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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
JULIA DA SILVEIRA CARRERA
Les Éphémères
Cinema em Cena no Théâtre du Soleil
JULIA DA SILVEIRA CARRERA
Les Éphémères - Cinema em Cena no Théâtre du Soleil
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Artes da Cena da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Artes da Cena.
Orientadora: Profa Doutora Gabriela Lirio Gurgel Monteiro.
Co-orientadora: Profa Doutora Elizabeth Jacob.
Rio de Janeiro
2017
AGRADECIMENTOS
Agradeço a comunidade acadêmica da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, sem a qual esse trabalho não seria possível, em especial aos meus
colegas da turma de 2015 do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena.
Agradeço, especialmente, as queridas Gabriela Lírio e Elizabeth Jacob, mais do que
orientadoras, verdadeiras amigas, pela paciência, dedicação, olhar atento, incentivo e
carinho, sem os quais eu certamente não teria chegado até aqui.
Agradeço a banca tão especial para a minha defesa, Alessandra Vannucci e Ana
Achcar, professoras e amigas da minha mais alta estima. Agradeço ao Eduardo Vaccari,
grande amigo e parceiro, pelo empréstimo de fontes de pesquisas valiosas sobre o Théâtre du
Soleil.
Agradeço, infinitamente, a Juliana Carneiro da Cunha e Ariane Mnouchkine, pela
inspiração de uma vida e por tamanha atenção e carinho, na esperança de que esse trabalho
seja uma retribuição à altura.
Agradeço a FAPERJ pela bolsa de pesquisa que tornou possível uma verticalização e
dedicação ao trabalho imprescindíveis para eu atingir os resultados esperados.
Agradeço aos meus pais, Doia e Oscar, cujo apoio tem sido uma constante em minha
jornada, e nesses últimos anos não poderia ter sido diferente. Agradeço ao Paulo, meu
companheiro, pelo carinho e pelas horas de sono, repostas aqui e ali. Agradeço e ofereço
esse trabalho também a Clara e João, melhores parceiros de caminhada, assim como a Alice
e Cacau.
Às minhas estrelas-guias, Nicholas, Valentina, Vicente e Stella, peço perdão pelas
ausências e agradeço toda a inspiração e energia que recebo em todos os dias de nossas
vidas.
GRATA! Pouco importa a espera de duas horas na lista do mesmo
nome, pouco importa o frio e a incerteza. E mesmo: encontrar
finalmente um lugar conseguido “depois de muita luta”, graças à
magia da jovem moça que fazia tudo para fazer entrar todo mundo, é
ainda mais magnífico ter a sorte - que sorte! - de poder entrar neste
“Quarto na Índia” onde todos os horrores deste mundo nada podem
contra o calor humano e o mundo das artes. GRATA de todo o
coração. À Ariane Mnouchkine e à trupe maravilhosa.
Kathrin Rousseau, carta ao Théâtre du Soleil em 14/01/2017
Acontece que estamos fazendo um espetáculo que fala de instantes…
Do presente que já não é presente no momento em que digo a palavra
“presente”. Talvez da beleza dos seres, da dificuldade que temos em
apreender essa beleza, e quando, às vezes, nos damos conta do quanto
esse instante era belo, ele já passou. É um espetáculo feito dos
instantes que nos fizeram.
Ariane Mnouchkine
RESUMO
CARRERA, Julia da Silveira. Les Éphémères - Cinema em Cena no Théâtre du Soleil. Rio
de Janeiro, 2017. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena). Escola de Comunicação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.
A dissertação propõe uma análise da obra de Ariane Mnouchkine e do Théâtre du
Soleil a partir do estudo sobre as relações entre cinema e teatro, tendo como objeto principal
de pesquisa o espetáculo Les Éphémères (2006). Interessa investigar, para além dos “filmes
de teatro” (PICON-VALLIN, 2001) produzidos pela companhia, a influência da linguagem
cinematográfica no processo de criação da cena teatral no espetáculo Les Éphémères e os
desdobramentos deste no espetáculo seguinte da companhia, Os Náufragos do Louca
Esperança. Este espetáculo é relevante na trajetória do grupo pela ruptura temática e pela
originalidade da encenação, da relação ator x espectador e do processo de criação,
distanciando-se do que foi realizado anteriormente.
Muito já foi dito sobre as criações épicas do Théâtre du Soleil, cunhadas pelo uso da
máscara teatral e o universo estético implicado nessa escolha, sobre a potência de suas
criações coletivas, a relação dos espetáculos com o ativismo político da companhia, e sobre a
face humanitária de seus espetáculos. Esta dissertação pretende, portanto, ampliar o campo
de discussão sobre a obra da companhia, levantando questões em relação à natureza híbrida
dos espetáculos realizados depois dos anos 2000 e sua convergência para o teatro
contemporâneo, especialmente no que tange às imbricações entre teatro e cinema e a
experiências de intermedialidade.
RÉSUMÉ
CARRERA, Julia da Silveira. Les Éphémères - Cinema em Cena no Théâtre du Soleil. Rio
de Janeiro, 2017. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena). Escola de Comunicação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.
La thèse propose une analyse de l'œuvre d'Ariane Mnouchkine et le Théâtre du Soleil,
à propos de l'étude sur la relation entre le cinéma et le théâtre, dans laquelle l'objet principal
de la recherche c’est le spectacle Les Éphémères (2006). Centres d'intérêt enquêtent au-delà
des « films de théâtre » (PICON-Vallin, 2001) produit par la troupe, l'influence du langage
cinématographique dans le processus de création de la scène de théâtre dans le spectacle Les
Éphémères et les ramifications de cela dans le prochain spectacle de la compagnie, Les
Naufragés du Fol Spoir. Cette spetacle est importante dans le chemin du groupe à cause de la
thématique et l'originalité du scénario de rupture, le spectateur relation x et le processus de
création d'acteur, en se éloignant de ce qui a été fait auparavant.
Beaucoup a été dit sur les créations épiques du Théâtre du Soleil, frappées par
l'utilisation du masque de théâtre et de l'univers esthétique implicite que le choix de la
puissance de leurs créations collectives, la liste des spectacles avec l'activisme politique de
l'entreprise, et sur la face leurs spectacles humanitaires. Ce document vise donc à élargir le
champ de la discussion sur le travail de l'entreprise, ce qui soulève des questions quant à la
nature hybride des spectacles réalisés après l'an 2000 et la convergence au théâtre
contemporain, en particulier en ce qui concerne chevauchement entre le théâtre et le cinéma,
les expériences intermedia.
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 - Duccio Bellugi Vanuccini em Tambours Sur La Digue........................................... 18
Imagem 2 - Tambours Sur La Digue (2001) ............................................................................... 19
Imagem 3 - Cena de Les Éphémères (2006) ................................................................................ 20
Imagem 4 - Ator em cena em de L’age D’or (1975) ................................................................... 48
Imagem 5 - Cartaz do filme Au Soleil même la Nuit.................................................................... 52
Imagem 6 - 1789 ......................................................................................................................... 53
Imagem 7 - Les Éphémères, Sesc São Paulo, 2007...................................................................... 53
Imagem 8 - L’age D’or................................................................................................................. 54
Imagem 9 - Programa de Les Éphémères (2016) .......................................................................... 66
Imagem 10 - Programa de Les Éphémères................................................................................... 68
Imagem 11 - Páginas do programa Les Éphémères...................................................................... 69
Imagem 12 - Páginas do programa Les Éphémères...................................................................... 70
Imagem 13 - Página do programa Les Éphémères....................................................................... 72
Imagem 14 - Página do programa Les Éphémères....................................................................... 73
Imagem 15 - Contracapa do programa Les Éphémères................................................................ 74
Imagem 16 - Páginas do programa Les Éphémères...................................................................... 75
Imagem 17 - Les Éphémères (2006) ............................................................................................ 84
Imagem 18 - Le Dernier Caravanserail....................................................................................... 90
Imagem 19 - Les Éphémères (2007) ............................................................................................ 92
Imagem 20 - Jean-Jacques Lemêtre.............................................................................................. 96
Imagem 21 - Les Éphémères (2007) ............................................................................................ 99
Imagem 22 - Les Éphémères (2007) ............................................................................................ 100
Imagem 23 - A atriz Shasha.......................................................................................................... 101
Imagem 24 - Atores saem de cena................................................................................................ 107
Imagem 25 - A atriz Delphine Cottu............................................................................................ 110
Imagem 26 - Arquibancadas......................................................................................................... 112
Imagem 27 - Juliana Carneiro da Cunha e Delphine Cottu.......................................................... 115
Imagem 28 - Juliana Carneiro da Cunha...................................................................................... 118
Imagem 29 - A pequena Aline...................................................................................................... 119
Imagem 30 - Pai e filha................................................................................................................. 123
Imagem 31 - As atrizes................................................................................................................. 125
Imagem 32 - Montagem da estrutura principal............................................................................. 133
Imagem 33 - Capa do programa da turnê brasileira (2011) ......................................................... 133
Imagem 34 - Jovem ator do filme (2013) .................................................................................... 135
Imagem 35 - Montagem da cena.................................................................................................. 137
Imagem 36 - Cartoucherie............................................................................................................ 139
Imagem 37 - Atores em cena no espetáculo................................................................................. 140
Imagem 38 - Juliana filma através da “grua” .............................................................................. 140
Imagem 39 - Cartoucherie ........................................................................................................... 141
Imagem 40 - Juliana Carneiro da Cunha (2013) .......................................................................... 143
Imagem 41 - Charles Darwin........................................................................................................ 144
Imagem 42 - Legendas em português........................................................................................... 145
Imagem 43 - A proa do navio “Louca Esperança” ...................................................................... 146
Imagem 44 - Atores olham pelas escotilhas do navio...................................................................... 147
Imagem 45 - Todos projetam como será a vida............................................................................ 147
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 - Hibridações entre teatro e cinema: teoria e prática
1.1 Reflexões sobre as influências entre o cinema e o teatro: aproximações......................... 24
1.2. Teatro e cinema na cena contemporânea......................................................................... 34
1.3. O Théâtre du Soleil e sua dupla vocação como teatro e cinema..................................... 44
CAPÍTULO 2 - O processo criativo de Les Éphémères: um meteoro ofusca o Soleil de outrora
2.1. Escritos de artista: notas de ensaio catalogadas no programa original da temporada
francesa.................................................................................................................................
63
2.2. Cenas performativas: imagens de si e do outro em Les Éphémères.................................... 75
2.3. Gatilhos da memória: lembranças do processo de criação por suas criadoras.................... 87
CAPÍTULO 3 - A Potência do Efêmero
3.1. O hibridismo da linguagem em Les Éphémères: teatro e cinema tornam-se uma outra
linguagem.............................................................................................................................
104
3.2. Um novo ponto de partida: Os Náufragos do Louca Esperança .................................... 131
CONCLUSÃO........................................................................................................................... 148
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................... 152
ANEXOS
Anexo 1 - Roteiro para entrevista com Juliana Carneiro da Cunha.......................................
159
Anexo 2 - Roteiro para entrevista e algumas respostas de Ariane Mnouchkine....................
162
13
INTRODUÇÃO
Podemos erguer um monumento ao efêmero? Todo livro sobre teatro é um pouco
este monumento. Melhor e pior. Trabalho incompleto de ressurreição impossível. É
um pouco disto que nós tentamos alcançar aqui: fazer ressurgir o impossível na
tentativa de fixar o efêmero. (FÉRAL, 1995, p. 13)
“Ephémeros”, ou “apenas por um dia”, é a origem grega do termo “efêmero” utilizado
para designar tudo aquilo que tem caráter passageiro, transitório, fugaz. Se diz que o teatro é a
arte do efêmero, cada apresentação se esvai durante a sua duração, sobrevivendo somente na
memória dos que estavam ali presentes, atores e público. E o cinema seria a tentativa de reter
o momento, eternizar o instante, reverter este efêmero estado de coisas, mas,
Como afirma Lúcia Santaella, a eternização do instante da fotografia
“inevitavelmente aponta para seu avesso: a irrepetibilidade e morte irremediável do
flagrante capturado”. É intrigante como os primeiros filmes nos trazem essa
consciência incômoda do instante assassinado com muito mais força do que os
filmes mais recentes, o que certamente ajuda a explicar o poder dos atuais modelos
narrativos sobre nossa percepção. (...) Além disto, o espectador é repetidamente
chamado a participar da cena e responder aos acenos e piscadelas dos atores, que se
dirigem ostensivamente à câmera e deixam claro que sabem da nossa presença.
(CESARINO COSTA, 2008, p. 31)
Atores que sabiam da nossa presença, assim com os personagens de Tchecov que se
exercitavam em imaginar como seria a vida na terra dali a duzentos anos… Tentativas de
capturar o tempo e a vida, esta “sombra que passa”, para trazer sentido, fazer relevância,
animar nossa monótona caminhada, isto é a arte. Como fogos de artifício, nós, artistas, nos
esforçamos para recriar a beleza da chama que ilumina nossos labirintos e conforta nossa
alma, ainda que saibamos da brevidade de tudo. Começamos novamente, e mais uma vez,
teimando contra a inexorabilidade da passagem do tempo. O bufão que aponta para as
estrelas, especialmente quando o céu está nublado, é o mago do tempo, aquele que se
aproxima de Deus porque cria mundos e os dá a ver, os coloca à mostra, lembrando que o
mundo é um palco, um teatro. De efêmero em efêmero, o artista cria pontes e escreve histórias
únicas.
A minha história com o Théâtre du Soleil começou em março de 2002, quando
conheci a atriz Juliana Carneiro da Cunha em uma oficina que ela ministrou no Teatro do
Jockey no Rio de Janeiro. Entrei ali como ouvinte e saí preparando as malas para a maior das
viagens da minha vida, o estágio que aconteceria em agosto daquele mesmo ano, no Théâtre
du Soleil, em Paris.
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Durante as semanas do estágio em que me juntei a outros quatrocentos atores para
tentar, com todas as forças, “fazer um pouco de teatro, do verdadeiro teatro” como nos
convidava Ariane Mnouchkine todas as manhãs, vivi alguns dos momentos mais intensos de
toda a minha vida. Tinha então 22 anos, dos quais 9 eu havia vivido, também intensamente,
sobre o palco do Teatro O Tablado, no Rio de Janeiro. Naquele tablado, aprendi que atuar era
muito mais do que viver personagens; ali, com a generosidade de grandes professores como
Guida Vianna, Cico Caseira, João Brandão, Bernardo Jablonski, Cacá Mourthé, Eddy
Resende e, last but not least, Maria Clara Machado, entre tantos outros, aprendi a ser atriz,
dramaturga, diretora, cenógrafa, figurinista, diretora musical, iluminadora e, principalmente,
produtora das minhas cenas, e, posteriormente, dos meus espetáculos. Isto tudo amadureci
n’O Tablado, um teatro nascido do sonho de outra diretora visionária, Maria Clara Machado
(uma artista amadora no maior dos sentidos), fundado em 1951, ano em que ela voltou de sua
viagem iniciática à Paris, onde, entres muitas aventuras, estudou técnicas de improvisação
com Charles Dullin. Lembro que eu, andando naquele fim de verão parisiense de 2002,
imaginava se passaria por alguma ruela onde poderiam ter se cruzado Maria Clara Machado e
Ariane Mnouchkine, em um encontro imaginário em um fim de dia qualquer no verão
parisiense de 1950. Duas belas jovens, sonhando e projetando seus incríveis percursos
porvires, os quais alimentariam, depois, meus sonhos de teatro, eu, uma jovem do início do
século XXI. Devaneios.
Uma passagem pelo Théâtre du Soleil marca a vida de qualquer pessoa, especialmente
a de uma jovem atriz em uma rotina de várias semanas vivendo uma vida dedicada ao teatro,
desde às oito da manhã às oito da noite, improvisando cenas mas também lavando os
banheiros, cozinhando, arrumando figurinos e adereços, organizando sessões de filmes,
operando refletores e fazendo festas. Com Ariane Mnouchkine aprendi a respeitar o silêncio
do teatro e a lavar louça economizando água. No Théâtre du Soleil assisti a uma máscara em
cena pela primeira vez; compartilhei da energia de viver as dores e as delícias do teatro ao
lado de atores de todos os continentes, de quase todas as nacionalidades; recebi a
generosidade com a qual os maiores atores que já vi em cena arrumavam o meu figurino e me
davam coragem para entrar no palco. Nunca mais esqueci tudo que vivi ali e, até hoje, foram
poucos os dias da minha vida em que o Soleil não habitou meus pensamentos por alguns
minutos que fossem.
Quando o estágio de 2002 terminou e voltei ao Brasil, estava obstinada em tentar
perpetuar tudo o que aprendi, de alguma maneira. Mantive fortes laços afetivos com Juliana
Carneiro da Cunha, além dos profissionais. Assim, produzi muitas das oficinas que ela
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ministrou no Brasil, desde então, além de ter participado da produção brasileira dos
espetáculos da companhia que por aqui fizeram turnê: Les Éphémères (2007) e Os Náufragos
do Louca Esperança (2011), neste último de forma bastante intensa.
Por conta de tantos anos de envolvimento, assisti a todos os DVDs da companhia e li
todos os livros que me chegavam às mãos, de forma que me tornei uma pesquisadora do
Soleil por curiosidade e admiração. Em minha trajetória como atriz, o trabalho com máscaras
ganhou destaque, tornando-se também uma linha de pesquisa pessoal que culminou com a
realização de um espetáculo de commedia dell’arte, dirigido pelo italiano Roberto Innocente,
Arlequim e Mirandolina (2008), além de muitos grupos de estudos.
Assim, quando decidi reingressar na vida acadêmica para a realização do mestrado,
não tinha dúvidas quanto ao meu objeto de estudo: o Théâtre du Soleil. E quando me vi diante
da necessidade de fazer um recorte específico, lembrei do impacto que senti quando assisti à
Les Éphémères pela primeira vez, em São Paulo, no Sesc Belenzinho, em 2007. Chamou a
minha atenção o fato de ser esse um espetáculo do Soleil com uma natureza absolutamente
diferente dos demais. Era teatro, mas nós, os espectadores, saíamos com a sensação de ter
visto um filme; havia a teatralidade do Soleil mas em uma estrutura que nada tinha a ver com
o universo das máscaras ou do teatro épico. O efeito em mim foi apoteótico, de fato me senti
incluída entre os deuses. Lembro também de estar na plateia e cruzar o olhar com um senhor à
minha frente, na arquibancada diante da minha, e nós dois estarmos com os olhos marejados
diante da cena que havia acabado de acontecer a nossa frente. Imediatamente, associei esta
sensação a toda a comunhão que vivi durante a minha experiência no estágio francês. Por tudo
isto, escolhi me dedicar nesta dissertação à análise de Les Éphémères e, a partir disto,
verticalizar minha pesquisa sobre o Théâtre du Soleil, descobrindo muitas das lacunas que
ainda existem neste percurso, no qual, percebo, ainda sou mera iniciante.
Les Éphémères, espetáculo que estreou, em Paris, no ano de 2006 e, em São Paulo, em
2007, marcando a primeira visita do Théâtre du Soleil ao Brasil, é o vigésimo trabalho da
companhia. Fundada em 1964, por um grupo de estudantes, é dirigida por Ariane
Mnouchkine, considerada uma das maiores encenadoras de todos os tempos, ainda em plena
atividade. Em 1970, quando a diretora e sua trupe conseguiram permissão para ocupar um dos
galpões da Cartoucherie, no Bois de Vincennes,1 na periferia de Paris, para ensaiar 1789 – La
1 A Cartoucherie de Vincenne, situada no Bois de Vincennes, nos arredores de Paris, foi construída em 1874
para abrigar as fábricas de cartuchos e pólvoras que alimentariam o exército francês. Durante a Primeira Guerra
Mundial foi amplamente utilizada, sendo tomada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Os galpões
chegaram a ser usados como Centro de Identificação para retenção de africanos na década de 1950, sendo
completamente abandonados nas décadas seguintes. Em 1970, o Théâtre du Soleil, ensaiou ali seu espetáculo
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Révolution doit s’arreter à la perfection du bonheur, foi iniciada a trajetória de uma das mais
bem aventuradas companhias de teatro da história.
O início da trajetória de Mnouchkine, porém, antecede à criação da companhia por
estudantes franceses que, reunidos no que chamaram de Sociedade Cooperativa de Trabalho
de Produção – Théâtre du Soleil, em 1964, já anunciavam os movimentos estudantis e sociais
que tomariam a França alguns anos mais tarde, em maio de 1968. Dos dez estudantes que
fundaram esta que é uma das companhias de teatro mais antigas em atividade, duas jovens (a
estudante da Escola do Louvre, fotógrafa de muitos espetáculos da companhia, Martine
Franck, e, a então estudante de psicologia, Ariane Mnouchkine), alguns anos antes, em 1959,
criaram a Associação Teatral dos Estudantes de Paris (ATEP). Entre as atividades produzidas
estavam a organização de cursos e conferências de teatro para estudantes com professores das
escolas de Charles Dullin2 e de Jacques Lecoq, a recepção de companhias de teatro
estrangeiras envolvidas no Teatro das Nações e a produção de espetáculos próprios.3 Depois
de alguns anos, a ATEP foi dissolvida, já que seus integrantes precisavam terminar seus
estudos e prestar serviço militar, com a promessa de retomarem o projeto de criação de uma
comunidade teatral, onde todos investiriam uma mesma soma em dinheiro, portando, assim,
direitos e deveres iguais, e acumulando funções técnicas e administrativas às funções
artísticas. Neste período de retiro, Mnouchkine partiu em uma viagem iniciática pela Ásia,
onde mergulhou na arte oriental, sendo especialmente tocada pelo Kathakali e pelas máscaras
do teatro oriental. Ao retornar a Paris, retomou o grupo para a fundação efetiva do Théâtre du
Soleil, tendo como objetivo:
1789 La Révolution doit s’arrêter à la perfection du bonheur e, após o sucesso na estreia em Milão, e em busca
de um espaço para apresentações e trabalhos posteriores que não fosse, de forma nenhuma, um teatro,
conseguiram a permissão para ocupar alguns de seus galpões. Apesar dos esforços empregados na restauração
dos espaços pelos próprios integrantes da companhia e da ocupação dos outros galpões por outros grupos,
durante a mesma época, a autorização oficial da prefeitura para a ocupação se deu apenas em 1985, quando a
Cartoucherie de Vincennes passou a ter o aspecto que se pode conhecer atualmente. 2 Charles Dullin (1885-1949) foi um importante ator e homem de teatro francês, responsável pela renovação do
teatro popular da França, calcada na improvisação, na mímica e no estudo sobre textos clássicos. Foi grande
colaborador de Jacques Coupeau. 3 O Teatro das Nações foi uma série de festivais internacionais de teatro organizados a partir de 1954, por Aman
Maistre-Julien e Calude Planson, ambos engajados no movimento de reconstrução da identidade europeia no
pós-guerra, trazendo à França grandes companhias de teatro e artistas de todo o mundo. O espírito que inspirava
a todos era a necessidade latente de alcançar uma solidariedade maior do que em qualquer outro momento
histórico, tendo em mente que o conhecimento das culturas estrangeiras era uma condição essencial para isto.
Com a presença de diretores como Joan Littlewood e Peter Brook, e companhias como A Ópera de Pekin,
Piccolo Teatro, Berliner Ensemble, durante muitos anos houve um intenso intercâmbio artístico e cultural que
marcou essencialmente a produção artística das gerações que o assistiram, e que se mantém até a atualidade,
seja através da perpetuação de processos criativos pautados pela interculturalidade, seja pela manutenção de
festivais internacionais por todo o mundo.
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Fazer teatro. Mas não aquele que lhes mostravam. Não um teatro de vedetes onde se
implora um cachê, onde cada um quer fazer carreira, onde cada um puxa a coberta
para si. Não. Um teatro de grupo. Durante o dia, eles ganhariam a vida. À noite e na
madrugada, trabalhariam juntos. Reinventariam o teatro. Foi o que fizeram.
(BABLET, 1979, pp. 7-9)
O Théâtre du Soleil tem sua origem marcada por fatos que iluminam sua trajetória e
escolha de repertório: a vivência comunitária de todos os seus integrantes, o ativismo político
e a criação de espetáculos com forte engajamento, voltados para a construção do bem comum,
ao gosto dos princípios universais da Revolução Francesa, uma tendência incutida em seus
processos criativos. Outra característica é o interculturalismo, presente primeiro em seus
espetáculos, depois na própria escolha dos integrantes da companhia.
Em termos das relações entre arte e política, ainda que o Théâtre du Soleil nunca tenha
abdicado da formalização estética em seus espetáculos, é fato que a vivência comunitária de
seus integrantes sempre caminhou para a finalidade revolucionária da arte, seja por propor
meios de produção absolutamente radicais frente ao teatro comercial e de pesquisa, por incluir
em suas atividades e espetáculos manifestações de engajamento político.
Por conceito e por força das circunstâncias, fundou-se, então, uma empresa coletiva,
nos moldes das antigas companhias de commedia dell’arte, onde a vida solidária foram as
locomotivas para a devida ocupação do espaço e a manutenção do trabalho continuado de
seus membros. No entanto, é interessante notar que a excelência artística de seu repertório
está vinculada, principalmente, à capacidade de reinvenção do grupo que, em escuta
permanente e precisa sobre a realidade circundante, vem sendo capaz de se metamorfosear e
manter acesa a chama do encontro entre o teatro e seu público.
Dentro deste contexto, optei por delimitar esta pesquisa ao repertório da companhia a
partir dos anos 2000, quando foi realizado o filme de Tambours sur la Digue, um “filme de
teatro” (PICON-VALLIN, 2002), assinado por Mnouchkine, enquanto cineasta. Foi nesta
experiência que a diretora e sua trupe se depararam com a prática de recriar para o olhar da
câmera as cenas teatrais que compunham o espetáculo. A peça era uma criação coletiva em
harmonia com a dramaturga Hélène Cixous, inspirada no teatro oriental antigo, em que os
atores atuavam como marionetes de Bunraku,4 sustentados por atores/titereiros (kokens) e
apresentava soluções fortemente teatrais na encenação.
4 O Bunraku, também conhecido como Ningyō jōruri, é um gênero do teatro japonês, bastante popular, que se
dedica a contar as histórias do Japão antigo, através da manipulação de bonecos de mais de um metro de altura,
feita por titereiros. Os bonecos são construídos com tamanha perfeição e possuem uma técnica de manipulação
tão refinada que parecem ter vida.
18
Para a realização do filme sobre o espetáculo, captado na própria Cartoucherie,
Mnouchkine dedicou-se à transposição da teatralidade do espetáculo para a linguagem
cinematográfica. Profunda conhecedora desse métier, a diretora já havia realizado o filme
Molière (1978), um longa-metragem de quatro horas de duração e mais de 120 atores,
aclamado pelo público e crítica da época, além de assinar a co-autoria do documentário Au
Soleil Même la Nuit (1997) e de registros em vídeo de alguns de seus espetáculos. Porém,
durante as filmagens de Tambours sur la Digue, Mnouchkine optou por mergulhar nas
profundezas das técnicas do cinema e do teatro, para fazer o trânsito artístico entre uma e
outra.
Imagem 1 - Duccio Bellugi Vanuccini em Tambours sur la Digue. Théâtre du Soleil, Paris, 1999.
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Imagem 2 - Tambours sur la Digue (2001),
Imagens da filmagem na Cartoucherie, Paris
Foi a partir de então, como consequência, que as técnicas do cinema foram absorvidas
na rotina criativa da companhia, que aderiu também ao uso do vídeo para a gravação dos
processos de criação, e do computador para organização da logística e rotina de trabalho na
sala de ensaio. Organicamente, alguns recursos do cinema passaram a participar da criação
cênica, em harmonia com o conceito de “cineficação da cena” (PICON-VALLIN, 2011). Le
Dernier Caranvansérail (2003), espetáculo seguinte da companhia, apresentou não só o uso
de telas e projeção em seu espaço cênico, mas também introjetou a linguagem do cinema na
cena, como, por exemplo, nas plataformas que conduziam plataformas de cenários e atores,
fazendo alusão aos dollys.5
Mas foi no espetáculo seguinte, Les Éphémères, que Mnouchkine pareceu aprofundar
a relação entre teatro e cinema, unindo o uso das técnicas de cada arte a serviço do tema e da
pesquisa estética que o espetáculo propunha. Para falar dos momentos efêmeros que
compõem a vida de todos e de cada um, Mnouchkine abriu mão do palco italiano, acolhendo a
plateia em dois grandes balcões, um a frente do outro, com uma grande passarela ao meio por
onde percorriam as pequenas plataformas redondas de cenários realistas conduzidos por
atores/impulsores, sobre os quais interagiam os atores da cena, em movimento contínuo.
Neste espetáculo o cenário tomou ares de direção de arte cinematográfica, a ponto de ter fogo
5 Dollys são mecanismos com rodas ou algum tipo de rolamento usados para deslizar a câmera de um ponto a
outro.
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em cena, abajures que se acendiam e fornos que cozinhavam, como mágica, posto que não
havia condutores de energia aparentes pelo espaço.
Imagem 3 - Cena de Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2006.
Na temática, Mnouchkine também inaugurou um novo caminho ao tratar das pequenas
anedotas da vida íntima, de modo que os atores propuseram suas “visões” a partir de material
documental, tanto de jornais e revistas, quanto da biografia de cada um.6 Estas pequenas
pérolas íntimas, distribuídas ao longo do espetáculo de sete horas de duração divididas em
duas partes, eram pequenos episódios da vida comum que evoluíam em série, compondo um
mosaico da experiência humana contemporânea, de forma delicada e sutil.7 É interessante
notar que o principal fio condutor (ou série principal de cenas), a história cujo enredo
entrelaçava o espetáculo da primeira à última cena, incluía parte da biografia da própria
Ariane Mnouchkine, trazendo à cena um pouco da história vivida por seus antepassados
judeus, tentando escapar dos horrores do nazismo que deflagrou a Segunda Guerra Mundial.
Uma avó, costureira, e um avô, distribuidor de filmes de cinema – veja só! – fugiram para
Bruxelas em procura de asilo sem, no entanto, serem bem-sucedidos.
6 Para a diretora, o processo de criação do ator calcado na improvisação deve partir não de uma ideia
intelectual, mas de uma visão ou imagem mental sobre determinado personagem ou situação. O ator deve,
então, reunir um pequeno grupo de atores para combinar a improvisação impulsionada por esta visão para,
posteriormente, apresentar o trabalho aos demais colegas da companhia. 7 Houve ainda um grupo de cenas que formaria uma terceira parte do espetáculo que, porém, nunca chegou a ser
finalizado e mostrado ao público.
21
Essa história, trazida à cena com riqueza de detalhes, entre tantas outras, encontrou sua
forma material no efêmero espaço da cena, assumindo aspectos do teatro documental e
autobiográfico e apresentou, ainda, traços do Teatro Performativo (FÉRAL 2015),8 colorindo
com novos matizes o processo criativo do Théâtre du Soleil. Os desdobramentos deste
espetáculo estiveram à altura da pesquisa que lhe deu origem, não só pela profunda
identificação e empatia do público em todos os países visitados em turnê,9 mas também pela
unanimidade de teóricos como George Banu e Beatrice Picon-Vallin (que acompanham o
trabalho da companhia há muitas décadas) ao afirmar que se tratava de um momento único e
especial da companhia quinquagenária. Por estes motivos e pela relevância do trabalho de
Ariane Mnouchkine e do Théâtre du Soleil, em termos artísticos, sociais e políticos na história
recente do teatro ocidental, realizo a presente pesquisa no intuito de verticalizar a análise do
espetáculo Les Éphémères, em especial.
Parto da hipótese de que o espetáculo se destaca no repertório da companhia
justamente por incluir lacunas em sua tessitura como consequência da narrativa híbrida,
presentes em um teatro que absorve a linguagem do cinema e apresenta traços do teatro
performativo, oferecendo ao espectador uma experiência cinética que procura instaurar um
presente, atualizado a cada instante, efêmero. Sendo um presente permanente, passado e
futuro desaparecem, levando consigo a ideia de conflito e deixando o espectador livre para a
contemplação, – seja da cena, seja do outro espectador ou ator diante de si. Neste lugar,
portanto, não se pode pensar em um espetáculo que “re-presenta” a realidade, posto que não
há um único referencial de origem que deve ser evocado novamente, mas, sim, a constante
instauração de um tempo/espaço que se atualiza a cada experiência compartilhada por todos,
diante de todos.
Ariane Mnouchkine e o Théâtre du Soleil nos acostumaram a tomadas de posições
fortes, a engajamentos explícitos às vezes criticados pela clara propensão de reduzir
a complexidade do mundo em nome de um processo autoritariamente instruído. Essa
incisividade de opiniões agora se atenua, pois, situação inesperada, o Soleil, já não
dissocia, com sua costumeira nitidez, os culpados das vítimas. Pela dor e também
pela ternura desses relatos (do espetáculo Les Éphémères) ninguém mais é
responsável, tampouco levado ao pelourinho. A não ser a vida, simplesmente, a vida
que se apresenta como uma meada de contradições, desastres, confusões,
reencontros. Não há em Les Éphémères nem acusados, nem acusadores, nem
vencidos, nem vencedores… E o espetáculo adota a postura cara a Tchekov, a do
“testemunho imparcial”. Não julga, não responde, só conta “relatos que poderiam
8 No espetáculo, parece justo perceber o percurso do processo criativo da companhia que parte da biografia
íntima dos envolvidos, mas acaba por desembocar em uma encenação altamente complexa, em um entrelace de
tramas e personagens que naturalmente provocam no espectador o desejo de criar suas próprias narrativas
ficcionais. 9 O espetáculo foi levado a todos os continentes.
22
ser objetos de vários contos”, parafraseando a célebre fala de Trigorin em A Gaivota.
(BANU, 2007, p. 32).
Analisei o processo de criação da peça em relação aos demais espetáculos da
companhia, observando sua consonância com o teatro contemporâneo, ainda que a companhia
não apresente como meta a inserção em nenhum rótulo ou gênero de criação artística, e
analisei as interlocuções que se dão entre o cinema e o teatro, em termos técnicos e estéticos,
trazendo um contexto teórico como baliza. Assim, no primeiro capítulo, introduzi algumas
reflexões sobre o cinema e o teatro, suas imbricações e influências, tendo como referências
teóricas as análises dos autores Bazin, Aumont, Sontag, Xavier e Pavis.
Em seguida, me detive sobre os conceitos de “Filme de Teatro” e “Cineficação da
Cena”, propostos por Beatrice Picon-Vallin, e “Intermedialidade”, por Isabella Pluta, como
ferramentas para uma análise das relações entre teatro e cinema no teatro contemporâneo. Ao
final deste capítulo apresento uma análise histórica do percurso do Théâtre du Soleil, tendo
como guia a sua dupla vocação como companhia de teatro e equipe de cinema.
No segundo capítulo, iniciei a análise do espetáculo em questão com um estudo sobre
as notas de ensaio de Les Éphémères presentes no programa oferecido ao público na
temporada francesa, sob a ótica dos escritos de artista e das pesquisas sobre material de
arquivo. Em seguida, propus um aprofundamento na análise do processo criativo que originou
o espetáculo, seu alinhamento com o teatro performativo (FÉRAL, 2015) e com a ideia da
“autoetnografia” (VERSIANI, 2002), tendo como foco principal o trabalho do ator do Théâtre
du Soleil. Por fim e para exemplificar, tomando como base a entrevista realizada com a atriz
Juliana Carneiro da Cunha em junho de 2016 e com Ariane Mnouchkine em março de 2017,
analisei o processo criativo a partir do olhar das artistas, desde o ponto de partida do processo
até as reações do público que se seguiram durante a temporada e turnê mundial do espetáculo.
No terceiro capítulo, propus uma análise do espetáculo elegendo algumas cenas
emblemáticas, observando os efeitos da hibridação da cena e do filme produzido a partir
deste. Procurei mostrar por que Les Éphémères se caracteriza como um momento único no
percurso do Théâtre du Soleil. Também procuro enfocar o teatro biográfico e autobiográfico
sob a ótica da diretora Ariane Mnouchkine, que tem episódios marcantes da sua vida pessoal
transformados em cenas do espetáculo. Em seguida, proponho uma análise do espetáculo
seguinte, Os Náufragos do Louca Esperança (2010), levando à hipótese de que Les
Éphémères inaugura uma nova plataforma de trabalho para a companhia. Por fim, segue-se a
conclusão desta pesquisa, além da entrevista com Juliana Carneiro da Cunha e Ariane
Mnouchkine na íntegra.
23
A metodologia de trabalho adotada se iniciou através do mapeamento da bibliografia e
videografia a respeito do Théâtre du Soleil, sua história, processos de criação e, em especial, a
produção intelectual realizada em torno do espetáculo Les Éphémères, além do registro
fílmico e programas das temporadas do espetáculo a que pude ter acesso. Vale atentar que a
maior parte deste material encontra-se em língua estrangeira, sobretudo francês e inglês.
Também pesquisei as principais linhas de pensamento teórico no que tange às relações entre o
cinema e o teatro, desde o início do século XX, e suas influências na contemporaneidade.
Pesquisei as principais análises teóricas voltadas ao trabalho do ator com relação ao
teatro performativo. Realizei uma entrevista ao vivo com a atriz Juliana Carneiro da Cunha,
na presença de alguns alunos do curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da
UFRJ, iluminando muitas das lacunas que foram surgindo ao longo da pesquisa. Também tive
a chances de obter algumas respostas da própria diretora, Ariane Mnouchkine, o que elevou o
patamar desta pesquisa e aumentou a responsabilidade diante dos resultados a se alcançar. Por
fim, reuni todo este material para a escritura desta dissertação, procurando trazer um enfoque
original ao trabalho, tanto pelas articulações quanto linha de análise, mas especialmente por
realizá-lo em língua portuguesa, traduzindo textos importantes para a análise e contribuindo
para ampliar as fontes de pesquisa sobre o Théâtre du Soleil no Brasil.
Qualquer atitude nossa é evidentemente sempre determinada por um conjunto de
motivos [...] Mas nesse “conjunto” de motivos há sempre um, geralmente o mais
estranho, abstrato, ilógico, na maior parte das vezes absurdo, e muito
frequentemente irracional, “secreto” – que entretanto decide tudo. (OLIVEIRA,
2008, p.1)
24
CAPÍTULO 1 – Hibridações entre teatro e cinema: teoria e prática
1.1 Reflexões sobre as influências entre o cinema e o teatro: aproximações
Existe, com efeito, um hiato intransponível ou mesmo uma oposição entre as artes
teatral e cinematográfica? Há alguma coisa genuinamente “teatral”, de espécie
diferente do que é verdadeiramente “cinematográfico”? (SONTAG, 1987, p.99)
Quando surgem as primeiras experiências com filmagem e projeção de imagens em
movimento diante de um público, o teatro já completava mais de oito mil anos, a contar da
primeira vez em que um indivíduo do coro destacou-se do grupo para emitir em voz única
versos escritos por um poeta. Ainda assim, houve quem vaticinasse o fim deste último, um
“dinossauro” diante da meteórica chegada do cinema e suas imagens animadas. No século
XXI, quando o cinema completa um percurso histórico de mais de um século repleto de
transformações técnicas, hibridismos e revoluções estéticas, e o teatro ao invés de extinguir-se
vê a amplificação de seus domínios com o advento da “cena expandida”, há quem invista na
catalogação das diferenças entre as duas formas artísticas, para delimitar especificidades e
rupturas.10 Do ponto de vista do cinema, diretores como Sergei Eisenstein e D. W. Griffith
ilustraram, na teoria e na prática, a convergência das duas artes no início do século XX, e no
passado recente, outros grandes mestres como Luchino Visconti e Ingmar Bergman, entre
muitos, se aliaram aos últimos, atuando nos dois campos.11 Do ponto de vista da cena teatral,
Meyerhold foi pioneiro na utilização de telas e projeções em seus espetáculos, e grandes
10 “No teatro, chamo de cena expandida àquela que não se circunscreve apenas ao fazer teatral, como àquele
associado aos modos de produção e recepção teatrais convencionais, mas também se articula diretamente a
áreas artísticas distintas, em uma espécie de convergência que tangencia conhecimentos oriundos das artes
cênicas, visuais, das mídias audiovisuais, da performance, da dança, da literatura, da fotografia.” (LIRIO: 2016,
p. 4) 11 Sergei Mikhailovich Eisenstein (1898-1948), nascido na Rússia, foi um dos maiores nomes do cinema de
todos os tempos, não só como roteirista, cineasta, editor e professor, mas, principalmente, por suas tentativas de
teorização da montagem cinematográfica, em consonância com suas experiências no campo das artes cênicas,
na qualidade de discípulo de Vsévolod Meyerhold. D. W. Griffith (1875-1948) foi o cineasta norte-americano
responsável por articular a linguagem cinematográfica do cinema narrativo clássico, inaugurando o uso dos
planos numa montagem que objetivava uma provocação emocional no espectador. Inovador também na direção
minimalista dos atores e na sofisticação do uso da iluminação para criar uma fotografia que se aproximasse
mais da experiência do real, Griffith foi o pioneiro na utilização do posicionamento de câmera como efeito
narrativo. Luchino Visconti di Modrone (1906-1976) foi um diretor e roteirista de teatro, ópera e cinema
italiano. Iniciando-se no cinema como assistente de Jean Renoir, Visconti foi um dos precursores do
neorrealismo italiano. Diretor de obras-primas como Rocco e seus irmãos (1960) e Morte em Veneza (1971), foi
premiado diversas vezes durante toda a sua vida. Ernst Ingmar Bergman (1918-2007) foi um cineasta,
dramaturgo e diretor de teatro sueco que faz parte da geração de cineastas surgidos no período pós-Segunda
Guerra Mundial, cujos filmes apresentam narrativas complexas e temática existencialista. Diretor de inúmeros
filmes clássicos como O Sétimo Selo (1956), Personna (1966) e Sonata de Outono (1978). Dividia seu tempo
entre o cinema e o teatro, onde dirigiu diversos espetáculos durante toda a sua vida.
25
encenadores, como Peter Brook, Robert Lepage e Ariane Mnouchkine, transitam entre as duas
artes, de forma que seria quase incorreto referir-se a eles somente no âmbito do teatro.12 E,
finalmente, no século XXI, não é novidade o uso do cinema, e da tecnologia digital, na cena
teatral. O “efeito cinema” (DUBOIS, 2009), caracterizado pela utilização do cinema enquanto
linguagem para a criação da cena teatral e pela utilização de seus aparatos técnicos no
espetáculo, é um conceito absolutamente introjetado no teatro, seja ele comercial ou
alternativo.
Também é recorrente o cinema cujo tema é o teatro em si, sua rotina e ambiente, ou
mesmo textos clássicos do teatro mundial. A título de ilustração, vale lembrar de Tiros na
Broadway (1995), Os Produtores (2006), Ricardo III – Um Ensaio (1996) e as versões
fílmicas de Kenneth Branagh para as peças de William Shakespeare, entre tantos. Na
atualidade se pode enumerar tantos outros que reforçam a ideia de que, mais do que uma
tendência, esses filmes constituem um gênero do cinema, como Pina 3D (2012), Birdman
(2014), O Último Ato (2015), Florence (2016), La La Land (2017), e os brasileiros, Uma
Noite em Sampa (2016), e Olmo e a Gaivota (2015), este último com elenco formado por
atores do Théâtre du Soleil, curiosamente.
Nesse contexto, há um sentido interessante neste movimento de hibridização das
mídias que é a ideia do cinema não só como arte, mas também da captação da imagem como
uma ferramenta de “registro”, de forma que qualquer objeto observado pode se tornar
cineficado. Nestes casos, as fronteiras entre o cinema e as outras artes podem se apagar já que
o primeiro pode se caracterizar como a “versão cinema” de todas as outras obras (SONTAG,
1987). O melhor exemplo desta relação de invisibilidade do cinema diante do objeto filmado,
para Sontag, seria a televisão, e, considerando os avanços tecnológicos das mídias nas últimas
décadas, e especialmente a presença maciça da comunicação através da Internet, os vídeos
produzidos por telefones celulares compartilhados em redes sociais interconectadas, ao vivo
ou editados, são o ponto máximo desta invisibilidade ou, em oposição, a ilustração máxima
do “efeito cinema” nas relações cotidianas.
Ainda assim, para os fins desta pesquisa, será interessante aprofundar uma análise
sobre os aspectos inerentes a cada uma destas expressões artísticas, de modo a apontar as
características que demonstram as interseções entre o teatro e o cinema no que diz respeito
aos aspectos estruturais de ambos. Os dois gêneros artísticos apresentam complexidades
12 Data de 1923 a montagem de A Terra Erguida, um espetáculo dirigido por Meyerhold que intercalava cenas
com projeções de títulos de cenas, textos, trechos de diálogos e fotografias da revolução russa (ISAACSON
2011, p.11)
26
estéticas e estilísticas e o seu cruzamento pode encaminhar a uma análise comparativa mais
profunda, que vá além das questões técnicas. Trata-se aqui, portanto, de compreender que as
variações de experiências artísticas residem mais nas formas de concepção do espetáculo,
considerando que os aspectos técnicos são parte intrínseca e determinante de cada processo.
Quando surge o designado “primeiro cinema” (1894-1908), o conjunto de filmes e
imagens em movimento, exibidos através das mais variadas técnicas e engenhocas,13 em
diversos países quase concomitantemente, o teatro de boulevard, de cunho francamente
comercial, entre outros estabelecimentos, abriu suas portas para mais esta novidade,
reafirmando sua função como espaço de entretenimento voltado ao grande público. Àquela
época, nas salas dos grandes teatros, o espectador podia assistir a espetáculos de vaudeville
compostos por diversos atos com atrações variadas, incluindo acrobacias, música, pequenas
cenas de comédia pastelão e declamações de poesias, sem nenhum fio condutor ou construção
narrativa. Assim, a absorção dos primeiros filmes, incluídos nestes shows de variedades, de
curta duração e estrutura rudimentar (feitos em tomada única, com pouca ou nenhuma
pretensão narrativa), aconteceu de forma bastante natural, especialmente devido às
características técnicas que garantiam autonomia para o produtor mediante um enorme retorno
financeiro a cada exibição. Para ilustrar, vale ressaltar a grande popularidade alcançada pela
apresentação dos primeiros experimentos com imagens animadas na Exposição Universal de
Paris, em 1900, quando os irmãos Lumière apresentaram o seu cinematógrafo, – uma máquina
que capturava imagens em movimento e as projetava como filmes e fotografias em cores, em
uma tela de 21m de largura por 18m de altura –, contabilizando 326 sessões, vistas por 1,5
milhão de pessoas. (CESARINO COSTA, 2005). Então, à margem do romantismo que
envolve o desenvolvimento do cinema enquanto fenômeno artístico autônomo, o que de fato
possibilitou a evolução desta forma de entretenimento e orientou os realizadores do primeiro
cinema rumo aos avanços técnicos, de linguagem e estilo que se seguiram, foi a percepção de
que o feito apresentava grande potencial de público – e, consequentemente, econômico –, e
necessitava de renovação constante dos filmes, garantindo, potencialmente, uma estratégia de
produção em escala industrial.
O fato essencial, o ponto de partida que conduziu enfim à realização prática das
projeções animadas, é o níquel que o espectador americano fazia deslizar na fenda
do quinetoscópio Edison, são os 25 centavos que o passante parisiense pagava em
13 “A delimitação do período abarcado pelo primeiro cinema fundamenta-se na constatação, por parte da
historiografia recente, da presença de algumas características constantes no cinema até 1908. São características
relativas aos modos de produção e exibição dos filmes, à composição e comportamento do público e às formas
de representação destes filmes.” (CESARINO COSTA, 2005, p. 35)
27
setembro de 1894 para poder grudar os seus olhos no visor do quinetoscópio (...). É
isto que explica o nascimento do espetáculo cinematográfico na França, na
Inglaterra, na Alemanha, nos Estados Unidos, durante o ano de 1895. As fotografias
animadas não eram apenas experiências de laboratório, curiosidades científicas, mas
elas podiam, de agora em diante, ser consideradas como uma forma rentável de
espetáculo. (CESARINO COSTA, 2005, p.39)
Naturalmente, os filmes de ficção que eram produzidos e exibidos nos teatros de
vaudeville acompanhavam a dinâmica destes shows, misturando trechos de filmes
documentários a tomadas de ficção, muitas vezes comédias e gags (geralmente filmadas no
próprio teatro), o que contribuía para manter a fidelidade do público já acostumado a esta
forma de espetáculo. Por outro lado, considerando que, àquela época, o próprio cinegrafista
era também o responsável pela projeção dos filmes no teatro, este formato de experiência
(tanto para o produtor/distribuidor quanto para o público), retardou o desenvolvimento do
cinema enquanto experiência autônoma, impedindo um movimento acelerado no sentido de se
criar um esquema industrial. Com isto, foi mantido por um tempo maior o caráter anárquico
destes filmes primordiais, que misturavam realidade e artifício com bastante naturalidade,
provavelmente porque o público espectador não tinha dúvidas de que estava diante de uma
máquina de trucagem (CESARINO COSTA, 2005).
Paulatinamente, diante da necessidade de manter a audiência do público que começava
a se aborrecer diante da repetição do formato dos filmes, as comédias que representavam a
maior parcela das películas produzidas passaram a dividir o espaço com os filmes de
perseguição, que se constituíram como a primeira forma narrativa do cinema (1903- 1906).
Ainda que imbuídas pela irreverência dos filmes de pastelão, esses filmes passaram a ganhar
mais atenção pois requeriam um maior preciosismo na sua feitura. Geralmente filmados em
cenários naturais que compreendiam pequenas multidões envolvidas em narrativas
rudimentares, deveriam ser compostos por uma sucessão de planos capazes de transmitir a
ação da perseguição para o público.
A existência destes filmes demonstra, para Gunning, que “estava em curso uma
síntese entre atrações e narrativa”. Por um lado “a perseguição tinha sido a narrativa
verdadeiramente original do cinema, fornecendo um modelo para a causalidade e
para a linearidade assim como para a montagem em continuidade. Mas por outro
lado, as perseguições construíam cada plano como uma verdadeira atração, na
medida em que cada plano mostrava o perseguido e os perseguidores tendo que
ultrapassar obstáculos variados: cercas, lagos, subidas etc. (...) A perseguição
esboça uma tentativa de construção de um plano contínuo fictício. Mas esta
construção não se completa, fica apenas indicada. Se para o cinema narrativo
clássico foi fundamental inventar gradualmente uma maneira de representar, através
das imagens, uma ficção de continuidade do tempo e homogeneidade do espaço,
este não era o projeto do cinema antes de 1906. (CESARINO COSTA, 2005, p. 49)
28
Nesse contexto, vale ressaltar a utilização do termo “atração” para analisar
tecnicamente a linguagem cinematográfica que começava a se esboçar. Este conceito,
cunhado por Tom Gunning e André Gaudreault para definir o que seria a essência do cinema
destes primeiros anos, surge como uma forma de dar visibilidade às implicações físicas da
experiência cinematográfica no corpo do espectador. É inspirado pelo conceito de montagem
de atrações, cunhado por Sergei Eisenstein, que caracteriza uma encenação na qual todo
elemento utilizado deve submeter o espectador a uma ação sensorial e psicológica, com o
propósito de produzir choques emocionais (BALTAR, 2016). “Atração”, portanto, evoca a
ideia de um acontecimento que se exibe e atrai o olhar do público, justamente como as
apresentações que aconteciam nos teatros, feiras e parques, performances que surpreendiam o
espectador, capturavam sua atenção no ato de exibição. Desta mesma forma, na análise sobre
o primeiro cinema se pode utilizar o termo atração, tanto no sentido de caracterizá-lo como
mais um evento que aparece e espanta o espectador,14 quanto no sentido de reforçar a ideia do
cinema como uma sucessão de imagens/vistas (views) que se apresenta em série, em uma
definição que independe da categorização do cinema entre narrativo ou não-narrativo
(CESARINO COSTA, 2005).
A partir dessa delimitação histórica, inúmeros são os exemplos que demonstram a
correlação íntima entre o cinema, ainda incipiente, e o teatro, já que, para se formular
enquanto uma linguagem expressiva palatável ao espectador, o cinema se viu diante da
necessidade de traduzir para a tela bidimensional a forma de se contar histórias no teatro.
Assim, todo o sistema técnico do cinema – alternância de tempos e espaços, os closes, os
campos/contracampos, as tomadas subjetivas, a centralização, os travellings, as panorâmicas,
as fusões, etc (CESARINO COSTA, 2005) – surge como alternativa para os códigos do
teatro, especialmente do vaudeville, e só depois de vinte anos, segundo a maioria dos
historiadores, é que a linguagem cinematográfica alcança um lugar entre as artes.
A chegada do cinema como uma forma de arte autônoma e amadurecida pode ser
datada pela apresentação, em 1915, de O nascimento de uma nação, de D. W.
Griffith. Do tempo das primeiras projeções do vitascópio Edison-Armat em 1895 e
1896 até a conquista de uma forma de arte cinemática em 1915 decorreram duas
décadas, antes que as técnicas da câmera e da encenação (photoplay) conquistassem
seletividade, unidade de propósito, dinâmica e estática, em suma, antes que elas
14 “Gunning explica que o futurismo de Marinetti “não apenas prezava a estética do espanto e da estimulação,
mas particularmente o fato de ela criar um novo espectador, que contrastava com o voyeur estúpido e estático
do teatro tradicional. O espectador do teatro de variedades sentia-se diretamente atingido pelo espetáculo e
juntava-se a ele.” (CESARINO COSTA, 2005, p.52). Isto nos faz pensar na força de aderência do público
contemporâneo às formas de entretenimento que pressupõe o envolvimento direto do espectador, como
programas de reality show e jogos de simuladores.
29
atingissem o status de uma forma de arte. Seus dispositivos básicos, como o cutback,
a dissolução, o fade-in, o fade-out, a panorâmica e o close-up podem ter-se tornado
técnicas úteis logo depois da chegada do vitascópio, mas o seu desenvolvimento
para o efeito artístico e dramático, para a integração de um todo estético, dramático e
pictural não veio antes de decorridos vinte anos. (CESARINO COSTA: 2005, 74)
É, portanto, neste contexto que o primeiro cinema procurou respostas para solucionar
as questões que se apresentavam como a noção de espaço e, especialmente, a ausência do
diálogo dramatúrgico, que ocupava o lugar central no teatro em voga na época, modelo para o
cinema emergente.
Em relação ao texto dramático, considerando a impossibilidade da palavra pela
ausência de som mecânico na fita, a alternativa mais comumente utilizada para estruturação
narrativa foi a acentuação dos gestos expressivos dos atores, através do uso da mímica, da
pantomima e de gestos codificados, que constituíram uma espécie de dicionário de imagens.
Isto não impediu, no entanto, que coexistissem outras formas gestuais, menos artificiais e
mais espontâneas, especialmente nos filmes com maior tendência documental. E, em paralelo,
a introdução de imagens de legendas ou subtítulos contribuiu para construir uma linguagem
própria do cinema (PAVIS, 2006, p.27). Isto ilustra bem o fato de que o movimento criativo
em ebulição naquela época não seguiu uma linha evolutiva única, pelo contrário, inúmeras
experiências aconteciam simultaneamente. E justamente pelo fato do cinema ser este
caldeirão de experiências múltiplas é que, durante muito tempo, vigorou entre os teóricos do
cinema a ideia de que o período anterior ao estabelecimento do cinema narrativo clássico não
possuía uma força estética que garantisse o surgimento de uma linguagem. Tratava-se de um
cinema primitivo.
Lentamente, portanto, os cineastas foram ganhando domínio técnico sobre suas
ferramentas e confiança na especificidade de sua arte, distanciando-se do formato da cena à
italiana, na qual o espectador tudo vê e o movimento está no corpo do ator, para assumir a
profundidade do espaço da locação e o movimento na captação da imagem (PAVIS, 2006,
p.36).
Em relação ao espaço, o desafio que logo se apresentou foi a questão do ponto de
vista. Se no teatro convencional a relação estabelecida pelo palco italiano entre o olhar do
espectador e a cena é calcada na ideia de que o palco é como um cubo cenográfico do qual se
retira um dos lados para que o espectador possa observar o que se passa lá dentro; no cinema
esta relação não existe. Se no teatro o ponto de vista do espectador é condicionado por esta
frontalidade; no cinema, a câmera tem total liberdade de escolha sobre qual ponto de vista
tomar, além de ter movimento próprio, multiplicando geometricamente as formas de se contar
30
uma história. Por outro lado, diante da cena teatral o espectador pode escolher que “recortes”
quer produzir através dos seus recursos (olhar para um ator que está em silêncio enquanto
somente escuta outro ator falar, por exemplo), enquanto, no cinema, o enquadramento da cena
e sua montagem conduzem definitivamente o olhar e a percepção do espectador.
É, portanto, através dos elementos que constituem as formas de representação das duas
artes que se fundamentam diferenças e similaridades, sendo que estas se alternam ao longo do
século XX e XXI, acompanhando movimentos estéticos e avanços tecnológicos. Conforme
Ismail Xavier, “a condição para que haja “representação” é o olhar de um sujeito (autor,
leitor, espectador ou voyeur) que mira numa certa direção e corta uma superfície de modo a
formar com esta um cone do qual o seu olho (ou seu espírito, como diz Barthes) é o vértice.”
(XAVIER, 1996, p. 249). No cerne desta questão, está implícita a ideia de que há uma relação
de oposição entre o observador e o observado – sendo este último fruto de uma delimitação de
contornos bastante definidos –, e de interdependência entre as partes, ainda que a hierarquia
entre eles sofra variações de acordo com o contexto social que baliza cada época. Além disto,
fica implícita, também, a ideia de uma zona de limite, uma fronteira entre os dois lados que
constituem o todo, uma separação entre o espaço da realidade e o da representação, sendo que
as molduras desta “janela que se abre para o mundo imaginário da cena” (XAVIER, 1996, p.
250) relembram o observador de que ele está diante de uma versão do real, ilusória ou não,
alcançada através do descarte e da invisibilidade de outros elementos, anulados atrás das
cortinas/corte. Esta conceituação para “representação” pode ser aplicada quando se pensa a
experiência do teatro, mas também do cinema, deixando clara a condição primordial pela qual
o cinema poderia estar inserido na tradição das artes cênicas de forma definida – ainda que
uma corrente da teoria cinematográfica se esforce para elencar os elementos pelos quais o
cinema se constitui como a sétima arte.15
Neste contexto, é válido retomar as questões técnicas que aproximam e diferenciam o
aspecto da visualidade de cada arte. Em primeiro lugar, enumero aqui algumas das
características que definem cada arte de forma identitária. No teatro, é possível elencar a
presença do público, o som direto dos atores (ainda que haja presença de microfones em
alguns espetáculos), possibilidades de música, ruídos, efeitos sonoros, liberdade no olhar (e
15 “A história nos tem oferecido inúmeros exemplos de um intercâmbio que não deixou de ser motivo de
incômodo para uma parcela da crítica cinematográfica. Em particular, no início do século, por força do interesse
em inserir o cinema como esfera autônoma no sistema das artes, a tônica dos cinéfilos foi a defesa das novas
virtudes da nova arte muda contra os vícios da cena teatral entendida, de maneira redutora, como mundo da
palavra. Numa combinação de argumentos técnicos e morais, em particular o elogio à verdade dos gestos e às
revelações do rosto em close-up no cinema, montou-se um esquema teleológico que perdurou por décadas.”
(XAVIER, 1996, p. 247)
31
recorte) do público, processos de iluminação e projeção diretas, cenários em um só espaço
físico (mesmo em espetáculos itinerantes o cenário é circunscrito às áreas de encenação),
presença física dos atores, infinitas possibilidades de abordagem sobre personagens e
dramaturgia, direção/encenação com foco em atender à plateia e desenvolver a atuação dos
atores nas cenas, levando à predominância das convenções sobre a verossimilhança.
No cinema, pode-se pensar no filme como um produto destinado a um público
especializado (BENJAMIN), com som direto ou dublado, efeitos de som, imagem e luz na
pós-produção, no olhar do espectador limitado ao enquadramento da câmera e da montagem
final, com a direção determinada pela sua relação com a imagem filmada a ser captada em
acordo com o roteiro, a iluminação podendo ser modificada plano a plano, as filmagens
podendo ocorrer em diferentes espaços físicos, a presença dos atores sendo virtual no produto
final, sendo este formado por um conjunto de sequências de cenas – estas constituídas por
alguns planos rodados em diversas tomadas –, na maior parte das vezes montadas de forma a
garantir a verossimilhança que domina o modelo do cinema hegemônico. Ainda sobre o
cinema, as características essenciais para pensá-lo enquanto linguagem são as várias
possibilidades de planos e ângulos de filmagem, gerando os diversos enquadramentos, os
movimentos de câmera, dentro do quadro e da lente objetiva, as câmeras objetiva e subjetiva,
os cortes dos planos e como este material é montado posteriormente na edição, através de
movimentos como fusão, superposição de imagens, fade-in, fade-out, além de inúmeros
efeitos digitais que podem ser feitos na ilha de edição.
Nos processos de hibridização das mídias, todas essas características ganham novos
contornos posto que se multiplicam as possibilidades de combinação dos elementos. Em um
espetáculo teatral, por exemplo, quando um filme ou vídeo é projetado na cena e sobre os
atores – que inevitavelmente contracenam com este material – cria-se uma superposição de
imagens e qualidades de presença que afeta o espectador de forma inteiramente original.
Todas as possibilidades de relação que surgem neste contexto triangular
(cena/vídeo/espectador) constituem uma estética única que não pode ser mais reduzida à
essência dos elementos que a constituíram. No entanto, para fins de análise, a seguir aponto
alguns elementos e como estes são desenvolvidos no teatro e no cinema com o intuito de
verificar as diferenças de tratamento em cada um dos campos. Ao longo da pesquisa, irei
apresentando a relação entre cada uma destas características, aproveitando os exemplos que
serão analisados.
Portanto, novamente há a questão do uso do espaço na experiência estética. No teatro
32
clássico,16 a posição estática e frontal do espectador (plateia) em relação ao espaço de
representação (palco) levaria à suposição de que haveria uma limitação maior no que tange os
elementos de representação. De fato, ainda que outros edifícios e espaços teatrais (como a
arena, a semi-arena) alternem sua relevância em cada contexto social ao longo da história, o
palco italiano é o que se apresenta como melhor veículo para a experiência da comunicação
de massa, fato bastante explorado em termos de mercado. Não por acaso, o primeiro cinema
alimentou-se fartamente do teatro burguês, reproduzindo esta lógica mercadológica no espaço
de exibição,17 e, não por acaso, exibindo roteiros adaptados de peças teatrais, filmados
segundo a lógica de enquadramento da cena teatral, ou seja, uma tentativa de manter a
adequação do meio à mensagem.18
Assim segue também a reflexão do cinema enquanto meio de comunicação de massa.
Em um primeiro momento, o cinema foi percebido como um modo de entretenimento
bastante popular, por isto rentável, o que conduziu a temática dos filmes a conteúdos
moralizantes e politicamente corretos (CESARINO COSTA, 2005). Posteriormente, disto
resultou o senso comum que caracteriza este cinema hegemônico como uma arte
comprometida com uma comunicação superficial, pouco verticalizada, retratando a realidade
de forma natural, fidedigna. Assim surgiu a reflexão de que o cinema seria uma arte popular,
natural e espontânea, em contraposição ao teatro, inserido no campo do simulacro, da mentira,
de gosto aristocrático, afetado. Assim, quanto mais o cinema se distanciasse dos elementos
teatrais, mais ele se reafirmaria enquanto arte popular, de massa, uma conclusão que carrega
uma forte posição político-moral (SONTAG, 1987).
Outro aspecto digno de nota é a criação de personagens no teatro e no cinema. Ainda
que a análise de Sontag esteja inserida no contexto americano de 1966 e que atualmente
muitas destas questões já tenham caído por terra, é interessante perceber o percurso histórico
16 Para efeito desta análise, se considera aqui o sistema estabelecido pelo palco italiano (1530), em que palco e
plateia se opõe frontalmente, essa última composta por diferentes espaços (plateia, balcões e galerias, para
diferentes públicos). Este sistema reproduz a estratificação social no contexto do espaço de representação,
induzindo à ideia literal de um único ponto de vista – a cena dramática como ponto de fuga da tela –, na
tentativa de neutralizar o pensamento crítico dissonante. 17 Interessante lembrar que na língua inglesa, se usa palavra “teatro” também para designar o espaço onde se
assiste a filmes cinematográficos. 18 Este contexto é válido para evocar a máxima de Marshall McLuhan que diz “o meio é a mensagem”,
deslocando o foco do conteúdo como elemento central da comunicação, para o meio de transmissão deste
conteúdo. “Uma pintura abstrata representa uma manifestação direta dos processos do pensamento criativo, tais
como poderiam comparecer nos desenhos de um computador. Estamos aqui nos referindo, contudo, às
consequências psicológicas e sociais dos desenhos e padrões, na medida em que ampliam ou aceleram os
processos já existentes. (...) Este fato apenas serve para destacar o ponto de que “o meio é a mensagem”, porque
é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas. O conteúdo ou usos
desses meios são tão diversos quanto ineficazes na estruturação da forma das associações humanas.
(MCLUHAN,1974, p.22)
33
desta discussão. Segundo Sontag, Nicoll (1936) afirmava que, enquanto os personagens mais
bem talhados no teatro frequentemente eram caracterizados por tipos, no cinema havia uma
tendência à criação de personagens mais individualizados, sobre os quais o espectador seria
capaz de atribuir mais credibilidade e empatia. Em 1966, para aprofundar este aspecto, Sontag
introduziu a ideia da descentralização como elemento narrativo pego de empréstimo à técnica
comum da pintura e da fotografia (artes elementares do cinema) como responsável pelos
“momentos plástica e emocionalmente mais bem sucedidos, e os mais eficazes elementos de
caracterização” (SONTAG, 1987, p.106). E finaliza lembrando que o teatro também utiliza a
técnica da descentralização quando reforça a continuidade como regra para estabelecer
códigos coerentes para personagens e cenas que, possivelmente, podem levar à ideia da
criação de tipos. Ainda sobre a credibilidade, ou não, dos personagens em ambas as formas
artísticas, Sontag destaca o elogio à credulidade e à não-artificialidade do cinema em
contraposição à codificação da cena teatral.
De acordo com Nycoll, quando estamos em um teatro, “‘a falsidade’ da produção
teatral recai de todas as maneiras sobre nós, de modo que nos preparamos para não
exigir nada além da verdade teatral”. Uma situação adversa se obtém do cinema,
sustenta ele. Cada membro do público cinematográfico, não importa quão
sofisticado ele seja, está essencialmente no mesmo nível; todos acreditam que a
câmera não pode mentir. Como o ator de cinema e seu papel são idênticos, a
imagem não pode ser dissociada do que aparece na imagem. Experimentamos o que
nos dá o cinema como a verdade da vida. (SONTAG,1987, p.106)
Ora, se esta argumentação já encontrava pouca sustentação em 1966, quando Sontag
questionava a possibilidade do teatro vencer a barreira do artifício através do teatro ritual
enquanto intercâmbio entre o ator e seu público, o que dizer das recentes experiências do
teatro autobiográfico, pós-dramático ou teatro-performativo?
Em relação à questão da imagem propriamente dita, fica claro que neste momento
histórico ao qual se refere Sontag, o cinema guardava certa proximidade às artes de formas
fixas, como a pintura e a fotografia, talvez mais do que ao teatro da época (que apresentava a
mobilidade como característica). Neste sentido, o que caracterizaria a unicidade do cinema
não seria a imagem propriamente dita, mas a conexão entre elas, a ideia da montagem, do
sequenciamento dos planos, em contraposição ao teatro que se apresentaria de forma
evolutiva e orgânica diante do espectador. No entanto, basta pensar no esforço de invisibilizar
o processo técnico de captação das imagens no cinema, deixando fora de quadro todo e
qualquer elemento como equipamentos técnicos e operadores, e realizando uma montagem
que contribui para a naturalização de códigos de continuidade, formalizando uma pontuação e
34
um ritmo que visam garantir o domínio sobre a atividade do espectador. Seria uma forma de
inserir a ideia do espectador que tudo vê no teatro através da linguagem do cinema.
(AUMONT). Análoga seria a ideia do uso do espaço/tempo: o teatro é limitado ao uso físico e
contínuo do espaço e do tempo, enquanto o cinema encontra mais ferramentas para romper
estas barreiras, através da edição. No entanto, basta rememorar as experiências
contemporâneas no contexto da cena expandida para dissolver esta afirmação.
Historicamente houve um exercício de pensamento projetivo sem fim sobre a
supremacia de uma forma de arte em relação a outra, sempre de forma tendenciosa para qual
formato se pretende exaltar. Em seu artigo de 1966, Sontag trouxe como provocação a ideia
de que haveria muito mais pontos de convergência entre o teatro e o cinema do que
diferenciações. Como ilustração, ela cita Kracauer, que conta que, ainda no início do século
XX, o desenho de iluminação do filme O Gabinete do Dr. Caligari (1920) fazia alusão a uma
experiência realizada por Max Reinhardt em sua montagem cênica de O Mendigo, feita pouco
tempo antes e, da mesma forma, em relação inversa, o teatro criou o isolamento de um ator ou
de uma cena no palco através da iluminação estimulado pela técnica do iris-ring, e cenários
móveis para simular o deslocamento instantâneo da câmera. Ainda nos anos 60, a
convergência entre as mídias começa a tomar forma através das experiências de vídeo-arte e
das performances e desde o final dos anos 70, as projeções no teatro começam a ser cada vez
mais frequentes, remodelando a relação entre os artistas de cinema e teatro e, principalmente,
a experiência do espectador de ambas as artes.
Atualmente, o foco sobre as interferências entre o teatro e o cinema habitam a esfera
da cena expandida, conforme foi visto, principalmente no sentido de desenvolver o arcabouço
teórico e prático que dê conta destas experiências. O foco inclui também as percepções por
parte do espectador que detecta este hibridismo e se instrumentaliza para a absorção destas
obras, passando do espanto à naturalidade.
1.2. Teatro e cinema na cena contemporânea
Partindo do princípio de que a transposição do espetáculo teatral para a tela do cinema
nasceu ao mesmo tempo que o próprio cinema, sendo que este, por sua vez, se dedicou em
grande parte à adaptação de peças e textos teatrais para o desenvolvimento de sua linguagem
própria, é lógico pensar que as duas artes se interpenetram a ponto de a história evolutiva
destas formas artísticas somente poder ser analisada considerando os avanços técnicos – e
estéticos – de ambas as partes, de forma imbricada. Enquanto a linguagem cinematográfica
35
se desenvolve a partir dos avanços tecnológicos que possibilitam novos experimentos
estéticos, as formas teatrais acompanham esta evolução em sua permanente busca por
comunicação e conexão com o espectador. Ao diálogo de linguagens soma-se a intervenção
não só de formas derivadas, como a televisão e o vídeo de forma geral, mas de outros campos
ampliados de experimentação artística e, recentemente, das tecnologias da informação que
moldam a percepção do artista e de espectador de forma irreversível.19
Em meio à pesquisa que envolve o cinema e o teatro, atualmente, destaco duas formas
de hibridação dessas artes, bastante presentes entre seus realizadores e que servirão de balizas
principais para esta pesquisa: os filmes de teatro e a cineficação da cena. Ambos os conceitos
foram cunhados por Béatrice Picon-Vallin em seus estudos sobre a cena contemporânea e
procuram dar o contorno científico aos fenômenos que podem ser constatados na quase
totalidade de espetáculos teatrais e experiências cinematográficas que nascem no fazer
teatral.20 Ainda que hoje, após quase dez anos, as análises estejam defasadas em alguns
aspectos que tangem ao uso da imagem digital e seus efeitos de interatividade e conectividade
através da presença da Internet em espetáculos, no cinema e em todas as manifestações
artísticas, os conceitos cunhados ainda permanecem como uma das plataformas possíveis para
se pensar a hibridação entre teatro e cinema, especificamente.
Nesse contexto, o “teatro filmado”, ainda que tenha sido criado por André Bazin em
1951, como uma parte intrínseca do fazer cinematográfico, dada a natureza teatral de toda a
representação no cinema, passa a ocupar outro status no imaginário da sétima arte no século
XXI (PICON-VALLIN, 2008, p.151). Em paralelo, é justo pensar que o advento histórico do
encenador teatral no início do século XX é concomitante ao surgimento da imagem animada
do cinema e a formação estética deste encenador está naturalmente vinculada as suas
vivências e memórias dentro da sala escura, diante da tela, desde então. É como se o
encenador assumisse o ponto de vista da câmera em um plano geral, e procurasse, com os
recursos da cena teatral, dar conta amplitude de recursos que o cinema proporcionou. E, por
outro lado, cineastas de todos os tempos vêm suprindo suas fontes de criação com o teatro,
inspirando-se em suas formas, possibilidades sensoriais e estratégias de ilusão, além das
performances dos grandes atores, evidentemente. Há também aqueles artistas que
assumidamente trabalhavam sobre as duas plataformas concomitantemente, como Ingmar
19 “Princípios de interatividade e conectividade exigem novos paradigmas para a crítica da arte, tal como aponta
Couchot quando discorre sobre o modo como as imagens digitais estabelecem novas formas de interação entre
aqueles que as criam e as vêem. (LIRIO, 2016, p.38) 20 Tive acesso a esses estudos no livro A Cena em Ensaios (2008) e na entrevista Teatro híbrido, estilhaçado e
múltiplo: um enfoque pedagógico publicado na Revista Sala Preta (2001).
36
Bergman e Luchino Visconti, como foi dito, sem falar de Sergei Eisenstein que inaugurou a
interrelação das duas artes, considerando aspectos artísticos (direção de arte, roteiro, atuação)
e técnicos (câmeras, película, captação de luz, som e, especialmente, a montagem).
Para contribuir com a discussão acerca do teatro filmado, Picon-Vallin introduz uma
inversão de palavras, propondo o “filme de teatro”, um termo que, segundo a autora,
desnaturaliza a ideia genérica e superficial de que o teatro é um bloco único, que permite uma
única percepção estética.
Quando Robert Bresson condena o teatro no cinema em fórmulas definitivas – “Não
há o que esperar de um cinema ancorado no teatro” ou “Não há possibilidade de
união entre o teatro e o cinematógrafo sem o extermínio de ambos” – de que teatro
se trata? De uma ideia do teatro, de um teatro dominante e ultrapassado, do teatro
moderno ou, em realidade, da rotina de uma arte e de um certo tipo de atuação?
(PICON-VALLIN, 2008, p. 154)
Evocando o fato de que há pouca interrelação entre os criadores do cinema e da arte, a
autora propõe que, durante muitas décadas, a oposição entre teatro e cinema levou a muitas
análises catastróficas sobre a morte do teatro, e que seria preciso reconhecer que a disputa não
se daria mais nesta dualidade, haja vista a complexidade das mídias que se apresentavam.
Picon-Vallin, então, propunha que melhor seria pensar na crise que dividia o teatro e o cinema
de um lado, e o vídeo e o digital do outro, na disputa pela segmentação que teoricamente
garantiria a essencialidade de cada plataforma. Hoje esta dualidade está ultrapassada, é
impossível pensar o teatro, e mesmo o cinema, sem o digital, haja vista que a absorção da
imagem digital já se deu por completo na sociedade contemporânea, modificando as relações
humanas de forma irreversível e moldando novos formatos de criação e percepção da obra de
arte.
Sustentava a autora que, daquela forma, cinema e teatro passariam a pertencer a uma
mesma vertente estética, em “uma sociedade fundada na comunicação, na qual tudo deve
entrar em circulação mundial, em um movimento circular e em um turbilhão engendrado pela
multiplicação tecnológica dos procedimentos de reprodução e das superfícies de inscrição –
telas.” (PICON-VALLIN, 2008, p. 156). Neste contexto, o cinema estaria evocando o que
haveria de artesanal em sua essência ao aproximar-se do teatro, para diferenciar-se da
reprodução frenética e estéril de imagens que sequer guardariam um referente no mundo real,
como a imagem digital.21 Portanto, a oposição passaria a ser entre as experiências calcadas no
21 Segundo Philipe Dubois, a imagem digital seria a última etapa da trajetória da busca da imagem como
representação do real. Se desde as pinturas paleolíticas, o homem emprega sua téchnè no sentido de recriar a
realidade, visando subtrair ao máximo o hiato entre o mundo real e sua produção de imagens, é somente no
século XXI, com a imagem digital (ou informática, de síntese), produzida totalmente pela tecnologia, que este
37
real e aquelas produzidas na superabundância da reprodutibilidade em escala industrial,
pautadas, por exemplo, pela publicidade e pelo videoclipe, entre as muitas apropriações do
uso da imagem como ferramenta mercadológica de comunicação. Desta forma, o cinema
novamente assumiria seu caráter artesanal pela aproximação com o teatro, reforçando sua
posição como espaço criativo de produção de representações de mundo.
Como foi dito, no entanto, passada uma década desde que Picon-Vallin apresentou
suas análises, há que se considerar que o cinema é majoritariamente digital hoje, assim como
a maior parte das imagens produzidas e empregadas na cena contemporânea. Portanto, a
problematização entre teatro e cinema necessariamente envolve outras questões que miram a
intermidialidade das artes, posto que é na articulação entre os meios que está o cerne da
experiência estética contemporânea.
Para Isabella Pluta (2011), em seus estudos sobre a intermidialidade na cena teatral
contemporânea, as questões que se colocam acerca da presença das tecnologias em cena
apontam para dois caminhos: a relação entre as mídias e o teatro no plano estético e a relação
entre as mídias e o indivíduo dentro de uma coletividade no plano da cultura. No entanto,
ainda que assim se possa dividir, é na convergência destes dois aspectos, estético e cultural,
que se deve problematizar a criação de novos conceitos que caracterizem a cena
contemporânea, e esta convergência se materializa especialmente na figura do ator que
absorve a presença de todas as mídias através do jogo cênico e devolve ao espectador uma
experiência estética renovada. Ele torna-se, portanto, o operador técnico desta
intermidialidade, um decodificador, em um momento em que não há mais dúvidas sobre a
inclusão das novas mídias nas artes, nem sobre o entrecruzamento destas modalidades.
Momento este que, no teatro, é caracterizado pela cena expandida, como abordado
anteriormente. A compreensão do novo paradigma estético passa também pela consciência
sobre a organização da sociedade em rede como resultado da combinação entre as tecnologias
da comunicação e a interconectividade que elas permitem e que as retroalimentam. É dentro
deste contexto, portanto, que a intermidialidade na cena ultrapassa o contexto do início dos
anos 2000 – de onde Picon-Vallin teceu suas análises sobre teatro e cinema em verificação
aqui – e torna-se a própria marca, a condição da criação artística na cena atual.
Surge, então, a problematização sobre como desenvolver um pensamento reflexivo
que dê conta desta nova experiência estética: se, por um lado, há uma tendência a descrever a
ideal é alcançado, subvertendo a lógica vigente até então: a imagem deixa de ser uma reprodução do real, mas
torna-se um outro modelo de real, o qual se procura reproduzir. “Não há mais necessidade destes instrumentos
de captação e reprodução, pois de agora em diante o próprio objeto a se “representar” pertence à ordem das
máquinas. Ele é gerado pelo programa de computador, e não existe fora dele.” (DUBOIS, 2004, p. 47)
38
utilização dos equipamentos na cena em comparação aos dispositivos meramente teatrais ao
invés de analisá-los dentro do contexto do espetáculo, por outro lado, se pode incorrer no erro
de categorizar os espetáculos francamente intermidiáticos como um gênero teatral
segmentado e, novamente, limitar as reflexões por falta de ferramentas analíticas adequadas.
Há, portanto, que se ampliar este campo de análise para que estas experiências cênicas
possam ser compreendidas tanto pela perspectiva teatral quanto pela intermidiática. No que
tange à perspectiva intermidiática, Pluta propõe que se observe os elementos pelos quais esta
perspectiva se torna uma provocação que desafia a teoria da comunicação, posto que o
entrecruzamento deflagra mutações tecnológicas, artísticas e mesmo no plano da
comunicação. Nem sempre as mesmas ferramentas de análise servirão para dar conta de todas
as experiências técnicas e estéticas insurgentes, por isso o foco se desloca para a análise sobre
o suporte de visualização (tela, monitor, captador) e a própria imagem, na sua natureza
analógica ou numérica, concentrando-se na figura do ator onde a encenação está centrada, na
sua presença e na do público. Público este que é o primeiro a confrontar a influência da
tecnologia de visualização e sonorização em um espetáculo ao vivo (PLUTA, 2011, p. 58).
Assim, cada artista ou coletivo acaba por criar uma espécie de tipologia particular com o
entrecruzamento específico das mídias e dos atores, de forma que os espetáculos
intermidiáticos poderiam estar inseridos no campo do cinema e do vídeo posto que seus
limites transbordam o reduto do teatro.
Se faz mais que necessário procurar um novo quadro conceitual para o teatro que
facilitará a análise dos espetáculos no contexto do desenvolvimento espetacular das
tecnologias de ponta. Se estas páginas impressas pudessem adquirir uma dimensão
suplementar, a melhor solução formal desta obra teria sido um hipertexto concebido
como o espaço virtual e que permitiria ao leitor uma navegação e uma
simultaneidade do fluxo textual. Com pendências, nós nos contentaremos aqui de
nos interrogar sobre a metodologia que responde a este campo interdisciplinar,
reunindo os domínios artísticos e científicos, e conjugando métodos analíticos
diferentes. (PLUTA, 2011, p.61)
Apresentadas estas questões teóricas acerca da intermidialidade, retomo as
proposições de Picon-Vallin posto que elas são primordiais para fins da análise da pesquisa.
Em outras palavras, “filme de teatro” e “cineficação da cena” são conceitos que dão conta da
“tipologia intermidiática” adotada no Théâtre du Soleil.
Em sua análise, entre mais alguns elementos propostos por Picon-Vallin que ainda
encontram eco, em primeiro lugar está o fato de que a encenação de teatro é sempre
cineficada, não só pelo repertório estético do encenador, mas principalmente pelo apuro do
39
olhar do espectador, exercitado pelo cinema e pela fotografia no que tange à quantidade de luz
e ao foco na imagem, à alternância de planos e ao ritmo de montagem sequencial, e à própria
ideia de edição e corte das cenas. Em segundo lugar, a autora exemplifica a quantidade de
filmes de diversos gêneros (comerciais, experimentais) cujo tema é o teatro em si, sua rotina e
ambiente, ou mesmo textos clássicos do teatro mundial – Tiros na Broadway (1995), Os
Produtores (2006), Ricardo III – Um Ensaio (1996) e as versões fílmicas de Kenneth Branagh
para as peças de William Shakespeare, para citar alguns que foram produzidos à época de
produção daquele texto. Como visto anteriormente, essa vertente do cinema chega até os dias
de hoje com fôlego revigorado, basta se pensar no ganhador do Oscar de 2017, La La Land.
Em terceiro lugar, Picon-Vallin aponta a absorção pelo teatro de narrativas nascidas no
cinema, exemplificadas pela proliferação de filmes que recebem sua versão teatral, em
montagens no teatro bastante festejadas por espectadores e encenadores. Neste sentido, o
cinema abandona a chancela de obra de arte sintética, total, para inserir-se na cadeia de signos
que alimentam os processos criativos da arte contemporânea.
Dentro deste contexto, o filme de teatro nada mais é do que a certeza desta porosidade
entre as experiências artísticas, deflagradas em momentos de crise na percepção estética da
sociedade como um todo e que reafirma a horizontalidade entre os dois campos, reforçando a
inoperância da ideia de obra acabada, diante dos infinitos desdobramentos que guarda em si.22
O teatro reconhece sua natureza efêmera e sua força que repousam na emoção da experiência
compartilhada pelo coletivo teatral (artistas e espectadores), o que faz de cada apresentação
uma versão possível, mas não definitiva. Assim, a captação das imagens do espetáculo para a
edição em um filme produz apenas mais uma versão possível, evocando a perenidade da
natureza da linguagem cinematográfica também. Portanto, o filme de teatro valida-se como
uma obra híbrida que guarda sua natureza dual, especialmente quando ultrapassa seu caráter
de registro e ganha o status de filme, e funda uma plataforma outra que se insere na lógica da
multiplicação e da circulação da imagem sem perder de vista o seu original, materializado
pelo trabalho dos atores, em especial.
O cinema tem a ver com o teatro e vice-versa, o teatro representa um esteio contra a
armadilha naturalista, e a filmagem da imagem teatral cria as distâncias que
diminuem os efeitos de fascínio característicos da imagem cinematográfica. O palco,
como concretude e não como metáfora, impõe à câmera inúmeras limitações,
deixando-a acuada. No movimento de circulação que engloba pintura, foto, vídeo,
cinema, e no qual se produz uma equalização entre os diferentes tipos de imagens, o
teatro tem o seu lugar, a um só tempo à margem e em seu interior. (PICON-
VALLIN, 2007, p. 161)
22 Picon-Vallin cita as crises de 1920 e 1960.
40
Ampliando a análise sobre as relações entre teatro e cinema no que diz respeito à
encenação teatral, Picon-Vallin, evocando a fala de Meyerhold, que já em 1930 afirmava que
“somente um teatro que se cineficará poderá rivalizar com o cinema.” (PICON-VALLIN,
2011, p. 207), propõe o conceito de “cineficação da cena”. Esta ideia relaciona-se ao modo
como os procedimentos cinematográficos são absorvidos pelo teatro, através de duas
ramificações: externa e interna.
A cineficação externa engloba todos os procedimentos que permitem a inclusão do
aparato cinematográfico na cena, como telas, projeções de vídeo, projeção e elaboração de
imagens captadas ao vivo, e toda sorte de utilizações de imagens. Ela pressupõe, ainda, um
árduo esforço de pesquisa, no intuito de elaborar ferramentas que permitam que o uso destes
procedimentos seja cada vez mais orgânico, frequente e fluido.
Já a cineficação interna procura dar conta de como as técnicas do cinema são
absorvidas enquanto linguagem da cena. A ideia é que, mesmo sem a utilização de
equipamentos e tecnologias próprias do cinema, a cena teatral tende a absorver os aspectos da
linguagem cinematográfica, no intuito de aproximar-se desta estética da qual o espectador está
tão e cada vez mais familiarizado. A título de exemplo, Picon-Vallin cita a utilização do close
cinematográfico, reproduzido na cena através do foco sobre um ator conseguido pela
imobilidade dos outros atores/elementos em cena, pelo jogo de luz ou pelo espaço. Assim
como o movimento do travelling da câmera, pode ser produzido pelo ator que conduz o olhar
do espectador através da cena pelo seu movimento ou foco de atenção. Sobre este aspecto
específico, muitos exemplos serão citados, adiante, na análise do espetáculo Les Éphémères,
como elementos que resultaram do processo de cineficação interna, e que interferiram
diretamente no processo criativo dos atores e na percepção do espetáculo pelos espectadores.
Picon-Vallin avalia o quanto estes processos estão entrelaçados ao defender a ideia de
que tanto o espectador quanto o artista criador (ator, encenador) tem a estética do cinema
introjetada em seu repertório de linguagem, de forma que, inevitavelmente, ela delineia
muitos aspectos da sua criação. A autora propõe, ainda que, se em um primeiro momento, o
olhar do indivíduo seja adestrado pela estética televisiva, caracterizada atualmente, de forma
principal, pela edição e formato dos videoclipes e das séries televisivas – aqui penso ainda na
estética dos videogames e do conteúdo audiovisual produzido e consumido na Internet – é
justo pensar em uma formação artística para os jovens encenadores e atores que inclua os
grandes clássicos do cinema, com a finalidade de depurar seu repertório e seu olhar sobre a
cena e a interpretação. Indo além, a autora comenta como a visibilidade e o consumo de
41
programas de reality shows também alteraram o gosto do grande público, acostumando o
espectador à ideia de que ele pode estar virtualmente em outros lugares, “testemunhando” a
realidade da vida alheia. Importa perceber que a permanência dos reality shows no consumo
cultural do grande público, depois de quase vinte anos do seu surgimento, alinha-se à
experiência da interatividade e conectividade que a Internet proporciona e ao fenômeno das
redes sociais que alimentam a espetacularização do eu. Isto justifica, em certa medida, o
interesse pelo teatro “autobiográfico”, que traz à cena a biografia do próprio artista, e o teatro
“documental”, que procura se pautar pelo acontecimento factual que tem valor de verdade
histórica, ambos em franco desenvolvimento. Percebe-se que estas duas tendências também
problematizam o ato representativo e a presença do ator, e alinham-se à ideia do teatro
performativo.23 E todo este movimento deriva da presença da televisão e das ferramentas que
a Internet e suas plataformas de interatividade oferecem, interferindo no imaginário e
cotidiano da sociedade de forma irreversível, e possibilitando a utilização da cena como um
espaço de reflexão e crítica.
O teatro documentário está ligado à ideia de um teatro como espaço de “informação
alternativa” no mundo submerso por informações no qual nós vivemos, e que pode
organizá-las, pensá-las pelo viés do sensível, valendo-se de toda a prática teatral dos
séculos precedentes, das culturas populares ou estrangeiras. Ele apresenta também
formas muito diversas, facetas múltiplas. (PICON-VALLIN, 2011, p. 209)
A análise destes conceitos propostos por Picon-Vallin pode ser ilustrada através de
diversos espetáculos da cena contemporânea internacional e brasileira. Da obra de Peter
Brook, encenador contemporâneo à Ariane Mnouchkine, cujas pesquisas cênicas também se
ampliam ao âmbito do cinema, destaco a montagem, e posterior filmagem, de Marat/Sade,
espetáculo de 1964, criado a partir de pesquisas e experimentos do diretor com os atores do
Lamda Theatre voltados para a prática de improvisações, utilizando técnicas corporais e
respiratórias inspiradas nas proposições de Artaud (LIRIO).24 Conforme analisa a autora, a
proposta da montagem era pesquisar uma linguagem teatral que garantisse uma comunicação
real e mais ampla entre atores e público. Aos atores era conduzido um trabalho de
desconstrução de repertório pessoal físico para que estes alcançassem maior liberdade
artística, exercitando a capacidade de adaptação a mudanças e novos pontos de vista através
23 “Se é evidente que a performance redefiniu os parâmetros permitindo-nos pensar a arte hoje, é evidente
também que a prática da performance teve uma incidência radical sobre prática teatral como um todo. Dessa
forma, seria preciso destacar também, mais profundamente, essa filiação que opera uma ruptura epistemológica
nos termos e adotar a expressão ‘teatro performativo’.” (FÉRAL:2009, p. 200) 24 O Lamda Theatre foi um grupo formado dentro da Royal Shakespeare Company, em Londres.
42
de técnicas de improvisação direcionadas. Neste sentido, o conceito de “espaço vazio”, caro
ao encenador, é experienciado no trabalho prático dos atores, convidados a uma constante
desconstrução e abertura para o novo. Essa montagem tornou-se um marco na trajetória do
encenador, ao inaugurar um trabalho experimental de pesquisa de linguagem que,
posteriormente, levou à criação do Centre International de Créations Theatrales (C.I.C.T.) em
Paris. Em termos de encenação, o espaço da cena era circular, compreendendo a interação
com o público, de forma ativa, dentro deste círculo, de forma que os atores pudessem, de fato,
interferir nas reações da plateia (LIRIO).
Ao transpor o espetáculo à linguagem do cinema, Brook se viu diante de impasses
técnicos como questões de espaço, tempo e reservas financeiras, ainda que utilizasse como
plataforma de trabalho a mesma pesquisa desenvolvida para o teatro (elenco e encenação),
que o levaram a conceituar a natureza dos dois meios de expressão artística.
Quando dirigira a peça, não buscara impor meu próprio ponto de vista à obra; pelo
contrário, procurara torná-la tão multifacetada o quanto pudera. Como consequência,
o público estivera continuamente livre para escolher, a cada cena e a cada momento,
os aspectos que mais o interessavam. É evidente, no entanto, que eu também possuía
minhas preferências e fiz, no filme, aquilo que um diretor de cinema não pode evitar,
que é mostrar aquilo que seus próprios olhos vêem (BROOK, 1992: p.250 in LIRIO,
2010, p. 8)
Ainda segundo Lirio, Brook apontou para a natureza da participação do espectador
diante das duas naturezas distintas de apreensão da obra: se no teatro o espectador tem a
liberdade de conduzir seu olhar por todos os detalhes da encenação, criando sua própria e
única “montagem” das cenas, no cinema só lhe resta uma maior passividade ao absorver a
edição proposta pelo cineasta. Ainda no contexto da análise sobre a participação do
espectador, Brook levantou a hipótese da absorção das imagens, colocando que a natureza
abstrata da encenação teatral conduz o espectador a preencher as lacunas com sua própria
imaginação, enquanto que diante do realismo das imagens cinematográficas, ao espectador só
resta a absorção do impacto da “literalidade das imagens” (LIRIO, 2010, p. 09).
No filme, assim como no espetáculo, a plateia também estava inserida, reforçando o
caráter de “filme de teatro” da obra, mantendo, também, a ideia de risco real que marcava a
encenação teatral. Se o trabalho dos atores transitava sobre uma imprevisibilidade calcada na
liberdade de movimentação e proximidade com o público, Brook, ao inserir grades entre
público e atores para a filmagem das cenas, garantiu que esta ideia de risco ganhasse
plasticidade e realismo também no cinema. E, no filme, o risco alcança seu ápice na cena
final, quando os atores literalmente destroem todo o cenário, filmada em um plano único, feito
43
por três câmeras, de modo a captar o momento e a materialidade da cena.
Também se destaca a montagem do filme que procura dar conta da experiência estética
teatral, através de planos curtos e de tomadas que focalizam todos os personagens, em ângulos
múltiplos, permitindo ao espectador desfazer a hierarquia entre imagens principais e
secundárias, assim como lhe é permitido no teatro. No mesmo sentido segue a iluminação do
filme, que utiliza-se dos elementos do próprio set para garantir a naturalidade da sua inserção
– é o jogo das cortinas que conduz a quantidade de luz de cada cena –, bem como a utilização
dos objetos de cena ocultados pelos atores que estão em cena praticamente todo o tempo.
Todos estes elementos, alinhados à captação das cenas de forma íntima e múltipla, que
culminam na catártica cena final da destruição de todo o ambiente, levam o espectador a
experimentar no cinema a sensorialidade própria do teatro de forma única. Isto marca
definitivamente a obra de Peter Brook como um exemplo ilustre dos “filmes de teatro” e a sua
relevância enquanto experiência estética para espectadores de cinema e teatro.
No sentido de ilustrar a amplitude dos efeitos da hibridação entre cinema e teatro,
recentemente, no Brasil, a diretora Cristiane Jatahy vem conduzindo experiências bastante
férteis neste território. Destaco, aqui, os últimos espetáculos da encenadora que desde 2005,
com o espetáculo “A falta que nos move ou Todas as histórias são ficção”, passou a pesquisar
os limites entre teatro e cinema, numa constante hibridação das duas linguagens, culminado
no espetáculo E se elas fossem para Moscou (2014-2015), um espetáculo-filme, ou filme-
espetáculo, apresentado ao público no Mezanino e Sala Multiuso do Espaço Sesc
Copacabana, Rio de Janeiro, simultaneamente como teatro e cinema. Neste espetáculo, a
diretora explora a fronteira entre as duas artes, com a captação de cenas da peça, ao vivo,
pelos atores, diante do público, editadas em tempo real e projetadas, simultaneamente, para
outro grupo de espectadores.
O espectador é testemunha de um presente construído em cena através da exposição
de dispositivos. Na versão teatral, o cenário é trocado a todo instante, são paredes,
estantes e porta móveis, sofás e mesas arrastados, mudanças de perspectivas. O palco
assemelha-se a um set de filmagem, com tripés e câmeras transitando pelos espaços,
captando gestos, momentos, depoimentos. As trocas são assumidas, lembrando a
todo momento que se está diante de um filme, realizado para aqueles que estão do
outro lado – metáfora da morte, prenúncio de futuro. O outro lado não é visível, é da
ordem do imaginário. Entretanto, na versão cinematográfica, o tempo teatral já é
passado. (LIRIO, 2015, p. 308)
44
1.3. O Théâtre du Soleil e sua dupla vocação como teatro e cinema
Ariane Mnouchkine cultiva os aparentes paradoxos. Nela muitas mulheres se
fundem. A líder da trupe que funda com seus colegas estudantes da Sorbonne, em
1964, a Sociedade Cooperativa aberta de produção Théâtre du Soleil e a escritora-
poeta de linguagem leve e doce; a cineasta extravagante de Molière e a
superintendente da Cartoucherie que não delega nada; a encenadora visionária e a
confessora-enfermeira dos atores; a professora e a chef gourmet; a general e a
menina; a militante e a hedonista; a santa e a aventureira. Quais adjetivos, quais
metáforas não foram empregadas por isto: rainha, papisa, leoa, sacerdotisa, ogra,
apaixonada… Ela é tudo isto e muitas outras coisas ainda, que ela não dirá. Uma
personalidade fora da norma, para uma trupe fora da norma. Um percurso fora da
norma. (PASCAUD, 2005, p. 212-213)
A trajetória do Théâtre du Soleil, a quinquagenária companhia de teatro francesa que
também flerta com o cinema, se confunde com a biografia de uma de suas criadoras, única
remanescente da formação inicial da companhia. Ariane Mnouchkine, a diretora de teatro
francesa que está à frente do Théâtre du Soleil há cinquenta e três anos, responsável por todos
os espetáculos desta companhia que já se apresentou nos cinco continentes e é considerada
referência no teatro contemporâneo mundial, reconhece que suas principais inspirações
artísticas sempre foram mais cinematográficas do que teatrais. Isto se deve, talvez, ao fato de
ela ter nascido em março de 1939, filha de um dos maiores produtores de cinema francês do
período pós-guerra, Alexandre Mnouchkine, e da atriz inglesa Jane Hannen, oriunda de uma
linhagem de atores britânicos. Apesar de pouco falar sobre sua mãe, Mnouchkine credita a ela
sua grande capacidade de contar histórias, enquanto seu pai ocupa lugar de destaque em sua
formação. A diretora cresceu acompanhando o pai nos sets de filmagem. Ela se recorda
especialmente de quando assistiu à filmagem da última cena de A Águia tem duas Cabeças
(1947), de Jean Cocteau, na qual a atriz Edwige Feuillère caía majestosamente por toda uma
longa escada e morria, tendo ficado encantada com toda a atmosfera tão excitante e vibrante
(PASCAUD). Foi, porém, em outro filme que percebeu o lugar que gostaria de ocupar
naquele mundo, Fanfan la Tulipe (1951), de Christian-Jacque com o célebre ator Gérard
Philipe:
Eu saía com ele às cinco horas da manhã; eu ajudava a pentear seu cabelo; eu me
metia em tudo; eu me preocupava com todo mundo, eu era repreendida. Mas eu
estava maravilhada, eu tinha a impressão de estar num navio no meio do oceano. E
eu ficava tão mais fascinada pelos técnicos, os especialistas – aqueles que “faziam” –
que pelos atores que, para mim, viviam numa espécie de Olimpo no meio dos
deuses. E eu não tinha vontade de viver no Olimpo! A aventura verdadeira estava no
lado da técnica, eu me sentia bem mais próxima daqueles artesãos que faziam o
milagre possível. Eu adorava ajudar a instalar os travellings, a empurrar um
caminhão na lama, a preparar os efeitos, a montar a cavalo. (PASCAUD, 2005, p.
41)
45
Este foi o ambiente no qual Mnouchkine cresceu, tendo vivido na primeira infância os
horrores da Segunda Guerra Mundial quando seus avós paternos, judeus russos denunciados
ao nazismo pela porteira do edifício onde moravam em Paris, foram assassinados. Embora ela
própria tenha assumido que não foi criada de acordo com a cultura judaica, sua ancestralidade
marcou a sua vida, dedicada a dar visibilidade às minorias, às questões da mulher, às vítimas
da discriminação, da violência política e da marginalização, através do ativismo pessoal e do
repertório artístico da companhia: em Méphisto (1979), sua adaptação para o romance de
Klaus Mann condenando a evolução do nazismo em Hamburgo em 1930; no melancólico
cemitério do cenário de La Ville Parjure (1994), ou nos genocídios retratados em L’Histoire
terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi du Cambodge (1985), em L’Indiade
(1987), em Le Dernier Caravansérail (2003) e, na forma de biografia em cena, em Les
Éphémères (2006).
Sua experiência no cinema envolveu a participação em muitos outros filmes como
L’Homme de Rio (1964), de Philippe de Broca, no qual colaborou na escrita do roteiro, e
também sendo homenageada pelo pai, inclusive no nome da sua própria produtora, Les Films
Ariane: “A cada momento da minha vida a única coisa que eu tive certeza absoluta foi que
meu pai me amava.” (PASCAUD, 2005, p.26). Foi através da paixão com que seu pai se
dedicava também ao cinema que Mnouchkine compreendeu a necessidade de conhecer e se
envolver com cada detalhe da produção, desde o roteiro até a montagem final do filme,
passando pelo set de filmagem. Esta forma de trabalhar foi absorvida pela diretora a ponto de
tornar-se, posteriormente, o próprio método de criação da companhia Théâtre du Soleil, no
qual não só ela, mas todos os integrantes se responsabilizam por cada detalhe da realização
dos espetáculos, confeccionando, eles próprios, cenários, figurinos, música, gastronomia e o
que mais fizer parte de cada empreitada.
Voltando a sua biografia, Mnouchkine, no entanto, percebeu que, mais do que o
cinema, o teatro seria seu espaço de atuação. Depois de conhecer as entranhas da sétima arte e
perceber o quanto aquele universo brilhante e mágico poderia esconder um mundo
autocentrado e hedonista – além de envolver muito dinheiro, o que o transformava em um
sistema industrial –, ela se voltou ao teatro, na expectativa de dar vazão a sua necessidade de
transformar o mundo, cercada de indivíduos que compartilhassem da mesma vontade. Quando
partiu para Oxford, em 1957, se deparou com uma forte atividade teatral amadora, sustentada
por jovens universitários envolvidos em seus primeiros projetos de encenação, como John
Mac Grath e Ken Loach, que acabara de se formar. Ali ela deu seus primeiros passos como
46
assistente de direção até que um dia, no ônibus, ao voltar de um ensaio de Coriolano, em que
era também figurante, sentiu um “amor à primeira vista”: “É esta a minha vida, eu pensei, este
jogo coletivo, entrar todos juntos em um navio que parte para longe, muito longe, descobrir
uma terra lendária e intacta” (PASCAUD, 2005, p.42).
Depois de voltar a Paris, em 1959, Mnouchkine fundou a Associação Teatral dos
Estudantes de Paris (ATEP), com o intuito de oferecer uma formação teatral aos estudantes e
montar espetáculos. Diante da oportunidade de montar Gengis Khan, de Henri Bauchau, e
ainda com pouca experiência, a diretora buscou inspiração na Ópera de Pequim, que havia
deixado fortes lembranças por sua apresentação durante o Teatro das Nações (1954-1968), e
montou o espetáculo com êxito. Surgiu aí o desejo de criar uma companhia profissional, o que
deveria acontecer dois anos depois, para que cada integrante pudesse terminar seus
compromissos com estudos e serviço militar. Neste período, decidiu viajar para a China, em
uma viagem iniciática, influenciada não só pela paixão à cultura asiática, mas também pelas
histórias que a tia paterna, Galina, contava, acerca do período em que ela e o irmão,
Alexandre, viajavam de trem pela Rússia durante a Revolução. A mais marcante das histórias
descrevia uma passagem na qual os dois irmãos, ainda crianças, puderam ver, da janela do
trem, no meio da noite, em plena neve, um batalhão de soldados de traços asiáticos, vestidos
com magníficos casacões dourados, montados em cavalos que trotavam ao longo dos trilhos
e, aos poucos, as crianças foram percebendo que todos os soldados estavam mortos,
congelados pelo frio. Esta visão foi determinante na vida de seu pai, mas também na sua,
criando associações permanentes com o imaginário da guerra, do apocalipse, do mistério das
viagens asiáticas. Aos 22 anos, sem conseguir o visto para entrar na China, Mnouchkine
acabou partindo para o Japão e, posteriormente, para Hong Kong, onde aprofundou seu
conhecimento sobre o teatro oriental, apaixonando-se pelo teatro Kabuki, que virou referência
em diversos de seus espetáculos (PASCAUD).
Após a viagem iniciática, Ariane Mnouchkine retomou o projeto de criação de uma
companhia profissional com alguns amigos, estudantes como ela, e fundaram o Théâtre du
Soleil, com a estreia de Pequenos Burgueses (1964), de Gorki, traduzido por Arthur Adamov.
Influenciados pelos ensinamentos de Jacques Coupeau, um dos primeiros a evocar a máscara
como ferramenta pedagógica em sua escola de atores vinculada ao Théâtre du Vieux –
Colombier, Mnouchkine e sua trupe mergulharam no universo das máscaras para o espetáculo
Sonhos de uma Noite de Verão, em 1967. Desde então, as máscaras passaram a fazer parte do
imaginário criativo da companhia.
47
Com a máscara, é preciso mostrar sem esconder nada, o público deve compreender
imediatamente, reconhecer. O ator deve abandonar o excesso, a gesticulação
frenética cuja energia leva à confusão. Não deve atuar duas coisas de uma só vez.
Procurar o andar, saber como entrar. Fazer paradas, fixar no espaço o desenho do
corpo e da máscara. Transpor o tempo cotidiano para o tempo teatral. (PICCON-
VALLIN, 2014, p. 100)
É importante ressaltar que no Théâtre du Soleil o uso das máscaras é feito respeitando
suas características físicas originais, evocando os personagens para os quais elas foram
confeccionadas em sua origem, tanto as italianas quanto as orientais (balinesas e japonesas),
uma vez que seus traços guardam informações valiosas sobre a fisicalidade e energia dos
próprios personagens, também na sua contra-máscara. No entanto, homens e mulheres podem
vesti-las e o aspecto ritual é deslocado dando espaço para a cena teatral acontecer através do
jogo e da improvisação. Desta forma também é usual ver na mesma cena máscaras de origens
diversas contracenando, desde que mantenham, entre si, as mesmas relações de hierarquia que
guardam em sua cultura original.
É sobre o palco do Théâtre de la Gaîté Lyrique, onde, convidados pelo Théâtre du
Chaillot, os balineses apresentaram La Sorcière de Dirah, que as duas companhias
se encontraram pela primeira vez diante da tradição uns dos outros. Depois de
dançar com seus companheiros mascarados, M. Pugra escolheu, entre as máscaras
trazidas por Stiefel, aquela do Pantaleão, transformou seu figurino e se pôs a dançar.
Stiefel conta: “Todos os seus movimentos e paradas estavam tão corretos, tão
verdadeiros, foi evidente e fascinante para nós todos. Uma verdadeira lição! Nós
estávamos absolutamente surpresos com a fraternidade das máscaras de tradições tão
diferentes!” 25 (PICCON-VALLIN, 2014, p. 105)
É possível enumerar alguns espetáculos icônicos da trupe francesa em que a presença
das máscaras ultrapassou o processo criativo, chegando à cena como estética e linguagem. Em
1999, a máscara pôde ser vista em Tambour sur la Digue que, como dito em seu subtítulo, é
uma “peça para marionetes encenada por atores”. Inspirada no teatro Bunraku, os atores
atuavam como verdadeiros bonecos, sendo, inclusive, manipulados por atores titereiros,
exatamente como manda essa tradição. Aqui a utilização da máscara foi radical, já que todo o
corpo do ator era recoberto por materiais que o enrijeciam, formalizando seus movimentos
como um todo e causando a impressão de que se estava diante de bonecos em tamanho real,
de fato. A transposição do espaço também seguiu a mesma linha, com a utilização de tecidos
e madeira para confecção de cenários e efeitos de cena, além de atores músicos executando a
trilha ao vivo, incluindo tambores coreanos.
25 Eirhanrdt Stielfel é o escultor responsável pela criação e confecção das máscaras do Théâtre du Soleil desde
1967, assim como de outras companhias.
48
Outros espetáculos anteriores também foram frutos de investigações verticais na
utilização da máscara como dispositivo criativo e estético como Os Átridas, de 1990 a 1993 e
o Ciclo Shakespeare, de 1981 a 1984, ainda que poucas máscaras viessem à cena, em meio a
atores caracterizados com visagismos acentuados, inspirados no teatro Nô.
No entanto, foi somente em 1975, no espetáculo L’Age D’Or, que as máscaras
ganharam a cena no Théâtre du Soleil, verdadeiramente. Na ocasião, a commedia dell’arte foi
não só a inspiração, mas a condição para a criação do espetáculo, uma tragédia sobre a
contemporaneidade.
Utilizamos a máscara porque imediatamente ela se impôs. Se atores que querem
improvisar no teatro contemporâneo não encontram rapidamente os meios de tomar
uma certa distância a fim de chegarem a uma forma, correm o risco de se
atrapalharem, de caírem no psicológico, no paródico, na zombaria e em outras
armadilhas que nós queríamos evitar. Percebemos que a máscara impunha um tal
trabalho sobre o signo teatral, sobre a maneira de representar as coisas, que ela
constituía uma disciplina de base e esta disciplina tornou-se disciplina tornou-se
indispensável para nós. (ASLAN,1999, p.23).
Imagem 4 - Ator em cena de L’Age D’Or (1975)
Data, portanto, desta experiência a utilização da máscara como o dispositivo
imprescindível no processo criativo da companhia, enquanto ferramenta de criação e
disciplina do ator, mesmo que nos espetáculos mais recentes suas influências estejam menos
expostas na encenação em si.
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Eu dizia que a máscara era nossa disciplina de base porque ela é uma forma e
qualquer forma impõe uma disciplina. O ator produz no ar uma escrita, ele escreve
com seu corpo, é um escritor no espaço. Ora, nenhum conteúdo pode exprimir-se
sem forma. Existem várias formas mas talvez para alcançar algumas delas haja uma
única disciplina. Acredito que o teatro é um vaivém entre o que existe de mais
íntimo em nós, de mais ignorado, e sua projeção, sua exteriorização máxima em
direção ao público. A máscara requer precisamente esta interiorização e
exteriorização máximas. (ASLAN, 1999, p. 29)
Abro aqui um parêntese para analisar a essência da máscara no sentido de entendê-la
como disciplina de criação artística, como é o caso do Théâtre du Soleil. A máscara pode ser
pensada como o veículo entre o indivíduo e seu duplo, e, assim, possuir duas faces
produzindo uma terceira materialidade, testemunhada por aqueles que presenciam o ato,
atores e espectadores, lançando, portanto, as ideias de transe ou possessão. Há, neste sentido,
toda uma aura imaterial que circunda a experiência e é responsável pelo aspecto místico,
absolutamente visível e tangível. No entanto, existem questões técnicas que envolvem a
experiência e que não podem ser negligenciadas, visto que são através delas que toda a coisa
se dá. Tanto o portador da máscara quanto o seu observador experienciam sensações únicas
que remetem à presentificação do sagrado, em que novos elos são criados e consumados.
Para o portador da máscara, fica evidente a alteração da visão e da respiração, ambas
encurtadas, o que dispara uma nova fisicalidade em todo o corpo, evidentemente incluindo a
emissão vocal. No romance A Máscara de Apolo de Mary Renault, um trecho ilustra este fato:
O que aconteceu, Nico? O que há com o público? Sabe que cortou vinte versos e
improvisou o resto? Essa máscara tem buracos de olhos horríveis, também. Eu não
disse "Você não precisa representar para mim, amigo", o que bem poderia ser a
verdade. Mesmo com bons orifícios de olhos, não podemos ver senão em linha reta,
com as máscaras; para olhar para os lados, é preciso voltar a cabeça. Qualquer coisa
poderia ter acontecido, pelo que lhe era dado saber, fora de sua linha de visão, e
capaz de provocar a agitação da plateia. (RENAULT, 1985, p. 226)
Para os observadores é a sensação do horror e do fascínio pelo ser deformado que se
apresenta instaurando uma realidade transitória, da qual é impossível escapar. Este ser
estranho faz o observador lembrar-se de seu próprio duplo, grotesco e disforme, escondido e
encoberto por camadas de civilização e consenso, causando fascínio e repulsa. Por isso se
instaura o momento ritual que o observador percorre sem deixar de problematizar sua própria
condição. Finaliza, ele também, transformado pela experiência:
Então, o que é que se passa no momento do deslocamento, isto é, no momento exato
em que a ordem de percepção que existia até então é perturbada mas em que a outra
ordem ainda não foi estabelecida: esse momento de passagem da ordem de presença
à ordem de representação ou inversamente? Aparece um estado de instabilidade. Ele
transporta o sujeito perceptor entre duas ordens em um estado intermediário. Desta
50
forma, o sujeito perceptor encontra-se num umbral – o umbral que informa e marca a
passagem de uma ordem a outra. O antropólogo Victor Turner chamou o fato de
encontrar-se num tal umbral de “liminaridade” (TURNER, 1969).
Portanto, Mnouchkine passou a conduzir seus processos criativos utilizando a máscara
como dispositivo para alterar imediatamente a energia e a expressividade do ator em cena,
com o intuito de instaurar realidades outras e presentificar a epicidade dos seus espetáculos,
especialmente os que datam das primeiras décadas de existência da companhia. Esta vontade
de transformação pôde ser notada não apenas na pesquisa prática e no processo criativo,
englobando o trabalho de atores e demais artistas envolvidos, mas também nas escolhas do
repertório dramatúrgico e da encenação.
Também é importante ressaltar que, em seus processos de criação, ao lado da máscara
e de todo o dispositivo criativo que deriva do seu uso (a improvisação como método de
criação da cena, a forte presença de figurinos e adereços que “ampliam” a máscara na estética
visual dos atores, a dramaturgia como consequência do jogo da cena), Mnouchkine sempre
fez jus às suas origens e incluiu o cinema como fonte de inspiração dos espetáculos.
Durante sua infância e juventude, ela pôde assistir aos clássicos dos grandes cineastas
como Ford, Hawks, Minelli, Cukor, Chaplin e Keaton, “sempre nas tardes de quinta-feira”
(PICON-VALLIN, 2006, p. 46). E tanto estes quanto outros cineastas tiveram seus filmes
apresentados aos atores do Soleil, ao início de cada processo de criação de espetáculos, tendo
como foco os aspectos formais do cinema e, principalmente, o jogo e a atuação dos grandes
atores. O cinema mudo sempre foi uma fonte de inspiração especial por guardar uma forte
teatralidade na atuação dos atores, remetendo à expressividade que também se encontra no
jogo da máscara, assim como o cinema japonês. Nesta condição, o cinema surgiu como fonte
de inspiração e repertório artístico no universo criativo não só da diretora, mas de todo o
Théâtre du Soleil, tornando-se uma chancela do trabalho da companhia.
Importa ressaltar, no entanto que, ainda que o cinema figure entre as principais
inspirações para a criação da companhia e que Mnouchkine tenha obtido grande êxito com a
realização do seu primeiro filme Moliére ou La Vie d’un Honnête Homme (1978),26 durante
muito tempo ela resistiu a registrar seus espetáculos em vídeo ou filme, fato do qual se
26 O filme conta a história da vida de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Moliére, o célebre
dramaturgo, ator e encenador do teatro francês, tendo como pano de fundo a França do século XVII. Com quase
cinco horas de duração, foi realizado em dois anos de trabalho, com a participação dos atores do Théâtre du
Soleil e de outras companhias também sediadas na Cartoucherie, totalizando 120 atores, mais 600 figurantes,
1.300 figurinos e 220 cenários. Com roteiro e direção de Ariane Mnouchkine, o filme contou com a fotografia
de Bernard Zitzermann, direção de arte de Guy-Claude François, figurinos de Daniel Ogier e Françoise
Tournafond, música de René Clemencic e produção de Claude Lelouch. Recebeu os prêmios César de Melhor
Fotografia e Melhor Direção de Arte.
51
arrependeu tempos depois. No entanto, sua decisão era motivada pela ideia de que, diante dos
dispositivos da época, que capturam o tempo, qualquer filmagem ou gravação se tornaria uma
“traição” ao espetáculo em si (pois subtrairia o frescor do momento) e ainda pelo fato de que
os espetáculos, assim como as pessoas, envelhecem. Assisti-los após muitos anos traria,
então, mais sofrimento do que alegria, sobretudo pelo aspecto técnico da encenação e do
trabalho dos atores (PICON-VALLIN, 2006, p. 48).
O único espetáculo que fugiu à regra e foi filmado pela própria encenadora foi 1789
(1973), pois, naquela encenação, Mnouchkine enxergou a possibilidade de ir além do simples
registro do espetáculo, podendo jogar com diversos planos na montagem, e reconheceu a
necessidade de não deixar desaparecer um espetáculo já histórico pelo seu sucesso e grande
repercussão.
Após essa experiência, somente com Tartuffe (1995), as câmeras voltaram a estar
presentes no galpão da Cartoucherie, para o registro, não do espetáculo, mas do seu processo
de criação, desde o estágio para atores que antecedeu seus ensaios até o primeiro dia de
apresentação do espetáculo. O filme Au Soleil même la Nuit (1997), de Éric Darmon e
Cathérine Vilpoux,27 em harmonia com Ariane Mnouchkine, tornou-se um dos mais célebres
documentários sobre o teatro contemporâneo, onde se pode conhecer e compreender a fundo a
metodologia de criação do Théâtre du Soleil, envolvendo não só os processos artísticos dentro
da sala de ensaio, mas todas as etapas de criação técnica do espetáculo, em todas as
dependências do teatro. Nele se pode ver como são atribuídas as funções na companhia, como
se montam os figurinos, cenários, as reuniões na cozinha, as decisões de produção, de
escalação de elenco, de exigência e acolhimento, enfim, é um retrato preciso e precioso da
companhia.
É como o livro não escrito pela diretora da companhia (ela aparece genericamente
“em harmonia” com É. Darmon e C. Vilpoux) sobre as alegrias e adversidades, os
deveres e os riscos, as finanças e o cotidiano de uma vida consagrada a uma arte, o
teatro, à pesquisa inquietante, incerta, de suas leis. (...) Sobre a tela, a vida e a arte se
entremeiam sem romantismo, o espectador circula do palco ao escritório, das
cozinhas aos ateliês, dos bate-bocas aos encantamentos. É um filme de
aprendizagem como se fala de um romance. (PICON-VALLIN, 2006, p. 49)
27 Éric Darmon, um “cineasta-etnólogo discreto”, constante parceiro de Ariane Mnouchkine, também fez a
captação das imagens em Tambours sur la Digue (2003) e em Le Dernier Caravansérail (2006). Cathérine
Vilpoux, também parceira de longa data de Mnouchkine, trabalhou na edição dos filmes Tambours sur la Digue
(2003), Le Dernier Caravansérail (2006), Les Naufragés du Fol Spoir, além de roteirizar e dirigir o
documentário Ariane Mnouchkine – L’Aventure du Théâtre du Soleil. Por ocasião da vinda da companhia ao
Brasil, em 2011, para a turnê de Les Naufragés du Fol Spoir (Os Náufragos do Louca Esperança) que se deu
durante a montagem do filme do espetáculo, Cathérine Vilpoux acompanhou a companhia e participou do
lançamento e da primeira exibição de seu documentário no Rio de Janeiro, no Espaço Sesc Copacabana
(novembro de 2011).
52
Imagem 5 - Cartaz do filme Au Soleil même la Nuit.
Cartoucherie, Paris, 1997.
Houve duas circunstâncias paralelas que fizeram Mnouchkine mudar seu ponto de
vista, passando a criar filmes a partir de seus espetáculos: em primeiro lugar, ao assistir a
alguns minutos da montagem de O Inspetor Geral (1926) de Vsevolod Meyerhold,28 a
encenadora ficou absolutamente tocada diante da “prova” de que aquele espetáculo realmente
aconteceu, de que a beleza ali contida podia não somente ser lida nos livros, mas também
experimentada sensorialmente, depois de décadas; com isso ela se deu conta da importância
do registro dos grandes espetáculos para as gerações seguintes, especialmente estudantes e
jovens atores. Em segundo lugar, com o desenvolvimento das tecnologias de captação de
imagens, e sua consequente diminuição de custos financeiros, seria “menos impossível”
conseguir financiamento para que suas aspirações cinematográficas pudessem voltar às vias
de fato (PICON-VALLIN, 2006, p. 48).
A partir deste momento, as câmeras passaram a frequentar os galpões da Cartoucherie
com assiduidade e confiança de todos, e a escolha de rodar filmes a partir dos espetáculos
teatrais envolveu não só o desejo de eternizar o efêmero momento teatral, mas principalmente
servir como um espelho onde teatro e cinema se refletem e se entrelaçam. Os “filmes de
28 Esta montagem tornou-se célebre pelo trabalho de pesquisa que Meyerhold realizou na tentativa de fazer
ressurgir o projeto de Nicolai Gogol, que teve a peça censurada em 1836. A montagem apresentou um
surpreendente trabalho de composição de coletivo único, criando diferentes quadros de cores e luzes. A atuação
dos atores era totalmente partiturada, composta por jogos com objetos, movimentações acrobáticas e trabalho
coral, tudo sobre um plano inclinado.
53
teatro” do Théâtre du Soleil são de fato incluídos no seu repertório artístico, apresentando o
hibridismo das obras da companhia e sua comunicação autêntica e constante com o público.
Imagem 6 - 1789 – La Révolution doit s’arreter
à la perfection du bonheur em turnê.
Tendo em mente os dispositivos de criação da companhia, que transitam entre o olhar
teatral e o cinematográfico, sempre houve, em paralelo, uma atenção ao espaço da encenação
em toda a sua arquitetura, incluindo aí o hall de acolhimento ao público, como predisposição
essencial do processo criativo de cada espetáculo como um todo. Desta forma, cada uma de
suas obras teatrais tornou-se potente na geração de diferentes ambientes de interação e fruição
do espectador.
Como exemplos dessa criação de ambientes estão os tablados elevados de onde os
atores interagiam com o público em 1798- La Révolution doit s’arreter à la perfection du
bonheur (1970), as dunas de L’Age D’Or (1975), ou mesmo, as arquibancadas bifrontais de
Imagem 7 - Cena do espetáculo Les Éphémères,
no Sesc São Paulo, em 2007
54
Les Éphémères. Outro elemento é a decoração original e única que é realizada nos galpões de
acolhida ao público a cada espetáculo, onde são vendidas refeições (cujo cardápio segue a
temática da peça), além de objetos e livros, criando um ambiente imersivo único a cada vez.
Ao realizar uma análise cronológica do repertório da companhia sob o enfoque do
espaço, é possível distinguir o tipo de espaço cênico mais utilizado, sendo que a relação ator
versus espectador proposta pelo palco italiano foi a de maior preponderância durante as cinco
décadas de trabalho. Isso se deve, provavelmente, à adequação ao processo criativo habitual
da companhia, que parte de técnicas de improvisação com máscaras e que, portanto,
pressupõe a frontalidade para sua recepção. No entanto, como foi dito, a partir dos anos 2000,
novos caminhos de pesquisa se apresentam à companhia.
Imagem 8 - Cena de L’Age D’Or. Cartoucherie, Paris (1975).
Foi, de fato, através da realização do filme Tambours sur la Digue (1999) que a
companhia entrou em um outro sistema de criação de espetáculos. Nesta experiência, a
“tradução” do espetáculo para a linguagem cinematográfica foi o gatilho pelo qual se abriram
as portas de um novo universo criativo e estético no trabalho da companhia.
No artigo Le Cinethéâtre d’Ariane Mnouchkine (2006), Beatrice Picon-Vallin
apresenta uma análise detalhada dos mecanismos de adaptação utilizados na filmagem deste
espetáculo e em Le Dernier Caravansérail (2003) e introduz os elementos cinematográficos
presentes na montagem teatral de Les Éphémères (2006). Faço-me valer deste estudo para
expor alguns mecanismos como ilustração desta nova etapa dos trabalhos do Théâtre du
Soleil, que pressupõe uma intensa interlocução entre o teatro e o cinema.
Segundo a autora, o primeiro desafio que se apresentou foi como filmar o espetáculo
com a ausência do público. A resposta a isto seria descobrir um dispositivo específico capaz
55
de transpor à tela a extrema radicalidade do espetáculo teatral.29 Assim, ao invés de procurar
um tratamento cinematográfico, Mnouchkine optou por acentuar a teatralidade do espetáculo,
lançando mão de determinados artifícios. Distanciando ainda mais a organicidade dos atores
do trabalho sobre as marionetes, ela os dirigiu de forma que aqueles que estavam em cena
seriam dublados pelos que estavam fora dela – com isso, inclusive, registrou-se uma etapa do
processo de criação do espetáculo, quando os atores fizeram este tipo de exercício
pesquisando a fisicalidade das marionetes. Complementando esse artifício, em um segundo
momento, Mnouchkine filmou os atores dublando a si mesmos diante do próprio filme pré-
montado, vestidos de preto como os atores/titereiros que os “manipulavam” em cena
(tornando-se os kokens da voz), e montou as diversas cenas em planos alternados, reforçando,
assim, a teatralidade da obra através dos dispositivos do cinema. Este efeito de profusão do
teatro também provém da multiplicação de relações entre as figuras do espetáculo no filme:
atores são marionetes na cena, suas expressões vocais descoladas, relacionam-se com suas
próprias imagens na tela e com seus titereiros. Soma-se a isto a diferença de iluminação entre
o teatro e o cinema, sendo que, neste último, o efeito que se consegue parece transformar o
rosto humano coberto de maquiagem, realmente, multiplicando-se os sentidos.
Outra adaptação realizada diz respeito ao cenário e aos efeitos teatrais conseguidos
com simples movimentações verticais de grandes telões de seda pintada. No cinema, este tipo
de “descortinamento” não causa o efeito pretendido e a solução foi transpor estas
movimentações para o chão do teatro, acentuando uma vez mais o espaço teatral ao privilegiar
o palco e o jogo dos atores sobre este.
Por fim, houve a necessidade de transposição na direção dos atores. Se a peça
alcançava determinados climas para cada cena completando a fisicalidade das marionetes com
elementos teatrais – como tecidos vermelhos que revelavam a paixão entre os personagens – o
filme exigia alguma dose de realismo no jogo para suprir o grau de verossimilhança que o
espectador do cinema espera. Neste sentido, por exemplo, uma cena de amor entre dois
enamorados abraçados ao mar transformou-se em um caloroso beijo debaixo d’água.
Importa reforçar que todo o filme foi feito no próprio galpão do teatro que inclui a sala
de espetáculos e o hall do público, sendo que a plateia em degraus foi toda desmontado para
dar lugar à plataforma que abrigaria os equipamentos e equipe técnica de filmagem. Assim, as
entradas e saídas, caras ao teatro, foram substituídas por jogos de distância e aproximação das
29 Tambours sur la Digue (1999) é um espetáculo onde os atores interpretam e interagem como marionetes que
vivem uma “história antiga”, inspirados pelo teatro Bunraku (estilo japonês de teatro onde bonecos, com quase
o tamanho real de um homem, são manipulados por diversos titereiros).
56
câmeras, garantindo a transposição do movimento cênico, de um formato a outro. Todos estes
artifícios e adaptações foram resultado do intenso trabalho de pesquisa tanto da companhia
quanto da equipe de filmagem: se os atores assistiram a diversos filmes japoneses para
encontrar a tônica do espetáculo (complementando a viagem pela Ásia em que todos os atores
puderam conhecer diversos gêneros de teatro oriental), a equipe de filmagem assistiu a filmes
de teatro como A Flauta Mágica (1974) de Ingmar Bergman e Tio Vânia em Nova York
(1994) de Louis Malle. Na etapa final de edição e tratamento, alguns planos tiveram a cor
modificada para sépia, ao passo que o som ganhou diversas camadas como a trilha sonora
incidental executada pelos próprios atores, uma narração da própria Ariane Mnouchkine e os
diálogos dos atores que, em alguns momentos, são transformados em pequenas legendas sobre
a imagem. Assim como a invenção de uma estética “bunraku” própria no espetáculo, o
resultado desta empreitada foi a realização de um filme que inventa sua própria estética de
“animação” cinematográfica e guarda, em sua essência a mesma centelha de pesquisa artística
verticalizada da companhia (PICON-VALLIN).
A questão do tempo é uma tônica no Théâtre du Soleil. Ao passo que, na realização
dos espetáculos, Mnouchkine frequentemente afirme que o único luxo de que a companhia
dispõe é o tempo (ela se permite adiar a estreia o quanto for necessário para que o espetáculo
alcance o amadurecimento para ir a público, estendendo-se às vezes por até oito meses de
ensaio), no cinema há a equação tempo versus custos de manutenção de equipamentos e
pessoal. Isto é parcialmente resolvido com a transformação da Cartoucherie em set de
filmagem, ainda que isto traga consequências estéticas que exigem um apuro maior quanto à
decupagem dos planos. Porém, novas possibilidades são abertas a cada filme.
Em Le Dernier Caravansérail (2003), espetáculo seguinte, a companhia, já habituada
a presença das câmeras em seu espaço de trabalho, fez um novo uso do audiovisual: as
improvisações propostas pelos atores passaram a ser registradas em gravações de vídeo e este
material tornou-se plataforma de estudo para todos. Nestas gravações, atores e diretora
puderam avaliar com precisão os pontos positivos e negativos de cada trabalho e discutir
soluções para a cena que passavam não só pela qualidade de atuação dos atores, mas de
composição plástica da encenação, constituindo-se um novo paradigma para o fazer teatral.30
30 Sobre isto Ariane Mnouchkine comenta como o vídeo permite uma etapa totalmente nova ao trabalho de
composição teatral, pois, se em anos anteriores, quando somente o registro de som era possível, as cenas
gravadas apresentavam algum silêncio, era impossível saber o que estava se passando na cena. Com o recurso
do vídeo esta questão fica totalmente solucionada, pois tudo está ali – palavras, gestos, ritmo, cores, jogo,
espaço –, de modo que os atores têm uma base sólida para retrabalharem as cenas, não mais com o olhar
narcisista próprio do ator, mas quase como encenadores (PICON-VALLIN, 2006, p. 54).
57
Neste movimento de alargamento das ferramentas para o fazer teatral entram em cena,
também, os computadores, que se tornaram cada vez mais frequentes no espaço de ensaio,
assim como toda a tecnologia presente (luzes, microfones, etc), agilizando a organização e o
compartilhamento de materiais de arquivo para inspiração, e permitindo a atualização e edição
de textos em tempo real, o que conferiu um frescor e uma vivência nunca antes experimentada
na sala de ensaio.
Ainda segundo Picon-Vallin, a partir destas novas bases de trabalho, Le Dernier
Caravansérail (2003) tornou-se o mais cinematográfico dos espetáculos da companhia. A
utilização de praticáveis móveis com cenários e atores sobre estes, como metáforas para os
movimentos migratórios de refugiados que compunham o tema do espetáculo, na verdade
reproduzem na cena teatral o movimento de travelling das câmeras, criando planos abertos e
fechados, zooms e diferentes enquadramentos através de portas, janelas e escotilhas. Todo o
cenário das cenas foi fabricado pelos próprios atores atendendo às necessidades que surgiam
durante as improvisações, assim como as projeções de pequenos textos de tradução entre os
diversos idiomas que compunham as cenas, fazendo alusão ao cinema mudo.
No entanto, ao imaginar o filme do espetáculo, Mnouchkine lançou mão de outras
ferramentas cinematográficas que não as que já compunham a cineficação interna. Fazendo
uso das facilidades de uma DV Cam PD150, do programa FinalDraft e de um computador, a
encenadora/cineasta realizou três semanas de preparação e ensaios em que pôde resolver
oitenta por cento dos problemas da transposição do espetáculo para a tela, com a ajuda dos
atores que já propunham as soluções em termos práticos (PICON-VALLIN, 2006, p.55). Com
isto ela diminuiu consideravelmente o tempo de filmagem, mantendo o clima de criação
artesanal também com a equipe de cinema, composta por parceiros de longa data.31 Picon-
Vallin destaca a semelhança entre as visões de Peter Brook e Ariane Mnouchkine sobre a
diferença entre os trabalhos do encenador e do cineasta.
Um diz: “O encenador faz parte de um coletivo onde o objetivo essencial é fazer
circular uma certa corrente na sala, enquanto que o cineasta mostra alguma coisa de
31 Sobre isso reproduzo um pequeno trecho da carta de intenção do filme, posterior à montagem em teatro: “Le
Dernier Caravansérail (Odyssés) já existe. É um espetáculo de teatro, criado em 2003 pelo Théâtre du Soleil. É
uma série de histórias, de migalhas de destinos, de partes da vida de homens e mulheres. Le Dernier
Caravansérail (Odyssés) deseja virar um filme, agora, um verdadeiro filme. De cinema. Não se trata de realizar
uma simples captação, mas de colocar-se à disposição para viver uma nova aventura artística e, graças ao
cinema, aprofundar ainda mais o material original e quase inesgotável. De oferecer também ao teatro as
possibilidades de reforçar a potência de seu testemunho e amenizar sua efemeridade. E sobretudo de cumprir a
promessa feita àqueles que nos contaram suas histórias: lhes passar a palavra. Deixar um rastro daqueles que
não o podem fazer, daqueles de quem não escutamos nem os gritos nem os murmúrios. Aqueles que nós
calamos, sempre.” (PICON-VALLIN, 2006, p.55).
58
pessoal a cada instante.” A outra: “A direção no cinema não tem o caráter coletivo
do teatro, a câmera pertence ao diretor, não a dez pessoas.” (PICON-VALLIN, 2006,
p. 56)
Uma questão que surge nesses esforços de adaptação de uma mesma obra entre o
cinema e o teatro é a utilização do espaço vazio. Se no teatro, o espectador foi treinado, por
séculos, a preencher os vazios da cena com sua própria imaginação, quando o espaço vazio
porventura surge na tela de cinema, o espectador pode vir a se descolar da narrativa
apresentada, justamente por não ter âncoras verossímeis nas quais se apoiar. Portanto, o
esforço em resolver esta questão baseia-se em encontrar as imagens certas, tanto no teatro
quanto no cinema, de forma que o espectador possa ter experiências equivalentes, diante de
abordagens diversas, considerando os vazios presentes na imagem e na montagem.
A filmagem de Le Dernier Caravansérail apresentou diferentes respostas aos
problemas específicos que surgiram diante da natureza do próprio espetáculo, composto por
três tipos de momentos – cartas introdutórias, testemunhos e documentos e as “óperas”.32 Se
as cartas introdutórias, explicando as premissas do espetáculo e endereçando-se a todos
aqueles cujas histórias estariam representadas, serviam como plataforma para a translação dos
espectadores entre o tempo/espaço cotidiano para a cena, no cinema isto não funcionou. Por
isso, o filme se inicia diretamente na primeira cena, onde a ação dos refugiados em plena fuga
se dá em primeiro plano. Desta forma, uma das cartas passou a estruturar o filme como um
todo, através de uma narração que fez a “costura” entre as cenas e ofereceu os espaços de
respiro ao espectador, assim como as “óperas” no teatro. No entanto, essa solução surgiu já
durante a montagem do filme, de forma que uma nova questão se impôs: qual imagem deveria
acompanhá-la? A solução foi filmar a mão de uma “tradutora” ao escrever em persa, a carta
lida em francês (narração em off), o que acabou conferindo um grau maior de intimidade com
o tema e com o espectador do filme. Por vezes, estas imagens foram superpostas às cenas dos
atores, trazendo um ambiente fantasmagórico ao filme, como se aquelas palavras escritas
tomassem a forma de ação imediatamente e reforçando o hibridismo entre o teatro e o cinema
(PICON-VALLIN, 2006, p. 61).
Em relação aos testemunhos e documentos dos refugiados, a questão que se impôs foi
como transpor as longas cenas com textos ditos e projetados sobre as cortinas de fundo do
teatro com o palco vazio, para a linguagem do cinema que não suporta a voz em off por
longos períodos. A solução encontrada foi filmar cada ator representando os verdadeiros
32 As “óperas” eram momentos do espetáculo em que os atores se ocupavam de tarefas teatrais, varrendo o
palco, transportando, empurrando e deslocando praticáveis e objetos, arejando o espectador entre as emoções
específicas de uma cena e outra. (PICON-VALLIN, 2006, p. 58)
59
emigrantes, em diversas línguas, não em formato de falso documentário, mas criando
pequenos contextos para cada momento: a leitura de um poema em um café, a escritura de
carta em um jardim, etc., re-teatralizando estes momentos, chamados também de
“experimentos”. Para que a despersonalização das testemunhas/personagens no teatro fosse
mantida no filme (oferecendo aos espectadores a chance de preencher com seu imaginário os
espaços vazios, potentes de sentidos), os atores eram filmados frequentemente de costas ou
perfil, ou na contra-luz, ou, ainda, em movimento, estando sempre presente na cena um
gravador ou microfone, reforçando a ideia de dar voz aos inaudíveis.
Quanto à questão dos praticáveis móveis no set de filmagem, mais uma adaptação foi
necessária. Das tantas plataformas que formavam o cenário do espetáculo, apenas alguns
menores foram mantidos para a filmagem das cenas, geralmente aqueles que transportavam os
atores de um lado a outro. Neste sentido, os atores propulsores tiveram a sua ação original
diminuída, apesar de estarem presentes às cenas como um coro, observando com atenção o
que se passava, contribuindo para o foco de concentração da câmera e, mais uma vez,
teatralizando o plano filmado. Algumas cenas também tiveram que sofrer maiores adaptações,
especialmente aquelas situadas nas cabines telefônicas – cenas frequentes em que os
personagens se comunicavam com parentes e amigos distantes. Por serem espaços muito
exíguos, estes cenários não comportavam a presença da câmera e equipe, além dos atores, e as
soluções de enquadramento vieram através de movimentação das câmeras, inclusive
utilizando uma grua especialmente confeccionada para estas filmagens pela equipe de
cenotécnicos do Théâtre du Soleil. Assim também foram solucionadas outras questões que
surgiam ao avançar de uma cena a outra, trazendo à cena cinematográfica um pouco das
trucagens artesanais dos filmes do primeiro cinema (PICON-VALLIN).
Nas primeiras exibições do filme, houve quem sentisse falta dos praticáveis móveis,
uma marca muito forte da encenação, ainda que pela movimentação contínua dos atores
diante da câmera, se possa deduzir a presença e utilização destes. Diante disto, é curioso
pensar como a hibridação entre cinema e teatro é cada vez mais marcante na cena de
Mnouchkine: no teatro, o que impressionou o público de forma indelével foi a presença destes
praticáveis móveis que faziam clara alusão ao travelling do cinema; no filme, são as trucagens
artesanais e as soluções teatrais das encenações e do trabalho dos atores que reforçam a
identidade da obra.
Porque quando plataforma e câmera movem-se juntos, os atores/propulsores usam
um figurino preto (e escondem seus rostos sob véus negros). Este figurino, ao torná-
los invisíveis, reencontra a referência ao teatro japonês e aos “kokens”... A lenta
60
rotação da plataforma-cabine (telefônica), carregada de suspense e também geradora
de uma emoção específica, liga os esforços comuns das ferramentas das duas artes.
(PICON-VALLIN, 2006, p. 65)
Para que se alcançassem os mesmos efeitos que o espetáculo causava no espectador, a
equipe de cinema também fez alguns acréscimos, pequenas cenas, detalhes, novos
personagens ou planos gerais que contribuíram para que a narrativa do filme ganhasse a
intimidade ou a clareza da encenação teatral. Esses acréscimos tinham também a função de
abrir janelas no filme, criando tempos para que o espectador ampliasse suas condições de
observação e fruição. Um exemplo disto é a cena intitulada Les Cinéphiles (Os Cinéfilos, em
tradução livre), em que um pai e uma filha assistem animados à projeção de uma bobina do
filme O Garoto, de Charles Chaplin (no teatro e no cinema só se pode ver de qual filme se
trata através da luz projetada em seus rostos e pela música inesquecível).33 Assim se passa a
cena: um vizinho chega em sua casa e lhe entrega a bobina de La Nuit du Chasseur (O
Mensageiro do Diabo), de Charles Laughton, enumerando todo o elenco do filme, o que os
deixa vibrantes, e se vai. Nas paredes da casa se pode ver, entre outros, o cartaz de Rome ville
ouverte (Roma, Cidade Aberta) de Roberto Rosselini. Então eles são avisados de que os
talibãs estão a caminho, porém só há tempo da filha se esconder. Após um curto diálogo o pai
é assassinado pelos talibãs que colocam fogo no local, em especial no cartaz e nas bobinas de
filmes, depois de também atirar no “diabo-projetor”, que apesar do golpe insiste em projetar o
filme de Chaplin, sobre o pai, agonizante. A essa sequência no cinema, foi acrescentada uma
curta cena de O Garoto, encerrando esta passagem (PICON-VALLIN). Neste exemplo
também fica claro o quanto o espetáculo é influenciado pelo cinema, não só nos aspectos
técnicos, mas também como referência temática e estética.
Ao assistir ao filme fica claro também como supostas oposições se esvanecem diante
da experiência do espectador: plantas verdadeiras convivem bem com suas versões em
plástico do cenário, recursos teatrais conferem identidade às cenas filmadas, momentos
documentais se entrelaçam a cenas de ficção com naturalidade.
O rugido ensurdecedor e incessante do rio enfurecido, como no teatro, cobre a
imagem (no filme) e lhe confere uma dose de realidade. O imenso pano pode ser
agitado como ondas irregulares inquietas que o incham, ele pode também deslizar
rapidamente entre as mãos da brigada dos efeitos especiais. Quando, nesta
manipulação fluida, se associam o rugido e as nuvens de fumaça projetadas em
segundo plano, ou o obstáculo de uma rocha, o espectador vê a água, e a corrente,
33 Les Cinéphiles foi uma cena inspirada em um documentário sobre a cinemateca de Kabul, onde os
funcionários emparedaram os filmes para salvá-los dos talibãs, dispostos a destruir tudo (PICON-VALLIN,
2006, p.47).
61
fria, ameaçando, espumando: tudo tornando-se maravilhoso, ele esquece a seda, para
a reencontrar um pouco mais tarde, sem desconforto. Se agita o pano como o rio, da
convenção aceita pela ilusão, do teatro ao cinema, em uma sutil alternância ou talvez
as duas artes parecem se confundir. “Eu acho que existem em Le Caravansérail
coisas que são um novo gênero: você vê as cordas do teatro, mas é cinema”, dizia
Ariane Mnouchkine durante a montagem. (PICON-VALLIN, 2006, p. 67)
Ainda conforme a análise de Picon-Vallin, outros aspectos interessantes podem ser
destacados sobre a transposição do espetáculo em filme. Em relação às cenas de ação, não se
lança mão de “artilharia pesada” ou grandes efeitos. Basta, por exemplo, o som de um
helicóptero sobrevoando para que atores e espectadores acreditem em sua existência (fora do
enquadramento da câmera) e aceitem a imersividade a que são convidados. Em relação a
enquadramentos de câmera, na versão do espetáculo, as cenas ofereciam visões
cinematográficas ao espectador. Portas, janelas e o próprio plataforma em movimento
contínuo traduziam os planos à linguagem teatral. No filme, a decisão foi a de acentuar tal
estética, de modo que os enquadramentos se mantiveram e reforçaram a sensação de
confinamento e constrição das figuras em cena. Estes também serviram como molduras para
momentos em que a tela era dividida por duas cenas, reforçando a ideia do jogo. O jogo
teatral, no entanto, está presente em todo o filme, sem que o espectador tenha tempo para
distanciar-se de modo a analisar todos os elementos: em qual língua determinada cena foi
feita (os atores utilizaram as línguas de suas diversas nacionalidades, muitas vezes alternando-
se entre si, em uma verdadeira Babel), o quanto há de teatro no filme, quais os detalhes do
trabalho dos atores, ou figurinos e maquiagens, que levam o espectador à identificação com a
situação e sua decorrente emoção?
Le Dernier Caravansérail, portanto, marca uma nova etapa do trabalho da companhia
no que concerne à utilização de documentos reais atrelados à ficção, à transformação de
figuras reais em personagens, de utilização do espaço e do movimento na cena, do parentesco
entre o teatro e o cinema. Na versão fílmica, o objetivo principal era que este formato pudesse
conter em si as duas possibilidades de afetar o espectador: a teatral e a cinematográfica. Ainda
que tenha sido impossível desvencilhar-se da ideia de filme de teatro, enxergam-se traços
absolutamente cinematográficos no filme.
Naturalmente essas pesquisas se prolongaram alcançando o espetáculo seguinte da
companhia, Les Éphémères (2006), que foi sendo concebido enquanto ideia e visão durante as
filmagens e montagem de Le Dernier Caravansérail. Nas próximas páginas me proponho a
analisar detalhadamente o processo de criação de Les Éphémères, justamente através dessas
imbricações entre teatro e cinema na pesquisa da companhia.
62
Portanto, o entrelaçamento do teatro ao cinema nos espetáculos recentes da companhia
não se deu de forma planejada. Todos estes aspectos estão de alguma forma ligados às
pesquisas práticas que trouxeram a linguagem cinematográfica à cena teatral (e vice-versa),
instaurando uma nova etapa no trabalho da companhia. Fazendo uso da ideia de cineficação,
proposta por Picon-Vallin (2011), que consiste na apropriação pelo teatro de alguns elementos
do cinema, é possível verificar ao longo dos trabalhos da companhia, a co-existência das duas
vertentes expostas pela autora: a externa, caracterizada pela utilização das tecnologias de
projeção e captação de imagens no espaço teatral, e a interna, que implica na utilização das
técnicas cinematográficas para a construção da cena. Não por acaso, a ferramenta pedagógica
de base da companhia é o jogo das máscaras, que provoca a criação de estruturas narrativas
simples e diretas, presentes também nos filmes do “primeiro cinema”. Tais filmes são a
própria transposição do teatro da época para a nova mídia que se apresentava. Constata-se,
portanto, uma superposição de referências, nas quais o teatro e o cinema perdem suas
fronteiras.
O Théâtre du Soleil desenvolveu um repertório de espetáculos que reflete, ao mesmo
tempo, a dedicação e a paixão pelo teatro artesanal, de pesquisa, laboratorial, e a estrutura
próxima ao esquema empresarial que gerencia uma empresa criativa, e envolve, atualmente,
mais de 70 pessoas entre artistas, técnicos e pessoal de escritório, tendo apresentado suas
obras em todos os continentes do planeta. Vejo, uma vez mais, nessa dualidade, as vocações
pelo teatro e pelo cinema caminhando de mãos dadas e, novamente, é o espaço da
Cartoucherie, com seus vários galpões para usos diversos, onde a companhia permanece
sediada, e, evidentemente, os recursos públicos destinados à companhia, que permitem a
experimentação e diálogo de linguagens, tornando sempre profícua a criação de cada
espetáculo e garantindo a renovação de suas plateias.
63
CAPÍTULO 2 – O processo criativo de Les Éphémères: um meteoro ofusca o Soleil de outrora
2.1 Escritos de artista: notas de ensaio catalogadas no programa original da temporada francesa
Todo enunciado lido no arquivo é, literalmente, uma transposição, uma tradução, o
vestígio de um corpo ausente que tocou essa matéria (uma página, a tela). Sua
compreensão inscreve-se, portanto, na lógica da literatura, mas também fora dela, na
da fotografia. (ANTELLO, 2007, p. 44)
Um diário – breve suspensão do espaço tempo vivido para o registro de toda a vida
vivida fora daquele momento. Um exercício de repetição, constante, que mobiliza o escritor
para dentro e para fora de sua vida, como autor e objeto de sua própria obra. Um pequeno
oásis que se auto confere o poder de reter e, assim, dominar, todo o deserto a sua volta.
Deserto, porque a vastidão e o vazio engendram as mais inusitadas miragens e possibilidades
de caminhos. Oásis, porque comporta o possível conforto da elaboração e ordenação do caos
pela linguagem e sua fixação, configurando-se então como uma possível leitura do real. Um
diário, uma janela pela qual o leitor se debruça procurando conhecer o interior da casa,
impossibilitado de ir além deste único ponto de vista e foco de luz, o que o leva a completar
as lacunas da visão com sua própria imaginação, esta função criativa do cérebro, que
complementa a memória, conforme ilumina Vygotsky.34 Ou ainda, conforme a nota de ensaio
registrada no programa da temporada francesa do espetáculo Les Éphémères: “A imaginação
é um ato criador da memória. Borges/24 de agosto.” (MOUCHKINE, 2006, s/p).
A escrita de artista é o diário em sua total potência. O fetiche da possibilidade de
capturar a centelha divina que, por instantes, “animou” aquele indivíduo, permitindo que o
insight acontecesse. O fetiche de adentrar a intimidade do ser idealizado como divino e, quem
sabe, descobrir seus segredos nas entrelinhas, nos rastros deixados inadvertidamente. Como
na fábula, pequenos farelos de pão deixados pelo caminho que se trilha em busca da fantástica
casa feita de doces.
Em constante tentativa de capturar o momento, como se fosse possível reter a
experiência e eternizá-la, o ser humano, desde sempre, dedica-se à escrita íntima que se
34 Lev Semyonovitch Vygotsky (1896-1934), um dos teóricos mais influentes na área de Educação e Psicologia,
teve passagem por várias áreas do conhecimento, especialmente a literatura e o teatro. Foi um dos primeiros
defensores da associação da psicologia cognitiva experimental com a neurologia e a fisiologia, ao insistir que as
funções psicológicas são produtos da atividade cerebral.
64
alterna entre a vaidade e a preocupação com o devir. Ingenuidade tomar esses registros como
um retrato do real; é evidente que eles contêm e expõem mais pistas sobre a concretude dos
fatos que circundam as experiências descritas do que registros históricos oficiais ou
científicos, dado, justamente, o caráter político implicado nestes últimos em oposição à
suposta, liberdade da escrita íntima. Ainda que no processo de elaboração da escrita estejam
presentes dispositivos que não deixam de ser políticos, como autocensura, pretensões,
escolhas e afetos, o caráter íntimo da atividade acaba por desmontar algumas armadilhas,
deixando escapar breves borrões, os quais, posteriormente, podem ser lidos e interpretados a
partir do interesse de quem lê.
A escrita de artista, como se denominam os registros de processos de criação, diários,
manifestos e demais exercícios de linguagem de artistas que usaram também a plataforma da
escrita para elaborar sua obra – e vida – podem ser tomados como parte inerente do seu
legado, ainda que possam ter sido concebidos com o intuito de explicar ou delinear
determinadas visões e possíveis tangenciamentos. Dessa forma, a escrita e a obra de um
artista formam duas faces complementares de um todo, tendo a primeira certa preponderância
sobre a última, já que guardaria vestígios do processo de criação que não necessariamente
sobrevivem na obra final, como é o caso do teatro, uma obra efêmera por natureza. Dessa
hipótese surge a possibilidade de considerar a obra final como uma dramaturgia residual
daquilo que seria o verdadeiro legado do artista, ou seja, o registro do seu processo de criação.
Pois é a partir do momento em que o artista toma para si o instrumento de construção teórica
do seu fazer, problematizando o diálogo com outras instâncias como a crítica, a teoria pura e a
história da arte, que ele amplia o domínio sobre o seu discurso e suas intenções e, alcança,
portanto, novos horizontes para sua obra.
É evidente, porém, que a escrita de artista guarda em si mais informações do que o seu
autor previa, como acontece em todos os âmbitos da construção humana – e os arqueólogos
insistem em lembrar –, impregnada que está por seu contexto, inspirações, afetos e aptidões.
Nesse âmbito, é possível evocar o conceito de autoetnografia de Daniela Versiani (2002). A
pesquisadora apresenta um novo modelo de autobiografia, proposto por Julia Watson, no qual
se substitui a voz unívoca e estável do autor da modernidade por uma escrita capaz de abarcar
a alteridade que surge na relação dialógica da multiplicidade de vozes internas do indivíduo,
seguindo um novo paradigma, que põe em xeque o sujeito metafísico para dar visibilidade a
outras subjetividades. Ao lado disso, Versiani introduz um novo “recorte” para etnografia
proposto por James Clifford (2008) que ilumina o caráter também dialógico do registro
etnográfico contemporâneo, no qual o pesquisador não só está inserido na escrita (em
65
oposição ao modelo de Malinowski, de 1922, onde o autor coloca-se em terceira pessoa, na
tentativa de distanciar-se do objeto). Mas este, principalmente, apresenta-se implicado no
próprio objeto, de modo que sua subjetividade é assumida como recorte do olhar. Assim,
Versiani reúne os conceitos apresentando a “autoetnografia”, ou seja, uma escrita que encerra,
em si própria, a relação dialógica do sujeito e seu outro/duplo.
As possibilidades abertas tanto por Watson (...) na busca por modelos alternativos de
autobiografias e etnografias – construídos não mais a partir do pressuposto do
sujeito unívoco, estável e metafísico, ou da autoridade do etnógrafo e de seu
distanciamento em relação ao seu “objeto de estudo”, mas sim a partir de uma noção
de subjetividade construída de um modo relacional, ou dialógica – também
permitem pensar que textos de autoconstrução de subjetividades (coletâneas de
autobiografias, as próprias autobiografias e memórias, cartas, e-mails, etc.) podem
ser lidos como textos com valor de etnografia e vice-versa, havendo entre as duas
formas de escrita (auto e etno-grafias) aspectos intercambiáveis. (VERSIANI, 2002,
p. 69)
Diante disso, ainda que a escrita de artista guarde em si um valor inquestionável como
memória de um processo de criação, há que se fazer ressalvas quanto a tomá-la como reflexo
do real, invisibilizando possíveis imbricações ficcionais. Aplica-se aqui a referência à “ilusão
tautológica”, segundo Raúl Antelo (2007), na qual se toma o texto conservado em arquivo
como um relato fiel de si, apenas pela ilusão de sincronicidade a qual se apela, no intuito de
invisibilizar o aspecto de casualidade e de fantasmagoria que está implícito na própria
conservação de sua memória. Neste sentido, proponho aqui reflexões sobre o processo de
criação do espetáculo Les Éphémères, do Théâtre du Soleil, tomando como referencial inicial
único os relatos e memórias inscritos no programa da temporada francesa, que reproduz
trechos de notas da diretora Ariane Mnouchkine durante os ensaios do espetáculo, em formato
de diário simulado.
De antemão, é importante assumir os riscos implicados, já que, conforme está
registrado na contracapa do programa, trata-se de “extratos de notas de Ariane Mnouchkine,
organizados por Charles-Henri Bradier; escrita e desenhos de Catherine Schaub. Portanto
estão mais do que expostas as várias subjetividades envolvidas nestes relatos, o que não
diminui o seu valor enquanto memória/registro do processo criativo da companhia, e, pelo
contrário, deflagra o caráter coletivo da criação, deixando os dispositivos que poderiam criar
as armadilhas da leitura de arquivos iluminados. A saber: as armadilhas envolveriam, entres
outros conceitos, além da “ilusão tautológica”, a “ilusão na crença”, também proposta por
Raúl Antelo que observa um aspecto inerente ao arquivista ao lidar com o vazio de
significação revelado pelas lacunas do arquivo; se pela ilusão tautológica, ele procura
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transbordar a significância para preencher as lacunas, na ilusão na crença, ele apela à
transcendência como forma para o preenchimento, e ambas podem se apresentar como
desvios para uma pesquisa de arquivo eficaz e lúcida.
As Origens: o cometa (6-20 de março) O público, as pessoas/ (...) E vocês são as
visões dos espectadores quando vocês entram... / (...) Eu procuro que montagem que
é.../ Que reuniu todas estas pessoas aqui para que elas tenham todas estas visões,
todos estes desejos... 6 de março” (MNOUCHKINE, 2006)
O trecho citado abre o programa/diário de montagem do espetáculo Les Éphémères,
que estreou em 2006, em Paris. No sentido de investigar os desdobramentos da leitura do
arquivo, tomado aqui pelas memórias fixadas no diário/programa do espetáculo, a proposta
foi ater-me somente a esta fonte de informação e confrontá-la com a obra resultante, no caso o
espetáculo, materializado pelo seu registro filmado.
Imagem 9 - Primeiras páginas do programa de Les Éphémères digitalizadas (2016)
O diário/programa é composto por pequenos textos em caligrafia manuscrita,
acompanhados de datas e alguns desenhos que ilustram ideias e instantes de ensaios, dispostos
em ordem cronológica e sob pequenos títulos. A estrutura dos textos evidencia sua origem na
oralidade, haja vista a construção das frases, sempre direcionadas a alguém ou a um grupo,
ainda que contenham indicações práticas ou propostas reflexivas e conceituais. Portanto, o
encontro entre o “calor” da fala da diretora Ariane Mnouchkine na sala de ensaio e seu
registro feito pelo assistente de direção Charles-Henri Bradier, além da posterior edição do
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material, incluindo o projeto gráfico de Catherine Schaub, modulam um novo original que
revela ao leitor as pistas pelas quais se pode acessar a memória do ato criador.
Seguindo a cronologia do diário, logo no início lê-se: “La Piazza Navona/ (...) Nós
estamos diante de uma mesa de autópsia, uma arena, uma lupa, uma Piazza Navona.35 Mais
perto, não podemos, mais perfurante, não podemos... 7 de março” (MNOUCHKINE, 2006). À
nota, segue-se o desenho da área cênica e da disposição do público, que são ilustrados
mutuamente, justificando a escolha do espaço para o espetáculo. Logo em seguida, mais duas
notas evocam as escolhas conceituais: “Tempo/ (...) Atenção ao tempo, não se pode deixar
que a cena se instale, não atuar uma cena, mas um momento... 8 de março” e “Política/ (...) É
íntimo sim, e muito político, político pela carne, porque nós somos, pela diferença entre nosso
discurso e nossos atos.... 8 de março” (MNOUCHKINE, 2006). Percebe-se, por estas notas
escolhidas para iniciar o “diário”, uma possível preocupação com o efeito narrativo decorrente
do encadeamento das ideias: o diário começa estabelecendo o tempo e o espaço da “história”,
bem como o seu conceito geral.
Em uma harmoniosa ilustração da “Autoetnografia” de Versiani, e da “Ilusão na
Crença” de Antelo, dentre todas as possibilidades, as notas provocam a reflexão sobre o que
as motivou, levando o leitor a preencher as possíveis lacunas com aquilo que poderia se
relacionar a elas, em termos cronológicos e de oposição de ideias. É essencial lembrar aqui
que Mnouchkine, ao contrário de outros encenadores como Peter Brook e Eugenio Barba, não
tem entre seus focos principais a produção teórica a partir de suas experiências práticas, de
modo que produz pouca literatura sobre o seu processo criativo. Assim, suas reflexões
teóricas podem ser conhecidas, quase que exclusivamente, através das entrevistas e debates
dos quais participou e que foram publicados e registrados em vídeo ou filme.
A partir das notas citadas importa dizer que, desde sua fundação em 1964, os
espetáculos da companhia expunham uma encenação exuberante, fruto das influências do
teatro oriental (o Nô japonês e o Topeng balinês, em especial) e da forte expressividade física
de seus atores, aliada a textos de declarado engajamento político, alternando-se entre clássicos
(como Os Átridas e Macbeth, mais recentemente) e criações coletivas, em harmonia com a
escrita final de Hélène Cixous. As máscaras sempre estiveram presentes como ferramenta
35 A praça Navona é uma das mais célebres de Roma e tem sua forma arredondada como os antigos estádios de
Roma antiga. Acredita-se que suas arquibancadas tinham espaço para até 20.000 espectadores, as quais foram
sendo substituídas por casas, ganhando seu aspecto de praça no século XV, com a transferência do mercado da
cidade para seu interior.
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Imagem 10 - Digitalização da página do programa citado.
pedagógica durante o processo, chegando a vir à cena em determinados espetáculos, sendo o
mais emblemático L’Age D’Or, quando foram evocados os personagens e o espírito da
commedia dell’arte para formalizar o que seria uma tragédia sobre o mundo contemporâneo.
Na ocasião, em 1975, já sediados nos galpões da Cartoucherie, aproveitando o espaço vasto
recém-ocupado, Mnouchkine idealizou um espetáculo com a itinerância do público entre
dunas de areia e espaços de cena. Após a experiência, a companhia montou Mephisto, em
1979, retornando à frontalidade do palco italiano, que dominou a relação entre cena e plateia
até o espetáculo Le Dernier Caranvanserail, em 2003, imediatamente anterior à Les
Éphémères. E, justamente nesse último, pela primeira vez em décadas, o galpão do teatro
transformou-se acolhendo dois grupos de arquibancadas em lados opostos, separados por uma
passarela onde se passava a cena – tal qual o Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa,
projetado por Lina Bo Bardi. Portanto, o público assistia à peça diante de si, tendo, como
fundo, a outra plateia, na mesma situação, criando um espaço de comunhão essencial para a
atmosfera e o conceito do espetáculo.
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Em Les Éphémères a companhia mergulhou nos pequenos e efêmeros instantes que
marcam a vida de todos e de qualquer um, e as plataformas móveis do cenário permitiram ao
espectador ser um voyeur íntimo da cena, estar over the shoulder do protagonista,36 ser a
própria câmera subjetiva do cinema que capta as entrelinhas onde tudo se deflagra. Em uma
nota direcionada aos impulsores, Mnouchkine demonstra claramente esta escolha:
Os Impulsores/ (...) Impulsores, vocês não são obrigados a ser uma galáxia
permanente, encontrem as pausas. Não é necessário que vocês compensem. (...) Os
impulsores devem acompanhar os impulsos de seus corações ou de seus ventres... 14
de março”. (MNOUCHKINE, 2006)
Nesta cadência, a cronologia das notas de ensaio, bem como a edição proposta pelo
organizador do diário/programa, torna possível ao leitor acompanhar a evolução do processo
de criação do espetáculo, de forma articulada ao método de ensaio utilizado pela companhia.
Novamente aqui, ilustrando as provocações da “ilusão tautológica” de Antelo, é pelo
reconhecimento das informações do arquivo através de sua repetição em outras fontes de
informação que se propõe um recorte “tautológico” das notas sublinhadas.
Imagem 11 - Páginas do programa citado.
36 Over the shoulder, ou “por trás do ombro”, é um tipo de ângulo de filmagem muito usado em cinema para
garantir que o espectador compreenda a perspectiva entre os personagens em cena, sob um ponto de vista
neutralizado, de onde ele, espectador, pode tirar suas próprias conclusões.
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Tanto na montagem dos clássicos quanto em dramaturgias originais, o método de
criação do Théâtre du Soleil envolve a criação coletiva de cenas improvisadas que se repetem
diariamente, em busca da lapidação dos seus elementos: personagens, trama, conflito,
espacialização da cena, materiais, figurinos e, principalmente, a música interior que eleva a
cena. Pinçando notas ao sabor da sorte, encontram-se referências a estes momentos, seguindo
o vocabulário já familiar aos integrantes da companhia bem como aos leitores menos
iniciantes, como “Incandescência/ (...) Vocês devem manter a incandescência sem que o leite
derrame. 09 de março”, e, “Os adereços/ (...) Sim, mesmo se são decorativos, os adereços
devem exprimir o caráter do personagem”, ou ainda “Música/ (...) A doçura vem também da
sua extrema obediência à música – 05 de abril” e, por fim, “Método/ (...) Não é “o que você
vai fazer desta cena?”, é “o que esta cena vai fazer de você?” 11 de abril” (MNOUCHKINE,
2006)
É importante ressaltar também que, para os mais familiarizados com a obra da
companhia e toda a literatura que a circunda, é interessante perceber esta repetição de célebres
citações da diretora, que deflagram o arcabouço teórico que orbita suas reflexões,
contextualizados em exemplos concretos da sala de ensaio. Este é o caso da citação de
Charles Dullin, “Os deuses/ Não são as máquinas que fazem descer os deuses na cena que nós
precisamos, mas dos deuses. 29 de março” (MNOUCHKINE, 2006), que costuma vir à tona
quando é chegado o momento em que uma cena se concretiza em sua máxima potência e que,
portanto, sintetiza “A Chegada dos Deuses (21 de março – 04 de abril) / Absoluto/ Eu digo a
vocês, eu vejo tudo. 29 de março.” (MNOUCHKINE, 2006).
Imagem 12 - Páginas do programa citado.
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Trazendo aqui a ideia de “Autoetnografia” para o contexto da escritura do material de
arquivo, e considerando que se trata de um material escrito a, no mínimo, seis mãos (as notas
da diretora, capturadas e editadas pelo assistente de direção e “desenhadas” pela artista
gráfica), são múltiplas subjetividades dialogando nesta escrita.
No que tange às falas da diretora Ariane Mnouchkine, percebe-se, por exemplo, o
sujeito que escolhe as palavras certas para tornar as indicações precisas, evidenciando a
funcionalidade do discurso.
Ser Autor/ (...) Nós não somos nem Shakespeare nem Tchekhov, suas qualidades
como autores estão em outro lugar, elas estão dentro dos seus estados. 13 de
junho.”, ou ainda, “Ferramentas/ É um espetáculo no qual vocês precisam de suas
ferramentas como um cirurgião precisa das suas, se vocês não têm o bom bisturi, o
doente morre. Vocês precisam de seus instrumentos em cena, e entre eles, está o
tempo... 01 de Novembro.” (...) É verdade que este espetáculo está relacionado com
a consciência da morte, da perda, do desaparecimento... “não percam antes de ter
perdido” (...) Vocês irão viajar dentro de suas lembranças pessoais, mas é preciso
manter a forma “autopsia do real”; são os gatilhos, não uma viagem dentro da
memória... 25 de Abril”, e também em “A perda/ (...) é na perda que ganhamos a
consciência do que temos, o dom da vida, o que lhe dá seu açúcar e seu mel. 15 de
maio”. (MNOUCHKINE, 2006)
Há, ainda, um sujeito que se orienta em busca de reflexões precisas, capazes de situar
o ator no sentido de se engajar à unidade em que se instala, talvez percebendo sua própria
força como dispositivo de criação. Os exemplos revelam algumas das muitas subjetividades
cujas vozes podem ser ouvidas através das notas, sob pena de esta dissecação diminuir a
potência que flui, justamente, pela interseção de todas elas que, finalmente, compõem a
individualidade da artista criadora.
Balancete do primeiro entreato: “Pequenos mundos e vastos palácios”. (...) O
espetáculo poderia também chamar-se “Pequenos Mundos e Grandes Palácios”.
Estes pequenos mundos (aqui aparece a palavra “presentes” riscada) do presente,
tudo contemporâneo, no meio deste vasto palácio da história, da memória. A força e
o perigo da proposta é que tudo está aberto... 16 de maio. (MNOUCHKINE, 2006)
Em relação à operação de Charles-Henri Bradier como arquivista e editor do material,
também se pode evocar o que há de “auto e etno-gráfico” em suas escolhas. Selecionando a
cronologia como fio condutor da memória, Bradier, possivelmente intenciona tecer uma
dramaturgia que ilumina a evolução do processo, como se esta avançasse em linha reta.
... um trajeto, uma corrida, um cursus, uma passagem, uma viagem, um percurso
orientado, um deslocamento linear, unidirecional, (a “mobilidade”), que tem um
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começo (“uma estreia na vida”), etapas e um fim, no duplo sentido, de término e de
finalidade (...), um fim da história. (BOURDIER, 2005, p. 183).
No entanto, apesar da cronologia alinhada, fica evidente o avanço circular do processo
de criação, ilustrado pelas notas que se aludem entre si, seja pelo tema, seja pelas imagens
evocadas:
Lembranças/ (...) Não é preciso fazer grandes mausoléus de suas lembranças. Por
exemplo, o broche da minha avó é, ele próprio, o templo da minha avó... 10 de
(“abril” riscado) maio”, seguido em poucas páginas por “Famílias e solidões/ No
fundo, nós contamos famílias e solidões. 23 de maio. (MNOUCHKINE, 2006)
Considerando ainda o esforço de edição do vasto material para chegar ao produto
final, esta reiteração reforça o aspecto cíclico do fazer artístico. Também é possível iluminar a
escolha pela edição de notas que expõe intimidades do processo e imaginar o efeito que se
procura causar no seu leitor, como em “Ode à vida/ Existe uma espécie de ode à alegria na
música de Jean-Jacques, uma celebração das coisas mais simples da vida. Não devemos
querer transformar isso em comédia americana. 04 de Setembro” (MNOUCHKINE, 2006),
seguido de uma ilustração de uma cena do espetáculo. Teria essa cena provocado esta
reflexão? Há uma ironia nesta frase? Seria uma crítica aos atores, à qualidade da sua atuação?
Ou uma baliza, um norte? Se o espaço de ensaio pressupõe a confiança mínima para que o ato
criador se dê em sua plenitude, salvaguardado das censuras, da direção, etc, qual o limite de
exposição das suas memórias para aqueles que não comungaram do mesmo momento? E as
elucubrações podem se desdobrar ao infinito.
Imagem 13 - Página citada do programa.
73
Por fim, no que tange ao tratamento gráfico do material, ao evocar a estética do diário,
a programadora visual imprime um forte caráter para esta leitura. Ainda que, desde o primeiro
momento, fique claro que o texto impresso se trata de um registro de um discurso oral e
anterior à sua escrita, a caligrafia manuscrita seguida de desenhos manuais, além de borrões
de tinta e pequenas correções aparentes, evoca o universo da escrita íntima despreocupada
com a aparência, limpeza e clareza (gramática e de leitura) diante de um possível leitor.
No entanto, a caligrafia manuscrita que não obedece, necessariamente, as pautas das
folhas, seria um indício do caráter ficcional, simulado, do diário, como se a necessidade da
sua impressão em massa (o programa da peça foi impresso em tiragem grande o suficiente
para ser distribuído aos espectadores durante toda a temporada do espetáculo) vigorasse sobre
o caráter artesanal de um diário, deixando à vista a construção do conceito.
Imagem 14 - Página do programa citado.
Importante também notar os vários tipos de materiais que teriam sido usados para
“escrever” os registros. Pode-se perceber a escolha estética que simula a utilização de lápis de
grafite, canetas esferográficas, hidrocores finos, outros mais grossos, na escrita das notas, com
cuidadosa alternância de materiais, criando uma composição harmônica, o que possibilita,
também, a leitura de textos que se sobrepõem, além de borrões de tinta, evocando tinteiros,
que mancham o papel, trazendo o acaso para a construção desta narrativa.
Há, ainda, os desenhos que ilustram momentos de cena, muitos deles presentes em
fotos que compõem outros materiais do espetáculo, abrindo espaço para se questionar a
cronologia das ilustrações que permeiam a escrita das notas, ou ainda, a intencionalidade de
74
se incluir, dessa forma e não de outra, um material que pode não guardar entre si uma
associação tão direta. O que teria vindo primeiro: as fotos ou as ilustrações? É possível, ainda,
problematizar a escolha da identidade visual da capa, contracapa, e seus versos, com palavras
soltas escritas em diversas caligrafias, acompanhadas da ilustração de um grande casarão que
pode evocar alguns dos cenários propostos no espetáculo.
Por fim, é provável que esse material se matenha de forma autêntica, como uma
reprodução verdadeira do diário de ensaio, onde foram impressos não só as indicações de
cena, mas o calor de alguém preocupado em reter aquela experiência e eternizá-la através do
seu compartilhamento, oferecendo até mesmo páginas em branco para que a escrita continue,
através de novos autores, como uma obra aberta. É delicado avançar no caráter investigativo
da pesquisa e análise de um material de arquivo, que guarda em si várias possibilidades de
interpretação e leitura, correndo-se o risco de, na escolha das traduções, trair-se a intenção
original do seu autor, seja ela qual for. Há um momento em que é preciso fazer uma escolha,
talvez moral, sobre a abordagem que se pretende fazer. Para evitar as ilusões que assombram
a leitura, pode-se buscar a luz dos outros materiais que possam dialogar com o objeto de
análise também. A partir disto, entram em jogo outras obras, a literatura, pistas sobre o
contexto, e quaisquer outras peças que ajudem a montar o quebra-cabeça. Se o arquivo não
comporta a sistematização da biblioteca, ele guarda em si a chance de alinhamento entre
diversos materiais, multiplicando os sentidos. Reside nesta seleção e organização o trabalho
do pesquisador; sua responsabilidade está em assinar um novo original que se cria a partir daí,
tendo em vista que toda leitura de arquivo acaba sendo ficcional.
Imagem 15 - Contracapa final do programa.
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Imagem 16 – Páginas do programa.
Finalmente, fica claro que a força inerente ao discurso registrado é maior do que
outras possíveis desconstruções e organizações. Ainda que se possa desmontar e expor todo o
caráter ficcional da construção do diário de ensaio, não há dúvidas de que o registro criterioso
do processo criativo está preservado, mantendo o caráter do material como uma escrita de
artista autêntica, com o seu valor e preciosidade.
2.2 Cenas performativas: imagens de si e do outro em Les Ephémères
Como se sabe, Féral cunhou o termo “teatro performativo” para dar conta da
aproximação, cada vez maior da cena contemporânea com o acontecimento único e
os gestos de auto-representação do artista performático. Por recusar a adoção de
códigos rígidos, como a definição precisa de personagens e a interpretação de textos,
a performance apresenta ao espectador sujeitos desejantes, que em geral se
expressam em movimentos autobiográficos e tentam escapar à lógica da
representação, lutando por definir suas condições de expressão a partir de redes de
impulso. (FERNANDES, 2010, p. 06)
Conforme foi dito, por muitas décadas o Théâtre du Soleil apresentou o uso das
máscaras teatrais como disciplina de base e ferramenta pedagógica para seus atores, em
processos de criação e nos estágios abertos a outros atores, como uma de suas características
identitárias enquanto companhia de teatro. Pelo jogo de cena que a máscara incita, e por conta
da estética presente nos espetáculos épicos do Théâtre du Soleil, a máscara sempre foi o ponto
de partida para a criação. No entanto, como foi dito, nos espetáculos que sucedem a
experiência de filmagem de Tambours sur la Digue (2002), um novo paradigma estético se
apresentou, trazendo a reboque a necessidade de um dispositivo de atuação que permitisse
76
instaurar a mesma qualidade de atuação e presença do ator dos espetáculos anteriores, só que
dentro de uma nova lógica. Ao inserir a linguagem do cinema na cena, Mnouchkine
estabeleceu uma nova plataforma de criação, na qual toda a equipe se inseriu para descobrir
outros parâmetros para o processo. Porém, no que tange ao trabalho dos atores
especificamente, percebe-se uma ponte que liga o formato anterior do jogo proposto pela
máscara e a atuação performativa que vigora nos espetáculos recentes, e que passa pela
questão do olhar.
É interessante perceber que no jogo da máscara, para atores e observadores, é através
do olhar que a experiência se processa. O que “anima” uma máscara é, justamente, a presença
do olhar humano através de seus orifícios, é o que dá garantias de vida àquele objeto
inanimado, ainda que de forma um tanto fantasmagórica. No caso do observador, é também
através do seu olhar que o evento se colapsa, dando provas evidentes de sua materialidade.
Em uma sociedade que privilegia a imagem entre as formas de comunicação e que vive às
voltas com a questão da presença, somente o olhar é o elemento catalisador de todo o
acontecimento, mesmo virtualmente.
Introduzo aqui a questão da produção de presença para investigar quais aspectos
podem levar o artista a almejar a ideia do real na ficção, procurando acompanhar o percurso
que, ainda que inconscientemente, Mnouchkine e seus atores possivelmente trilharam para
atingir os matizes do teatro performativo presentes em Les Éphémères. Sobre a ideia de
presença, sigo a proposição de Gumbrecht, ao considerar a presença menos sob um aspecto
temporal e mais “uma relação com o mundo e seus objetos. Uma coisa ‘presente’ deve ser
tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em
corpos humanos.” (GUMBRECHT, 2010, p.13).
Neste mesmo sentido, Mnouchkine, sempre manteve o foco sobre a busca pela
presença, seja através das técnicas empregadas em seus processos criativos – focando a
questão artística da presença cênica do ator –, mas também na construção de elos efetivos
entre sua obra e seu público. Se os motivos pelos quais a diretora dedica grande atenção à
fruição de sua obra pelo espectador também são norteados por questões práticas, como a
dependência do sucesso de bilheteria para a manutenção financeira da companhia, é inegável
que Mnouchkine alcança uma forte comunicação com o público e possui um considerável
poder de aglutinação em torno de si e de seus espetáculos. Por este caminho, se pode pensar
na sua trajetória artística como uma permanente pesquisa sobre a produção de presença e
sobre formas de escuta atenta à sociedade e suas questões. Portanto, em Les Éphémères, pela
77
própria natureza do espetáculo, imagino que a companhia tenha se visto diante de novos
desafios.
As tecnologias da informação e da comunicação produzem, cada vez mais rápido,
condições de afastamento das pessoas: podemos nos comunicar, comprar, namorar,
estudar, à distância. Evidentemente, nos beneficiamos de uma facilidade de
comunicação e contato virtual que aduz a uma proximidade, ainda que virtualizada.
Ao mesmo tempo, quanto maior é nossa mobilidade, quanto mais afastamos os
corpos uns dos outros, mais sentimos vontade de estar próximos, de estarmos em
presença de outras pessoas, de sentirmos a presença de coisas distantes no espaço e
no tempo, mais temos vontade de presença. Assim, o que tomamos aqui como
presença é menos aquilo que se tornou comum no jargão teatral, – a força ou a
qualidade atrativa do ator –, e mais o universo do que escapa à linguagem, ao
sentido, à significação. (ICLE, 2013, p. 182)
Talvez por este motivo, em Les Éphémères, um espetáculo que se propõe uma
“autópsia da alma”, preocupado em visibilizar o efêmero, em produzir sentidos que vão além
da materialidade, a companhia se tenha colocado diante de um desafio radicalmente oposto às
proposições artísticas anteriores. Comprometida com uma escuta autêntica sobre o seu
público e o mundo ao redor, e diante de um tema cujo propósito lhe seria pouco familiar em
termos estéticos – por décadas a estética da companhia foi caracterizada pela expressividade
extrema das máscaras –, Mnouchkine e a companhia se viram diante da necessidade de
pesquisar um espetáculo que ganha contornos da experiência do real na ficção, aproximando-
se também à biografia em cena.
A proposição inicial que serviu de dispositivo para a criação de Les Éphémères foi que
cada ator imaginasse o que faria se soubesse que um meteoro iria cair sobre o planeta Terra,
extinguindo a humanidade, ou seja, o que se faria se soubesse que o mundo iria acabar em
pouco tempo. Esta proposta, nascida em uma conversa com a atriz Shaghayegh Beheshti
(Shasha), essa, angustiada por ter lido uma notícia sobre o suposto meteoro que viria atingir o
planeta, nos jornais (VACCARI), logo caiu por terra (sem trocadilho), transformando-se na
ideia de trazer a cena pequenos momentos cotidianos e banais que refletiriam o que há de
singelo, autêntico e efêmero nas relações humanas que compõem o mundo contemporâneo. E
que contexto seria este? De que mundo se estaria falando? Seguindo a proposta de Tolstoi,
“Fale da sua aldeia e estará falando do mundo”, ou para citar uma das conhecidas frases de
Mnouchkine, “chercher le petit pour trouver le grand” (procurar o pequeno para encontrar o
grande), atores voltaram-se para sua própria biografia e notícias de jornais em busca de
inspiração para as improvisações que deram origem ao mosaico de personagens e histórias
que compõem o espetáculo.
78
Com este ponto de partida, portanto, a encenadora subverteu a tradição de espetáculos
épicos traduzidos em encenações grandiloquentes e que foram a assinatura do Soleil durante
décadas, introjetando o elemento trágico na subjetividade individual de cada integrante da
companhia. Na procura por onde estaria a essência da bondade humana, por quais seriam os
pequenos gestos que marcariam de forma positiva a passagem da humanidade pelo planeta,
cada artista foi buscar os momentos decisivos que pudessem traduzir a efemeridade da vida
em cena teatral.
Naturalmente e de forma intrínseca, todo o universo da sociedade contemporânea veio
à cena através das pequenas plataformas de famílias e de relações sociais retratadas. O foco
principal das cenas foi o relacionamento e as redes de afetos entre os personagens, mostrando
até a ascendência destes personagens em comoventes composições de tempo e espaço em
cena. No entanto, as questões da comunicação e suas tecnologias atuais não poderiam deixar
de estar presentes. Entram em cena aparelhos celulares e computadores, dando a justa medida
da contemporaneidade e seus modos de operação aos espectadores que podiam ver-se
refletidos na cena. Ainda que a virtualidade da presença estivesse em cena mais através das
lembranças e memórias dos personagens do que através das tecnologias produtoras de
virtualidade, os efeitos da “ausência presente” podiam ser percebidos pelos desencontros e
incomunicabilidade entre os personagens. Assim como na vida real, “Aquilo de que […]
sentimos falta num mundo tão saturado de sentido, e, portanto, aquilo que se transforma num
objeto principal de desejo (não totalmente consciente) na nossa cultura […] são fenômenos e
impressões de presença.” (NUNES MELO, 2014, p. 116)
Neste momento, portanto, a escuta de Mnouchkine sobre o mundo contemporâneo
passa a incluir não só as questões sociais e políticas da sociedade, como nos espetáculos
históricos do Théâtre du Soleil, mas, principalmente, a forma pela qual esta sociedade se
expressa e se comunica nesta busca de sentido(s). Ou seja, a companhia, cuja pesquisa até
então esteve calcada na expressividade corporal e no universo das grandes paixões humanas,
neste momento se vê diante da necessidade de trazer à cena as transformações das tecnologias
da comunicação e suas consequências, na perspectiva de afetar o público (e os próprios
artistas) no que há de mais íntimo.
A preocupação com o tempo presente, portanto, não é nova no Théâtre du Soleil,
longe disso. Mas o que constitui a verdadeira ruptura, nos espetáculos desta década,
é que a máscara está desaparecendo. Todas as formas de máscara e de sua
teatralidade encontram-se guardadas na coxia, para que aqueles que fazem o
espetáculo se apóiem apenas nos documentos extraídos de suas vidas, como se agora
79
os atores só representassem a si mesmos, o que é sem dúvida o exercício cênico
mais difícil num palco. (TACKELS, 2007, p. 36)
A teatralidade inerente aos espetáculos clássicos do Théâtre du Soleil até então deu
lugar a uma nova linha de pesquisa. Esta deveria ser capaz de dar um contorno estético ao
universo em ebulição da contemporaneidade que ocupa a cena, guardando, porém, uma
filiação com toda a trajetória do Soleil, garantindo sua assinatura e identidade. Nesta pesquisa,
como evolução dos processos de espetáculos anteriores e pelo alinhamento com uma cena que
busca os mais nítidos contornos do real, as técnicas do cinema – adquiridas enquanto práticas
periféricas ao trabalho da cena – tornam-se evidentes e surgem como estrutura e suporte de
criação, levando a companhia a enveredar por novas trilhas e atingindo novos resultados
cênicos. Entre estas novas aquisições, estão a referência biográfica enquanto tema e estética
do espetáculo e a qualidade performativa na atuação dos atores.
Quanto à experiência do real na ficção, no espetáculo Les Éphémères, se os
dispositivos de criação do espetáculo nasceram da biografia íntima de cada artista, é possível
observar também, e por consequência, que a ação cênica deixou de ser enfatizada na face
exterior do corpo do ator (como impunha o uso da máscara), mas interiorizou-se,
aproximando-se de um determinado cinema, que prioriza o que se passa no íntimo do
ator/personagem enquanto narrativa, que fala sobre o que se passa na alma.
A vida/ (...) é o banal, e é o mais simples banal que é profundo e original (-) A
banalidade da loucura, a banalidade de viver com uma louca, de viver com um
homem violento, a banalidade de um acidente (...) E isto deve ser muito vívido, nós
devemos chegar a ver a veia que pulsa no pescoço... 01 de dezembro.
(MNOUCHKINE, 2006)
Dada a proximidade do público com a cena por conta da disposição das galerias de
plateia na sala de espetáculo, o cenário do espetáculo tem o caráter de direção de arte, com
pequenas plataformas de mobiliário real. Além disto, também por conta dos temas das
histórias que compõem a narrativa do espetáculo, a proposição estética não poderia ser outra
que não fosse a busca pela não-representação no trabalho dos atores, pelo escape à ideia de
representação mimética, sob o risco de não atingir a qualidade de presença que garantiria a
autenticidade do espetáculo.
Jean-Pierre Sarrazac continua as reflexões de Bernard Dort quando observa que a
construção compartilhada do sentido convida os espectadores a se interessarem não
apenas pelo que acontece na narrativa cênica, mas pela ocorrência do próprio teatro
no seio da representação. (...) É uma concepção próxima à do filósofo Denis
Guénoun, para quem o teatro contemporâneo acentua esse gesto de mostrar e
80
costuma oferecer ao espectador a “sobriedade lúdica e operatória” do jogo, e não o
efeito de ilusão da representação. (FERNANDES, Silvia IN: WERNECK, 2009, p.
15)
Neste contexto, todo o repertório técnico e estético do cinema tornou-se condição para
a realização e concretização da cena. Sob o olhar do espectador funcionando como uma
câmera, e trabalhando sobre a plataforma do depoimento pessoal através da biografia
encenada, os atores se viram na necessidade de lançar mão de novas ferramentas de criação,
aproximando-se do teatro performativo. É neste sentido que se percebe, neste espetáculo, as
características pelas quais se poderia afirmar que a cena ganha contornos de performance.
A transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação cênica
em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na
imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo a uma receptividade do espectador
de natureza essencialmente especular ou aos modos das percepções próprias da
tecnologia. (FÉRAL, 2015, p. 114)
O propósito da cena é estabelecer sintonia com o espectador que o assiste, em Les
Éphémères e em qualquer espetáculo, portanto esta deve apresentar elementos de
identificação ou provocação ao universo estético em que o espectador está inserido. Porém,
neste contexto, vale abrir uma janela para se problematizar a natureza do trabalho do ator do
Soleil neste espetáculo, se ela estaria mais próxima do naturalismo ou da performance, uma
vez que algumas de suas características poderiam levar a esta dúvida.
Célia Berrettini, na introdução de O Romance Experimental e o Naturalismo no
Teatro, de Émile Zola,37 destaca o seguinte trecho do prefácio da peça Thereze Raquin
(1875):
As grandes obras de 1830 permanecerão como obras de combate, datas literárias,
esforços soberbos, que lançaram por terra a velha armação clássica. Mas agora que
tudo está por terra, as capas e as espadas são inúteis; é tempo de fazer obras com a
verdade. Substituir a tradição clássica pela tradição romântica, não seria saber
aproveitar a liberdade que nossos antepassados conquistaram. Não mais deve haver
escola; não mais fórmula, não mais clichês de nenhuma espécie. Não há senão a
vida, um campo imenso em que cada um pode estudar e criar à sua maneira. (ZOLA:
1982, p. 81)
Com estas palavras, Zola, o precursor do naturalismo na literatura e no teatro, deixou
clara a necessidade de renovação do teatro através de um pacto com a verdade conseguido
37 Émile Zola (1840-1902) foi um escritor francês consagrado, criador do naturalismo enquanto escola literária
e figura proeminente na política francesa. Seu grande romance Germinal é um marco na literatura naturalista.
Para escrevê-lo, Zola passou dois meses trabalhando como minerador de carvão para sentir na própria pele as
condições de vida e trabalho que descreveria na ficção.
81
através de rigorosa experimentação científica, deixando para trás tudo que contivesse
qualquer teor convencional. Seguindo este rastro, se pode chegar às experiências do Teatro de
Arte de Moscou, onde Stanislavski38 conduziu seus atores na criação de espetáculos que
guardavam a maior fidelidade possível à vida real, desenvolvendo técnicas que levariam o
ator a trabalhar subconscientemente sobre suas criações. No que hoje se denomina “Sistema
Stanislavski”, do qual se derivaram diversas vertentes de pesquisa, o pensador russo procurou
destrinchar uma série de procedimentos que levariam o ator a atuar de forma viva e verdadeira
na cena, tornando-se capaz de afetar seu espectador pela capacidade de empatia e
identificação. Para aumentar este grau de identificação, seus cenários, figurinos, iluminação e
trilha sonora deveriam conter objetos reais e estarem dispostos como se houvesse de fato uma
quarta parede a separar a área da cena do seu espectador. Sobre isto, Vsevolod Meyerhold,
seu discípulo, depois crítico e finalmente grande parceiro, comentou em um artigo de 1906:
Ao colocar em cena peças históricas, o teatro naturalista impõe-se a tarefa de
transformar a cena em uma exposição de verdadeiros objetos de museu, ou na falta
destes, de cópias feitas a partir de desenhos da época ou de fotografias feitas em
museus. Além disso, o encenador e o cenógrafo esforçam-se em fixar com a maior
precisão possível o ano, o mês e o dia em que se desenrola a ação. (...) O teatro
naturalista ensina ao ator uma expressão resolutamente limpa, acabada, precisa;
jamais permite um jogo alusivo, uma forma de representação que conscientemente
não vá até seu limite. Eis porque os exageros são tão frequentes na representação do
teatro naturalista que ignore absolutamente o jogo alusivo. (...) No teatro, o
espectador é capaz de acrescentar com sua imaginação o que permanece alusivo. É
precisamente esse Mistério e o desejo de vivenciá-lo que atrai tantas pessoas ao
teatro. (...) E sem nenhuma dúvida o espectador de teatro tem, ainda que
inconscientemente, sede desse trabalho da imaginação, que às vezes transforma-se
nele em criação. Sem isso, por que haveria, por exemplo, exposições de pintura?
Evidentemente, o teatro naturalista nega ao espectador a capacidade de completar o
desenho e de sonhar, como pode fazer quando escuta música. (MEYERHOLD:
2001, p. 96)
Nesta descrição Meyerhold ressaltou os elementos pelos quais o teatro naturalista, em
seu desejo de re-apresentar a realidade de forma quase científica, se afastaria daquilo que faz
uma obra de arte despertar o interesse do espectador: as lacunas pelas quais esse seria
convidado a preencher com seu trabalho criativo. No entanto, é fato que a pesquisa de
Stanislavski sobre o trabalho do ator não se estagnou na busca pela verdade dentro do teatro
naturalista e passou por inúmeras etapas inconclusivas. Por conta das dificuldades de
publicação de seus escritos na Rússia e posteriores traduções, há, ainda hoje, bastante
38 Constantin Sergeievich Alexeiev (1863-1938), nome de batismo de Constantin Stanislavski, foi ator, diretor,
pedagogo e escritor russo que revolucionou o teatro ocidental no final do século XIX e início do século XX ao
propor uma abordagem científica sobre o trabalho do ator. Fundador do Teatro de Arte de Moscou, propôs o
que passou a ser chamado Sistema Stanislavski, embora o próprio autor reiterasse a constante transformação de
suas pesquisas.
82
controvérsia sobre conceitos, nomenclaturas e interpretações de suas ideias, no entanto é
inegável sua preocupação em não limitar o trabalho do ator:
O sistema é um guia. Abra e leia. O Sistema é um livro de referência, e não uma
filosofia. Assim que começa a filosofia, o Sistema termina. [...] Não existe sistema
nenhum. Existe a natureza. A preocupação da minha vida inteira é me aproximar o
máximo possível daquilo que se chama Sistema, ou seja, da natureza da criação. As
leis da arte são as leis da natureza. (LABAKI: 2015, p. 81)
Vê-se no teatro naturalista, portanto, uma preocupação com a renovação da cena
teatral através do compromisso com a busca pela verdade, tida como natural, compreendida
como oposta à qualquer convenção. Mas, com o filtro do tempo, após mais de cem anos do
nascimento do naturalismo, é possível identificar todo o código convencional que este estilo
trouxe, por sua vez. Na verdade, como se viu, Meyerhold, um contemporâneo, já denunciava
a ineficiência destes procedimentos para alcançar os objetivos a quais o teatro naturalista se
propunha. De fato, o que permaneceu foi a busca pela verdade, ainda que flexibilizada pela
ideia de que a própria verdade guarde em si diversas versões. Fato é também que se o
naturalismo trouxe imbutido em seu manifesto um desejo político de ruptura com um teatro
elitista, este desejo pode ser lido, hoje, como um dos pilares do teatro performativo, quando
pensado principalmente em sua linha mais ligada à arte da performance e das vanguardas
históricas.39
Neste sentido, sim, se poderia pensar que na medida em que os atores e a encenadora
de Les Éphémères lançam mão de uma nova pesquisa cênica que abandona as convenções
teatrais utilizadas até então (máscaras, corpo dilatado, frontalidade do palco italiano) e busca
os elementos que aproximam a experiência do real à experiência da cena, a companhia se filia
ao movimento naturalista neste determinado aspecto. Mas, por outro lado, pela forma com
que realizam esta pesquisa e, principalmente, pelos resultados cênicos alcançados, fica claro
que estes novos caminhos percorridos pelo Soleil levam ao teatro performativo,
definitivamente. Indo além, ainda que se possa dizer que o espetáculo flerte com a
representação naturalista no cinema, através das características principais do cinema narrativo
clássico que, de fato, pairavam sobre a criação de Les Éphémères como se verá mais adiante,
o resultado cênico final não pode ser considerado como um exemplar do teatro naturalista.
Mesmo que os atores executem ações tidas como naturalistas, em situações cotidianas,
lidando com objetos reais, o fato de estarem sobre plataformas que se movimentam em
39 “Huyssen lembra que as vanguardas históricas recusam separar a arte de sua inscrição no real. Sua visão trata
da performance no seu sentido puramente artístico – e não antropológico. (FÉRAL: 2009, p. 199)
83
translação e em linha reta pelo espaço opera sobre o equilíbrio destes e dos espectadores, por
exemplo, eliminando qualquer vestígio de representação da realidade.
Portanto, seja através da qualidade do trabalho do ator que busca na performance um
conjunto de técnicas para abordar o tema, seja na disposição espacial que coloca espectadores
e atores em um ambiente de compartilhamento de sensações, é mesmo a própria ideia de
representação que fica ausente deste diálogo. E este é um dos pontos que destacam este
espetáculo de todo o repertório da companhia – considerando todos os estilos que esta
percorreu em seus cinquenta e três anos de existência.
Novamente, é a crise da noção clássica de representação que está em jogo e irrompe
em experiências cênicas radicais. Ela estaria vinculada, entre outras coisas, à
dificuldade de dar forma a um mundo fraturado por contradições e incoerências, que
está à beira do irrepresentável. (SÁNCHEZ, 2007, p. 140).
Em Les Éphémères, portanto, se estabelece uma etapa no trabalho de atuação da
companhia que a aproxima do teatro performativo proposto por Josete Féral (2015), que
apresenta uma outra leitura para o fenômeno estético causado pelo impacto da noção de
performance nas artes em geral, do qual derivou, inclusive, o conceito de teatro pós-dramático
de Hans-Thies Lehmann (2005), cunhado na tentativa de eleger um novo momento histórico
no teatro. Para Féral, citando Richard Schechner (2002), o performer é aquele capaz de
“superar ou ultrapassar os limites de um padrão”, cuja ação está suportada pelas ideias de
ser/estar, fazer e mostrar o que se faz. Ele mora no campo criativo das artes cênicas desde
sempre, posto que estas características são suas constituintes, ou seja, não há uma ideia de
superação cronológica de gêneros teatrais, mas sim uma constatação de uma qualidade
essencial da cena que passa a prevalecer. Como consequência, as obras de natureza
performativa não podem ser enquadradas no campo do verdadeiro ou falso, em referência à
ideia de representação também ultrapassada, mas no universo do evento. A cena
simplesmente acontece e deixa-se observar, assim como no cinema.
Tal desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos,
forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma
referência a outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a
cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer
instala a ambiguidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de
sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a
linguagem.” (FÉRAL, 2015, p. 122).
84
Imagem 16 - Les Éphémères. Cartoucherie, Paris (2006)
Evoco, aqui, a ideia de um teatro que nasce a partir da imagem e do movimento
(novamente aproximando-se do cinema), no sentido da criação da ação do que propriamente
na dramaturgia cênica. Segundo Féral, o teatro performativo se opõe à ideia da teatralidade
caracterizada pela criação de sistemas de sentido, remetendo à memória e à lógica da narrativa
dramática, ficcional. A performatividade levaria o ator, assim, a desenvolver um aspecto
lúdico em seu processo criativo, partindo da ação para estabelecer uma interlocução entre os
múltiplos sentidos de sua expressividade (corpo, texto, imagens, objetos).
Em Les Éphémères, os atores trabalham em constante movimento de rotação circular
sobre as plataformas, impulsionadas pelos outros atores propulsores que deslocam as
plataformas pelo espaço, acumulando, ainda as ações naturalistas que surgem nas cenas, como
cozinhar (o fogão funciona de fato e a atriz cozinha o macarrão em uma delas), lavar as mãos
(com água real), colocar crianças para dormir em uma beliche, assistir à televisão, esmurrar
uma porta, podar uma árvore, andar de bicicleta, no que seria uma ilustração perfeita do teatro
performativo proposto por Féral. É notável que se assume a ideia de “engajamento total do
artista, colocando em cena o desgaste que caracteriza suas ações (...). Não se trata de uma
intensidade energética do corpo no modelo grotowskiano, mas de um investimento de si
mesmo pelo artista.” (FÉRAL, 2015, p. 128).40
40 É preciso, para Grotowski, descobrir as resistências e obstáculos e eliminar esses impedimentos para, só
então, conseguir encontrar novas possibilidades corporais, vocais, dramatúrgicas, espaciais, etc. O teatrista não
quer simplesmente acrescentar técnica e recursos ao ator, mas depurá-lo de seus vícios. “Não educamos um
ator, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a este
processo psíquico.” (GROTOWSKI, 1971, p. 3) É a transcendência das dificuldades e a retirada dos bloqueios
que contribuem para o reconhecimento dos recursos e regras que regem e abrem um novo Universo. Não é uma
dinâmica somatória, mas eliminatória. “A técnica do ‘ator santo’ é uma técnica indutiva (isto é, uma técnica de
eliminação), enquanto a do ‘ator cortesão’ é uma técnica dedutiva (isto é, um acúmulo de habilidades).”
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Considerando a temática da peça calcada nos momentos íntimos que compõem a vida
cotidiana de todos e de cada um, provocando identificação imediata entre o imaginário do
espectador e aquilo que ele vê, chancelada pelo testemunho dos outros espectadores diante de
si, a sensação de comunhão entre os presentes é absoluta e imediatamente se estabelece uma
aura que poderia ser considerada, por que não, um encontro espiritual. Aqui também se pode
pensar na atribuição que Féral oferece ao espectador diante de um teatro performativo.
Segundo a autora, este pode tanto ser absorvido pelo risco e o imediatismo do jogo quanto se
manter distante através de um olhar analítico diante do que lhe é apresentado, garantindo a
autonomia e escolha individual. Neste sentido, o teatro performativo, ao contrário da maior
parte dos gêneros teatrais, seria aquele que afeta, principalmente e, sobretudo, a subjetividade
do performer.
A peça conta histórias de cada um, de seres humanos particulares, e as pessoas do
público se reconhecem nessas histórias. Essa concepção veio de uma proposta que
depois foi deixada de lado: a de imaginar que a Terra seria atingida por um asteróide
e que todos iríamos desaparecer. Procuramos pensar o que cada um faria se soubesse
que isso iria acontecer. Ensaiamos dois meses com esse tema. Essa era a ideia inicial
mas percebemos que a forma era mais cinematográfica que teatral. Quando você
entra numa sala escura e vê imagens desse tipo, você acredita nelas. Mas num teatro,
muito próximo do público – no formato que Ariane criou –, essa concepção não era
crível. Deixamos a ideia do asteroide de lado, mas ficou a noção de que a vida é
curta e de que somos efêmeros, ficou a possibilidade de perceber o valor da vida,
deste pequeno tempo em que permanecemos sobre a Terra. Penso também que este
espetáculo nos revela o quanto podemos praticar nossos ideais no cotidiano.”
(CARNEIRO DA CUNHA, 2007, p.60)
Em sua articulação teórica acerca do teatro performativo, Féral expõe as duas
correntes de pensamento: a anglo-saxã, voltada para o caráter antropológico do ato
performativo, e a européia, em particular a francesa, que privilegia o caráter estético e
artístico do ato performativo. Refletindo sobre isto diante do espetáculo de Mnouchkine,
parece justo perceber o percurso do processo criativo da companhia que parte da biografia
íntima dos envolvidos mas acaba por desembocar em uma encenação altamente complexa, em
um entrelace de tramas e personagens que naturalmente provocam no espectador o desejo de
criar suas próprias narrativas ficcionais diante do que assiste, identificando-se ora com a cena,
ora com o espectador a sua frente. A encenação, portanto, persiste em sua teatralidade clássica
(mantendo a assinatura artística da companhia) ainda que dê relevo ao ato performativo em
toda a sua plenitude.
(GROTOWSKI, 1971, p. 30). Grotowski apregoava que o ator deveria “ir além de si mesmo”, superando os
limites físicos e psíquicos, dispensando para isso “um esforço insuportável”. (SCHEFFLER, 2005)
86
Destaco aqui a importância de incluir as proposições de Josette Féral nesta análise,
considerando não só suas análises sobre a cena contemporânea mas principalmente por seus
estudos dedicados exclusivamente ao Théâtre du Soleil. Féral, observa, em especial, a
evolução do trabalho do ator durante estas cinco décadas de existência, e sua análise é
especialmente cara neste sentido pois guarda o caráter íntimo dos momentos da companhia
compartilhados consigo, ao mesmo tempo em que suas construções teóricas dão suporte às
análises, multiplicando seus sentidos, especialmente ao se considerar os tempos que
antecederam o vasto e democrático compartilhamento de vídeos através da rede mundial de
computadores.
Neste sentido, entre algumas máximas de Ariane Mnouchkine iluminadas por Josette
Féral (1995) em uma das entrevistas concedidas está a ideia de “Estar no presente.”
ARIANE MNOUCHLINE – (...) Por que subitamente você começa a chorar de
alegria ou de reconhecimento?
JOSETTE FÉRAL – Porque nós percebemos naquele momento a exatidão daquilo
que acontece, a verdade daquele momento ao qual assistimos, independente do que
ele exprime.
ARIANE MNOUCHLINE – Exatamente, a emoção vem do reconhecimento, do fato
de que é verdadeiro.
JOSETTE FÉRAL – Este reconhecimento não é somente do conteúdo, do que se
diz, da vida que é atuada, é o reconhecimento da exatidão daquilo que se passa em
cena percebido pela performance do ator. (...) Há no gesto alguma coisa que se eleva
da necessidade do momento, da urgência. (...) Você diz que o ator deve estar no
presente.
ARIANE MNOUCHLINE – Atenção, eu não digo “estar presente”, mas estar no
presente. O ato teatral acontece no instante e, uma vez que ele passa, outra coisa
acontece. (FÉRAL, 1995, p. 42)
“Estar no presente” também é a diretriz que norteia as escolhas artísticas da
companhia, mantendo vivo o diálogo com seu público, ainda que, em certos casos, os
espetáculos do Théâtre du Soleil possuam certa potência profética da arte diante da vida. Em
seus processos de criação e estágios abertos, Mnouchkine evoca a imagem do artista como um
viajante, sobre um tapete mágico, que, através de sua fé cênica e seu olhar visionário, é capaz
de transportar também a todos os que o assistem. Evocando esta imagem, é como se o artista
viajasse no mágico tapete atravessando o tempo, em um insight, e vislumbrasse o
acontecimento antes da sua transformação em fato, antes de elaborá-lo em linguagem,
oferecendo sua criação como lampejos de consciência, de iluminação. As bruxas de Macbeth,
a famosa peça escocesa de Shakespeare e, curiosamente, um recente espetáculo do Théâtre du
Soleil (2014), importam em sua profecia, que como uma obra de arte, é um enunciado
oferecido a um interlocutor que, sugestionado ao acaso, o atualiza como “verdade”. Penso na
ideia de “atualização” como o “update” inglês, como a aquisição da informação mais recente,
87
que atualiza os dados e os mantém em sintonia constante com o presente. Mas penso também
na ideia de “atualização” como a passagem da potência ao ato, da presentificação do virtual.
Portanto, a potência envolvida no ato criativo não mora somente na obra, mas se constrói
através da obra, na relação entre o artista e o interlocutor, através da atualização, da
presentificação da obra, que está em constante movimento, posto que se renova tantas vezes
quantas forem as suas fruições. É dentro deste contexto que os traços da performance surgem
neste espetáculo do Théâtre du Soleil.
Ariane Mnouchkine e o Théâtre du Soleil nos acostumaram a tomadas de posições
fortes, a engajamentos explícitos às vezes criticados pela clara propensão em reduzir
a complexidade do mundo em nome de um processo autoritariamente instruído. Essa
incisividade de opiniões agora se atenua, pois, situação inesperada, o Soleil, já não
dissocia, com sua costumeira nitidez, os culpados das vítimas. Pela dor e também
pela ternura desses relatos (do espetáculo Les Éphémères) ninguém mais é
responsável, tampouco levado ao pelourinho. A não ser a vida, simplesmente, a vida
que se apresenta como uma meada de contradições, desastres, confusões,
reencontros. Não há em Les Éphémères nem acusados, nem acusadores, nem
vencidos, nem vencedores… E o espetáculo adota a postura cara a Tchecov, a do
“testemunho imparcial”. Não julga, não responde, só conta “relatos que poderiam
ser objetos de vários contos”, parafraseando a célebre fala de Trigorin em A Gaivota.
(BANU, 2007, p. 32).
2.3 Gatilhos da memória: lembranças do processo de criação
O que se manifesta, tanto no plano teórico como no prático, na nossa preocupação
ativa com o passado? Por que fazemos questão de estabelecer a história verdadeira
de uma nação, de um grupo, de uma personalidade? Para esboçar uma definição
daquilo que, neste contexto, chamamos de verdadeiro, não devemos analisar
primeiramente essa preocupação, esse cuidado, essa “vontade de verdade”
(Nietzsche) que nos move? Entendo com isto que a verdade do passado remete mais
a uma ética da ação presente que a uma problemática da adequação (pretensamente
científica) entre “palavras” e “fatos”. (GAGNEBIN, 2006, p. 39)
O ator deve ser côncavo e convexo, simultaneamente. (MNOUCHKINE)
Para a análise sobre o espetáculo Les Éphémères que aqui proponho, evocando a
performatividade na cena e o aspecto biográfico que alimenta o tema desta encenação, seria
estruturante incluir a voz dos seus criadores entre as fontes de pesquisa para o trabalho. Nesse
sentido, tive a chance de realizar uma entrevista, em 9 de junho de 2016, com a atriz franco-
brasileira, Juliana Carneiro da Cunha,41 integrante da companhia Théâtre du Soleil desde
41 Juliana Carneiro da Cunha é uma atriz e bailarina brasileira radicada na França. Na Europa, trabalhou
com Maurice Bejart, Maguy Marin e Ariane Mnouchkine. Desde 1990, ela faz parte do grupo do Théâtre du
Soleil, dirigido por Ariane Mnouchkine. Destacou-se no cinema brasileiro por sua premiada atuação no
filme Lavoura Arcaica (2001), dirigido por Luiz Fernando Carvalho. Seu trabalho cinematográfico mais
88
1990, pessoalmente e na presença da comunidade da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, acerca do processo criativo de Les Éphémères.42 Suas
contribuições foram imprescindíveis no sentido de trazer vigor, ampliar as possíveis leituras
sobre o objeto de pesquisa, validar articulações intuitivas entre observações e análises
pensadas até então e iluminar um possível caminho para analisar a transposição de parte
importante da biografia de Ariane Mnouchkine para a cena, através de improvisações dos
atores, e o quanto isto semeou o solo para o espetáculo seguinte da companhia, Os Náufragos
do Louca Esperança (2010). Em paralelo, alguns meses depois, pude entrevistar a diretora
Ariane Mnouchkine, através do envio de perguntas via Internet, respondidas com pequenos
trechos de áudio, referentes a algumas das perguntas, os quais transcrevi e traduzi, visando
criar um respaldo coerente e verdadeiro para as minhas análises.
O roteiro que montei para a entrevista com Juliana Carneiro da Cunha teve por base
principal algumas cenas do espetáculo que eram bastante representativas dos aspectos que são
objeto de análise: os processos de cineficação da cena no espetáculo, o trabalho performativo
dos atores (e a passagem da máscara a esta nova etapa) e a abordagem sobre o material
biográfico na criação das cenas. Todas as perguntas que propus à atriz estão disponíveis como
anexo deste trabalho, neste momento, entretanto, irei introduzir a entrevista como ela se deu e
me deter àquelas perguntas que mais elucidaram os aspectos chaves citados. Importa dizer
que tivemos uma pequena reunião, eu e Juliana, anterior à entrevista, onde pude fazer uma
prévia das perguntas. Desta forma, a entrevista seguiu de forma mais fluida, com um
encadeamento das ideias já proposto pela própria atriz, acerca dos temas que gostaria de
abordar.
Para a entrevista com Ariane Mnouchkine, estruturei as perguntas em quatro blocos: a
peça, teatro x cinema, biografia em cena e transposição para o filme/registro. Nem todas as
recente é O Veneno da Madrugada (2004), filme dirigido por Ruy Guerra, onde atua ao lado de Leonardo
Medeiros, com quem trabalhou também em Lavoura Arcaica. Também atuou recentemente na televisão
brasileira na minissérie Hoje é dia de Maria (2005), dirigida por Luiz Fernando Carvalho; na novela Sete Vidas,
dirigida por Jayme Monjardim, e atualmente está no ar em Liberdade, Liberdade, de Vinicius Coimbra, como a
Alexandra, a mecenas dos rebeldes, recém-chegada de Paris. Entre seus trabalhos em teatro, destacam-se: As
lagrimas amargas de Petra Von Kant, de R. Fassbinder, direção de Celso Nunes, com Fernanda Montenegro e
Renata Sorrah (1982); Mão na luva, de Oduvaldo Viana Filho, direção de Aderbal Filho, com Marco Nanini
(1984); Les Atrides, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil(1990); La Ville Parjure, de Hélène
Cixous, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil (1994); Le Tartuffe, de Molière, direção de Ariane
Mnouchkine, Théâtre du Soleil (1995); Et soudain des nuits d’éveil, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du
Soleil (1997); Tambours sur la Digue, de Hélène Cixous, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil
(1999); A Morte de Um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, direção de Felipe Hirsch, com Marco Nanini e
Guilherme Weber (2003); Les Éphémères, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil (2006); Les
Naufragés du Fol Espoir, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil (2010); Macbeth, direção de Ariane
Mnouchkine, Théâtre du Soleil (2013). 42 A entrevista na íntegra segue como anexo deste trabalho.
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perguntas foram respondidas, por conta do tempo escasso da diretora que estava às voltas com
o espetáculo em cartaz Un Chambre en Inde (2016) e com a mobilização da companhia em
torno das questões políticas envolvendo as eleições para a presidência da França que
aconteciam no momento. No entanto, as principais lacunas foram preenchidas, de modo que
no texto que se segue, irei compor um mosaico com as vozes destas duas artistas, criadoras
essenciais do Théâtre du Soleil, tomando como linha principal a entrevista feita com Juliana
Carneiro da Cunha.
No início da entrevista apresentei a atriz aos presentes, destacando seus principais
espetáculos no Brasil e na França, como integrante do Théâtre du Soleil, e, desde este
momento, foi possível compreender o quanto sua trajetória foi decisiva para os resultados
atingidos no espetáculo. A partir disto, Juliana tomou a palavra, comentando a rápida
passagem do tempo ao lembrar que a companhia já completaria 52 anos em 2016, posto que
foi fundada em 1964, como fruto do teatro exercido por um grupo de estudantes, que alcançou
bastante êxito com o primeiro espetáculo 1789 e, através do que hoje se denominaria uma
“ocupação”, conseguiu o direito de permanecer nos galpões recém-abandonados pelo
exército, a Cartoucherie de Vincennes. Ela confidenciou que, ainda que sem uma validade
oficial, o documento adquirido em 1964 através da boa vontade da então “Senhora da
Cultura” – uma espécie de secretária de cultura da época – garantiu que a companhia ali
permanecesse e mantivesse sua sede até hoje, através do pagamento de um valor simbólico,
lançando as bases do teatro popular que praticam, com ingressos a preços acessíveis e uma
estrutura de associação comunitária entre os seus integrantes, na qual todos recebem o mesmo
salário e tem as mesmas atribuições e responsabilidades.
Juliana descreveu o processo criativo padrão da companhia, onde os atores propõem as
cenas à diretora, de forma que não há uma hierarquização pré-definida nos espetáculos e em
seus elencos – as cenas e os personagens se consolidam à medida que se tornam evidentes os
avanços e as necessidades do espetáculo, ao olhar de Mnouchkine, e à medida que o tempo se
extingue, próximo à estreia do espetáculo.
Particularizando o espetáculo central da entrevista, a atriz contou que Les Éphémères
veio após o espetáculo Le Dernier Caravanserail. Este retratava o ponto de encontro entre as
várias caravanas de imigrantes que vinham do Oriente para a Europa, como fugitivos das
guerras civis, disputas, etc. Ela ressaltou que Mnouchkine dá bastante importância à forma e à
espacialização dos espetáculos, e nesse último utilizou o dispositivo de pequenos solos
móveis, em plataformas volantes, onde ocorriam as cenas, sem que os atores pusessem os pés
no chão em nenhum momento do espetáculo.
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Imagem 17 - Le Dernier Caravanserail.
Cartoucherie, Paris, 2003. Foto de Charles-Henri Bradier.
Analisando este fato a partir das colocações de Picon-Vallin acerca do processo de
transposição dos espetáculos Tambours sur la Digue e Le Dernier Caravansérail, arrisco a
proposição de que a “forma”, nas palavras de Juliana é, de fato, um elemento de base para a
criação de Mnouchkine, exercendo mesmo a função de ponte entre uma criação e outra e de
que a estética de cada espetáculo surge da relação espacial estabelecida. Ou, em outras
palavras, cada espetáculo tem sua semente geradora engendrada no seu espetáculo antecessor,
e ela está vinculada à utilização do espaço e do movimento dos atores.
Sobre o “germe” de Les Éphémères, Juliana contou que Mnouchkine partiu de uma
visão (como a encenadora denomina a proposta intelectual e imagética que dispara os
processos criativos da companhia) de que o planeta Terra seria atingido por um asteróide
dentro de determinado espaço de tempo, extinguindo a humanidade por conta da poeira que
impediria a luz do Sol de iluminar a Terra. Portanto, todas as cenas propostas e improvisadas
pelos atores partiriam, então, deste princípio.
Com o desenvolvimento do trabalho, no entanto, e diante do espaço concebido para o
espetáculo (com as galerias de plateias face a face, e a cena percorrendo o canal entre elas),
Mnouchkine julgou que a plateia estaria muito próxima da cena, tendo menos possibilidade de
tomar como verossímil uma proposição tão fantástica. Em sua fala aos atores na ocasião,
Mnouchkine observou que o cinema teria mais recursos para garantir a crença do público no
realismo fantástico de grandes fenômenos físicos através de efeitos especiais e possibilidades
de captação de imagens, cortes e montagem, mas o teatro pediria outros artifícios. Portanto,
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neste momento, a proposta do asteróide foi abandonada. Mas os atores já haviam introjetado o
elemento trágico em suas proposições, de modo que as cenas improvisadas e apresentadas
continuaram sendo inspiradas em elementos muito profundos e particulares, íntimos da vida
dos atores. É curioso pensar que o elemento alegórico do “fim dos tempos” levou o elenco a
trabalhar com suas autobiografias. É como se, dentro do método de criação da companhia –
comprometido desde sempre com a presença e o estado do ator, e a crença no concreto –, a
única resposta formal criativa à altura de uma proposição absolutamente fantástica residisse
no que há de mais autêntico em cada artista, a sua própria história de vida. Portanto, para dar
um contorno criativo e realista a uma ideia surreal, o artista aninhou-se na realidade palpável
de sua própria memória. O único “fim dos tempos” passível de representação cênica seria o
fim de si próprios.
Em seguida, Juliana comentou a duração do espetáculo, de sete horas, distribuídas em
sessões de três horas a cada dia de apresentação (de quarta a domingo), com intervalos onde o
público era convidado a partilhar entre todos um pequeno lanche trazido pelos atores, em um
ambiente de total confraternização. Parece que, considerando a densidade das situações das
cenas e a proximidade entre o palco e a plateia, esses momentos de suspensão do espetáculo
forneciam “restauração” ao corpo, através do alimento, e ao espírito, através do encontro real
e da possibilidade de elaboração coletiva concretizada na comunhão do encontro verdadeiro.
E a empatia que se estabelecia entre os presentes era tão grande que, após as sete horas, o
público não queria deixar o teatro, assim como os atores, que ainda se sentiam preenchidos de
sentidos. A atriz lembrou que chegaram a preparar uma terceira parte do espetáculo que,
porém, nunca veio a público, tamanha foi a entrega dos atores ao projeto.
Em um determinado momento da entrevista, assistimos às cenas selecionadas exibidas
em projeção.43 Em seguida, Juliana retomou a palavra e descreveu o ambiente do Théâtre du
Soleil, no qual o espectador é convidado a entrar quando chega ao teatro – seja na
Cartoucherie, seja em turnês onde a estrutura arquitetônica do teatro é transportada e
inteiramente reproduzida. Juliana descreveu a imagem do espectador recebido com flores,
alimentos e bebidas, cercado por uma decoração específica que alude a cada espetáculo e
conduz o espectador a um universo de magia e suspensão do tempo/espaço cotidianos,
preparando-o para a fruição de histórias épicas, arquetípicas, que procuram narrar a trajetória
da humanidade pelo mundo ou em diversos mundos.
43 O espetáculo era dividido em quatro partes, assim como o DVD de registro do mesmo. Assim, as cenas
selecionadas para exibição durante a entrevista foram: Recueil 1 (Le Merveilleux Jardin, L’Échographie, La
Saloperie e La Chambre de la Mère) e Recueil 2 (Aux Archives, Un Bel Instant, La Promenade, Le Pardon,
Paris e Un Endroit Merveilleux).
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Imagem 18 - Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2007.
No entanto, como explicitei, Les Éphémères é um espetáculo que se destaca no
repertório da companhia justamente por não apresentar o elemento épico em sua dramaturgia,
tampouco possui uma expressividade exteriorizada. Sobre isto, Juliana comentou que, nas
vezes em que se apontou Les Éphémères como um espetáculo naturalista, Mnouchkine
sempre respondeu que o objetivo era apresentar o lado épico da alma, e não da narrativa. De
fato, ao interiorizar a ideia do fim, ou da morte, o tema passou ser a memória, uma análise
retrospectiva da vida, aquilo que acontece antes do fim. E, naturalmente, os momentos mais
contrastantes, conflituosos, paradigmáticos, serão os que oferecem material mais rico para a
construção das cenas. Assim, o elemento épico surge desta fonte íntima e delicada, assumindo
o protagonismo das cenas e desocupando a narrativa da função de fio condutor do espetáculo.
O que faz a peça avançar, portanto, e talvez até de forma cíclica, são os pequenos impulsos
contidos em cada célula, em cada cena. Não por acaso, o movimento contínuo das pequenas
plataformas circulares de cenário, evocam uma ideia de fluxo, porém sem uma direção única,
apontando para um tempo circular, onde presente, passado e futuro misturam-se
horizontalmente.
Sobre este assunto, indaguei Ariane Mnouchkine a respeito do quanto teria sido
proposital a influência da linguagem cinematográfica no processo de criação do espetáculo,
posto que era possível identificar a construção das cenas, das sequências, a qualidade do
trabalho dos atores, o cenário realista e o próprio tema geral com um determinado tipo de
cinema. A isto Mnouchkine respondeu que, de fato, minha análise estava correta, este
espetáculo teria resultado desta forma, mas que em nenhum momento isto foi uma escolha
93
consciente. Ela comentou que durante o processo não houve essa intenção, que a influência e
o amor pelo cinema, por parte dela e dos atores, é visível e sensível neste espetáculo, mas a
questão principal foi o inconsciente, as lembranças e, principalmente, aquilo que fica gravado
na história de cada um.
E eu me dou conta de que é um conjunto cinematográfico, exatamente como ela diz,
nas montagens de sequência e no movimento geral dos pequenos cenários, que não
eram naturalistas, mas que eram o extrato, a essência do cenário, da direção de arte.
Mas isso veio inconscientemente, como um monte de coisas quando trabalhamos. A
gente procura, mas, no fundo, eu não sei porque nós procuramos nessa direção. Há
coisas misteriosas que nos guiam. Para mim, o teatro e o cinema são duas artes
extremamente “primas”. A única diferença fundamental é que no cinema há o
suporte fílmico, mecânico, e no teatro não há nada além do corpo vivo, dos viventes,
que transforma em meros mortais, os atores. (MNOUCHKINE, 2017)
A partir disso, me pergunto se, já que a fonte de inspiração desta criação foi, nas
palavras da diretora, o “inconsciente”, o conjunto de lembranças e memórias de cada um,
narradas pelo grupo e para o grupo – assim como em um processo psicanalítico –, dadas as
proximidades entre as figuras de linguagem no âmbito do cinema e aquelas descritas na
interpretação dos sonhos de Sigmund Freud, por exemplo, especialmente a condensação e o
deslocamento,44 o cinema não surge como estrutura e linguagem deste espetáculo justamente
porque oferece as ferramentas para lidar com o tema do “inconsciente”, de forma justa e
eficiente. Sobre este assunto, me aprofundarei mais adiante, no próximo capítulo.
Sobre a montagem das proposições cênicas, Juliana observou que todos os atores
traziam narrativas autobiográficas sem que houvesse a obrigação de que cada ator trabalhasse
apenas sobre seu próprio material. Pelo contrário, a título de exemplo, ela comentou que duas
atrizes se apropriaram, aos poucos, de alguns dos elementos da biografia de Mnouchkine e
propuseram cenas que, somente depois, foram sendo reconhecidas pela encenadora.45 E o
mais curioso foi que, mesmo sem conhecer todos os detalhes de cada história, Mnouchkine
comentou como as cenas finalizadas apresentaram fielmente os fatos, da forma como
aconteceram. Juliana contou o modo como a última cena do espetáculo, por exemplo,
44 Para Freud, o sonho seria produzido por dois elementos centrais: a condensação e o deslocamento. A
condensação seria o mecanismo pelo qual ideias que tenham pontos em comum são fundidas em imagens
únicas, estabelecendo uma associação entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. Já o deslocamento seria
o mecanismo pelo qual um conteúdo latente seria substituído por um de seus traços característicos, por meio da
censura. Assim há uma transferência da importância deste conteúdo para outro elemento, aparentemente
periférico. Estes dois mecanismos também podem ser reconhecidos como a metáfora, no primeiro caso, e a
metonímia, no segundo. 45 Mnouchkine havia contado algumas passagens da sua história de vida, assim como os outros integrantes da
companhia, durante as rotineiras reuniões e trocas de arquivos que aconteciam – e acontecem – todos os dias na
hora do café da manhã, na própria cozinha do teatro.
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retratava, exatamente, o encontro acontecido poucos anos antes, entre a própria Mnouchkine e
um geólogo, em uma praia da Bretanha, quando ela perguntou sobre informações acerca de
uma antiga pensão onde as avós, e ela própria aos quatro anos, se refugiaram do exército
alemão nazista. A cena proposta retratou fielmente o ambiente da praia e o estado em que os
“personagens da vida real” se encontraram diante da coincidência: este geólogo, encontrado
ao acaso, vinha a ser o neto da senhora que trabalhava nessa pensão durante a época e os
levou até o local, o que causou enorme comoção em todos.
Quando perguntei à Mnouchkine como tinha sido a experiência de ver extratos de sua
biografia tornados cenas, se a encenadora havia sentido necessidade de interferir de alguma
forma, ou qual teria sido o espaço deixado para a ficção criada pelos atores nesta cena em
específico, ela respondeu que o espaço criativo dado aos atores teria sido total, posto que eles
decidiram pegar este material para a criação, sem o envolvimento dela. Ela contou que o que
aconteceu foi que num momento dado, ela viu os atores atuando sobre tantos assuntos tão
pessoais, que ela resolveu compartilhar do momento contando uma memória forte, mas não
com o intuito de que a transformassem em cena. Quando uma atriz trouxe uma proposição,
evidentemente sobre a sua interpretação de um momento da infância da diretora, esta chegou
a pensar nas várias camadas criativas ali presentes, afinal seria uma reinterpretação de sua
lembrança, essa já contada pela senhora de idade que Mnouchkine era à época, ou seja, uma
senhora de sessenta e cinco anos, contando sobre um fato ocorrido quando ela tinha dois ou
três anos. Mnouchkine contou, ainda, que a impressão que isso lhe causou foi a emoção de
relembrar dos seus avós, perguntando-se se os seus avós ou mesmo os personagens que eles
deveriam ter conhecido na época, “estariam vendo aquilo tudo de alguma parte do céu, ou do
limbo, ou de onde suas almas estão agora. Foi uma emoção, mas não foi, felizmente, uma
libertação. No fundo, curiosamente, os personagens que me fizeram me identificar
verdadeiramente com a menina foram, efetivamente, a criança que atuou a menina e Juliana
quando ela atuou Nora.” (MNOUCHKINE, 2017)
De fato, é bastante interessante perceber o uso que foi feito deste material biográfico
na criação das cenas. Neste caso, a partir de uma memória real, cujo impacto é enorme, pois
mostra o risco do encontro entre uma menina judia e um soldado nazista numa praia deserta
durante a Segunda Guerra Mundial, toda uma trama de ficção foi montada, misturando
personagens inventados e figuras reais. Assim, a própria trajetória de vida desta
menina/personagem mostrada no espetáculo, da infância até a sua morte, reúne fatos reais e
fictícios, e, já que se tratava da história da própria encenadora, esta pôde ver a encenação de
um possível percurso de vida seu que, no entanto, não aconteceu realmente. Só na ficção.
95
Talvez pela grande familiaridade e convivência cotidiana entre os membros da
companhia, talvez pela capacidade dos atores em “viverem” a cena verdadeiramente, ainda
que em circunstâncias imaginárias, ou talvez pela energia de comunhão que emanava do
grupo neste trabalho, o fato é que essa cena, como outras, guardavam uma tal fidelidade com
a memória autobiográfica de cada um, que possivelmente se poderia falar delas em nível
psicanalítico. Sobre este assunto, Juliana observou que além das biografias, outras histórias
reais vieram à cena, porém trazidas de reportagens jornalísticas. Aqui, igualmente, as lacunas
foram preenchidas com o imaginário dos atores, uma das funções da memória.
Aproveito para comentar outra questão que fiz à Mnouchkine, a respeito deste assunto.
Citando a experiência do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, em que o material biográfico
dos participantes estimula o surgimento de questões psicanalíticas, perguntei se houve alguma
situação que se aproximasse disso durante os ensaios, ou se houve a necessidade de alguma
interferência direta da diretora, lembrando que ela teria formação profissional como
psicóloga. A isto ela respondeu de forma direta.
Eu não sou psicóloga, não sou uma médica psicóloga. Meu trabalho não é de
analisar inconsciente, meu trabalho é deixá-lo se expressar. É totalmente diferente.
Deixá-lo se expressar com seus mistérios, suas incompreensões, suas metáforas,
seus sonhos... Então efetivamente em Les Éphémères, provavelmente como em
muitos espetáculos, mas especialmente neste, há muito inconsciente que foi
expresso. Mas eu não tinha nem o poder, nem o direito de pretender analisar o que
se passava. A única coisa que eu podia fazer era escolher e guardar alguns desses
momentos de expressão, porque eu os achei emocionantes, justos, passionais. Mas
artisticamente, não psicologicamente. O encenador não tem o direito de tentar
patrulhar a consciência dos atores ou de dizer aquilo que eles não sabem sobre eles
mesmos, não é esse o meu é ofício. Meu ofício é colocar em forma mesmo o que é
incompreensível. (MNOUCHKINE, 2017)
Em determinado momento falou-se da importância da música de Jean-Jacques
Lemêtre, composta para o espetáculo e executada ao vivo e em pequenos trechos gravados,
que reforçaram o caráter o épico e íntimo das cenas. Pela estrutura do espetáculo que
articulava as diversas narrativas, de forma que as cenas não se sucediam necessariamente de
forma cronológica, a música foi composta como leitmotiv para cada narrativa, lembrando o
efeito amplamente utilizado no cinema e no audiovisual.
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Imagem 19 - Jean-Jacques Lemêtre durante os agradecimentos
no espetáculo Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2007.
Uma das minhas questões principais sobre o espetáculo era a origem daquela
disposição de palco e plateia, tão diferente do palco italiano que vinha sendo utilizado há
décadas. Sobre isto Juliana explicou que, na verdade, o espaço havia sido colocado desta
forma por Eugênio Barba, que acabara de se apresentar na Cartoucherie, e Mnouchkine
propôs, então, a utilização daquela mesma disposição espacial como outro estímulo sensorial.
Aqui abro um parêntese para reproduzir a tradução de uma carta escrita por Ariane
Mnouchkine a Eugenio Barba, acerca do espetáculo, que ilustra de forma precisa o tipo de
trabalho desenvolvido por ela e pelo Théâtre du Soleil.
Caro Eugenio,
Nós vamos começar logo. Em um mês, o público estará aqui. Eu posso ver os
seus rostos. Nós incorporamos pequenas luzes nas filas de plateia da sala. Eu posso
ver todos os seus rostos. Todos os nossos rostos. Eles estão bem organizados. Como
para um coral em uma escola inglesa ou uma disciplina da Faculdade de Medicina.
Uma aula de autopsia, ou para um pequeno Parlamento das Origens. De nossas
origens. Aninhados em nosso novo nó de madeira, eles examinam nossa pequena
pista elíptica. Eles esperam. Eu os vejo. Eu creio neles, eu os amo. Os próprios
atores estão ocultos.
Eu fui muito inspirada pela arquitetura do cenário do seu último espetáculo.
Aquele que você atuou em nossa casa. Maior. Nossa família tem significativamente
mais bocas para alimentar do que a sua.
O espetáculo chama-se Les Éphémères. Na desordem. Partimos.
O mundo está explodindo ao nosso redor… e nós, nós tentamos fazer um
espetáculo sobre… sobre o que fazer? Se eu te dissesse que os atores e eu mesma
nos encontramos trabalhando sobre… quase nada. Este quase nada que nós
chamamos de infelicidade, felicidade, frequentes arrependimentos, às vezes, alegres
revelações. Nossos pequenos apocalipses. Nossas trilhas mal traçadas que já
desapareceram. Nossos traços, tão invisíveis quanto os de uma serpente sobre o sal.
Eu não sei porque eu quis te escrever esta carta. Eu fiz sessenta e sete anos este ano.
Eu sou a mais velha. A mais nova tem vinte anos. Entre ela e eu, agora existem
todas as idades.
O mundo está explodindo ao nosso redor… as geleiras estão derretendo, os
oceanos sobem, as ilhas dos nossos sonhos serão engolidas, e nós ainda somos
“analfabetos do sentimento”. Trata-se de nós, de ti e de vocês. Nós investigamos,
mas são pessoas como nós que nós iremos ver. Estes que nos revelam nossa
coragem, nossa bondade, nossa fraternidade, eu os chamarei de Salvadores, e estes
que nos revelam nossa vergonha, nossa covardia, nossa indiferença obstinada, eu os
97
chamarei de Sabotadores. Nós somos salvadores e sabotadores da nossa vida, nós
somos náufragos e salvadores. Náufragos porque nós comemos o bem de nossas
crianças, salvadores porque nós ainda queremos que eles leiam os livros. Eis a
diferença. Eu tento com muita cegueira nos iluminar. A ser continuada. (Trecho do
programa de Os Efêmeros, criação coletiva do Théâtre du Soleil, encenação de
Ariane Mnouchkine, 2007).
A meu ver, esta carta revela o tênue fio condutor deste espetáculo que nasce da
consciência da finitude e do desejo de ultrapassá-la. Demonstra também a irmandade entre
estes artistas, testemunhas dos percursos de cada um, assim como as duas plateias bifrontais,
de ambos os espetáculos, testemunham a experiência uns dos outros. São artistas cúmplices
também na natureza de seus fazeres artísticos, artesãos na contramão das tendências, o que os
leva à consciência de que seus traços possam se tornar “invisíveis”, pela condição efêmera da
arte e da própria vida. E talvez esteja aí também o motivo pelo qual as autobiografias ganham
a cena: se a memória tem a função de turvar o passado, em condensação, a arte tem o poder de
eternizá-la, multiplicando suas leituras.
Sobre a escolha do espaço bifrontal, Mnouchkine comentou. Na entrevista, que já
tinha utilizado esta formação espacial em um espetáculo feito em apresentação única, em
1989, sobre alguns minutos do processo de Václav Havel e de outros signatários da Charte
77.
Outra questão que levantei foi acerca das plataformas circulares como espaços de
cena. Já que elas foram criadas no espetáculo anterior, me interessei pela passagem deste
veículo, literalmente, de um espetáculo a outro. Juliana observou que, a princípio, atores e
diretora combinaram que as “plataformas” não seriam utilizadas por terem sido muito
marcantes no espetáculo anterior. Porém, pouco a pouco, “sorrateiramente” como comentou,
os atores começaram a propor cenas sobre as plataformas e que, dado o espaço elíptico do
corredor, as plataformas foram sendo arredondadas para que pudessem transitar de forma
mais fluida. A partir desta fala da atriz, penso que, de fato, havia a necessidade de um
movimento pela passividade, pelo qual os atores pudessem se deslocar pelo espaço,
guardando a intimidade proposta pelas cenas, como que “carregados pela vida”. Portanto, as
“plataformas”, novamente, surgem da necessidade do momento e não como uma imposição
da encenação.
Essa ferramenta trouxe, ainda, outros benefícios ao espetáculo, pois assim foram
ampliadas as possibilidades de movimento, como a translação, que fortaleceu ainda mais o
caráter cinematográfico da estética da cena: pelo movimento de órbita, o espectador tinha a
sensação do voyerismo diante das cenas, ao observar também aquilo que os atores não podiam
ver (as suas costas, o fundo do cenário, os segredos escondidos); o movimento em moto-
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contínuo circular materializava o tempo das cenas, que ora ganhava velocidade, ora era
ralentado, de acordo com a dinâmica da cena e o interior dos personagens, e, por fim, permitia
que todos os espectadores tivessem uma visão expandida do espaço. As pequenas plataformas
arredondadas também evocavam a imagem de pequenos satélites em órbita constante,
alinhados entre si, pequenas células que surgiam e desapareciam em um fluxo de movimento
ao qual eram alheias, em uma forte metáfora ao fluxo da vida, ou, ainda, aos asteróides em
movimento que podem, sim, um dia, vir a chocar-se.
Sobre a preparação dos cenários realistas sobre as plataformas, Juliana nos contou que
os atores ficavam por muitas horas preparando essas plataformas, com tal nível de
detalhamento que os espectadores podiam reconhecer os objetos como de suas próprias
histórias e memórias, fortalecendo a familiaridade e a intimidade entre a cena e a memória de
atores e espectadores. “Mas eu via a chaleira da minha avó! Mas você tinha uma cômoda
idêntica a da minha tia! (...) Eram coisas muito familiares, a gente reconhecia os móveis, os
objetos, os brinquedos…”, comentou Juliana.
A preocupação com o naturalismo das ações executadas era tamanha a ponto de os
atores maquinarem, por exemplo, uma traquitana para que uma torradeira funcionasse em
cena, torrando o pão, que saltava para fora. A atriz contou:
As pessoas eram muito entusiasmadas, passavam o dia fabricando uma coisa que
seria o máximo (...) De repente o menino põe dois pães, assim, e de repente, puf, sai
da torradeira! A torradeira funcionou em cena, a gente sentia o cheiro do pão
torrado! (...) Você como espectador, sentir o cheiro do chocolate quente, porque
estava ali do lado! (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)
Juliana explicou, ainda, que os atores ensaiaram por onze meses, chegando às oito e
meia da manhã na Cartoucherie, o horário de chegada rotineiro, mas as apresentações das
cenas à diretora só iniciavam às dezessete horas, devido ao tempo necessário para a
montagem destas plataformas de cenários. No entanto, o esforço fazia-se valer e, conforme
Juliana, algumas cenas permaneceram intactas desde sua primeira improvisação até o
espetáculo final. A preparação das improvisações incluía também os figurinos, a escolha do
tema com o músico, a combinação com os atores que empurrariam as plataformas, guardando,
porém sempre, a lacuna para a improvisação, para que o jogo espontâneo pudesse emergir.
Outra questão intrigante para mim era sobre a sensação vivida pelos atores ao executar
ações tão cotidianas e naturalistas, em cima de plataformas em constante movimento. Minha
hipótese era de que o efeito neutralizaria a naturalidade destas ações, oferecendo uma
plasticidade e uma qualidade ao movimento que devolveria sua teatralidade. Juliana comentou
99
que isto, como tantos outros efeitos, não foi predeterminado, mas que, posteriormente,
puderam concluir:
É como um cinema, só que em vez de ser uma câmera que gira, a câmera fica parada
e as coisas acontecem. Tanto que este filme (registro do espetáculo a que assistimos)
foi um filme de captação, feito nos últimos quatro dias em que a gente apresentou o
espetáculo em Saint Etienne. (...) Tinham quatro câmeras, filmaram dois dias e
depois fizeram a montagem. Não houve um filme feito. Porque nos últimos
trabalhos que a gente tem feito, Ariane consegue fazer um filme, realmente um
filme, não é uma peça filmada. É um filme, até um pouco diferente da peça. Mas aí
não, era uma captação (...). O jeito que ela era feita, já era cinema, não tinha mais
que fazer movimento de câmera nenhum.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)
Imagem 20 - Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2007.
Analiso que a sensação de voyeur que o espectador poderia experimentar, de “olhar
pelo buraco da fechadura” aquelas cenas como pequenos espetáculos da vida real. Juliana
reforçou que sim, o público, muito próximo, identificava-se, e se testemunhavam, uns aos
outros, emocionando-se. “Muitas pessoas disseram que nunca haviam chorado no teatro e que
tinham chorado ali. E davam muita risada também. Era muito emocionante (...), uma
confraternização muito forte.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2016).
Imagem 21 - Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2007.
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Outra questão que quis tratar na entrevista dizia respeito a uma sequência na qual
Juliana participava e que me parecia intrigante por travar um encontro entre uma atriz com
atuação absolutamente naturalista e a outra com um trabalho bastante expressionista, que me
fazia pensar no trabalho com máscaras. Tratava-se de uma sequência de cenas que mostravam
a evolução na relação entre uma senhora de idade bastante avançada e sua médica
ultrassonografista, interpretada por Juliana.
Juliana nos contou um pouco do surgimento dessas cenas e as consequências
decorrentes do trabalho. Ela nos disse que a personagem de Madame Perle, interpretada pela
atriz de origem iraniana Shaghayegh Beheshti (Shasha), nasceu, de fato, através do uso da
máscara de Madame Pantalon, a máscara do Pantaleão jogada por uma mulher, no jargão do
Théâtre du Soleil.46 A atriz, muito jovem, que se propunha a fazer uma senhora de idade,
tinha dificuldade de entrar em cena sem a máscara. No início das proposições, Juliana
interpretaria uma psicóloga, porém, depois tornou-se uma ultrassonografista (operando um
aparelho que funcionava em cena, de fato).
Eu fiquei olhando para ela assim, esperando que ela me dissesse algo, ela respondia
“por que você me olha com este sorriso?”, Madame Pantalon tem uma tal
autoridade, e eu dizia “Madame Pantalon, a senhora me impressiona, o que eu vou
ficar falando aqui com a senhora? Enquanto a senhora tiver a máscara, a pessoa que
está atrás da senhora não poderá falar, tem uma pessoa atrás da senhora, não é?!”.
Era a Perle que não conseguia aparecer ainda, e pouco a pouco, ela foi tirando a
máscara. (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)
Abro um parêntese para comentar como neste exemplo fica bastante claro o uso
pedagógico da máscara, tal como é utilizada no Théâtre du Soleil. Juliana descreve todas as
etapas vividas pela atriz desde a ideia conceitual do personagem até sua realização de forma
verossímil através do corpo e das ações, possibilitando a retirada do artefato máscara da cena,
sem, no entanto, perder o vigor e presença emanados por ela.
Juliana reforçou que a cena foi bem sucedida porque havia uma grande escuta entre as
duas atrizes, apesar de universos tão diferentes em termos de propostas estéticas. E comentou
como foi curioso quando os pais da jovem atriz assistiram à peça na estreia, e, depois do
espetáculo, perguntaram como a filha saberia de tantos detalhes, se nunca haviam lhe falado
sobre a sua tia retratada em cena – uma mulher que sempre quis ter filhos, envelheceu sem o
conseguir, deixando-a obcecada sobre este tema. A atriz surpreendeu-se, pois, realmente não
sabia sobre este fato, e ficou bastante intrigada com a coincidência.
46 No Théâtre du Soleil é comum batizar as máscaras com pequenos apelidos, muitas vezes ligados aos atores
que as portam com muita propriedade ou a improvisações e cenas que funcionaram bem.
101
Imagem 22 - A atriz Shasha preparando-se nos camarins
do espetáculo Les Éphémères, Cartoucherie, Paris, 2007.
Com relação à dramaturgia, já que é comum a presença de uma artista responsável
pela escrita dos espetáculos do Soleil, perguntei como havia sido a criação da dramaturgia de
Les Éphémères. Sobre o assunto, Juliana reforçou que, por se tratar de uma criação coletiva
calcada nas ações e relações dos atores, intuitivamente as cenas apresentaram textos mais
curtos e circunstanciais, de forma que não houve interferência de uma dramaturga neste
espetáculo.
Sobre a cronologia e disposição das cenas no espetáculo, me interessava saber como
havia se dado o cruzamento das histórias, posto que as lacunas e os entrelaces das cenas
permitiam ao espectador criar sua própria narrativa mental, assim como no cinema através da
montagem proposta pela edição. Juliana comentou que Mnouchkine montou a genealogia das
cenas em um quadro branco, nomeando e determinando as ligações. Esta imagem me fez
pensar, justamente, na criação de um storyboard, onde um filme começa a surgir a partir da
ligação entre as pequenas partes, feita, muitas vezes, de forma aleatória para, posteriormente,
carregar-se de sentido.
Pensando nesta questão do processo criativo, introduzi questões sobre o programa da
temporada original francesa, comentando, especialmente, as notas de ensaio ali transcritas.
Detive-me a uma particularmente: “Não se pode deixar que a cena se instale. Não atuar uma
cena, mas um momento”. Expus minha visão de como esta qualidade do trabalho do ator
102
poderia levar à estética do cinema, considerando também a questão autobiográfica. Juliana
comentou, então, sobre a constante procura por estar no presente, em cena.
Mnouchkine dizia que não precisava atuar porque era muito próximo, o ator deveria
vivenciar e contar. Ela falava em atuar o instante, pois, na verdade, nunca se sabe
como a cena vai acabar em cada dia (uma lei primordial da técnica da improvisação
em que cada cena é sempre uma página branca). (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)
Então a entrevista foi aberta a perguntas da plateia ampliando o foco de análise.
Destaco, entre outras coisas comentadas nesta etapa, a fala em que Juliana observou a visão
de Mnouchkine sobre a própria trajetória. Ela comentou como Mnouchine, inúmeras vezes,
afirma ter tido muita sorte em conseguir uma sede para a companhia e ter a chance de
perpetrar um trabalho de tamanha qualidade, ao que Juliana contrapõe dizendo que
Mnouchkine já teria este destino, ainda que não soubesse, graças a sua enorme força de
aglutinação de pessoas em torno de um desejo em comum. Reforçou, ainda, a tamanha
exigência que aplica sobre si própria, em termos de ética, verdade, de trabalho, tornando-se
um exemplo sólido a ponto de se transformar em um modelo a ser seguido. A partir disto, me
ponho a pensar o quanto a empatia que emana de uma liderança positiva é a verdadeira mola
motriz para as grandes criações humanas, mais do que a genialidade ou as circunstâncias do
momento.
Juliana comentou, ainda, sobre o modo de produção e financiamento da companhia,
em que quarenta por cento do custeio geral vem através do governo, e os outros sessenta por
cento vem do público, o que os obriga a conseguir manter a casa cheia durante muitos meses
– criando um comprometimento do trabalho desenvolvido com uma resposta concreta e
autêntica da plateia.
No momento atual de crise financeira mundial, a companhia ficou parada por muitos
meses em 2015. Pela primeira vez em cinquenta anos, as planilhas financeiras passaram a ser
compartilhadas também com os atores, que tiveram consciência das dificuldades e se
dispuseram a imaginar outras formas de gerar receita para o teatro.
Então, destaquei a criação do projeto das Escolas Nômades que surgiu como uma
possibilidade de trabalho naquele momento, e Juliana reforçou a importância do projeto em
termos de pedagogia, mas também por gerar trabalho para os integrantes da companhia, uma
103
grande preocupação de Mnouchkine, que se sente responsável por eles de forma quase
maternal.47
Por fim, Juliana comentou sobre a grandiosidade técnica do espetáculo Macbeth
(2013), cujas apresentações foram interrompidas no início de 2015 por questões de custo,
impedindo que a peça fosse apresentada em nenhum outro teatro além da própria sede da
companhia – uma situação nunca antes vivida. Ela finalizou observando que a vida em
companhia de teatro é uma guerra de resistência (e a isso replico: Viva a resistência!). Assim
diz Juliana:
Ariane é uma mulher do século, um exemplo vivo de perseverança, de crença, de
verdade, de exigência, de arte. Ela diz que teve sorte, nós é que temos a sorte de tê-
la. Ela nos mostra como a gente deve agir da maneira mais simples para que as
coisas aconteçam. (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)
47 As Escolas Nômades são um projeto do Théâtre du Soleil onde a diretora e alguns atores da companhia
viajam a diversos países e oferecem um estágio aos moldes de como o processo criativo acontece na sua sede.
As primeiras viagens ocorreram em 2015, com a seguinte distribuição: em julho no Chile, em agosto na Suécia,
em outubro na Inglaterra e em dezembro na Índia. Há o desejo de que este projeto possa percorrer mais países,
inclusive o Brasil.
104
CAPÍTULO 3 – A Potência do Efêmero
3.1 O hibridismo da linguagem em Les Éphémères: Teatro e cinema tornam-se uma outra linguagem
Como expusemos anteriormente, a partir das entrevistas realizadas para nossa
pesquisa, ficou clara a relevância de um bloco de cenas intercaladas durante todo o
espetáculo, que foi utilizado como esqueleto estruturante da encenação. Não por acaso, a
primeira cena dessa série é a primeira cena da primeira parte do espetáculo, e a última cena
desse bloco é também a que finaliza a segunda parte do espetáculo. Nessa série de cenas, onde
são introduzidos os principais elementos biográficos da encenadora Ariane Mnouchkine,
também não por acaso, se apresentam os principais momentos de cineficação da cena, através
da linguagem e do próprio tema. Assim, irei me ater a esse bloco de cenas, ainda que todas as
outras tramas que correm paralelas também tenham derivado das lembranças e memórias dos
artistas criadores, para, em um segundo momento, tecer comentários sobre outras cenas e
encadeamentos do espetáculo.
As cenas analisadas, em princípio, portanto, são Le Merveilleux Jardin, Aux Archives,
Le Pardon e Un Endroit Merveilleux. Assim como diante de um filme que é resultante da
montagem de várias cenas sequenciadas sem que as lacunas que surgem possam ser
preenchidas senão pela imaginação do espectador, irei compor minha narrativa particular
através das impressões em mim causadas pela ordenação destas cenas em específico e pela
sua articulação com as ferramentas teóricas até aqui propostas.
A peça começa com uma música de ouverture, e, na penumbra, atores montam a
primeira plataforma de cenário diante do público. Partem da plataforma vazia, onde, aos
poucos, introduzem móveis, abajures, tapetes, livros, sofá, plantas, e tudo o mais que
representa a sala de estar de uma casa. Isto me faz pensar na ideia/importância do espaço
vazio no teatro, o espaço no qual o espectador pode construir todo o seu imaginário,
ampliando a potência da cena para si. Ao mesmo tempo, o ato de montar o cenário diante do
público evoca uma ideia brechtiana de anunciar/denunciar o meio de produção da ilusão. É,
como diz Mnouchkine, um extrato de um cenário realista, daqueles que remetem ao cinema
narrativo clássico, mas à medida que ele é construído diante de todos, se quebra a ilusão da
identificação, lembrando o espectador que ele está diante de uma construção, eleita entre
outras, para contar a história. Vejo uma operação de desnaturalização da cena. Ao mesmo
tempo, esta cena demonstra a forma de trabalho da companhia, na qual os atores executam
todas as funções técnicas do espetáculo, distanciando-se da ideia do ator/intérprete mitificado,
105
e rende uma bonita homenagem àqueles que, neste espetáculo, ficaram responsáveis pelas
funções técnicas.
Jean-Pierre Sarrazac continua as reflexões de Bernard Dort quando observa que a
construção compartilhada do sentido convida os espectadores a se interessarem não
apenas pelo que acontece na narrativa cênica, mas pela ocorrência do próprio teatro
no seio da representação. (...) É uma concepção próxima à do filósofo Denis
Guénoun, para quem o teatro contemporâneo acentua esse gesto de mostrar e
costuma oferecer ao espectador a “sobriedade lúdica e operatória” do jogo, e não o
efeito de ilusão da representação. (FERNANDES, Silvia IN: WERNECK, 2009, p.
15)
Depois de montado o cenário, com todos os objetos realistas que o compõe (sofá,
tapete, poltrona, plantas, papéis, telefone de fio, janela, mesa de centro, objetos de decoração),
os atores impulsores o levam de volta à coxia, finalizando este prólogo que, de alguma forma,
apresenta as cartas do jogo que se inicia. Percebo que a presença e a função dos atores
impulsores das plataformas, de alguma forma deriva daquela dos atores/titereiros de Tambour
sur la Digue, ou seja, poderia ser pensado como o desenvolvimento da ideia dos atores e seus
duplos, ou ainda, uma versão encenada da estrutura de coro e corifeu, de mestre-aprendiz, tão
presente na pedagogia da companhia.
Trata-se de um filme de 2009, apresentado como o registro das últimas apresentações
do espetáculo em Saint-Étienne, uma cidade no centro-leste da França, realizado por Bernard
Zitzermann, produzido pela Bel Air e distribuído pela Arte. Possui cinco horas e quarenta e
sete minutos, distribuídos em quatro DVDs na versão à venda em livrarias de todo o mundo.
O filme também pode ser acessado gratuitamente através de um link no sítio eletrônico da
companhia, em parceria com a Arte. As imagens foram captadas por quatro câmeras, duas
centrais e duas anguladas nas partes superiores das arquibancadas, em diferentes dias de
apresentação e, na montagem final, quase não notamos a presença destas câmeras, já que
houve o cuidado de não deixá-las em quadro. É necessário salientar também que mesmo tendo
consciência do trabalho de montagem final deste material, captado não só por uma câmera em
enquadramento geral fixo, mas através de vários pontos de vista em diferentes apresentações,
e lembrando que qualquer que seja o recorte produzido pela captação audiovisual de um
espetáculo já configura uma construção de linguagem cinematográfica, utilizo a expressão
“registro” para me referir a este filme, seguindo a orientação da própria Ariane Mnouchkine.
A encenadora/cineasta considera que, neste caso, diferente dos demais filmes produzidos a
partir de espetáculos da companhia, não há um trabalho de transposição para a linguagem do
cinema, e o que vemos é a edição de cenas que mostram o espetáculo como era apresentado
ao público nos espaços teatrais por onde passou. Portanto, seguimos com a ideia de que o
106
filme Les Éphémères é um registro (um tanto sofisticado) do espetáculo de mesmo nome, de
forma que muitas das análises que se seguem relatam tanto aquilo que podia ser visto ao vivo
no espetáculo, quanto aquilo que é mostrado no filme.
Importante ressaltar que, no filme do espetáculo, durante este início, são exibidos os
créditos iniciais informando que o filme trata-se de um espetáculo do Théâtre du Soleil,
filmado por Bernard Zitzermann, na presença do público de Saint-Étienne. Essa informação
importa porque apresenta ao espectador estes atores involuntários que passam a pertencer e a
criar significados na narrativa do filme. Como um coro grego que comenta suas impressões
sobre os fatos da peça, através das reações do público às cenas que se passam, o espectador
recebe mais uma camada de significação sobre a cena. Além disto, como os atores do
primeiro cinema citados por Cesarino da Costa que acenavam para a câmera, criando um
efeito de comunicação metafísica com o público, a imagem do público de Saint-Étienne situa
a experiência em um determinado recorte de tempo/espaço, em uma época, reforçando a idéia
do efêmero, da brevidade do momento, envolvendo a narrativa em um tom de nostalgia
melancólica que contribui para o tema e para a estética do espetáculo. O tempo passa a estar
presente concretamente, assim como em Marat/Sade, de Peter Brook, no Lamda Theatre
(LIRIO). A presença do público no quadro também evidencia a auto-consciência deste como
integrante do filme: não são raros os momentos em que percebemos algum espectador
arrumando sua aparência discretamente, ou incomodado por perceber a presença da câmera
dentro do seu quadro de visão, ou ainda, sentindo-se privilegiado por compor a cena, com o
estado de presença levemente alterado.
Segue-se um blackout que funciona como o primeiro corte do espetáculo,
corroborando para a ideia de uma cena que se pretende cinema. No filme entra aqui a primeira
legenda, indicando o início do que seria o primeiro ato, em linguagem idêntica aos filmes do
cinema mudo. Lembro que a inclusão de legendas, neste formato, que anunciam o que se
segue é recorrente nos filmes do Soleil, tornando-se mais uma escolha estilística da diretora
enquanto cineasta.
Para que seja possível compreender melhor como se inicia efetivamente o espetáculo,
relembro que o público está disposto em duas arquibancadas idênticas, uma em frente a outra,
com um corredor central. É neste corredor por onde entram, discorrem e saem as cenas,
utilizando as plataformas circulares como cenários empurrados por atores impulsores, além
dos atores que transitam pelo espaço sem maiores convenções. Sobre a cenografia deste
espetáculo, incluo uma passagem interessante, que poderia descrever precisamente o trabalho
realizado.
107
A fascinação das formas de mixed-midia no teatro sugere não apenas um “drama”
mais prolongado e mais complexo (como a ópera wagneriana), como também uma
experiência de teatro mais compacto, que se aproxima da condição da pintura. Esta
perspectiva de compacidade é mencionada por Marinetti, que a denomina
simultaneidade, uma noção fundamental da estética futurista. Como síntese final de
todas as artes, o teatro “deveria usar os artifícios contemporâneos da eletricidade e
do cinema; isso permitiria às peças serem extremamente curtas, uma vez que todos
esses meios mecânicos capacitariam a síntese teatral a ser atingida no menor espaço
de tempo possível, à medida que todos os elementos pudessem ser apresentados
simultaneamente.” (SONTAG: 1987, p.119)
O espaço da cena é separado dos bastidores por cortinas de seda, em ambos os lados,
por onde circulam as plataformas e os atores. Aqui aparece mais uma assinatura do Soleil: as
cortinas de seda são um recurso fundamental para o jogo da máscara, remetem a um
determinado estilo e época e, pedagogicamente, preparam atores e espectadores para o
momento da cena (todos se dão conta da convenção das entradas e saídas da cena, reforçando
a sua teatralidade).
Imagem 23 - Atores saem de cena no espetáculo.
Cartoucherie, 2006. Foto de divulgação da temporada francesa.
Portanto, ainda que não haja máscaras em cena em Les Éphémères e que estejamos
diante de uma cena que já se mostrou filiada ao realismo, as cortinas laterais lembram a
convenção teatral a todos os envolvidos, devolvendo à cena o frisson da surpresa pelo que
será desvelado. No filme, este acontecimento fica explícito, com o enquadramento da câmera
que mostra a cortina em movimento na lateral direita do quadro, o espaço vazio ao centro
"baixo", emoldurado pelas fileiras de espectadores com seus rostos e olhares voltados para a
cortina que se mexe com vento da movimentação do cenário que se prepara para entrar.
108
Abre-se a cortina e começa a cena Le Merveilleux Jardin. Entra em cena uma atriz,
Delphine Cottu, sobre uma pequena plataforma que tem como cenário uma portinhola
envolvida por eras, empurrado por uma atriz impulsora. No filme vemos a atriz de perfil,
olhando para a lateral esquerda do quadro, ou seja, para a cortina. Por isto, no espetáculo, a
primeira imagem que o público tem da atriz são suas costas e, com o movimento da
plataforma, tem-se a impressão de um zoom da câmera, como se partíssemos de um plano
geral para um close da atriz, cujo rosto e expressão se "descortinam" à medida que a
plataforma passa a se mover também de forma circular no centro da cena. Ficam claros, aqui,
os primeiros exemplos de hibridização entre teatro e cinema, que criam uma experiência
totalmente original a todos os envolvidos e que não pode ser reduzida apenas aos campos
estéticos que a criaram – não é mais teatro ou cinema, somente.
Naturalmente, pela disposição do espaço, este mecanismo de apresentação da cena se
repete durante todo o espetáculo, com algumas variações, como o encontro de dois cenários
vindos de ambos os lados simultaneamente, a passagem de atores que caminham – e até
andam de bicicleta – de um lado a outro, e, finalmente, momentos antológicos como a entrada
de um cenário móvel onde uma família assiste à projeção de um filme em um lençol, operada
por um dos atores da própria cena, tudo isto em movimento.
Voltando à cena inicial, portanto, à medida que vemos a expressão da atriz ao colocar
uma placa de "Vende-se" sobre a portinhola (a placa escrita em francês, com a numeração de
um telefone que compreendemos claramente ser atual, estabelecendo o tempo e o espaço da
estória que se seguirá) entendemos também que a proximidade do espectador à cena é um
fator condicionante para a absorção estética do espetáculo. Somente pelo fato do espectador
estar próximo o suficiente para observar o olhar da atriz quase em close é que se pode
perceber a qualidade intimista de sua atuação, seu estado de alma em ebulição, sem que a atriz
mova um músculo a mais do que uma atuação naturalista permitiria. No entanto não se pode
esquecer que ela está sobre uma plataforma que se move em linha reta e gira circularmente,
exigindo um controle do corpo e do equilíbrio que vai muito além de uma atuação naturalista
diante de uma câmera. Novamente, se estabelece aqui mais um exemplo da criação de uma
nova experiência estética para atores e espectadores, fruto desta cena que vê seus limites
ampliados.
A atriz em cena coloca a placa na portinhola, desce da plataforma como que para
observar de longe o resultado de sua ação e, em seguida, volta e transpassa o portão,
estabelecendo a convenção espacial do cenário: de um lado fica a rua; do outro, o jardim de
109
sua casa. Note-se que ao abrir e fechar, o portão range de verdade, trazendo a concretude do
objeto real na cena.
Ao pôr em cena um objeto literal, que não tem por função dramatúrgica e cênica
simbolizar, mas simplesmente estar presente e produzir situações de linguagem,
teatros da literalidade como os de Tadeusz Kantor, Bob Wilson, Romeo Castelicci,
Jan Lauwers, Gilles Maheu e Heiner Goebbels, por exemplo, acionam um
gigantesco efeito de estranhamento, posto a serviço da intensificação e da
manifestação extremada da matéria teatral. (FERNANDES, Silvia IN: WERNECK,
2009, p. 15)
Em seguida, à medida que a atriz se dirige para a outra saída de cena, olhando para a
cortina e, desta forma, conduzindo também o olhar da plateia nesta direção, privilegiando um
determinado ponto de vista através do movimento que garante a continuidade e a organização
espacial para o espectador, uma nova plataforma (aquela a que assistimos a montagem no
prólogo da peça) surge em cena e ganha o centro à medida que a atriz sobe nela, como que
adentrando um novo espaço cênico. Desta forma, a encenação reforça a importância daquele
cenário/núcleo como a locação principal da história, reforça o protagonismo da personagem e,
sem que uma palavra tenha sido dita até então, o espectador passa a compreender claramente
a situação que se estabelece: a moça está colocando uma casa à venda e não está confortável
com esta situação. Esta forma de apresentar os fatos da história também nos remete à
linguagem do cinema, onde as imagens e o movimento do ator pelo espaço é que estabelecem
a cena, com o privilégio da imagem sobre o texto.
Vemos a atriz começar a separar papéis, cartas e documentos, com caixas de papelão,
até que ela telefona para alguém. Com este recurso, ela se apresenta, Jeanne Clement, (ao seu
interlocutor e ao público) e pode contar claramente as circunstâncias dadas da cena: sua mãe,
Aline Clement, faleceu e ela está ligando ao banco para encerrar a sua conta. Entendemos
então que a personagem está às voltas com os documentos da mãe, em sua casa, que acaba de
ser posta à venda. Note-se que toda esta cena acontece sobre a plataforma em constante
movimento circular e pelo espaço, conferindo ao espectador a mesma apreensão da cena que
acontece no cinema, quando o movimento da câmera pelo quadro revela e esconde
determinados elementos, mostrando também os pontos de vista que a personagem não vê: o
que está atrás dela, o fundo do cenário, dos objetos, ou seja, tudo que transborda da
consciência da personagem.
110
Penso aqui na frase de Mnouchkine sobre o ator no trabalho com a máscara, "o ator
deve ser côncavo e convexo, ao mesmo tempo" e vejo que, de alguma forma, neste espetáculo
ela se aplica ao espaço de uma forma geral: vemos, ao mesmo tempo, o interior do cenário (a
Imagem 24 - A atriz Delphine Cottu em cena.
Cartoucherie, 2006. Imagem da temporada francesa.
intimidade e a pessoalidade de seus objetos de cena) e sua casca exterior (os fundos do sofá,
do vaso de planta, do armário e da poltrona). Tudo está exposto. Penso nestes cenários
também como bolhas de sabão, belas, delicadas e efêmeras.
E as lacunas que surgem entre elas, no espaço, seriam os espaços da montagem no
cinema, onde o espectador pode recriar sua própria narrativa, tornando-se ele mesmo um
montador/editor de cinema.
Panofsky concebe a diferença entre teatro e filme como uma diferença entre as
condições formais de ver uma peça e de ver uma fita. No teatro, “o espaço é estático,
isto é, o espaço representado no palco, bem como a relação espacial do observador
com o espetáculo são inalteravelmente fixos”, enquanto no cinema, “o espectador
ocupa uma cadeira fixa, mas apenas fisicamente, não como sujeito de uma
experiência estética”. No teatro, o espectador não pode mudar seu ângulo de visão.
No cinema, ele está “esteticamente [...] em permanente mobilidade, à medida que
seus olhos se identificam com as lentes da câmera, que sempre se deslocam em
distância e direção” (SONTAG:1987, p.103)
Se pensarmos novamente no advento da imagem digital presente na cena teatral, no
cinema de forma irreversível, as condições formais de absorção destas mídias se complexifica
ainda mais, como foi abordado.
Voltando à história, Jeanne, nossa protagonista, recebe a informação do banco de que
sua mãe tinha um cofre, do qual ela não sabia da existência, e combina de ir buscá-lo no dia
seguinte. Neste momento, entra pelo lado direito da cena (e o corte do filme reforça esta
111
convenção), um novo personagem (feito pelo ator Serge Nïcolai), trajando um terno, portando
um capacete em uma mão e um telefone celular na outra, pelo qual entendemos que está
falando com sua mãe, bastante eufórico. Ele conta que acabou de sair da maternidade e que é
uma menina, Anna, que entendemos que se trata da sua filha. Enquanto o ator fala ao telefone,
percebemos a felicidade pela sua movimentação, que sugere que ele está "pulando
amarelinha", um jogo infantil conhecido de todos.
Penso nesta ação como um exemplo perfeito do conceito de ação psico-física,
proposto por Stanislavski em seu sistema, o que levaria a pensar em uma atuação
realista/naturalista. Só que, imediatamente a isto, enquanto o ator se dirige em direção à
lateral pela qual entrou, pelo outro lado, o cenário com a portinhola e a placa "Vende-se"
volta à cena pelo outro lado, empurrado pela atriz impulsora, a tempo de ser percebido pelo
personagem de Serge. Então acontece um delicado ballet: à medida que o personagem se
encaminha para a saída, o cenário se aproxima dele pelas costas, fazendo alusão também a
outro jogo infantil (em que uma criança avança em direção a outra quando esta não está
vendo). Além disso, como neste cenário a única figura humana é a atriz impulsora, essa
personifica a ideia da casa à venda e "seduz" o personagem de Serge, até o momento em que
ele finalmente decide apertar o botão da campainha.
Do ponto de vista do personagem masculino, podemos pensar nesta passagem como
aquele momento em que uma imagem domina o seu pensamento (a placa "Vende-se") e,
inconscientemente, o indivíduo é capturado. Em um filme esta ideia seria mostrada pela
montagem alternada e repetida das imagens do personagem e do objeto de desejo, levando o
espectador a detectar a ligação forte entre ambas e, no espetáculo, esta ideia se traduziu
justamente por este jogo entre o ator e o cenário (personificado pela atriz). Temos aqui mais
um ótimo exemplo deste novo original que se criou a partir da aproximação das técnicas do
teatro e do cinema, reforçando a ideia de cineficação da cena.48
Outro aspecto interessante que pode ser observado neste trecho do filme diz respeito à
presença do público no quadro do filme. Enquanto acontece a cena de Serge descrita acima,
vemos ao fundo duas das fileiras de público que assistem a cena. Pelo ângulo e pela lente da
câmera, percebemos que esta tomada foi feita por uma câmera posicionada ao centro da
arquibancada, na primeira fileira de bancos, ou seja, no nível dos olhos dos atores e do
48 Vale lembrar que, como foi frisado por Mnouchkine, nenhum desses acontecimentos foi criado
conscientemente, ou seja, não houve uma pesquisa no sentido de buscar a transposição de uma linguagem a
outra. No entanto, justamente porque estamos evocando aqui o processo criativo de um grupo de artistas,
partindo para uma aventura de pesquisa, me parece autorizada a tessitura dessas correlações e análises, posto
que se trata também da minha "montagem particular" com as "cenas" que se apresentam.
112
público, de forma que este último tem consciência total de que está sendo filmado. Neste
contexto é curioso observar as diferentes reações de indivíduos diferentes da plateia diante
desta experiência: assistir a uma peça de teatro, sabendo que ela está sendo filmada, e, ainda,
se perceber como parte daquilo que está sendo filmado.
Imagem 25 - Público sentado em uma das arquibancadas do espaço teatral.
Cartoucherie. 2006. Imagem da temporada francesa.
Enquanto alguns estão concentrados na cena que se mostra, outros procuram as
entradas dos bastidores com os olhos, como se quisessem se antecipar a qualquer novo
evento, e, há, ainda, aqueles que se percebendo na filmagem, passam boa parte do tempo
ajeitando as roupas, os cabelos, nos quais percebemos uma leve construção na expressão,
como se também estivessem atuando – e, de fato, estavam. A partir disto, penso novamente na
aproximação da teatralidade deste espetáculo ao teatro performativo, pois “De qualquer
forma, ela (a teatralidade) é fruto de uma disjunção espacial instaurada por uma operação
cognitiva ou um ato performativo daquele que olha (o espectador) e daquele que faz (o ator).
Tanto ópsis quanto práxis é um vir a ser que resulta dessa dupla polaridade” (FERNANDES,
Silvia IN: WERNECK, 2009, p. 16).
Na verdade, independentemente do filme, o espectador deste espetáculo sabe o tempo
todo que está dentro da cena, posto que está sempre sendo observado pela plateia que está à
sua frente. No entanto, pela atmosfera do espetáculo, na experiência de assistir ao espetáculo
no teatro, ficava latente o sentimento de comunhão coletiva entre todos os presentes, enquanto
que nesta apresentação em que foi filmado o registro teatral, nitidamente se percebe o estado
alterado de presença do público, ainda que entre 2006 e 2009 (período entre a estreia do
espetáculo e o lançamento do filme), o grande público já tivesse absorvido as nuances dos
113
reality shows, sem maiores dificuldades em se exibir para a câmera.
Voltando à peça, o personagem de Serge, Alain, toca a campainha e quando Jeanne
Clement vem atender, pede para visitar a casa deixando a personagem um tanto atordoada. O
que se segue é um diálogo bem construído entre este homem, eufórico com a sincronicidade
entre o nascimento da filha e o fato de encontrar a casa à venda, e esta mulher, ainda tonta
pelo luto recente da mãe e pela rapidez com que os acontecimentos se deflagram. Então
Jeanne o convida para ver o jardim, dizendo que “é muito importante, o jardim”. Neste
momento, sempre seguindo o direcionamento do movimento das plataformas cenográficas
que indicam a continuidade do espaço (assim como nos enquadramentos da câmera que
garantem a organização do espaço para o espectador do filme), entra em cena uma pequena
plataforma indicando se tratar de um pedaço do jardim (com grama sintética, um pequeno
banco e uma mangueira de água), onde os dois personagens passam a se situar, seguido de
uma plataforma maior, a ponto de haver uma árvore frondosa sobre ele. O impacto da entrada
deste cenário em cena pode ser percebido pelo burburinho da plateia, surpresa por ver sair
uma verdadeira árvore dos bastidores. A cena se segue de forma que Jeanne vai até a árvore,
mas Alain não. Ele pede para fotografar e Jeanne não permite. Ela pergunta se ele sabe cuidar
de plantas, ao que ele responde perguntando o preço. “Um milhão e novecentos mil francos” é
a resposta que, mais uma vez, situa a cena em um recorte de tempo e espaço. Ele aceita o
valor e imediatamente liga do celular para o advogado para que este venha até a casa, efetivar
a venda. Jeanne mostra-se cada vez mais atordoada, enquanto procura o mapa da região para
que o caminho possa ser indicado. Desta forma, há uma evolução no nível de tensão que se
estabelece desde o início do espetáculo na personagem principal, com a qual o público tende a
se identificar. Existe uma clara oposição entre a melancolia pelo luto da mãe e a euforia de
tornar-se pai, e a interseção entre estes estados se concretiza na imagem da casa à venda como
um ninho que, esvaziado, se disponibiliza para uma nova família.
Vale lembrar que todo este diálogo se dá com os atores executando ações realistas,
como falar ao celular ou folhear um livro, sobre as plataformas que se movimentam em
rotação e translação, evocando, de fato, a imagem de pequenos satélites em órbita. E, ao
fundo, várias fileiras de arquibancadas, com espectadores que lembram ao espectador que a
cena conta a história dos personagens, e de todos nós. No filme, neste momento, há um
grande plano fechado no rosto da atriz, pelo qual podemos perceber os olhos mareados e o
nariz avermelhado pelo choro suave. Naturalmente, no teatro talvez nem mesmo o público da
primeira fileira tenha tido a oportunidade de ver a atuação da atriz tão de perto, o que
corrobora com a ideia da total consciência da montagem do filme para além do conceito do
114
simples registro, posto que os planos tiram partido daquilo que só a câmera cinematográfica
pode captar.
Em movimento contínuo, da atriz, da plataforma e da câmera, para o espectador do
filme fica concreta a sensação de atordoamento que a personagem vive naquele momento,
captada por um ângulo de câmera, subjetiva, que mostra a personagem de costas, tendo o
público como fundo da cena. Durante o espetáculo, esta cena acontece concomitantemente à
saída da plataforma da sala da casa por um dos lados, enquanto que, pelo outro, volta à cena a
plataforma da árvore, agora com um novo elemento: a atriz Juliana Carneiro da Cunha, que
interpreta a mãe de Jeanne, Aline, sobre uma escada, a podar a árvore. Lembro que desde o
início do espetáculo, a música é um elemento presente, fazendo transições a cada novo
momento que se sucede.
Como foi dito, Jean-Jacques Lemêtre é o músico do Théâtre du Soleil, desde 1979,
compondo para os espetáculos e, na maioria das vezes, tocando diversos instrumentos ao
vivo, durante ensaios e apresentações. A música é um elemento condicionante para a estética
da companhia, funcionando como mais um ator da cena. Em profunda consonância com os
processos criativos da companhia, criando não só músicas, mas, principalmente, a sonoridade
de cada espetáculo, Jean-Jacques trabalha sempre com assistentes (atores que se ocupam da
música a cada trabalho sob sua direção), acompanhando todos os ensaios e todas as
apresentações de cada temporada, além de ser um dos melhores cozinheiros da companhia.
Alguns de seus trabalhos com o Soleil são antológicos, como a música de Tambours sur la
Digue, onde ele orquestrou dezenas de tambores coreanos tocados pelos atores em cena. Em
Les Éphémères, a música segue sendo um elemento essencial, oferecendo a atmosfera de cada
série de cenas, o que também aproxima a experiência ao uso da música no cinema (temas para
personagens, situações, cenários, mudanças de clímax), misturando instrumentos tocados ao
vivo com músicas gravadas e efeitos sonoros (campainha, telefone, etc).
Voltando ao filme, neste momento de entrada da personagem de Juliana Carneiro da
Cunha, a montagem se utiliza do recurso do plano fechado no rosto da atriz Delphine Cottu
para fazer a transição de um momento a outro, sendo que a mudança da música anuncia a
nova situação que irá se estabelecer.
115
Imagem 26 - Juliana Carneiro da Cunha e Delphine Cottu contracenam no espetáculo.
Cartoucherie, 2006. Imagem da temporada francesa.
Aqui se inicia uma das cenas mais poéticas do espetáculo: Jeanne, no momento
presente, observa sua mãe, em um momento passado, podando a árvore. Jeanne fala com sua
mãe, como se ela estivesse viva, ao que Aline não responde em um primeiro momento; com
isto fica claro que se trata de uma suspensão do tempo/espaço cronológico, através de um
recurso absolutamente teatral. Jeanne insiste, dizendo que o médico a proibiu de se esforçar
no jardim, ao que Aline responde de forma não linear, fazendo alusão ao tempo. Assim será
todo o diálogo desta cena, contrapondo as ansiedades de Jeanne sobre a doença da mãe e a
venda da casa às falas arquetípicas da mãe (o cuidado com a filha como se ela fosse uma
criança), de forma que se criam lacunas pelas quais o espectador pode transitar e projetar suas
próprias criações de sentido, novamente fazendo alusão à ideia de um espectador que se
aproxima da imagem do montador no cinema, associando cenas para criar um sentido para a
obra.
O ápice da cena se dá quando a mãe passa a se relacionar com a filha como se ela, de
fato, fosse uma criança; pela movimentação da brincadeira e pelas risadas infantis da filha,
identificamos o tipo de jogo que se estabelece, e isto só se torna possível pela teatralidade da
cena. Naturalmente este jogo é absorvido com facilidade pelo espectador, tanto na peça
quanto no registro fílmico, pois compreendemos que esta é natureza do que é mostrado. Caso
se estivéssemos falando de cenas pensadas para um filme narrativo clássico, certamente teria
que haver aqui algum procedimento como a inserção de uma cena de flashback, envolvendo
uma atriz criança, por exemplo, ou algo semelhante, para que o público pudesse manter a
credibilidade na sequência, sem se distanciar da história. A mãe descreve como ama a filha,
cada parte do corpo, ao que a filha, no tempo presente, indaga quem irá cuidar do jardim.
116
Curioso observar aqui que, na vida real, a atriz Juliana Carneiro da Cunha tem uma filha
chamada Jeanne (Jeanne Dosse); querendo ou não, o conhecimento deste fato acrescenta, para
mim, ainda mais uma camada à idéia da biografia em cena, que levaria o ator a diminuir a
fronteira entre a atuação e a vivência; fico ainda mais tocada pelo amor da mãe pela filha na
cena.
Outro dado interessante, do ponto de vista dramatúrgico, é a metonímia da árvore pelo
jardim, e esta como metáfora da vida, da continuidade da vida. Ou seja, quando a filha
pergunta quem irá cuidar do jardim (ao que a mãe responde apenas colocando seu próprio
chapéu na cabeça da filha), possivelmente ela está falando sobre o vazio do luto e sobre a
descendência. No entanto, como veremos na sequência, as cenas que se seguem mostram o
percurso pelo qual esta filha entra contato com o passado da mãe (o tal cofre no banco),
levando a fatos dos seus antepassados que ela desconhecia até então. Então, cuidar do jardim
passa a simbolizar a responsabilidade com a genealogia familiar, ascendentes e descendentes.
Como se verá, há uma repetição na construção de sequências de cenas que fazem uma
fusão entre diferentes tempos e espaços, ou que mostram um trânsito bastante fluido entre uns
e outros, corroborando com a ideia do espetáculo como o universo dos instantes efêmeros da
vida, constituintes do campo da memória, até mesmo do inconsciente, materializados pelos
diferentes mecanismos de linguagem que, na cena, se traduzem pela movimentação no
espaço, pelo choque entre tempos diferentes e pela não-linearidade dos diálogos. Aqui fica
clara a aproximação entre o universo da psicanálise e do cinema na cena: pelos conceitos de
condensação e deslocamento da teoria freudiana, a cena se utiliza dos mesmos mecanismos
técnicos do cinema para garantir a crença do espectador no que vê, servindo-se também e
principalmente, da teatralidade contida nestes princípios de metáfora e metonímia.49 Portanto,
não é à toa que Mnouchkine, quando perguntada sobre a intencionalidade do uso do cinema
enquanto linguagem no espetáculo, afirma que em nenhum momento pensou em cinema, mas
sim no que seria inconsciente na vida destes personagens e dos próprios atores, o que, a meu
ver, corrobora para a hipótese desta pesquisa.
ALINE – As flores, você sabe, a natureza, ela responde imediatamente. Um pouco
49 De forma bastante simplificada, pode-se dizer que os dois elementos básicos para a interpretação dos sonhos
proposta por Sigmund Freud seriam a condensação e o deslocamento. A condensação seria o mecanismo pelo
qual há uma fusão de ideias que possuem traços em comum, envolvendo o conteúdo latente (reprimido) e
manifesto (imagens da memória). O deslocamento, por sua vez, seria o, mecanismo que provoca uma alteração
na ênfase de um elemento relevante (e reprimido) a outro, de caráter aparentemente inofensivo, como forma de
defesa e mascaramento do inconsciente. A estes dois elementos, Lacan associou as figuras de linguagem
metáfora e metonímia, também presentes nas análises teóricas sobre os procedimentos da linguagem
cinematográfica.
117
de água e pffff… elas florescem. Elas são bonitas, não? Não é somente que elas são
bonitas, elas são gentis também. Elas são adoráveis, você não acha? Você tem que
falar com elas, de tempos em tempos. Nunca lhes apontar o dedo. Nós falamos com
elas assim (a atriz acaricia as flores), nunca assim (a atriz aponta o dedo ao rosto da
outra atriz). É simples.
JEANNE – Mamãe, quem vai cuidar do jardim? Eu acho que ele não sabe nada…
ALINE – Meu bebê, minha menininha… (elas se abraçam) Eu te amo.
JEANNE – Mamãe, ele me espera. (Elas se separam e Jeanne faz menção de ir)
ALINE – Jeanne! Espere! (Ela tira uma correntinha com um crucifixo do pescoço e
oferece à filha, que volta e pega a corrente com esforço, já que a plataforma com o
cenário da mãe é puxado para fora da cena, separando mãe e filha. A filha caminha
em direção à mãe, que estende os braços a ela – como se costuma fazer com uma
criança pequena que dá seus primeiros passos –, sem que no entanto elas se toquem,
finalizando a cena, como a memória que se apaga).
ALAIN – Senhorita! (A cortina se fecha diante dela, que volta o olhar e está
novamente no tempo presente). (LES ÉPHÉMÈRES, 2006)
O texto exemplifica concretamente o tipo de emoção que se quer causar no espectador,
misturando lirismo e melancolia com uma harmonia ímpar. Na peça, como disse, esta é uma
das cenas mais marcantes e, no filme, acrescenta-se que ao fundo do quadro, entre as atrizes
que atuam como mãe e filha, está uma criança da plateia, uma menina que poderia ter a idade
da personagem evocada como criança pela mãe, e vemos o olhar complacente das atrizes
impulsoras do cenário, multiplicando as camadas de sentido para o espectador. Assim, a cena
segue até seu final, quando Alain apresenta seu advogado, munido da papelada para o
compromisso de venda da casa, e a convida para sentar e brindar com champagne o
nascimento de sua filha Anna e a compra de sua nova casa. Jeanne, atordoada, silencia. A
cena termina com o cenário que é encaminhado para a saída de cena, ao som da música e da
voz do ator que faz o advogado, criando o efeito de fade out do cinema, no espetáculo teatral.
No filme, este efeito é reforçado pelo distanciamento da plataforma da câmera, seguido pela
cortina que se fecha sobre a imagem desta.
Na peça, e no filme, o que se segue é o início de outra cena, com a plataforma de
cenário entrando pelo lado oposto, apresentando uma nova história, com novos personagens.
Vemos então Juliana Carneiro da Cunha já caracterizada como outra personagem, iniciando
uma nova proposição: uma mãe que se prepara para o casamento da filha. A ideia da
montagem cinematográfica que surge a todo instante é dominante neste espetáculo, fazendo
com que o espectador se mantenha ativamente criativo diante do que vê: é a mesma
personagem? Qual a relação entre as histórias? Elas se cruzam ou são independentes? Cada
um monta seu próprio filme.
118
Imagem 27 - Juliana Carneiro da Cunha como a mãe da noiva.
Cartoucherie, 2006. Imagem de divulgação da temporada francesa.
Atento-me somente às cenas escolhidas para exemplificar esta pesquisa (uma escolha
árdua posto que cada sequência de cenas fornece material para inúmeras análises, igualmente
ricas), voltamos nosso olhar para a cena Aux Archives, que abre o Ato II. Esta cena é
sequência de Un Merveilleux Jardin, que inicia o Ato I, de forma que há uma repetição na
disposição das cenas pela duração do espetáculo. Novamente a cena se inicia com o músico e
sua atriz assistente introduzindo a música tema desta história, enquanto surge a plataforma
com o cenário de uma sala de consulta nos arquivos gerais, onde se vê Jeanne Clement
esperando para ser atendida por uma senhora que tenta, em vão, abaixar o assento de sua
cadeira giratória. Diante desta impossibilidade, a senhora senta-se assim mesmo, o que a faz
ficar bastante superior à outra personagem, criando um efeito cômico que traz leveza à cena.
Em seguida, Jeanne conta sobre uma carta escrita pela mãe, deixada em um cofre no banco
para ser lida após a sua morte, na qual ela conta sobre seus pais, avós de Jeanne, Alexeï e
Tatiana, dos quais ela nunca havia falado em vida. Ela mostra também uma foto de sua mãe,
ainda criança, com uma mulher, Nora, com a inscrição: Bretanha, setembro de 1943. Jeanne
conta que Nora Altunian foi a senhora que criou sua mãe depois que seus avós foram
deportados, conforme estava escrito na carta. “JEANNE – Mas quando e como, eu não sei.
Ela nunca me disse nada. Eu nunca perguntei nada. (ela se emociona) Me desculpe.” (LES
ÉPHÉMÈRES, 2006), assim continua a personagem, informando o pouco que sabe, o
sobrenome Menuhin, e, quando indagada, mostra o crucifixo que ganhou da mãe, sem saber,
no entanto, se ela teria sido batizada. A arquivista pede licença e sai, deixando Jeanne sozinha
na cena, com o olhar fixo, porém absolutamente ativa na cena. Penso aqui em uma breve
associação entre o trabalho do ator neste espetáculo e as experiências de Meyerhold,
considerando a figura do ator no cinema, sintetizada pelo movimento exterior ao seu corpo:
119
Meyerhold trabalha, então, com o que chamo de “imobilidade dinâmica” ou de
“dinâmica do imóvel”. Seus atores podem estar imóveis, mas isso não quer dizer
falta de movimento ou expressão, muito pelo contrário. De forma condensada,
sintética, esse movimento e essa expressão surgiriam potencializados. (OLIVEIRA:
2008, p. 29)
Então a iluminação muda, transformando a sala clara em um espaço na penumbra e o
som de um violino em uma melodia judaica marca o início de um novo momento: Jeanne,
mergulhada nas lacunas de sua memória vê diante de si uma nova cena: Aline, criança, lendo
um livro, enquanto Nora (interpretada por Juliana Carneiro da Cunha) avisa que está subindo
ao sótão, ao seu encontro. A cena toda se passa na penumbra (penso nas sombras da memória
e do inconsciente) e o diálogo entre as duas demonstra um ambiente de afeto e apreensão.
Nora, então, comenta que, naqueles tempos, seria importante que Aline aprendesse uma
oração. Para saber se a menina saberia do que estava falando, Nora pergunta se Aline conhece
alguma oração, ao que Aline começa a declamar o princípio de uma reza judaica. A cena é
auto-explicativa, e começa a trazer ao espetáculo as cores de um discurso político que, como
Mnouchkine explica em notas no programa, se passa no íntimo, dentro da alma, através da
carne.
Imagem 28 - A pequena Aline lê um livro no sótão.
Cartoucherie, 2006. Imagem da temporada francesa.
Aqui aproveito para comentar o trabalho de atuação das atrizes. Quando a menina
declama a oração, Nora se emociona diante do risco de Aline ser pega, por descuido, orando
em hebraico – o que denunciaria sua origem judaica diante da guerra. Imediatamente comenta
o calor no sótão e tira o próprio casaco. Esta ação encerra muitos sentidos, traduz o ato de
desnudamento da situação, mostra a “temperatura” do risco iminente, ilustra a condição da
personagem de fato enrubescida pelo perigo e pela necessidade de ação, e prepara a cena para
a ação seguinte: a retirada da correntinha com o crucifixo e a sua entrega para a criança.
Portanto, poderia se considerar a ação realista, até mesmo naturalista. No entanto, basta
120
lembrar que tudo isto ocorre sobre uma cama devidamente apoiada em uma plataforma
redonda que se movimenta em translação diante do público para compreender que muitos
outros vetores estão em jogo na cena, descolando-a de qualquer estética realista. Penso ainda
que outros elementos corroboram para este efeito, como o ritmo de movimentação das
plataformas trazendo a descontinuidade do cinema para a cena, a atuação de caráter
acentuadamente performativa, a presença de atores impulsores na cena e a ausência de quarta
parede evidenciada pelo público bifrontal. Pode-se falar aqui, novamente, de uma experiência
original, criada pela fusão dos princípios do teatro e do cinema, que não pode ser analisada de
forma a isolá-los.
Nora segue comentando que irá ensinar uma outra reza, que ela própria aprendeu
quando criança em armênio, mas que irá ensinar em francês. A atriz começa a declamar o
“Pai Nosso” e explicar o sentido de palavras como “santo”, “mártir” e “fé”, fazendo alusão
aqueles que preferem morrer a renegar sua fé, enquanto a música cresce, preenchendo a
atmosfera e conferindo dramaticidade ao ato generoso da senhora com a pequena criança
judia em plena Segunda Guerra Mundial. Enquanto Nora continua explicando os fundamentos
do cristianismo à menina, no tom de uma fábula sobre Jesus Cristo, a plataforma de cenário se
encaminha para saída onde se cruza com a arquivista que entra em cena por ali, criando a
sensação de fusão entre as cenas de uma memória projetada e do presente pelo movimento,
fazendo alusão à montagem cinematográfica.
Voltamos, então, para o tempo presente, para a sala da arquivista, enquanto o som da
voz de Nora ensinando sobre a crucificação de Jesus Cristo e sobre as dificuldades de ser
cristão entre os judeus, em oposição ao contexto do nazismo, ainda se pode ouvir, sugerindo
uma superposição de sentidos bastante complexa: na sala dos arquivos, onde se depositam as
memórias de toda uma nação, pode-se compreender que a história da humanidade oscila
pendularmente, transformando o oprimido em opressor, ao sabor dos tempos. Quando a cena
no cenário da sala de arquivos é retomada, a personagem Jeanne encontra-se na mesma
posição em que ficou ao final da sua cena anterior, criando um efeito de continuidade que o
espectador identifica como um código essencialmente cinematográfico, só que, aqui, no
âmbito da teatralidade da cena.
A arquivista, então, conta que os avós de Jeanne foram presos juntos, em um
determinado endereço, em um determinado dia e hora, para depois seguirem para Auschwitz.
Pelas datas encontradas, fica claro que a foto da menina Aline, na Bretanha, foi tirada pouco
antes da deportação, o que nos faz compreender que a menina se salvou por muito pouco,
trazendo um dado trágico para a vida da própria personagem Jeanne. Em seguida a senhora
121
mostra um pequeno recibo feito a mão que prova que Alexeï e Tatiana eram alfaiates e se
oferece para fazer uma cópia do documento. Quando Jeanne pergunta se pode guardar o
original, essa nega, dizendo que o documento pertence aos Arquivos Nacionais. Aqui
novamente percebo uma dimensão política da cena com a assinatura do Soleil, posto que fica
ilustrada a dimensão das consequências das guerras do século XX na França, e em toda a
Europa: os vestígios da vida íntima deflagram os horrores vividos naqueles tempos e, por isto,
deixam de ser propriedade privada para tornar-se ícones do trauma mundial. A cena finaliza,
mais uma vez, em fade out, com a plataforma desaparecendo atrás de uma das cortinas
laterais, ao som da arquivista que comenta os pequenos detalhes descritos no recibo, pequenas
pistas sobre uma ancestralidade sempre projetada, por mais que seja conhecida.
Em Un Bel Instant, a cena começa com Jeanne tocando a campainha de um prédio
que, pelos objetos de cena, percebemos que se trata do tempo atual. Pelo interfone ela fala
com uma senhora que teria sido vizinha e cliente de sua avó (ela identificou o endereço
através do recibo encontrado nos arquivos) e diz que busca informações sobre o que teria
acontecido a seus antepassados. A senhora silencia, criando tensão e, neste momento, entra
em cena uma plataforma com o cenário de uma pequena sala de estar, com um piano tipo
armário sendo tocado por uma das atrizes, a avó, enquanto o ator que seria o avô canta uma
melodia em alemão; as outras atrizes são as duas irmãs, excitadas com o vestido de noiva que
acaba de ficar pronto. Todos tomam xícaras de chá, salientando que provam também
verdadeiros torrões de açúcar (evidenciando a escassez de alimentos pela guerra). Até que a
campainha soa, o casal judeu se entreolha, mas fica evidente que é apenas o noivo, ansioso.
As irmãs cobrem o vestido e saem acompanhadas pelo noivo, cruzando com Jeanne, que
observa o flashback por detrás das grades do portão do prédio, em mais uma alusão aos
procedimentos de manipulação do tempo no cinema. Assim termina o flashback e a senhora
explica que o vestido de casamento teria sido feito para sua irmã, e segue contando o que
havia passado: “Tenho que te dizer uma coisa.” E a plataforma desaparece atrás da cortina.
Em Le Pardon, a cena se abre com duas moças, as irmãs que conhecemos na cena
anterior desta série, jantando uma sopa à luz de velas, com bastante voracidade, a ponto de
lamberem o prato. Ao analisar o cenário, percebemos que se trata do período da guerra. O
telefone toca e uma delas vai atender enquanto a outra retira os talheres e pratos. No rádio,
uma melodia repetitiva, com um chiado intermitente. A moça volta e fala para a outra que o
policial avisou que os alemães estariam no bairro, e haviam bloqueado a rua. A tensão se
estabelece, elas desligam as velas e o rádio. Uma se lembra: “E os Menuhin?”. Imediatamente
entra em cena uma plataforma com uma porta, na qual, “do lado de fora”, batem o casal
122
Menuhin, pedindo abrigo às vizinhas. As irmãs escutam em silêncio o pedido de acolhimento,
“só por uma noite”, paralisadas de medo. Uma delas não aguenta e corre para abrir a porta,
mas a outra a retém em uma breve disputa física, que pode ser ouvida pelo casal do outro lado
da porta.
Neste momento, o movimento de translação do cenário é intensificado pelos
impulsores, aumentando ainda mais a ideia de tensão no ambiente. Até que Alexeï pede as
jóias a Tatiana, as coloca dentro de um envelope e as transpassa pela porta, avisando que se
trata de uma carta destinada à Nora Altunian, com quem está a pequena Aline, na Bretanha.
Desequilibrada pela sensação de impotência, uma das jovens vai até a porta e pega a carta, ao
que Tatiana, em seu desespero, pede para que Fanny, a moça, abra a porta e seu coração, que
não os deixem, pois os alemães os levarão. Diante da porta fechada, o casal foge à procura de
outra saída, e Fanny, procurando justificar sua impotência, pede a outra que esqueça o que
houve. Forma-se aqui um belo quadro no registro fílmico: a plataforma segue se distanciando
da câmera, até que segundos antes de se fechar a cortina, a atriz diz: “Oublie!” (Esqueça!), e a
cena se esvai da visão do público.
Em Un Endroit Merveilleux, uma das cenas mais longas do espetáculo, ao abrir a
cortina vemos uma plataforma repleta de areia representando uma praia da Bretanha onde está
Aline, criança, brincando. A música sugere um ambiente infantil, lúdico, enquanto Aline
procura bichinhos entre as pedras, portando a correntinha com o crucifixo bem à mostra.
Neste instante, entra em cena um soldado alemão, que inicia um diálogo, em alemão, com a
criança, que não responde. À música é acrescentada uma nova melodia, com notas mais
graves, ilustrando a criação da tensão na cena. Abro parênteses para comentar outro exemplo
de fusão entre biografia e ficção. O soldado alemão é atuado por Duccio Bellugi-Vannuccini,
de origem italiana, um dos atores veteranos da companhia, conhecido por seu incrível talento
no teatro físico – apesar da baixa estatura – e no humor, sendo um dos atores principais no
trabalho com as máscaras. Nesta cena, pelo fato de o personagem falar alemão e não ser
entendido pela criança, o ator explora alguns traços da pantomima, o que traz humor e crítica
à cena, fazendo alusão também ao personagem clássico de Charles Chaplin, o Ditador, que
flerta com o clown. Ouso dizer que o tom desta cena tem origem justamente na junção destes
elementos, e que, fosse outro ator, a cena teria um colorido menos amplo. Além disto, é
curioso perceber que, nesta cena, no filme, Aline é feita pela atriz mirim Galatéa Bellugi, que
vem a ser filha do próprio Duccio na vida real (na temporada, as várias crianças que
compunham o elenco da peça, se alternavam nos papéis, garantindo períodos de descanso
entre si).
123
Imagem 29 - Pai e filha dividem a cena, observados por Andreas Simma.
Cartoucherie. Imagem de divulgação da temporada francesa, 2006.
Retomando a história da cena, Aline consegue salvar sua pele e de seu pai (que entra
em cena em seguida), declamando o “Pai Nosso” em francês, conforme aprendeu com Nora.
Esta aparece ao final deste trecho convidando-os para jantar e despedindo-se do soldado.
Outra bela imagem se forma quando Nora, depois de cumprimentá-lo, sobe em sua bicicleta
(sobre a plataforma), e congela em uma imagem que sugere a senhora sobre a bicicleta em
movimento. O soldado segue em cena, intrigado com a menina, até que se distrai caçando os
pequenos animais escondidos na pedra. Enquanto esta cena se esvai pela saída lateral, do
outro lado, aparece Jeanne, nos dias atuais, sentada em um banco na mesma praia da
Bretanha, olhando um mapa. Assim, o passado, ligado à memória, e o presente, se articulam,
o que é indicativo da aproximação da ideia de montagem cinematográfica, acentuada pelo
ritmo da alternância das plataformas.
Quando terminamos de compreender que ela está neste espaço/tempo, sobre a mesma
praia, pelo outro lado, surge um pesquisador científico que, com seus instrumentos, faz
medições na praia. Eles iniciam uma conversa posto que ela pede informações sobre as
cidadezinhas do entorno. Ela pergunta sobre um hotel que recebia famílias desde a época da
guerra e o senhor responde que sim, conhece o lugar, mas que se tratava de um albergue, no
qual sua tia-bisavó trabalhava, Morgane. Então eles decidem telefonar pelo celular à
Morgane, para falar sobre a hospedaria. Stang Bihan. Gilles, o sobrinho inicia a conversa e
passa o telefone à Jeanne que, posicionada frontalmente para o espaço da cena, mantém seu
124
olhar enquanto que sua plataforma sai pela lateral, sendo a última fala sua antes de se encerrar
a cortina: “Deve ter sido um lugar maravilhoso!”.
Pelo outro lado, fazendo uma montagem por fusão, adentra o espaço outra cena repleta
de poesia: ao abrir a cortina vemos uma plataforma com Morgane, a funcionária da
hospedaria, jovem, e Aline, criança, na cozinha, lidando com baldes de água e, atrás de si, um
lençol branco onde vemos refletido o filme que é projetado ali. Logo em seguida, outra
plataforma se apresenta, com os pais de Aline, Alexëi e Tatiana, e Nora, projetando e
assistindo ao filme Stagecoach (1939) de John Ford. O quadro que se forma no filme é
belíssimo: vemos os atores sobre os cenários, mas desta vez, a única coisa que se move é a
imagem projetada. Em seguida, Alexeï comenta que ganhou a bobina do filme de um primo
que vivia em Nova Iorque e havia enviado dias antes da tomada de Paris pelos alemães.
Neste momento, enquanto o personagem conta curiosidades sobre o filme, a
plataforma com o projetor começa a ser movimentado em translação, de modo que o filme vai
sendo projetado sobre toda a plateia, novamente multiplicando as camadas de sentido. Penso
que, com esta ação, o público passa a estar incluído na encenação, posto que uma
arquibancada de plateia passa a ser o suporte do filme para a outra, tornando concreta a
comunhão de todos os presentes na sala; penso também que se evidencia o procedimento de
projeção do cinema: se até então o público projetou sobre a cena suas impressões próprias,
neste momento o jogo se inverte e são os atores que passam a “projetar” sobre os
espectadores; penso, ainda, que a quarta parede teatral é, assim, absolutamente demolida e
atores e público podem olhar-se diretamente e constatarem suas mútuas presenças, ainda que
tenham a arte (teatro e filme) como filtro. E assistir a isto através do registro fílmico redobra,
literalmente, o ambiente de afeto que se instaura.
De repente se ouve o som de objetos caindo, seguido de um xingamento em alemão,
que nos faz perceber, personagens e público, que aquele soldado alemão está na casa. Todos
se paralisam, Nora, fazendo sinal para que se escondam, com a mão em frente ao projetor, vê
seu sinal ampliado no espaço (como se todos, personagens e público devessem atentar para o
perigo iminente). Ela leva a todos para fora da cena, e ordena que Morgane, distraia o
soldado, o que a deixa em pânico. O soldado aparece na cena derrubando o lençol que fazia as
vezes de tela e a cena que se segue tem novamente o tom de humor clownesco criado pela não
comunicação entre os personagens e pela atitude crítica em relação à situação que se
estabelece. Então Nora aparece e, fingindo uma ligação telefônica com um suposto
comandante, consegue amedrontar o soldado que vai embora, sem se dar conta da presença da
família judia no recinto. Ao final todas comemoram em um riso contagiante que domina
125
também a plateia, em um efeito catártico, bem capturado no filme.
A pequena Aline se junta à dupla de senhoras e, enquanto o cenário desaparece por um
lado, pelo outro entra novamente a praia com Aline adulta e o pesquisador, rindo das
lembranças de Morgane ao telefone (como se toda a sequência de cenas acontecidas no
albergue fossem as lembranças de Morgane). Todos saem pelas laterais e entram em cena o
senhor, marido de Nora, com um pequeno casco com terra e plantas e começa a ensinar à
pequena Aline como se deve tratá-las (lembramos que na primeira cena, Aline poda uma
árvore e ensina à filha como se deve tratar das plantas, ao que Jeanne, preocupa-se com quem
irá cuidar do jardim). A música, a mesma da trilha sonora do filme de John Ford projetado,
reaparece e cresce, reforçando a dramaticidade da cena (o espectador é levado a rememorar
tudo que ele sabe sobre a personagem Aline, revisitando a trajetória dela – e de todo o
espetáculo – com uma dose carregada de empatia). Lembro que Aline é a personagem que
ganha elementos da biografia de Mnouchkine como parte de sua história, portanto, há uma
aproximação muito grande entre a personagem e a encenadora/cineasta.
Imagem 30 - As atrizes comemoram o sucesso do estratagema contra o soldado alemão.
Cartoucherie, 2006. Imagem de divulgação da temporada francesa.
Desta forma, rememorar a trajetória de Aline pelo espetáculo poderia ser também uma
forma de rememorar a trajetória de Mnouchkine em seu Théâtre du Soleil, personificada na
presença de Juliana Carneiro da Cunha, atriz que interpreta Aline adulta e, depois, Nora, sua
cuidadora, figura imprescindível para o trabalho da companhia.
Ao blackout que se segue, vemos os agradecimentos dos atores que tomam a cena por
todo o espaço, agradecendo a ambas as plateias. “Episódios sonhados, invocados, evocados,
improvisados e encenados por… (segue-se a lista com os nomes de todos do elenco)”, assim
126
termina a legenda do registro fílmico de Les Éphémères, informando ainda que o registro foi
feito por quatro câmeras, operadas por Jean-Paul Meurisse, Jordânia Chouzenoux, Bernard
Zitzermann e Helene Brugnes, e que o filme foi rodado nos dias 31 de maio e 1 de junho de
2008, diante do público da Comedie de Saint-Etienne.
Por força do momento, elegi apenas uma sequência de cenas para a análise mais
profunda sobre os mecanismos de hibridização da cena, sob pena de deixar de fora inúmeras
outras possibilidades de associações. Como exemplo, há mecanismos interessantes como a
repetição de nomes entre os personagens de cenas diferentes, multiplicando as possibilidades
de criação de narrativas pelo público: uma criança, cuja mãe sofre maus tratos do pai, tem o
mesmo nome, Gaëlle, de uma introspectiva dona de um bar, que nunca fala (conhecemos seu
nome pelo logotipo da porta: “Chez Gaëlle” (“Casa da Gaëlle”); seriam a mesma pessoa? Há
também cenas com forte engajamento físico por parte dos atores (como o rapaz em crise de
abstinência esmurrando a porta da casa dos avós no meio da madrugada), personagens em
situações aparentemente banais (um casal que corta salames enquanto aguardam o retorno da
filha), entre inúmeras cenas e sequências que compõem um verdadeiro mosaico da alma
humana, reforçando a tônica do efêmero, das breves bolhas de sabão de sentimentos, que se
criam e desfazem a todo momento, mantendo o espaço criativo do próprio espectador.
Les Éphémères desafia o princípio de unicidade do cinema como a arte do
sequenciamento dos planos em relação ao teatro, posto que cria uma montagem das
sequências de cenas ao vivo, diante do público, através do movimento contínuo das
plataformas de cenários e do entrecruzamento das histórias seriadas. O espectador monta o
espetáculo na sua cabeça, de forma que cada um cria sua própria narrativa particular pela livre
associação das imagens.
No cinema, a narrativa procede por elipse (o “corte” ou mudança de plano); o olho
da câmera é um ponto de vista unificado que constantemente se desloca. Mas a
mudança de tomada pode provocar interrogações. A mais simples delas é: do ponto
de vista de quem é feita a tomada? E a ambiguidade de ponto de vista latente em
qualquer narrativa cinematográfica não tem similar no teatro. Na verdade, não se
deve subestimar o papel esteticamente positivo da desorientação no cinema.
(SONTAG:1987, p.109)
Em Les Éphémères, de alguma forma o efeito da desorientação do cinema chega à
cena teatral, oferecendo ao público e aos atores uma experiência estética única, um momento
de raro encontro entre o fazer artístico e o mundo contemporâneo.
Aproveito, ainda, para tecer algumas considerações gerais sobre este espetáculo e seus
elementos. Em primeiro lugar, recuperando o que foi considerado a respeito do primeiro
127
cinema em relação a sua aproximação com o sistema de views/mostras, herdado do teatro
vaudeville, em Les Éphémères, penso que se pode imaginar cada cena como uma destas
“atrações”, especialmente as que não tem sequenciamento longo. Isto corrobora para a criação
da sensação de se estar diante de um filme, ou mesmo diante de uma série televisiva ou da
Internet, onde os mesmos personagens passam por diferentes situações, sem que haja muita
linearidade na narrativa, necessariamente. Através deste recurso, o espetáculo alcança mais
níveis de empatia com o público que lhe é contemporâneo, pois “falam a mesma língua”.
O imaginário cinematográfico está em toda parte, e nos impregna até em nossa
forma de falar ou de ser. Quem, ao percorrer de carro um longo trajeto numa vasta
paisagem aberta, não pensou, com a ajuda da música do rádio, numa figura de
travelling mergulhando na tela panorâmica de seu pára-brisa? (DUBOIS, 2011, p.
25)
Outro aspecto que me chama a atenção é se estas plataformas de cenários móveis,
criadas por meio da adaptação dos dollys de travelling para as câmeras (plataformas), que
passam a transportar as próprias plataformas de cenário, possam ser pensadas como pequenos
sets de filmagem volantes. Tal utilização transfere o movimento e a velocidade que nos
acostumamos a ver no cinema para o teatro. Percebo também uma clara aproximação entre
estes dispositivos cênicos e os screens de Gordon Craig,50 como uma atualização da ideia de
que o próprio cenário seja um discurso do movimento, uma proposta para um novo “palco
cinético” que absorve as ferramentas do fazer cinematográfico, garantindo uma adesão
imediata do olhar espectador domesticado pela popularização da estética audiovisual.51
Também gostaria de comentar a sintonia deste espetáculo e do “projeto” Soleil com as
proposições conceituais de Adolphe Appia, em relação ao espaço do teatro. Proponho uma
análise das modificações do espaço cênico e plateia da Cartoucherie para a montagem do
espetáculo Les Éphémères, à luz dos conceitos de Adolphe Appia no que diz respeito ao
espectador atuante, ao espaço unificado que propicia a ideia da obra como uma ação social de
comunhão, até chegar à hipótese da própria Cartoucherie como a “Catedral do Futuro”
proposta pelo arquiteto e cenógrafo suíço.
É dentro deste contexto que procuro aproximar as experiências práticas do Théâtre du
Soleil às proposições teóricas de Adolphe Appia, quando, em suas palavras, “Pela primeira
vez na história do Teatro o problema da arte dramática é posto nestes termos revolucionários,
50 As screens são espécies de telas abertas que se articulam como biombos que podem se fechar em cubos e que
seriam utilizadas juntamente com a concepção de über-marionette de Gordon Craig, na qual o ator seria
completamente controlado pelo encenador 51 O “palco cinético” seria, portanto, o conjunto das screens de Craig, trazendo para o espaço da cena o
movimento e a tridimensionalidade que irão comungar com o corpo do ator.
128
com a audaciosa negação de que a arte dramática é a síntese harmoniosa de todas as artes,
donde nasce verdadeiramente o Teatro Moderno, teoricamente e no sentido de uma estética de
cena.” (APPIA, 1919, p.24)
Para cada época, um espaço. Estrutura e representação à procura de um conceito capaz
de dar conta da complexa percepção espacial que cada sociedade experimenta. O que
considerar nesta busca? Como traduzir a sensorialidade espacial da vida no espaço da cena?
Se as mesmas questões alimentam o ato criativo de cada época, as suas respostas vêm
imbricadas de tantos elementos quanto se possa pensar, seguindo sempre, porém, a liderança
das inovações tecnológicas que catapultam o ser humano e seus modelos de representação
para adiante. Este “adiante”, no entanto, guarda em si um caráter circular, espiralado que
avança e retrocede também verticalmente, possibilitando o eterno resgate daquele que o
antecede.
Alguns momentos da história da humanidade foram particularmente férteis e
conseguiram traduzir a efervescência do momento político e social no fazer artístico. Assim
foi com as vanguardas européias, por exemplo, que explodiram a representação artística do
século XIX na ânsia de dar conta de um mundo em rápida e efervescente ebulição, no qual
conceitos de liberdade e subjetividade ganhavam matizes absolutamente revolucionários.
Dentro deste contexto, alguns artistas trouxeram contribuições tão potentes e relevantes no
campo da teoria e da prática que ainda hoje apresentam desafios e provocações para artistas e
espectadores. Homens de teatro, por exemplo, extasiados com os avanços tecnológicos do
mundo que os cercava, alinhados às recentes descobertas da psicanálise e da ciência cognitiva,
ansiavam por encontrar a cena que desse conta de dialogar em pé de igualdade com aquele
mundo e com aquele público. A ideia de representação é posta em cheque, portanto, visto que
as ideias de experiência, experimentação e fruição se problematizam diante deste novo
homem científico.
Adolphe Appia, arquiteto e encenador suíço, um dos principais responsáveis pela
renovação da cena no início do século XX, foi preciso ao diagnosticar a impossibilidade do
teatro enquanto representação da realidade, posto que a materialidade bidimensional de
cenografia não pode compor um conjunto plástico harmônico com a tridimensionalidade dos
corpos dos atores em cena, o que leva necessariamente à percepção de que o espaço cênico é
campo para outros tipos de jogos ilusionistas. Com o advento da luz elétrica na cena, são
postos às claras a artificialidade limitante dos telões pintados, fortalecendo a necessidade de
pesquisar outro uso do espaço que não só deixasse de se confrontar com a imagem dos atores,
mas que ampliasse as suas possibilidades de jogo na tridimensionalidade. Se a dramaturgia
129
encontra o tempo como suporte, é o espaço onde a encenação pode atuar de modo a
concretizar a cena como um jogo entre o ator e o espectador. E no momento em que a
encenação passa a figurar no topo da hierarquia entre os elementos da cena é que o espaço
vira objeto de pesquisa e experimentação em diversos sentidos. Afinal, como diz Oliveira
(2008, p.4): “Cada obra deve ter não apenas seu próprio cenário, mas seu próprio teatro (toda
a sala e a fachada inclusive!) sem falar dos princípios da encenação. Cada obra deve criar seu
teatro!”
Para Appia, o ápice da reforma do espaço cênico seria aquele em que o movimento e o
ritmo pudessem ser traduzidos pelas linhas e planos a compor a cena no palco, influenciado
pelas pesquisas de Jacque-Dalcroze, o jogo de luz e sombra criado pela iluminação elétrica e
oxídrica criasse o ambiente simbolista e abstrato que se perseguia à época e que o espectador
estivesse imerso de tal forma neste espaço que deixaria a passividade da observação para se
tornar atuante. Desta forma, a experiência artística atingiria a sua plenitude mais ligada aqui à
concretização da ação social de comunhão e encontro espiritual do que à ideia de “obra de
arte total” de Richard Wagner. Neste sentido, diz Appia:
O autor propõe-se voltar a outro estudo sobre a influência na vida da arte: e
desenvolver-lhe as consequências. Por exemplo: as nossas salas, quaisquer que elas
sejam, adquiriram uma elasticidade que não escapa a ninguém. Reuniões políticas,
religiosas, conferências, concertos, etc., realizam-se frequentemente num circo, num
teatro e, por outro lado, o teatro transporta-se de boa vontade para o circo. A etiqueta
rigorosamente fixada nas fachadas dos nossos edifícios começa a voar a todos os
ventos. A música, a dança, entraram na comédia e o drama na ópera. A nossa
existência privada e a nossa vida em público já não são estritamente limitadas se não
pelo passado. O lar familiar transborda para a rua e a vida ao ar livre irrompe das
nossas janelas, o telefone torna as nossas conversas quase públicas e já não tememos
expor os nossos corpos à luz do dia, e, portanto, as nossas almas. Também
experimentamos uma necessidade cada vez mais imperiosa de nos reunirmos, seja
ao ar livre, seja numa sala que não foi destinada, antecipadamente a uma das nossas
manifestações públicas. Com exclusão das outras, mas, portanto e pelo contrário, a
única razão será simplesmente reunirmo-nos, tal como na catedral do passado. A
palavra escapou-me! Não, retomarei. Sim: é a catedral do futuro que lhe chamamos
com os nossos melhores votos! Recusar-nos-emos sempre a correr de um lugar para
outro para actividades que têm de olhar-se de frente e penetrar-se. Queremos um
lugar onde a nossa comunidade nascente possa afirmar-se nitidamente no espaço; e
um espaço bastante flexível para oferecer-se à realização de todos os desejos da vida
integral! (APPIA, 1919, p. 196)
Vê-se aqui a importância de a obra de arte cênica envolver três aspectos principais,
sem hierarquia de valor entre si, a saber, o texto, o ator e o público, em perfeita sintonia e
comunhão, atingida através da encenação. Voltando o olhar para o espetáculo do Théâtre du
Soleil em questão, Les Éphémères, conseguimos associar as pesquisas de Appia acerca das
características do espaço/obra que levaria à plenitude da experiência à encenação da
130
companhia. Trazendo o espectador para dentro do espaço da cena, Mnouchkine promove o
esperado espaço unificado que propõe Appia, visto que cada arquibancada de plateia
emoldura a cena uma para a outra, ou seja, o que o espectador vê é a cena que transcorre no
espaço cênico, e, atrás, espectadores em condição idêntica à sua, também afetados pelo
espetáculo. Fica clara, assim, a sintonia entre as proposições de Adolphe Appia e as
provocações estéticas que o espetáculo do Théâtre du Soleil promove. Naturalmente, se
pensarmos na própria trajetória artística da companhia e o hábito de transformar os galpões da
Cartoucherie de acordo com a temática de cada peça, percebemos que isto se dá não só em
termos de configuração e decoração do espaço, mas também através da música e da
gastronomia que acompanham o tema e que envolvem completamente o espectador que vem
ao teatro em uma atmosfera outra, mágica, transportada, através da qual se instaura um espaço
ritual que dura uma determinada quantidade de horas das quais saem todos transformados,
atores e espectadores. A Cartoucherie seria, portanto, uma consagração prática e ilustre da
sonhada Catedral do Futuro, onde, em verdade, todas as épocas e sociedades se presentificam,
em constante movimento através das experiências ali vividas, rompendo com a cronologia
para instaurar o tempo aiônico, próprio da fruição artística. Entendo neste sentido a ideia de
tornar os espectadores verdadeiramente atuantes, posto que são peças essenciais para o jogo
que se estabelece.
A enunciação deste postulado (necessidade da tríade atuante, texto, público) é matriz
de toda arte cênica, inclusive da performance e da arte ritual. Por meio das visões
teatrais e das projeções utópicas de Adolphe Appia (A Obra de Arte Viva, 1919) essa
matriz pode ser pensada em seus limites mais extensos: Appia fala numa “sala
catedral do futuro” onde se prescinda de espectadores, só havendo atuantes. Craig
sugere marionetes como intérpretes, em vez de seres humanos. (GUINSBURG,
2002, p 253)
Naturalmente, o público que frequenta a Cartoucherie não é convidado a interferir na
cena, artisticamente. Embora haja bastante interação entre público e artistas nos intervalos de
tempo que antecedem e sucedem a apresentação de cada ato, o público apresenta-se como
voyeur do acontecimento, ainda que eventualmente possa ocupar um lugar ativo (como
quando torna-se suporte para a projeção de um filme, visto por todos os presentes, por
exemplo).
Percebo com emoção quantos matizes surgem a cada vez que relaciono algumas das
principais contribuições dos grandes teóricos das artes cênicas e os espetáculos que surgem
através dos processos de criação absolutamente práticos que o Théâtre du Soleil promove.
Para utilizar uma expressão cara à Ariane Mnouchkine, as “evidências” de que os seus
131
espetáculos estão em sintonia fina, com que se espera como ápice das artes da cena, ficam
bastante perceptíveis, transmitindo a delicadeza e a sutileza que emergem depois de tanta
lapidação e labuta. E, por fim, nos dão a certeza e o privilégio de poder testemunhar esta bela
e trágica aventura dos tempos modernos que é a trajetória do Théâtre du Soleil.
O leitor perdoará antecipadamente ao autor, não esquecendo que a maior e mais
profunda alegria que a arte possa conceder-nos é de essência trágica; porque, se a
arte tem o poder de nos fazer «viver» a nossa vida, sem nos impor simultaneamente
os sofrimentos, ela pede-nos, em contrapartida – para a sentir com alegria – que
soframos antes. (APPIA, 1919, p. 15)
Finalizo aqui, pensando que o germe do espetáculo seguinte, Os Náufragos do Louca
Esperança, residiu justamente na cena final de Les Éphémères, na projeção mambembe de um
filme, na cozinha de aficionados por cinema. E a esta nova aventura da companhia, analiso a
seguir.
3.2 Um novo ponto de partida: Os Náufragos do Louca Esperança
A cada vez se acredita que não se pode ir mais longe, de tanto que a forma (o
dispositivo de jogo) parece radical e extrema na sua coerência. E a cada vez, a busca, no
entanto, continua sem se repetir: dupla procura a do Soleil, que se preocupa com questões
políticas e sociais, ao mesmo tempo em que se interroga sobre a essência e as possibilidades
da arte da cena, cujo campo é ampliado a cada um dos espetáculos.
Um espetáculo gera o outro. No final das representações dos Tambours em turnê na
Austrália, Ariane Mnouchkine, que tinha encontrado naquele continente o tema de
pesquisa da sua trupe para os meses seguintes, havia projetado sobre as preciosas
sedas do cenário as palavras “Free refugies”. Assim, os espetáculos do Soleil
constituem um repertório dentro do qual eles ecoam entre si. E se a sua força e o seu
brilho individual se enraízam no longo e intenso trabalho conduzido pelo grupo (8
meses para Tambours, para Les Éphémères), eles se devem também aos laços que os
unem aos espetáculos de antes e de depois, ao lugar que ocupam na história desse
grupo, assim como na história do Teatro. O tempo do Soleil se conjuga em três
tempos: presente, passado e futuro. E os próprios filmes realizados a partir dos
espetáculos (Au Soleil même la Nuit, Tambours, Le Dernier Caravansérail) fazem
parte dessa “cadeia” e possibilitam compreender melhor a amplitude dessa obra
teatral em curso.” (PICON-VALLIN, 2006. p. 112)
Como dito, a partir dos anos 2000, nas obras da companhia que sucedem o espetáculo
Tambours sur la Digue, há uma aplicação de efeitos que se aproximam dos recursos da
132
linguagem cinematográfica na própria encenação, devido à investigação de técnicas relativas
à movimentação de câmera, escolha e alternância de planos, direcionamento do olhar do
espectador, sobreposição de imagens, velocidade, ritmo e cadência de dispositivos de edição
das imagens. Desse modo, há a construção de uma narrativa híbrida, entre teatro e cinema, e,
no caso que se seguirá, o cinema ganhará o protagonismo não só como linguagem, mas como
tema do espetáculo:
No início de nosso filme havia o teatro. O teatro, divino sujeito da Fatalidade: um
deus do tempo, por um tempo definido. A própria vida. A finitude e o segredo de
sua genialidade. O teatro, onde toda ação é no presente, o teatro que dá lugar ao
presente, o teatro passa. Desde o começo, para começar, o teatro foi assombrado
pela morte e pela louca esperança de imortalidade. Desse sonho de imortalidade
nasceu o cinema. O cinema é do teatro extratemporal. O cinema é a atualização do
sonho, de um sonho que pode se repetir, e não conhece um "fim". (...) O cinema é o
sonho do teatro, enfim realizado. (CIXOUS, 2013)
Os Náufragos do Louca Esperança (2010) foi o espetáculo seguinte a Les Ephémères,
cujo tema teve origem no espetáculo anterior, uma questão recorrente, como foi visto. A peça
se passa em 1914, no período da iminência da Primeira Guerra Mundial, e conta a história de
um grupo de funcionários de um restaurante, o "Louca Esperança", que, apaixonados pelo
cinema que acabava de ser inventado, resolvem fazer um filme amador sobre um livro
inacabado de Jules Verne. Com este pressuposto o espetáculo criou espaços para uma
metalinguagem da companhia, da mesma forma como havia acontecido em Molière (1977),
que contava a história da vida do grande dramaturgo, diretor e ator francês, focando seu
trabalho na sua companhia teatral.
Em Os Náufragos do Louca Esperança os contornos metalinguísticos se dão por meio
dos esforços coletivos para produzir um filme artesanal, amador, ou seja, feito por amor,
enfrentando as adversidades de peito aberto. Assim como o Théâtre du Soleil nos últimos
tempos. Desde os últimos anos, a companhia vem encontrando cada vez mais dificuldades de
manutenção do seu trabalho, apesar da forte ligação com o público que mantém cheias as
arquibancadas durante as temporadas. Além de cortes financeiros, Mnouchkine e sua trupe
vem procurando outros meios para garantir sua subsistência, fazendo, inclusive, associações
com outros grupos e diretores, como é o caso recente da parceria com Robert Lepage.52
Portanto, este espetáculo fala do amor pelo cinema por indivíduos que não se autodenominam
artistas, mas que não podem deixar de atender o chamado da musa: produzem cinema com as
próprias mãos, mesmo sem ter todos os meios para isto.
52 Alguns dos atores da companhia foram convidados a participar de um projeto com o diretor canadense em
2017, como forma de mantê-los em atividade, recebendo salários de outras fontes.
133
Este espetáculo fez uma turnê pelo mundo depois da temporada francesa, vindo ao
Brasil em 2011, para apresentações em São Paulo, Curitiba e, pela primeira vez, no Rio de
Janeiro. Apresentado no espaço HSBC Arena, na Barra (Rio de Janeiro), o espetáculo
envolveu a vinda de sessenta membros da companhia, entre atores, técnicos e equipe
administrativa, para a montagem de uma réplica da sala de espetáculos da Cartoucherie,
incluindo camarins, palco, arquibancadas e hall de entrada com bar.
Imagem 31 - Etapa da montagem da estrutura principal.
HSBC Arena – Rio de Janeiro (2011).
Imagem 32 - Capa do programa da turnê brasileira (2011).
134
Em paralelo às apresentações do espetáculo, vários membros da companhia
ofereceram oficinas e palestras, participaram de mesas redondas e mostras de filmes,
configurando uma ocupação do Sesc Copacabana (onde ocorreram as principais atividades
periféricas). Tive a chance de fazer parte da equipe de produção, me envolvendo em diversas
frentes como recepção, montagem, comunicação e divulgação, administração da temporada e
coordenação das oficinas. Assim, pude conhecer de perto este espetáculo e um pouco do
processo do qual resultou.
Os Náufragos do Louca Esperança, como os outros espetáculos recentes da
companhia também ganhou uma versão fílmica que foi além do mero registro, retomando a
ideia do filme de teatro. Nas próximas linhas irei comentar alguns aspectos da montagem no
teatro e do filme, procurando evidenciar as operações que demonstram a continuação e o
aprofundamento da pesquisa da companhia em direção às hibridações entre teatro e cinema.
Se em Les Éphémères o cinema surge na cena como um conjunto de operações técnicas que
alteram a estética do espetáculo e, minimamente ocupa a função temática da narrativa, em Os
Náufragos do Louca Esperança há uma inversão: o cinema passa a ser o tema central
dispondo dos recursos da teatralidade para se autoafirmar como fazer artístico. A peça não
deixa de render uma homenagem ao primeiro cinema, uma fonte de inspiração artística
recorrente na obra da companhia, como foi abordado.
No espetáculo, foi retomada a relação do palco italiano diante da arquibancada da
plateia, o que tornou o espaço mais disponível para o tema e a encenação do espetáculo: o
laboro cinematográfico. Assim como em Les Éphémères a personagem Jeanne parte do tempo
presente para mergulhar no passado através dos Arquivos Nacionais, aqui também este
recurso é utilizado e a primeira cena mostra duas pesquisadoras que procuram nos armários
do arquivo documentos que comprovem a existência do Louca Esperança e de todos os
anônimos que contribuíram para o nascimento e popularização do cinema. No teatro, esta
cena acontece no proscênio, com iluminação bastante residual, e, à medida que os
documentos vem à tona, a luz do palco revela o grande sótão que servirá de estúdio àqueles
amadores. A cena mostra, então, os resquícios da atividade do andar de baixo, o restaurante, à
medida que os funcionários terminavam suas funções e podiam brincar de artistas. Assim, a
garçonete tornava-se atriz, o imigrante russo, cenógrafo, em um ambiente lúdico e cheio de
afeto. Também havia o nível da metalinguagem na relação entre os envolvidos, como a
dificuldade de hierarquização entre iguais, as disputas por espaço, o esforço voltado ao bem
comum, a vontade de superação acusada por dificuldades inesperadas.
135
Já no filme, houve a necessidade de fazer operações desde no nível do roteiro para
garantir a credulidade da proposta. Os créditos iniciais fazem alusão à estética dos filmes
mudos, com a imagem congelada de um globo, sobre o qual se projetam os nomes dos
principais artistas envolvidos, sob uma música de ouverture, que prepara o espectador para o
que virá. Especialmente cara para nós é a informação de que o Sesc São Paulo é um dos
patrocinadores do filme. A tela se apaga em fade out e corta para duas crianças que andam
numa rua de Paris, no tempo atual, que conversam pelo telefone celular com um terceiro
colega, acamado, cercado de livros juvenis. O choque provocado com esta montagem já
estabelece o campo estético onde o filme se encontra e relembra o espectador sobre a
superposição de tempo/espaço existente em qualquer obra mais nostálgica.
Outro aspecto interessante que noto é a repetição de um recurso de Molière, filme que
também se inicia com cenas protagonizadas por crianças. Penso se, ao mostrar o ponto de
vista infantil como marco inicial do filme, a cineasta não nos convida a desfazer dos “pré-
conceitos” e receber as imagens com o frescor da descoberta ingênua e apaixonada da
infância.
Imagem 33 - Jovem ator do filme (2013).
Na sequência, entendemos que as crianças e sua mãe estavam em busca do Louca
Esperança, desejando saber se o restaurante ainda existiria ou não, e frustram-se diante da
negativa. A mãe chega a comentar sua louca, vã esperança, de que ainda existisse. Tem início
uma sequência de cenas que obedecem aos princípios do cinema narrativo clássico, mostrando
a oposição de ideias entre mãe e filha sobre a permanência de um menino refugiado em sua
casa. A cena chega ao ápice quando a mãe acusa a filha de querer salvar o mundo inteiro
136
sozinha. Faço aqui uma analogia entre o posicionamento da jovem e a personalidade da
própria cineasta/diretora, cuja vida tem sido dedicada às injustiças sociais do mundo. O
figurino da jovem (a mesma atriz mirim que atuou como Aline em Les Éphémères) faz alusão
à própria imagem de Mnouchkine: pulôver sobre camisa com gola social. Interessante, ainda,
observar que a atriz que faz o papel da mãe é Olivia Corsini, que está na companhia desde
2002, e desenvolve trabalhos no cinema, como Olmo e a Gaivota (2016), de Petra Costa – o
filme é um documentário ficcional sobre a o período de gravidez da atriz, casada com outro
ator do Théâtre du Soleil, Serge Nicolaï.
Entendemos que a mãe é uma pesquisadora e que traz para casa o possível roteiro do
filme que teria sido filmado no Louca Esperança, o diário de trabalho e um objeto que a
câmera não mostra, pertencente a Camille, o músico. A cena se passa no sótão, mantendo-se
alinhada ao espaço principal da cena no teatro: o sótão do restaurante. Em seguida, no
computador da mãe lemos o título de sua tese: O cinema de educação e recreação popular em
1914, e se inicia uma narração em off, na voz de Ariane Mnouchkine, daquilo que é digitado:
os agradecimentos e dedicatórias do trabalho, incluindo os bisavôs da personagem, garçons do
Louca Esperança, que lá se conheceram. Vimos a importância dos antepassados de
Mnouchkine no espetáculo anterior e, ouvir sua voz dedicando o trabalho a eles, ainda que
aqui se trate de pura ficção, não deixa de criar uma segunda camada de sentido.
A cena corta para o sótão onde a menina dorme. Ao fundo escutamos a música do que
seria um baile. Então, assumindo o ponto de vista da menina, a câmera revela uma maquete
do Louca Esperança – que se assemelha à própria Cartoucherie –, o tal objeto de Monsieur
Camille, e a música passa a ser fundo do que entendemos ser o som de algazarra de uma festa,
à medida que a câmera se aproxima da maquete. A cena corta para a menina como se
estivesse entrando no espaço do Louca Esperança, em meio a poeira e teias de aranha, criando
uma fusão entre o espaço realista e o plano da memória (que mostra o palco do Soleil com os
cenários da peça).
Aqui encontramos uma profusão de exemplos que deflagram esta pesquisa híbrida do
Soleil, de forma que não conseguimos hierarquizar a influência de uma arte e outra: teatro e
cinema são uma coisa só, a arte de contar histórias. Nesta sequência, alternam-se o ponto de
vista das crianças, que descobrem um tempo passado com o qual percebem alguma filiação –
em atuação absolutamente naturalista –, e o plano da memória, fantástico, onde se passam as
cenas do espetáculo original – aqui os atores se movimentam com algum maneirismo fazendo
alusão à movimentação acelerada que percebemos nos filmes do primeiro cinema. Neste
quadro, em primeiro plano, abaixo, temos o diretor e seu assistente, e a cena se desenrola na
137
sua frente. Lembremos que esse é exatamente o ponto de vista de Mnouchkine em sua sala de
espetáculos, também como a câmera em enquadramento geral: o jogo de projeção e recepção
das imagens que encontram eco no interior da encenadora/cineasta se multiplicam
geometricamente.
Imagem 34 - Atores observam a montagem da cena diante de si (o filme, 2013)
A narração continua apresentando os personagens do Louca Esperança enquanto a
imagem ilustra toda a atividade do local, assim como no cinema mudo. Há também
alternância entre as cenas do teatro e um plano fechado na pesquisadora, enquanto ela
escreve, sorrindo envolvida com as situações que acontecem no plano da
imaginação/memória – a montagem nos leva a pensar na memória como criação mental da
pesquisadora, como se ela projetasse seu "cinema interior" na escrita. Aproveitando as
grandes figuras da época, propõe-se uma brincadeira em que os personagens anônimos
(ficcionais) teriam ligações com os estúdios Pathé, com Diaghilev, entre outros.
A apresentação do músico, Camille, interpretado pelo próprio Jean-Jacques Lemêtre,
músico da companhia há muitos anos, é uma singela homenagem a importância que ele possui
de fato, pois "fornece o ritmo aos atores" (trecho da narração do filme). A cena aos poucos
ganha a excitação e a agitação entre os personagens que podia se perceber na peça, no teatro,
que reproduz o clima que antecede o início dos ensaios durante o processo de montagem, e a
narração expõe os métodos criativos da companhia (como os atores são distribuídos pelos
papéis, a importância da escolha da música, a definição do espaço cênico), ao passo que são
introduzidas novas cenas, de multidão, onde se percebe a presença de todos os integrantes do
Soleil, novamente oferecendo elementos metalinguísticos no filme.
138
Em uma cena subsequente, os personagens Felix Courage (o dono do Louca
Esperança) e Madame Gabrielle (a cinegrafista), atuados por Eve Brüce e Juliana Carneiro da
Cunha respectivamente, vão até a varanda que dá para o exterior, para assistir um número
cômico, de socos e pancadas, apresentado por duas jovens diante de um grupo. Então Felix
pede que as moças comecem a apresentação, fazendo alusão à Mme Gabrielle: “Comecem! O
cinema as observa!”. Esta fala contém em si tantas possibilidades… Trata-se historicamente
do período do primeiro cinema, ou do cinema primitivo que, de fato alimentava-se destas
“atrações” para a produção de suas “vistas” /views. No nível da narrativa do espetáculo, após
assistir ao número, Mme Gabrielle contrata as moças para atuarem no filme (na narração em
off é dito que, pela falta de recursos, o filme seria feito com os desempregados, com os
subalternos do restaurante, e com todos aqueles que tivessem desejo de participar; o
pagamento seria feito em serviços e alimentação, já que o dinheiro era escasso). As moças
chegam ao “sótão/ set de filmagem” e recebem tíquetes de alimentação para o restaurante –
faço uma analogia novamente com o próprio Soleil, onde os salários são apertados, mas todos
os integrantes são convidados a fazer as refeições no próprio teatro.
Então a filmagem irá começar e, mais uma vez, o que se segue é uma movimentação e
organização do espaço para a criação da cena idêntica à rotina de trabalho do Théâtre du
Soleil, como se víssemos a companhia trabalhando sob o filtro do tempo, com roupas de
época. Estas passagens, que se repetem bastante no filme, são emocionantes e melancólicas,
pois, como foi dito, registram o desejo de reter o momento efêmero e, neste ato de
congelamento, descolam a experiência do tempo presente e denunciam o truque;
transformam-se em um teatro passado.
Jean fez um discurso. Ele falou sobre o socialismo, as cooperativas, a fraternidade,
as lutas incansáveis, Ele falou da Europa, do mundo futuro, da França, da arte, do
cinematógrafo, falou sobre as novas auroras, do aeroplano, do telefone, ele falou
sobre o progresso que não acabaria mais, sobre a medicina que curaria todas as
doenças, da felicidade na qual viveriam as gerações futuras. (Trecho do filme Les
Naufragés du Fol Spoir, 2013)
Novamente em uma operação de transposição entre um meio e outro, há uma
montagem alternada entre o plano do menino de cama lendo o livro de Jules Verne (e a voz
do ator mirim passa a ser a narração) e a filmagem das cenas por Mme Gabrielle em sua
câmera. Assim, o filme dentro do filme se mantém mudo (de forma fiel à época), mas
lembramos que estamos no século XXI através da voz do menino, nosso contemporâneo,
ambos os mundos ligados por uma obra de arte clássica, o livro de Jules Verne, nos
lembrando que só a arte atravessa o tempo e o espaço. Nesta sequência, as legendas do filme
139
mudo são projetadas também sobre o próprio quadro do filme, criando mais esta transposição
e fazendo alusão ao espetáculo, onde estas mesmas legendas eram projetadas no cenário,
criando belíssimas imagens teatrais e cinematográficas, ao mesmo tempo.
Imagem 35 - Cartoucherie. Imagens da revista L’Avant Scéne –Théatre (2013)
O filme segue, deflagrando uma profusão de momentos preciosos para destacar a
intermidialidade, como ela vem sendo praticada no Théâtre du Soleil, capaz de fornecer
material para uma pesquisa única sobre este espetáculo, o que não é o caso neste momento.
Assim, de forma sintética procurei categorizar alguns assuntos chaves para fazer observações
sobre este filme, em relação a sua estrutura e em contraposição à peça.
Em relação à pedagogia da construção da técnica cinematográfica, pelo tema da
peça/filme, o primeiro cinema, o espectador tem o deleite de ser apresentado às interessantes
traquitanas e engenhocas que deram origem aos equipamentos de filmagem que moldaram o
cinema até o advento do digital. Neste sentido aparece o travelling, com Madame Gabrielle,
com sua câmera no colo, sentada sobre um baú com rodinhas, sendo empurrada por
Tommaso, seu parceiro de trabalho.
140
Imagem 36 - Atores em cena no espetáculo. Cartoucherie, 2010. Imagem do espetáculo.
Há a “grua” com Mme Gabrielle sentada em uma traquitana que, por sistema de
roldanas, a suspende no ar para que ela possa fazer tomadas do alto; o zoom out, onde Mme
Gabrielle, com sua câmera, se coloca bem próxima à cena e, quando começa, vai sendo
puxada para trás por Tommaso, reproduzindo o movimento de afastamento do objeto pela
câmera; entre outros.
Imagem 37 - Juliana filma através da “grua”. Cartoucherie, 2010. Imagem do espetáculo.
Há também a cena do naufrágio: Mme Gabrielle filma uma maquete de um barco em
uma grande bacia com água, com efeitos especiais de luz, fumaça e manipulação dos objetos,
tudo sendo manipulado pelos próprios atores, fazendo uma alusão ao filme primitivo e ao
teatro com objetos; quando a câmera do filme enquadra o barco e todos em volta, tudo está
claro.
141
Imagem 38 - Cartoucherie. Imagens da revista L’Avant Scéne – Théatre (2013)
Também são muitos os exemplos de técnicas de filmagem bastante rudimentares,
cujos efeitos são bastante reconhecíveis, como entrar na cena “como numa batalha” (com a
câmera na mão, adentrar o quadro), ou “fazer o crocodilo” (um ator deitado no chão, abaixo
do enquadramento, lê o texto que o ator no quadro deve balbuciar, uma versão do “ponto”
teatral). Em muitas cenas temos o enquadramento clássico do primeiro cinema, um plano
geral aberto, onde tudo está à mostra, reproduzindo aquela estética e, naturalmente, fazendo
jus à experiência do espectador do teatro, o que acaba criando uma inversão cronológica: o
teatro passa a imitar o cinema. Outra cena bastante divertida e que tem um caráter histórico e
didático é a cena da disputa entre Argentina e Chile pela região da Magellania. A cena mostra
dois personagens militares que representam os dois países, interpretados pela dupla cômica
que foi encontrada na rua, portanto a cena evolui do que seria um diálogo protocolar para uma
cena de pastelão com socos e pontapés, culminando com as tortas de creme no rosto dos
personagens – e das crianças que comem tortas de creme e entram na brincadeira, criando um
momento de humor e melancolia. Outro dado singelo é o nome do personagem de Jean-
Jacques Lemêtre, Monsieur Camille, que faz referência ao primeiro músico do cinema,
Camille Saint-Saëns, autor da trilha do filme A Morte do Duque de Guise (1908), de Charles
Le Bargy e André Calmettes.
Para dar mais um exemplo, em seguida ao insert de imagens da época mostrando a
escalada dos acontecimentos históricos, e o quanto uma guerra nas proporções da Primeira
Guerra Mundial parecia improvável, há uma sequência com planos em preto e branco, com
uma textura que se aproxima muito da película, no enquadramento do que seria o filme de
Jean e Gabrielle. As cenas mostram o momento em que o índio vê os tripulantes afogando-se,
142
debaixo d’água e tenta romper as cordas para soltá-los; é uma sequência toda subaquática, o
que representaria um desafio para que se mantivesse a credibilidade em meio às outras
sequências do filme. Assim, é a primeira vez que vemos como o filme dos irmãos deveria ser,
como deveríamos ver a as cenas que estavam sendo filmadas. E para manter a coerência do
filme, o corte segue para uma cena onde se revela que todos estão no restaurante assistindo ao
material filmado, sendo projetado em um lençol com as bordas da imagem esbranquiçadas,
exatamente como na experiência do primeiro cinema. Outro momento marcante do filme.
É possível analisar de perto as operações de montagem do filme, também, como
elementos que procuram dar ao filme o mesmo impacto das cenas no teatro. Por exemplo, no
filme há vários inserts de imagens da época, de jornais documentários filmados da época,
mostrando os acontecimentos históricos, para balizar as cenas da ficção. Isto nos ajuda a
concretizar a narrativa que é proposta, pois, se no teatro as circunstâncias dadas do espetáculo
eram imutáveis, no filme percebemos uma multiplicidade de tempos/espaços que pode levar o
espectador a certa confusão. Há o plano do momento presente (ilustrados pelas cenas das
crianças, na cama e no sótão, e da pesquisadora diante de seu computador), há o plano da
imaginação coletiva que bebe nos arquivos como fonte de memória (todas as cenas que
mostram os acontecimentos da filmagem do sótão do restaurante Louca Esperança em 1914 –
as quais formavam a versão da peça), há as cenas de ficção criadas para fazer ligação entre as
cenas do espetáculo que eram auto-explicativas, e, por fim, há os trechos de documentários
que ilustram os acontecimentos históricos de 1914.
Portanto, a profusão de cortes e montagens com todo este material, criou a linguagem
híbrida do teatro enquanto filme, que torna-se um novo original. Ainda como forma de ilustrar
o que foi dito, destaco um trecho da entrevista de Juliana Carneiro da Cunha, nos extras finais,
contando que quando ela filmava, em cena como Gabrielle, ela via o filme dos “Náufragos”,
ela via a história dos irmãos La Palletes recém-saídos da Pathé, ela via a companhia do
Théâtre du Soleil na atualidade, e ela via, por fim, a própria câmera que captava as imagens
para fazer o filme, operada por Bernard Zitzerman.
143
Imagem 39 - Juliana Carneiro da Cunha em cena do filme (2013)
Também se pode concentrar a atenção nas adaptações das cenas da peça para os
planos do filme. Por exemplo, no espetáculo havia uma cena de grande alívio cômico quando
o personagem Felix Courage, enlevado pelo delicioso clima da filmagem, fazia uma longa
cena onde tocava os instrumentos imaginários de uma música de orquestra, indiferente aos
apelos de Jean para que a filmagem começasse. No filme, este trecho transformou-se em uma
contracena entre Eve Bruce e Jean-Jacques Lemaitre, trazendo a coerência e a credibilidade
que o filme pede. Outro exemplo interessante foi como o filme precisou recriar a
profundidade tridimensional da peça; os cenários pintados ganharam outros pontos de vista,
transmitindo ao espectador a sensação de estar dentro do set, de participar do filme ele
também.
Uma bela cena que exemplifica esta questão é aquela em que a menina que
acompanha a filmagem no plano da imaginação, assiste à personagem de uma moça que é
proibida de viajar, sendo levada pelos marinheiros, e no corte seguinte vemos o mesmo
enquadramento sendo que esta personagem foi substituída pela própria menina, ilustrando de
forma teatral o efeito de projeção que sentimos ao assistir a um filme no cinema e
verticalizando a experiência do cinema.
Há também as cenas do menino que lê o livro, fio condutor da narrativa, e se percebe
que do livro emana uma luz que ilumina seu rosto, induzindo à ideia de que a leitura traz
iluminação – especialmente em uma cena em que o menino deixa o telefone celular de lado
para ler o livro. Por fim, cito também a belíssima cena do delírio do idoso Charles Darwin.
Impactado com o desejo da Rainha de conquistar mais territórios, recordando-se da selvageria
144
da natureza de Maggelania e falando do desejo irrealizável de visitar o lugar uma última vez,
ele delira imaginando que está novamente lá: com efeitos de sedas em movimentos, vento de
ventiladores e flocos de neve pelo ar, ao som de uma música épica, o enquadramento do filme
começa com um plano fechado em suas costas até abrir-se e mostrar todos os atores
construindo o efeito, unindo teatro e cinema e criando poesia e emoção.
Imagem 40 - Charles Darwin fala sobre suas experiências à Rainha.
Cartoucherie. Imagem do espetáculo, 2013.
Um outro assunto chave que é a transposição da rotina real do Théâtre du Soleil para a
ficção do espetáculo filme – assim como em Molière, como foi dito, também de forma quase
didática. Ao recordar o fato de que Mnouchkine decidiu retomar as filmagens de seus
espetáculos em 2000, tocada com a hipótese deste material servir como arquivo histórico, me
comovo com a ideia de que, fundamentalmente, este filme é apenas mais um documentário do
fazer artístico da companhia, em uma reverência às suas duas fontes de inspiração: o cinema e
o teatro enquanto artes coletivas. Sendo assim, são muitos os exemplos que aparecem neste
tópico, como a distribuição dos personagens pelo elenco do “Soleil/ Louca Esperança”, o
corte de Olivia Corsini como a faxineira para Olivia Corsini como pesquisadora, evidenciando
o jogo da ancestralidade e da multiplicidade dos papéis no Soleil, as explicações sobre as
técnicas de atuação para a câmera são idênticas ao tipo de trabalho feito na companhia, as
crianças do filme são filhos dos atores, como em uma trupe circense, todo o elenco quase
sempre presente em cena, dividindo-se na atuação propriamente dita e na manipulação de
cenários e confecção de efeitos especiais (teatrais e cinematográficos) e de música, entre
inúmeros exemplos.
145
Imagem 41 - No Brasil, o espetáculo ganhou legendas em português.
HSBC Arena, 2011. Imagem do espetáculo.
Uma observação interessante é perceber que durante o espetáculo/filme, a câmera vai
sendo operada pelos atores mais antigos da companhia – Maurice Durozier, Juliana Carneiro
da Cunha e Duccio Belluggi –, nos fazendo pensá-los como “locomotivas”, condutores da
cena e do próprio trabalho, para utilizar uma expressão que faz parte da gramática pedagógica
da companhia. Outro exemplo digno de nota é como o filme, e o espetáculo, deixam à mostra
os truques do cinema (e do teatro), como a música que é cantada internamente para não se
perder o ritmo da filmagem com a manivela do cinematógrafo, assim como a “música
interior” que cada ator deve buscar para seu personagem antes de entrar em cena, citando
outra expressão comum na rotina de trabalho da companhia.
Por fim, em um dos extras do filme, há uma entrevista com Juliana Carneiro da Cunha
onde ela fala um pouco do processo de filmagem, observando que as boas cenas são aquelas
em que o ator sente que há algo que acontece no espaço entre ele e a câmera, uma coisa que
não se explica mas que se pode sentir. Imediatamente me remeti ao trabalho com a máscara,
onde também há uma experiência liminar que é sensível, embora para o ator não seja fácil
traduzir intelectualmente. Desta forma, uma vez mais ficam evidentes as interseções entre
teatro e cinema no campo estético da companhia.
Em Os Náufragos do Louca Esperança também é possível observar traços de analogia
entre a narrativa e a biografia de Mnouchkine, não de forma direta como na peça anterior, mas
como uma inspiração que acaba por construir cenas antológicas. Em uma cena dada, a filha da
pesquisadora, a menina que assiste às filmagens, e também é personagem da cena, ilustrando
de forma poética o efeito de projeção do espectador ao assistir uma cena de cinema, em uma
inspirada homenagem à própria cineasta, entra em quadro e se posiciona ao lado do diretor,
146
em posição idêntica (assim como Ariane e seu pai devem ter dividido alguns sets de
filmagem). Nesta imagem também se pode ler um pouco do sistema de aprendizado “mestre-
aprendiz” praticado na companhia, onde os mais jovens devem seguir os passos dos mais
antigos. Esta cena também me fez pensar que Mnouchkine tem uma paixão tão intensa por
sua arte e possui tamanho carisma, que todos a sua volta apaixonam-se por sua forma de viver
esta paixão, e acabam por sonhar juntos os mesmos sonhos (ao menos por um tempo).
Em outro momento do filme, “Louca Esperança” torna-se o nome do barco do filme,
cuja proa é povoada por todos os atores representando trabalhadores, professores, mulheres,
crianças e homens que ousam sonhar com um futuro mais digno. No espetáculo, aqui era o
fim do primeiro ato, e no filme a pequena cineasta assiste a tudo através do enquadramento
improvisado com os dedos das mãos. Diante de tudo que foi dito, é impossível não pensar
nesta cena de forma condensada, como se a jovem cineasta fosse tocada duplamente pela
inspiração: a arte enquanto forma e as lutas de classe como tema.
Imagem 42 - A proa do navio “louca Esperança”.
Cartoucherie. Imagem do espetáculo, 2010.
Seguindo este caminho, elejo outro assunto bastante pertinente na análise desta obra,
as questões políticas que alimentam a companhia. Dentro do próprio tema do
espetáculo/filme, não é difícil perceber o enfoque político que se pretende fazer, visto que a
peça conta os acontecimentos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, do ponto de vista
dos trabalhadores e subalternos de um restaurante, guiados por um cineasta de inspirações
socialistas, como não poderia deixar de ser. Há por exemplo a bela cena dos arquiduques
escrevendo uma carta aberta sobre o futuro da Europa, inspirados pelo discurso de Victor
Hugo contra Luiz Napoleão Bonaparte (Napoleão III), em 1851, em que ele toma um viés
liberal e vai em defesa do povo, dos pobres, denunciando as injustiças sociais e a necessidade
147
de defender a República.
Outra cena interessante é a do desembarque dos imigrantes em 1895 em uma terra
desconhecida, que vem a ser a repetição do tema de outros espetáculos anteriores, caro à
Mnouchkine, que mostra o fluxo dos menos favorecidos como condição de sobrevivência.
Por fim destaco os versos finais da peça, e que no filme são repetidos algumas vezes –
como forma de alcançar o mesmo impacto obtido pela cena no teatro: “Nestes dias de trevas/
Nós temos uma missão, / Levar às embarcações/ Que erram dentro da noite, / O brilho
obstinado de um farol.” Ora, sabemos que na maioria das vezes este é o desejo maior do
próprio Théâtre du Soleil.
Imagem 45 -Todos projetam como será a vida no novo país.
Cartoucherie, 2010. Imagem do espetáculo.
Imagem 44 - Atores olham pelas escotilhas do navio.
Cartoucherie, 2010. Imagem do espetáculo.
148
CONCLUSÃO
A última pergunta que fiz à Ariane Mnouchkine em nossa entrevista virtual dizia
respeito à hipótese que procurei sustentar. Fazendo uma analogia com a proposição inicial dos
ensaios, indaguei se Les Éphémères teria representado uma renovação na pesquisa da
companhia, se teria havido uma ruptura com o trabalho e a temática desenvolvida até então.
Esta foi a resposta:
Eu não sei o quer dizer... Eu não sou... Eu não tenho consciência das rupturas, das
fontes, eu só tenho consciência do caminho. Nós avançamos. À cavalo, de bicicleta,
de carro, todos em um trem... Nós avançamos. É sempre uma viagem. Uma ruptura,
o que quer dizer? Que nós não procuramos mais a América, mas a Lua? Acho que,
no fundo, a gente procura o tempo todo... No teatro a gente procura, o tempo todo, o
ser humano. Seu presente, seu passado e seu futuro. Sua fragilidade, suas angústias,
sua beleza, sua feiúra, sua monstruosidade. Eu não tenho consciência de uma
ruptura... Na verdade, o público, que é muito sensato, faz uma aliança com todos os
espetáculos, sejam eles tão diferentes como Un Chambre en Inde, como Les
Éphémères. Eles encontram elos, eles encontram as famílias e eles voltam sempre.
Pois, então, eu não acredito que houve um momento único. Foi graças ao trabalho
coletivo, importante, graças à natureza tão diferente de cada um dos indivíduos que
compõem o Théâtre du Soleil, às suas diferenças de idade, de cultura, de
experiência... Não é porque nós tivemos sorte, é por isso, por fazer espetáculos tão
diferentes uns dos outros, porque eu tenho consciência da extraordinária diferença
entre cada um dos nossos espetáculos. (...) São espetáculos que têm a mesma matriz,
quer dizer, partem do mesmo grupo de indivíduos. Então, eu não eu não tenho
consciência de uma ruptura, eu tenho consciência de uma pesquisa obstinada. E eu
te digo, não encontro melhor metáfora que essa, é uma pesquisa às vezes feita a pé,
outras vezes de bicicleta, de helicóptero, outras vezes fazemos uma pesquisa de
trem, ou de caminhão... Mas, é isso, não há uma ruptura, não há nem mesmo uma
ruptura entre Macbeth e Un Chambre en Inde. Macbeth deu origem à Un Chambre
en Inde e os atentados em Paris deram origem à Un Chambre en Inde. Como,
provavelmente, é bem possível que Sarkozy tenha originado Macbeth, mesmo que
eu não tenha desejado fazê-lo, já que Sarkozy ainda era politicamente vivo.
Esperemos que ele esteja politicamente morto agora… (MNOUCHKINE, 2017)
Reproduzo na íntegra esta resposta, pois ela me parece uma síntese de vários conceitos
e proposições que procurei analisar nesta pesquisa, além de iluminar as principais
características identitárias da diretora e do Théâtre du Soleil. Em primeiro lugar, nesta fala
Ariane Mnouchkine se permite não saber o que dizer. É uma encenadora que carregando um
percurso de cinquenta e três anos de trabalho ininterrupto é capaz de não ter certezas, de
tatear. Mnouchkine, como foi dito, é uma pensadora do teatro contemporâneo mais ligada à
prática do que à teoria. Ela não escreveu livros, tampouco se preocupou em organizar e
categorizar seu trabalho de forma sistemática. Todos aqueles que se debruçam sobre sua obra
para tecer análises, o fazem a partir do diálogo entre suas impressões pessoais e a prática da
cena observada, logicamente através do crivo da diretora, sem que isto, no entanto, faça sua
voz sobressair. É uma mulher da prática, mesmo carregando sobre seus ombros a
149
responsabilidade de ser uma das principais referências do teatro ocidental contemporâneo. É
também uma artista consciente da importância do registro de sua obra, ainda que procure
fazê-lo acumulando mais camadas de criação, dando origem a obras múltiplas, híbridas, como
foi visto até aqui.
Mnouchkine fala também da consciência do caminho que se percorre, e das formas
diferentes de percorrê-lo. De fato, não há melhor metáfora para exemplificar o percurso da
companhia e seu vasto repertório de espetáculos e filmes. Pinçando qualquer um ao acaso,
seria possível desenvolver uma pesquisa profunda, encontrando elementos únicos em cada
um, de forma que realmente representam momentos criativos bastante distintos entre si,
embora sejam o resultado do trabalho de um grupo de artistas que estão juntos há muitos
anos, pelo menos o núcleo central. Ela fala da diferença entre os indivíduos como dispositivo
de criação. O interculturalismo é uma tônica do Théâtre du Soleil e, naturalmente, isto é um
elemento chave no trabalho criativo, mas também na percepção do público, o que deve ser um
dos fatores da grande empatia que a companhia causa em todas as suas plateias pelo mundo.
Por fim, Mnouchkine, explicita sua escuta precisa em relação aos acontecimentos
políticos que a circundam e que movem o mundo, evidenciando sua provocação maior e sua
arte como resposta, como devolução. Tudo isto com o humor e a delicadeza que envolvem
seus atos, especialmente nos últimos anos.
De fato, é inegável a potência e o impacto de Les Éphémères, ainda que, ao analisar
cada obra do vasto repertório da companhia, se possa elencar os motivos pelos quais cada
uma delas marcou a sua época, seja pela ousadia, pesquisa rigorosa, apuro estético, empatia
com público e crítica, temática, enfim, todos os meios pelos quais se pode abordar uma obra
de arte da cena. Diante desta riquíssima trajetória artística, optar por analisar o espetáculo Les
Éphémères – e pincelar algumas notas sobre Os Náufragos do Louca Esperança – sob a ótica
dos processos de intermidialidade presentes na obra, em específico, é uma difícil decisão. Fica a
estranha sensação de que passagens essenciais para uma compreensão profunda serão
forçosamente deixadas à sombra, sob o risco de uma metonímia pouco eficaz:
Mas hoje ainda há muitas coisas belas. Vou citar dois exemplos de espetáculos
franceses que me marcaram recentemente: um deles veio ao Brasil, o espetáculo de
Ariane Mnouchkine com o Théâtre du Soleil que se chama Les Naufragés du Fol
Espoir [Os náufragos da louca esperança]. É uma grande forma de teatro, com 30
atores em cena, um cenário muito bonito construído para esse espetáculo. De fato, o
cenário do espetáculo é a própria Cartoucherie (ela é, então, reconstruída para as
turnês). É um espetáculo com um número grande de recursos (financeiros e
humanos) que demandou um enorme trabalho (quase um ano). Ele me toca bastante
porque ele fala da relação entre o teatro e o cinema mudo no início do século XX, e
isso retorna, de certo modo, a tudo o que falamos em nossa discussão. Através desse
espetáculo, vê-se como as duas artes dialogam entre si, se respondem, utilizando-se
150
de uma terceira, a música, e como, através do fato de que uma trupe de teatro
representa uma equipe de cinema filmando um filme a partir de um romance utópico
de Júlio Verne, a trupe do Soleil representa a si mesma em cena. É uma espécie de
mise en abîme do grupo teatral trabalhando, que acredita que é possível criar junto.
Tudo desmorona no nível das utopias, o que é colocado em questão no roteiro do
filme: liberdade, igualdade, fraternidade, pois a guerra de 1914 ameaça e estoura
antes do fim do filme que, no entanto, a equipe terminará, mas ainda resta uma que é
a utopia do teatro e os atores mostram, em cena, que é realizável e realizada. É um
espetáculo extraordinário no qual as palavras reencontram sua significação, porque
elas não são ditas, mas lidas em legendas projetadas (fabrica-se um filme mudo) e
no qual o sentido é dado pelo trabalho coletivo dos atores continuamente presentes
em cena. Uma criação coletiva de concerto com a autora associada ao Soleil, Hélène
Cixous, e a partir de um romance inacabado de Jules Vernes... Um dispositivo de
criação coletiva através de improvisações, que como se vê, é complexo. (PICON-
VALLIN, 2011, p. 210) 53
Estes elementos demonstram porque Les Éphémères se eleva na trajetória da companhia,
ele se constitui um momento único, exemplo ilustre do encontro entre o teatro e a sociedade
onde se insere. Durante a pesquisa, pude perceber como este fato é uma unanimidade entre os
teóricos que vem acompanhando a trajetória do Théâtre du Soleil, como Beatrice Picon-
Vallin, George Banu e Josette Féral, por exemplo.
Entendo que o espetáculo Les Éphémères se destaca no repertório da companhia
justamente por incluir lacunas em sua malha, talvez como consequência desta narrativa
híbrida, deste teatro cineficado, por oferecer ao espectador uma outra experiência de
tempo/espaço que instaura um presente permanente, atualizado a cada instante, efêmero.
Sendo um presente permanente, passado e futuro desaparecem, levando consigo a ideia de
conflito, e oferecendo ao espectador uma outra experiência, da ordem da contemplação, da
cena, do outro diante de si e de si mesmo, do ato performativo.
Neste lugar, portanto, não se pode pensar em um espetáculo que re-presenta a realidade,
posto que não há um referencial de origem, único, que deve ser evocado novamente, mas,
sim, a constante instauração de um tempo/espaço que se atualiza a cada experiência
compartilhada por todos, diante de todos.
Diante disso, chego a essa etapa com a sensação de que somente agora estou pronta
para começar. Tendo tido a oportunidade de olhar de perto os dispositivos criativos de Les
Éphémères e de Os Náufragos do Louca Esperança, sinto que apenas me aproximei de uma
matéria pulsante e viva, cujos desdobramentos ainda seriam muitos, transbordando destas
páginas. Se insiro esses espetáculos, novamente, no longo e vasto repertório do Soleil, são
inúmeras as possibilidades de análises e associações que ficam de fora deste trabalho. Isto
53 No Brasil, o Théâtre du Soleil apresentou Les Naufragés du Fol Spoir [Os Náufragos do Louca Esperança]
em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2011.
151
sem mesmo incluir o momento presente, quando se dão as apresentações de Un Chambre en
Inde, às quais os espectadores assistem depois de passar pela revista da polícia na entrada do
teatro – uma imposição para a entrada em locais públicos desde os atentados de Paris em 2016
– e de desligarem os celulares, conforme aviso na sala de espetáculos, uma necessidade
também recente. “Se Deus quiser se manifestar diante dos famintos, ele deverá fazê-lo em
forma de alimento (Ghandi)”, diz uma inscrição que enfeita as paredes do teatro atualmente,
e, de alguma forma, os espetáculos do Soleil assumem a forma de respostas, ou pelo menos,
pistas sobre os grandes desafios que surgem de tempos em tempos.
Termino, portanto, com mais interrogações do que quando comecei a pesquisa,
especialmente porque se nestas páginas procurei reter um sentido e um alinhamento de ideias,
me dou conta que enquanto as palavras se sedimentam, elas deixam escapar muitos outros
sentidos, que talvez evidenciem outros caminhos. Percebo que, assim como o cinema, a
escritura é também uma tentativa de capturar um instante, de circunscrever no tempo e no
espaço uma matéria volátil, fugidia e sempre inacabada. Envelhece a cada ponto final. E como
o que nos mantém vivos é o movimento, finalizo imaginando novas páginas em branco, assim
como todo o porvir que o Théâtre du Soleil tem pela frente.
152
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ANEXOS
Anexo 1 - Roteiro para entrevista com Juliana Carneiro da Cunha
Anexo 2 - Roteiro para entrevista e algumas respostas de Ariane Mnouchkine
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Anexo 1 - Roteiro para entrevista com Juliana Carneiro da Cunha
1. Para você, uma atriz que já havia vivido outros processos de criação da companhia,
exemplares, como Os Átridas, Tartufo, Tambours sur la Digue, como foi a vivência deste
processo criativo? No que ele difere ou se assemelha aos demais?
2. Assistindo a trechos do espetáculo Les Éphémères se percebe que ele difere muito de todo o
repertório anterior do Soleil, tanto no tema quanto em termos de estética, o que teria motivado
essa grande virada? O que desencadeou o processo? O espaço, o tema, o desejo dos artistas
envolvidos?
3. Como surgiu a ideia de colocar a plateia dividida, uma de frente para a outra, com a cena
correndo ao meio? Nas notas de ensaio presentes no programa, Mnouchkine fala em uma
"mesa de autópsia da alma", também sobre a Piazza Navona, Como você vê a importância da
escolha do espaço nesse trabalho e nos demais do Soleil?
4. Como surgiu a ideia dos cenários móveis nas plataformas e como foi estabelecido
movimento dos propulsores/impulsores? Como era estar em cena realizando ações dentro de
uma estética quase naturalista, porém, em constante movimento de rotação? Havendo público
dos dois lados e com o controle do movimento a cargo apenas dos impulsores, como vocês
atores trabalharam a desobrigação com a frontalidade, ou com necessidade de que
determinada ação fosse assistida/compreendida por todos?
5. De onde partiram as proposições para as improvisações? Vocês trabalharam com material
íntimo da própria biografia dos atores? Como foi essa experiência?
6. Como se deu a costura das cenas para a montagem final do espetáculo? Houve a finalização
do texto por parte de algum dramaturgo? Houve a preocupação em criar uma narrativa que
amarrasse todas as trajetórias dos personagens de alguma forma ou isto se deu ao acaso, para
que cada espectador montasse sua versão?
7. Assistindo ao espetáculo e depois ao vídeo de registro da peça, me chama a atenção o
trabalho da atriz Shasha (Shaghayegh Beheshti) na cena em que faz a personagem de uma
senhora que vai ao ginecologista. É uma composição muito forte que, impressionantemente,
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não perde a veracidade ao contracenar com você, que faz uma ginecologista, numa atuação
bem realista, que chega a usar um aparelho de ultrassonografia de verdade. Em outro vídeo,
no documentário Un Soleil à Kaboul (2005), há uma improvisação em que essa mesma atriz
joga a máscara do Pantaleão aprisionado em uma burca feminina, em uma situação crítica no
Afeganistão. Existe alguma conexão entre esses dois trabalhos? Houve algum caminho nesse
sentido? Como foi o trabalho sobre essa cena da senhora que vai ao ginecologista?
8. Como era a coxia desse espetáculo, com tantos cenários e detalhes? Como vocês faziam
para, de fato, sair água da torneira e para cozinhar os alimentos em cena?
9. Pensando nos temas intimistas de cada cena, como se o espectador observasse cada família
ou indivíduo e cada cômodo pelo buraco da fechadura, o quanto vocês buscaram se aproximar
de uma estética cinematográfica na encenação e na atuação? Me parece que essas pequenas
ilhas de cenários realistas, verdadeiros sets em movimento, faziam com que os olhos do
espectador funcionassem, de fato, como a lente de uma câmera, que acompanha a cena de
forma voyeurística. Isso foi uma busca proposital da encenação?
10. Estando dentro da cena, qual era a sensação de ver o público de um lado e de outro? Era
possível perceber alguma interação entre as duas plateias, que acabavam sendo o pano de
fundo para a própria cena?
11. O programa da temporada de estreia francesa tem um encarte que sugere um diário de
ensaio, e, lendo esse diário, especialmente aqueles que conhecem bem as indicações que
Mnouchkine costuma dar aos atores, se percebe que são, de fato, as falas dela durante o
processo de ensaio, mais do que um registro pessoal do trabalho. Como é indicado nesse
encarte, trata-se de uma seleção de anotações do processo feitas pelo assistente de direção,
Charles-Henri Bradier, a partir da fala da Mnouchkine, organizadas graficamente pela
programadora visual Catherine Schaub, incluindo desenhos e até letras manuscritas, rabiscos,
manchas de tinta, etc. A dúvida que fica é: o quanto esse material se aproxima do real? Todos
estavam, de fato, acompanhando o processo de ensaios da peça? Por que se escolheu trazer à
público essa seleção, esse material? Alguém da equipe se sentiu exposto ao ver o processo
íntimo de criação sendo apresentado ao grande público?
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12. Nessas notas de ensaio, em determinado momento Mnouchkine passa a indicação de que
"não se pode deixar que a cena se instale, não atuar uma cena, mas um momento...". Como se
deu isto na prática?
13. Algumas cenas da peça são inspiradas em episódios da vida da própria diretora. Como
surgiu essa ideia e como essa ideia deflagra o espetáculo posterior, Os Náufragos do Louca
Esperança?
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Anexo 2 - Roteiro para entrevista e algumas respostas de Ariane Mnouchkine
PEÇA
1. Como foi a experiência nesse processo em relação aos anteriores? O que o diferenciou? O
que os motivou a trabalhar com material autobiográfico dos artistas e como foi este processo?
2. Fazendo uma analogia com a proposição inicial dos ensaios, com o suposto meteoro que
iria extinguir a vida na terra, pode-se dizer que Les Éphémères representou uma renovação na
pesquisa da companhia?
3. Ainda utilizando a metáfora do meteoro, as pequenas plataformas dos atores poderiam ser
pensadas como os estilhaços de uma teatralidade em explosão, causando uma multiplicação
do espaço? O que as plataformas de cenário e a interação dos atores com o espaço cênico
contribuíram no processo de criação?
4. Durante a minha pesquisa, me perguntei se é possível pensar em uma estética realista,
com momentos de aproximação ao naturalismo, nessa encenação e no trabalho dos atores. O
que se pode dizer sobre isso?
5. Como foi feita a escolha de incluir as notas de ensaio no programa da peça? Podemos
considerar esse pequeno caderno de notas como um escrito de artista, ou seja, uma fonte de
informação sobre o processo criativo que originou o espetáculo?
TEATRO X CINEMA
1. Nesse espetáculo me pareceram claras as influências dos elementos do cinema na sua
estrutura, tanto em relação à temática (relações e conflitos da vida íntima de cada
personagem, ampliados como diante de uma câmera) quanto ao espaço (plataformas em
movimento contínuo conduzindo o olhar do espectador tal qual o movimento e os ângulos da
câmera; cenários naturalistas); e à ideia de montagem (histórias pensadas como sequências,
entrecruzadas, cenas pensadas como planos e mudanças destes planos envolvendo raccords,
flashbacks, personagens que se encontram em diferentes espaços/tempos, dentre inúmeros
exemplos). Houve um momento em que a senhora conduziu o processo para que houvesse
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essa interseção íntima com o cinema ou isso se deu como consequência do processo? De outra
forma, foi proposital?
ARIANE MNOUCHKINE - Eu compreendo perfeitamente essa questão, ela tem toda razão,
é verdade que espetáculos resultaram... A influência do cinema e do nosso amor pelo cinema,
dos atores e meu mesmo, é muito sensível e visível nesse espetáculo, mas isso veio mesmo do
processo de trabalho, não foi de forma alguma consciente. Que o nosso amor pelo cinema,
que a influência do cinema seja visível no trabalho... Eu não pensei no cinema enquanto nós
trabalhávamos. Nós pensamos no inconsciente, nas nossas lembranças, no que fica gravado
em nós, nas nossas histórias. E eu me dou conta de que é um conjunto cinematográfico
exatamente como ela diz nas montagens de sequência, ir ao movimento geral das pequenas
cenas que não eram naturalistas, mas que eram o estrato, a essência do cenário da direção
de arte, mas isso veio inconscientemente como monte de coisa, quando a gente trabalha a
gente procura, mas, no fundo, eu não sei porque nós procuramos nessa direção. Há coisas
misteriosas que nos guiam. Para mim, o teatro e o cinema são duas artes extremamente
primas. A única diferença fundamental é que no cinema há o suporte fílmico, mecânico, e no
teatro não há nada além do corpo vivo.
2. Como foi a decisão de abandonar o palco italiano? Por que colocar uma plateia diante da
outra? Como foi a repercussão disto durante a temporada e turnês do espetáculo?
ARIANE MNOUCHKINE - Nós já tínhamos usado este espaço bifrontal em um espetáculo
militante onde nós atuamos com o processo de Vaclav Havel, na Cartoucherie.
BIOGRAFIA EM CENA
1. Como foi a experiência de ver extratos de sua biografia se tornando cena diante de si? A
senhora sentiu necessidade de interferir de alguma forma? Qual foi o espaço deixado para a
ficção criada pelos atores nessa sequência, em específico?
ARIANE MNOUCHKINE - O espaço criativo para os atores foi total, pois, foram os atores
que decidiram pegar essa proposta, não eu. O que aconteceu foi que num momento dado eu
vi os atores atuando sobre tantas coisas tão pessoais sobre suas memórias, suas histórias
pessoais, memórias dos avós que eu contei sobre a minha lembrança, mas não contei para
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que eles a aproveitassem, eu contei no fundo, como exemplo, sobre um momento, quando eu
estava na praia. É isso. Afinal, foi Delphine que trouxe uma proposta sobre a sua
interpretação de um momento da minha infância, então, eu penso, é a minha lembrança que
ela própria já reinterpretou, contada pela senhora de idade que eu era à época (2006),
lembrando da pequena menina que eu era há 70 ou 65 anos, àquela época (da lembrança) eu
tinha dois ou três anos. Eu nasci em 1939, isso aconteceu em 1942 ou 1941... Então seria
Delphine e os outros atores que, no fundo, escolheram a minha memória dentre todas as
outras memórias dos atores que foram reunidas para o espetáculo. A pressão que isso me
causou, como dizer, foi uma emoção relembrar dos meus avós. Eu me perguntava se os meus
avós ou mesmo os personagens que os meus avós deveriam ter conhecido na época (Nora,
Morgane), se eles estariam vendo aquilo tudo de alguma parte do céu, ou do limbo, ou de
onde suas almas estão agora. Foi uma emoção, mas não foi, felizmente, uma libertação. No
fundo, curiosamente, os personagens que fizeram me identificar verdadeiramente com a
menina foi efetivamente a criança que atuou a menina Aline ou Juliana (Carneiro da Cunha)
quando ela atuou Nora que foi a proprietária daquele jardim maravilhoso onde nós
encontramos a filha quando chegamos a sua casa.
2. No Teatro do Oprimido de Augusto Boal, a experiência de trazer a biografia à cena
estimula questões psicanalíticas entre os envolvidos. Houve alguma situação que se
aproximasse a isso durante os ensaios? Lembrando que a senhora chegou a cursar Psicologia
na juventude, houve a necessidade da psicóloga Mnouchkine interferir no processo?
ARIANE MNOUCHKINE - Eu não sou psicóloga, não sou uma médica psicóloga, meu
trabalho não é de analisar inconsciente, meu trabalho é deixá-lo se expressar. É totalmente
diferente. Meu trabalho é deixar o inconsciente se expressar com seus mistérios, suas
incompreensões, suas metáforas, seus sonhos. Então, efetivamente, em Les Éphémères,
provavelmente, como em muitos espetáculos, mas especialmente nesse, há muito inconsciente
que foi expresso, mas eu não tinha nem o poder nem o direito de pretender analisar o que se
passava. A única coisa que eu podia fazer era escolher e guardar alguns desses momentos de
expressão, porque eu os achei emocionantes, justos, passionais, artisticamente, não
psicologicamente. O encenador não tem direito de tentar patrulhar a consciência dos atores
ou de dizer aquilo que eles não sabem sobre eles mesmos, não é esse o meu ofício. Meu ofício
é colocar em forma mesmo o que é incompreensível.
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