãos públicos”. Quanto à existência de
estudo para elaboração e implementação de projetos sociais no local, diz que não sabe se existe, mas
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acredita que não, porém, considera que é uma necessidade, salientando que nem mesmo a
Associação de Moradores sabe dizer quais são as necessidades do bairro. Para o Secretário SEMDES
(2007) a relação com a Associação de Moradores “no geral é boa” e que existe um trabalho para dar
autonomia às associações, inclusive com a participação da OAB, Cartório de Registro de Imóveis e
Receita Federal.
Sobre a situação social na área da favela, o Assistente Social da SEMDES (2007) aponta
problemas relacionados à educação, saúde, renda, relações familiares, gênero, violência doméstica,
entre outros.
Portanto, durante todo o processo de urbanização e regularização fundiária das áreas
estudadas, percebe-se que a participação popular apenas esteve presente pela pressão do movimento
social ou pela obrigatoriedade imposta pelo Governo Federal. Sabe-se que a efetividade desse
instrumento depende também da integralidade das políticas públicas com objetivos de transparência,
consulta e responsabilidade, o que não é percebido de forma clara no município estudado.
4. DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Depois de um histórico em que a luta dos movimentos sociais por moradia garantiu melhorias
nas condições de vida dos moradores de áreas de favelas, o estudo de caso no Município de
Piracicaba demonstra claramente que houve dificuldade do movimento social em manter-se ativo
depois que o direito à moradia e à participação popular foi garantido na Constituição Federal de
1988.
A participação popular foi reconhecida em nível nacional e em âmbito jurídico, como uma
alternativa da gestão pública municipal para reduzir a pobreza urbana e a degradação ambiental.
Porém, quando institucionalizado, este processo passou a ocorrer de cima para baixo, ou seja, a ser
programado e executado pelo poder público, através de seus técnicos. Assim, a população passou a
ser convidada a participar na elaboração de diversos programas, dentre os quais os que dizem
respeito à habitação. Contudo, nem sempre os técnicos estão dispostos e preparados para trabalhar
com a população, ou seja, para pôr em prática a participação popular.
Um dos argumentos utilizados pelos técnicos é a dificuldade em atrair a população para as
atividades promovidas pelo Município pela falta de interesse destes em participar e também pela
falta de conhecimento sobre o que é participar. Porém, por outro lado, nota-se que não há relatos de
atividades da EMDHAP no sentido de demonstrar aos moradores que suas opiniões são importantes
para a realização das regularizações, ficando claro que os programas são feitos pelos técnicos e
comunicados à população.
O problema que se põe é que a obrigatoriedade da participação pode ter como ponto fraco a
possibilidade de sua manipulação, ou seja, tenha se tornado uma mera etapa de um processo maior.
Fica evidente que a abertura democrática ocorrida na CF/88 depende também da abertura
democrática dentro das instituições, depende que os técnicos realmente a ponham em prática, e não
apenas cumpram uma determinação legal. No estudo de caso, percebe-se que a intervenção social
nos programas habitacionais se deu apenas pela imposição do Governo Federal quando da
disponibilização das verbas, e que estas tinham um caráter muito mais informativo do que consultivo
ou deliberativo.
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Nos dados obtidos demonstra-se que há predominância do interesse político nas ações,
aprovações de leis e outros, e assim a possibilidade da ação tornar-se objeto de campanha eleitoral.
Além dos relatos, nota-se que em todas as publicações feitas pelo site da EMDHAP sobre as
atividades de informação e/ou consulta à população, é destacada a frase “conforme determinação do
Governo Federal”. Apesar do site da empresa informar a existência de eventos ou atividades, essas se
apresentam como publicidade, sem dados e informações completas sobre as ações, os custos, as
avaliações e os resultados. Outro fator relevante é que não há no Conselho das Cidades a presença de
membros do Movimento da ASFAP, e que este é composto por um grande número de políticos que
ocupam cargos comissionados no Município.
Para Santos (2003) os conselhos estaduais e municipais e os orçamentos participativos são
exemplos de democracia de alta intensidade, pois permitem a participação direta da comunidade nas
decisões do governo, enquanto a democracia representativa é considerada de baixa intensidade, pois,
como se sabe, exercida sem qualquer consulta pública. Porém, o exemplo que aqui se põe demonstra
que não é apenas a existência destes canais que os tornam mais democráticos, e que, quando a
população não tem a oportunidade de participar, podem-se reproduzir os problemas que existem na
democracia representativa, e, em última análise, de forma tirana, pois figuram para legitimar a
vontade do Estado mascarada de decisão popular. Por isso, ressalta-se a importância de
“democratizar a democracia” (Santos, 2003), e a importância de que as próprias instituições sejam
abertas ao diálogo.
No estudo de caso, o governo local não demonstrada interesse pela transparência das
informações, responsabilidade quanto ao cumprimento de prazos e metas, nem pelas demandas da
população. Também não existe articulação entre os órgãos, nem para facilitar o trabalho, nem para
favorecer a população pobre do Município. Do relato obtido da SEMDES, percebeu-se que a pobreza
e a vulnerabilidade dos cidadãos são fatores presentes e crescentes, apesar da implantação das novas
políticas e legislações habitacionais, e que estão concentradas nas áreas de favelas. Há um
descompasso entre as políticas sociais, tais como habitacional, de assistência social, de saúde e de
educação. Não há integração entre as políticas públicas, sendo cada problema tratado como demanda
a ser atendidas por cada setor e não como meios de empoderamento, rede e atuação em parcerias.
Destaca-se a predominância da regularização através de contrato de compra e venda e, assim, a visão
pública de arrecadar recursos com as regularizações, uma forma de descaso com os problemas
sociais, vez que não existe uma política efetiva de geração de renda e desta forma corre-se o risco de
perpetuar os problemas.
O movimento social dos favelados de Piracicaba foi o responsável pela conquista da moradia
e outros benefícios referentes à infra-estrutura no município através da pressão popular. O Governo
atuou nessas áreas visando harmonizar os conflitos, e não realmente resolver o problema, o que
resultaram em ações não planejadas e ineficazes, nomeadamente nas questões referentes às
condições de vida. Assim como nas questões ambientais atuou de forma paliativa, pela pressão
legislativa e internacional, removendo a população das áreas de preservação permanente e de risco,
para áreas impróprias e inadequadas, e não atuou no reflorestamento ou controle do acesso aos
mesmos, sendo reocupadas e novamente em processo de remoção. O histórico é fruto de uma gestão
da política habitacional ineficiente, e que trás como consequência a política de regularização e os
diversos problemas sociais presentes na realidade Brasileira.
Anais do III Seminário Nacional e I Seminário Internacional
Movimentos Sociais Participação e Democracia
11 a 13 de agosto de 2010, UFSC, Florianópolis, Brasil
Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais _ NPMS
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Porém, atuar na presente política com a mesma postura anterior, sem alterar o modelo de
gestão e paradigma do desenvolvimento, continuará a manter a não credibilidade com relação à ação
do poder público, que pode ser apontada como um dos fatores de desrespeito aos bens públicos, o
não reconhecimento enquanto cidadão, analfabetismo, desemprego e outros.
Portanto, acredita-se que o objetivo da participação deve ser o empoderamento da população
e deve acontecer de forma articulada entre os diversos órgãos municipais de intervenção. A
regularização fundiária não deve acontecer sem que haja também trabalho de capacitação
profissional, sem que haja educação, sem que as condições de vida dos moradores mudem para
melhor. Em um país com histórico de pobreza e ausência ou ineficiência de educação e gestão
política transparente, a alternativa para uma participação popular legítima e efetiva, pode estar na
prioridade da capacitação dos técnicos do poder público, assim como na inserção de práticas de
participação popular nas escolas, universidades, setores privados, atividades de lazer e outros. O
desenvolvimento de parcerias e do diálogo entre a diversidade tem que ser reconhecida como prática
diária, na presença de instituições democráticas, ou seja, na família, no bairro, na escola, no trabalho,
na cidade. Porém interdependentes, cabendo, inicialmente, a política pública, atuar como meio de
criação dessa arena.
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