livro vale do paraíba - saúde e sociedade
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N.Cham 981.56 B462v
Autor: Bertolli Filho, Cláudio
Título: V ale do Paraíba : saúc
27521 Ac. 35484
N° Pat.:27521
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Cláudio Bertolli Filho
VALE DO PARAÍBA
SAÚDE E SOCIEDADE(1750-1822)
I D m o W d D f l DUNIVERSIDADE DO VALE DO PARAÍBA
São José dos Campos - SP
P P l V D BlSLiüTECÂ
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PALAVRA DO REITOR
É nossa intenção incentivar a autoria de livros produzidos pelos
nossos professores. Esta é uma atividade que requer grande dedicação,
pois, para isto, é necessário ordenar conhecimentos, pesquisar e anotar
resultados, para finalmente transformá-los no texto que irá compor o li
vro.O espírito da UNIVAP lá estará, de algum modo, presente, pois o
texto é o resultado do pensamento de um mestre em plena atividade inte
lectual e será sempre um elemento de melhoria da docência.
As atividades de ensino, quando alicerçadas em trabalhos de Pes
quisa, Desenvolvimento e Extensão, ganham sempre novas dimensões, e
o resultado só pode ser benéfico para os alunos que convivem com os
professores, que não são apenas meros recitadores de experiências alheias.
Baptista Gargione Filho, Prof Dr. Reitor da UNIVAP
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INTRODUÇÃO
A historiografia sobre o período colonial brasileiro e especialmente
sobre o Vale do Paraíba é marcada por comprometedoras lacunas. Den
tre os espaços nebulosos ainda pouco visitados pelos pesquisadores des
taca-se o processo saúde-enfennidade específico dos grupos que perso
nificaram a conquista e colonização da América Portuguesa.O estudioso que pretenda focar o perfil epidemiológico da popula
ção colonial do norte da Capitania de São Paulo dispõe de raras e muitas
vezes ambíguas informações. O motivo de reiteradas contradições - que
chegam a desnortear o historiador - certamente reside no confronto entre
distintas percepções sobre o ambiente brasileiro referente aos séculos
iniciais do passado nacional. Alguns visitantes exaltavam a benignidadedo clima e a salubridade dos ares e das águas e, em continuidade, pontu
avam garantias para a boa saúde das populações antigas e recém-chega
das. Outros, pelo contrário, denunciavam o terrível calor dos trópicos e a
degeneração imposta aos seus habitantes, alinhando a multiplicidade de
doenças que abatiam os indígenas e os estrangeiros, reservando a morte
para muitos e o infortúnio para todos.Entre uma e outra versão, também no Vale organizava-se a imagística
tematizada pelo Novo Mundo. Uma nova realidade que agitava as per
cepções européias interessadas não só em desvendar os segredos do
espaço geográfico situado “serra acima”, que paulatinamente tentava se
integrar ao circuito internacional de trânsito de homens e mercadorias,
mas também porque no Vale, refletindo as condicionantes gerais da América, existiam infinitas novidades: elaborações culturais próprias, organi
zações sociais surpreendentes e formas de vida animal e vegetal totalmen
te desconhecidas pelos conquistadores.
Neste processo, encontraram-se no território banhado pelo rio
Paraíba grupos humanos diversificados. O contato muitas vezes próximo
entre brancos, negros e índios favoreceu a gestação de sincretismos cul
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turais e também a disseminação de patologias pouco ou totalmente des
conhecidas por um ou outro agrupamento colonial, resultando em nova e
mortífera realidade sanitária.Como contribuição ao tema, esta pesquisa enfoca a fase derradeira
do período colonial 110 Vale do Paraíba, tecendo-se considerações tam
bém sobre os habitantes do Planalto de Piratininga e da região litorânea.
O espaço temporal estudado tem como baliza inicial os meados do século
XVIII, período marcado pelo incremento das ações oficiais que visavam
preservar a saúde da população, no contexto da recuperação econômicalocal. Como baliza final, considerou-se a época próxima à proclamação
da independência do Brasil, quando ocorreu a institucionalização da vaci
na jenneriana, um dos principais dispositivos empregados para inibir a
ocorrência das sempre devastadoras epidemias de varíola. Vale acres
centar que, no contexto deste estudo, entende-se por Vale do Paraíba
não só o espaço geográfico caracterizado pelo rio do mesmo nome, mastambém a área vizinha do litoral norte. Esta opção deve-se sobretudo à
dependência vale-paraibana em relação à marina, condição que se confi
gurou desde o início da colonização regional, devido a contínua utilização
dos “caminhos do mar” representados pelas trilhas abertas pelos indíge
nas no período pré-cabralino e que, a partir dos séculos XVI e XVII
serviram para conduzir ao litoral os viajantes que partiam das cercaniasde Taubaté ou da aldeia jesuítica de São Jo sé .
A opção pelo uso concomitante de informações médico-sanitárias
diretamente pertinentes ao Vale do Paraíba e de outras áreas paulistas
deve-se sobretudo à escassez de informações sobre a parte norte da
Capitania. Além disto, sabe-se que as decisões administrativas tomadas
na vila e posteriormente cidade de São Paulo funcionavam como modeloobrigatoriamente seguido por outros núcleos urbanos paulistas, inclusive
os posicionados no Vale. Advoga-se ainda que os fenômenos de ordem
sanitária regional apresentam-se interligados às condições higiênicas de
territórios amplos, sendo necessário vincular-se a problemática represen
tada pela saúde coletiva do Vale do Paraíba com as questões produzidas
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pelas demais áreas ocupadas pelos colonizadores, no âmbito da Capita
nia de São Paulo.Este texto é produto parcial do empenho do autor em focar alguns
temas ainda pouco explorados pelos pesquisadores locais, fato que se
tornou um compromisso maior quando assumiu a responsabilidade pela
recém-criada disciplina História Regional, ministrada aos alunos do Cur
so de História do Instituto de Ciências Humanas da Universidade do Vale
do Paraíba. Cabe ressaltar também que este texto constitui-se em umaderivação de uma pesquisa anterior e mais ampla, que foi patrocinada
pelo programa de apoio à pesquisa mantido pelos órgãos dirigentes das
Faculdades Metropolitanas Unidas, Faculdades Integradas Alcântara
Machado e Faculdade de Artes Alcântara Machado, sediadas na cidade
de São Paulo.
No âmbito da Universidade do Vale do Paraíba, devo agradecerao querido professor Álvaro Ferreira Gomes que há anos tem me instiga
do a estudar a história regional, assim como oferecido as orientações ne
cessárias para a publicação das minhas pesquisas. Este texto é a ele dedi
cado.
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OS PARÂMETROS CONCEITUAIS
O estudo do pretérito sanitário de um agrupamento humano tãcdiversificado como a população colonial paulista impõe desafios em série.Além da escassez de informações e da terminologia médica e burocrática
própria do período, outra questão que aflora refere-se à complexidadedas variáveis que propiciam o adoecimento individual e coletivo. Isto por
que pensa-se a saúde e a enfermidade como resultado de um processoonde o micróbio ou as (dis)funções fisiológicas são, por óbvio, necessárias mas não suficientes para explicar a ocorrência das doenças e dos doentes. A concatenação de um olhar que ao mesmo tempo pretende aproximar
biológico e o histórico-social define-se como estratégia adotada neste estudo,desdobrando-se na recorrência a um campo conceituai específico1.
Fala-se, primeiramente, que o encontro de agrupamentos tão diferenciados quanto o indígena, o branco europeu e o negro favoreceutroca de informações biológicas, fenômeno que tem sido denominado comounificação microbiana do mundo. Este termo, cunhado pelo historiadorLe Roy Ladurie, sugere que o processo de conquista e ocupação do Novo Mundo constituiu-se enquanto momento traumático, onde a pre
sença européia e africana resultou na imposição de novas e mortais enfer midades à população autóctone da América. Enfermidades como varíola,gripe, tuberculose, caxumba, coqueluche, sarampo, dentre tantas outras,resultaram em períodos de mortandade que dizimaram várias tribos litorâneas, inclusive os agrupamentos tupinambás que peregrinavam pelo Valedo Paraíba e pelo litoral norte da Capitania de São Vicente2. A morte emmassa de indígenas pelas doenças importadas, mais do que pelas armas eos maus tratos foi, portanto, o principal fator que viabilizou o triunfo da
1 - O campo conceituai aqui esboçado está discutido mais detalhadamente em: B ertolli Filho,
Cláudio - “História social da enfermidade e dos enfermos: problemas e perspectivas”. Anais
do XV II Simpósio Nacional da Associação N acional de Professores Universitários de H istó
ria, no prelo.
2- - Le Roy Ladurie, Emm anuel - Le Territoire de L'Historien. Paris, Gallimard, 1978, vol. 1,
p.37-57 e Monteiro, John Manoel - Negros da Terra. São Paulo, Companhia das Letras,1994, especialm ente capítu los 1 e 2.
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colonização e também da desorganização das estruturas tribais.A baixíssima resistência dos silvícolas frente às moléstias trazidas
pelos colonizadores deve-se sobretudo ao fato de a população pré-cabralina ter mantido incomunicabilidade por milhares de anos com re presentantes das sociedades de outros continentes, permitindo a elaboração de resistências biológicas específicas. Se até o início da colonizaçãoos indígenas padeciam de enfermidades pouco fatais, como as pertinentesao trato respiratório e também infecções cutâneas e parasitoses intestinais, a presença do colonizador definiu os indígenas como um virgin soil,
onde doenças corriqueiras entre os conquistadores surtiram efeitos desastrosos, resultando em sucessivas e fatais quadras epidêmicas3.
Quanto ao negro e ao branco, os contatos ocorridos desde a pré-história determinaram que, na aurora do mundo moderno, estas raças
partilhassem de uma experiência com pontos comuns em relação às doenças. Apesar disto, em cada um dos continentes prevaleciam patologias
específicas como problemas sanitários de maior envergadura. Assim, enquanto na Europa chamava a atenção a peste bubônica, as infecções tíficase a tuberculose, na África as doenças que mais cobravam vidas eram afebre amarela, a malária, a varíola e a hanseníase4.
O encontro dos três grupos humanos permitiu uma estranha espécie de troca, onde todos passaram a vivenciar uma experiênciaepidemiológica comum, compondo um dos momentos cruciais da história
colonial brasileira. O contato intenso entre índios, brancos e negros tendeu, no decorrer dos séculos, a propiciar uma certa estabilidadeepidemiológica, representada sobretudo pelo declínio das mortes entreos autóctones. O surgimento de uma população mameluca e a adaptação
biológica dos descendentes dos indígenas que sobreviveram aos primeiros contatos permitiram a elaboração de um novo equilíbrio epidemiológicoque no Planalto de Piratininga e no Vale do Paraíba possivelmente já impera
3’- Crosby, Alfred W. - The Columbian Exchange. Westport, Greenwood, 1977, p.35-63. Uma
lista das principais epidemias que abateram sobretudo a população indígena das costas brasilei
ras encontra-se em: Moll, Aristides - Aescula pius in Latin America. Philadelphia, W.B.
Saunders & Co., 1944, p.500-519.
4 - Triana y Antorveza, Humberto - “Salud y esclavitud”. Universitas Hurnanistica 18(30):39-
65, Enero-Junio de 1989 e Sendrail, Mareei - Histoire Culturelle de la Maladie. Toulouse,
Privat, 1980, especialmente p.211-250.
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va no encerramento do século XVII, mesmo que novas epidemias viessem a alterar o cotidiano da Capitania. Neste mesmo período, vale acrescentar, a população indígena desta região foi estimada em um terço da
quela que existia no momento da chegada dos colonizadores5.Claro está que as culturas grupais, as concepções formadas acerca
das entidades mórbidas, a organização social e a alimentação tambémsão fatores relevantes para a explicação do adoecimento e da morte. Emconseqüência, a análise da saúde e da enfermidade a nível histórico-soci-ológico exige a aproximação de conceitos e enfoques diversificados. O
entendimento do perfil epidemiológico de São Paulo colonial impõe assimo estudo das grandes estruturas da sociedade, a inserção dos grupos nos
processos de conquista e ocupação do espaço e a análise das relaçõessociais engendradas no processo de constituição da nova sociedade americana.
De qualquer forma, toma-se importante destacar que as doenças
constituem-se, antes de mais nada. em entidades de caráter biológico. Tal advertência se faz necessária porque uma vasta parcela da historiografia brasileira recente voltou-se para o tema, seguindo o comprometedor ecaricatural viés de focar a ocorrência das patologias como “objetos” definidos exclusivamente pelas condicionantes sociais. Ao mesmo tempo,não deve ser esquecido o fato de que a intervenção oficial nas condiçõesde saúde da população constitui-se em um ato político e que tem visadoatingir múltiplos fins, sendo um deles a melhoria das condições de vidados agrupamentos humanos. Nesta perspectiva, postula-se também queas ações em saúde comportam um sentido normatizador do tecido coletivo, sendo acompanhado de medidas governamentais de controle e modernização dos comportamentos sociais6.
O quadro de referência que instruiu este texto não estaria minima
mente completo se não se tecesse algumas considerações acerca da
5 - Holanda, Sérgio Buarque de - “Movimento de população em São Paulo no século XV III”.
Rev ista do Institu to de Estudos Brasileiros 1(1966):83-84.
6' - Bertolli Filho, Cláudio - História Social da Tuberculose e do Tuberculoso: 1900-1950. São
Paulo, Tese de doutorado apresentada à FFLCH da Universidade de São Paulo, 1993, vol. I ,
p. 37-51
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historiografia relativa ao momento estudado. O período colonial
contextualizado pela Capitania de São Paulo tem sido, de regra, aborda
do a partir de uma perspectiva que, declaradamente ou não, incorpora a
mitologia organizada acerca dos bandeirantes. Inevitavelmente o estudioso que envereda pelo tema tende a reproduzir o arquétipo que localiza os
paulistas coloniais como membros de uma “raça de gigantes”, pouco ou
mesmo nada vulneráveis física e psicologicamente aos desafios e armadi
lhas acumuladas no “sertão incógnito". Os clássicos estudos elaborados
por Afonso de Taunay e Alfredo Ellis Júnior - a maior parte deles escritos
há mais de meio século - continuam a ser matrizes reproduzidas sob a
ótica idealizadora dos principais personagens dos primeiros séculos da
história da Capitania7.
Fugindo da tendência ufanista, aproximamo-nos da proposta
esboçada por Sérgio Buarque de Holanda, buscando retraçar as condi
ções materiais de vida e a problemática social marcada pela pobreza epela marginalização imposta pela administração colonial à terra paulista8.
Neste encaminhamento, a imagem aqui nutrida sobre os bandeirantes é a
de um conjunto de homens que tentavam lutar contra a miséria esforçan-
do-se para se impor ao meio-ambiente e aos demais grupos humanos
localizados na “capitania do sul”. Seus sucessores, que moravam na re
gião nas últimas décadas do século XVIII, mantinham o mesmo compromisso, diferenciando-se culturalmente dos negros e dos indígenas, mas
em nenhum momento mostrando-se superiores a estes, como querem os
pesquisadores mais tradicionalistas. Neste sentido, o estudo das suas en
fermidades e as reações coletivas frente aos males físicos pode ser enten
dido como mais um esforço de revisão das interpretações fabricadas por
variados historiadores e que ainda sobrevivem nos dias atuais.
7 - Veja-se, por exemplo: Taunay, Afonso de E. - História Geral das Bandeiras Paulistas. São
Paulo, Tip. Ideal H.L. Canton/Imprensa Oficial do Estado, 1924-1950 e Ellis Junior, Alfredo
- O Bandeirantismo e o Recuo do Meridiano. São Paulo, Typ. Paulista, s.d..
8 - As idéias de Sérgio Buarque de Holanda assumidas neste texto encontram -se nos seguintes
livros do autor: - Caminhos e Fronteiras. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957 e - Monções.
2a ed., São Paulo, Alfa-Omega, 1976.
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A TENTATIVA DE SUPERAÇÃO DA POBREZA
A primeira metade do século XVIII representou para a Capitania
de São Paulo um período de decadência. Sangrada de braços que parti
ram para o território do “além-Mantiqueira” à procura de ouro, restou à
Capitania ocupar uma posição extremamente secundária no contexto co
lonial, como fornecedora de uma quantidade relativamente pequena de
gêneros dé subsistência para as regiões auríferas. A baixa lucratividadeda agricultura paulista contrastava com as riquezas produzidas nas lavras
mineiras e, por isto, a pobreza bandeirante parecia ganhar uma dimensão
ainda mais desalentadora. Nesta época tudo faltava aos paulistas: itens de
exportação, produtos manufaturados, caminhos conservados, escravos e
ânimo. Em 1748, já despojada de muito do seu território original, São
Paulo perdeu até mesmo sua autonomia, subordinando-se à administra
ção do Rio de Janeiro.
Quando em 1765 ocorreu o restabelecimento da Capitania de São
Paulo, o governador e capitão-general designado para a área, D. Luís
Antonio de Sousa Botelho Mourão, impressionou-se com a pobreza e
apatia que imperavam entre a gente bandeirante: povoados arruinados,homens dispersos, famílias ilegítimas e economia de subsistência coadu
navam-se com a “preguiça”, a qual se transformaria na principal marca da
população paulista até o final do século XVIII.
Certamente surpreso com as transformações do povo bandeirante,
outrora empreendedor e orgulhoso, o Morgado de Mateus (nome pelo
qual o governador exigia ser chamado) informou que, à exceção dos pequenos comerciantes de panos, sedas e miudezas e também dos negociantes de animais de Curitiba e Viamão, “tudo o mais vive mizeravelmente”.
Ao mesmo tempo condoído e desalentado, o governador registrou o modo
de vida característico de muitos descendentes dos colonizadores euro
peus. Após peregrinar inclusive pela região vale-paraibana, Sousa Botelho
documentou o que vira:
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defrontava-se com obstáculos à primeira vista intransponíveis, tais comoa ausência de capitais e a escassez de escravos africanos. Mais ainda, em1788 um observador real informou que tanto os indígenas recolhidos nos
aldeamentos quanto os mamelucos, tendo o que comer, não se preocu pavam em trabalhar, ao mesmo tempo que um lavrador branco empenha-va-se em labutar apenas dois ou três meses no período de um ano.
O mesmo analista concluiu, referindo-se implicitamente ao Vale doParaíba:
“Na marina toda e em algumas vilas de Serra-acima todos
os gêneros podem exportar-se e nas que são mais distantes há alguns gêneros que têm fá cil extração para muitas partes e que se não exportam pela falta que há, v. g., o anil, o café, o algodão, quer seja em rama, quer em pano, e ainda toucinhos, que tudo tem exportação para as capitanias vizinhas e alguns para a Europa. Em uma palavra, não éfacil supor-se a existência de um país onde se deva vadiar pela razão que os gêneros
superabundam ”'°
Paulatinamente, entretanto, a agricultura canavieira passou a ganhar os espaços paulistas. Tímidos primeiro, depois mais rapidamente, oscanaviais se constituíram em cenários corriqueiros no litoral norte da capitania e também na “serra acima”, ao longo do caminho de ligação entre acapital dos paulistas e o Rio de Janeiro, já despontando igualmente noquadrilátero que tinha como vértices as vilas de Sorocaba, Piracicaba,Mogi Guaçú e Jundiaí.
Mesmo que considerado de baixa qualidade, o açúcar bandeirantenão só passou a abastecer integralmente a Capitania como também originou excedentes cada vez mais significativos, destinados à exportação. Neste processo, uma parcela dos homens até então dispersos tendeu a se
aglutinar nas unidades produtoras de açúcar, assim como a Capitania assistiu a chegada de expressivo contingente de colonos que haviam abandonado as áreas de economias em crise, nas minas e no nordeste.
A dificuldade enfrentada pelos grandes proprietários em empregara mão-de-obra indígena na lavoura e também a pouca recorrência ao
10 - Rendon, José Arouche de Toledo - “Reflexões sobre o estado em que se acha a agricultura da
capitania de S. Paulo (1788)”. In: - Obras. São Paulo, Governo do Estado, 1978, p.2-3.
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emprego da força de trabalho de homens livres e pobres exigiu - segundoas premissas do capitalismo do tempo - a utilização da mão-de-obra escrava negra. Seguindo esta tendência, São Paulo recebeu um número de
cativos até então nunca registrado em sua história. Os primeiros lucros provenientes do novo comércio viabilizaram a aquisição tanto legal quanto ilegal de negros, inclusive devido ao barateamento do preço do escravo no mercado interno.
Neste momento cabe a questão: de onde vieram estes escravos'? Ainexistência de fontes documentais sobre a exata procedência dos negros permite supor que eles eram oriundos sobretudo das áreas da colônia
abaladas pela crise econômica. Mesmo assim, sabe-se que no transcorrer do período analisado os engenhos paulistas acolheram cativos de origens diversas, tanto boçais quanto crioulos, isto é, negros provenientesda África e escravos nascidos no Brasil. Consultando fontes documentaisdatadas do início do século XIX, a historiadora Schorer Petrone informaque era forte o predomínio de boçais sobre a totalidade de negros com
prados pelos paulistas. Este fato sugere a inversão da tendência inicial eainda o aumento da lucratividade da cultura canavieira, fato que possibilitou a importação de escravos diretamente da África11.
A capitania povoava-se em conseqüência da dinamização econômica. Não obstante os raros e sempre imprecisos dados censitários acre-dita-se que, durante o terceiro quartel do século XVIII, a população paulista aumentou rapidamente, compondo-se de 52.611 pessoas, inclu
sive 38.460 escravos. Em 1815o contingente demográfico da Capitaniacontinuou a crescer, atingindo a cifra de 215.730 almas, sendo que 51.272foram registrados na condição de trabalhadores compulsórios12. Os dados quantitativos sobre o Vale do Paraíba são raros para o período, havendo confiabilidade das informações somente para o ano de 1836 quando viviam na região aproximadamente 95.406 indivíduos, sendo que des
tes, 26.990 foram computados enquanto contingente escravizado13.". - Petrone, Maria Thereza Schorer - A Lavoura Canavieira em São Paulo. São Paulo, Difel,
1968, p. 117.
12. - Bastide, Roger e Fernandes, Florestan - Brancos e Negros em São Paulo. 3a ed., São Paulo,
Ed. Nacional, 1971, p.32 e 40.
- Camargo, José Francisco de - Crescimento da População no Estado de São Paulo e seus
Aspectos Econômicos. 2a ed., São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade
de São Paulo, 1981, vol. 2, p. 11.
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O incremento demográfico ocorrido no decorrer do período focado
originou novos problemas para a Capitania, especialmente na cidade de
São Paulo. Mesmo que a população da capital tenha sofrido pouca modificação em meio século - contada em 20.873 pessoas no ano de 1765 e
25.486 habitantes em 1816 - durante este período os paulistanos defron-
taram-se com a escassez de alimentos, situação com fortes implicações
no perfil epidemiológico local. Isto porque os principais distribuidores de
gêneros alimentícios para a cidade eram ambulantes negros escravos, cai
piras e alguns indígenas. Os altos preços pedidos pelas mercadorias, osexcessivos impostos cobrados pela vereança e ainda os protestos dos
negociantes estabelecidos, em alguns momentos impediram o comércio
ambulante, o qual era responsável pelo fornecimento de alimentos em
pequena quantidade, freqüentemente vendidos a crédito, à população
mais pobre. A interrupção periódica das atividades destes pequenos co
merciantes resultava assim em severas crises de abastecimento, repercu
tindo também no Vale do Paraíba, uma das áreas que tradicionalmente
fornecia gêneros alimentícios para os paulistanos14.
Neste breve apanhado histórico da Capitania de São Paulo confi-
gura-se a existência de tipos sociais distintos, muitas vezes fugidios para
uma análise voltada para o padrão de saúde e doença regional. A população indígena, após dois séculos de convívio com o colonizador europeu
estava praticamente ausente dos núcleos urbanos e das fazendas
açucareiras. Eram relativamente diminutos os agrupamentos indígenas que
mantinham contato com os brancos, vivendo de pequenos e esporádicos
serviços prestados aos colonizadores. Grupos indígenas mais significati
vos sobreviviam internados nos sertões que só seriam desbravados nofinal do século XIX, mantendo pouco ou nenhum contato com os bran
cos, evitando uma aproximação que invariavelmente revelava-se uma ex
periência traumática, pois letal para a cultura e mesmo para a sobrevivên
cia física das tribos.
14 - Bertolli Filho, Cláudio - Os Trabalhadores Ambulantes na Cidade de São Paulo. São Paulo,Prefeitura Municipal, 1989, p.5-7.
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Quanto à população branca, além de uns poucos potentados e seuscriados, a maior parte dos homens livres e sem posses encontrava-se
dispersa pelos sertões, configurando aquele grupo que no século XIX
viria a ser chamado de caipira paulista. Com poucas chances de trabalhono mundo urbano ou nos engenhos de açúcar estes homens, muitos deles
guardando traços mamelucos, eram marginalizados e viviam de uma exí
gua cultura de subsistência, da caça e da pesca, mantendo eventuais contatos com as vilas e com os agrupamentos indígenas.
Por fim existiam os negros escravizados, transferidos da África oude outros núcleos coloniais para na terra dos bandeirantes viverem e tra balharem em condições subumanas. Através da exploração de sua força
de trabalho, esperava-se a obtenção da almejada riqueza da Capitania.
Três raças distintas que encontravam diferentes caminhos de
integração na sociedade colonial, assim como possibilidades distintas de
viver, enfermar e morrer.
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AS MOLÉSTIAS DO COTIDIANO
Nos meados do século XVIII já estavam esquecidas as inúmerasdeclarações dos primeiros visitantes da América Portuguesa que louva
ram a salubridade do Novo Mundo. As dificuldades deparadas na con
quista e colonização, a unificação microbiana e a espoliação física dosescravos determinavam um cotidiano marcado sobretudo pela
multiplicidade das doenças que a todos importunavam. Neste contexto, aanálise do perfil epidemiológico paulista impõe, antes de tudo, o conheci
mento dos pequenos e dos grandes males do povo, vasculhando o dia-a-
dia dos grupos humanos instalados na Capitania.
Apesar das trágicas dimensões que marcavam o problema sanitá
rio, o convívio permanente com as enfermidades parece que criou uma
espécie de apatia da administração pública acerca do fenômeno. A documentação de cunho oficial raramente interessou-se em discutir os males
corriqueiros da Capitania, contrastando com o que acontecia nos mo
mentos epidêmicos. Informações mais detalhadas sobre o estado sanitá
rio da população são encontradas quase que exclusivamente nos relatos
dos viajantes, sobretudo de autoria dos estrangeiros que transitavam pe
los núcleos populacionais paulistas. Via de regra estes peregrinos ficavam impressionados com a profusão de doenças, salientando as pato
logias que grassavam nos diversos grupos humanos e as possibilida
des de tratamento e cura. No final de cada um dos depoimentos,
aflorava uma posição comum: os paulistas compunham uma popula
ção enferma.
Em conformidade com os pressupostos da epidemiologia social,defensora da idéia de existência de um perfil epidemiológico específico
para cada forma coletiva de inserção em uma sociedade, a presente aná
lise buscou recuperar informações sobre as doenças que maior
expressividade ganharam no interior de cada segmento da sociedade co
lonial paulista.
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A população autóctone
Poucas são as informações disponíveis sobre o estado de saúdedos agrupamentos indígenas sediados nas proximidades dos núcleos co
loniais paulistas. Se no início do contato com os colonizadores as doençasdos índios eram “leves e fáceis de curar”, no período focado a realidadeera bem outra15. Isto porque desde o século XVI os agrupamentos indígenas foram sendo reduzidos numericamente, quer pelas significativas
baixas durante os confrontos armados com os brancos e com as tribosrivais, quer pelas mortes provocadas pelo extenuante trabalho compulsó
rio nas fazendas. Mais do que estes fatores, as doenças de caráter infecto-contagioso continuavam a devastar os grupos que, pouco a pouco, iam
cedendo espaço frente ao avanço dos colonizadores.
Por tudo isso, em meados do século XVIII os agrupamentos indígenas presentes no Vale do Paraíba eram reduzidos em número de mem
bros. Se razoavelmente bem alimentados, estes silvícolas padeciam so bretudo da sífilis disseminada pelos ocupantes brancos, mamelucos e negros e também do uso imoderado de bebidas alcoólicas. Dizimadas e
marginalizadas, as populações autóctones remanescentes continuaram a
ser arruinadas, de maneira mais sutil e morosa, mas não menos trágica.Refletindo as condições de saúde desta população, em 1817 dois naturalistas germânicos em viagem pela Capitania descreveram os Guaianazes,
índios catequizados do Vale do Paraíba, como marcados pela “degenera-
ção moral” , pela “lenta decadência do corpo e do semblante”, enfim, pela “fealdade”16.
Mesmo os Puris, descendentes dos indígenas que migraram da região vale-paraibana para o sertão mineiro no decorrer dos séculos XVII
e X V m , mostravam-se vulneráveis às doenças exterminadoras, situação
que parecia ser bem aceita pelos aventureiros do ouro. Em 1814, o natu
’5. - — Diálogos das Grandezas do Brasil. São Paulo, Melhoramentos, 1977, p. 95.
I6. - Spix e Martius - Viagem pelo Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1981, Vol.
1, p. 130-131.
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ralista Georg Freireyss partiu da Rússia para conhecer o Brasil.Excursionando por Minas Gerais, ele visitou um povoado situado na vizinhança de um acampamento de “bugres”, colhendo o seguinte relato de
um militar branco que prestava serviço na região:
“Os habitantes de Santana também não mostravam grande amizade a estes pobres índios porque, numa de suas conversas, o comandante nos contou que o diretor dos índios já tinha amansado 500 Puris e os domiciliado em lugares determinados, fazendo-os acabar com todas hostilidades contra os portugueses e seus amigos; mas acrescentou, com uma risada diabólica, que se devia levar-lhes a varíola para acabar com eles de uma só vez, porque a varíola é a doença mais terrível para essa gente... ”'7.
A população de origem européia
Não muito distante da descrição dos indígenas estavam os caipiras,descendentes dos primeiros colonizadores brancos e freqüentementemiscigenados com os indígenas da terra. Vivendo sob condições muitas
vezes semelhantes às dos índios, eles foram retratados pelo viajante francês Saint-Hilaire como extremamente magros, parecendo abobalhados eestúpidos e com filhos invariavelmente doentios, tristes e apáticos. Tudoisto somado ao diagnóstico de “preguiça”, conseqüência inexorável dacombinação da pobreza paulista com doenças parasitárias18.
Ao ingressar nos núcleos urbanos, os viajantes identificavam na população residente os mesmos sinais de “moleza”, “cretinice” e “estupidez”. Isto porque a miséria aproximava os citadinos daqueles que viviamembrenhados no sertão. Nas cidades, vilas e povoados somavam-se osfatores agravantes da saúde, determinando um perfil epidemiológico ain
l7. - Freireyss, G.W. - Viagem ao Interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP,
1982, p. 78.
Ia-- Saint-Hilaire, Auguste - Viagem à Província de São Paulo. São Paulo, Martins, s.d., p.96.
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da mais crítico que aquele predominante entre os caipiras.Um dos principais elementos predisponentes às doenças era a qua
lidade da água ingerida pelos habitantes dos centros mais povoados. Na
capital dos paulistas, em 1773 a Câmara Municipal mandou fazer a avaliação das águas do rio Tamanduateí - uma das principais fontes de abastecimento da cidade - concluindo ser o líquido de péssima qualidade;quinze anos depois, um outro observador assinalava que as águas utilizadas em muitas paragens da Capitania produziam variados males pois “sãotão corruptas que têm, no copo, a mesma cor de água do chá preto”19.
A ingestão de água de qualidade comprometida certamente propiciava aos seus consumidores uma grande quantidade de enfermidades decunho disentérico e também verminoses, causadoras de anemia ferropriva.Os registros sobre a “fraqueza” e a “preguiça” dos paulistas e ainda oventre avantajado das crianças sugerem o alto grau do parasitismo queminava a energia da população.
Quanto à alimentação propriamente dita, apesar das crises periódi
cas de abastecimento nos principais núcleos urbanos, pode-se afirmarque os paulistas se alimentavam mal, mas nunca chegaram a enfrentarepidemias de fome20. Em geral, predominava na dieta bandeirante o milhoe a mandioca, produtos ricos em carboidratos, mas pobres em proteínas.Em conseqüência, presume-se a ocorrência de fomes específicas que atingiam principalmente os grupos mais pobres da população das vilas e dascidades. O complemento da dieta mediante a ingestão de carnes de origem bovina e suína e de peixes tornava-se quase impossível em algunscentros urbanos, quer pelo elevado preço destes produtos, quer pelosimpecílios encontrados pelos homens para interromper suas atividadescotidianas e se dedicarem à caça e à pesca21.
Colaborando com as carências nutricionais dos paulistas, durantetodo o transcorrer do século XVIII a Capitania foi marcada pela dificul
dade de obtenção do sal doméstico. O assunto foi tratado por pratica19 - São Paulo, Cidade - Aclas da Camara Municipal (doravante ACMSP), vol. 16, p. 205-207
e Rendon, J.A.T. - Op. c it., p. 13.
20 - Zemella, Mafalda - O Abastecimento da Capitania das M inas G erais no Século XVIII. São
Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1951,
P 51.
21 - Lisanti, Luís - “Sur la nourriture des ‘Paulistes’ entre XVIIIe. et XIXe. siècles” . Annales
18(3):521-531, Mai-Juin 1963.
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mente todos os governadores do período, temerosos com as revoltas
populares que se multiplicavam em São Paulo devido à escassez da pre
ciosa mercadoria. No entanto, nenhum administrador conseguiu normali
zar a distribuição do sal, inclusive porque o comércio deste item era monopolizado pela coroa lusitana.
A ausência de cloreto de sódio na alimentação dos paulistas tinha
como conseqüência uma série de disfunções fisiológicas. Isto porque osal de cozinha tem como principal função no organismo a elaboração de
ácidos componentes do suco gástrico, fenômeno que garante o processo
digestivo independentemente da ação das bactérias. Além disto, o cloretode sódio atua na regularização osmótica das células e do sangue, exer
cendo papel privilegiado na realização do trabalho muscular e ainda no
funcionamento da glândula tireóide. Assim, desprovidos do necessário
sal, os paulistas padeciam com a perda do apetite, fadiga, náuseas e in
tensas cãibras musculares.
Motivada pelas indisposições causadas pela carência do precioso
sal, a vila de Jacareí insurgiu-se contra a coroa. No ano de 1710, partiu
de lá um pequeno exército composto por 300 vale-paraibanos que rumou
para a vila de Santos, onde procedeu-se ao ataque de um depósito régio
abarrotado de sal. O comportamento dos insurretos teve como resposta
a pronta mobilização da infantaria vicentina, que viu-se na contingência dedeclarar guerra aos amotinados. De posse do suprimento de sal, a tropa
comandada pelo bandeirante Bartolomeu Fernandes de Faria demoliu
pontes e bloqueou caminhos para deter a força repressora, deslocando-
se do litoral para a serra de Paranapiacaba e deste ponto para o Vale do
Paraíba. Durante anos a vila de Jacareí transformou-se em uma espécie
de fortaleza, expulsando à bala as tropas governamentais que tinham amissão de aprisionar o líder da “revolta do sal”. Somente no ano de 1719,quando Fernandes de Faria retirou-se do Vale do Paráiba, estabelecendo
residência em Itanhaém, é que foi possível a sua prisão, sendo imediata
mente deportado para a capital baiana, onde faleceu pouco depois, vítima
de enfermidades e maus tratos. A repressão oficial, mesmo que tardia,
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coagiu os vale-paraibanos a buscarem novas alternativas de abastecimento do produto, o qual passou a ser adquirido diretamente do Rio deJaneiro, sob supervisão dos representantes da coroa portuguesa22.
A urgência criada pela escassez do complemento alimentai- e aindao contato dos colonizadores brancos com os indígenas podem ter induzido os paulistas a se aproveitarem da experiência cultural autóctone, a qualsubstituía o cloreto de sódio por cinzas de certos vegetais. Entretanto,não foi possível localizar evidências documentais comprovatórias de talatitude por parte dos habitantes da Capitania. O certo é que um sal seme
lhante ao cloreto de sódio é possível de ser obtido mediante a incineraçãode vegetais halófilos, raros em São Paulo, ou ainda de outras plantas comuns nas regiões próximas ao mar, inclusive em Ubatuba e emCaraguatatuba23.
Concomitantemente à carência de sal, existiu também a falta deiodo no solo e conseqüentemente na alimentação de uma parcela dos
paulistas. As principais populações afetadas foram as que residiam noVale do Paraíba, no sul de Minas Gerais e no território que atualmente seconstitui na região norte do Paraná. A ausência de iodo na alimentaçãorepresentou o principal fator determinante da existência de bócio endêmico- conhecido no século XVIII como papeira - e, mais raramente, daesplenomegalia e esplenoceratose (aumento e endurecimento do baço).Causando o funcionamento anormal da glândula tireóide, a escassez doiodo resulta em graves perturbações do crescimento, do desenvolvimentoe do metabolismo, conferindo ao enfermo um aspecto decadente e grotesco, o qual foi registrado no ambiente vale-paraibano por Spix e Martius.
Ao caracterizarem o território localizado entre a Aldeia de NossaSenhora da Escada (atual Guararema) e a vila de Pindamonhangaba, osviajantes e naturalistas alemães assinalaram:
22 - Denis Neto, João Baptista - “A revolução do sal” In: - Bons Autores. São José dos Campos,
s.c.p., 1986, vol. 1, p. 22-23 e Lencioni, Benedicto Sergio - Histórias, Gen tes e Cousas de
M inha Terra. Jacareí, s.c.p., 1980, p. 166. Existe ainda um romance histórico que retrata este
motim valeparaibano: Schmidt, Afonso - O Assalto. São Paulo, Clube do Livro, 1948.
23- - Sick, Helmut - “Sôbre a extração de sal das cinzas vegeta is pelos índios do Brasil Central” .
Rev ista do Museu Paulista N.S. 3 (1949):382-383.
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“Entre os habitantes dessa região observa-se uma inchação endêmica na glândula da tireóide em tão alto grau, como nunca talvez aconteça na Europa. As vezes, todo o pescoço fica tomado da inchação, o que dá a essa gente, na maioria de cor, que sem isso já não tem fisionomia agradável, uma horrível aparência. Parece, entretanto, que no país se considera o bócio mais embelezamento do que deformação, pois não é raro ve- rem-se mulheres com o monstruoso bócio enfeitado de correntes de ouro e prata a se exibirem, de cachimbo na boca ou com um fuso na mão, para fiar algodão, sentadas diante de suas casas ”24.
Outro fator patogênico importante ligado à dieta paulista referia-seao exagerado consumo de bebidas alcoólicas, principalmente após o desenvolvimento da agricultura canavieira que tomou a aguardente mais barata e de fácil acesso aos pobres. Por causa disto, também foram
registrados grandes contingentes de homens e mulheres com o fígado e o baço aumentados, sinais característicos da cirrose hepática.Os relatos dos viajantes atestam ainda a existência de outras pato
logias minando a saúde da população, principalmente as febres e os estados inflamatórios. A dificuldade atual de elucidação dos diagnósticos deve-se sobretudo à condição de as febres serem consideradas no século XYIHcomo entidade mórbida única e específica e não como sintoma de várias
enfermidades. Sob a designação febril encontram-se inúmeras patologiasque a medicina contemporânea tenta a muito custo definir. Em relação aoenigma representado pelas “febres paulistas”, Paranhos sugere a possibilidade de malária, febre amarela, tuberculose e septicemias sifilíticas ecancerosas25. Almeida Prado, por sua vez, identificou as icterícias referidas na documentação colonial como sendo espiroquetose ictero-hemorrágica, conseqüência do hábito bandeirante de estabelecer residência
nas proximidades de cursos d’água poluídos e das casas sempre infestadas de insetos, roedores e cães26.
24 - Spix e Martius - Op. cit., vol. 1, p. 128.
25- - Paranhos, Dr. Ulisses - “O paulistano conheceu a dor!” In: São Paulo, Prefeitura Municipal
- IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo. São Paulo, Gráfica Municipal, 1954,
p. 459-460.
26 - Alm eida Prado, Dr. A. - “Quatro séculos de medicina na cidade de São Paulo” . In: - Ensaios
Paulistas. São Paulo, Anhembi, 1958, p. 776-777.
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É provável também que sob o diagnóstico de febres ocultavam-seainda outras enfermidades que afligiam a população bandeirante. As áreas pantanosas da várzea do Paraíba, os alagados existentes ao longo dosrios Tamanduateí e Tietê e também os brejos do Iguatemí propiciavam aocorrência de patologias reumáticas e febre tifóide27. Acidentes como
picadas de insetos e mesmo de cobras constituíam-se em outros agravosà saúde, registrados como manifestações febris. Doenças transmitidassexualmente também foram relacionadas, muitas vezes sob a rubrica de
bouba, sarna e lepra, além da sífilis, blenorragia e cancros.
Vitimados por patologias das quais se esboçou apenas as pr in r’ pais, o “homem livre na ordem escravocrata” padecia, apresentandoconcomitantemente vários males e configurando um físico arruinado. Estasituação pode ser conferida através da recorrência à documentação dastropas militares estacionadas na Capitania de São Paulo. Em 1821, ao
proceder ao exame físico em um homem adulto, convocado pelo serviçomilitar e identificado apenas como “morador nas bandas do Paraíba”,assim se pronunciou o físico-mor interino, Dr. Justiniano de Mello Franco:
“Achamos [o recruta] atacado do vicio bobento, mui antigo, e já degenerado em cravos pelas plantas dos pés, que segundo a experiencia são incuráveis, alem disso tem uma visivel, e palpavelfractura nas costellas do lado direito quazi chegado
ao osso chamado esterno procedida de uma queda, segundo diz, demais atacado de um Gonorrhoca mui antiga, e que parece ter já a sua origem no collo da bexiga; em fim tremulo em todos os movimentos e de constituição mui arruinada. Este he o estado do sobredito Recruta, que de certo não fará sinão despeza a Sua Magestade ”28.
Quanto às doenças que predominavam entre a elite branca da sociedade paulista, pouco se sabe. Mal-estares causados pelo clima mais
27 - Tais moléstias mantiveram-se imperantes nas regiões mencionadas até o século XX . Veja-se
a respeito: Bertolli Filho, Cláudio - “A geografia médica paulista”. Anais do 4° Congresso
Brasile iro de Geografia. São Paulo, Assoc iação dos Geógrafos Brasileiros, 1984, Livro 2,
Volume 1, p.408-417.
28 - São Paulo, Arquivo do Estado de - Ordem 346, Lata 96, manuscrito. Grifo no original.
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quente que o europeu e pela alimentação certamente eram freqüentes,como também alguns dos males que atingiam os mais pobres. De qual
quer forma, pequenas enfermidades e acidentes eram motivos - ou desculpas - usualmente declaradas para o recebimento da autorização real para que os potentados se ausentassem da colônia, regressando à Europa.
A população escrava
Importados em grande número a partir do florescimento da culturacanavieira, os negros eram tidos pelos seus senhores como valiosa mercadoria. Por isto, os proprietários de escravos preocupavam-se em oferecer relativos cuidados aos negros, visando sempre que possível manter
ou recuperar a saúde dos trabalhadores compulsórios. Buscava-se comisto assegurar a continuidade das tarefas agrícolas e garantir os minguados lucros proporcionados pela lavoura.
Os escravos chegavam à Capitania de São Paulo ou ao Rio deJaneiro exaustos e enfermos. Isto acontecia porque a viagem marítimaentre a costa nordestina e o porto de Santos ou de Parati durava em
média duas semanas, enquanto que a travessia do Atlântico, dos portosafricanos até o litoral sul demandava mais de quatro meses. Tanto em umquanto em outro trajeto ocorriam inúmeras baixas entre os negros, representando uma taxa de mortalidade que variava entre 5 e 50% de todo ocarregamento de cativos.
O ingresso de escravos no porto aterrorizava os colonos, não só
pela possibilidade sempre presente de motins, mas também por eventualmente os negros trazerem em seus corpos grandes e pequenos males que
poderiam ser transmitidos para toda população. Em 1793 um documentoenumerou as enfermidades que os africanos traziam do seu continente edisseminavam na colônia. Dentre as doenças agudas, foram discriminadassete categorias patológicas, nomeadas segundo a terminologia médica do
tempo: febre perniciosa, febres terçã e quartã, hemorragias, corrupção
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intestinal, constipação, bexigas e sarampo. A estas somavam-se as moléstias crônicas, apontadas como sendo sarna, bouba, escorbuto, bicheira,lombrigas, hidropisia e ressecação dos bofes29.
Assim, inclusive devido ao perigo das enfermidades, os escravoseram recebidos na marina paulista com todos os cuidados e reticências pelos amedrontados colonos, mesmo que os negros procedessem de outras áreas da América Portuguesa. Imediatamente após o desembarque,eles eram vistoriados por um médico ou cirurgião que tinha como tarefaseparar os sãos dos enfermos. Cumprida a seleção, ambos os gruposeram alojados em distintos barracões, recebendo alimentação vitaminada, bem superior à servida a bordo, composta de carne salgada, farinha demandioca, feijão, alguma fruta cítrica e bananas. Os sadios eram observados com o intento de se constatar o surgimento de eventuais doenças,enquanto que os enfermos ficavam entregues, na melhor das hipóteses,aos cuidados de cirurgiões e sangradores negros.
Transcorrido o período de isolamento, os negros que não apresentassem sintomas de enfermidades eram lavados e untados com óleo de palma. Ganhando bom aspecto depois de enfrentar as agruras da viagemmarítima, “mandava-se em lote passear pela Cidade a escravatura para ofim de ser ela mostrada para a venda e para fazer participante de um novoar, que a refaça. De caminho é ela levada ao mar, e aos lagos, tanques efontes, aonde algumas vezes se lava”30.
Neste trajeto havia possibilidade de transmissão de múltiplos males, tanto mais quanto os traficantes de escravos, visando aumentar seuslucros, empenhavam-se ao máximo em escamotear as enfermidades ouqualquer outra característica dos corpos negros que implicassem na redução do preço de venda dos africanos. Devido a isto e também pela possibilidade da ocorrência de contrabando, já desde 1727 os negros só
eram admitidos na “serra acima” mediante a apresentação de um atestadoexpedido pelo físico ou cirurgião santista, confirmando a ausência de enfermidades.
29 - Mendes, Luiz Antônio Oliveira - Memórias a Respeito dos Escravos e Tráfico da Escrava
tura entre a Costa D ’África e o Brazil (1756). Porto, Escorpião, 1977, p.55-59.
30 - Idem, p.52.
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Mesmo assim era comum a presença no Planalto de Piratininga eno Vale do Paraíba de escravos sem a documentação requerida pela ad
ministração colonial. As barreiras criadas em Cubatão, Ubatuba eCaraguatatuba mostravam-se falhas, acrescentando-se ainda que os fa
zendeiros do Vale preferiam comprar seus negros contrabandeados, cons
tituindo a vila de Parati em local de reunião dos vendedores e compradores ilegais de “peças africanas” e que, portanto, não estavam sujeitas aoserviço de vigilância sanitária oficial31. Por causa disto alguns traficantes
foram denunciados às autoridades, como aconteceu com um certo Anto-nio da Costa Varella. Varella estava vendendo uns poucos escravos oriundos do Rio de Janeiro sem que os mesmos tivessem sido submetidos àinspeção médica e ao isolamento. Em conseqüência, o traficante foi con
denado a trinta dias de prisão e ainda ao pagamento de multa de seis mil
réis por cada escravo trazido para a Capitania de São Paulo. Corria o
ano de 1749 32.Comprados unitariamente ou em lotes, os escravos eram imediata
mente conduzidos aos engenhos de açúcar ou, em escala bem menor,
integrados aos fazeres domésticos dos núcleos urbanos. Ao ritmo intenso
de trabalho somavam-se - principalmente nas fazendas - acomodaçõestotalmente impróprias, mal iluminadas, úmidas e repletas de insetos e pe
quenos roedores. A alimentação também era pobre, composta de feijãoacompanhado de angu, além de exígua quantidade de toucinho ou apenas
abóbora cozida com angu. A precariedade da dieta ganhava contornos
mais trágicos em períodos de escassez de gêneros de subsistência, quan
do os negros tinham direito a uma única refeição ao dia33.A triste realidade representada pelo trabalho compulsório e pelas
péssimas condições de alimentação e alojamento abriam oportunidades para a elaboração de um novo perfil epidemiológico específico da população escrava. A alimentação monótona e desprovida de muito dos in
31 - Holanda, S.B. - Art. cit., p.76.
32 - AC MSP, vol. 13, p. 37.33 - Coutinho, Ruy - “Alimentação e estado nutricional do escravo no B rasil”. In: - Estudos Afro-
Brasileiros. Rio de Janeiro, Ariel, 1935, p. 199-213.
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gredientes básicos para o ser humano determinava o esgotamento físico
do negro e a conseqüente perturbação do metabolismo corporal. Em de
corrência, múltiplas enfermidades abatiam o agrupamento escravo, tais
como bronquites crônicas, congestões hepáticas, diarréia, úlceras,caquexia, escorbuto, cegueira noturna, anemia e muitas doenças de cu
nho infecto-contagioso, já que ficava comprometido também o sistema
imunológico destes trabalhadores. Mais ainda, a carência vitamínica re-
sultava no envelhecimento precoce, na diminuição da fertilidade e na grande
incidência de abortos espontâneos. As crianças nasciam depauperadas e
muitas vezes despojadas do já enfraquecido leite materno, que era em pregado prioritariamente na alimentação dos rebentos brancos. Com isto,
os jovens escravos eram condenados ao raquitismo, ao crescimento abaixo
do normal e, freqüentemente, ao retardamento mental34.
Além disto, as estafantes e perigosas tarefas atribuídas aos escra
vos assim como os maus tratos praticados pelos capatazes brancos dene
griam ainda mais o corpo dos escravos. Negros mutilados ou com horrí
veis seqüelas de torturas perambulavam pelas fazendas e vilas, impressio
nando os viajantes estrangeiros que lamentavam as crueldades do sistema
escravista.
As possibilidades de tratamento das enfermidades
Mesmo que o número de habitantes e a saúde dos povos se cons
tituíssem em uma das esferas que refletia o poderio do Estado da época
modema, uma política sanitária mais dinâmica e conseqüente fazia-se notar muito mais na metrópole portuguesa do que em suas colônias. O pres
suposto europocentrista que condenava as áreas subordinadas a serem
eternamente enfermas devido ao clima, ao relevo e à qualidade moral e
34 - Idem, p. 199-213 e Freitas, Dr. Octavio de - Doenças Afr icanas no Brasil . São Paulo, Ed.
Nacional, 1935.
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necessárias paw recuperar a saúde. Desde o desembarque nos portos brasileiros, definia-se aquele que seria responsável pelo tratamento dos
enfermos de sua tribo e, com o passar do tempo, os curandeiros experimentavam as ervas disponíveis no continente americano, reconhecendoas qualidades terapêuticas úteis para as novas condições de vida. Comisto, criou-se a tradição dos negros não só de cuidarem de seus paresmas também de homens brancos enfermos. Concretizou-se assim o costume de escravos serem empregados nas tarefas de saúde, o que valeu
para alguns a alforria, após terem salvo da morte ou acompanhado até oúltimo suspiro o senhor branco40.A eficiência com que os negros praticavam o curandeirismo levou
alguns senhores a os utilizar como escravos de ganho. No início do séculoXIX, o viajante francês Debret retratou o cirurgião escravo em plenaatividade, assistindo aos enfermos e vendendo talismãs curativos nas ruas
cariocas. Mas, apesar do sucesso dos negros curadores, muitos os consideravam meros charlatães. Por causa disto, os senhores preocupadosem não perder seus escravos adoentados, algumas vezes requeriam a presença dos raros médicos e farmacêuticos disponíveis para tratar dos
casos tidos como de maior gravidade41. Neste contexto, pouco foi feito pelos governadores paulistas para
ajudar no tratamento do povo enfermo. Parece que um dos pontos quemais sensibilizou a administração colonial foi a escassez e o alto preço dasdrogas mais recomendadas pela medicina oficial. Por causa disto, aedilidade paulista empenhou-se em montar boticas nas cidades e princi pais vilas da Capitania, sem contudo obter sucesso. Tentando contornar o problema e também devido a uma ordem régia, em 1798 foi instalado no
atual Jardim da Luz paulistano o primeiro horto botânico bandeirante,medida complementada pela decisão de promover a localização, coleta,
identificação e análise dos principais vegetais nativos que pudessem ser
40 - Eisenberg, Peter L. - “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX”. Estudos
Econômicos 17(2): 175-216, M aio-Agosto de 1987.
41 - Debret, Jean-Baptiste - Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo Horizonte/São Paulo,
Itatiaia/EDUSP, 1978, vol. 1, p.360-362 e Mattoso, Kátia de Queirós - Ser Escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 195.
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utilizados para fins medicinais.O mesmo empenho governamental não se fez sentir na melhoria
dos poucos hospitais paulistas. As Santas Casas e o Hospital Real Militar
afugentavam os enfermos. A desorganização, a escassez de recursos, demédicos e enfermeiros, acrescida da falta de higiene, transformaram estes
nosocômios em ambientes tenebrosos, verdadeiros depósitos de doentes
que nada mais esperavam senão o péssimo atendimento e o abreviamento
da vida.
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AS ÉPOCAS DE EPIDEMIAS
O crescimento quantitativo da população paulista refletiu-se na or
ganização do cotidiano regional. A rotina e a participação coletiva nas
solenidades realizadas nos espaços urbanos, assim como as atividades
agrícolas desempenhadas em conjunto aproximavam os homens, favore
cendo os contatos infecciosos deflagradores de vagas epidêmicas, as quais
chegavam a colocar em perigo a continuidade do projeto colonizador naterra bandeirante. Não obstante a multiplicidade de enfermidades que se abateram
sob forma epidêmica, a documentação revela que duas enfermidades definiram a problemática da saúde coletiva paulista a partir da segunda
metade do século XVIII. A primeira delas foi a hanseníase, patologia que
ganhou dimensão epidêmica nos anos de 1768,1770e 1820. Ainda maisletal que a lepra, a varíola dizimou grandes contingentes indígenas e tam
bém um número significativo de colonizadores brancos e negros, penali
zando a sociedade paulista nos anos de 1768,1780,1798 e 1808.
A Lepra
Apesar de haver nos primeiros séculos da colonização uma confu
são no diagnóstico entre certas dermatoses não contagiosas, a sífilis e a
lepra, parece certo que foi somente em meados do século XVIII que a
hanseníase se pronunciou pela primeira vez na Capitania de São Paulo.
Em 1768, devido ao acelerado aumento do número de casos, cogitou-se
a instalação de um lazareto na vila de Pamaíba. Como esta medida não seconcretizou, os amedrontados paulistanos apenas se mobilizaram para
expulsar os lázaros dos núcleos urbanos, decisão repetida em todas as
vilas populosas. Isto acontecia não só pelo horror que milenarmente a41
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doença inspirava, mas também porque os enfermos eram tidos como pecadores vis, enquanto que a moléstia era representada coletivamente comoexpressão da punição divina. Colocando de lado os misericordiosos com promissos cristãos, os paulistanos equipavam os enfermos com algunstrapos, uma matula contendo alimentos para alguns dias e os despediam,guardando distância segura dos contaminados42.
Completando o rito de exclusão, trazia-se para a rua a imagem dasanta padroeira da comunidade e, na presença do reverendo vigário capitular ou de qualquer outro sacerdote, entoava-se uma oração que tam bém atribuía à corrupção dos ares a ocorrência da lepra e de todas asoutras enfermidades pestilenciais. Nestas ocasiões rogava-se a Deus a purificação do ambiente, deixando claro a relação tecida na época entreo morbo e os miasmas:
“Em nome do Ds. Podre í Em nome de Ds. f. cuJ Em nome do espirito Santo í Ar vivo, Ar morto, ar de estupor, ar de
perlezici, ar arenegado, ar escomungado, eu te arenego. Em nome da Santisima trindade q. sayas do corpo desta creatura, e q. vas parar no mar sagrado pa. q. viva sam e alliviado 43 ”.
Ainda no ano de 1769, buscando explicações mais coerentes esoluções menos desumanas para os atingidos pelo “terrivel mal de §anLazaro”, o capitão-general D. Luiz Antonio de Souza se pronunciou, recorrendo aos princípios das ciências médicas do tempo, eles mesmos não
distantes da percepção popular:
“Eu atribuo esta intemperança aos contínuos relampagos, que continuamente se virão sentillar por todos os mezes em que por cá costuma ser o inverno, durando estes metheóros té chegarem a form ar sobre o emisferio desta Cidade huma terrivel trovoada no 29 de janeiro deste prezente anno, durante o qual
cahirão tantos rayos, que nestes aredores se apontão catorze partes em que signalarão as ruinas 44
42 - Maurano, Dr. Flávio - História da Lepra em São Paulo. São Paulo, Serviço de Profilaxia da
Lepra , 1939, vol. 1, p. 17.
43- - D.I., vol. 3, p.58.
44 - D.I., vol. 19, p. 19.
42
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Impressionado com o elevado número de enfermos expulsos dosnúcleos urbanos e remetidos, pouco a pouco, para as proximidades do
sertão, o capitão-general explicou por este motivo a falta de gente nasvilas, inclusive de professores e agentes do fisco real. A questão pertur bava o administrador e, por isto, buscou novas razões que justificassem aocorrência epidêmica, as quais foram transcritas na memória intituladaSobre o atrazo da lavoura em S. Paulo e suas cauzas:
“(a escassez de víveres) tãobem hé a cauza de passar o Povo com muita mizeria, valendo-se de bichos imundos, e couzas ascarozas, que commumente se comem, e que eu suspeito são a cauza do mal de S.Lazaro”45.
As explicações do governador em nada contribuíram para solucionar o problema mas, de qualquer forma, denunciavam o interesse oficial
em combater a epidemia. Finda a crise sanitária, mesmo assim a administração pública empenhou-se em manter a vigilância sobre os lázaros. Comoexemplo têm-se as discussões suscitadas pouco depois de 1768 sobre odestino a ser dado à uma cigana leprosa, localizada em uma chácara santista.O caso acabou sendo levado à vereança, que decidiu pela derrubada dorancho onde a infeliz mulher residia, além de proibí-la de se banhar noscursos d’água que abasteciam a vila de Santos. Apesar de em nenhummomento os vereadores assumirem a determinação de expulsar ahanseniana do local onde se encontrava, esta idéia ficou implícita na documentação referente ao assunto46.
Além de medidas individuais como esta, a edilidade incentivou oestabelecimento de sítios reservados aos leprosos em vários pontos daCapitania, tentando com isto impedir a constrangedora prática de expul
são dos enfermos dos núcleos urbanos. O isolamento deveria ocorrer emlocal o mais longe possível dos povoados e dos caminhos dos viajantes,isto é, nas proximidades do sertão. Nesta situação, os enfermos continuavam desamparados, pois a eles próprios caberia a responsabilidade de
conseguir alimentação e tratamento de saúde.
45 - D.I., vol. 23, p. 376.
46 - ACMSP, vol. 15, p. 391-393.
43
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Apesar das medidas segregacionistas, o mal de São Lázaro conti
nuou a proliferar na Capitania. O número de hansenianos avolumou-se
não só porque a população tendeu a se ampliar no transcorrer de toda asegunda metade do século XVIII, como também porque em nada foi
alterado o hábito popular de dormir no chão de terra batida, com pouca
roupa e sem nenhum tipo de proteção, comportamento este que facilita a
ocorrência de enfermidades da pele. Aliás, as condições materiais de vida
do povo pobre viabilizava o surgimento de outras enfermidades que eram
confundidas com a lepra, dentre elas o pênfigo foliáceo (fogo selvagem),o piao ou o puru-puru (dermatose comum entre os indígenas), a filariose
de origem africana (elefantíase), casos avançados de escabiose (sarna) e
ainda patologias de cunho venéreo.
O incremento do número de verdadeiros e falsos hansenianos exi
giu que a administração colonial buscasse sancionar medidas sanitárias
mais eficientes. Nos primeiros anos do século XIX, o poder público e afilantropia uniram-se para patrocinar a instalação do primeiro leprosário
paulista, localizado nos limites da cidade de São Paulo, nas vizinhanças da
capela de Nossa Senhora da Luz.
Em 1820, o então capitão-general Visconde de Oeynhausen, pre
ocupado com a saúde pública paulista, determinou a elaboração do pri
meiro censo dos morféticos que viviam na agora Província de São Paulo.Coube ao fazendeiro, advogado e militar José Arouche de Toledo Rendon
coordenar o trabalho censitário. Como resultado chegou-se a quantificação
falha e incompleta dos enfermos, sendo mesmo assim apurados 564
hansenianos. Desse total 371 casos (65,8%) foram localizados na região
vale-paraibana, sendo que Taubaté contava com 92 leprosos ou 16,3%
dos enfermos que peregrinavam pelo território paulista. No entanto, algumas áreas não chegaram a ser pesquisadas, inclusive a capital dos
paulistas, sendo que nenhuma explicação foi oferecida para o fato de
Taubaté abrigar tal número de contaminados47.
47 - Maurano, Dr. F. - Op. cit., vol. 1, p.23-26 e 55-65.
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datado de 1749 obrigava os paulistanos bexiguentos a serem internadosem “umas cazinhas” localizadas na rua Boa Vista51. Em 1775, o capitão-
general Lobo de Saldanha declarou ser o hospital o espaço mais apropriado para o tratamento dos soldados infectados, determinação que denunciava o encaminhamento e possível tratamento diferenciado do corpomilitar estacionado na Capitania em relação à população civil. O mesmogovernante acrescentou que:
“As bexigas tem feito aqui hum grande estrago e o vão fa zendo nos soldados, de que tenho cheyo o hospital, que hé hüa epidemia tal que nunca vi 52
Transcorridos alguns anos, novas alterações ocorreram no socorro aos infectados. Provavelmente devido ao grande número de enfermose à baixa qualidade do atendimento hospitalar, a vereança paulista esta beleceu que todos os bexiguentos obrigatoriamente deveriam abandonaros núcleos urbanos. Caso contrário, o infrator ou um seu parente seriamultado em cinqüenta mil réis, soma repartida igualmente entre o denunciante do delito e a Câmara Municipal53.
Os procedimentos sanitários se desdobravam, assim como se am pliava o horror dos paulistas frente à epidemia ceifadora de vidas. Asordens oficiais nem sempre eram bem acolhidas pela população que, emcertos momentos, preferia entender as doenças e a assistência aos atingidos como um assunto privado, deslocado da causa pública. Assim, alguns se negavam a transferir os variolosos para longe de casa, resistindoatravés das armas à imposição oficial, submetendo-se apenas à orientação de afixar nas portas da residência uma fita de baeta vermelha, comu
nicando simbolicamente a presença da moléstia no ambiente doméstico.Apesar disto, todos irmanavam-se nas procissões de louvor ao santo padroeiro da comunidade assolada pelo mal, rogando a Deus proteção contra
51 - ACM SP , vol. 42, p. 94.
52 - D.I., vol. 42, p. 29.
53 - ACMSP, vol. 17, p. 30.
47
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o flagelo. Com esta prática religiosa, os desesperados paulistas abriamnovas oportunidades para a disseminação da peste, termo genérico em
prestado a qualquer evento epidêmico. Neste contexto, os governantes da Capitania empenhavam-se em
amainar os ânimos da população pois, sempre existia o perigo de acontecer algum movimento de insubordinação coletiva que colocasse em riscoa autoridade administrativa colonial. Ainda em 1775, o capitão-generalLobo de Saldanha assim anunciou as disposições oficiais para conter oavanço da varíola, deixando também notar que os deslocamentos das
tropas constituíam-se em um fator de disseminação da enfermidade:
“O contagio das Bexigas (...) ainda continua dando em poucas crianças, e quaze em todos os Adultos que as mantiverão, sem que se possa atalhar este terrivel mal com os Gados que tenho feito girar pela Cidade, com os perfumes que mando fa
zer nas Cazinhas que servem de Hospital, e com as muitas Pre
ces publicas que a Deus, e muitos Sanctos se tem feito. Tem sido excessivo o estrago, e mortandade em todos e nas Tropas que levantava; pois somente das duas primeiras Companhias do Regimento da Infantaria [que contavam com vários corpos de tropa, alguns deles recrutados no Vale do Paraíba, nota do autor] que mandei para o Rio Grande morrerão no Hos
pital da Ilha de Sancta Catharina trinta, e quatro soldados, como me avizou o General daquelle Departamento ” 54.
O fato de o capitão-general fazer algumas reses circularem pelasruas dos principais centros urbanos e a tentativa de purificar o ar comsubstâncias aromáticas tomaram-se motivo de jocosos comentários por
parte de importantes pesquisadores contemporâneos, inclusive Antonio
de Toledo Pizza e Afonso de Taunay. Na verdade, estas medidas higiênicas representavam algumas das poucas esperanças de salvação para aaterrorizada população bandeirante do século XVIII. Isto porque arecorrência às ervas perfumadas e à presença de bovinos nas praças pú blicas constituíam-se em medidas anti-contagionistas que há milênios vi
54- - D.I., vol. 28, p. 54-55.
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nham sendo reproduzidas pela cultura ocidental. Somente nos anos der
radeiros do “Século das Luzes”, a medicina européia passou a dispor deuma resposta mais eficiente contra o mal das bexigas, mostrando que as
medidas tomadas pelos paulistas não eram tão desarrazoadas como quiseram os historiadores mencionados.
O certo porém é que São Paulo, Santos, Taubaté, Guaratinguetá e
uns poucos outros núcleos urbanos paulistas tornaram-se os principaiscentros difusores da varíola para todas as partes do sul e do centro-oeste
da colônia. A movimentação das tropas que partiam do Campo de
Piratininga para se defrontar com as forças espanholas, em defesa doslimites territoriais da América Portuguesa, resultou na disseminação daenfermidade por uma vasta área, causando severa sangria de gente nãosó entre grandes tribos indígenas mas também em várias vilas e povoa
dos, arduamente estabelecidos pelos colonizadores ibéricos55.O reforço das medidas isolacionistas dos bexiguentos em locais
afastados das áreas urbanas tomou-se alvo de críticas cada vez mais severas, inclusive porque criava obstáculos para a continuidade das ativida
des econômicas da Capitania. A luta dos paulistas contra a pobreza e
estagnação não queria levar em consideração os perigos representados
pela peste.A resistência dos colonizadores em deixar o cotidiano ser facilmen
te corrompido pela epidemia fez-se sentir durante a crise sanitária queteve início na primavera de 1798.0 capitão-mor da vila de Santos, Fran
cisco Xavier da Costa Aguiar insurgiu-se contra a ordem de afastamento
dos variolosos que foram localizados no porto. Anunciando-se de regracomo representante de todos os habitantes do litoral paulista, ele reque
reu ao governador a suspensão da ordem de banimento dos infectados
das vilas, alegando não só a existência de um pequeno número de enfermos como também chamando a atenção para o fato segundo o qual o
Conselho Ultramarino nunca ter determinado o isolamento dos variolosos,
por considerar o mal das bexigas apenas uma doença trivial, e não uma
55 - D.I. , vol. 42, p.37.
49
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patologia de caráter pestilento. Ainda mais, a autoridade santista invocouum velho hábito, tão antigo quanto a ocorrência da varíola: deixar osinfectados no espaço urbano a fim de que a população contraísse a enfer
midade, especialmente as crianças. Com isto, esperava-se que a doençase propagasse, tomando imunes os que a ela sobrevivessem. Buscandoainda mais motivos para o seu posicionamento anti-isolacionista, o capi-tão-mor declinou o que provavelmente se constituía no verdadeiro motivo de sua petição, invocando que o afastamento dos infectados afugentaria os traficantes de escravos e os comerciantes em geral daquele porto.Se um único escravo recém-chegado apresentasse sinais de bexigas, todo
o lote de negros deveria ser confinado em uma ilha, assustando os viajantes e causando um grande prejuízo aos negócios públicos e privados dasvilas e da cidade de São Paulo.
Não convencido da consistência de seus próprios argumentos, CostaAguiar alinhou um novo motivo para a suspensão da ordem isolacionista,desta vez recorrendo a razões notoriamente sentimentais para instruir arepresentação de seus concidadãos:
“É duro e lastimoso, que os paes e mães de famílias, mandem seus fühos (e ainda seus escravos) para logares distantes daquella villa, onde não ha professores, nem remedios temporaes ou espirituaes: para esta execução, que sempre pela maior parte sempre se fa z tarde, e a tempo que o mal já tem grassado se tem de grassar (no caso de ser certo este principio) é precizo
que todos os constrangidos forço sam en te deponham com tyrannia o amor filial, e passem por trabalhos e gastos que muitas vezes não aproveitam, não só pela falta de verdadeiro tratamento, como pelo abalo que tem os doentes na mudança,
principalmente sendo transportado por agua de que Sanctos como ilha está cercada a tempo que devem ter o maior socego, motivo por que a utilidade que se tira destes trabalhos é morre
rem muitos dos expulsos” 56.
Este documento foi enviado ao capitão-general Castro e Mendonça que, por sua vez, encaminhou-o à vereança paulista, responsável pelas
56 - São Paulo, Cidade - Reg istro Geral da Cam ara Municipal (doravante RGCMSP), vol. 12, p.
266.
50
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decisões pertinentes à toda Capitania. Em 8 de novembro de 1798, aCâmara deu o seu parecer: os representantes do povo reconheceram adesumanidade contida na ordem de afastamento dos enfermos da com
panhia dos familiares e amigos, mas também invocaram as trágicas conseqüências das epidemias de varíola, informando que na crise de bexigasocorrida na administração anterior tinham sido registrados 600 óbitos eisto só na cidade de São Paulo e seu termo e ainda a ocorrência da escassez de gêneros alimentícios em toda a Capitania. Em continuidade, a Câmara explicou os reclamos da população da marina através da diferençade intensidade com que as epidemias de bexigas grassavam em Santos e
em São Paulo, atribuindo ao clima, ao regime dos ventos e à alimentaçãoas causas da relativa amenidade com que a moléstia se abatia sobre aregião litorânea, em franco contraste com o número de infectados e mortos que era registrado na “serra acima”.
Após estas ponderações, a edilidade concluiu:
“porem, Exmo.Snr., ainda mais duro hé e passa a Ser barbaride. Expor a Sociede. inteira à tantos flagelos Só por não Separar os primeiros infermos atacados deste mal terrivel o horror, que os Povos desta Capitania tem desta moléstia, nam
provem de hum terror panico; enem nesta parte V. Exa, deque os dezabuzar: elle provem dehuma longa experiencia, que tantas vezes Setem fe ito funesta nos nossos olhos ” 57.
Em conformidade com o posicionamento da Câmara, Castro eMendonça ordenou que os bexiguentos continuassem a ser afastados doconvívio urbano. Apesar disto, certamente foram as pressões da população do litoral que fizeram o governador ceder parcialmente, permitindoque os infectados fossem isolados em chácaras localizadas na periferia
das comunidades portuárias e não mais em ilhas distantes da costa. Emrelação aos negros adventícios, Castro e Mendonça ordenou que aedilidade santista estabelecesse uma área distante da vila para acomodaros escravos, os quais deveriam ser rigorosamente inspecionados por um
57 - São Paulo, A rquivo Publico do Estado de - Ordem 296, Lata 57-A, manuscrito.
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médico ou cirurgião, só deixando o local aqueles que fossem diagnostica
dos como sadios. Mais ainda, os negros que não apresentassem sinais de
já terem experimentado a infecção variolosa seriam conduzidos para os
albergues onde estavam em tratamento os bexiguentos pobres. Tal medida reflete a política de facilitar o contágio entre os negros recentementeegressos da África, evitando com isto os dissabores da eventual paralisa
ção do trabalho e a ameaça epidêmica para as comunidades do planalto e
do Vale do Paraíba58.Contudo, apesar destas medidas e ainda dos cordões sanitários
montados em Cubatão (o único que chegou efetivamente a funcionar),Ubatuba e Caraguatatuba - onde deveria ocorrer uma nova inspeçãosanitária de todos aqueles que pretendessem alcançar o Planalto de
Piratininga ou o Vale do Paraíba -, em outubro ou novembro de 1798 avaríola atingiu a cidade de São Paulo. As reticências da administração
litorânea e a intensidade do trânsito de homens, animais e mercadorias
dificultavam os serviços de vigilância ativados no “pé da serra”, tomandoo território interiorano da Capitania presa fácil da enfermidade que che
gava pelos caminhos do mar.
Frente à nova crise sanitária, os vereadores paulistas qualificaramas bexigas como “mal dissecador dos povos” e, ato contínuo, viram-se nacontingência de publicar um novo edital sobre o assunto. Segundo este
documento, os proprietários das residências onde houvesse bexiguentosseriam obrigados a comunicar o fato às autoridades, sob pena de incorrerem em multa de seis mil réis. Na cidade de São Paulo, os enfermos
pobres e os escravos urbanos deveriam ser prontamente retirados de suas
casas e removidos para uma chácara localizada no atual bairro do
Pacaembú, onde seriam tratados por conta própria ou através de socor
ros prestados por alguns negros anteriormente imunizados. Os bexiguentoscom posses também deveriam ser transferidos para fora da urbe, mas
para sítios que melhor lhes aprouvessem, contanto que ficassem afasta
dos de povoados, estradas ou caminhos públicos. Com esta medida, perce
58 - RGCMSP, vol. 12, p. 281-282.
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be-se que a posição social dos paulistas era a principal ordenadora dos
homens enfermos no espaço, ditando também as possibilidades de trata
mento, recuperação ou morte59.
O agravo da onda epidêmica e o aumento do número de óbitosexigiram a tomada de novas medidas oficiais. O capitão-general determi
nou que o sepultamento dos cadáveres bexiguentos seria efetuado fora
dos limites do núcleo urbano e em covas bem mais profundas que as
comuns. Questionada sobre o assunto, em 5 de dezembro a Câmara es
tabeleceu que, na cidade de São Paulo, as vítimas da crise sanitária deve
riam ser sepultadas no terreno contíguo à capela de Nossa Senhora do Ó,então uma freguesia isolada e afastada da cidade, assim como foi deter
minado o reforço da guarda das pontes que davam acesso aos núcleos
urbanos da Capitania, para impedir a entrada de infectados ou dos enfer
meiros que prestavam atendimento aos variolosos60.
Se eram duras as medidas, nem sempre elas foram imediatamente
postas em prática, apesar da urgência do momento. Em 10 de maio de1800, quando uma nova epidemia de varíola ameaçava São Paulo, o go
vernador enviou à Câmara um longo ofício, no qual após enumerar as
trágicas conseqüências da crise sanitária anterior, repreendeu duramente
a vereança por esta ainda não ter designado um local, na periferia da
cidade, destinado a abrigar os bexiguentos61.
O isolamento dos enfermos na periferia dos núcleos urbanos ouainda fora destes sempre foi uma questão delicada. Apesar de compor
uma estratégia preventivista que amainava os receios da coletividade, as
autoridades coloniais freqüentemente tinham que se chocar com o inte
resse das elites locais, temerosas de perder seus escravos ou relutantes
em se afastar de seus queridos entes. Este impasse é visível em todas as
vagas epidêmicas que grassaram em São Paulo, inclusive durante a crise
sanitária de 1815. A Câmara uma vez mais viu-se premida entre os inte
59 - RGCMSP , vol. 12, p.285-286.
60 - São Paulo, Arquivo Público do Estado de - Ordem 296, Lata 57-A, manuscrito.
61 - D.I., vol. 87, p. 193-195.
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resses particulares e os coletivos e, reticente, preferiu deixar a decisãoacerca do possível isolamento dos variolosos para o médico Antonio
Vicente Ferreira62.
Apesar disto, já desde o final do século XVIII a atitude do Estadomoderno europeu em relação às epidemias de bexigas vinha sofrendosensíveis alterações. Isto porque em 1796 o médico britânico EdwardJenner, após duas décadas de pesquisas, ministrou na localidade deGloucestershire a primeira vacina anti-variólica, produzida através da coleta de material extraído da úbere de vaca. Em poucos anos este método
de imunização passou a ser praticado em toda a Europa e, desde 1799,em Portugal63.
Não obstante o empenho metropolitano em garantir a saúde da população do além-mar, demorou algumas décadas para que a vacina jenneriana chegasse ao Brasil. Ao invés disto, iniciou-se uma intensa cam panha de imunização da população brasileira através da variolização, isto
é, administração do pus varioloso - substância atenuada - em sãos paraque estes adquirissem imunização contra a moléstia. E importante ressaltar que na documentação do tempo empregava-se o termo “vacinação” para ambos os métodos imunizadores, situação que tem resultado eminterpretações equivocadas sobre as ações de saúde relativas ao mal das bexigas, no contexto dos anos terminais do período colonial.
Praticada amplamente na Europa desde a Antigüidade, tem-se informações que o método de variolização já era empregado na colôniainglesa da América do Noite em 1727, alcançando bons resultados, poisimunizava os indivíduos com menores riscos do que os produzidos pelocontágio em momentos epidêmicos64. No Brasil, os registros sobre as primeiras medidas de imunização coletiva são imprecisos. Alguns estudi
osos apontam o cirurgião-mor da milícia do Rio de Janeiro, FranciscoMendes Ribeiro de Vasconcelos como pioneiro na utilização deste méto
62 - São Paulo, Arquivo Público do Estado de - Ordem 346, Lata 98, manuscrito.
63- - Lichtenthaeler, Charles - Histo ire de Ia Médecine. Paris, Fayard, 1978, p. 382.
64 - Duffy, John - Epicfeinics in Colonial America. Baton Rouge, Louisiana State University
Press, 1971, p. 23-43.
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do, em 1789. Entretanto, outros autores informam que o precursor brasileiro da variolização foi Felisberto Caldeira Brant Pontes, clínico da Bahia.Em 1804 este médico e senhor de engenho foi enviado a Lisboa, graças a
doações feitas por negociantes nordestinos. Acompanhado por sete escravos jovens, o clínico fez com que um primeiro negro fosse vacinado nametrópole e, no toma-viagem, procedeu a variolização seqüencial dos demaisescravos. De regresso à Bahia, recolheu o pus do último cativo inoculado, oque permitiu a disseminação do método por vastas áreas da colônia65.
Apesar deste último dado, a documentação informa que o métodode variolização já era praticado em São Paulo nos últimos anos do século
XVIII. A despeito de a historiadora Maria Luiza Marcílio afirmar que oinício da variolização coletiva tenha ocorrido em 1798, a primeira referência sobre o assunto na Capitania data de 29 de julho de 1799, quandoo secretário de estado Rodrigo de Souza Coutinho recomendou ao capitão-general Castro e Mendonça a inoculação do povo, principalmente dascrianças negras e indígenas, visto ter notado a experiência “ser este o único
meio, e verdrado. prezervativo contra o terrivel flagelo das Bexigas”66.Desta forma, redefiniu-se também o papel do Estado lusitano frente à problemática motivada pela varíola nas suas possessões coloniais. Seaté o final do século XVEU as medidas oficiais restringiram-se à organização de cordões sanitários, isolamento dos enfermos e sepultamento dosmortos, a partir de 1799-1800 as autoridades metropolitanas planejaramsucessivas campanhas de imunização coletiva, através da variolização.
A campanha anti-variólica no Vale do Paraíba
A proposta de imunização contra a varíola no território vale-
paraibano enquadra-se em um conjunto de medidas que, desde as últimas
65 - Santos Filho, Lycurgo - His tória Geral da Medic ina Brasileira. São Paulo, HUCITEC/
EDUSP, 1977, Vol. 1, p. 270 e Peixoto, Afranio - Higiene. 3a ed., Rio de Janeiro, Francisco
Alves, 1922, Vol. 1, p. 117.
66 - D.I., vol. 89, p. 116 e Marcílio, Maria Luiza - A Cidade de São Paulo. São Paulo, Pioneira/
EDUSP, 1974, p. 142.
55
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meta da administração pública. As vilas com economia estagnadas e asmatas adjacentes passaram a ser vasculhadas pela milícia da Capitania, pois acreditava-se que sobretudo nestas áreas refugiavam-se as comunidades que precisavam ser reeducadas, sendo o serviço militar considerado um dos principais dispositivos normatizadores dos homens em idade produtiva. Um documento oficial datado do período analisado deixa claro a percepção oficial:
“[são as vilas pobres e as matas] covil de todos os vadios e
desertores e gente má, que para viver com toda liberdade procuram esse couto: e se fa z preciso conhecer que o braço de El- Rei chega a todas as partes ”69.
Seguindo esta proposta, o Vale do Paraíba foi uma das áreas maisinsistentemente vistoriada pelos fiscais régios, tomando-se cenário de seguidas intervenções reguladoras dos comportamentos coletivos que visa
vam a “regeneração moral” da população, com o intuito de impor a todagente os então denominados “deveres civilizados”. Isto porque a enfermidade era diagnosticada como resultado da combinação do clima quente edo desregramento dos costumes individuais e coletivos. Nesta operação,o médico Francisco de Melo Franco preconizava, em 1794, que as açõesde saúde deveriam ser realizadas concomitantemente à reforma damoralidade pública, sendo que qualquer sucesso na empreitada oficial sóseria alcançado através da atuação administrativa concatenada nos cam
pos da moral e da higiene. Medicina e religião irmanavam-se na produçãodo homem modemo, no contexto colonial brasileiro70.
O Estado chamou a si a árdua tarefa de combater tudo aquilo quefosse considerado incompatível com os padrões culturais europeus. Aingestão de “couzas nojentas”, isto é, de certos alimentos indígenas tais
como carne de macaco e de pássaros, tanajuras e larvas encontradas nointerior de palmitos passaram a ser desaconselhadas como elementos pre judiciais à saúde e à moral. O incesto também tomou-se objeto de puni
69 - Catálogo de Documentos sobre a História de São Paulo, existentes no Arquivo Histórico
Ultramarino de Lisboa. Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1956,
vol. 10. p.73.
70 - Franco, Franc isco de M elo - Medicina Teológica. São Paulo, Giordano, 1994, p. 14.
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mo que em alguns momentos eles próprios fossem personagens infratores. No ano de 1803 São Sebastião foi palco da denúncia contra umamoça chamada Rita Maria que, por viver amasiada com um dos párocos
da comunidade, foi punida com o seu “despejo” da vila, sendo enviada àforça para Cunha, enquanto que o sacerdote envolvido no caso não sofreu qualquer tipo de repressão governamental. Dois anos após a expulsão, um cidadão cunhense denunciou novamente a infratora - maldosamente apelidada de “Filhinha do vigário” - por demonstrar comportamento escandaloso. Em resultado, o governador da Capitania decidiu novamente transferir a “criminosa”, ordenando à uma autoridade cunhense:
“pelo modo mais prudente e disfarçado faça conduzir a mencionada Rita para o distrito da Vila de São Luís a viver em companhia da irmã casadaque ali tem”76. Em outro momento, o vigário da vila de Pindamonhangabadelatou às autoridades alguns dos seus fiéis pelo fato de não o obedecerem, “chegando o ponto de lhe não tirarem o chapéu”, situação que parece ter indignado o governador que, em resposta, ditou que todos os cris
tãos da mencionada área deveriam respeitar o reclamante,“sob pena de punição”77.Paralelamente a estas medidas oficiais, cujos casos mencionados
constituem-se em apenas alguns exemplos alinhados nos registros documentais, buscou-se proceder no Vale do Paraíba à primeira campanha deimunização coletiva contra as "bexigas”. Entretanto, o novo método anti-variólico não contou com a aceitação popular. A variolização era vista
com desconfiança e medo. Em 1800, o capitão-general de São Pauloinformou o pleno andamento das atividades de imunização das criançasnegras e índias mas, entre os brancos e adultos a tarefa tomou-se difícil,quase impossível:
“O inveterado, e justo horror, q ’só o nome deste contagio espalha entre o Povo desta Capitania não pode desvanecer-se de repente, porqto. ainda que a maior parte das innoculaçoens
76 - D.I., vol. 55, p. 185 e 191-192.
77 - D.I., vol. 56, p. 329-330. A documentação relativa à história social do Vale do Paraíba no
período final da era colonial também encontra-se arrolada em: Reis, Paulo Pereira dos -
Lorena nos Séculos X VII e XVIII. Lorena, Fundação Nacional do Tropeirismo/CERED,
1988, especialmente p.71-74.
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sejão felices, huma só mal sucedida serve de aresto pa. o pro pagar”78.
Com a implantação do novo método de imunização, delineou-seoutra função a ser desempenhada pelos agentes oficiais: induzir a população a deixar-se vacinar. Mas os paulistas relutavam. O medo da inoculaçãoaparentava-se com o terror inspirado pelo recrutamento militar e pela
própria epidemia de varíola. As reações a estas circunstâncias eram sem pre as mesmas: lágrimas das mulheres e dos pequenos e fuga dos jovense adultos para o sertão indevassável.
A administração pública ressentia-se, mas mesmo assim buscavaconseguir, a qualquer custo, a almejada imunização coletiva; primeiramente esperava a presença espontânea dos paulistas nas sessões deescarificação, para em seguida obrigar os mais temerosos a se deixarem“vaccinar”. Uma missiva do capitão-general Franca e Horta endereçadaao capitão-mor da vila de Guaratinguetá oferece exemplo de todas as
possibilidades tentadas pelo Estado para variolizar a população:
“Recebi a carta de Vmce. de 5 do corre, mêz, que me acom panhou a relação das pessoas envacinadas até o prezente nessa Va. e seu Destricto, e pôrque a estupidêz do Povo hé qual Vmce. me informa, e me attestão os mais Comandantes, não há remedio senão obrigalo pela força a prezervar-se com esse
antidoto da moléstia mais contagioza e devastadora da especie humana. Portanto passe Vmc. as Ordens competentes aos Capitaens das Compas. para q. cada um delles pr. Esquadras, ou pr. Bairros, fação avizaros Chefes defamilias, pa. hum certo dia se acharem com seus fühos, e Aggregados no lugar donde se deve fazer a operação, pena de serem prezos a minha Ordem, e não sahirem da Cadeia sem se haverem envacinado
todos os indivíduos que lhe pertencem
Para reforçar ainda mais as possibilidades de imunização, no mesmo documento o governador recomendou aos seus auxiliares o empregode uma perversa espécie de pedagogia do medo, aliás, estratégia de im
78 - D.I., vol. 29, p. 210.
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posição que até hoje estrutura considerável parcela das mensagens deeducação em saúde no Brasil:
"Para os fa zer persuadir com maior evidencia rellate-lhe o acontecimento q. prezenteme. se verificou em Sanctos, e vem a ser: q ’ tendo-se em huma caza vacinado todos, e só restando dons pr. esterem fora vindo bexigas naturaes e hum destes dous, não se comunicou o mal a nenhum dos vacinados, e só ao q. não o estava de cujo mal morreo aquelle a quem vierão as
bexigas”79.
A coerção exercida pelo capitão-general não pode deixar suporque a obtenção do pus variólico fosse tarefa fácil. A documentação do período oferece informações sobre os árduos obstáculos a serem superados para a aquisição da substância imunizadora.
O governador Franca e Horta registrou as sucessivas tentativas para
a obtenção do pus salvador o qual, para aumentar ainda mais o desespero dos historiadores, já era denominado na época de linfa vacínica, termoempregado também às substâncias utilizadas no processo da verdadeiravacinação. Inicialmente procurou-se conseguir o material em Lisboa, mascertamente devido à longa viagem, a substância foi aqui testada e considerada imprópria e nociva. Logo após este acontecimento, enviaram-sealguns negros escravos à Bahia para serem imunizados. Mediante a contínua transferência de braço a braço, o pus novamente chegou a São Paulo imprestável, pois havia sofrido mutações que o tomou virulento e mortal. Por fim, o capitão-general soube da disponibilidade de “uma boavaccina” no Rio de Janeiro. Prontamente o governador enviou a Parati umcirurgião e alguns escravos e, através da inoculação braço a braço foi possível trazer o precioso pus variólico à Capitania de São Paulo, efetu
ando no percurso de regresso a inoculação da população residente nasvilas do norte da capitania80.
Buscando contornar a ausência de informações mais sistematizadas, localizou-se uma série composta por mais de vinte ofícios - manus
79 - D.I., vol. 56, p. 282.
80 - D.I., vol. 56, p. 242.
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critos não catalogados e dispersos em inúmeras latas do Arquivo Público
Estadual - que permite a reconstituição parcial do roteiro obedecido pela
caravana responsável pela tarefa de imunização de uma significativa parcela da população do Vale do Paraíba. Segundo estas fontes, de Parati,
um anônimo cirurgião contratado pelo Estado chegou a Cunha. Naquela
vila, o escarificador recorreu a todas as estratégias intimidadoras ensina
das pelo capitão-general. Ao mesmo tempo, o agente oficial buscou es
clarecer os mais cultos - que sempre mantinham papéis de liderança na
comunidade - através da leitura e discussão de um folheto distribuído pelaadministração metropolitana e que bem poderia ser o estudo de autoria
do médico luso-brasileiro Manuel Henriques de Paiva, intitulado Preser
vativos das bexigas e de seus terríveis estragos, ou história da ori
gem, e do método de faze r a vacinação, impresso em Lisboa, no ano
de 1801. Feito o contato, procedeu-se à inoculação de alguns habitantes.
Poucos dias depois, novo grupo recebia o pus e também por ordem dogovernador, outros povoados vizinhos encaminharam a Cunha cerca de
meia dúzia de indivíduos que igualmente receberam a linfa salvadora. Ao
retomarem aos locais de origem, estas pessoas - provavelmente escravas
- serviam como fornecedoras do pus para a localidade em que moravam.
Lá, um médico ou um simples curioso, fiscalizado pela principal autorida
de do povoado, variolizava então pequenos grupos, obedecendo a intervalo de uma semana, tempo suficiente para que os personagens ante
riormente imunizados produzissem a substância necessária para a continuidade da campanha.
De Cunha, a comitiva original dirigiu-se a Ubatuba e São Sebas
tião. Regressando ao Vale do Paraíba, o cirurgião e seus acompanhantes
procederam à visitas sanitárias nas principais vilas da região: São Luiz deParaitinga, Taubaté, São José dos Campos e Jacareí. Finalmente Mogi
das Cruzes e São Paulo. E bem possível que da capital, ou mais provavel
mente de São Sebastião, tenha partido um ou mais grupos de variolizadosrecentes para oferecer material imunizador aos habitantes de Santos. Em
cada uma destas localidades, as mesmas cenas se repetiram: inicialmen
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te, a surpresa da novidade; depois, o medo, as lágrimas e a fuga para as
matas. Em seguida, sempre que possível, procedia-se ao aprisionamento
dos recalcitrantes e, finalmente, a inoculação forçada.Cumpria-se assim uma nova etapa das ações preventivas em rela
ção à varíola, na Capitania de São Paulo. Coordenados pelos brancos, jovens e lacônicos escravos tinham seus corpos colocados à disposição
de um processo ao mesmo tempo imunizador e normatizador da popula
ção. O caminho percorrido pela expedição sanitária obedeceu interesses
estratégicos. Nos meses de agosto e setembro de 1805 foi imunizada a parcela branca, negra e indígena dos paulistas responsáveis pelo funcio
namento de importantes unidades produtoras de açúcar, as quais estavam
garantindo a viabilidade econômica da Capitania, integrando-a ao circuito
colonial e mesmo internacional de mercadorias.
A campanha anti-variólica desenvolvida no Vale do Paraíba e no
litoral norte uniu, pois, interesses de várias ordens, aproximando o empe
nho sanitário da disseminação de regras comportamentais coerentes com
os interesses metropolitanos. Mesmo que defasadas dos padrões da Eu
ropa revolucionária, naquele momento marcada pelos posicionamentos
românticos, as medidas concretizadas no Vale do Paraíba surtiram cir
cunstancialmente a proposta de conferir um novo perfil aos habitantes da
região, equipando-os com práticas e valores comportamentais que ga
nharam significância maior na transição da acanhada economia açucareira
e de gêneros alimentícios básicos para o império da cafeicultura.
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A continuidade da luta contra a varíola
O mesmo procedimento de variolização coletiva e de recorrênciaao negro como principal produtor do material imunizador repetiu-se pormais vezes nos anos seguintes, sem contudo alcançar a mesma abrangênciaque a campanha de 1805. A relutância da população ampliou-se à medida que se espalhavam notícias sobre acidentes ocorridos durante o processo imunizador e que levaram à morte alguns vale-paraibanos.
Por causa disto, em 1810, o estadista e magistrado Veloso de Oli
veira queixava-se do repúdio popular ao processo imunizador, oferecendo sugestões para disseminar a variolização:
“E que nesta época de luzes se trate mui cuidadosamente de remover ainda outros males gravíssimos, que atacam a povoa- ção e agricultura e dependem unicamente das providências do
governador e da legislação própria e acomodada ao intento! Consistem tais males: (...) Na outra falta , tão fácil de remediar-se do uso e administração da vacina, objeto de simples curiosidade popular e que devia servir de meio eficaz para atacar a terrível enfermidade das bexigas que tem causado o maior terror aos nossos paulistas, devorando grande parte da povoa- ção. Aos párocos e dois homens principais de cada uma fregue
sia se deveria incumbir o trabalho de vacinar, todos os domingos, as crianças necessitadas deste quase divino socorro, sendo dirigidos por um pequeno regulamento e sendo obrigados todos os pais de fam ília afazerem vacinar seus filhos debaixo de certas penas pecuniárias: pode ser que fosse mais conveniente (mas deixo isto ao pensar dos professores de medicina) que, na ocasião do batismo, se administrasse a vacina ”SI.
Em conseqüência, o aumento populacional bandeirante - que determinou que inúmeros povoados se transformassem em vilas e estas emcidades - e a movimentação de homens em busca de emprego nos enge
81 - Oliveira, A.R.V. de - Op. cit., p. 60-61.
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nhos e também nas novas plantações de algodão resultaram em novascrises da higiene pública. Paralelamente, nas primeiras décadas do séculoXIX não só o continente americano, mas também a Europa vivenciaramum período marcado pelo recrudescimento das epidemias de varíola ma
jor como também da varíola minor ou alastrim, fato que não deixou dealarmar a administração paulista82.
Neste contexto, novas e severas disposições foram tomadas pelogovernador que, ainda influenciado pela idéia segundo a qual os escravos
africanos eram os principais disseminadores da varíola, reforçou os es
quemas de vigilância sobre os negros recém-chegados à Capitania. Dentre as medidas estabelecidas, o capitão-general ordenou que a populaçãosantista construísse casas de taipa ou de pau-a-pique barreado para servirem de abrigo aos bexiguentos e aos escravos novos, sendo que osenfermos mais graves deveriam a partir de então ser isolados e tratados por médicos, nas Santas Casas mantidas pelas comunidades litorâneas83.
No mesmo período buscou-se ainda redefinir a atuação dos hospi
tais paulistas e adaptá-los às novas propostas que estavam sendo elaboradas na Europa. Ao lado das sempre deficitárias Santas Casas, surgiuum novo Hospital Militar que, apesar do empenho oficial e privado, ainda por muito tempo sofreria do mal da desorganização. Além disto, foi planejada a construção de outras casas de saúde nos núcleos urbanos mais
populosos. Em 1807, o governador Franca e Horta convocou represen
tantes de São Paulo, Santo Amaro, Penha de França, Santana e SãoBernardo com o objetivo de abrir subscrições para o estabelecimento deum fundo destinado à criação de um novo nosocômio e também a instalação de boticas as mais completas e sofisticadas possíveis na capital e no porto de Santos84.
Foi programada ainda a fundação de um cemitério fora do espaço
citadino paulistano, onde deveriam ser enterrados todos os mortos, in
S2- - Cartw right, Frederick - Disease and History. New York, Thomas Y. Crowell Co., 1972, p.
115.
83 - D.I., vol. 55, p. 179-180 e D.I ., vol. 56, p. 37-38.
84 - D.I., vol. 57, p. 162-164.
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distintamente da causa mortis e da posição social, fato que indignou aelite local, cujos entes falecidos tradicionalmente eram sepultados nos recintos religiosos ou no perímetro de suas propriedades. A administração
colonial também preocupou-se com maior vigor com a limpeza das ruas,drenagem dos pântanos e com a proteção dos mananciais que abasteciam as principais vilas e a capital de São Paulo. Por fim, chegou-se mesmo
a se cogitar da instalação de uma universidade local, a qual deveria contarcom um curso de medicina e cirurgia.
A população paulista se expandia, exigindo dos governantes medidas normatizadoras mais consistentes e que garantissem a segurança e adisciplina do corpo social. Tomava-se premente a criação de uma Instituição Vacínica, à semelhança da que existia no Rio de Janeiro, e quedeveria oferecer a vacina jenneriana ao povo, abolindo de vez o perigoso
método da variolização.A organização de um órgão vacínico era trabalho para um médico
e não para um administrador colonial que pouco conhecia sobre as novasaquisições do saber clínico e epidemiológico. Por isto, a tarefa foi entregue ao físico-mor Justiniano de Mello Franco, médico graduado pelaUniversidade de Goettingen, de onde herdou os postulados da polícia sanitária germânica. Já tendo se destacado como organizador do novoHospital Militar, Mello Franco foi indicado para idealizar o regulamentoda Instituição Vacínica paulista pela sua experiência sobre o assunto, pois
anteriormente realizara um minucioso estudo sobre uma entidade similarque funcionava em Portugal85.
O empenho deste médico em criar uma Instituição Vacínica práticae eficiente, com sede na cidade de São Paulo, deveu-se sobretudo à boaimpressão que lhe causou a análise que ele próprio havia tecido sobre os bons resultados da vacinação na Europa e especialmente em Portugal.
Sobre o instituto sanitário lusitano, Mello Franco informou que o mesmofora criado pela Academia Real de Ciências de Lisboa em junho de 1812
85 - Bertolli Filho, Cláudio e Meihy, José Carlos Sebe Bom - História Social da Saúde: Opinião
Pública Versus Poder. São Paulo, Centro de Estudos de Demografía Histórica da América
Latina/ Universidade de São Paulo, 1990, p. 23-24.
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e do ano de seu estabelecimento até 1816 tinha realizado 42.266 vacinações - não contando o grande número de amostras de linfa que foramcedidas para outras nações - sem que nenhum acidente tenha sido notificado. Por isto, o clínico tornou-se um grande defensor da introdução donovo método imunizador nas colônias portuguesas, criticando os médicosque se opunham ao uso da vacina e acusando-os de quererem continuarlucrando monetariamente com a persistência das epidemias de bexigas.Mello Franco mostrava-se otimista até mesmo sobre a acolhida populardo novo método imunizador, afirmando que a “docilidade portuguesa”
não iria permitir reações agressivas à prática médica da “verdadeiravaccinação”86.
Por ordem do governador José Carlos Augusto Oeynhausen, MelloFranco elaborou em pouco tempo o regulamento da Instituição Vacínica
paulista, o qual foi apresentado oficialmente em 28 de novembro de 1819,revelando clara semelhança com o da instituição similar que funcionava
em Lisboa. Estabelecendo como objetivo básico a imunização de toda a população paulista no decurso de poucos anos, a Instituição Vacínica teria como membros um presidente (que deveria ser o governador da agoraProvíncia de São Paulo), um diretor, que ocuparia concomitantemente ocargo de inspector-geral da vacinação e dois inspetores convocados dentreos funcionários do Hospital Militar. Apesar do governador presidir o órgão, eram relativamente poucas as suas tarefas, todas elas definidas porquatro dos dezenove artigos que compunham o regulamento de MelloFranco: convocar sessões extraordinárias, oficiar aos capitães-mores dasvilas a ordem de preparo da população para a inoculação e a fiscalizaçãodos vacinadores, recebimento dos mapas mensais de imunização e dorelatório dos trabalhos efetuados e, finalmente, sancionar ou não as providências sugeridas pelo inspetor-geral87.
A estreita delimitação do poder do governador no âmbito da Ins86 - Franco, Dr. Justiniano de Mello - “Conta trabalhos vaccinicos lido na sessão publica da
Academia Real de Sciencias de Lisboa em 24 de Julho de 1816”. M emórias da Ac ademia Rea l
de Sciencias de Lisboa, Tomo 5, p. XXX-XLI1, Lisboa, 1817. Apesar de ser um texto
impresso, este documento encontra-se na sessão de manuscritos do Arquivo Público do
Estado de São Paulo, Ordem 346, Lata 96.
87 - £>./., vol. 31, p. 211-223.
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tituição Vacínica e a ausência no regulamento da explicitação dos encargos dos dois inspetores do Hospital Militar faziam com que todo o poderdecisório ficasse concentrado na pessoa do diretor do estabelecimento,aliás o único membro da equipe principal que obrigatoriamente deveriaser diplomado em medicina. O grupo de apoio, segundo o regulamentode Mello Franco, seria composto de um cirurgião, alguns ajudantes decirurgia e de um escrevente. A tarefa deste cirurgião seria fiscalizar o tra balho efetuado pelos seus ajudantes, enquanto que o escrevente deveriaorganizar os mapas de atividades e expedir a correspondência.
Usufruindo de grande liberdade de comando, o diretor tinha comoatribuições a responsabilidade de administrar a Instituição Vacínica paulista
e ditar as diretrizes a serem obedecidas pelos capitães-mores, funçõesque também caberiam ao governador, mas apenas como reforço e legalização das medidas tomadas pelo diretor. Cabia também ao médico-chefeselecionar os funcionários que desempenhariam funções no órgão, autori
zar o trabalho da equipe de vacinadores e assinar os mapas referentes aonúmero de inoculações realizadas mensalmente.
A autonomia da Instituição frente a outros órgãos oficiais era am pla, mesmo em relação à esfera militar. Assim, no regulamento de Mello
Franco constava que, se os vacinadores ocupassem postos militares, elesestariam subordinados à cúpula do serviço imunizador e não ao coman
dante das tropas paulistas.Por fim, o regulamento estabelecia a especificidade da atuação
dos vacinadores durante quadras epidêmicas e ainda certificava os equi pamentos e materiais necessários para o pleno desempenho do órgão.Por todos estes cuidados, Mello Franco deixou claro que a vacinaçãona Província se constituiria basicamente enquanto uma questão médi
ca e, por conseguinte, deveria ser um clínico o comandante de todo o processo.
Elaborado o regulamento, este foi imediatamente remetido às autoridades do Rio de Janeiro, para ser avaliado. Coube ao cirurgião da Câ
mara carioca, Theodoro Ferreira de Aguiar, a responsabilidade de pre parar um parecer sobre o documento. Após a análise oficial, a conclusão
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foi a seguinte:
“O Plano proposto pelo Capitão General da Capitania de S. Paulo hé muito bem combinado, e hé o que se acha pratica
do em muitos Estados da Europa com pequenas alterações, que procedem das differentes formas de administração publica. Entendo porem, que hé por ora inadequado para o Brazil;
pois hé precizo que em Estados nascentes os princípios de todas as couzas sejão simples, para serem faceis na sua execução; alias os pequenos obstáculos aniquilão os mais uteis designios ”88.
Assim, o posicionamento de Ferreira de Aguiar foi contra a criaçãoda Instituição Vacínica nos moldes propostos por Mello Franco. O cirurgião carioca defendia a instalação de um órgão com estrutura simplificadae com poderes e autonomia extremamente limitados, alterando a denominação da entidade para Casa do Estabelecimento Vacínico. Para tanto,em janeiro de 1820, Ferreira de Aguiar apresentou um plano substitutivo,
destinado a ser implantando não só na Província de São Paulo, mas tam bém em Minas Gerais e no Rio Grande de São Pedro do Sul89.O novo regulamento diferia substancialmente daquele de autoria de
Mello Franco, principalmente no que concernia à distribuição de poderesentre os componentes do primeiro escalão responsável pelo dispositivosanitário. O governador provincial continuaria ocupando o cargo de presidente, mas com a maior parte dos poderes deliberativos concentrados
em suas mãos. Todas as decisões seriam tomadas pelo presidente, res ponsável também pela seleção e contratação de pessoal, aquisição deequipamentos e materiais, fixação de salários, pagamentos, rubrica doslivros, expedição de correspondência, conferência dos mapas mensais etrimestrais e contato com outras autoridades civis, militares e religiosasque pudessem facilitar os trabalhos de imunização.
Segundo o novo regulamento, o inspetor-geral e diretor da Casa
do Estabelecimento Vacínico teria poucos poderes, pois estaria totalmente subordinado ao presidente que o escolheria para o cargo e também poderia dispensá-lo quando lhe aprouvesse. O diretor não precisaria ser
88 - D.I., vol. 36, p. 100-101.
89 - D.I., vol. 36, p. 98-100.
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graduado em medicina e, não dispondo de autonomia alguma, teria comoúnica tarefa executar as ordens emanadas pela presidência da entidade.Existiria ainda a serviço do órgão dois cirurgiões vacinadores, sendo um
deles efetivo e o outro contratado, atuando este último apenas em caso deimpedimento do titular ou quando houvesse aumento imprevisto dos tra
balhos. Como auxiliares, o Estabelecimento contaria com um escreventee com um número não definido de ajudantes de cirurgia, escolhidos entrevoluntários e também entre os profissionais de saúde que atuavam nosregimentos militares.
Para conferir maior dinamismo aos trabalhos vacínicos, Ferreira deAguiar propôs ainda que os cirurgiões das vilas e povoados maiores deveriam se responsabilizar pela imunização da população de suas áreas,enquanto que a Casa treinaria vacinadores itinerantes para atuar nos aglomerados humanos menores, munidos de autorização assinada pelo pró
prio governador.
Aprovado pelo rei em 23 de junho de 1820, o plano do Estabelecimento Vacínico mostrava-se lacunar, pois inclusive não estabelecia nemo local, nem os materiais e equipamentos necessários para o início dasatividades preventivistas. Acredita-se que várias decisões que deveriamconstar no regulamento ficaram ao encargo do governador, o que refletiaa postura do Estado em reservar para si a função de garantir a saúde dosseus súditos, relegando a comunidade médica a um plano menor, quaseque meramente complementar.
Enquanto transcorriam os debates motivados pelo regulamento maisapropriado para nortear as ações imunizadoras paulistas, a InstituiçãoVacínica começou a funcionar, sem a autorização real, em dezembro de1819.0 médico Mello Franco foi nomeado diretor do órgão e o clínicoorganizou os serviços em concordância com seu regulamento. Assim, em14 de abril de 1820 - portanto dois meses antes de ser sancionado oregulamento vacínico - o governo de São Paulo informava ter inoculado o pus vacínico em 1.270 moradores das vilas de Santos, Atibaia, Bragança,
Pamaíba, Itú, Sorocaba e Porto Feliz90.
90 - D.I., vol. 36, p. 110-111.
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Finalmente, em meados de 1820, o órgão vacínico foi inaugurado
oficialmente na Província de São Paulo, segundo os moldes estabelecidos
no regulamento de autoria de Ferreira de Aguiar. Apesar disto, foi mantida
a designação de Instituição Vacínica assim como Mello Franco permaneceu na direção do estabelecimento. O trabalho de imunização coletiva
continuou a ser executado e a localização de alguns mapas referentes às
atividades da Instituição no decorrer dos meses de junho e julho de 1821
permite a avaliação da eficiência da vacinação efetuada na Província.
Consta em tais mapas um total de 105 vacinações realizadas no
Vale do Paraíba, sendo que 26 inoculações foram efetuadas na vila deSão José do Paraíba, 60 em Taubaté e 19 em Pindamonhangaba. Destetotal, 89 vacinações (84,7%) foram consideradas verdadeiras, isto é,
ocorreu a pretendida imunização; 10 casos (9,5%) constituíram-se em
vacinações falsas, pois deu-se a inflamação da área escarificada, mas nãofoi constatada a formação de pústula; 5 casos (4,7%) corresponderam a
vacinações não pegas, fato denunciado pela ausência de inflamação e,apenas um caso (0,9%) correspondeu à vacinação duvidosa. A falta de
registros sobre casos inobservados denuncia o empenho oficial no controle dos trabalhos e da qualidade das vacinações91.
O combate às bexigas, finalmente, dispunha de um projeto consistente, num período de contínua expansão demográfica. O café trouxe novas
esperanças para a ainda pobre terra dos bandeirantes, assim como umalegião de imigrantes ainda não imunizados contra a varíola. A decisão
governamental de combater a moléstia epidêmica nem sempre se mostrouresoluta e, por isto, até praticamente o início do século XX muitos foram
os registros de epidemias pouco abrangentes ou de projeção provincial.
Em conseqüência, durante todo o transcorrer do período imperial, São
Paulo foi tido como um dos mais expressivos focos de varíola de toda anação. Dentre os núcleos paulistas, a cidade de Taubaté mostrou-se como
um dos municípios mais constantemente atingidos pela enfermidade. Em
1873 teve início uma devastadora epidemia que se expandiu para as regi
9L - São Paulo, Arquivo do Estado de - Ordem 346, Lata 96, manuscrito.
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ões vizinhas, paralisando por alguns meses as atividades econômicas dos
núcleos urbanos e de muitas unidades cafeicultoras92.
Apesar do prosseguimento do convívio dos vale-paraibanos com
períodos epidêmicos durante a fase imperial brasileira, toma-se significa
tivo perceber que, no encerramento da segunda década do século XIX, boa parte da população e especialmente o segmento corporificado pela
elite regional já se encontrava suficientemente condicionada pela interven
ção do Estado na esfera da saúde pública. Uma intervenção que visava
capacitai' física e moralmente os indivíduos para, enquanto força de tra
balho, serem integrados como agentes produtivos na empresa cafeeira e,em conseqüência, constituírem-se em agentes modemizadores da econo
mia e da sociedade nacional.
92 - Soto, Cristina - “Efeitos de uma epidemia de varíola em Taubaté (1873-1874)”. Revista de
História N.S. (127/128):9-35, Agosto-Dezembro/Janeiro-Julho de 1992-1993.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se nesta pesquisa retraçar uma parcela esquecida do pre
térito vale-paraibano. Às lacunas documentais somaram-se a existência
de uma historiografia que em boa parte ainda prima pelo enfoque ufanista
e também o desinteresse dos analistas contemporâneos sobre algumas
esferas do cotidiano da gente do Vale, inclusive as questões referentes à
saúde pública. Em conseqüência, muitas das interrogações foram no máximo substituídas por hipóteses que, nesta condição, acham-se passíveis
de revisão e até mesmo de eventual negação.
Apesar destas restrições, ficou evidente o papel desempenhado
pelas enfermidades no processo de conquista e colonização de uma par
cela territorial da “capitania do sul”. Mais ainda, a análise exponenciou
que os personagens coloniais adoeciam e morriam não só devido às condições do ambiente natural e à unificação microbiana, mas sobretudo por
que a experiência colonial ensejou a organização de uma sociedade em
tudo desigual, onde a população autóctone, os escravos negros e os ho
mens livres e pobres pagavam com muito mais vidas o preço exigido pelo
projeto de colonização do Vale do Paraíba. Assim, a tragicidade das
doenças e da morte abateu-se de forma diferenciada sobre a populaçãoestabelecida às margens do rio Paraíba. Nas múltiplas possibilidades de
enfermar, recuperar a saúde ou falecer, os mais pobres viram-se
freqüentemente desamparados de uma medicina acadêmica que ainda
hesitava em assumir a modernidade das propostas que se esboçavam nos
principais centros europeus. Somava-se a isto a reiteração de medidas
preventivistas empregadas há milênios pela civilização ocidental: detectando-se a contagiosidade do mal, os doentes eram expulsos do conví
vio coletivo, decisão esta que, se não implicava na virtual morte do enfer
mo, pelo menos impunha a exclusão social que muitas vezes não oferecia
caminho de retomo. Neste contexto, os agentes oficiais pouco se importunavam com as
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tramas individuais traçadas pela enfermidade. Somente quando o mal cons
tituía-se em ameaça coletiva é que o Estado e seus desdobramentos bus
cavam impor a ordem sanitária e mesmo assim relegando o saber médico
- quer o oficial, quer o popular - a uma situação de poucos poderes e ralaautonomia. O que a administração colonial pôde fazer foi pouco, muito
pouco. Os limites da intervenção oficial normatizadora das esferas públi
ca e privada da sociedade eram reduzidos, apesar de constantes e até
minuciosos. O empenho reformador dos hábitos e comportamentos, alia
do à melhoria dos padrões de saúde, não inibiram que o Vale do Paraíba
- à exemplo do resto do país - permanecesse durante um longo períodocomo refém da doença e da morte.
A Capitania, em seu todo, consolidava-se enquanto território de
mortíferas enfermidades, circunstância que se prolongou até o início do
século XX, pois até então era um desafio para os imigrantes europeus
escolher os portos brasileiros como destino final de suas longas viagens e
aqui permanecer, sem ser acometido por uma ou mais patologias.
Ao finalizar esta pesquisa ressalta-se uma vez mais o significadoavassalador das doenças no Vale do Paraíba colonial. A conquista e co
lonização desta parcela do território brasileiro foi certamente marcada
pelo heroísmo, pela astúcia e pelo intenso trabalho de índios, brancos e
negros. Mas também foi mais um capítulo da história onde o homem de
frontou-se com a doença, com o medo, com a dor e com a morte. E isto
a História e o historiador não podem esquecer.
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