lugares moles
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Jorge Menna Barreto
Lugares Moles
So Paulo 2007
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes, rea de Concentrao Artes Plsticas, Linha de Pesquisa Poticas Visuais, da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do Ttulo de Mestre em Artes, sob a orientao da Profa. Dra. Ana Maria Tavares.
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Banca Examinadora:
So Paulo, ________________ 2007.
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Resumo
O objeto de pesquisa desta dissertao compreende as especificidades do termo site-specific, palavra da lngua inglesa usada internacionalmente em arte para caracterizar obras para as quais o contexto tem um papel determinante. A meta da pesquisa dobrar o conceito implicado pelo termo sobre a prpria palavra, ou seja, defender a idia de que a expresso site-specific em si site-specific e que, portanto, a sua utilizao em outros contextos e lnguas, que no o seu de origem, deve sofrer algum tipo de elaborao, ou traduo. O site-specific no entendido somente como um assunto, mas como um mtodo de abordagem da prpria dissertao como um espao especfico, onde possvel propor uma operao artstica. A traduo abordada como uma operao potica, mais do que uma tentativa de gerar um termo em portugus que fizesse equivalncia palavra site-specific. Entende-se por operao potica a construo de um lugar relacional e colaborativo de diversos autores, lnguas, idias, conceitos e imagens; incluindo, a partir de estratgias conceituais, o leitor como um elemento constitutivo do jogo proposto. Palavras-chave: Arte site-specific; arte contempornea; traduo em arte; arte como lugar; contexto como arte; especificidade de significado.
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Abstract
The object of this research comprehends a critical investigation of the specificities of the term site-specific, which has been appropriated from the English language and used internationally to describe works of art which find in their context a defining role. The goal of the research is to fold the implied concept over the word itself, or, to defend the idea that the expression site-specific is a site-specific in itself. Its use in other contexts and languages should therefore undergo some sort of elaboration, or translation. Site-specificity is understood not solely as a subject, but also as a method to constitute the dissertation itself as a specific site, where it is possible to propose an artistic operation. Translation is understood as a poetic operation, more than an attempt to create a word in Portuguese which would be equivalent to site-specific in English. What is understood by a poetic operation is the creation of a relational and collaborative field of several authors, languages, ideas, concepts and images; including, through conceptual strategies, the reader as a constitutive element of the game proposed. Key-words: Site-specific art; contemporary art; translation in art; place as art; context as art; specificity of meaning.
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Para o ido Cadolpho e para a sempre presente Zez. Para a minha irm Lia, referncia e inspirao. Para o Vicente, Carlos e Mary, meus queridos irmos. Para a Neka, pelos novos horizontes.
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Agradeo aos meus amigos e colaboradores, em especial Raquel Garbelotti, Tatiana Ferraz, Ligia Nobre, Carla Zaccagnini, Daniella Samad e Paulo Reis. Aos meus queridos Laranjas, Cores, Fabes e Corestino. Tambm aos excultores do CAP, claro! Ao Andr, pela generosidade. Um agradecimento especial Regina Melim e Martin Grossman, pelas atentas e preciosas contribuies feitas na banca de qualificao. E um agradecimento mais do que especial minha orientadora Ana Maria Tavares, pela rara oportunidade de ser orientado por uma artista brilhante, uma professora exemplar e uma pensadora afiada; pela confiana na pesquisa, pela preciso dos comentrios, pelo companheirismo e pelas lies de vida.
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ndice Apresentao 10 Manual de Leitura 13 Contra-texto 15 Operao de Dobra 16 Mtodo Negativo 17 Acontecido [TrajetRio] 21 Mtodo site-specific (diagrama) 28
Enconfrontros 31 Con-fio 38 Massa 51 One-to-one 65 Minha terra, sua terra 71 Inseguro 82 rea semi-crtica de contaminao 89 Revista nmero 98 Projeto Matria 109 Acontecimento [Introduo] 121 O comeo pelo meio 122 O rio como um lugar 126
A palavra sobre a mesa 127 Lugares Moles 130 Inacontecido [Mesas] 137 Mesa 1 Especificidade, para qu? I Mesa 2 Conscincia Contextual II Mesa 3 A palavra situada III Resposta a Julio Plaza [Finalizao] 144 Referncias Bibliogrficas 146 Anexos 150 Um lugar aps o outro I O lugar errado II
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texto especfico de um contexto
(o contexto do texto)
con texto e specific o
context-specific text
a text that is context-specific
no somente O QUE fala, mas de ONDE
fala
not only content-oriented but
context-oriented
exterioridade do texto
> texterioridade <
texto e territrio
texterritorialidade
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Apresentao
O problema so as palavras,
sempre as mesmas,
para uma realidade inquieta.
Donaldo Schler
A obsesso em minha trajetria artstica tem sido
com o texto e o con texto.
A palavra site-specific um n privilegiado para pensar essa articulao.
Desde 1997, interesso-me pelas prticas site-specific e seus
desdobramentos. Chamo-as de prticas, pois entendo o site-specific como
um procedimento; e no como uma categoria, como costuma ser utilizado.
Minha inteno fundamental nesta dissertao dobrar o conceito implicado pela palavra site-specific sobre a prpria palavra, ou seja, propor a
idia de que a palavra site-specific site-specific e que depende de um
contexto especfico para constituir o seu significado. Assim como as prticas
site-specific - que devem ser traduzidas quando se deslocam de um lugar
para outro, pois no so autnomas em relao ao seu contexto- a palavra
site-specific tambm deveria ser traduzida quando viaja para outros contextos
e lnguas, pelas mesmas razes.
A traduo poderia ser entendida, portanto, como leitura crtica.
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Para que se proponha tal operao necessrio situ-la.
No primeiro captulo, acontecido, posiciono o leitor sobre o lugar de
fala que assumo quando proponho a operao que funda essa dissertao.
Para isso, localizo alguns trabalhos de minha trajetria como artista nos quais
o contexto exerce um papel determinante.
No segundo captulo, inacontecido, proponho a traduo do termo site-
specific. Esta proposio no entendida em um sentido finalista, que geraria
uma palavra equivalente no portugus. A traduo abordada aqui como a
criao de um campo colaborativo onde participam diversos pensadores.
Neste sentido, a traduo revela-se como um processo tradutrio aberto,
mais do que uma operao que almeje certo fim.
A introduo ganha o nome de acontecimento e situa-se entre os dois
captulos principais. tambm o espao onde discuto a criao do projeto
Lugares Moles (Butter Architecture), que nasceu dentro do campo de
problemas gerado pelo mestrado e que tambm d nome a esta dissertao.
Embora se complementem, os captulos possuem certa autonomia e
podem ser lidos na ordem desejada pelo leitor(a).
Por ltimo, termino a dissertao com uma resposta a Jlio Plaza,
afirmando esta dissertao como um processo dialgico e em curso, que no
inclui somente o presente, mas todos os tempos que a atravessam.
Em anexo, dois textos seminais para esta pesquisa, traduzidos por
mim: Um lugar aps o outro e O lugar errado, ambos da autora Miwon Kwon,
importante referncia nesta pesquisa.
As prticas site-specific, ou as prticas artsticas especficas para um
contexto, desconstroem a idia do lugar como um suporte neutro para a obra
e o ativam como parte integrante do trabalho.
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O desa fio desta dissertao ativar a prpria dissertao como um
contexto determinante no qual proponho uma operao artstica. Parte ativa
deste contexto o leitor, buscando torn-lo participador.
Ao escolher o texto como aliado principal para construir o enunciado
proposto, esse se torna o material privilegiado dessa dissertao. A palavra
dobrada, esticada, cortada, fraturada, ampliada e explorada em seu contedo
e em sua plasticidade. Busca-se revel-la como um elemento ativo e no
como um simples veculo para um contedo. O texto contedo e contexto
nessa dissertao.
Os conceitos abordados no pretendem ser apenas discutidos, mas
praticados.
O texto pendula entre uma linguagem mais acadmica e outra mais
experimental. Momentos de intransparncia, clareza e opacidade.
O que se busca adequar a linguagem a um modo de pensar.
A obsesso em minha trajetria artstica tem sido com o texto e o con
texto.
Os espaos em branco pretendem ser espaos de possibilidade para o
leitor tornar-se sobrescritor, alm de fazer do vazio, contedo.1
1 O poeta Mallarm, no incio do sculo XX, foi o primeiro a se interrogar perante a pgina em branco e criar, literalmente, uma dimenso espacial a partir do branco e da pgina.
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Manual de Leitura
Contra-texto Operao de dobra Mtodo Negativo
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Contra-texto
Freqentemente o leitor ir encontrar o que nomeio contra-texto.
Pretende-se com isso fatiar o corpo
do texto principal: reverter, estancar ou represar momentaneamente o fluxo contnuo do dis curso.
So territrios de desacelerao no
qual o fio da meada rompido ou ampliado para que se indique os milhares de fios outros que o atravessa.
So zonas de intervalo e de descanso.
Reverso de fluxo. Contra-fluxo. Sombra do corpo. O que no coube mas mesmo assim insiste em estar e perfura o texto na sua materialidade e se coloca e passa a integrar a configurao. E desloca.
So pontos de dilatao nos quais os
espaos crescem. Poros. Brechas que podem levar a outros percursos. Setas. Desvios.
Por vezes agrega, por vezes distrai. Por vezes situa. E na sua reverso,
torna o fluxo ainda mais forte. Por vezes confunde. E nessa confuso,
lembra-nos da opacidade e do que no comunicvel. E do limite da linguagem.
Situa-se (entre) o texto e o con
texto. Entre discurso e rea. Delimita e demarca. A pgina que sustenta o texto e a pgina-territrio que colide. Refluxo. Desfluxo.
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Operao de dobra
Essa uma operao de fundamental importncia neste contexto, pois parte de um conceito que retorna a si prprio e o revela. Coloca-se como a reverso de um
movimento contnuo. uma parada e um retorno que consiste em uma reflexo especular.
Constitui-se como uma operao mental-lingistica.
procedimento escultrico.
Exemplo:
1) O contedo implicado pela palavra site specific no somente compreendido, mas dobrado sobre a prpria palavra. Defender que a palavra site
specific em si site specific um movimento de dobra. Revela a palavra como objeto plstico e moldvel. Revela a palavra em sua materialidade, fisicalidade; como objeto no autnomo e no auto-suficiente, como parte de um con texto.
2) A dissertao de mestrado como um momento de dobra. Produzo sobre minha prpria produo. A produo tornada objeto.
Procedimento que se pretende reflexivo, crtico e revigorante. Essa dissertao uma (d)obra
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Mtodo Negativo
O mtodo negativo foi criado por mim na apresentao final da disciplina
Extenses na Arte do Professor Doutor Celso Favaretto em 2004-2. Nessa ocasio,
pretendia-se criar um enunciado utilizando-se de obras de minha trajetria como
artista.
A partir da percepo de que cada uma dessas obras fora realizada em
lugares e tempos especficos, verificou-se que o uso de sua documentao e da
narrativa que as acompanham, no contexto da sala de aula, requeria uma
elaborao.
Dessa maneira foi ento criado o que passei a chamar mtodo negativo, que
consiste na aplicao de um risco sobre o nome da obra. Seu principal objetivo era
sinalizar a transposio contextual da obra e alertar os alunos desse curso que no
estavam mais diante das obras, mas de uma traduo. Pretendia-se tambm com
isso apontar para a apresentao como um lugar de re(a)presentao que no
neutro e, portanto flexiona o que ali colocado.
Para o artista Robert Smithson, que muitas
vezes fez intervenes artsticas em lugares remotos da paisagem, a documentao gerada por essas obras desenhos, filmes, fotos e escritos assumia um papel ativo no trabalho, pois a maioria do seu pblico no via a obra in situ, mas sua documentao-extenso em galerias e espaos institucionais. Esse lugar criado a partir dessas extenses no assume um papel submisso, como simples documentao, mas um papel constitutivo que multiplica e descentraliza a prpria noo de obra como um objeto circunscrito e bem delimitado.
Smithson define o local onde a obra foi primeiramente instalada como site. A denominao das extenses construda a partir de uma operao de negao do termo site: agrega-se palavra site o prefixo negativo non, ou seja, non-site1.
1 Ver Smithson, Robert. The Writings of Robert Smithson. Ed. Nancy Holt.
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A nomeao desse procedimento se deu posteriormente sua conceituao
e apresentao. Isso se d no contexto mesmo dessa dissertao, quando
possvel aprofund-lo e associ-lo a outros procedimentos do campo da arte com o
qual traa um parentesco.
Parto do princpio que essa dissertao tambm um lugar especfico e,
portanto, possuidor de suas singularidades - e no apenas um suporte neutro que
acolhe as idias, contedos e obras aqui colocados. Transpor obras, por exemplo,
para esse con texto requer uma elaborao, pois estamos operando um
deslocamento entre situaes e tempos especficos.
Com aprofundamento da reflexo sobre esses assuntos no percurso da
dissertao, foi possvel pensar em um novo desdobramento para o mtodo
negativo. Este passou a ser aplicado no mais somente aos nomes das obras de
minha trajetria, mas tambm aos nomes dos autores que utilizo no captulo
inacontecido, advertindo que seus textos, tal como as obras, tambm no so autnomos em relao ao seu contexto de origem e que a sua transposio con
textual requer uma sinalizao.
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Nos dois casos, a aplicao do mtodo pretende causar um descolamento do
original, afirmando que o processo tradutrio pode constituir um novo tempo e lugar.
Este descolamento gera um espao de liberdade (plstico?) onde as obras saem da
condio submissa s obras e tornam-se materiais manipulveis conforme a
inteno presente. So quase-traies que se pretendem fiis, no somente s
obras, mas ao lugar e enunciado onde estamos agora. Opera-se um double bind2,
um duplo vnculo, uma dupla responsabilidade.
A percepo, nesse caso, envolve risco3
2 Susana Lages refere-se expresso double bind como sendo a soluo proposta por Derrida para a operao tradutria, na qual o tradutor no submete a sua lngua lngua
estrangeira, mas as coloca em um processo de colaborao. Ver LAGES, Susana. Walter Benjamin: Traduo e Melancolia. Ed. Edusp, So Paulo, 2002, p. 85. 3 Somando obra do artista Antoni Muntadas, Ateno, a percepo requer envolvimento.
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acontecido
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Este captulo dedica-se investigao de nove obras de minha trajetria
artstica: Enconfrontros; Con-fio; Massa; One-to-one; Minha terra, sua terra; Inseguro; rea Semi-crtica de contaminao; Revista nmero; e Projeto Matria.
A busca no por origens ou justificativas, mas mapear alguns fluxos e
vestgios que operem como localizadores na navegao proposta nesta
dissertao.
O critrio escolhido para aproxim-las est relacionado ao mtodo que utilizei para constru-las que por sua vez diz respeito s relaes de especificidade que estabelecem com os contextos para os quais foram pensadas e realizadas, ou seja, o site specificiy.
Por serem especficas das situaes s quais pertencem, sua
transposio para o contexto desta dissertao requer uma elaborao, ou
traduo. Para isso adotarei o mtodo negativo, descrito no manual de leitura.
Neste sentido, importante ter em mente que essa transposio no
pretende dar transparncia e clareza completas ao trabalho original, nem
mesmo ilustr-lo. Ao contrrio, um certo nvel de opacidade da narrativa
intencional e desejvel1, pois alerta o leitor de que no estamos diante das
obras mesmas, mas sim de uma traduo para um contexto e uso especficos.
Inicialmente pensei que esta investigao revelaria um territrio, ou
mesmo um lugar de fala, ttulo original deste captulo. Mas, em seguida,
1 Sobre a opacidade e a transparncia na traduo, ver o texto de Sarat Maharaj The untranslatability of the other (www.iniva.org), onde discorre sobre a impossibilidade de uma traduo que seja transparente e que deixe ver todas as sutilezas do original. De acordo com o autor, um certo grau de opacidade deveria ser assumido, pois nenhuma lngua (ou linguagem) equivale completamente outra. A opacidade faz parte da operao tradutria que se assume como tal.
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percebi, com a ajuda das contribuies feitas na banca de qualificao2, que as
imagens que construa se aproximavam mais da infixidez de um rio do que da
estabilidade de um territrio propriamente dito.
Estas elaboraes me levaram a criar a palavra TrajetRio para
renomear este captulo. Neste trocadilho, associo, palavra trajeto, o Rio, em
constante mutao e deslocamento, em permanente contradio com a volio
de pertencimento ou at do estabelecimento do lugar.3
A relao do Rio com o verbo rir tambm uma associao bem vinda.
Pode vir do prazer de banhar-se no fluxo da lngua, dos jogos de linguagem e
dos jogos na linguagem.
Especificidades moventes
Algumas das obras apresentadas em TrajetRio, como Massa, Minha
terra, sua terra, e Con-fio, tiveram itinerncias a partir de seus locais de
apresentao originais. Massa, por exemplo, depois da Bienal de Havana, foi
apresentada em Belo Horizonte e em So Paulo, dentro do Programa Rumos
Itacultural em 2002. Minha terra, sua terra, alm de ter participado do Projeto
Linha Imaginria, viajou para o Rio de Janeiro onde participou da exposio
Gerao em Trnsito no Centro Cultural Banco do Brasil em 2001, alm da
Bienal do Barro em Caracas, Venezuela; e no Memorial da Amrica Latina em
So Paulo, tambm em 2001. Con-fio participou na exposio Vizinhos na
Galeria Vermelho, So Paulo, em 2003. Alm disso, tornou-se Felix que
esteve na Bienal de Havana de 2000 e em Jaragu do Sul, Santa Catarina, na
exposio Obra, documento e ao em 2004.
2 A banca de qualificao para esta dissertao aconteceu em fevereiro de 2006 na ECA-USP e contou com os professores doutores Martin Grossman e Regina Melim. 3 Contribuio feita pelo professor Martin Grossman durante a banca de qualificao para esta dissertao em fevereiro de 2006.
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Optou-se aqui por refletir somente sobre as obras originais e reservar a
discusso sobre os seus desdobramentos para uma outra ocasio, dada a
complexidade e extenso do assunto.
No entanto, a questo da especificidade movente, como chamo este problema, abordado a partir das discusses geradas nas mesas, das noes de descolamento do site trazidas por Miwon Kwon e James Meyer, alm do
conceito e prtica do site-specific deslocado da artista Ana Maria Tavares.
O site-specific como um mtodo
Conforme dito anteriormente, o critrio de escolha das obras de minha
trajetria que apresento neste captulo a reflexo sobre o site specificity,
entendido por mim como um mtodo de trabalho.
Este mtodo consiste em cinco etapas gerais: escolha do site, escuta e mapeamento, identificao de um problema, construo da obra dividida entre projeto e realizao e por litmo, fissuras.
A descrio que se far das obras dar especial ateno ao seu
contexto e priorizar o seu processo de formao e pesquisa, buscando
evidenciar o mtodo, mais do que a obra finalizada. Outro aspecto que resulta
do foco no mtodo a diversidade de meios e linguagens plsticas
empregadas, ou, a no especializao em um gnero ou estilo artstico, j que
a formalizao das obras determinada pelas situaes onde atuei, sempre
singulares. Se h alguma especializao, ela acontece no mtodo.
O diagrama a seguir apresenta uma espacializao possvel desse
procedimento. Embora colocadas aqui de forma didtica, duas ou mais etapas
podem se interpenetrar e gerar outras mais.
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Enconfrontros
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1997 - Pinacoteca Baro de Santo ngelo, Porto Alegre Trabalho de concluso do curso de Artes Plsticas, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
O espao fsico como um site e o pblico como um rudo
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Enconfrontros (1997) o primeiro trabalho de minha trajetria onde identifico
claramente o espao como um elemento ativo da obra. neste momento que entro em contato, pela primeira vez, com o termo site-specific.
Desde o meu ingresso na graduao, os trabalhos feitos nas disciplinas eram
orientados para a construo de um objeto autnomo. Pela primeira vez havia
a oportunidade de pensar o trabalho situado em um espao especfico.
O espao ocupado foi a Pinacoteca Baro de Santo Angelo, na prpria
faculdade. No intuito de entender as suas especificidades para a construo do
trabalho, lancei mo de duas estratgias de mapeamento. A primeira foi o
estudo da planta baixa da galeria (fig.1). A segunda, a experincia do espao,
utilizando o prprio corpo como medida (fig.2).
Fig. 1 Planta baixa da Pinacoteca Baro de Santo ngelo
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Fig. 2
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A partir do mapeamento do local, criei figuras quase humanas moldadas em gesso que se relacionassem com alguns dos seus aspectos
arquitetnicos. Ao todo foram moldadas nove figuras.
interessante notar que a relao de pertencimento que as figuras estabeleceram com esse lugar no era da ordem da tranqilidade. O adaptar-
se envolvia, muitas vezes, deformaes, estiramentos e mutilaes. Desta
forma, a relao de dependncia dessas figuras com o espao ficava ainda
mais evidente.
A figura looking out hipertrofia suas pernas para alcanar uma janela 2,5 metros de altura.
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O momento de ocupao da galeria foi breve, apenas durante a banca de
avaliao, que durou algumas horas. A banca ocorreu dentro da prpria galeria
e foi assistida por aproximadamente trinta pessoas.
A presena deste pblico no estava prevista no projeto. Tampouco os mveis
utilizados pela banca avaliadora, como as cadeiras e mesa, que ficaram dentro
da galeria. Este dado imprevisto fez com que as possveis relaes das figuras
com a totalidade do espao ficassem prejudicadas. A viso do todo da
interveno, fundamental para construir o enunciado, tambm foi impossvel.
Isto fez com que cada uma das nove figuras fosse vista individualmente, mas
no na sua relao com as outras e com o espao mais amplo. Ou seja, o
trabalho s operava conforme havia sido idealizado se a galeria estivesse vazia
de outros corpos que no os moldados.
O entendimento do espao partia de uma observao atenta s
caractersticas fsicas da galeria. No havia considerado a situao que ali seria gerada, que inclua, alm do espao, o pblico, a banca
avaliadora e o mobilirio utilizado.
espao fsico
vs.
situao
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interessante notar, no entanto, que este dado imprevisto fez com que fosse
possvel ampliar a noo de espao de maneira a tambm incluir suas formas
de uso, sua funo especfica, na qual o pblico tem um papel determinante. A
noo de situao surge ento no somente a partir das consideraes dos
aspectos fsicos e fixos do espao, mas sobretudo, das maneiras de ativ-lo e
atualiz-lo. Se o espectador um ruido em Enconfrontros, os prximos
projetos o prevm e o incorporam.
O espao-alvo passa assim a interferir
no processo de construo de forma
bastante ativa. A figura se deforma
e se distorce para moldar-se ao contexto.
O espao no evocado apenas como um
receptor dos trabalhos, mas como um
co-autor.1
1 Menna Barreto, Jorge, trecho do texto Enconfrontros: Projeto de Graduao em Artes Plsticas, Porto Alegre, UFRGS, 1997.
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Con-fio
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1998 Projeto Remetente, Porto Alegre
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A rede como um site e a incluso do pblico como participador
Enconfrontros se debruava sobre as caractersticas fsicas do espao onde foi
exposto, e intervinha neste. Operava no binmio obra-espao. Por sua vez,
Con-fio lida com outras formas de abordagem das especificidades da situao
para a qual a obra desenhada e inclui o pblico como participador.
Con-fio tem incio em 1998 na cidade de Porto Alegre. Faz parte de um projeto
chamado Remetente1, criado e desenvolvido por seis artistas gachos: Maria
Helena Bernardes, Fabiana Rossarola, Cleber Rocha das Neves, Laura Fres
e Thelma Vaitses.
A rede
O projeto Remetente pretendia construir, a partir deste grupo inicial, uma
rede de afinidades com outros artistas. Esta rede era tecida a partir de convites feitos por cada um dos seis integrantes do grupo original. O
critrio de escolha do artista a ser convidado era pessoal e baseava-se,
principalmente, na percepo de uma afinidade entre processos de trabalho,
interesses e um desejo de aproximao.
O artista convidado, por sua vez, tambm poderia convidar mais um outro,
formando assim um grupo de dezoito. importante salientar que o critrio de
1 Este projeto foi selecionado por edital do FUMPROARTE Fundo Municiapal de Apoio Cultura da Cidade de Porto Alegre - e, portanto, financiado pelo mesmo.
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escolha no levava em conta a proximidade geogrfica do artista escolhido. A
configurao da rede inclua, portanto, artistas de vrios cantos do pas e uma
artista francesa. O brao da rede que me incluiu era composto por Laura Fres,
do grupo original, e Tunga, meu convidado.
Pretendia-se que o projeto se materializasse em uma exposio coletiva, duas
publicaes (uma revista que antecedia a exposio e o catlogo que a
seguia), alm de encontros e debates entre os artistas envolvidos, o pblico e
os curadores Agnaldo Farias, Anglica de Moraes e Karim Stempel, tambm
colaboradores dos textos do catlogo.
interessante notar que a presena dos curadores no era central nesta
organizao. No se tratava, no entanto, de uma negao dos assuntos
curatoriais, mas de uma reflexo acerca das suas possibilidades em uma
poca de pleno fortalecimento da figura do curador no Brasil nos anos de 1990.
A escolha dos artistas, geralmente atribuda curadoria, neste momento ficou
a cargo dos prprios artistas. Remetente aposta assim em uma possibilidade
de agrupamento entre os artistas cujo critrio emerge a partir de seus prprios processos de trabalho. O que se gera portanto um grupo heterogneo, sem uma amarrao conceitual explcita. Pode-se notar
uma outra costura conceitual, nem sempre to clara, s vezes secreta, ou s
insinuada.
Minha inteno, neste projeto, era dar continuidade ao campo de problemas
surgido em meu trabalho de concluso de curso no ano anterior. Isto diz
respeito, principalmente, ao enfoque na especificidade, ou seja, a criao de uma obra especfica para esta situao.
No entanto, o que se apresentava no Projeto Remetente divergia bastante do
que encontrara anteriormente. Enconfrontros, desde o seu incio, tivera um
espao definido para a sua apresentao. Remetente, no.
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A rede se configurou muitos meses antes de se saber onde a exposio
aconteceria. Esta indefinio fez com que a minha ateno se desviasse do
espao fsico, aspecto central em muitas aes site-specific, e buscasse outras
especificidades colocadas pela situao. A primeira delas foi a prpria forma
como o evento era organizado, a partir do funcionamento em rede.
Estamos em 1998, momento em que o uso popular da internet ainda recente,
embora j se saiba do seu potencial. Assim, a discusso sobre redes e as
transformaes sociais que ela traz so uma tnica. Certamente influenciado
por este momento, o Projeto Remetente se inclui nesta discusso.
Sua incluso, no entanto, no se d por uma via direta. A rede do Remetente
uma de afetos e influncias, mais do que aquela tecnolgica da internet. Neste
sentido, as conexes dessa rede so ainda mais virtuais e desmaterializadas.
Alm disso, a discusso contida em Remetente est diretamente ligada s
reformulaes das noes de espao e tempo que ocorreram intensamente na
dcada de 1990. As relaes espaciais, como as de proximidade e distncia,
foram largamente alteradas medida em que as redes de comunicao
tecnolgicas avanavam e se dinamizavam e a internet se popularizava,
trazendo profundas mudanas nas formas de sociabilizao. Viu-se nascer, por
exemplo, agrupamentos e comunidades no espao virtual formados por
afinidade, cada vez mais independentes do espao geogrfico que ocupavam.
Assim, a formao de uma vizinhana no-geogrfica, conforme definiu
Michel Foucault2, me parece um dos pontos centrais do Projeto Remetente e o
que o liga mais fortemente ao seu momento histrico.
2 Embora a noo de vizinhana no-geogrfica de Foucault no se aplique necessariamente s questes da rede, principalmente a tecnolgica, possvel fazer essa relao se considerarmos o aspecto virtual do espao construdo nos dois casos. Ver Foucault, Michel. As palavras e as coisas. Ed. Martins Fontes, So Paulo, 1995, p. 5-14.
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Outra especificidade interessante deste projeto a sua relao com o formato expositivo. Em geral, eventos artsticos priorizam a exposio, que costuma ser o ponto de convergncia mxima e o momento do
evento no qual o artista e sua obra entram em cena. Remetente, no entanto,
demanda uma atuao do artista na estruturao do projeto, explicitando todo
o processo anterior exposio.
Tais especificidades comearam a delinear um campo de ao para a minha
interveno. Delas, interessava-me particularmente o desa fio em desenhar uma obra que no priorizasse somente o momento expositivo. Outro
interesse era colocar prova o prprio mtodo de construo de uma obra site-
specific em um espao que no fosse fsico e testar os seus limites para lidar
com um espao fludo, desmaterializado, disperso e intangvel: a rede. Desta forma a observao das especificidades da situao deixou de ser
somente espacial, por circunstncias que o prprio evento colocou, e passou a
incluir os movimentos, percursos e entroncamentos da rede que se formou. Por mais intangvel que pudesse ser, tornou-se meu espao de atuao.
O objeto
Iniciei o meu projeto pelos ns da rede formada. Para isso, fundi inmeros pares de tijolinhos de cobre onde se lia, em cada um, as slabas con" e fio
em alto relevo. A percepo de que o momento expositivo no precisava ser
necessariamente central levou deciso de ativar o projeto alguns meses
antes da exposio e do encontro dos artistas, previsto para o momento da
montagem e abertura do evento. Assim, um par de tijolinhos foi enviado pelo
correio para cada um dos dezoito artistas participantes em seus locais de
moradia.
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A configurao espacial espalhada dada pelo projeto Remetente revela uma situao interessante para ser explorada por meio do
envio dos tijolinhos, feitos para serem portteis e facilmente enviados at
diferentes localidades, constituindo assim uma possibilidade de
estiramento dos conceitos do Projeto Remetente. Pretendia, com esta ao, construir uma segunda rede sobre a rede existente, ou afirmar-lhe a
existncia. O cobre aqui utilizado por ser um metal altamente dctil
(capacidade de fazer fios por estiramento) e de tima condutibilidade3.
A rede proposta por Con-fio , assim como a do Remetente, uma rede no-
tecnolgica, ou low-tech. Sua construo se dava pelo imaginrio de quem
estava envolvido, muito mais do que por meios concretos. Neste sentido, a sua
virtualidade est distante da noo tecnolgica, e assim tambm a problematizava.
A idia de compartilhar o mesmo objeto importante para este projeto e
pretendia ativar uma forma de pertencimento a esse territrio virtual que fora constitudo pela rede. Instaura-se assim como um espao imaginado
no qual a noo de pertena no estava ligada ao lugar de nascena ou
procedncia, mas s afinidades eletivas.
O jogo com o verbo confiar conjugado na primeira pessoa do singular
tambm importante para realar o carter afetivo dessas relaes, assim
como revelar o fio, a partir da quebra da palavra, contido na sua formao4.
3 O cobre o segundo material, depois do ouro, em ductibilidade, ou seja, a capacidade de esticar-se sem romper para fazer fios. Tambm um material de tima condutibilidade. Essas duas caractersticas levam sua adoo para a fatura dos fios eltricos para conduo de eletricidade. 4 Sobre a importncia do sentimento de confiana na formao de redes, ver o texto de Rogrio da Costa, Por um novo o conceito de comunidade: redes sociais, comunidades pessoais, inteligncia coletiva, publicado no site http://www.scielo.br/pdf/icse/v9n17/v9n17a03.pdf
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A revista
A revista outro momento importante do Projeto Remetente. Desenhada antes
da exposio, apresenta o projeto e serve como mais um lugar para a
atuao dos artistas. A cada um foi reservado um espao de duas pginas que
poderiam ser ocupadas de acordo com critrios pessoais.
Minha interveno cria uma rede de palavras e expresses onde encontram-se
as slabas con e fio. Chama-se zona de vizinhana nmero 10. Pretende,
com essa ao, apontar para outras possibilidades de criao de redes que
no sejam somente baseadas em protagonistas humanos.
A exposio
Configuradas as primeiras etapas do trabalho, restava o problema de como
ocupar o espao expositivo momento importante do projeto Remetente
quando o trabalho e a produo de todos os artistas envolvidos ganhariam
visibilidade pblica. Para esta situaco, Con-fio foi multiplicado e distribudo
tambm para o visitante da mostra. Tal deciso baseava-se no entendimento
do espectador transformado em participador5. A rede e o seu territrio ampliavam-se e passavam a incluir o pblico como um
elemento ativo do trabalho.
5 Hlio Oiticica escreveu sobre a noo de participador: O problema da participao do espectador mais complexo, j que essa participao, que de incio se ope pura contemplao transcendental, se manifesta de vrias maneiras: H porm duas maneiras bem definidas de participao: uma que envolve manipulao ou participao sensorial corporal e outra que envolve participao semntica. (...) Tanto as experincias individualizadas at as coletivas tendem a proposies cada vez mais abertas no sentido dessa participao, inclusive, dar ao indivduo a oportunidade de criar a sua obra. Ver OITICICA, Hlio. Aspiro ao grande labirinto. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 91. Tambm refletindo sobre a participao, Lygia Clark escreve: Ns somos os propositores. Somos os propositores: somos o molde; a vocs cabe o sopro, no interior desse molde: o sentido de nossa existncia. Somos os propositores: nossa proposio o dilogo. Ss, no existimos; estamos a vosso dispor. Somos os propositores: enterramos a obra de arte como tal e solicitamos a vocs para que o pensamento viva pela ao. Ver CLARK, Lygia. Lygia Clark textos de Lygia Clark, Ferreira Gullar e Mario Pedrosa. RJ: FUNARTE. 1980.
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Instalou-se, assim, um ponto de distribuio dos tijolinhos no espao
expositivo. A cada novo participante era perguntado o nome que era anotado
em uma lista com todos os nomes dos participantes anteriores. Cada lista
atualizada era impressa em duas vias: uma podia ser levada e a outra ficava
como registro no espao. Tal procedimento pretendia criar uma cartografia
possvel do trnsito dos tijolinhos, conforme escreve a historiadora Giselle
Gallichio: Con-fio emerge de uma exterioridade movente, de um agenciamento, j
coletivo e sempre em processo. Os fragmentos, que ora se conectam, ora se
rompem, traam linhas descontnuas, compondo relaes imprevisveis com
direes, velocidades, tenses e consistncias variadas. Produes que
abandonam a palavra e a representao, transformando-se em inscries
mveis sobre corpos tornados nomes prprios como designaes de
intensidades que penetram umas nas outras... O Remetente aparece como um
dos locais de provenincia que enlaa Jorge a outros dezessete nomes.
Intermezzo, entre Laura e Tunga, rasga as ligaduras, precipita a irrupo de
inmeros componentes, profuso de singularidades...6
Diferente da distribuio em pares para os artistas do prprio projeto
Remetente, a sua distribuio para o pblico foi de apenas um tijolinho por
pessoa. Tal mudana deveu-se a inteno de tornar mais complexas as
possveis relaes de construo da palavra. O participador, munido de apenas
uma slaba, e sabendo da existncia da outra, completava a palavra
virtualmente, ou, ao conect-la com a pea de outro participador, levando
adiante o aspecto relacional da obra e expandindo-o.
A remoo dos tijolinhos do ambiente expositivo geralmente encontrava na
casa do participador o seu ponto de deposio. A expanso do ambiente da
obra provocada por tais deslocamentos tambm era um motivo de grande
interesse. A situao domstica em que muitos dos tijolinos se encontravam,
passveis a de adquirirem outros acoplamentos, usos e agenciamentos (uma
espcie de participao prolongada da obra), tambm lana o trabalho em um
6 Fragmento da historiadora Giselle Gallichio em texto no publicado escrito sobre a obra Con-fio, 1998.
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processo infinito de transformaes e reconfiguraes onde o participador
quem define os seus limites, temporalidades e significados, longe do espao
controlado e temporalmente delimitado do espao expositivo.
Con-fio era uma obra bastante sedutora e isso por vezes dificultava uma
abordagem que fosse alm das suas camadas mais aparentes. Muitos dos
participadores aproximavam-se da obra pois estavam dando cobre de graa,
um material caro e com valor de mercado alto, ou mesmo, por ser um objeto
de arte distribudo gratuitamente, cuja foto havia sido publicada em um jornal
local7. Esse tipo de valor que por vezes foi agregado obra, advindo do valor
intrnseco do prprio material de que feito e do seu sucesso miditico, podia
fazer com que a obra (os tijolinhos) fossem associadas a um tipo de um
souvenir de luxo, fazendo com que a obra corresse o risco de ser reduzida
um objeto de consumo. A malha de relaes conceituais mais complexa que o
objeto traava com a situao, seu contexto histrico, sua exterioridade,
poderia ficar muitas vezes ofuscada pelo seu brilho (retiniano). Esse foi o rudo de Con-fio e um problema que tento abordar de forma
diferente nas prximas obras.
7 Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 3 de setembro de 1998.
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Massa
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2000 7 Bienal de Havana, Cuba
a Bienal de Havana e a proposta curatorial como sites
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Con-fio operava a partir de uma noo expandida do site, desmaterializada, da
noo de rede que era proposta pelo Projeto Remetente, incluindo o pblico
como participador. Massa leva esta pesquisa adiante, respondendo a algumas
questes que surgiram em Con-fio e problematizando seu contexto, a 7 Bienal
de Havana e a sua proposta curatorial, entendidos como sites.
A primeira Bienal de Havana data do ano de 1984, quando ainda era restrita
Amrica Latina e ao Caribe. A partir da sua segunda edio, em 1986, passou
a incluir tambm artistas da sia, frica e Oriente Mdio1. Em 2000, a Bienal
de Havana tinha como ttulo Mas cerca uno del otro e, de acordo com a proposta curatorial, pretendia reunir artistas cujos trabalhos
estivessem relacionados, entre outras coisas, interao e aproximao
entre artista, obra e pblico.
Embora conte com o apoio de fundaes estrangeiras2, a Bienal de Havana
realiza-se com recursos escassos e a produo, transporte das obras, estadia
e eventuais gastos costumam correr por conta dos artistas e/ou seus pases de
origem. De todo modo, a Bienal tambm se constitui como um evento turstico que atrai cerca de 3.000 visitantes estrangeiros (dado obtido em conversa informal com a curadora bis Hernandez em 1999).
O influxo de capital gerado pelo evento tambm um aspecto significativo,
especialmente a partir da dcada de 1990, com o fim do apoio da Unio
Sovitica, quando Cuba passa a depender do turismo como sua principal fonte
de renda. A Bienal de Havana costuma acontecer de forma dispersa pela
cidade, incluindo instituies (nem sempre de arte), casas antigas e as prprias
ruas e praas. Seu carter pulverizado faz com que a
1 Vale notar que a Bienal de Havana anterior ao boom de bienais internacionais que comea a ocorrer na dcada de 1990. 2 Prince Klaus, AFFA, entre outras.
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circulao do pblico seja responsvel pela costura que d corpo ao evento da Bienal.
Fluxo/circulao do pblico constitui o local da bienal, o integra
Como de costume, meu primeiro impulso foi o de mapear as caractersticas do
contexto onde atuaria. Algumas perguntas surgiram neste processo: Como
abranger esses espaos espalhados? Acercar-los? Mape-los? E os entre-espaos, os respiros entre os espaos expositivos, onde acontece a maior interao com a cidade e o pequeno comrcio de Havana? Qual a formalizao possvel de uma obra para que se relacione, ou
melhor, problematize esse espao disperso? E como ativar o pblico como parte da obra, como fora motriz, j que a sua circulao a
responsvel por unificar o evento? E como tornar a relao da obra
com a proposta curatorial complexa, e no apenas
ilustrativa, rasa e celebrativa?
A interveno
A partir do estudo das especificidades citadas acima, planejo a interveno
chamada Massa. A opo para abordar o espao disperso foi encontrada a
partir da utilizao de um objeto que tivesse transitibilidade e que pudesse
usar a prpria circulao do pblico como fora motriz. importante, no entanto, que esse objeto seja leve e no se torne um transtorno para o participador carregar, ou melhor, que at o
ajude em seu trnsito, que se cole a ele.
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Foram utilizadas, ento, sacolinhas de papel vazias distribudas para o pblico em um ponto de alta circulao da Bienal. Um dos
objetivos de tais sacolas ajudar o visitante da mostra a carregar possveis
objetos comprados nas ruas: garrafas de gua (dada a alta temperatura em
Havana!), material impresso de outros artistas, o prprio catlogo da Bienal
(que cabia perfeitamente na sacola e era vendido ao lado do ponto de
distribuio das sacolinhas); ou seja, objetos comumente coletados no trnsito
pela Bienal3.
O ponto de distribuio principal escolhido das sacolas o Centro Wifredo
Lam, onde acontecem as inscries para o evento, a venda de catlogos, a
parte administrativa, alm da exposio de algumas obras. No andar trreo,
ento, encontra-se uma pessoa sentada diante de uma escrivaninha
encarregada de receber o pblico interessado em participar da ao (ou
simplesmente ganhar uma sacola!). A cada participador era perguntado o seu
peso e esse era somado ao peso resultante de todos os participantes que por ali haviam passado antes dele. O nmero que resultava dessa soma era
ento carimbado na sacolinha vazia que podia ser levada pelo participador.
Peso (massa corprea) Peso (moeda em Cuba)
As sacolinhas transitaram assim por toda a Bienal e foram vistas por diversos
locais da cidade. A estratgia de abraar o espao disperso da Bienal se
mostrou eficiente ao incluir o pblico como aliado. Massa estabelecia assim a
aproximao entre artista, obra e pblico, conforme proposto pelo eixo
curatorial da Bienal. No entanto, pretendia-se que essa relao fosse ativada
de forma reflexiva e crtica. O teor crtico do trabalho pretendia ser 3 As especificidades quanto ao trnsito do pblico pela Bienal puderam ser observadas por mim na edio anterior (1997), quando a freqentei como visitante.
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instaurado a partir de uma reflexo sobre o espao de consumo e atrao turstica, que tambm faz parte da Bienal. Tal relao era insinuada ao utilizar-me de um smbolo to forte da sociedade de consumo como as sacolinhas comumente distribudas em lojas.
operao de dobra
No entanto, ao invs da marca ou logotipo da loja, que costumam ser
impressos nesse tipo de sacola, encontrava-se o peso do prprio portador,
somado aos outros do pblico do evento; dobra-se, assim, a suposta operao
comercial sobre o prprio corpo dos participadores, tornados tambm
consumidores (e consumidos).
Participador Consumidor
A opo por fazer esta crtica em um pas comunista que luta arduamente pela
sua sustentao pode parecer irnica e at descabida. Lembremos, no entanto,
que parte significativa do pblico da Bienal de Havana faz parte do mesmo
pblico do circuito crescente das bienais internacionais. Massa dirigia o seu
comentrio no s s especificidades da Bienal de Havana e s mudanas
pelas quais o pas tem passado, mas tambm a um site mais expandido do
circuito internacionalizado de turismo e comrcio cultural.
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O posicionamento crtico da obra
em relao a uma estrutura
institucional um ponto integrante da
noo de site para a autora Miwon
Kwon: Ser especfico em relao a um
site decodificar e/ou recodificar as
convenes institucionais no sentido
de expor as operaes ocultas
revelar as maneiras pelas quais a
instituio molda o significado da
arte para modular seu valor econmico
e cultural4.
A opo pelo uso de um material barato, sacolas de papel, pretendia
esvaziar o objeto de algum valor intrnseco que pudesse lhe ser atribudo. As sacolinhas no aspiravam perenidade de
uma obra de arte, mas enfatizar e problematizar o trnsito desse espectador
pela bienal. Eram feitas de um material frgil e que, se realmente usado, se desfaria em pouco tempo.
Lembro que esse havia sido um aspecto crtico observado na obra Con-fio,
uma vez que o cobre exercia tal atrao sobre o pblico e com isso poderia
ofuscar as relaes conceituais mais relevantes. A precariedade do papel e da
prpria sacola, que no apresentava nenhum apelo visual mais elaborado,
fazia parte de uma estratgia de no atribuir valor ao objeto a partir de suas 4 KWON, Miwon. One Place after another. MIT Press, EUA, 2002, p.14.
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caractersticas intrnsecas, mas da malha conceitual da qual participava e das
relaes que poderia traar, ou seja, de uma experincia no-retiniana.
Esta estratgia talvez tenha funcionado com o pblico estrangeiro. No entanto,
minha ignorncia a respeito do valor do papel em Cuba se fez notar logo no
incio do evento. Desde o embargo, os cubanos tm enfrentado srios
problemas de abastecimento da demanda interna de papel. A escassez de
papel uma realidade rdua, ainda mais para um povo que gosta de literatura
e que encontra imensa dificuldade para imprimir os seus livros e publicaes. O
papel artigo de luxo em Cuba. Minha inteno de esvazi-lo de um valor
intrnseco, ao tratar-lhe a partir do meu referencial de abundncia desse
material no Brasil, se viu frustrada ao perceber enormes filas de cubanos
querendo as sacolinhas e pedindo se poderiam levar mais de uma. Muitos
entraram na fila duas vezes!5
A partir dessas observaes, Massa trouxe outras reflexes sobre a forma
como eu estava lidando com o pblico. Enconfrontros sequer o previa. Con-fio,
o reconhecia e inclua, mas quem era? Massa o quantifica e faz uma crtica da
prpria idia de um pblico massificado e annimo. No entanto, a partir da
realizao da obra, pude perceber sutilezas e distines no que julgava ser
massificado. O caso narrado sobre o valor de um mesmo material em
diferentes contextos terminou por revelar que meu pblico era hbrido e
operava a partir de diferentes referenciais de valores, resultando em diferentes
maneiras de abordar o trabalho. Os conflitos gerados em Massa do incio a
uma investigao mais aprofundada sobre quem o pblico da obra e quais
so as suas especificidades. Se o tema da Bienal era mas cerca uno del otro,
ficou a pergunta, quem o uno, e quem o otro?
5 Isto no chegava a ser um problema no sentido de prejudicar a obra, j que a operao de soma no pretendia um sentido finalista e portanto no almejava um produto final da soma.
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Para o artista brasileiro Cildo
Meireles, a noo de espao e
circuito se entrelaam. Em Inseres
em Circuitos Ideolgicos (1970), o
artista comenta: Esse trabalho
tratava da questo do lugar, o
conceito de circuito6. Lugar que
lquido, mvel. Circuitado. Infixo.
Garrafas de Coca-cola que so
sequestradas pelo artista, recebem
inscries, e so devolvidas
circulao7. O lugar do trabalho o
circuito de circulao das garrafas.
6 Ver OBRIST, Hans Ulrich. Arte Agora! 5 Entrevistas. Ed. Alameda, So Paulo, 2006, p. 67 (grifo meu). 7 Alm das garrafas de Coca-Cola, Inseres em circuitos ideolgicos inclua outras inseres em outros circuitos, como cdulas de dinheiro e jornal, tambm com outros textos. Ver o catlogo Cildo Meireles, Ed. Phaidon, mencionado na bibliografia.
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One-to-one
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2002 Porto Alegre
O outro como um site
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Massa (Havana, 2000) construiu um comentrio crtico de uma quantificao e
massificao crescentes dos pblicos de eventos internacionais de arte e de
sua orientao, talvez excessivamente, turstica e mercadolgica. No entanto,
dentro das operaes propostas e dos conflitos gerados na sua realizao,
tambm surgiu o questionamento de quem esse to mencionado pblico.
Foi a partir de algumas observaes sobre a forma como essa obra operou que
pude iniciar uma abordagem mais analtica acerca das noes de pblico.
Em seguida discuto o projeto One-to-one onde radicalizo para o outro extremo
a noo de pblico, personalizando-o totalmente, criando o que passei a
chamar de obras person-specific1. Esse projeto consiste em uma srie de
trabalhos feitos especificamente para uma pessoa. Parto do entendimento
dessa pessoa como uma situao, como um site, passvel de aplicao do mtodo site-specific.
Marcos (2002) um projeto especialmente feito para Marcos. Consiste em um
olho mgico instalado na parede logo atrs de sua cama, que possibilita uma
vista para o jardim do lado de fora da casa (figs. 1,2 e 3).
Fig. 1
1 One-to-one consistiu em uma srie de cinco obras. Nesta dissertao irei abordar apenas um deles.
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Fig. 2
Fig. 3
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O ttulo do trabalho one-to-one foi dado em ingls, pois o numeral one em ingls no
define gnero. Em portugus, temos os numerais um ou uma, e isso atribuiria
questes ao ttulo que no eram do meu interesse. Outro aspecto na denominao diz
respeito noo de escala. One-to-one, ou mesmo em portugus, 1:1, o que
chamamos de escala real.
Foram muitas as questes suscitadas por essa operao, e muitas ainda encontram-
se em processo de elaborao. Algumas dizem respeito a escala ntima do trabalho. Esse projeto no foi, originalmente, realizado para ser exposto, mas para permanecer
no territrio entre um e outro.
na diluio da obra no mbito da vida e nos problemas ticos que incorreria sua exposio que o projeto constri questes difceis de serem resolvidas. Sua
privacidade isolacionista impede a gerao de uma interface crtica com um campo
mais amplo da arte, algo que muito me interessa. Sua documentao fica num
territrio confuso entre registro da vida pessoal e documentao de uma ao
artstica.
Essa espcie de problema gerado a partir dessa ao coloca tal projeto muito mais
num mbito processual. No entanto, entendo que essa ao tensione de modo muito
importante o campo de problemas gerado nesta dissertao e por isso a deciso de
inclu-la aqui. Seu tensionamento um comentrio crtico a respeito do contexto da
obra, sua diluio na vida, e o entendimento acerca da participao.
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Minha terra, sua terra
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1999 So Paulo, Salvador, Belm e Florianpolis.
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O site nmade e a zona intervalar
Os projetos at agora discutidos enfocaram diferentes noes do que vem a
ser o site. Enconfrontros lidava com um espao fsico. Con-fio, por sua vez,
lidava com o espao da rede e suas extenses. Massa, por sua vez, tratava da
Bienal de Havana, sua proposta curatorial e seu pblico generalizado. One-to-
one, como uma possvel resposta ao Massa, personalizava, radicalmente, a
idia de participador em trabalhos feitos para uma pessoa apenas. Cada uma
dessas obras propunha uma abordagem diferente do que venho chamando de
mtodo site-specific, esticando-o, alargando-o e testando-o.
interessante notar, tambm, que os prprios trabalhos comeam a se
informar mutuamente e criam um campo relacional. Assim, cada novo trabalho no apenas se informa a partir das especificidades e da situao
onde se coloca, mas tambm a partir desse outro site que constitudo pelo
conjunto das obras de minha prpria trajetria. Conforme Miwon Kwon, esta
seria a quinta noo de site na genealogia que desenvolve a respeito do site
specificity em seu livro One place after another1.
O projeto Minha terra, sua terra adiciona novas complexidades a esse campo.
Os territrios geogrficos e polticos entram em cena literalmente pela primeira
vez, assim como um questionamento sobre a prpria relao da itinerncia do
artista pelos sites onde atuam.
O projeto Minha terra, sua terra teve origem dentro do Projeto de Intercmbio Cultural Linha Imaginria2. Tal projeto visa uma aproximao entre artistas de
1 Ver KWON, Miwon. One place after another. MIT Press, EUA, 2002. 2 Ver www.linhaimaginaria.com.br
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diversos estados brasileiros e, mais recentemente, internacionais, promovendo
exposies coletivas por vrios cantos do Brasil e do mundo. Minha
participao no projeto, a partir de 1999, levou-me a elaborar um trabalho que
pudesse problematizar a prpria situao itinerante do artista dentro do Linha
Imaginria, assim como discutir a representao estadual proposta pelo
programa na poca.
Minha terra, sua terra consistiu no deslocamento de terra de Porto Alegre, cidade onde morava, para as cidades nas quais eu participaria das exposies
do Linha Imaginria: 30 quilos foram deslocados para So Paulo, 20 quilos
para Salvador, 10 quilos para Belm e 10 quilos para Florianpolis. Setenta
quilos era o peso total, que coincidia com a minha massa corprea. Nos locais de exposio, a terra era disponibilizada aos visitantes em pequenos saquinhos de aproximadamente
cem gramas.
A condio nmade da situao gerou uma espcie nova de lugar em minha trajetria artstica. A expanso simblica de um
territrio, que era promovida pela migrao da terra de uma localidade
especfica para outra, suscitou diversas questes ao longo do processo.
A escolha da terra para representar o estado do Rio Grande do Sul fazia aluso
a uma longa histria de apego e tradio que ligam esse estado a uma cultura
agrria e pecuria que sempre tiveram um papel importante na sua economia.
Famoso por seu regionalismo exacerbado, o gacho envolveu-se muitas vezes
em disputas territoriais e j lutou pela sua separao do resto do pas, em
1834, na Revoluo Farroupilha.3 O amor terra tambm motivo de diversas
obras de arte e peas literrias gachas. Entre as mais famosas, encontram-se
as histrias do Capito Rodrigo e Ana Terra narradas por rico Verssimo no
3 Ver http://www.riogrande.com.br/historia/revolucao/default.htm
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clssico O continente 4, que mistura fico com fatos histricos do Rio Grande
do Sul5.
Outra possvel e mais recente relao que diz respeito aos estados com uma
cultura ligada terra o MST Movimento dos Sem Terra6. H vinte anos
promovendo uma mudana na poltica agrria brasileira, contra os latifundirios
e as condies injustas da sociedade agrria, o movimento dos sem terra
apresenta propostas de reorganizao social que permeiam no somente as
questes da produo agrcola, mas questes de cidadania, tendo a terra como
seu protagonista. O projeto minha terra, sua terra (ironicamente apelidado de
MTST, em uma referncia ao MST) tem no seu entorno algumas dessas
questes histricas e polticas que dizem respeito situao da terra no Brasil.
Ao transportar a terra de um territrio geogrfico e poltico para o outro,
borram-se as noes de fronteiras e diluem-se noes de diferenas apegadas fisicalidade e s divises polticas atribudas
posse da terra. Aspectos do regionalismo so questionados, assim como
noes de propriedade individual, ao fundar-se uma possibilidade de um novo
territrio, que meu e seu, e no mais meu ou seu, conforme sugere o ttulo da
obra. O que se funda um territrio comunicativo, apontando para uma forma
de relacionamento simblico com a terra que se baseia no exerccio de
alteridade da arte. A terra, o indivduo e a sua representao se multiplicam e
reproduzem7 para configurar novas formas de abordar esses problemas e criar
uma espcie de zona intervalar, onde o sentido de propriedade ironizado.
4 ''O continente'' narra cento e cinqenta anos da histria do Rio Grande do Sul, por meio da trajetria de uma famlia, os Terra Cambar, e do nascimento de uma cidade, a fictcia vila de Santa F. A narrativa cclica abre e fecha com o cerco dos federalistas ao sobrado do republicano Licurgo Cambar, em 1895. Intercalando-se a esse momento que culminou na vitria das foras da Repblica, descreve-se a gnese da famlia desde 1745, quando o ndio Pedro Missioneiro, criado no territrio dos Sete Povos das Misses, assiste estarrecido ao massacre de seu povo. 5 Embora este projeto focasse na relao entre dois estados, duas terras, as atribuies simblicas pesquisadas dizem mais respeito terra gacha do que a dos seus pontos de deposio. Isto se deve, em parte, ao fato de ter sido o prprio Linha Imaginria que definiu onde as exposies aconteceriam, e no uma escolha mais criteriosa de minha parte. 6 Ver www.mst.org.br 7 Baseado em anotaes de aula do professor Massimo di Felice na disciplina Formas Comunicativas do Habitar, 2004, USP SP. Tais anotaes dizem respeito ao sujeito
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A terra que os participantes do projeto adquirem configurada a partir de um
espao comunicacional que no est limitado a uma condio geogrfica de
latitude e longitude. Assim, esse aspecto comunicacional poderia ser
considerado um territrio intervalar que se d na relao de trnsito da terra entre estados, pessoas e representaes lingsticas, que
altera o seu significado e valor medida que faz o trnsito. A terra em trnsito
est destituda de uma identidade fixa, esvaziando-se e preenchendo-se de
novos significados a cada vez que sua posio atualizada em diferentes
contextos. Assim, deixa de ter um significado intrnseco e passa a ser
exterioridade, pele, superfcie de deslize. A terra funda um stio relacional de diversas instncias e deixa de ser matria passiva para tornar-se um agenciador de diversos atores. A real migrao parece dar-se de
uma noo sedentria da terra, como territrio ocupado, para uma noo
comunicativa que se d em trnsito onde a terra que ocupa uma situao de mltiplas relaes.
O comentrio de uma visitante da mostra em So Paulo, na Faculdade Santa
Marcelina em 1999, aponta para algumas destas questes. Ao ver os
saquinhos de terra e ser informada sobre a sua procedncia, perguntou: Como
eu sei que voc no pegou esta terra ali na esquina?. Este comentrio, alm
de jocoso, tambm aponta para uma questo importante que abordada por
este projeto.
A procedncia da terra no estava inscrita nos saquinhos, no era algo
intrnseco ao objeto. Essa informao vinha a partir de uma narrativa sobre a obra, que poderia at ser ficcional. Sua aparncia no
multiplicado e reprodutibilidade do sujeito que embora estejam ligadas a uma mutiplicao e uma reproduo tecnolgicas, utilizo-as aqui a partir de uma tica simblica e da linguagem.
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77
comprovava tal informao, j que a terra utilizada no manifestava nenhuma
singularidade visual marcante.
O estado de dvida suscitado na visitante da exposio revela precisamente o questionamento proposto pelo trabalho. Isso diz respeito ao
esvaziamento de uma identidade supostamente intrnseca da terra e a sua exteriorizao para um mbito narrativo, discursivo, onde a questo de origem
e representao estadual so questionadas.
Qual a linha imaginria que separa a minha da sua terra? Quando parto do Rio Grande do Sul, portando minha terra, e adentro um outro
estado com uma terra que, a princpio lhe estranha, mas que pela forma
como apresentada porttil e sem oferecer resistncia absorvida,
incorporada, consumida e desaparecida, tento definir qual a fronteira, a linha a partir da qual esta terra deixa de ser minha e passa a ser sua.
A completude de muitas de minhas obras
depende da participao ativa do pblico.
Muitos dos trabalhos podem ser dispersos
e faz-se intencional a remoo de alguns
de seus componentes pelos participadores.
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78
A obra e o seu lugar se expandem sob
responsabilidade dos participantes e
passam a criar vizinhanas at ento
impensadas8, extrapolando suas fronteiras
e contornos. Em muitos casos o destino
final do trabalho ser a residncia dos
participantes onde os fragmentos da obra
operam tanto como uma lembrana da
experincia vivida como abrem novas
possibilidades de interao e re-
significao. A fertilidade que acredito
ser promovida pela insero da obra no
cotidiano do espectador motivo de
grande interesse nessa pesquisa: Tudo
torna-se parte de uma rede ntima tecida
entre artista, o espectador e o mundo.9
No livro As palavras e as coisas,
Michel Foucault faz uma leitura da
enciclopdia chinesa de Jorge Luis Borges na
qual encontramos animais fantsticos criados
8 Ver Foucault, Michel, As palavras e as coisas. (citado na bibliografia) 9 Ferguson, Russel. Catlogo Flix Gonzales-Torres. (citado na bibliografia)
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pelo autor e pertencentes a uma taxionomia
absurda, como por exemplo: a) pertencentes
ao imperador, b) embalsamados, c)
domesticados, d) leites, e) sereias, f)
fabulosos, g) ces em liberdade,etc.
O que chama ateno para Foucault no
a criao de animais fabulosos, mas a
impossibilidade do lugar onde esses animais
poderiam aproximar-se: O impossvel no a
vizinhana das coisas, o lugar mesmo onde
elas poderiam avizinhar-se. 10
O autor nomeia esse lugar como sendo o
no-lugar da linguagem e atribu-lhe um
carter subversivo e contestatrio dos
sistemas e cdigos de ordenao do pensamento
ocidental. Para Foucault, o que encontramos
em Borges so as heterotopias, que, ao
contrrio das utopias, fracionam os nomes
comuns ou os emaranham, porque arrunam de
antemo a sintaxe, e no somente aquela que
constri as frases aquela, menos manifesta,
que autoriza manter juntos (ao lado e em
frente umas das outras) as palavras e as
coisas... as heterotopias dissecam o
propsito, estancam as palavras nelas
10 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Ed. Martins Fontes, So Paulo, 1995, p.6.
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prprias, contestam, desde a raiz, toda a
possibilidade de gramtica;...11, l onde se
cria a vizinhana sbita das coisas sem
relao12.
Para Borges, essa espcie de (des)ordenao
tem um aspecto crtico em relao aos nossos
sistemas de ordenao, pois faz constatar que
a ordens dadas talvez no sejam as nicas, e
nem as melhores13 e que a aproximao do
que no convm14 pode ter um aspecto
libertador.
11 Ibid. 9, p.7 12 Ibid. 9, p.6 13 Ibid. 9, p.10 14 Ibid. 9, p.6
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Inseguro
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2001 3 Bienal do MERCOSUL, Porto Alegre
O imaginrio como um site e o gradeamento como interveno urbana
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A 3 Bienal do MERCOSUL aconteceu em Porto Alegre, 2001. Efetivou-se em
locais inusitados, como o Hospital Psiquitrico So Pedro -onde, na semana
inicial do evento, foram realizadas performances noturnas- e s margens do
Rio Guaba, que recebeu uma Cidade de Contineres, montada para abrigar
obras de arte contempornea (fig.1) e as intervenes urbanas. Estas no
ocorreriam diretamente no tecido urbano de Porto Alegre, mas em um espao
protegido e reservado para isso ao lado da cidade dos contineres.
Caracterizavam-se, assim, mais como obras tridimensionais a cu aberto do
que como intervenes urbanas propriamente ditas.
Fig. 1
Convidado pela curadoria a realizar uma interveno urbana, tomei a malha da
cidade como objeto de investigao, embora a situao que se apresentava
fosse de certa forma apartada da regio mais urbanizada da cidade.
O gradeamento como interveno urbana
Porto Alegre, como a maior parte das cidades grandes do Brasil, enfrenta altos
ndices de violncia urbana. As estratgias de defesa so, na maioria das
vezes, individualizadas, ou seja, partem do prprio cidado. As mais comuns
so a instalao de grades nas casas e comrcios, os sistemas de alarme e a
contratao de segurana privada. A sofisticao varia com o poder aquisitivo
dos cidados. Das mais visveis e aquela que vem interferindo de forma radical
na paisagem e na vivncia das cidades, o gradeamento.
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Passei a observar que gradear casas ou estabelecimentos transcende a
questo funcional de proteo e torna-se tambm uma questo com claras
motivaes emocionais, com implicaes estticas e ticas. O tipo de grade, a cor, a integrao com o prdio, etc., so decises importantes para moradores e j so inclusive previstas em projetos
arquitetnicos como mais um elemento das construes. Raro, no entanto -
visto serem reaes individuais a um problema mais amplo- a preocupao com o impacto que o gradeamento tem na cidade, revelando a
ausncia de um pensar coletivo sobre o espao urbano e sua ocupao.
A percepo deste fenmeno me fez questionar se essa reao a um problema
social no poderia ser considerada ela mesma um tipo de interveno urbana
coletiva.1 Neste sentido, essas intervenes tambm no deixam de ser
aes crticas no tecido da cidade, no momento em que o cidado toma para si uma responsabilidade de segurana urbana que seria,
supostamente, um problema pblico. H um enunciado em cada nova grade
que instalada de renncia ou descrdito em uma possibilidade de convivncia social e construo de um senso de comunidade, onde o Outro
entendido como uma ameaa e o que possuo deve ser protegido do que est l
fora, no espao pblico.
A partir desta percepo, foram elaboradas trs aes que de alguma forma
rebatiam o fenmeno do gradeamento, puxando esses assuntos para o terreno
protegido da Bienal. Delas, apenas duas so relevantes para a discusso no
contexto desta dissertao, o vdeo e o objeto. 2
1 No se pretende, ao denominar este fenmeno de interveno urbana, fazer uma equivalncia com o sentido artstico dado expresso, j que intervenes urbanas artsticas colocam-se como possibilidades de aberturas de brechas no que foi normatizado e anestesiado, diferente do gradeamento que j se tornou um hbito. 2 Alm desses, havia uma performance. Por no se enquadrar na presente discusso, optou-se por deix-la de fora.
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O vdeo
Feito em parceria com a artista Tula Agnostopoulus, consistia na edio de
vrias imagens captadas em bairros residenciais de Porto Alegre. Nessa
seqncia foram intercalados frames de tomadas em close-up da inscrio da
palavra inseguro, letra por letra, na superfcie das barras pintadas das grades
das casas. Similar a uma atitude de pixao, esta inscrio era obtida
descascando a tinta. Alternando entre a ao da escrita e o movimento da
cmera que captava a sucesso de grades, o vdeo pretendia apontar para a
instalao das grades como uma forma de enunciao coletiva contundente,
como um discurso do medo e da insegurana que revela o fracasso da justia,
da polcia e da prpria sociedade em lidar com a violncia e com os problemas
sociais que esta representa; e a criao de formas inditas e individualizadas
de discriminao social e segregao espacial. O resultado o endurecimento
metlico do espao pblico, a valorizao da desigualdade e o incentivo ao
preconceito em relao a vrios grupos sociais 3 (ver stills abaixo).
3 Ver Caldeira, Teresa P. Cidade dos Muros. Ed. 34, So Paulo, SP, 2003.
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O objeto
O objeto construdo era todo feito de grades residenciais. Consistia em uma
caixa vazada nas exatas dimenses dos contineres que estavam na cidade
dos contineres (fig. 2 e 3)
Fig. 2
Fig. 3
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O objeto ficava posicionado na borda do Rio Guaba, junto aos outros trabalhos
que aconteciam ao ar livre; e tambm ao lado da cidade dos contineres.
Remetia, pelas suas dimenses, arquitetura dos outros contineres ocupados
pelos artistas; ao mesmo tempo em que fazia um rebatimento do uso de grades
na cidade l fora para a arquitetura da cidade aqui dentro.
interessante como Inseguro se situa em relao aos outros trabalhos de
minha trajetria. De certa forma, seu entorno, entendido como o ambiente
urbano, tambm se deixa vazar para dentro da obra. No entanto, o local que a obra problematiza no coincide com o seu espao de instalao fsica, a rea reservada e protegida da Bienal. Prope uma reflexo sobre a cidade mas
encontra-se recuado da sua atualidade, do local de ocorrncia do problema.
No atua, portanto, na ordem do real, mas procura intervir no prprio
imaginrio, nos modos de representao e no discurso sobre o problema da violncia social, entendidos como o seu site de ao e interveno.
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rea semi-crtica de contaminao
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2003 Exposio Vizinhos, Galeria Vermelho, So Paulo
A obra de Leonilson e sua influncia como um site
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Como elaborado anteriormente, One-te-one (2002) pensava a recepo da
obra e operava a partir do isolamento de uma pessoa para quem era realizado
um trabalho especfico, ou person-specific. Sua escala privada, ntima e
reduzida revelou-se como um interesse na poca, como uma experimentao
do trabalho com especificidade, suas possibilidades e limites. rea semi-crtica
de contaminao (A.S.C.) influenciado por One-te-one na medida em que
uma obra que estabelece um dilogo direto com um outro, gerando assim uma
uma situao relacional passvel de ser entendida como o lugar da obra. Outra
herana importante o entendimento da proposta curatorial como um site,
como no caso de Massa (Havana, 2000).
A exposio
O contexto de A.S.C. o de uma exposio coletiva que acontece na Galeria
Vermelho em 2003, ano do dcimo aniversrio de morte do artista Leonilson.
Esta era uma das mostras que aconteceu na cidade em sua homenagem.
Havia trs curadores envolvidos: Juliana Monachesi, Cau Alves e Paula
Azulgaray. Ao invs de fazer uma exposio de trabalhos do prprio artista, a
inteno era criar um mapeamento possvel da influncia que Leonilson teve em artistas de outras geraes, aqueles que no o conheceram pessoalmente.
Esta situao suscitou uma reflexo sobre contaminao e dilogos entre processos artsticos que ocorrem a partir da produo de artistas muito potentes, como era o caso de Leonilson.
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A obra
A.S.C faz uso de um dispositivo industrializado (fig.1) usado para limpar mos
em restaurantes, saunas, cozinhas e outras reas que so consideradas
reas semi-crticas de contaminao. Esta expresso foi encontrada readymade no material publicitrio do prprio produto
que acabou sendo incorporada como ttulo da obra. A vantagem deste produto
a praticidade na higienizao das mos, j que no utiliza sabonete ou gua,
mas um gel anti-sptico de secagem rpida.
Fig. 1
A forma discreta como foram dispostos, como se estivessem ali cumprindo a
funo mesma de limpadores de mos, ajudou o trabalho a se colar ao
espao e desta forma confundir muitos visitantes que se deparavam com um
limpador de mos, objeto especfico de reas semi-crticas de contaminao,
deslocado para o ambiente de uma galeria de arte.
Quatro destes dispositivos foram
instalados pela galeria em pontos
estratgicos assinalados na planta-baixa
do espao, que tambm foi exposta na
mostra (fig.2). Os dispositivos ficavam
espalhados pelo ambiente, as vezes
misturados aos trabalhos dos outros
artistas, operando em uma espcie de
mimese ao seu entorno (fotos abaixo).
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Fig. 2 Planta-baixa da galeria com pontos assinalados
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Referir-se exposio como uma rea semi-crtica de contaminao pretendia levantar uma reflexo acerca do tipo de influncia que foi recebida de
Leonilson nas obras ali presentes. Poderiam ser consideradas como uma
leitura crtica do trabalho do artista ou corriam o risco de operar como uma
releitura, ou at uma ilustrao, dada a moldura curatorial? O que
caracterizaria uma abordagem crtica da obra de Leonilson? H interesse em
promover um olhar crtico ou o evento se colocava mais como uma celebrao
da sua obra e uma forma de lembr-lo afetivamente?
Leonilson pertenceu ao que se chamou Gerao 801 no Brasil. Este nome
referia-se a um grupo de artistas cuja produo teve como ponto de partida o
contexto carioca e favoreceu o retorno de um estilo de pintura fluda, prazerosa
e da manualidade do fazer artstico, distante da racionalidade dos anos 702.
Embora o pertencimento a esta gerao caracterizasse apenas o incio da
carreira de Leonilson, o artista manteve e aprofundou sua investigao da
linguagem pictrica, utilizando procedimentos que privilegiavam a
manualidade e a incorporao de materiais do artesanato, da costura e da tecelagem, sempre com um alto grau de subjetividade.
de se perguntar quais os aspectos de sua obra seriam atualizveis ou
mapeveis em obras de outros artistas, sem o risco de cair em uma leitura rasa
que priorizasse aspectos formais ou processuais. Ser influenciado por um outro
artista no quer dizer que aspectos de sua obra estejam objetivamente
presentes na minha, por exemplo. A influncia pode ser de uma ordem secreta,
e at mesmo crtica, de negao.
1 Esta expresso fazia parte do ttulo de uma exposio no Parque Lage, Como vai voc, Gerao 80?, no Rio de Janeiro em 1984 que reunia um possvel retrato de uma gerao de artistas dessa poca. O assunto muito mais complexo e no podemos tratar toda a gerao de artistas da poca sob esse prisma. sabido que em So Paulo, por exemplo, o contexto de formao de jovens artistas se dava no mbito acadmico, onde a reflexo crtica se manifestou tambm em produes de obras de arte em vrios suportes, meios e linguagens. Isso contribuia para que a pintura no fosse somente enfocada a partir da pura expresso. 2 Citao de Sandra Magger encontrada em texto sobre a Gerao 80 na enciclopdia virtual do Itacultural. Ver www.itaucultural.org
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A.S.C. problematiza esta questo ao apresentar uma obra que oferece
manualidade zero, a partir do simples deslocamento e instalao de um
dispositivo industrial (readymade) para nas dependncias da Galeria Vermelho.
No somente, a funo do objeto deslocado prope a limpeza das mos de
quem o ativa. A expresso mos limpas no portugus pode adquirir muitas
conotaes. Entre elas est uma iseno de autoria, ou do envolvimento das mos do sujeito em algo que foi feito. Desta forma, realiza-
se uma dupla negao do ato artstico que envolve a manualidade e a
artesania: a primeira se relaciona construo da obra a partir de um objeto
industrializado; a segunda, prpria funo deste objeto.
A renncia qualquer manualidade em A.S.C. pretendia colocar sob suspeita a
relao de influncia mais bvia recebida das obras de Leonilson. A obra
relaciona-se de uma forma oblqua e crtica em relao ao contexto da
exposio. Neste sentido, A.S.C opta por atualizar uma outra caracterstica do
artista Leonilson, nem sempre to celebrada, sua inconformidade (romntica?).
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Revista nmero trs
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2004 Interveno na revista nmero trs, So Paulo.
A revista como um circuito ideolgico, o circuito ideolgico como um site e a
conscincia contextual
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A interveno na revista nmero trs levantou novas questes na minha
abordagem do site. Influenciado pelo meu ingresso no mestrado, que ocorreu
concomitante a essa situao, senti uma preocupao em pensar a minha ao
artstica no somente em relao prpria produo, como vinha fazendo at
ento, mas tambm em relao a um contexto histrico mais amplo, onde pudesse reconhecer filiaes conceituais e histricas.
A revista
Conforme declarado no editorial da prpria revista nmero trs, seu objetivo
promover um local de divulgao de textos sobre arte como alternativa aos j
existentes. A revista, lanada no nicio de 2004, estava ento em sua terceira
edio e se chamava assim Revista Nmero Trs.
Pareceu-me sincrnico que meu interesse em elaborar aspectos mais
discursivos de minha prpria obra, caracterstica do mestrado, coincidisse com
um convite para operar em um meio textual, discursivo, de reflexo terica e
histrica em arte.
Alm disso, este nmero da revista se propunha a investigar justamente as
relaes entre arte e palavra, em suas mltiplas possibilidades: o texto crtico, o de artista, o texto curatorial, o texto como obra,
na obra, e at a relao do artista (e da arte) com a universidade.
Como artista convidado, era esperado que eu fizesse uma interveno nas
suas pginas. A interpretao do que viria a ser uma interveno no era
determinada a priori e, portanto, conferia a minha ao um grau bastante amplo
de liberdade.
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Texto, contexto e conscincia con textual
Meu impulso inicial em relao interveno na revista, como de costume, foi
entend-la como um espao especfico que pudesse ser abordado de um
modo site-specific. Outro interesse, conforme dito anteriormente, era entender
esse tipo de ao a partir de uma perspectiva histrica, ou, buscar um lastro,
ou filiaes histricas, para as aes que tem o con texto como um fator determinante.
Estas motivaes iniciais me remeteram s Inseres em circuitos ideolgicos
da dcada de 1970 de Cildo Meireles1. Este projeto de Cildo envolvia uma srie
de intervenes (ou inseres) em certos mecanismos de circulao definidos
pelo artista como circuitos. Consistia em dois projetos: Coca-cola, no qual o artista imprimia textos subversivos em garrafas de coca-cola e as devolvia
circulao; e Cdula, no qual o artista carimbava textos em notas de dinheiro que tambm eram devolvidas circulao.
A ao de Cildo envolvia o texto no somente como contedo nas inseres propriamente ditas, mas tambm em artigos redigidos e publicados
pelo artista sobre as aes, nos quais tambm considerava revistas e jornais
como circuitos ideolgicos. Interessante notar que Cildo atribui ao prprio texto
escrito a origem dos projetos Cdula e Coca-cola:
O trabalho comeou com um texto que escrevi em abril de 1970 e que coloca
esta situao:
1. Na sociedade existem certos mecanismos de circulao (circuitos).
2. Estes circuitos incorporam claramente a ideologia do produtor, mas ao
mesmo tempo so passivos quando recebem inseres nos seus circuitos.
3. Isto ocorre sempre que algum comea um circuito. 2
2 Meireles, Cildo in Cildo Meireles. Ed. Cosac & Naify, So Paulo, 1999, p. 110.
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Outro fator determinante na sua prtica, presente nas inseres e nos textos
sobre elas, era o con texto do Brasil da poca. Nas palavras do prprio artista, suas aes consideravam as seguintes questes:
1. a dolorosa realidade poltico-social-econmica brasileira, conseqncia em boa parte do
2. American way of politics and culture e sua ideologia (filosofia)
expansionista, intervencionista, hegemnica, centralizadora, sem
perder de vista os
3. aspectos formais da linguagem, ou seja, do ponto de vista da histria da arte, a necessidade de produzir um objeto que
pensasse produtivamente (criticamente, avanando e
aprofundando), entre outras coisas, um dos mais fundamentais e
fascinantes de seus projetos: os readymades de Marcel Duchamp.
As Inseres em Circuitos Ideolgicos explicitavam o primeiro e o
segundo itens acima, e sobretudo enfatizavam as questes de
linguagem contidas no terceiro. 3
A preocupao com a realidade era uma constante nas aes e textos que o artista escreveu na poca. Entendi que esse tipo de preocupao estava
ligado ao que passei a chamar de conscincia contextual. Essa conscincia era algo que tambm se manifestava em outros artistas da poca, no somente no Brasil. interessante notar
tambm que a noo de conscincia estava presente nos escritos de Cildo. O
artista opunha conscincia, como funo da arte, e anestesia, como funo da indstria4.
3 Meireles, Cildo in Cildo Meireles. Ed. Cosac & Naify, So Paulo, 1999. p.108 (grifo meu). 4 Meireles, Cildo in Cildo Meireles. Ed. Cosac & Naify, So Paulo, 1999.
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Realidade e site
justamente em torno da poca de Inseres... que a palavra site-specific
comea a ser usada nos Estados Unidos para definir as obras cujo espao
tivesse um papel ativo. Em escritos de artistas como Robert Smithson era
comum encontrarmos a preocupao com o site de instalao da obra, como fator determinante do trabalho.
Passei a intuir, a partir da, que haveria uma ligao possvel a ser traada
entre o que Cildo chamava de realidade e o que Smithson chamava de site.
A relao no est, claramente, no ndice a que essas palavras se referem,
mas sim na forma como se constitui o lugar da ao do artista e como ele determina a obra.
Perceber a conscincia contextual em Cildo me fez questionar o prprio uso
da palavra site-specific para denominar a forma como eu vinha trabalhando at
ento. Ou melhor, buscar a filiao para as minhas aes artsticas (sempre
preocupadas com o seu contexto de atuao) nas prticas site-specific e na
sua histria comeou a gerar um estranhamento no momento em que percebi que poderia haver um tipo de pulso para a especificidade que fosse parte do prprio contexto brasileiro.
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Cildo e C.M.
Outro aspecto que me chamou a ateno nas Inseres... de Cildo Meireles
foi a forma como assinava os seus trabalhos da poca, com as suas iniciais
C.M.. Esta estratgia de um relativo ocultamento do autor tinha mltiplas
motivaes. A primeira delas era uma busca de proteo e anonimato do
artista por estar fazendo um tipo de crtica social e poltica que poderia lhe
gerar problemas num perodo de ditadura militar com uma censura rgida.
Outra motivao era o prprio rebaixamento da figura do autor e do artista no intuito de valorizar a figura do leitor/participador da sua obra, j que suas aes convidavam o espectador a tomar uma atitude participativa frente ao trabalho.
Foi na poca em que planejava a interveno na Revista Nmero que visitei a
exposio Panorama da Arte Brasileira, 2003, realizada no MAM-S
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