juventude brasileira e socialização perversa trabalho escrito
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1. INTRODUÇÃO
Nosso objetivo neste trabalho é construir uma análise crítica do processo de
socialização1 contemporâneo com base em Agnes Heller, buscando o entendimento de
como se dá, de um modo geral, as relações entre juventudes e escola no Brasil. Essa
relação atualmente é extremamente problemática não só em nosso país, mas também em
boa parte do mundo. Muitos educadores entendem que o que presenciamos é uma “crise
da escola”. Isso ocorreria por conta de diversos fatores, constituindo um problema
extremamente complexo, e que só pode ser compreendido claramente a partir de um
esforço teórico amplo. Procuramos aqui, sem deixar de mencionar brevemente alguns
dos outros fatores, dedicar maior parte dos esforços a explicar a natureza de um deles: o
conflito entre o “mundo dos jovens” e a escola, ou melhor, esclarecer quais os
determinantes sociais responsáveis por gerar o desinteresse pelos estudos e a dificuldade
dos alunos de atribuir sentido para o conhecimento escolar em suas vidas.
Um dos motivadores deste trabalho foram os trabalhos do educador Juarez Tarcísio
Dayrell, professor da faculdade de educação da UFMG. Na conclusão de seu doutorado,
ele colocou o desafio de responder a algumas perguntas fundamentais:
Mas será que a crise da escola se resolve nela mesma? Será que a escola terá mais sentido e função para esses jovens apenas mudando suas estruturas internas? Será que não caímos no risco de assumirmos o discurso oficial que difunde uma imagem da educação, restrita à escola, como apanágio de todos os males? Será que a instituição escolar, por si, é capaz de responder às demandas postas pelos jovens? (discutir a questão das demandas postas pelos jovens) (DAYRELL, 2001, p.357).
Em seu artigo intitulado: “A escola faz as juventudes?”, o autor discute os novos
processos de socialização, e aponta que o fracasso da instituição escolar é um fato
observável no atual momento, sem que haja, porém um consenso no sentido de designar
o “culpado” por esse acontecimento:
Para a escola e seus profissionais, o problema situa-se na juventude, no seu pretenso individualismo de caráter hedonista e irresponsável, dentre outros adjetivos, que estaria gerando um desinteresse pela educação escolar. Para os jovens, a escola se mostra distante dos seus interesses, reduzida a um cotidiano enfadonho, com professores que pouco acrescentam à sua formação, tornando- se cada vez mais uma “obrigação” necessária, tendo em vista a necessidade dos diplomas. Parece que assistimos a uma crise da escola na sua relação com a juventude, com professores e jovens se perguntando a que ela se propõe (DAYRELL, 2007, p.1106).
1 Alguns dos autores que desenvolveram esse conceito foram: Durkheim, Mead e Freud. Faremos uma exposição sintetizada desse conceito no capítulo 3 item 4. Para uma descrição mais detalhada ver: KOENIG, Samuel. Elementos de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1967.
Por mais que saibamos que atualmente uma boa formação escolar nem sempre garante
uma carreira profissional bem-sucedida e uma posição financeira razoável, ela ainda é
um dos pressupostos indispensáveis para tentar alcançar esse intento (SPOSITO, 2005).
Entretanto, como evidência, por exemplo, o documentário Pro dia nascer feliz (2006) de
João Jardim, bem como inúmeros depoimentos de professores, coordenadores e
diretores, a postura dos alunos é, em muitos casos, de total indiferença, falta de
motivação e de curiosidade. Muitos parecem não ter uma disposição para prestar
atenção, esforçar-se para realizar o que é proposto, e nem mesmo o desejo de obter bons
resultados, cumprir bem os trabalhos etc. 2.
Vejamos a mesma constatação nas palavras de Dayrell:
(...) para a maioria, a escola se constitui como um campo aberto, com dificuldades em articular seus interesses pessoais com as demandas do cotidiano escolar, enfrentando obstáculos para se motivarem, para atribuírem um sentido a esta experiência e elaborarem projetos de futuro. Mas, no geral, podemos afirmar que se configura uma ambigüidade caracterizada pela valorização do estudo como uma promessa futura, uma forma de garantir um mínimo de credencial para pleitear um lugar no mercado de trabalho, e pela possível falta de sentido que encontram no presente (DAYRELL, 2007, p.18).
François Dubet, sociólogo, analisando o caso francês, retrata uma situação muito
semelhante com o que se verifica na atual situação do sistema escolar brasileiro:
Os alunos negociam um conformismo escolar limitado em troca de notas médias que lhes assegurem uma sobrevivência tranquila no sistema. Ameaçando os professores de se retirarem completamente do jogo ou de serem violentos, acabam obtendo um equilíbrio precário no qual uma boa vontade explicita lhes garante notas médias. (DUBET, 2001, p.17).
Essa constatação, feita primeiramente por professores, e apenas tardiamente por outras
parcelas da sociedade, coloca o problema da origem dessas atitudes. Qual o motivo de
uma geração não desejar se instruir e se preparar para um mundo adulto em que a
competição pelos postos de trabalho vem se tornando cada vez mais acirrada?3
É preciso reconhecer que há muitos problemas na gestão do sistema público de
educação. Há uma proporção insuficiente de investimentos no sistema educacional
2 Apesar desta constatação, não sugerimos, como fazem análises mais simplistas, que a culpa pela “crise” da escola resida no jovem que, como aluno, age da forma descrita. Tal comportamento é fruto de processos sociais mais amplos, sendo estes processos o que este trabalho procurará contribuir para elucidar.3Essa é a forma mais comum de a pergunta surgir para os observadores da questão. Mas talvez a pergunta devesse ser reformulada (e será mais adiante) tendo em vista suas limitações de horizontes.
brasileiro, isso resulta em: precária infraestrutura, falta de equipamentos, baixos salários
para os profissionais da educação etc. – estes âmbitos já são amplamente ressaltados
pela mídia e por outros setores da sociedade -e são fatores da maior importância para o
insucesso do sistema educacional. Porém desejamos saber algo mais. Buscamos
descobrir se a dificuldade dos jovens alunos para se motivar e construir sentido para
suas experiências de aprendizagem tem explicação unicamente com base nas dimensões
internas ao sistema escolar, ou se não haveria condições externas (sócio-históricas) da
maior importância contribuindo para a construção desse fato? Os determinantes desse
problema são somente institucionais (escolares) ou também são, em última instância,
referentes à estrutura social (relações econômicas, políticas e sociais)?
Dayrell também nos conduziu para essa interrogação ao apontar a dificuldade do aluno
em lidar não só com os trabalhos escolares, com as normas, os espaços e o cotidiano
dessa instituição, mas de modo semelhante, o jovem demonstra uma relação de
“distanciamento” com o conhecimento que é oferecido nas situações de aprendizagem:
A tensão entre ser aluno e ser jovem se manifesta também na relação com o conhecimento e os processos de ensino-aprendizagem. Nas pesquisas já citadas, tem sido reiterada a crítica dos alunos a um currículo distante da sua realidade, demandando que os professores os “situem na matéria”, ou seja, os ajudem a perceber o que determinado conteúdo tem a ver com eles e sua vida cotidiana. Por outro lado, o investimento dos alunos e o seu envolvimento com as disciplinas são diferenciados, dependendo da forma como cada um elabora o seu estatuto como aluno, mas também com a capacidade de atribuir sentido ao que é ensinado, condição essencial para a aprendizagem (DAYRELL, 2007, p.18).
Se o jovem tem dificuldade em compreender o sentido de um conteúdo de uma ciência,
da filosofia ou da arte, a quem iremos culpar? O problema está no professor que não
sabe articular o conhecimento com o cotidiano do jovem? Essa é uma tarefa fácil? Qual
é o cotidiano em que vive esse jovem? Quais os estímulos presentes em sua vida? O que
o motiva e por quê?
Isso aponta a necessidade de entendermos qual é essa realidade juvenil que pode estar
situada “distante” demais do conhecimento científico acumulado que a escola (bem ou
mal) procura transmitir:
Na freqüência cotidiana à escola, o jovem leva consigo o conjunto de experiências sociais vivenciadas nos mais diferentes tempos e espaços que, como vimos, constituem uma determinada condição juvenil que vai influenciar, e muito, a sua experiência escolar e os sentidos atribuídos à ela (DAYRELL, 2007, p.14).
Assim como Dayrell, entendemos que as experiências que os jovens constroem fora da
escola tem papel importante para a relação de desinteresse e conflito que constroem
com ela. É fundamental então conhecer os jovens em sua totalidade, em interação com
as diversas instâncias que os produzem. Esse ponto da questão é pouco ressaltado nas
discussões, nas reflexões sobre o sistema educacional, por isso, nos deteremos nesse
aspecto que pode se mostrar mais importante do que parece.
1.1 DA CRÍTICA AO SISTEMA EDUCACIONAL, AOS PROFESSORES E
AOS ALUNOS À CRÍTICA SOCIAL.
O pensador português, Rui Canario, é um daqueles que apesar de reconhecer os
problemas no interior do sistema escolar, a seu modo procurou buscar explicações para
a crise do mesmo também fora dele. Para ele, essa explicação encontra-se em mudanças
estruturais da sociedade em um passado recente.
Rui Canário entende que estaria ocorrendo uma “crise” da escola com seus públicos a
quem pretende formar. Esta “crise” não é nova e muito menos circunscrita a um âmbito
local ou específico. A chamada “crise da escola”, “ponto pacífico entre os educadores”
segundo Dayrell, atinge a realidade educacional da maioria dos principais países
desenvolvidos industrialmente e, ao mesmo tempo, não é um fenômeno recente, seu
princípio data na Europa do início da década de 70. No entanto, como se trata de uma
crise prolongada, e que para o autor tem fundamento estrutural, o conceito empregado
não lhe parece adequado: “Em vez do conceito de crise, que remete para problemas de
natureza conjuntural, julgamos mais pertinente o conceito de mutação, que remete para
mudanças e problemas de carácter estrutural” (CANARIO, 2005).
Canário entende que as contradições estruturais que a escola vem mostrando ocorrem
em conexão com mudanças econômicas, políticas e sociais mais amplas que afetaram o
mundo durante o século XX. A escola passou em menos de um século de uma realidade
de certezas para uma de incertezas.
A “escola das certezas” tem seu período áureo após a Revolução Francesa até o final da
Primeira Guerra Mundial. Nesse contexto havia uma “dupla coerência” interna e
externa. Ela tinha como público alvo apenas os jovens das elites, havia pouca
diversificação. A homogeneidade social facilitava para estes jovens e para a escola a
obtenção de uma clareza de meios e fins. Os projetos de futuro destes jovens
construídos junto com a escola eram visíveis, porque os postos mais qualificados na
sociedade estavam reservados aos mesmos após o termino de sua formação.
Do mesmo modo não havia contradições entre a escola, sua função, promessas e as
necessidades da ordem política, econômica e social em vigor.
Politicamente, a escola laica significava uma libertação da educação sob a tutela da
Igreja. Era extremamente importante para consolidar a nova forma de integração social,
em que se buscava legitimar os mitos nacionais, que o Estado laico promovesse a
coesão e construísse uma solidariedade nacional diferente dos laços tradicionais. “A
necessidade de assegurar a unidade do Estado nacional, a partir de uma cultura
concebida como objectiva e universal, faz da socialização escolar uma educação moral,
apresentada por Jules Ferry como uma ‘religião da pátria’” (CANARIO, 2005).
Socialmente, a escola representava a necessidade de organizar uma nova forma de vida,
com outras divisões do espaço e do tempo, com uma rotina determinada desde cedo pela
lógica do trabalho industrial assalariado. Segundo o autor: “Esta transformação
implicou a construção social de uma outra visão do mundo, em que o lazer e o trabalho
se dissociaram e a precisão e quantificação do tempo, com base no relógio, passaram a
regular a vida quotidiana, na fábrica e na escola” (CANARIO, 2005).
Em acordo com a nova ordem econômica, a escola vinha substituir o modo de produção
familiar e a educação que ocorria no seio deste. Em pouco tempo ela viria a ser
identificada como instância preparadora para o trabalho.
Canario conclui que a “escola das certezas”:
Acolhendo públicos relativamente pouco numerosos, homogêneos e regulados de forma diferenciada, a escola deste período pôde articular harmoniosamente princípios que se viriam a manifestar como contraditórios (por exemplo, o mérito e a justiça), funcionando como ‘uma terra de justiça, face a uma sociedade de classes’ (CANARIO, 2005, p.68).
Por outro lado, a “escola das promessas” se põe a partir de meados do século XX em
meio a onda de progresso, o período que Hobsbawn denominou de Idade de Ouro do
capital4. Ocorre uma “explosão escolar” no pós-guerra com enorme aumento da
demanda e da oferta de vagas, a escola passa a ser então de massas. As promessas que
4 HOBSBAWN, Eric. Era das Revoluções.
ela trazia eram de desenvolvimento, mobilidade social e de igualdade para os públicos
diversificados que passava a atender. A teoria do capital humano era a ideologia
predominante e garantia que os investimentos trariam retornos individuais (para os
alunos) e coletivos (para o desenvolvimento social).
Porém no início dos anos 70, segundo Canário, surgiria a “escola das incertezas” que
perdura até os dias atuais. A crise econômica mundial, que abriu espaço para o advento
e posterior predomínio das políticas neoliberais também trouxe consequências para o
ambiente educacional. Para Canario, a escola deixou de ser vista como uma instituição
justa e capaz de resolver as mazelas sociais. O ingresso no mundo do trabalho se
tornava incerto, observava-se a “desvalorização dos diplomas” e a dificuldade de
relação entre a escola e os jovens:
A investigação sociológica encarregou-se de demonstrar a inexistência, quer de uma relação de linearidade entre as oportunidades educativas e as oportunidades sociais, quer de uma relação linear entre democratização do ensino e um acréscimo de mobilidade social ascendente (CANARIO, 2005, p.80).
A escola, desde então, encontra-se em um impasse maior do que suas próprias forças.
Diante da incapacidade de “democratizar o elitismo”, e, em meio às contradições
sociais, fica difícil dizer a que a escola de massas se propõe, a falta de coerência entre o
que promete e o que pode realmente fazer é visível:
Por um lado, essa coerência é externa, na medida em que a escola foi historicamente produzida em consonância com um mundo que deixou de existir: o capitalismo liberal fundado num sistema de estados-nação viu o seu termo com o conflito mundial de 1914-1918. Por outro lado, essa perda de coerência é interna, na medida em que o funcionamento interno da escola não é compatível com a diversidade dos públicos com que passou a estar confrontada nem com as missões ‘impossíveis’ que lhe são atribuídas (CANARIO, 2005, p.85).
Por outro lado, François Dubet tem outro entendimento da questão. Para ele, durante a
maior parte do itinerário da modernidade era possível confiar às instituições o trabalho
sobre os jovens que os fazia identificar-se com os outros (adultos) e com os valores em
que acreditavam. Na família e na escola, dentre outras instituições, havia uma forte
afirmação de princípios e disciplinas bem definidas que operavam sobre os indivíduos,
oferecendo-lhes papéis sociais e direcionando-os para os valores gerais, universais
(DUBET, 1998).
Segundo o autor francês, esse momento de “crise da escola” culmina com um processo
contemporâneo que atinge a modernidade, a desinstitucionalização. Isso significa que
ocorre um “esgotamento” dos programas institucionais da sociedade, em que esta
começa a “repassar” boa parte da missão socializadora, da tarefa de integração social,
para os próprios indivíduos.
O jovem nessa nova condição social deve construir o sentido de seus estudos, pois
depende muito de sua personalidade a capacidade ou não de se adaptar ao papel de
aluno:
No curso dos processos de desinstitucionalização, a personalidade pensa antes do papel. É ela que constrói o papel e a instituição. Este movimento não é novo. Ele já foi há muito tempo descrito em termos de crise, de narcisismo, de individualismo. Os conservadores e os donos do pensamento crítico seguidamente o condenam. Os primeiros denunciam o reino dos desejos, os segundos, sua manipulação pelas indústrias culturais. Estes riscos existem, mas os dois tipos de análise não são aceitáveis, porque elas não compreendem o trabalho que os atores realizam sobre eles mesmos, a fim de se constituírem como atores para construírem seu modo social. Os indivíduos são, atualmente, “obrigados” a ser livres e a construir o sentido de sua experiência. Isto constitui o próprio movimento da modernidade (DUBET, 1998, p.5).
Essa desinstitucionalização, não atinge os diversos níveis de ensino do mesmo modo.
Tem menos força no ensino infantil, em que as escolas continuam capazes de inculcar
comportamentos e valores às crianças, do que nos graus posteriores, quando o jovem,
que deveria se tornar aluno, ganha mais autonomia e vivência experiências diversas
construindo seu próprio universo cultural.
Corroborando com essa hipótese interpretativa sociológica, Dayrell avalia que:
Podemos afirmar que, na sociedade contemporânea, os atores sociais não são totalmente socializados a partir das orientações das instituições, nem a sua identidade é construída apenas nos marcos das categorias do sistema. Significa dizer que eles estão expostos a universos sociais diferenciados, a laços fragmentados, a espaços de socialização múltiplos, heterogêneos e concorrentes, sendo produtos de múltiplos processos de socialização (Dubet, 1994; Lahire, 2002; 2005). Nesse sentido, podemos constatar que a constituição da condição juvenil parece ser mais complexa, com o jovem vivendo experiências variadas e, às vezes, contraditórias (DAYRELL, 2007, p.10).
E continua, comparando com o modelo institucional de socialização:
Diante desse modelo, a única saída para o jovem era submeter-se ou ser excluído da instituição. Com a desinstitucionalização e o conseqüente ruir dos muros da instituição escolar, há uma mutação nesse processo. A escola é invadida pela vida juvenil, com seus looks, pelas grifes, pelo comércio de artigos juvenis, constituindo-se como um espaço também para os amores, as amizades, gostos e distinções de todo tipo. O “tornar-se aluno” já não significa tanto a submissão a modelos prévios, ao contrário, consiste em construir sua experiência como tal e atribuir um sentido a este trabalho (Dubet, 2006). Implica estabelecer cada vez mais relações entre sua condição
juvenil e o estatuto de aluno, tendo de definir a utilidade social dos seus estudos, o sentido das aprendizagens e, principalmente, seu projeto de futuro. Enfim, os jovens devem construir sua integração em uma ordem escolar, achando em si mesmos os princípios da motivação e os sentidos atribuídos à experiência escolar (DAYRELL, 2007, p.16).
(Incluir Durkheim no debate sobre a contradição que leva à
desinstitucionalização).
Apesar de concordarmos com Canario a respeito da incapacidade da escola em cumprir
suas promessas, entendemos, por outro lado, que o conflito com seus públicos,
materializado na falta de sentido das experiências escolares não pode ser atribuído
totalmente a uma suposta “consciência” dos jovens em relação a esse processo descrito.
Nem todos os alunos se desinteressam por terem consciência de que seus diplomas estão
“desvalorizados”. Pelo contrário, a importância do processo educativo na projeção de
uma futura posição profissional desejada é ressaltada por boa parte dos jovens.
(mencionar pesquisas) Os motivos para o desinteresse então, se mostram múltiplos e
diversificados, na maioria das vezes, muito mais ligados às próprias experiências e
identidades juvenis construídas no cotidiano. É isso o que tentaremos demonstrar na
continuação deste trabalho.
Pudemos observar também, através das contribuições de Dubet e Dayrell que ocorre um
panorama complexo de socialização juvenil, em que a integração social se torna mais
problemática, principalmente para os sujeitos mais pobres (DUBET, 1998, DAYRELL,
2007). Pensamos que isso não se explica pelo “movimento da modernidade”, mas pela
relação do jovem com o mundo, com a pobreza e as limitações de suas experiências,
que gera como consequência, restrições das possibilidades de construir sentido para suas
ações (inclusive com a escola), devido aos obstáculos colocados pela precária situação
financeira em uma estrutura social altamente desigual.
O enfoque desta análise interpretativa é diante disso a socialização juvenil. Procuramos
conhecer através da leitura crítica e comparativa de pesquisas qualitativas e
quantitativas, um pouco do universo de experiências a que está submetido o jovem
pobre no contexto urbano brasileiro. Estas relações ocorrem simultaneamente nos mais
variados tempos, espaços e integrações sociais em meio à necessidade de inserção
precoce no mercado de trabalho, às alternativas que neste se apresentam, e às
oportunidades de utilização do tempo livre no cotidiano. Buscamos então identificar de
que modo são “socializadas” parcelas das juventudes urbanas pobres brasileiras e as
suas influências nas relações e sentidos que o jovem pobre estabelece com a escola.
É hora então de reformular nossas problematizações. Sabemos que a sociedade atual
aprimora o conhecimento humano em todas as áreas: ciências, tecnologia, artes, etc. de
forma espantosa, diversifica as capacidades humanas e multiplica as relações entre os
indivíduos, em um contexto globalizado em que a disseminação dessas potencialidades
humanas vai se tornando cada vez mais ampla. Entretanto, as contradições em cujo
interior se realizam essas conquistas colocam perguntas que consideramos pertinentes:
Tem essa riqueza acumulada da humanidade se transferido para os jovens indivíduos
que a ela pertencem? Ou ao contrário disso, o desenvolvimento filosófico, científico,
político, tecnológico, artístico, etc. tem se concentrado em centros de excelência de tal
forma que o jovem “comum”, em especial os oriundos das parcelas de renda mais baixa
da classe trabalhadora, acaba sendo obrigado a constituir sua subjetividade, imerso em
um cotidiano de pobreza material, e efetivamente também espiritual? E dessa forma não
é estimulado a buscar nada além do imediato, vivendo na exclusão prática e na
ignorância teórica de tudo o que a sociedade foi capaz de conquistar no decorrer da
história? E para completar esse quadro perverso, esse jovem ainda seria
responsabilizado socialmente por suas deficiências, tendo em vista que a escola e o
conhecimento que ela oferece são apresentados como um meio de salvação, meio este
que ele rejeita (não por uma decisão consciente) por serem incompatíveis com as
exigências de uma determinada forma de ser jovem que constrói em seu cotidiano? O
jovem, no final das contas, também não internalizaria no futuro uma boa parte da
responsabilidade pelo fracasso escolar produzido em grande parte pelo grau presente de
alienação da estrutura social, e dessa forma, mesmo vivendo uma “inclusão precária” 5
não seria mais uma opinião legitimadora da presente ordem social?
Procuramos nas contribuições de Agnes Heller, possibilidades de responder a essas
perguntas, de modo que em diálogo e mesmo em oposição em alguns momentos com os
outros autores, estabelecemos uma tentativa de esclarecer as origens das relações
contemporâneas entre juventudes e escola, desvendando uma possível perversidade,
desumanização e alienação na formação social dos indivíduos na sociedade capitalista
atual.
5 Conceito desenvolvido por José de Souza Martins.
2. EXPLICAÇÕES METODOLÓGICAS
Em meio a várias dificuldades de ordem objetiva chegamos a uma definição da
metodologia desta pesquisa.
Por falta de condições de realizar um trabalho de campo, por limitações de tempo e
financeiras, resolvemos buscar contribuir para os estudos sobre juventude, socialização
e escola com base na análise crítica de investigações qualitativas e quantitativas
recentes. Estes trabalhos de cunho etnográfico têm-se ampliado nos últimos anos e
constituem importante ferramenta para a compreensão da juventude em pontos que não
são desvendados pela abordagem quantitativa tradicional. Segundo Sposito:
Assim, invertendo a relação entre pesquisa qualitativa e quantitativa – em que a primeira sempre foi considerada uma atividade exploratória e preliminar a ser validada nos procedimentos quantitativos posteriormente (STAKE, 1982) –, o momento das sondagens de opinião poderia ser tratado como instância geradora de novas problemáticas que deverão ser mais bem compreendidas por meio de um amplo esforço de investigação de natureza qualitativa (SPOSITO, 2005, p.88).
O desafio foi então procurar entender e comparar criticamente os esforços recentes no
âmbito da pesquisa qualitativa sobre juventudes no Brasil, tendo como principal
preocupação no tratamento das fontes, verificar quais as posições que se afirmam como
explicações possíveis para a relação entre escola, socialização e juventudes.
No que tange aos trabalhos qualitativos, selecionamos quatro (duas dissertações e duas
teses) selecionadas pelo critério de investigação das mesmas, ou seja, a valorização das
diferentes experiências sociais e a tentativa de captar a vida das juventudes de
determinada região do país em sua totalidade, passando pelas relações com as
instituições socializadoras mais tradicionais (família, escola e trabalho), assim como nas
interações cotidianas que ganham um peso cada vez maior na constituição da identidade
dos sujeitos (relações com os amigos, atividades de lazer e cultura, percursos pelos
espaços como a rua, festas etc.) de forma a possibilitar uma visão ampla sobre o
cotidiano juvenil, o que nele normalmente está presente e o que não está.
A principal preocupação deste trabalho se volta para entender o papel das estruturas
sociais na formação dos indivíduos. Não nos escapa o fato de que a relação entre a
escola e as juventudes no Brasil se dá de forma muito diversa, com a influência de
determinantes econômicos, sociais e políticos (presentes de forma mais ou menos
indiferenciada para os jovens da mesma condição social), mas também nos casos mais
particulares a variação ocorre também com base em condições específicas como: idade,
sexo, qualidade da escola em que o jovem estuda (SPOSITO, 2005). Portanto, aquilo
que tentaremos estabelecer neste trabalho não dá conta de retratar fielmente a
diversidade das relações com a instituição em questão, mas procura compreender o
papel dos determinantes sociais mais globais que, para além das variações locais, afirma
a ocorrência de uma “crise da escola com seus públicos” em amplitude mundial
(CANARIO, 2005). Em suma, procuramos partir de pesquisas qualitativas que detalham
os percursos juvenis singulares, passando pelas contribuições das pesquisas
quantitativas, que nos situam a respeito da possibilidade ou não de generalizar parte do
conteúdo observável, para assim podermos tirar algumas conclusões de acordo então
com a natureza do problema.
Nesse sentido, o trabalho de Juarez Dayrell foi pioneiro em conseguir alcançar uma
transversalidade e captar a socialização dos indivíduos o mais próximo possível da
totalidade. Por mais que o título de sua obra deixe a entender que o foco da análise seria
a relação de jovens produtores com seu estilo musical, na verdade, Dayrell opera uma
descrição exaustiva e interpretação perspicaz do cotidiano desses jovens selecionados
por seu envolvimento com a cena musical de Belo Horizonte. A família, o trabalho, a
escola, o lazer, o cotidiano etc. dos jovens funkeiros e rappers são alvo do complexo
estudo de Dayrell. A metodologia da pesquisa participante, com o acompanhamento
pessoal dos jovens em algumas de suas atividades, e as longas conversas, perguntando o
sentido para eles de suas atitudes e do mundo em que viviam, oferece ao leitor deste
trabalho elementos para visualizar ao mesmo tempo, as opiniões do jovem a respeito da
realidade e a própria realidade em que atuavam, coisas distintas e devidamente
separadas pelo autor da tese.
Além do trabalho de Dayrell, tivemos acesso a três trabalhos posteriores ao seu, duas
dissertação de mestrado e uma tese de doutorado, de diferentes regiões do país, que ao
que parece, procuraram seguir linha metodológica semelhante, com a descrição da
realidade cotidiana dos jovens em seus múltiplos aspectos, entrevistas para entender o
que os mesmos pensavam sobre as principais instituições e vivências de sua existência,
com muitas vezes, uma atitude de instigação por parte do pesquisador para que
relatassem aspectos do passado e do futuro, além das contribuições da análise
sociológica comparando-a com as percepções dos jovens.
Segue os resumos das dissertações e teses, e nossos comentários iniciais.
DAYRELL, Juarez. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da
juventude em Belo Horizonte (Tese, USP, 2001).
RESUMO:
Esta investigação se propõe a discutir os processos de socialização vivenciados por
jovens pobres na periferia de Belo Horizonte. Tendo como foco os jovens
integrantes de três grupos de rap e três duplas de funk, procura analisar as suas
experiências culturais e o sentido que tais práticas adquirem no conjunto dos
processos sociais que os constituem como sujeitos sociais. Significa compreender
como eles elaboram as suas vivências em torno do estilo e os significados que lhe
atribuem, mas também revela-os na sua condição de jovens, além da sua
participação nos grupos musicais, buscando apreender as relações que estabelecem
entre essa experiência e a vivência nas outras instâncias sociais em que se inserem,
como a família, o trabalho ou a escola. A investigação aponta que os rappers e os
funkeiros encontram poucos espaços nas instituições do mundo adulto para
construir referências e valores por meio dos quais possam se construir como
sujeitos. Os estilos rap e funk assumem uma centralidade na vida desses sujeitos.
Por meio deles reelaboram as imagens correntes sobre a juventude, criando modos
próprios de ser jovem, e expressam a reivindicação do direito à juventude.
Juarez Dayrell procura investigar a socialização da juventude pobre de Belo Horizonte
tomando como base para sua pesquisa grupos de rap e funk, alguns dos representantes
mais importantes dos estilos juvenis da cidade.
O autor consegue entrar em contato com três grupos de rap e três duplas de funk, que
aceitam expor seu cotidiano e trajetória de vida ao pesquisador. Dayrell desenvolve uma
metodologia que chama de “pesquisa participante” na qual, além de acompanhar os
jovens, sempre que possível, pelos espaços e atividades cotidianas dos mesmos,
desenvolve entrevistas para descobrir aspectos de suas experiências de vida, focando em
alguns pontos fundamentais como: relação com a família, com a escola, com o estilo
musical, projetos para o futuro etc.
Em um dos capítulos, Dayrell discorre sobre as origens do rap em Belo Horizonte,
apresenta os grupos musicais e a trajetória profissional dos mesmos, além de discutir a
respeito dos significados do rap para os jovens. Desenvolve algo semelhante no capítulo
dedicado ao funk.
No capítulo seguinte, aquele que consideramos o mais rico em contribuições para os
fins desta iniciação, Dayrell abandona a ênfase nos estilos musicais adotados pelos
jovens da pesquisa e descreve com mais detalhes os percursos de vida de três jovens,
com os quais pôde estabelecer uma relação de mais intimidade e confiança, e por tal
motivo, recolher mais informações e produzir reflexões relevantes. Ressalta que estes
jovens não devem ser entendidos como tipos ideais, mas apenas como sujeitos
específicos em uma realidade que atinge de modos diferentes os indivíduos que a
vivem.
Com as análises de Dayrell e as falas dos jovens torna-se possível perceber os limites
objetivos e subjetivos dos personagens deste trabalho, fazer uma reflexão sociológica a
respeito da escola, do trabalho, da família, e de outros componentes sociais. É muito
interessante a conexão que este autor faz entre as vivências particulares dos jovens, suas
opiniões e os problemas sociais mais amplos que exigem o recurso da abstração teórica.
RITTI, Rosalinda Carneiro de Oliveira. Adolescentes de periferia: subjetividades
construídas entre o poder e a violência (Dissertação, UCP, 2010).
RESUMO:
O presente trabalho, fruto de uma pesquisa qualitativa de cunho etnográfico,
analisa a constituição da subjetividade de adolescentes moradores de um bairro de
periferia da cidade de Juiz de Fora, priorizando os temas do poder e da violência.
Como principal instrumento para coleta de dados, além da observação de campo e
conversas informais com os adolescentes, foram realizadas rodas de leitura. Foram
selecionados para análise os seguintes tipos de relações: com a família, com os
amigos (o “bonde”), com os grupos rivais, com a sociedade fora do contexto
comunitário, com a polícia, com o narcotráfico, com a escola, com uma Instituição
Espírita situada no bairro onde residem e, finalmente, aquelas que desenvolvem
consigo mesmos. Privilegiamos nas análises tanto as experiências vivenciadas pelos
adolescentes quanto a força dos discursos produzidos sobre eles. Michel Foucault,
que entende o sujeito como contingente, histórico e produzido por práticas
discursivas (que o nomeiam, classificam e ditam as regras para suas condutas) e
não discursivas (que se efetivam nas relações de poder e pelo governo de suas
ações) é o principal referencial teórico desta dissertação.
Ritti é motivada a pesquisar o cotidiano e procurar entender as vivências de
adolescentes de uma região pobre de Juiz de Fora (MG), após ter contato com os
mesmos após uma atividade voluntária em uma instituição espírita que realiza trabalho
comunitário na favela.
Em uma dinâmica com alguns adolescentes, ela descobre que seus maiores interesses
giram em torno do funk, de seu estilo, símbolos e do “bonde”, grupos formados por
adolescentes do bairro e que se reúnem para enfrentar violentamente os adolescentes
dos bairros vizinhos.
A autora surpreende-se com a falta de perspectivas de futuro desses jovens, e se propõe
a investigar as relações que os constroem dessa forma, que ela classifica como relações
de poder e violência.
A pesquisadora reúne então um grupo de vinte e três adolescentes de 14 a 18 anos.
Destes, quinze são do sexo masculino e oito do feminino. Só dois não estudam. Suas
trajetórias são ligadas a reprovações e desistências escolares.
Através de rodas de leitura, entrevistas com os adolescentes e moradores do bairro, a
autora procura reconstruir a trajetória e entender o cotidiano presente desses jovens em
suas relações com a família, escola, polícia, tráfico, bonde (amigos), os outros (a
sociedade e os bairros “inimigos”), etc.
A descrição de Ritti aponta jovens precocemente envolvidos com as drogas, com a
sexualidade, com a violência e com o fracasso escolar.
HIRAO, Silvia Eri. Ser jovem na Cidade Tiradentes: um estudo exploratório
(Dissertação, USP, 2008).
RESUMO:
Esta dissertação busca conhecer as formas de vivência da juventude de Cidade
Tiradentes a partir de olhares que perpassam as variadas dimensões de
constituição do sujeito juvenil, sem localizar seu foco central nas instituições, que
têm, em um novo cenário da condição juvenil, compartilhado sua exclusividade de
esferas socializadoras e referência identitária com outras formas de socialização e
construção de identidade. A metodologia utilizada valeu-se da aplicação de
questionários e da realização de grupos focais com jovens residentes em Cidade
Tiradentes, totalizando o levantamento das opiniões de 80 jovens. As falas
discorreram sobre juventude, bairro, cotidiano, lazer, cultura, família, escola,
amizade, trabalho, tráfico de drogas e projetos de futuro. A partir desses temas,
foram identificadas questões que qualificam a construção de moratórias sociais
muito específicas e que acompanham a pluralidade do conceito de juventude. A
qualificação dessas moratórias mostra-se vinculada em grande medida às formas
de percepção e de reação a julgamentos e a estigmas difundidos pela sociedade e
frequentemente absorvidos pelos jovens. Também se revelam como fatores
condicionantes o usufruto do tempo livre; a ligação afetiva com o distrito, sendo
que aqueles que cresceram no local são muitas vezes aqueles que desejam
permanecer; a questão do gênero, como propiciador ou limitador de práticas
sociais e ocupação do espaço diferenciada; e a dimensão da moderação,
caracterizando a possibilidade de liberdade que pode ser vívida e usufruída e que
qualifica a condição juvenil na Cidade Tiradentes.
A autora se propõe a analisar os jovens de Cidade Tiradentes em São Paulo, como
forma de ampliar o seu conhecimento sobre esse segmento populacional nessa região,
continuando os estudos desenvolvidos por ocasião de seu TCC.
Em seu trabalho anterior, a proposta havia sido de estudar as atividades de uma ONG
que desenvolvia cursos profissionalizantes em Cidade Tiradentes. Após essa pesquisa,
surgiria o desejo da pesquisadora de aprofundar o entendimento sobre os jovens que se
formam naquela região, observando de forma mais ampla o cotidiano e as relações que
vivenciam.
A metodologia desenvolvida é de questionários aplicados em três locais (ONG de
cursos profissionalizantes, uma escola estadual e a praça central da região), além de
grupos focais em que os jovens são convidados a participar e a discutirem suas
experiências.
Hirao recolhe desse modo, depoimentos de jovens que expressam suas vivências,
opiniões e percepções a respeito da família, escola, rua, cotidiano, violência, etc.
Conclui que os jovens de Cidade Tiradentes constroem uma moratória específica em
que vivem uma condição juvenil caracterizada pelo divertimento e liberdade, mas com
os cuidados necessários de quem convive em um local violento.
STECANELA, Nilda. Jovens e cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela
escola da vida (Tese, UFRGS, 2008).
RESUMO:
O objeto de estudo deste trabalho transita pela dimensão não-escolar da educação,
tomada como objeto de análise a partir do cotidiano de jovens de uma periferia
urbana do interior do Brasil, entrelaçando elementos das culturas juvenis com a
categoria nativa escola da vida.
A pesquisa se propõe a estreitar os elos entre a sociologia da educação e a
sociologia da juventude, buscando interfaces interdisciplinares como forma de
compreender os processos informais da socialização juvenil.
A questão central da investigação situa-se em saber ‘como os jovens da periferia
urbana vivem, percebem e concebem sua condição juvenil na ocupação de seus
tempos livres e como e quais conhecimentos eles constroem em suas redes de
sociabilidade’.
Os caminhos investigativos transitam pelos pressupostos da pesquisa qualitativa,
tomam a sociologia da vida cotidiana como perspectiva metodológica e agregam-
lhe registros etnográficos. Nos enunciados dos jovens sobre o cotidiano, encontra-
se a matéria-prima deste trabalho, contribuindo para a tessitura de um diálogo em
três dimensões, de modo a articular os seus conteúdos de vida; os referenciais
teóricos; e os objetivos, problema de pesquisa e olhar da pesquisadora.
Os suportes teóricos do texto ancoram-se em autores contemporâneos, tendo José
Machado Pais e Alberto Melucci como os grandes inspiradores, tanto na
perspectiva metodológica quanto ao que se refere ao tema da juventude.
As principais contribuições deste estudo situam-se na compreensão de que a partir
dos trânsitos com a pressão do cotidiano, com o paradoxo da escola e com a escola
da vida, os jovens da periferia são desafiados a construírem suas biografias
reinventando-se cotidianamente, em percursos caracterizados pela inclusão
precária, num intenso processo de aprendizagem que decorre da experiência. Em
meio ao desmoronamento dos muros das instituições clássicas de socialização, os
jovens da periferia desafiam e reinventam modos de ser jovem através de
processos de socialização informais, fato que possibilita olhar para os processos
educativos não-escolares a partir de um viés sociológico.
A ideia de Nilda Stecanela que a motiva a investigar o cotidiano de jovens pobres de
Caxias do Sul é a de que os jovens aprendem na “escola da vida” de forma diferente da
forma escolar. Eles constituem sabedoria de “experiência feita” (inspirada em Paulo
Freire), que devem ser considerados pela escola para que essa possa envolvê-los e se
adaptar à nova realidade social contemporânea.
A autora assume algumas categorias para o entendimento do cotidiano e das
experiências do jovem que ela denomina de “categorias nativas”, tais como: (pressão do
cotidiano, trânsitos, escola da vida etc.) e incorpora as formas de falar dos jovens em
suas análises interpretativas.
3. UMA ANÁLISE CRÍTICA DA FORMAÇÃO DO MUNDO E DA
“CULTURA JUVENIL” NO COTIDIANO COM BASE NO
PENSAMENTO DE AGNES HELLER
Agnes Heller é um dos principais expoentes da Escola de Budapeste, grupo de
pesquisadores que se formou em torno das contribuições de Georg Lukács. Reconhecida
pelo filósofo húngaro como o membro mais ativo de seu plantel de pensadores, Heller
desenvolveu suas reflexões sobre temas variados, tendo suas obras traduzidas para
diversos idiomas.
Usamos neste trabalho, particularmente suas investigações sobre o cotidiano, referentes
à sua fase marxista6. Suas análises sobre o tema procuraram expor a essência da vida
cotidiana, discutir aspectos que tocam nos pontos fundamentais dessa temática. Por
6 Segundo GRANJO (1996), a obra de Agnes Heller pode ser dividida em duas fases: uma na qual a autora se baseia fundamentalmente na herança marxiana, e um segundo momento (período de sua produção mais recente) em que a mesma não deixa claro quais são seus principais referenciais teóricos.
mais que seu intento não fosse dedicar-se a uma discussão geracional, sua análise toca
na vida comum a todas as pessoas, inclusive do jovem, permitindo levar em conta em
seu ideário as especificidades deste grupo etário. Isso faz com que suas pioneiras
contribuições sejam relevantes mesmo após algumas décadas da finalização dos
trabalhos em questão.
A perspectiva deste trabalho é a de que a sociologia da vida cotidiana helleriana que
procura o entendimento do processo de integração social nas sociedades antigas e nas
sociedades modernas, constitui uma alternativa interpretativa coerente para
identificarmos as mudanças na socialização contemporânea. Posição teórica que é
distinta daquela sugerida por Dubet, a denominada desinstitucionalização. A abordagem
com base na ideia de alienação da vida cotidiana (abordagem pouco considerada pelos
especialistas no assunto) pode se mostrar muito fecunda para um entendimento distinto
das relações entre instituições e indivíduos no atual contexto social. Defendemos ainda
que as categorias da autora podem proporcionar um aprofundamento na compreensão
dos nexos causais presentes na origem das relações entre os jovens, socialização e a
escola. Sendo assim, estabelecemos diante do problema em questão uma crítica voltada
eminentemente à estrutura social.
Devemos começar explicitando que, para Heller, a vida cotidiana é um conjunto de
atividades que permite a reprodução dos homens particulares e por consequência a
reprodução social. Todo homem, qualquer que seja sua posição na divisão do trabalho,
tem uma vida cotidiana. “São partes orgânicas da vida cotidiana: a organização do
trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o
intercâmbio e a purificação”.
Essa esfera da sociedade tem uma história, sendo ela, de certo modo, um espelho das
mudanças históricas que se realizam na esfera da produção e do intercâmbio material.
As transformações que ocorrem nas outras esferas acabam se concretizando na vida
comum dos homens dos mais variados estratos ou classes sociais (HELLER, 2008).
Todo homem para reproduzir-se, isto é, para sobreviver, precisa se apropriar das
objetivações do mundo em que nasce, ou seja, de seu “ambiente imediato”. No seu
desenvolvimento, ele deve “amadurecer”, isto é: “O amadurecimento do homem
significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades
imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão”
(HELLER, 2008).
Para Agnes Heller, as objetivações humanas podem ser separadas em dois níveis:
primário e superior.
A linguagem, o sistema de hábitos e os usos dos objetos constituem exemplos de
objetivações primárias, enquanto o trabalho, a arte, a ciência, a moral e a política são
algumas das objetivações superiores do gênero humano. As objetivações primárias
precisam ser apropriadas pelo indivíduo em seu cotidiano, isso constitui uma condição
básica para que possa sobreviver. Porém a respeito das objetivações superiores, comenta
a autora: “Cuanto menos enajenada es la vida cotidiana, en mayor grado se relaciona el
hombre, dentro también de lo cotidiano, con otros niveles – superiores – de las
objetivaciones” (HELLER, 1987).
Além disso, ela observa que: “A vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é
aquela que mais se presta à alienação” (HELLER, 2008).
3.1. A ALIENAÇÃO DA VIDA COTIDIANA
Alienação se tornou um termo popular. Enquanto expressão comum não tem o mesmo
sentido que possui no ideário marxiano. Normalmente se diz: “O Pedrinho é alienado”,
deixando a entender que a alienação se trata de uma impossibilidade de pensar ou de
refletir criticamente, e que o indivíduo é o principal responsável por este fato ao não se
instruir. Veremos que a concepção marxiana em nada se identifica com tal
simplificação.
A alienação é uma categoria chave. Desenvolvida nos escritos de juventude de Marx,
ela constitui um reflexo ideal de um processo real que se efetiva na atividade laboral do
trabalhador assalariado com o advento do capitalismo industrial. Incapacitado de
realizar sua potência humana, o trabalhador vive a sua atividade como alienada com
relação aos fins (que não foi ele quem definiu e com os quais não se identifica), aos
meios de produção (que não lhe pertencem mais) e ao processo produtivo (que não está
sob seu controle). Esta categoria apesar de ser rejeitada por todos os apologistas do
sistema capitalista liberal se mostrou extremamente fundamental para uma compreensão
ontológica das relações sociais sob o capital7.
O grande mérito de Agnes Heller foi retomar os escritos marxianos e apontar que a
capacidade explicativa da categoria alienação não se restringia ao âmbito do trabalho
assalariado, mas também poderia ser utilizada para desvelar a lógica de processos
existentes na vida cotidiana das pessoas.
A autora esclarece primeiramente que, a alienação sempre se dá referente a alguma
coisa, mais precisamente, se dá em face das possibilidades concretas de
desenvolvimento alcançado do gênero humano (HELLER, 2008). Sendo que na vida
cotidiana, ao contrário do que sugere o senso comum, é uma característica originada da
estrutura social e não do indivíduo que efetiva suas experiências nela.
3.2. CAPITALISMO: DESENVOLVIMENTO GENÉRICO E
ALIENAÇÃO DOS INDIVÍDUOS
O alto grau potencial de alienação presente na estrutura da sociedade contemporânea
deriva de processos sociais simultâneos e convergentes. O primeiro aspecto que cabe
destacar é que o capitalismo se mostrou como o sistema social que mais desenvolveu as
capacidades humanas genéricas, mas ao mesmo tempo, à custa do empobrecimento
absoluto dos homens comuns ou “médios”, de sua estrutura social.
Segundo Agnes Heller: “En el capitalismo, por ejemplo, donde la convergencia entre el
desarrollo de las fuerzas esenciales de la sociedad concreta y del hombre es máxima
frente a todas las sociedades precedentes, es también máxima la alienación de la
esencia” (HELLER, 1987).
Esse fato já havia sido amplamente debatido por Marx em suas obras. Sua indignação
racional contra o empobrecimento sofrido pelo proletário aponta para essa característica
perversa e contraditória da natureza do capital.
Desdobrando as consequências desse fenômeno, Agnes Heller apontaria mais um
aspecto do problema, a saber, com a divisão social do trabalho, o homem comum ao
nascer e apropriar-se de seu ambiente social primário já se encontraria com a ocorrência
da alienação:
7 Uma explanação mais aprofundada da alienação em Karl Marx encontra-se nos Manuscritos Econômico-Filosóficos.
Con la aparición de la división social del trabajo, el ‘encontrarse al nacer’ en un ambiente social concreto, es decir, el primado de la apropiación de este ambiente en la vida cotidiana se convierte en un fenómeno de alienación (…) Después de la aparición de la división social del trabajo, el desarrollo genérico del hombre en el interior de una integración dada está todavía encarnado por el conjunto de la unidad social, sin embargo, el particular ya no puede estar en relación con toda la integración; en su ambiente inmediato, en su vida cotidiana, el particular no se apropia este máximo – es decir, el nivel de desarrollo de la esencia humana en aquel momento dado (…) (HELLER, 1987, p.28-29).
A divisão social do trabalho refere-se à separação, cooperação e oposição que se dá no
âmbito da produção entre cidade- campo, trabalho intelectual e manual, entre as classes
ou estratos. Nas sociedades tribais ou clânicas, o indivíduo estava em relação com o
conjunto, com a totalidade da integração social em sua integração primária, e, por isso,
era capaz de se apropriar do máximo desenvolvimento humano daquela integração.
Heller, para melhor entendimento dessa questão, faz uma separação entre a realidade
cotidiana que chama de “pequeno mundo” das exigências da integração social mais
elevada que chama de “grande mundo”. A reprodução do particular no pequeno mundo,
necessidade para sua sobrevivência, contribui para a reprodução indireta do “grande
mundo”.
Porém nas sociedades tribais havia uma coincidência entre o pequeno mundo e o grande
mundo representante da máxima integração social. A relação entre o particular e o seu
ambiente imediato era suficiente para que aprendesse as normas da vida social que lhe
garantiriam a sua integração social nos âmbitos mais elevados da coletividade. A vida
era determinada por costumes e regulada por representações coletivas entre as quais não
havia possibilidade de escolher. No entanto, essa “falta de liberdade” era a garantia de
que o homem comum daquela sociedade iria se apropriar de todas as capacidades
desenvolvidas pela essência humana naquele momento histórico.
Com o início da alienação da essência humana e o nascimento das sociedades de classe,
com a divisão do trabalho e a propriedade privada, começaram a se romper essas
barreiras. O sujeito tornou-se mais “livre” para escolher suas integrações (com exceção
dos grupos obrigatórios) e passou a conviver com espaços de culturas, regras e valores
diferentes. O que implica no fato de que na situação atual o indivíduo apenas se apropria
das capacidades, normas, habilidades relativas a seu “pequeno mundo”. Nas palavras da
filósofa húngara:
En el curso de este proceso de alienación va diferenciándose paulatinamente la relación entre el particular y su mundo en la vida cotidiana (…) La relación con la integración social como totalidad – criterio determinante para que las capacidades personales se eleven al nivel de la genericidad – se convierte en una capacidad específica de los representantes de algunas actividades intelectuales, individuos que pertenecen a la clase o estrato dominante o que provienen de sus filas (HELLER, 1987, p.28-29).
Nascidos e integrados aos seus ambientes imediatos e não à totalidade social, os homens
acabam se apropriando apenas de algumas características de sua época dada. Outros
aspectos genéricos lhes aparecem como um mundo estranho, normas, costumes,
aspirações hostis às suas.
Diante disso, coloca-se o imperativo de se afirmar perante outros estratos, espaços,
normas sociais, porém também na relação com os seus semelhantes. A vida cotidiana na
sociedade de classes é uma realidade de luta de acordo com necessidades e
possibilidades que estão ao alcance do particular. Além disso, o indivíduo vive em
instancias de exigências diametralmente diferentes, devendo elaborar modelos de
comportamento diversos. Deve aprender a lutar todos os dias contra a dureza do mundo:
Cuanto más dinámica es la sociedad, cuanto más casual es la relación del particular con el ambiente en que se encuentra al nacer (especialmente después de la llegada del capitalismo) tanto más está obligado el hombre a poner continuamente a prueba su capacidad vital, y esto para toda la vida, tanto menos puede darse por acabada la apropiación del mundo con la mayor edad (HELLER, 1987, p.22-23).
A sociedade burguesa não exige integração plena, que separou os homens
atomisticamente, e isso, como pudemos observar, traz consequências terríveis para as
possibilidades de desenvolvimento humano dos sujeitos. No entanto, os mesmos são
obrigados a se integrar em alguns grupos como a família e a escola (aquilo que os
funcionalistas denominavam de instituições) e tendem a se incorporar a outros por livre
escolha (o que teve grande destaque nos estudos do cotidiano selecionados). Devemos
agora entender qual a natureza dessas relações segundo o ideário helleriano.
3.3. INSTITUIÇÕES OU GRUPOS? DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
OU ESQUIZOFRENIA SOCIAL?
Anteriormente, ao falarmos da vida cotidiana, mencionamos que o “amadurecimento”
do homem ocorre quando ele aprende as capacidades necessárias para guiar-se na vida
cotidiana. Segundo Agnes Heller: “(...) esse ‘amadurecimento’ para a cotidianidade,
começa sempre ‘por grupos’ (em nossos dias, de modo geral, na família, na escola, em
pequenas comunidades)” (HELLER, 2008).
No entanto, Heller reconhece que nas sociedades “puras”, o sujeito encontra-se com
alternativas de movimento ampliadas. Nas sociedades tribais, ele tinha que aprender
requisitos básicos, seguir as regras e normas da comunidade, seu caminho de formação
estava dado. Entretanto, na sociedade dinâmica, ele pode escolher, com algumas
limitações, o seu ambiente e os grupos aos quais quer pertencer.
O conjunto do cotidiano pode ser reestruturado para outras idades nas sociedades puras,
como ocorre no caso da juventude [Groppo]. Na vida cotidiana, formando o seu
ambiente imediato, o homem forma-se a si mesmo. No entanto, é preciso para alcançar
capacidades elevadas do gênero em um determinado contexto histórico, transcender o
cotidiano: “Todas las objetivaciones que no se refieren al particular o a su ambiente
inmediato, trascienden lo cotidiano” (HELLER, 1987).
De acordo com Agnes Heller, não há como objetivar capacidades humanas mais
elevadas sem tê-las apropriado no ambiente cotidiano. “La vida cotidiana hace de
mediadora hacia lo no cotidiano y es la escuela preparatoria de ello”. Por isso, vemos
que o ambiente imediato que o sujeito tem à sua disposição para construir suas
habilidades e sua subjetividade ou cultura juvenil é fundamental. Isso definirá se
teremos um homem ajustado às exigências das objetivações humano-genéricas de seu
tempo ou não.
Na formação do homem, para Heller, o grupo tem o seguinte “papel”:
O homem aprende no grupo os elementos da cotidianidade (por exemplo, que deve levantar e agir por sua conta; ou o modo de cumprimentar, ou ainda como comportar-se em determinadas situações, etc.); mas não ingressa nas fileiras dos adultos, nem as normas assimiladas ganham ‘valor’, a não ser quando essas comunicam realmente ao indivíduo os valores das integrações maiores, quando o indivíduo – saindo do grupo (por exemplo, da família) – é capaz de se manter autonomamente no mundo das integrações maiores, de orientar-se em situações que já não possuem a dimensão do grupo humano comunitário, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e, além disso, de mover por sua vez esse mesmo ambiente (HELLER, 2008, p.34).
Os grupos, antes do capitalismo, eram apenas mediadores das exigências e necessidades
da comunidade, mas com o capitalismo eles se constituíram como única forma de
integração obrigatória. O sujeito pode pertencer a grupos diversos, que o influenciam,
mas que tem diferente importância em sua maduração. Todo grupo desenvolve,
acrescenta, fornece possibilidades de que os sujeitos cultivem suas capacidades, porém
estas podem ser qualidades positivas ou negativas.
Heller, no entanto, indo contra a tendência funcionalista e do senso comum atual de
demonstrar uma confiança demasiada nos grupos como elementos formativos mais
importantes, aponta que: “(...) un grupo (si es solo esto y no también una comunidad) es
incapaz por principio de promover el desarrollo de todas o ni tan siquiera de las más
importantes potencialidades humanas de una persona”.
Pertencendo a vários grupos, sem relação unitária com a comunidade, com relações
independentes das integrações maiores, muitos jovens contemporâneos mostram-se
perdidos diante do mundo, sem se reconhecerem em sua cultura e incapazes de lidar
com sua complexidade:
De aquí – en ciertas épocas, y particularmente en el capitalismo – el típico fenómeno del particular que, apenas ‘entra en la vida’, es decir, apenas deja tras de sí los ‘grupos’ en los cuales ha madurado (la familia, la escuela, el círculo de amigos), de improviso no se reconoce en este mundo y se convierte en un ‘desilusionado’ o en una persona incapaz de vivir (…) A falta de un elemento de mediación que se refiriese al hombre en su totalidad, la totalidad unitaria del hombre se disolvió y dio paso libre a la esquizofrenia social (HELLER, 1987, p.69, 72).
Os apologistas burgueses, fascinados com a liberdade do indivíduo, nem apreciaram o
problema da falta de mediação entre o indivíduo e a sociedade em sua totalidade, nem
perceberam as dificuldades que se impõem aos sujeitos para que estes não percam o
contato com a realidade, algo que tanto lhes é estimulado em seu cotidiano.
Isso decorre do fato de que o grupo é o grau mais baixo, mais primitivo da integração
social. No ideário helleriano não haveria espaço para a proposta funcionalista de
integração (socialização) a partir dos grupos. O desenvolvimento genérico fica
extremamente prejudicado nessas condições e a alienação se impõe de forma marcante
para os mais dependentes dessas integrações primitivas. Em suas palavras: “Cuanto más
cobra éste importancia de por sí, tanto más se clarifican la peculiaridad, el contenido, el
grado de disolución, etc., de otras formas de integración” (HELLER, 1987).
3.4. PARTICULARIDADE E INDIVIDUALIDADE, O COTIDIANO E
O NÃO-COTIDIANO
No livro: Elementos de sociologia, Samuel Koenig explica a concepção clássica de
socialização formulada pela sociologia funcionalista:
Socialização significa o processo pelo qual um indivíduo se torna um membro ativo da sociedade em que nasceu, isto é, comporta-se e age de acordo com os seus folkways e mores. (...) A criança, portanto, tem pouca ou
nenhuma possibilidade de seguir seus desejos, que são em geral hedonistas (procuram o prazer) e egoístas, e são opostos aos do grupo, o qual exige restrição, ordem e abnegação. Estabelece-se um estado de conflito, no qual a sociedade geralmente sai ganhando (KOENIG, 1967, p.70, 72).
Concepções similares a essas ideias foram desenvolvidas por autores reconhecidos
como Durkheim, Mead e Freud (KOENIG, 1967). Como é possível observar nessa
breve exposição, esse entendimento destaca que os homens nascem hedonistas ou
individualistas e com valores e motivações opostas ao grupo social. Por outro lado, a
sociedade que tem a responsabilidade de integrar os indivíduos às suas estruturas morais
e normativas, fato que é concretizado através de suas instituições, que atuam sobre estes
de modo a suprimir suas tendências originais e inculcar-lhes um comportamento social.
Adotando postura crítica com relação a essa concepção teórica, Dayrell sugere que a
grande falha do pensamento sociológico clássico a respeito da socialização era o fato de
negar o papel ativo do sujeito na apropriação da realidade social:
Dessa forma, explicar os indivíduos é explicar a determinação de seu lugar social sobre sua personalidade, uma vez que haveria um processo de interiorização do social e não uma apropriação, como percebemos na lógica do sujeito. O objeto de análise se constitui em torno da religião, da família e/ou da escola, instituições que permitem “fabricar” os atores pelo sistema (DAYRELL, 2001, p.232).
A posição de Dayrell assimila parte das contribuições de Dubet como já comentamos na
introdução deste trabalho. Com a ideia de desinstitucionalização, o autor francês aponta
para uma “ineficácia” das instituições em desempenhar o seu papel tradicional. Nesse
sentido, elas abrem mais espaço para uma atuação do indivíduo na formação de sua
identidade:
O que há de comum nas críticas às concepções clássicas de socialização é o estabelecimento de uma distância entre o ator e o sistema; os atores constroem a sociedade nas trocas cotidianas, nas práticas de linguagem, nos apelos à identidade contra um sistema identificado com a racionalidade instrumental. Como lembra Dubet, enfim, o ator e o sistema se separam (DAYRELL, 2001, p.232).
Segundo Dayrell, o que se procura nas novas teorias da socialização é um lugar para a
ação do indivíduo nesse processo. Para ele, o entendimento mais adequado é o de que os
sujeitos se apropriam do social, dos valores, das normas e papéis que este lhe fornece.
Assim o faz, a partir de uma posição e representação das próprias necessidades e
interesses, mediando fontes, agências e mensagens que lhes são disponibilizadas
(DAYRELL, 2001).
As novas teorias da socialização são progressistas, principalmente quando elas:
a) Rejeitam a ideia de um indivíduo que nasce hedonista ou individualista;
b) Apontam a necessidade de reconhecimento do papel ativo do indivíduo nesse
processo;
c) Procuram explicar as novas relações que se estabelecem entre os indivíduos e as
instâncias socializadoras na contemporaneidade;
Entendemos, porém, que as contribuições de Agnes Heller podem auxiliar a aprofundar
alguns dos pontos discutidos.
Para Agnes Heller, no estudo da vida cotidiana é fundamental distinguir entre as esferas
próprias do cotidiano e aquelas que não pertencem a ele (objetivações genéricas), outra
distinção essencial é a que existe entre particularidade e individualidade. Na vida de
qualquer pessoa estão presentes as duas dimensões (o cotidiano e o não-cotidiano, a
particularidade e a individualidade) sem que haja qualquer muralha que possa dividi-las
de forma definitiva. São duas distinções fundamentais e que podem nos ajudar a
compreender de outra forma o processo de formação dos indivíduos, ou seja, a
“socialização”.
Seguindo o pensamento de Marx, Heller reafirma que o indivíduo é a totalidade das
relações sociais. Este, independentemente da sua posição na divisão social do trabalho
tem uma vida cotidiana. Além disso: “A vida cotidiana é a vida do indivíduo”. E nesta:
“O indivíduo é sempre, simultaneamente, ser particular e ser genérico” (HELLER,
2008).
A autora primeiramente rejeita a separação radical entre indivíduo e sociedade feita pelo
funcionalismo, para em seguida, apontar que a cisão ocorre no interior do próprio
indivíduo que deve ser entendido como unidade de tendências heterogêneas.
Expliquemos isso melhor.
Como é um ser que atua teleologicamente, ou seja, de acordo com uma finalidade, o
homem possui ontologicamente duas possibilidades ligadas à sua própria condição,
como ser particular (Eu) e social (genérico):
A teleologia da particularidade orienta-se – sempre para a própria particularidade, ou seja, para o indivíduo. (...) Enquanto indivíduo, portanto, é o homem um ser genérico, já que é produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano; mas o
representante do humano-genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração (tribo, demos, estamento, classe, nação, humanidade) – bem como, freqüentemente, as várias integrações – cuja parte consciente é o homem e na qual se forma sua ‘consciência de nós’. (...) Nela explicitou-se a teleologia do humano-genérico, cuja colocação jamais se orienta para o ‘Eu’, mas sempre para o ‘nós’ (HELLER, 2008, p.35-36-37).
A realidade é que as exigências da particularidade e as humano-genéricas não se tratam
de duas instâncias separadas, elas estão presentes no mesmo indivíduo. No entanto, essa
coexistência pode ser consciente ou muda, a saber, o indivíduo pode ter ciência de que
possui uma relação com o gênero e desenvolver uma individualidade unificada ou
submeter-se inconscientemente à particularidade e viver uma relação não distanciada de
si mesmo:
Na vida cotidiana, a esmagadora maioria da humanidade jamais deixa de ser, ainda que nem sempre na mesma proporção, nem tampouco com a mesma extensão, muda unidade vital de particularidade e genericidade. Os dois elementos funcionam em si e não são elevados à consciência (HELLER, 2008, p.38).
O homem nasce com características particulares e um ponto de vista particular, mas não
com motivações particulares. As suas motivações surgem das circunstâncias sociais
dadas e não podem ser entendidas separadamente destas. A prevalência das motivações
ligadas à particularidade indica a presença de uma estrutura social alienada:
Cada acción de cada hombre está caracterizada – desde el momento en que el hombre es hombre, esto es, ente genérico –por la consciencia de la genericidad, pero no por una relación consciente hacia ésta. (…) Sin embargo, el grado de alienación en una sociedad dada depende en gran medida de la posibilidad para el hombre medio de realizar en la vida cotidiana una relación consciente con la genericidad y del grado de desarrollo de esta relación cotidiana (HELLER, 1987, p.32, 34).
Dizer que o homem é um ser genérico, é o mesmo que dizer que ele é um ser social. O
homem só pode existir em sociedade, só pode apropriar-se da natureza com a mediação
da sociedade. Cada um transcende sua própria necessidade particular e atua no gênero e
para o gênero. Tenho uma relação consciente com o gênero quando integrações
superiores (arte, ciência, valores etc.) se tornam bases motivadoras de meus atos.
Mas para que essa relação seja consciente, é preciso que o particular conte com uma
estrutura social que o estimule a elevar-se da cotidianidade para uma atuação consciente
com seu gênero. Como já foi dito, Agnes Heller entende que a alienação é sempre
menor quando no próprio cotidiano o homem tem condições de se relacionar em maior
grau com as objetivações superiores (o não-cotidiano). Neste caso, o sujeito se torna
capaz de manter uma relação consciente, fato elementar para que possa ser
verdadeiramente autônomo, ou seja, uma individualidade:
Yo emprendo el camino que me lleva a convertirme en individuo solamente si plasmarme a mí y a mi mundo (...). Por consiguiente, llamamos individuo a aquel particular para el cual su propia vida es conscientemente objeto, ya que es un ente conscientemente genérico. (...) creando la corriente específica que pasa entre la particularidad y la relación consciente con la genericidad; es decir – en parte –, la moral y la política, y también, el arte, la ciencia y la filosofía. (…) ofrece al particular la posibilidad de elevarse por encima de la particularidad, de elaborar una relación consciente con la genericidad, de llegar a ser un individuo (HELLER, 1987, p.52-53,55-56).
Quanto mais o trabalho não-alienado, a arte de qualidade, a ciência não pragmática, a
moral, a genuína participação política, dentre outras coisas que transcendem o cotidiano,
estão presentes neste, mais possibilidades há de o sujeito se elevar da particularidade
para a individualidade, de se tornar autônomo, consciente de sua condição no mundo e
de suas possibilidades diante das circunstâncias concretas de seu tempo:
El mundo externo no constituye un obstáculo, sino que al mismo tiempo es un momento vivificador de la autonomía. El mundo externo establece las tareas, los problemas, los deberes. (…) Cada autonomía es por ello una autonomía relativa. (...) hasta ahora, en el curso de la historia para la gran mayoría de las relaciones y de los estratos sociales el sujeto de la vida cotidiana ha sido la particularidad. (…) Significa solamente que para el particular no ha sido necesario llegar a ser individuo para estar a la altura de aquellas tareas, y además que el mundo ha ofrecido a la media de los particulares pocas posibilidades de ordenar su vida sobre la base de la individualidad. Millones de hombres han cumplido su trabajo, han hecho lo que había que hacer, sin darse cuenta de su puesto en el mundo, sin tener consciencia de que sus facultades eran facultades genéricas, sin imprimir al mundo el sello de su individualidad (HELLER, 1987, p.59, 65 – grifo nosso).
As “tarefas” que a estrutura da vida cotidiana impõe aos sujeitos e a forma de como eles
se posicionam diante das mesmas, determinará se haverá um “inchamento” da
particularidade (alienação) ou expansão da individualidade: “Por consiguiente, es este
proceso, la alienación, el que ‘alimenta’ la particularidad: tenemos así la época – muy
dilatada – de la alienación, en la cual el sujeto de la vida cotidiana es la particularidad”
(HELLER, 1987).
Em casos especiais, em algumas sociedades, a reprodução do particular coincidia com a
elevação até a individualidade. Essas foram as comunidades democráticas,
especialmente, no período clássico da polis grega e durante o renascimento. A relação
se dava de forma individual com a integração comunitária. E a comunidade
representava o mais alto grau de desenvolvimento humano daquele momento histórico.
Façamos agora uma reflexão seguindo as ideias de Heller e as proposições dos outros
autores.
Uma das posições das novas teorias da socialização defende que os sujeitos agora
constroem sua socialização nas trocas cotidianas, centrados nas objetivações primárias,
com a separação entre “ator e sistema”.
Ora, de acordo com o ideário helleriano, percebemos que dessa condição não podemos
apontar consequências das mais positivas, pelo contrário. A vida centrada no cotidiano,
nas relações com as objetivações primárias, a distância de interações com o não-
cotidiano, a dependência dos grupos face-to-face no processo de integração social,
apontam para uma situação que tende a “inchar” a particularidade e expandir a
esquizofrenia social.
Por outro lado, a ênfase na condição ativa do indivíduo em seu processo de formação é
justificada do ponto de vista da crítica ao funcionalismo, porém as posições de Heller
nos alertam para:
a) A falta de autonomia do sujeito centrado na particularidade;
b) A necessidade de reconhecer que a formação do sujeito deve levar em conta as
potencialidades sociais, do contrário, seria aceito como “normal” a condição de
alienação do indivíduo frente ao desenvolvimento genérico da sociedade;
c) A importância de procurar modificar as experiências e circunstâncias sociais
fornecidas aos jovens. Uma mudança que poderia alterar radicalmente as
motivações, os interesses e o comportamento dos sujeitos;
4. A ALIENAÇÃO DO MUNDO DO JOVEM POBRE: A NATUREZA DOS
ESTÍMULOS QUE ATUAM SOBRE OS SUJEITOS NO COTIDIANO.
Uma vez entendida a incapacidade dos grupos básicos de integração social (família,
escola, trabalho) em conseguir controlar e dirigir plenamente, as condutas, o
comportamento e a personalidade dos jovens em nossa sociedade, torna-se de
fundamental importância descobrir quais as características dos outros espaços, tempos e
situações em que os jovens se formam como sujeitos. Esse grande esforço de procurar
conhecer o jovem fora da escola vem sendo realizado pelas pesquisas qualitativas e
quantitativas.
Com base naquelas investigações que selecionamos dentre as existentes procuramos,
não construir um modelo de experiências que é único, típico, ideal e universal, mas
apenas apontar alguns pontos em comum nos diversos trabalhos, as situações que se
mostram presentes na vida de sujeitos de diferentes regiões, a descrição de
homogeneidades sociais que aparecem dentro da heterogeneidade própria do cotidiano
em que vivem esses jovens. A verdade é que muitas vezes concentrados em descobrir
quais as estratégias que os jovens utilizam para lidar com a realidade, acaba-se
descuidando da tarefa de desvendar melhor qual é essa realidade social, e qual a
natureza dos estímulos cotidianos com os quais eles têm de lidar para se construírem,
em um conflito com as exigências sociais contraditórias e suas próprias motivações
internalizadas a partir de suas vivências singulares.
Dito isso, então, quais são os estímulos, quais os agentes sociais que mais estão
presentes no cotidiano, no mundo imediato da juventude pobre e urbana? Com quais
interesses? Quais os possíveis efeitos de suas intervenções?
4.1. AS RELAÇÕES COM O MUNDO DO TRABALHO
Para os jovens envolvidos com o processo de escolarização obrigatória, o trabalho
também se faz presente no cotidiano de boa parte deles. Mesmo quando ele ainda não é
uma realidade efetiva, é capaz de influenciar as atitudes no presente e projetos de futuro
dos jovens que acabam de uma forma ou de outra, reconhecendo a centralidade do
trabalho em suas vidas. Na “Pesquisa sobre juventudes no Brasil”, observamos que a
maioria dos entrevistados (61,1%) considerou a opção “ter mais oportunidades de
trabalho” como aquilo que é mais importante para a juventude hoje. Essa alternativa foi
a mais citada superando objetivos tradicionalmente prioritários para essa faixa etária
como: “estudar e ter um diploma universitário” que teve apenas 20,1% das respostas.
O trabalho tende a ser percebido como necessidade, independência e crescimento para
as populações jovens mais pobres, justamente aquelas que mais precisam de uma
escolarização longa. Dayrell aponta que essa necessidade nem sempre está relacionada a
obtenção de meios de subsistência, mas também vinculada com o consumo requisitado
pela condição juvenil contemporânea. A escola muitas vezes acaba então aparecendo
com menos valor em comparação ao trabalho assalariado, mesmo quando este é
altamente precário:
Já vimos que para a maior parte desses alunos com 16 e 17 anos, o ensino médio é algo distante, quase inatingível. Portanto, o apelo ao trabalho nessa idade correlaciona-se diretamente com uma escolaridade acidentada, em que a ocupação laboral permitiria acesso a uma renda decisiva, em um momento em que o jovem busca uma autonomia financeira que lhe possibilite a realização de pequenos gastos, capazes de lhe propiciar o acesso ao consumo e uma maior mobilidade exigida pelo trânsito social que a idade lhe permite. Entre escola e trabalho, ganha o trabalho, ou melhor, ganha alguma atividade, mesmo que precária, que lhe garanta o acesso a uma renda minimamente satisfatória (DAYRELL et. al, 2011, p.41).
Os desejos de inserção profissional “prematura” desses jovens se choca muitas vezes
com o desemprego juvenil, com as ocupações subalternas e os baixos salários frutos da
dinâmica capitalista contemporânea.
Poderemos observar nas pesquisas qualitativas, que o trabalho que é oferecido aos
jovens pobres não é capaz de fornecer-lhes as oportunidades para construírem
referências positivas, valores ou para efetivarem suas expressões genéricas. Segundo
Dayrell: “Para eles, o trabalho não constitui fonte de expressividade, reduzido a uma
obrigação necessária para uma sobrevivência mínima, perdendo os elementos de
formação humana que derivavam de uma cultura que se organizava em torno dele”
(DAYRELL, 2001).
Cada jovem acaba tendo uma relação própria com as suas condições de trabalho e
encarando-as de uma forma diferente.
Nilda Stecanela nos traz alguns exemplos possíveis de relação com o mundo do
trabalho.
DL
Na época das entrevistas de Stecanela com DL (Douglas Luiz), ele estava
desempregado, porém o jovem já havia passado por algumas experiências profissionais.
Segundo a autora, o jovem começou a trabalhar com 16 anos em um supermercado na
função de empacotador, emprego com carteira assinada. Quando trabalhava no
supermercado, DL roubava algumas coisas para consumir. Achava que isso era certo
diante do baixo salário e da discriminação que sofria.
Foi demitido mais tarde, mas na verdade acabou sendo acusado de pedir demissão.
Quando mostrou ao sindicato papéis cujo significado não entendia, já era tarde.
Após essa experiência frustrante, DL conseguiu emprego em uma transportadora. Neste
caso, sem registro oficial. Segundo Stecanela, o jovem sofria discriminações dos
colegas de trabalho pelo seu visual de rapper. Depois de um tempo decidiu sair do
trabalho.
Resolveu se dedicar ao rap e afirmava que só voltaria a trabalhar se tivesse cargo de
chefia, pois não gostava de ser mandado. Relatava a posição de um amigo ajudante de
pedreiro que trabalhava em um ambiente em que “ninguém mandava em ninguém”, pois
cada um sabia de suas funções. Tomava essa condição de trabalho como referência, no
caso de serem frustrados os seus planos de ocupar um cargo patronal.
Segundo a pesquisadora:
DL era resistente a normas externas, afirmando que não gostava de ser mandado. O jovem preferia fazer suas escolhas e para suas decisões, a partir do seu estado tri alucinado, escutava os anjinhos que apareciam na sua cabeça, indicando sempre dois caminhos (...) (STECANELA, 2008, p.254).
DL passou a escrever no currículo que não gostava de ser mandado. Seu objetivo era
conseguir uma vaga no IBGE, porém ele não entendia porque não era chamado.
O trabalho atrapalhava as ações que desenvolvia em busca de seu sonho com o rap.
Com o trabalho tinha dinheiro e não tinha tempo, sem ele, tinha que arrumar dinheiro de
algum modo para perseguir seus objetivos com o tempo livre disponível.
Benhur
Benhur, assim como os outros jovens, não tinha uma trajetória contínua no trabalho.
Sua percepção, no entanto, era de que a atividade era mais suportável caso fosse
realizada em um ambiente juvenil, como em um Shopping Center:
Para Benhur, o trabalho é uma forma de sobrevivência. (...) Dos três empregos, fazer pastel era o mais agradável, especialmente pelo local de trabalho, num centro comercial. O desconforto de ficar em pé por mais de dez horas diárias era minimizado pela circulação no espaço do shopping (...) (STECANELA, 2008, p.311).
Passou por vários empregos até trabalhar no Shopping Center. Porém sua relação com o
trabalho não era de envolvimento pessoal do mesmo modo como ocorria com sua
paixão, o rap:
O trabalho, a escola, a religião e a família são transitórios na vida de Benhur. (...) Nas turbulências destas transitoriedades, o rap é uma constante na vida de Benhur, é um projeto de vida que atravessa seus tempos cotidianos, ora
com mais, ora com menos intensidade, sem nunca deixar de estar presente (...) o rap é o próprio cotidiano de Benhur (...) (STECANELA, 2008, p.289-290).
Dayrell nos informa outras experiências quando menciona as trajetórias de João,
Flavinho, Cristian e Rogério. Quatro jovens com relações diferentes com o mundo do
trabalho.
João
João começou a fazer “bicos” a partir dos 12 anos, pois gostava de ter seu dinheiro para
comprar suas coisas, e não por cobrança da mãe. Aos 15 aprendeu o ofício de
serralheiro e passou a trabalhar nessa função. Nada muito diferente da realidade de
outros jovens conforme indica Dayrell: “(...) vender chup-chup ou picolé, carregar
sacolas em feiras, lavar carros e, quando ficam um pouco mais velhos, muitos deles
foram ou ainda são office-boys, ou, como João, aprendiz de serralheiro” (DAYRELL,
2001).
O pouco dinheiro dos salários era usado por ele para comprar suas roupas, garantir
alternativas de lazer, além de ajudar em casa.
Sem qualificação e sujeitos a empregos temporários e precários, os jovens sofrem com a
exploração e o preconceito. No caso de João, ele entendia sua situação no mercado
relacionada com a sorte ou o azar:
Assim, era uma questão de ‘sorte’ conseguir um serviço qualquer, trabalhando naquilo que aparecia, não estando posta a dimensão da escolha. Até mesmo empregos aparentemente sem prestígio, como o de office-boy, eram disputados (DAYRELL, 2001, p.249).
O trabalho nessas condições passa a ser enfatizado não pela atividade/profissão, mas
pela convivência com os colegas. A situação é vivida como contraditória: o jovem se vê
exposto à lógica, e às normas de dominação e exploração, eles começam no trabalho a
perceber a condição de subalternos que estão destinados, porém com este abrem-se
algumas possibilidades de viver a condição juvenil.
João, assim como a maioria dos rappers, encarava sua realidade no trabalho de forma
crítica. Mesmo como aprendiz de serralheiro, João afirmava que não gostava do que
fazia e não desejava seguir na profissão. Dayrell analisa que:
A precariedade dos diferentes empregos ocupados, quase todos eles socialmente desvalorizados, fizeram do trabalho uma experiência vivida
individualmente, sem referência a um coletivo que lhes propiciasse sentir-se parte de um corpo profissional. (...) Nesse contexto, a música e a possibilidade da carreira musical ganham um significado mais denso, constituindo um dos poucos espaços em que eles podem dar sentido à esperança de realizar-se plenamente, presente em todo ser humano (DAYRELL, 2001, p.268-269).
Além disso, a mídia reforça as possibilidades de sucesso no meio artístico e aponta para
o futebol e a música como únicas alternativas para os pobres.
Porém muitos destes jovens percebem que nem tudo depende de dom natural ou sorte
quando se gera um conflito entre o tempo de trabalho e o tempo de aperfeiçoamento
para a carreira musical. Quando aparecem dificuldades imensas de lidar com a lógica de
trabalho capitalista. Diante disso eles trocam de empregos, rejeitam propostas etc.
Dayrell entende que:
O que João expressa por intermédio do rap é o desejo universal do ser humano em realizar-se. Implica ser respeitado como criador musical, ter uma vida digna para si e sua família, com um mínimo de condições financeiras, casar-se e ter a própria família. Tudo muito simples, como ele diz, e ao mesmo tempo tão distante (DAYRELL, 2001, p.284).
Flavinho
Apesar de viver em uma família pobre, o funkeiro Flavinho diferentemente de João
ainda não havia trabalhado até o momento em que se realizou a pesquisa. Ele podia
então sonhar com mais intensidade com a possibilidade de uma carreira artística.
Recebia o que necessitava da mãe e do irmão mais velho.
Mas naquele momento, envolvido com a música, com tempo livre e disponível, sem um desejo mais definido em relação a alguma ocupação, além de não sofrer pressões da família, ele tinha todos os motivos para permanecer numa certa inércia, sem enfrentar, de fato, a labuta que é a procura de trabalho (DAYRELL, 2001, p.294).
Flavinho afirmava não pensar no futuro. Seu pensamento estava centrado no presente,
ou pelo menos não para além de uma semana. Ele acreditava que não há como controlar
ou tentar planejar algo mais detalhado para o futuro. O presente apresentava-se para ele
como a única dimensão temporal sobre a qual era possível concentrar a atenção e viver
sem incômodos.
Porém como dissemos anteriormente, isso não quer dizer que o trabalho estivesse
ausente de suas expectativas. O trabalho era mencionado, mesmo que vagamente,
quando falava dos desejos para o futuro após insistência do pesquisador. Flavinho
afirmava não pensar em cursar faculdade, e até mesmo duvidava de que os estudos
pudessem contribuir para uma boa posição no mercado de trabalho. Segundo Dayrell,
no caso de Flavinho:
No seu desejo, o trabalho aparece, na sua dimensão instrumental, como um meio para garantir o consumo e o lazer, ou seja, para viabilizar a sua condição juvenil, aliado a uma maior autonomia da família. (...) Diante das incertezas próprias do nosso tempo e das reduzidas possibilidades de uma inserção social mais qualificada, sua opção é viver o presente, com o que este puder oferecer de prazer (DAYRELL, 2001, p.292, 308).
Cristian
Cristian vivia na mesma favela de Rogério (jovem sobre o qual comentaremos a seguir),
mas conseguiu atribuir uma relação diferente para com o trabalho. Ele entrou aos 15
anos para o tráfico, deixando-o dois anos depois, após passar pela prisão. Depois da
morte da avó e da doença da mãe teve que se virar sozinho.
Quando, porém conseguiu um trabalho com carteira assinada, após muitas ocupações
intermitentes, interpretou o fato de maneira positiva. Cristian assumiu a lógica do
capital como natural, não como uma questão de escolha, e encarava de forma mais
resignada o seu afastamento do prazer em suas atividades cotidianas. A realização de
sua personalidade ficava restrita ao final de semana.
O trabalho se tornou elemento positivo para ele, pois permitia que ele construísse uma
imagem de provedor para si (sustenta a família), além de fornecer uma base para sonhar
com a possibilidade de investir em outras alternativas ocupacionais de mais sentido no
futuro. Vejamos em suas palavras como ele se via nesse processo:
“Pôxa, eu tô dando conta de sustentar a mim mesmo, eu tô levando uma vida assim independente,
entendeu... Eu passei a acreditar mais em mim com aquilo ali, porque eu vi que eu tinha capacidade... E
graças a Deus eu soube assimilar as coisas e escolher mais ou menos o que estava na minha meta e
graças a Deus que foi o caminho certo”.
Rogério
Rogério, jovem que acabou se envolvendo com o mundo do crime, expressa uma
relação com o mundo do trabalho em que as promessas de ascensão social e sua ética
deixam de ter sentido para o indivíduo.
A trajetória profissional de Rogério ocorreu trabalhando em “bicos”, a maioria na
construção civil. As ocupações intermitentes eram uma forma de garantir dinheiro, de
ocupar o tempo e financiar o lazer. Porém a precariedade das relações não possibilitava
a criação de nenhum vínculo importante no ambiente de trabalho.
Rogério apontou nas conversas com Dayrell a falta de perspectivas e de possibilidades
de progredir profissionalmente e socialmente como uma das motivações para o crime.
Não havia esperança de viver de música. Apesar de o rap ter tido um papel importante
em sua trajetória não foi capaz de afastá-lo desse caminho. Envolveu-se gradativamente
em conflitos com as quadrilhas, e as ameaças que passou a receber o fizeram envolver-
se definitivamente com o tráfico.
O caso de Rogério representa o jovem que não aceita o tipo de inserção social que a
sociedade lhes oferece. Há também aqueles que aceitam o trabalho naquilo que ele pode
ser visto como positivo (como Cristian) e apesar das condições precárias que vivem, não
partem para a ilegalidade.
Segundo Agnes Heller, como é necessário para a reprodução da vida do homem, o
trabalho é parte da vida cotidiana. E, apesar da redução das horas de trabalho que
ocorreu principalmente em meados do século XX, e do maior tempo livre disponível, os
homens ainda organizam sua vida cotidiana sobre o trabalho.
O fato de pertencer ao cotidiano e às atividades genéricas não deriva da alienação do
trabalho, mas de seu caráter ontológico. Algumas atividades podem não ser alienadas e
mesmo assim não deixar de fazer parte do cotidiano (HELLER, 1987).
Muitas vezes, porém o trabalho se converte em “maldição” da vida cotidiana,
inevitavelmente quando ele não se apresenta como satisfação de uma necessidade, mas
apenas como um meio de satisfazer as outras necessidades humanas. Os jovens pobres
acabam submetidos a atividades precárias que deixa de constituir parte de sua
autorealização, elevação genérica e aprendizado social. Estas se transformam
unicamente em meio de conservar o sujeito e alimentar as motivações particulares.
Além disso, muitos jovens sofrem com a dificuldade de conciliar as exigências do
trabalho, das suas aspirações pessoais e as do ambiente escolar.
Segundo Heller, mesmo quando o sujeito não sente o trabalho como uma atividade
alienada e demonstra satisfação ao perceber os benefícios advindos de sua remuneração
assalariada, isso não elimina a condição de alienação:
La alienación del labour no disminuye obligatoriamente ni siquiera cuando el trabajador se siente a gusto en el trabajo. La ciencia manipulada de las human relations que intenta precisamente dar una fachada agradable al labour, pretende remover solamente el sentido de la alienación y no la alienación propiamente dicha (HELLER, 1987, p.125).
4.2. A INFLUÊNCIA DA INDÚSTRIA CULTURAL E A
CONSTRUÇÃO DOS ESTILOS MUSICAIS JUVENIS
A pesquisa “Juventude Brasileira e Democracia: participação, esferas e políticas
públicas” constatou que o local mais frequentado pelos jovens quando se trata de
aproveitar o seu tempo livre para o lazer e a cultura é o shopping (apontado por 69,2%
dos entrevistados), vindo em seguida os cinemas 51,2% e parques e praças 47,8%. O
shopping foi apontado como lugar frequentado por todas as classes sociais, mas destaca-
se no caso dos mais pobres o fato de 22,2% ter afirmado que não frequenta nenhum
desses lugares, deixando a entender que acabam tendo que vivenciar seu tempo livre
diante da TV, na rua ou mesmo dormindo, como foi a opção mais representativa entre
os jovens de Cidade Tiradentes:
Atividade muito citada entre o grupo focal de jovens realizado na escola, dormir acaba
ocupando um grande número de horas diárias em suas rotinas. (...) Por outro lado, o
espaço que a televisão assume em suas rotinas foi citado em todos os grupos (HIRAO,
2008).
Na mesma pesquisa do instituto IBASE os jovens afirmaram usar a televisão como
principal meio para se informarem (84,5%), fato reforçado pelos dados da “Pesquisa
sobre juventudes no Brasil” que colocou esse percentual em 94,3% para os jovens de 18
a 29 anos.
Devemos constatar que o processo de socialização dos jovens sofre muita influência dos
espaços, agentes e interesses envolvidos com a indústria cultural. Como isso ocorre?
Quais os comportamentos, opiniões, saberes e motivações predominantes gerados nas
relações entre jovens pobres e a indústria cultural na contemporaneidade?
Não pretendemos de forma alguma dar conta de responder definitivamente a essas
perguntas. No entanto, é possível nesse âmbito chegar a algumas ideias pontuais.
Vejamos nos trabalhos qualitativos que nos servem de base.
Começando por Dayrell, este aponta que:
Por meio dos diferentes veículos da mídia, têm acesso a um conjunto de informações, aos apelos da cultura de consumo, estimulando sonhos e fantasias, além dos mais diferentes modelos e valores de humanidade, a cenários que nunca poderiam contatar pessoalmente, transpondo fronteiras, num processo de alteração da geografia situacional (DAYRELL, 2001, p.13).
Este autor destaca em sua investigação, a presença marcante e decisiva dos estilos
musicais na constituição da identidade da juventude pobre de Belo Horizonte. Segundo
o autor a dimensão simbólica, cultural é a mais apropriada pelos jovens para se
posicionarem diante da sociedade e de si mesmos, para constituir sua identidade.
Segundo ele: “A existência de espaços específicos de trocas e expressões culturais pelos
quais os jovens afirmam uma separação geracional é muito recente. Como vimos, a
partir do pós-guerra começou a surgir o que foi chamado de ‘cultura juvenil’” 8
(DAYRELL, 2001, p.19).
No entanto, não é possível falar em cultura juvenil homogênea, nem muito menos como
algo gerado espontaneamente pelos jovens.
Desde os anos 50, a música vem se tornando importante elemento da identidade juvenil,
elemento que a ajuda a distinguir externamente sua condição, sua identidade da das
outras gerações. Inicialmente com o rock e as bandas que arrastavam multidões, a
indústria cultural e sua ação especialmente sobre a juventude veio se expandindo e
produzindo produtos dos mais diversificados, para atender a todos os gostos. O Rap e o
funk são expressões mais atuais desse fenômeno. Esse processo culminou na
internacionalização das formas de ser da juventude, com a criação de bens e serviços
específicos para essa faixa etária:
A partir do rock'n'roll ficou mais clara a relação entre a indústria cultural e a juventude, no contexto das culturas juvenis. A partir do pós-guerra, a cultura de massas passou a investir na criação de um mercado próprio, estimulando um estilo peculiar de vestir, com produtos privilegiados de consumo, desde chicletes e refrigerantes até meios de locomoção, como a motocicleta. O cinema contribuiu para veicular a nova estética, mas é o rock'n' roll que veio expressar o novo padrão de comportamento e novos valores, centrados, dentre outros, na liberdade, na autonomia e no prazer imediato. É o símbolo dessa cultura juvenil emergente, com uma música delimitada etariamente, que se expande para todo o mundo como a ‘linguagem internacional da juventude’ (DAYRELL, 2001, p.22).
A música se tornaria um dos principais símbolos da autonomia cultural dos jovens.
8 Entendemos o conceito de “cultura juvenil” seguindo a concepção atribuída por Dayrell, a saber: “(...) para efeitos deste trabalho, quando falamos em culturas juvenis nos referimos a modos de vida específicos e práticas cotidianas dos jovens, que expressam certos significados e valores não tanto no âmbito das instituições como no âmbito da própria vida cotidiana” (DAYRELL, 2001, p.19).
Além disso, nesse período poderíamos verificar um processo de “estetização da vida
cotidiana”. Dayrell seguindo Featherstone aponta que este percurso ocorre em três
sentidos plenamente possibilitados e incentivados pelo mercado cultural. No primeiro
sentido significou apagar as fronteiras entre o cotidiano e a arte, fazendo com que a
segunda deixasse de ser vista como sagrada ou venerável e pudesse ser requisitado o
título de “arte” para as diversas manifestações culturais contemporâneas. O segundo
sentido, refere-se ao objetivo de “fazer da vida uma obra de arte”, na esteira das ideias
que reivindicavam que o homem deveria construir sua própria identidade, valores,
comportamento, rejeitando os modelos prévios. Esse sentido seria apropriado pela
indústria cultural de modo que ele se:
(...) materializou numa postura que valorizava a realização da originalidade e superioridade no vestuário, na conduta, nos hábitos pessoais e até no mobiliário – ou seja, um ‘estilo de vida’. Essa tendência se expande e se torna hegemônica com a cultura de consumo (DAYRELL, 2001, p.24).
O terceiro sentido dessa “estetização” aponta para uma valorização da imagem e do
espetáculo, da expansão do modelo televisivo, cinematográfico e publicitário para os
meandros da vida cotidiana. Segundo Dayrell isso: “Significa a centralidade das
imagens na vida urbana cotidiana por meio da manipulação comercial da publicidade,
da mídia, das exposições, das performances e dos espetáculos”.
Para Agnes Heller, uma estrutura social alienada apresenta esse caráter quando começa
a irradiar as categorias do cotidiano para outras esferas, como no caso da arte:
(...) quando a arte moderna decide escolher como temas as efêmeras motivações e resolve fazer abstração da essência da vida humana, da constante oscilação e da interação entre a cotidianidade e a não-cotidianidade, a cotidianidade absorve inclusive a arte. A aludida estrutura, que na cotidianidade não aparece como um fenômeno de alienação, é necessariamente manifestação de alienação na arte (...) (HELLER, 2008, p.59).
O entendimento da autora não é o de que a arte espontânea feita no cotidiano constitui
um problema, mas sim o fato de que a verdadeira arte, que pertence à outra esfera e tem
uma função social das mais importantes, deixa de estar presente no cotidiano, ao mesmo
tempo em que a influência das categorias próprias dessa esfera começa a se irradiar para
as outras.
Segundo Agnes Heller, a relação entre arte e capitalismo passa longe de ser das mais
positivas. No que tange à vida cotidiana, enquanto o homem mais simples do
Renascimento tinha o privilégio de conviver com as mais belas produções de seu tempo,
essa mesma condição não está presente na estrutura societária atual:
Los florentinos, por ejemplo ‘nacían’ en un mundo en el que hasta el hombre más insignificante vivía continuamente en medio de grandiosas obras de arte; el hombre del Medioevo entraba en contacto a diario en las iglesias con las obras maestras del arte figurativo y con la mejor música de su tiempo. Sabemos, por el contrario, cuán indicativo es de la estructura del capitalismo el hecho de que, por primera vez en la historia – aunque no de golpe -, el arte se ha escindido en ‘arte superior’ y arte comercial; que la experiencia artística cotidiana de las clases explotadas ha dejado de ser arte popular para convertirse cada vez más en Kitsch y en literatura por entregas (HELLER, 1987, p.114).
No Brasil, nos anos 80, aumentaria o consumo juvenil nos objetos de moda e lazer. Uma
diversidade de grupos passaria a representar a juventude. Eles expressavam as
contradições e desejos da juventude urbana. A música, o visual e o comportamento
característicos de cada grupo serviam para demarcar a identidade no cotidiano.
Dayrell aponta com propriedade que temos que verificado avanços no Brasil em relação
a certos indicadores sociais, porém com um destaque maior para a expansão das
comunicações. O Brasil se coloca atualmente como um dos maiores mercados mundiais
nos campos da televisão e publicidade. Estaria presente em nosso país com toda a força
um novo campo de dominação: o simbólico, o da informação. Podemos afirmar sem
dúvidas que a indústria cultural colabora para formar os jovens. Mas será que ela possui
um papel preponderantemente positivo ou negativo na construção da subjetividade dos
mesmos atualmente? Discutiremos isso mais adiante. Vejamos quem mais está presente
no cotidiano juvenil.
4.3. A INFLUÊNCIA DAS RELAÇÕES DE VIOLÊNCIA: COM A
POLÍCIA E COM O TRÁFICO.
Para os jovens pobres moradores de periferia urbana no Brasil, uma presença em seu
cotidiano que nem sempre desejada é a dos policiais e traficantes. Os primeiros são, na
maioria das vezes, os únicos representantes do poder público que não os ignora, as
autoridades públicas pelas quais esses jovens não conseguem passar percebidos. No
caso dos traficantes, a relação se torna muitas vezes ambígua, passando por momentos
de admiração, respeito ou indiferença.
O fato é que a taxa média de homicídios entre os jovens é superior ao resto da
população. E no caso dos pobres, a vulnerabilidade, a proximidade com as relações de
violência é muito maior. Conforme aponta Dayrell:
Ser jovem é um risco de vida em algumas realidades brasileiras, mas esses jovens também se arriscam quando incursionam no crime. Aqui, algoz e vítima se emparelham num vórtice da desrazão que apenas a violência instaura a identificá-los como semelhantes. Esses jovens se marginalizam na dupla acepção do termo por serem postos à margem e por se encantarem pelas “facilidades” da delinquência (DAYRELL et. al., 2011, p.38).
Tanto nas observações de Stecanela e Ritti, é possível constatar que os jovens pobres
muitas vezes constroem uma relação de medo com os policiais. A autoridade dos
mesmos não é considerada como legítima. Prevalece para esses jovens a imagem da
polícia e seus atores como agentes opressores e injustos, que não visam proteger a
população pobre, mas apenas julgar e agredir com base em estereótipos socialmente
dominantes.
Stecanela comenta que os jovens sofriam com a discriminação e truculência da polícia.
Na maioria das vezes, esse fato é atribuído à condição de ser negro, usar calças largas e
adotar a postura de rapper. Os jovens sentiam-se injustiçados com as perseguições
policiais em shows no centro da cidade, eles eram ofendidos, considerados o lixo da
sociedade, recebiam ameaças mesmo quando estavam apenas “de bobeira”: Nas
palavras da autora: “Com a experiência do preconceito das autoridades contra as
culturas juvenis, DL foi mostrando as estratégias que utilizava para sobreviver ao cerco
feito pela polícia, entre elas a lei do silêncio, pois, do contrário, a situação ficaria pior”
(STECANELA, 2008).
Ritti aponta, por outro lado, que parte da atitude violenta apresentada pelos jovens
adolescentes pode ser também originada das relações que estabelecem com a polícia. A
polícia, segundo os jovens, passa, mas não age efetivamente. Normalmente implica com
quem não está envolvido com o tráfico. Não tendo condições de reagir aos maus tratos
que sofrem, eles acabam descontando em outros jovens mais fracos que encontram pelo
caminho:
Fracos, diante do poder exercido pela polícia, sentem-se vencidos e vão às forras no mesmo modelo violento. Buscam os mais fracos para que possam garantir a vitória. Como não podem enfrentar os policiais, acabam descontando em outras pessoas, no caso, integrantes de outro bonde ou “laranjas” de outro bairro (...) (RITTI, 2010, p. 86).
No caso do tráfico de drogas, sua presença nos bairros de periferia é conhecida.
Segundo Ritti, não importava a idade, todos, desde crianças, jovens e adultos conheciam
o que acontecia. Naquela região, as crianças e jovens se envolviam progressivamente
com o consumo e a venda de entorpecentes. Os traficantes acabavam sendo
identificados como os “donos da favela”. Aqueles que não gostavam dos negócios que
ocorriam e da presença do tráfico e da violência tinham que se calar, enquanto para
conquistar a confiança de parte dos moradores, os traficantes chegavam a ajuda-los
financeiramente quando alguém os procurava em busca de auxílio.
Hirao observa que em Cidade Tiradentes o tráfico também está próximo, faz parte da
realidade dos jovens. No entanto, a relação varia de um jovem para outro, alguns se
mostravam indiferentes e distantes às atividades ilegais desenvolvidas na região, outros
revelaram ser favoráveis, ou pelo menos não achavam como algo errado as ações dos
traficantes e outros até mesmo já haviam se envolvido com eles.
Muitos deles, relata Hirao, foram convidados porque “ficavam à toa”, sem uma
ocupação definida. Com o emprego no tráfico, esses jovens conseguiram boa
remuneração que os permitia efetivar o consumo de coisas que desejavam: roupas de
marca e outras coisas, além disso, apareciam novos amigos e tinham o respeito das
pessoas da vizinhança. Porém, ao mesmo tempo, eles acabavam presenciando muitas
ações de violência.
Dayrell aponta situações semelhantes em sua pesquisa. Segundo ele, muitos jovens
veem o tráfico e o roubo como um trabalho, com a diferença de ser apenas mais
arriscado, não demonstram sofrer de nenhum conflito moral. Os atrativos e as
necessidades de consumo, entretanto, aparecem como algo muito atraente. Nas palavras
do autor:
O tráfico arregimenta os jovens no próprio pedaço, sendo os amigos e os conhecidos, com os quais se encontravam pelos becos, que agiam como aviões, os mesmos que seduzem para o mundo do crime, acenando com a possibilidade de ser alguém, o que não conseguiriam por meio da inserção social pelo trabalho (DAYRELL, 2001, p.318).
4.4. A DESMOTIVAÇÃO E FALTA DE SENTIDO PARA COM O
TRABALHO ESCOLAR (NAS PALAVRAS DE ALGUNS DOS JOVENS
E DOS PESQUISADORES).
Uma coisa muito difícil de distinguir ao constatarmos o desinteresse dos jovens pela
escola é a tarefa de entender se esse sentimento de repulsa se dirige primordialmente ou
unicamente com relação ao conhecimento oferecido por ela (abstrato/ científico) ou com
relação à lógica do sistema educacional institucionalizado com suas características
disciplinares.
Para tentar extrair as respostas a essa pergunta, buscaremos uma declaração de maior
destaque que foi exposta pelos jovens da pesquisa ou uma formulação do próprio
pesquisador sintetizando as declarações mais consistentes dos sujeitos de seus trabalhos
a respeito da instituição em questão e de suas vivências nela.
Do mesmo modo que a juventude deve ser entendida como juventudes, no sentido que
se formam socialmente várias possibilidades objetivas e subjetivas de constituição de
modos de ser jovem – ao mesmo tempo em que surgem impossibilidades presentes nos
diversos casos – não devemos esperar que os discursos dos pesquisadores ou dos
próprios jovens a respeito do desinteresse pelos conteúdos e propostas escolares sejam
idênticos, comportaram algumas diferenças, contudo, tentaremos demonstrar como se
trata de um fenômeno comum e que deve ser entendido também em suas propriedades
mais gerais, para além de suas especificidades já detalhadas nos trabalhos.
No trabalho de Dayrell, ele destaca que a escola não foi um fator determinante nas vidas
dos sujeitos entrevistados, ela não foi capaz de fornecer referências e possibilidades de
formação de identidade positiva para os mesmos. Não fez parte dos interesses do autor
destacar o que eles haviam aprendido ou não durante seu percurso escolar.
Como julgamento geral, Dayrell percebe que a experiência com os sujeitos de sua tese
confirma a crise da escola e o aspecto central da desmotivação nesse sentido:
Para grande parte deles, a escola se mostrou distante dos seus interesses e necessidades, reforçando em muitos o sentimento de incapacidade pessoal. A escola ainda se pauta por uma visão reiterada de futuro, na lógica do "adiamento das gratificações", mas numa sociedade que fecha as possibilidades de mobilidade social. Mesmo quando ela apresenta uma proposta pedagógica que busca centrar sua atuação a partir dos sujeitos jovens e sua cultura, ela se mostra frágil, evidenciando que a instituição, por si só, pouco pode fazer se não vier acompanhada de uma rede de sustentação mais ampla, com políticas públicas que garantam espaços e tempos de formação desses jovens na sua totalidade (DAYRELL, 2001, p.352).
João, um dos jovens sujeitos, destaca que a escola não aguçava seu lado crítico, só
fornecia “papos chatos”, e que ao mesmo tempo entrava em conflito com o seu perfil
questionador e contestatório. Admite, por outro lado, que seu comportamento contribuía
para um relacionamento difícil com o processo escolar, pois era ainda
inconscientemente “ignorante”, e gostava de brincar com os bagunceiros. Dayrell
aponta que este jovem assume estereótipos produzidos no ambiente escolar, como a
“ignorância” do aluno ou a pertença ao grupo dos “bagunceiros”. Encontramos nessa
fala indubitavelmente uma expressão de um conflito com a lógica e conteúdos escolares
que entra em choque com suas expectativas, interesses e comportamentos produzidos
socialmente. A consequência do atrito gerado é desfavorável ao jovem, que sente surgir
uma disposição em se retirar do processo escolar, tendência essa reforçada após
algumas repetências, e, por conta da indisposição ou incapacidade da mãe em força-lo a
continuar.
João deixa claro uma desmotivação com relação aos conhecimentos fornecidos pela
escola ao considerar que era “papo chato”. A avaliação de Dayrell a esse respeito é de
que:
No processo de conhecimento ali existente, pelo menos no que ficou na memória de João, os conteúdos escolares não tinham nenhuma articulação com a sua realidade, deixando de ser um dos meios pelos quais ele pudesse se compreender melhor, compreender o mundo no qual se inseria e o próprio momento denso de transformações pelas quais passava (DAYRELL, 2001, p.255).
No caso de Flavinho, a escola, ainda presente em sua vida na época das entrevistas era
apenas uma obrigação que suportava. Havia uma desconfiança com relação à
capacidade de ascensão que guardaria o processo formativo escolar em sua realidade,
porém, além disso, segundo Dayrell:
A escola era a única atividade fixa que ele tinha no seu cotidiano, além de ser a única instituição pública na qual podia ter acesso aos bens culturais e a um espaço de reflexão metódica sobre si mesmo e o mundo. Mas a escola não conseguia envolvê-lo, tornando-se uma obrigação necessária que ele apenas suportava (DAYRELL, 2001, p.295).
A escola tinha pouco significado, não estimula seus interesses, nem lhe fornecia os
conhecimentos musicais de que gostaria.
Rogério expressa a seu modo o descontentamento e desinteresse na maior parte do
tempo em que esteve no ambiente escolar. Rogério usava drogas na escola, não
conseguia prestar atenção, se achava burro, e começou a pensar o estudo como inútil
diante de sua realidade.
Pro mundo lá embaixo é muito bom aprender aler e a escrever, a pessoa pode ter
muitas coisas, tipo antes eupensava. Mas pra gente assim, aprender a ler e a escrever
praficar pra gente mesmo, é meio estranho, eu pensava... só depoisque fui entendendo
esse negócio...
Apesar de em uma oportunidade de retorno à escola, não conseguiu se manter por muito
tempo diante das dificuldades que enfrentava em seu cotidiano de pobreza e
precariedade:
É evidente a distância que separa o mundo de Rogério e o mundo da escola. Os professores não conseguiam perceber as suas demandas e necessidades, muito menos a realidade de desumanização na qual se encontrava. Não percebiam que, crianças como ele, não se encontravam privadas apenas do ter, do ler ou do contar, mas, sobretudo, se encontravam roubadas de sua humanidade (DAYRELL, 2001, p.315).
Nos outros trabalhos a dimensão do desinteresse e da desmotivação para participar dos
processos escolares, das provações necessárias e exigidas para adquirir um
conhecimento diferente daquele presente em suas realidades cotidianas também foi
ressaltada na trajetória dos jovens.
No caso dos adolescentes de 14 a 18 anos da pesquisa de Ritti (2010) em Juiz de fora
(MG) não foi diferente. Ao mencionar as relações dos mesmos com a escola vemos que:
Esses adolescentes escapam a uma produção ideal orientada pelos discursos psicopedagógicos. Desinteressados pela escola e vistos pela sociedade como arruaceiros, marginais, perigosos, violentos, entre outros adjetivos depreciativos, vivem uma realidade de exclusão, discriminação em que as desigualdades se fazem cada vez mais efetivas (RITTI, 2010, p54).
Sua analise toca no cerne da questão. Os “discursos psicopedagógicos” também se
mostram insuficientes para motivar os adolescentes e convencê-los de que diante da
realidade em que vivem e os formam como sujeitos, eles precisam mais do que aprender
a ler, escrever e a “fazer continhas”.
No estudo dos jovens da Cidade Tiradentes de Hirao (2008), ela afirma que o
desinteresse existe, mas que se refere predominantemente à lógica escolar. Os alunos
não reconheceriam mais à escola o papel de transmissor do conhecimento acumulado
socialmente. Segundo ela, os jovens não veriam a escola como espaço de instrução e
formação, eles entenderiam que isso era adquirido apenas nos cursos que faziam, dos
quais se destacavam principalmente, inglês, espanhol e informática.
Os jovens pesquisados por Nilda Stecanela também se encontravam em situações de
defasagem idade/série, com trajetórias escolares problemáticas, porém a autora não
expõe nenhuma frase explicita afirmando a existência de um desinteresse da parte dos
jovens para com o conteúdo escolar. Isso é coerente com uma afirmação que faz no
princípio de seu trabalho, quando explica que uma das motivações para entender o
cotidiano juvenil era conhecer e compreender a “falta de interesse dos alunos”,
apontado, segundo ela, pelo senso comum como o maior problema da escola.
Provavelmente, de acordo com sua concepção de que essa visão seria incorreta e até
preconceituosa, ela tenha evitado desenvolver alguma reflexão nesse sentido, tendo
mais ímpeto em demonstrar seus interesses e seus supostos aprendizados na “escola da
vida”. No entanto, esta autora não deixa de afirmar em outro momento que:
Os sentidos da escola, para esses jovens, são um misto de obrigação – por vezes sofrimento e invasão cultural – simultâneos a uma relação instrumental. Prevalece o mito da ascensão social em convivência com a necessidade de certificação imposta pela concorrência no mercado de trabalho gerando predisposições diferenciadas à escola (STECANELA, 2008, p.45-46).
4.5. AS CONSEQUÊNCIAS DESSA CONDIÇÃO: A DESCRIÇÃO DO
COMPORTAMENTO, MOTIVAÇÕES, OPINIÕES E SABERES DA
JUVENTUDE INSERIDA EM UM MUNDO POBRE.
Neste estudo, os jovens revelaram a realidade perversa na qual se inserem. Podemos vê-los como a ponta de um iceberg que traz à tona questões fundamentais postas pela juventude brasileira, principalmente aquela dos setores populares. Eles demandam mais do que a escolarização, mesmo que de melhor qualidade. Eles demandam redes sociais de apoio mais amplas, com políticas públicas que os contemplem em todas as dimensões, desde a sobrevivência até o acesso aos bens culturais (DAYRELL, 2001, p.357).
Apropriando-nos da metáfora de Dayrell, queremos reafirmar que consideramos os
jovens aqui expostos apenas como pontas de icebergs, ou seja, suas dificuldades
expressam a perversidade de uma estrutura social capitalista e desigual.
Tentaremos, com base nas descrições dos pesquisadores, fazer um quadro simplificado
das principais influências que a realidade pobre, quase vazia de estímulos positivos,
gera sobre os jovens das periferias urbanas do Brasil.
Comecemos pelos comentários de Dayrell.
A trajetória de Flavinho, de acordo com as descrições de Dayrell, aponta o poder da
indústria cultural como referência para produzir valores, projetos de futuro e orientar a
ação juvenil. Seu pouco envolvimento com a escola era decorrente de vários fatores,
porém um deles poderia referir-se ao estilo apropriado e as imagens construídas na
mídia a esse respeito:
Além disso, ele se mira nos exemplos de ídolos do funk, como Pepê e Neném. A mídia reforça a sua trajetória de meninas de rua que, sem nenhuma escolaridade, ‘tiveram a chance’ e alcançaram a fama. Exemplos como este terminam reforçando que a cena musical, assim como o futebol, abre espaços para os pobres, desde que tenham o ‘dom’ e a ‘sorte’, não dependendo de nenhuma outra qualificação. Dessa forma, para Flavinho, a escola tem um peso secundário no que consegue formular de um projeto de futuro (DAYRELL, 2001, p.307).
Enquanto a mídia em programas de horário nobre costuma expor em detalhes as
trajetórias de vida dos personagens do meio artístico, caso o jovem queira saber algo
sobre o percurso de cientistas, filósofos, engenheiros etc. deverá ter o conhecimento
sobre outras fontes de informação ou contar com a oferta de alguns programas de TV
em horário alternativo. Terá que ultrapassar a esfera de influência de seu cotidiano, na
maioria das vezes, dos costumes familiares, dos amigos e conhecidos por iniciativa
própria.
Dayrell aponta que, além da carreira musical, Flavinho não tinha muitas outras
perspectivas de futuro:
Mesmo quando perguntado, ele (Flavinho) fez poucas referências ao passado, o que parece evidenciar uma postura diante do tempo centrada no desenrolar do presente, na qual o passado e o futuro não são elaborados como uma dimensão significativa para a sua vida atual. (...) Diante das incertezas próprias do nosso tempo e das reduzidas possibilidades de uma inserção social mais qualificada, sua opção é viver o presente, com o que este puder oferecer de prazer (DAYRELL, 2001, p.284, 308).
A globalização gera algo como uma aldeia global. As culturas juvenis se universalizam,
incorporando aspectos globais e locais. Os jovens, em sua maioria se colocam primeiro
como consumidores e, alguns deles, depois se transformam em produtores musicais.
Estes não deixam de consumir os produtos referentes ao estilo. Pelo contrário, com o
maior envolvimento, com um sentimento que passa de uma relação de casualidade para
algo mais ou menos profissional, os jovens acabam gastando muito mais para
comporem seu visual e estarem atualizados da melhor maneira possível. Boa parte de
seus tempos, energias e motivações se dirigem para os objetos e símbolos fornecidos
pela indústria cultural. Estes produtos vinculam-se à identidade dos mesmos de forma
mais intensa do que normalmente ocorre na fase adulta.
Para Dayrell, o estilo musical, para os que o encaram como um projeto de futuro, torna-
se um meio em que podem construir uma identidade positiva em um contexto que
insiste em estigmatiza-los. Seria um esforço dos jovens, a busca de serem reconhecidos
pelas suas criações, uma forma de lidar com uma realidade perversa que insiste em
desumaniza-los, em torna-los invisíveis (DAYRELL, 2001).
É preciso reconhecer as tentativas de humanização presentes na adesão dos jovens aos
estilos musicais. Ao tornarem-se produtores, realizarem e divulgarem shows, eles
mantém uma relação diferente daquela que efetuam os que são apenas consumidores.
As experiências sociais nos espaços em que tem acesso lhes dão uma identidade
subalterna, negativa, diante disso, eles procuram no mundo da cultura, que parece a eles
mais democrático, uma identidade positiva (DAYRELL, 2001). [Citação de Agnes
Heller].
No entanto, em que medida isso contribui para que eles se construam plenamente como
indivíduos? Como o próprio Dayrell afirma, as culturas juvenis apresentam aspectos
positivos, mas não podem ser endeusadas (DAYRELL, 2001). Na verdade:
Eles querem ser reconhecidos, querem uma visibilidade, ser "alguém" num contexto que os torna "invisíveis", "ninguém" na multidão. Eles querem ter um lugar na cidade, usufruir dela, transformando o espaço urbano em um valor de uso. Enfim, eles são sujeitos, e como sujeitos querem ser jovens e cidadãos, com direito a viver plenamente a juventude (DAYRELL, 2001, p.355).
Em outro caso de influência midiática sobre os jovens, Rogério relatara a Dayrell a
dificuldade que é conviver com a combinação pobreza e mundo do consumo. Seu
sofrimento se ampliava a cada vez que ligava a televisão e sua casa era invadida por
imagens dos mais diversos produtos, com todo tipo de convite ao consumo e fruição de
bens aos quais não tinha acesso. Ao mesmo tempo em que o jovem tem de encarar a
realidade de sua condição de privação, ele deve resistir aos apelos de uma oferta de
produtos e campanhas publicitárias que tendem a construir uma imagem positiva para os
que podem consumir e uma negativa para os que não estão aptos a isso.
José de Souza Martins chama essa situação de “nova desigualdade social”:
Martins chama de uma nova desigualdade social que cria uma sociedade dupla, que separa materialmente, mas unifica ideologicamente, onde o favelado, que mora no barraco apertado da favela imunda, com o simples apertar de um botão da televisão, pode mergulhar no imaginário da sociedade de consumo... (DAYRELL, 2001, p.310).
Segundo Dayrell, também é preciso questionar os modelos de jovens que foram
construídos pela sociedade moderna. Os jovens, com os quais teve contato durante a
pesquisa, recusavam, por exemplo, a ideia de juventude como um período transitório,
uma ideia consagrada pela modernidade. Não a viam como um momento de preparação,
mas suas forças estavam voltadas ao presente, buscavam vivê-lo intensamente com o
que ele poderia oferecer de prazer, diversão, angústias e incertezas. A fragilidade de
suas condições os levava, muitas vezes, a buscar fugas da realidade. Por outro lado, não
houve afastamento da família, nem crises emocionais na entrada da juventude, mas sim,
na transição para a fase adulta.
Além disso, a imagem que constroem do adulto em nossa sociedade é muito negativa.
Por isso, os jovens tentam aumentar a juventude no sentido de moratória: menos
trabalho, preocupações e mais trocas afetivas, é isso o que desejam. Ocorre uma
vivência intensa, porém curta da juventude.
A concentração nos prazeres imediatos é a solução existencial para uma juventude que
não consegue visualizar seu futuro e construir uma relação consciente com o mundo
social. Essa tendência a manter o foco sob as experiências do tempo presente pode
esclarecer, em parte, porque os professores enfrentam dificuldades para situar os jovens
alunos nos conteúdos, despertar a atenção e curiosidade dos mesmos para as questões
mais amplas da realidade.
Ritti, por outro lado, apresenta identificações dos adolescentes com a cultura juvenil,
nas organizações dos “bondes”. O envolvimento dos mesmos com estes grupos não se
dá no sentido de atuar criativamente na composição de músicas. Na verdade, os
“bondes” acabam sendo organizados em torno de ações de violência entre os jovens:
“Como pude perceber, estar em bonde é uma garantia de ir e vir, de se tornar visível.
Uma estratégia vista como vantajosa pelos adolescentes, mas que, por outro lado, os
coloca sempre em risco” (RITTI, 2010).
Os que não participavam das brigas eram chamados de “laranjas”. Alvos de zombaria,
eles sofriam com o cerceamento de liberdade e eram ridicularizados na medida em que
procuravam adotar outra conduta.
As rivalidades entre os “bondes” eram confrontos com os jovens de outros bairros. O
nome do bairro, nesse caso, era adotado pelos jovens como um sobrenome. A proteção
do território contra os adversários era considerada um componente de identidade para
eles. Segundo Ritti: “No confronto todos batiam, todos apanhavam, todos continuavam
sujeitos nessa relação. Quem entrasse em desvantagem resistia e tentava recuperar o
domínio” (RITTI, 2010, p.79).
Muitas vezes, o roubo de bonés era o estopim para o início das rivalidades e conflitos. O
boné roubado era objeto de orgulho e demonstração de poder:
Assim como os gregos queriam ser reconhecidos por sua virilidade e capacidade de dominar seus desejos, e para isso trabalhavam em si mesmos, esses adolescentes querem ser reconhecidos pela sua força, seu destemor, sua violência e, para tal, também investem em si. Ambos se direcionam para aquilo que têm, para si, como valor (RITTI, 2010, p.72).
Vemos que a condição de sociabilidade desses jovens, os influência a buscar na
violência um valor, uma forma de se destacarem na multidão.
As meninas não participam dos confrontos com a mesma frequência que os meninos,
porém em contrapartida, elas assumem coreografias, roupas ousadas e títulos como
“novinhas” derivadas do estilo funk. Nesse sentido, os gastos que esses jovens realizam
para demonstrarem sua adesão ao estilo é considerável:
A identificação com o funk e a ostentação das marcas é de grande importância para esses adolescentes. Gostam de se sentir bonitos e atraentes. Essas características, embora encontradas em todos os adolescentes pesquisados, são mais ostensivas em uns do que em outros. (...) Passei a observar melhor tal questão depois que iniciei esta pesquisa e raros foram os momentos em que apareciam com roupa ou acessório sem marca. Inclusive no caso do boné, a etiqueta fica para fora, para confirmar sua originalidade. Leandrin é o mais vaidoso do grupo, o que reforça sua liderança. Gosta muito de ser elogiado e vive se autoafirmando. Depois que passou a trabalhar com carteira assinada, sua prioridade está na produção do seu visual e todo mês aparece com uma camisa ou um tênis novo, Nike ou Adidas, um par de óculos HB, uma corrente prateada... Ultimamente tem optado por muito brilho nos acessórios (RITTI, 2010, p.53, 101).
Podemos concluir com base nas descrições, que de acordo com as categorias
hellerianas, os jovens vivem em uma condição que expandem suas motivações
particulares não os possibilitando de ter uma relação consciente com seu gênero, de se
formarem como indivíduos autônomos, ou de alcançarem um desenvolvimento
substancialmente relevante diante das possibilidades que os homens possuem no estágio
presente do desenvolvimento histórico e social.
Isso ocorre pela falta de mediação para o não-cotidiano, para o gênero. Portanto, resta-
nos ver de que forma notamos a ausência de mediações efetivas no cotidiano juvenil.
4.6. A ALIENAÇÃO DO MUNDO DO JOVEM POBRE: AS
MEDIAÇÕES QUE NÃO ESTÃO PRESENTES.
Embora os processos metodológicos adotados pelos investigadores do cotidiano fossem
parecidos, os pressupostos teóricos que os orientaram não eram homogêneos, e, por
conseguinte, tivemos vários enfoques diferentes da realidade dos jovens pobres. Em
meio a diversas questões levantadas sobre os vários âmbitos da condição juvenil,
podemos afirmar que cada pesquisador procurou ressaltar em suas análises aquilo que
encontrou ligação com suas hipóteses ou questões teóricas preliminares, dando pouca
atenção para outras possíveis problemáticas. Isso nos impõe a dificuldade de nos
apropriarmos das informações sobre os jovens, mas ao mesmo tempo, procurarmos
interpreta-las sob outra perspectiva.
Nesse momento tentaremos retratar as mediações que faltam no cotidiano juvenil para
que haja um pleno desenvolvimento genérico dos indivíduos em nossa sociedade,
seguindo as proposições de Agnes Heller. Dayrell e Ritti foram os autores que mais
demonstraram se aproximarem dessas preocupações, por isso, seus comentários serão
ressaltados com mais frequência, no entanto, algumas das descrições dos jovens de
Hirao e Stecanela poderão apontar para a mesma direção, apesar de as autoras não as
terem interpretado por essa perspectiva.
Dayrell aponta no início de seu trabalho, que as entrevistas com os jovens representaram
um momento de reflexão não casual para os mesmos: “Vários jovens declararam que a
entrevista significou um momento de reflexão sobre si mesmos e sobre aspectos da
realidade que viviam e que até então não tinham parado para pensar” (DAYRELL,
2001).
Algumas reflexões simples a respeito de si mesmos, como relembrar o passado, analisar
o presente e projetar o futuro não são atividades constantes na vida de muitos jovens. A
intervenção de Dayrell acabou sendo um estímulo para que isso ocorresse. Agora,
poderíamos indagar, por que a escola não é um espaço para esse tipo de reflexão?
Talvez haja mais de uma explicação para isso, mas devemos notar que, Dayrell não
estava, como acontece na escola, “engessado” pelo tempo, pela burocracia, pelas
dificuldades de lidar com um número considerável de alunos, com significativas
diferenças entre si, em um espaço restrito e inóspito.
O cotidiano desses jovens se mostra vazio não apenas de momentos de reflexão, como
também de atividades que exijam o aperfeiçoamento de qualquer tipo de capacidades.
Muitas vezes o interesse de aprender alguma coisa é fruto apenas da iniciativa do jovem
que não encontra nenhuma exigência ou estímulo social atuando nesse sentido, com
exceção da escola. Talvez por isso, esta instituição se encontre “nadando contra a maré”
no cotidiano juvenil, e como consequência, acabe se tornando objeto de repulsa e não de
respeito, reconhecimento e admiração, na maioria dos casos. Stecanela sugere,
inclusive, que a tensão gerada pelas tarefas escolares que “negam as identidades
juvenis” pode ocasionar uma explosão de violência do jovem:
Ao preencherem os tempos livres com as tarefas escolares que negam as identidades juvenis, a escola acaba por ser um componente que só faz por aumentar a pressão do cotidiano, determinando outros trânsitos, por exemplo, pela polícia, como forma de repressão ao extravasamento da pressão (STECANELA, 2008, p.371 – grifo nosso).
Com interpretações como essa, parece que devemos condenar a escola e seus agentes
por tentar propor aos jovens algo distante de seu cotidiano “normal” de jovem pobre, ou
seja, cotidiano em uma realidade sem estímulos, sem mediação para os elementos não
cotidianos (científicos, filosóficos, artísticos etc.) da sociedade. A situação para a escola
e os professores é complicada, e a própria Stecanela parece confirmar isso.
Ao nos informarmos sobre o cotidiano de Flavinho, temos um exemplo vivo, e esse
retrato do problema se torna mais concreto.
Segundo Dayrell, Flavinho durante as manhãs não tinha nenhuma atividade definida.
Por duas vezes na semana (na qual Dayrell acompanhou sua rotina) foi pagar contas
para a sua mãe, o que constituía sua única obrigação doméstica. Durante as tardes ficava
ouvindo música, e às vezes encontrava os amigos para conversar sobre funk. Estudava à
noite. Foi à escola apenas três dias na semana, com seu amigo Leo, porém matou dois
dias de aula. Quase nunca dedicava tempo em casa para os estudos.
Seu lazer ocorria em uma praça perto de sua casa, onde jogava bola e baralho, além de
conversar com os amigos. Sua namorada o encontrava depois de sair do trabalho. Em
casa, Flavinho assistia a TV todas as noites, preferindo os programas de auditório e os
filmes.
Aos finais de semana, frequentava os bailes, ensaiava, namorava e, algumas vezes,
participava de eventos.
O que percebemos a partir dessa breve descrição é o cotidiano comum de um jovem
brasileiro normal, nada parece anormal ou nos chama a atenção. Porém Dayrell avaliou
que:
Assim como Flavinho, boa parte dos jovens da sua galera passam os dias sem ter o que fazer, sem acesso a equipamentos sociais, sem espaços e tempos que os estimulem, que ampliem as suas potencialidades. Andando pelo bairro nos dias de semana, é possível ver dezenas de jovens pelas ruas e calçadas, conversando em grupos ou simplesmente sentados, sem outra alternativa a não ser levarem uma vida empobrecida não só de recursos materiais, mas, principalmente, de recursos simbólicos que os capacitem a enfrentar as transformações pelas quais a sociedade vem passando (DAYRELL, 2001, p.304, 305 – grifo nosso).
Essa interpretação é coerente, em parte, com as preocupações de Agnes Heller que
tomamos como base. A filósofa húngara contribui, no entanto, para deixar mais claro as
origens desse problema. Não se trata apenas de um problema local, mas de algo próprio
da lógica social criada pelo sistema capitalista. A falta de mediação que permitisse ao
jovem ir de encontro ao desenvolvimento genérico da estrutura social em que vive não é
mero acaso, nem resultado somente da incompetência política de um governante
específico, mas efeito de uma realidade cotidiana alienada, de uma sociedade que se
apoia na socialização por grupos, o que gera a esquizofrenia social. Temos ainda muito
presente, a falta de consciência a respeito desses problemas por parte dos sujeitos
sociais envolvidos mais diretamente com as decisões dos rumos da sociedade de nosso
tempo (movimentos sociais, partidos políticos, intelectuais etc.). Porém isso apenas
agrava o problema que existe antes dessa falta de consciência. Essa condição de vida ao
invés de ser vista como empobrecida, é pensada como normal por boa parte da
sociedade, inclusive por vários pesquisadores das ciências sociais. Analisemos, por
exemplo, as posições dos autores com os quais estamos trabalhando.
Stecanela afirmou não seguir ideias a priori, mas possuir algumas intuições sobre o que
procurar de mais significativo no cotidiano juvenil. Segundo ela:
(...) há um educativo para além do escolar e os jovens aprendem fora da escola; com a hegemonia da forma escolar há uma tendência a pensar os jovens apenas em associação aos seus processos e percursos de escolarização; a juventude moderna é uma invenção social formatada pela escola; as culturas juvenis constituem o húmus para a fertilização das aprendizagens não-formais (STECANELA, 2008, p.22).
E continua, afirmando que:
No presente estudo, pretendo ir além, tentando identificar quais conhecimentos são construídos a partir dos processos educativos informais dos sujeitos pesquisados e como estes jovens processam suas aprendizagens, a partir das estratégias de sobrevivência que lançam mão para enfrentar ou fugir da pressão do cotidiano por eles vivida e narrada. (...) Os jovens da pesquisa afirmam que a gente aprende com a sabedoria da rua ou que a vida ensina o cara a gemer e estes saberes e aprendizagens são proporcionados pela experiência, pois, segundo eles, a gente aprende com o que a gente vive, a gente aprende com o que sente no cotidiano (STECANELA, 2008, p.67, 70 – grifo nosso).
Por um lado, é preciso ressaltar mais uma vez a importância das iniciativas recentes, nas
quais se insere o trabalho de Stecanela, de tentar conhecer o jovem fora da escola para
melhor compreender os dilemas dessa instituição. Com isso, os pesquisadores procuram
evitar o risco de se perderem nas “querelas pedagógicas”, nas quais, há um embate
teórico pedagógico sem considerar os âmbitos fundamentais da formação social do
jovem. Muitas vezes, nos debates sobre educação, os profissionais querem discutir o
jovem como aluno, querem ampliar suas potencialidades de aprendizagem dentro da
sala de aula, sem antes compreendê-lo como indivíduo que se forma em outros espaços
e que carrega experiências, identidades, expectativas etc. para dentro da escola.
No entanto, apesar de reconhecido isso, sob uma perspectiva helleriana, as intuições que
dirigiram as interpretações de Stecanela devem ser vistas de outro modo.
Não há dúvida de que os jovens aprendem fora da escola, com a experiência pessoal nos
mais variados espaços e com as mais intensas dificuldades que vivem em seu cotidiano.
Porém a verdade é que esses saberes que adquirem no cotidiano não constitui o
necessário para que desenvolvam plenamente o potencial genérico disponível aos
indivíduos em um período histórico como o atual. Seguindo o ideário helleriano,
percebemos que as situações de aprendizagem que Stecanela enfatiza não constituem a
mediação necessária para o jovem “transcender” o cotidiano e superar a relação não
consciente com o seu gênero. Suas descrições expressam a luta do jovem contra a
“dureza da vida” parte importante e inevitável do amadurecimento do mesmo, porém
não podemos sugerir que esses conhecimentos sejam de alguma forma, a demonstração
de um potencial educador existente fora da escola ou outra coisa parecida. Quando
entendemos a educação como desenvolvimento humano, e que este ocorre de formas
diferentes dependendo dos diversos contextos societários, e quando tomamos como
referência as capacidades humano-genéricas de uma determinada sociedade que podem
ser apropriadas pelo indivíduo como base para atestarmos a efetivação do
desenvolvimento ou não dos sujeitos, percebemos que os contextos descritos em que
vivem os jovens em seu cotidiano devem ser classificados como empobrecidos de
potencial educativo, ou seja, com alto potencial de alienação, e isto, apesar das
aprendizagens que estes realizam em meio às dificuldades que encontram.
Continuando, Stecanela nos informa que seus esforços foram no sentido também de
respeitar a cultura do entrevistado: “A trajetória vivida por meio da pesquisa desafiou-
me a assumir algumas posturas frente ao trabalho de campo, procurando manter sempre
presentes a disciplina e a vigilância no respeito ao entrevistado e à sua cultura (...)”
(STECANELA, 2008). Além disso, a autora não deixou de dar ênfase ao que chamou
de “categorias nativas”, ou seja, palavras do cotidiano juvenil que expressariam suas
vivências.
Ora, segundo Dayrell, é preciso levar em conta a diferença entre a heterogeneidade
cultural entre sociedades diferentes e as que ocorrem na mesma sociedade. Não
podemos trata-las de forma semelhante. O fato de observarmos que a cultura de um
índio que vive integrado em sua tribo é totalmente diferente da cultura de outra
sociedade e que isso não deve ser considerado como uma “aberração”, não nos indica
que a condição de um jovem que diverge culturalmente de sua própria integração social
não deva ser considerada como problemática. Diversamente de um índio ou outro
membro qualquer de outra sociedade, este jovem deseja e necessita mover-se nos mais
variados âmbitos de sua sociedade e não pode ser considerado positivo esse conflito, da
forma como se dá, com a realidade das integrações sociais superiores do mundo em que
vive.
Além disso, Dayrell aponta que:
A diversidade cultural na sociedade brasileira também é fruto do acesso diferenciado às informações, às instituições que asseguram a distribuição dos recursos materiais, culturais e políticos, o que promove a utilização distinta do universo simbólico, na perspectiva tanto de expressar as especificidades das condições de existência quanto de formular interesses divergentes (DAYRELL, 1996, p.143).
Ou seja, as divergências culturais no interior da sociedade brasileira, mesmo no caso
específico dos jovens, devem ser interpretadas, dependendo de sua natureza, como um
problema social, como expressão de desigualdades sociais, segundo Dayrell.
Canario também assume posições importantes em sua crítica ao que chama de
“monopólio educativo” da escola, baseando-se em uma leitura contemporânea da obra
de Ivan Illich, sem, no entanto, chegar a conclusões que consideramos coerentes com a
realidade social atual. Segundo ele:
O monopólio educativo, por parte da escola, conduziu a desvalorizar todos os saberes que não são ensinados por profissionais e, portanto, a desvalorizar o processo educativo como um trabalho que o educando realiza sobre si próprio, em interacção com os outros e com o mundo, a partir do seu patrimônio experiencial (CANARIO, 2005, p.192).
Na perspectiva do autor português, as crianças aprendem a maior parte dos seus saberes
fora do sistema educativo formal (CANARIO, 2005).
Concordamos com essas posições e achamos que elas trazem importantes contribuições
para o debate sobre a crise da escola. O problema se encontra em alguns detalhes de
outras reflexões do autor.
Para Canario, todas as instituições devem ser chamadas a participar da formação dos
jovens, e com isso, devem reaparecer suas qualidades educativas:
Esta defesa da difusão social da função educativa e a percepção do valor estratégico daquilo que hoje designamos por educação não formal, apoiada na distinção entre valor de uso e valor de troca dos bens educativos, constituem, a nosso ver, uma das contribuições em que o carácter ‘visionário’ e antecipador do pensamento de Ivan Illich mais se revelou (CANARIO, 2005, p.193).
Concordamos totalmente com a necessidade de “difusão social da função educativa” e
da “percepção do valor estratégico” da educação não-formal. Esse ponto da questão é
fundamental também para o ideário helleriano. Podemos comprovar isso em uma de
suas obras: Aristóteles e o mundo antigo, em que Heller apontando a educação
particular realizada pelos sofistas em Atenas destacava que:
Puesto que los sofistas son extranjeros, la educación de los jóvenes queda en manos de hombres que no toman parte activa en la vida comunitaria. (…) Que la educación individual se considere cosa importante es ya por sí solo un hecho sospechoso desde el punto de vista comunitario. En una vida comunitaria sana, es la misma vida pública la que ha de educar a los jóvenes (HELLER, 1983, p.23).
Essa citação é apenas um exemplo de outras posições que já explicitamos de Agnes
Heller em que fica claro que a autora entende a formação do sujeito como algo
efetivado por forças sociais, e não por um ou outro grupo face to face como a escola.
Porém o problema nas afirmações de Canario com base em Illich (que certamente
elevam o nível da discussão) encontra-se em outro ponto.
Segundo Canario, a sociedade deve valorizar o fortuito e a própria ausência de regras no
âmbito da educação. O que falta é deixar emergir as potencialidades educativas em
todas as situações e organizações sociais.
Ora, o que não encontramos nas descrições do cotidiano e nas análises da sociedade
capitalista por Heller são essas potencialidades educativas “querendo” emergir. Além
disso, como ressaltamos anteriormente, Heller entende a ausência de regras como fato
que implica em falta de mediação e esquizofrenia, e não como algo positivo. Por isso, a
filósofa húngara aponta a necessidade da formação de novas comunidades no contexto
contemporâneo, mas desta vez estas não seriam de nascimento e sim de eleição.
Segundo Heller as comunidades:
En primer lugar organizan la realización del fin, después desarrollan la consciencia individual de quien pertenece a la comunidad, además mediante su estructuración de los valores proporcionan un modelo y ofrecen también una forma de vida (HELLER, 1987, p.77).
Vemos assim, que na sociedade contemporânea o excesso de liberdade pode significar
falta de mediação com a totalidade e obstáculo ao desenvolvimento humano.
Comentando sobre os jovens (adolescentes) de 14 a 18 anos de Juiz de Fora, Ritti
aponta que a falta de referências do mundo adulto surge combinada com a
responsabilidade de escolherem o que fazer sobre questões cruciais de suas vidas:
Não existindo regras claras e orientações para conduzirem as crianças e os adolescentes, a estes é dada uma liberdade com a qual se embaraçam. Liberdade que os coloca diante de escolhas que precisam fazer e que, segundo se espera, só mais tarde seriam pertinentes; ‘escolhas que seriam próprias da vida adulta têm de ser feitas desde a infância’ (RITTI, 2010, p.66).
Ao escolherem entre questões cruciais, e não o fazerem da forma correta aos olhos dos
pais, eles são castigados e sob sua perspectiva, injustiçados. Não há uma clara noção de
justiça nas relações que estabelecem, diante disso, eles reagem de forma intransigente.
Dayrell ainda propõe mais uma reflexão pertinente para essa discussão, ao apontar que
no cotidiano do jovem João: “Além da família, ele vivencia poucos espaços adultos de
regulação, nos quais pudesse conviver e lidar com os comportamentos e valores
veiculados pela sociedade” (DAYRELL, 2001).
Ou seja, a dificuldade de desenvolvimento se dá do ponto de vista moral também. Com
isso não queremos dizer que o jovem na situação de João necessariamente incorrerá em
atos de violência e ilegalidade, porém se torna muito mais difícil para que esse e outros
jovens consigam se orientar nas relações sociais nos espaços que não lhes são
familiares.
Stecanela procura ressaltar o lado positivo da experiência cotidiana dos jovens. Mesmo
assim de suas descrições podemos extrair alguns momentos em que fica claro, por mais
que a autora não dê destaque e não veja por essa perspectiva, a falta de mediação
presente no contexto de vida dos jovens.
Segundo Stecanela em um determinado ponto das entrevistas com DL, o mesmo
afirmou sentir tristeza diante das suas dificuldades de se integrar socialmente (as
experiências que teve com o trabalho justifica em parte isso). O jovem foi ao médico
que lhe disse que estava com depressão e sugeriu que ele passasse no psiquiatra. O
jovem desacreditou do diagnóstico e se recusou a passar com o profissional que
qualificou de “médico de louco”. Diante disso decidiu buscar na religião o “alimento
para o espírito” que necessitava por conta da falta de perspectivas que a rua simbolizava
naquele momento de sua vida.
Segundo Stecanela o jovem considerava que a Igreja era o melhor caminho, que o
afastaria das drogas, da bebida, das noites na rua, e da violência. “Frequentar a Igreja
ajudava DL a enfrentar os tumultos do seu dia-a-dia e a fazer escolhas, pelo caminho
certo, deixando as explosões para o passado” (STECANELA, 2008).
Diante dessa situação conclui a pesquisadora:
Num momento de descompressão e espírito alimentado o jovem recompunha sua história de vida, remetendo os prováveis motivos de suas iras ou alucinações e não respeito às leis da escola à presença da bebida e da droga. Sua participação na Igreja começou desde cedo, mas não era sua escolha e sim da mãe. DL tem necessidade de protagonizar suas escolhas com autonomia, assumindo a autoria de suas ações, assim como o faz com suas músicas e com diferentes episódios de sua vida. Ele é o Mestre de Cerimônias de seu grupo de rap, o cara que comanda o espetáculo, né?
Talvez por este motivo, por estar acostumado a coordenar ou a fazer uma coordenação colegiada com seus colegas de grupo, DL não curte submeter-se à autoridade, nem no trabalho, nem na escola. Os percursos de DL pela religião o motivaram para falar de suas escolhas entre dois caminhos: o caminho certo e o caminho errado (...) (STECANELA, 2008, p.280).
O que a autora considera como a redenção do jovem que “encontrou o seu caminho” e
um lugar onde podia expressar sua personalidade, poderia ser interpretado de outro
modo. Diante das dificuldades de integração social e de mediação para compreender a
realidade do mundo do trabalho, da escola e até mesmo da ciência (no caso da visão
sobre a psiquiatria), o jovem procurou a Igreja como alternativa para buscar desvendar
os enigmas a respeito de si mesmo e das situações complexas que se faziam presentes
em sua vida.
Ritti também observa a diferença e oposição entre o mundo imediato dos jovens e o
contexto social mais amplo. De acordo com os termos hellerianos, o que a autora
observa é um conflito entre o que o jovem aprende em seu “pequeno mundo”, ou seja,
seu ambiente cotidiano imediato, e o caráter das integrações sociais mais amplas, o
“grande mundo”:
O ‘mundo’ desses adolescentes parece se resumir em suas próprias vidas, em seus bondes e em suas relações com os outros bondes. Não consideram as consequências dessas relações no que diz respeito ao restante da sociedade. Em nenhum momento falam sobre isso, mesmo quando pergunto diretamente (...) (RITTI, 2010, p.79).
Segundo Ritti, a diferença existente entre os valores e comportamentos que a sociedade
espera e aqueles que os jovens aprendem, torna difícil a integração.
Em outros locais, como o centro da cidade, os jovens pobres sentem-se ameaçados e
desprotegidos. Poucas vezes vão lá. Carregam uma imagem de favelados, e sofrem com
as expectativas negativas que se tem deles em outros locais distantes de seu bairro,
como shoppings, atividades culturais etc. Ninguém os quer por perto, parece que
poluem o ambiente:
Por morarem na favela, ou por seu estereótipo de funkeiro, ou pela cor da pele, ou pelas roupas que vestem, o fato é que para esses adolescentes há muitas dificuldades ou mesmo impedimentos para que ampliem seus horizontes e se produzam diferentes daquilo que dizem que são, por não terem condições para viver o diferente (RITTI, 2010, p.82).
Alguns poderiam sugerir que esses limites do “pequeno mundo” juvenil pudesse ser
superado pelas relações que estabelecem na internet, que os põe em contato com as
pessoas e ambientes mais distantes no globo. No entanto, mesmo que admitamos que as
potencialidades da internet na socialização juvenil ainda são em grande parte
desconhecidas, o que exige estudos mais detalhados sobre o assunto, a constatação de
Ritti sobre o papel da internet no caso dos jovens da localidade que acompanhou não foi
das mais positivas. Segundo ela:
A internet torna-se, como percebemos, uma forte aliada na divulgação dos símbolos e na produção de violência nas relações que se fazem entre os bondes da cidade. (...) Como pude perceber, esses adolescentes estão a par do desenvolvimento tecnológico e não demonstram nenhuma estranheza em lidar com a tecnologia, tendo-a como recurso para se informarem sobre o que acontece no mundo, o que nos faz pensar, como Zaluar, que o local não pode mais servir como parâmetro único ou privilegiado para buscar uma compreensão de suas realidades. Assim, também, suas subjetividades se abrem para novas formas de produção e atingem níveis globais. Possuem celulares com recursos diversos, frequentam regularmente as lan-houses mantendo suas páginas nos sites de relacionamento atualizadas, divulgando suas fotos – obtidas por câmeras digitais ou celulares sofisticados – suas preferências, seus gostos, sua vida. Num site específico para este fim, disponibilizam vídeos criados para divulgarem suas imagens e provocar os bondes rivais, tudo regado com funks cujas letras violentas falam de quem são, para que servem, o que pretendem, do que gostam e produzem um discurso que os alimenta e reforça a produção de uma subjetividade violenta e revoltada (RITTI, 2010, p.98-99).
Ritti conclui coerentemente que:
Nesses adolescentes simplesmente encontram-se todas as possibilidades, mesmo que por muitas vezes ofuscadas ou impedidas. Basta que aprendam a encontrá-las e reconhecê-las como possibilidades. O adolescente de periferia, produzido perigoso e violento, pode ser ou se transformar em qualquer sujeito, de bandido a herói, desde que a ele sejam oferecidas outras experiências, outras verdades, desde que perceba que ser diferente do que tem sido é possível, desde que se abram os campos para novas identificações, desde que outros poderes os atraiam, capturando-os (...) (RITTI, 2010, p.111).
5. A “CRISE” DA ESCOLA COMO “CRISE” DA SOCIEDADE? COMO OS
PESQUISADORES DO COTIDIANO JUVENIL COMPREENDERAM O
CONFLITO ENTRE SER JOVEM E SER ALUNO, CULTURA JUVENIL
X CULTURA ESCOLAR?
As pesquisas do cotidiano que estamos analisando não se dedicaram a desenvolver em
seus trabalhos uma analise mais detida a respeito da crise da escola, com apenas uma
exceção9, este fato, porém foi reconhecido por todos eles, embora com variações
importantes de perspectivas que serão alvo de nossa atenção neste ponto. A “crise” da
escola é entendida como “crise” da sociedade para os investigadores do cotidiano
9 Nilda Stecanela dedicou um item de um capítulo de sua tese de doutorado para tratar especificamente sobre essa problemática.
juvenil? Como eles concebem os conflitos entre a identidade juvenil, a cultura que o
jovem assume como sua e o contexto escolar?
Poderemos observar nessa exposição e comparação de ideias, que mesmo no caso dos
pesquisadores da sociologia do cotidiano, parece ainda haver uma dificuldade em
evoluir de uma crítica à escola como forma, organização e instituição [Explicação
Canario] para uma crítica social mais consistente.
Na problematização da relação e das experiências que os jovens constroem com a escola
atualmente, nenhum deles deixou de expressar sua posição, mesmo que em alguns casos
de forma mais sucinta.
Antecipando a resposta para a primeira questão, apenas um deles, Dayrell, chegou à
conclusão, fundamentado em suas observações, de que a “crise” da escola é uma
expressão de crise da sociedade. Mesmo sem abandonar a posição comum de prescrever
um receituário de mudanças à escola, ele reconheceu a impotência da mesma de
transformar as coisas diante da realidade presente, e sugeriu a necessidade de lidar com
essas dificuldades a partir de forças sociais, e não apenas abandonar as tarefas
educativas pendentes nas mãos de alguns profissionais, dos pais, ou mesmo das
mudanças políticas restritas ao sistema oficial de ensino. Vejamos as posições dele e dos
outros autores.
5.1. A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA: AS POSSIBILIDADES DE
INTERVENÇÃO NA REALIDADE E AS PROPOSTAS DE MUDANÇA
Segundo Canario (2005), durante a época da “escola das promessas” foi o momento em
que se criou a maior parte das expectativas sociais em relação à escola, a maioria delas
se mostraram inviáveis ou infundadas. “Desenvolvimento, mobilidade social e
igualdade” eram algumas das promessas veiculadas, segundo o autor.
No entanto, nada evidencia que a posição da escola no imaginário juvenil tenha mudado
muito, tenha diminuído nas expectativas e importância. Conforme avalia Sposito (2005)
embasada no estudo “Perfil da Juventude Brasileira”, a escola sob a perspectiva do
futuro profissional é ainda uma das principais referências dos jovens, 76% consideraram
que o que aprenderam era muito importante nesse sentido.
(...) a juventude revelada pela pesquisa do Projeto Juventude indica ter interesses em discutir educação e trabalho, temas que tanto dizem respeito à
condição presente como constituem aspectos relevantes para estabelecer seu modo de inserção na vida adulta e seus projetos para o futuro. Voltam-se, assim, para temas relacionados às agências socializadoras tradicionais, indicando que sua importância está assegurada no horizonte juvenil (...) (SPOSITO, 2005, p.109).
A esperança de que a escola possa trazer solução às mazelas sociais está presente no
pensamento de todas as classes sociais. As expectativas permanecem amplas, porém
pouco se avalia de forma realista o que essa instituição realmente pode fazer. Essa
atitude se apresenta também nos trabalhos de teóricos reconhecidos10.
Mesmo afastando-se da escola para buscar uma compreensão diferente sobre suas
possibilidades diante das demandas juvenis e do contexto societário atual, os
investigadores do cotidiano não deixaram de expressar críticas à instituição em questão
com base naquilo que entendem serem suas possibilidades de intervenção social.
Ritti entende que a escola pode ser instrumento para viabilizar a construção de sonhos e
projetos de vida aos adolescentes: “Não é confortável, para mim, perceber nos
adolescentes o desinteresse com relação à busca de sonhos e projetos de vida que a
escola poderia ajudá-los a construir”.
Segundo ela, a escola é violenta ao não permitir a superação da reprodução, ao não
fornecer os elementos que se esperaria dela. Os adolescentes continuariam presos aos
limites de seu nascimento, mesmo após anos de percurso escolar. Isso também
explicaria a falta de perspectiva de futuro dos mesmos. Nas palavras de um deles:
Porque a gente não tem palavras [...] os patrão não entende o que a gente fala, aí a
gente desiste e faz o que pode.”. Resta também a incerteza quanto a mudanças para tal
realidade: “É difícil, a gente não sabe! (RITTI, 2010, p.93).
A autora considera que a escola e os educadores passam a ser enxergados como
promotores de violência, por impor conteúdos, pressionar por resultados, não conhecer
os problemas de vida dos alunos:
(...) pode-se considerar ainda a instituição de ensino e os educadores como possíveis agentes de violência, mediante ações como a imposição de
10 Não é difícil encontrar posições semelhantes a essa nos textos pedagógicos: “Este texto apóia-se em duas crenças: uma, que a escola continua sendo uma instância necessária de democratização intelectual e política; outra, que uma política educacional inclusiva deve estar fundamentada na ideia de que o elemento nuclear da escola é a atividade de aprendizagem, lastreada no pensamento teórico, associada aos motivos dos alunos, sem o que as escolas não seriam verdadeiramente inclusivas” (LIBÂNEO, 2004, p.5-6). Enxergamos a necessidade de deixar de termos “crenças” e investigarmos a realidade dos jovens e da instituição escolar antes de nos envolvermos em discussões pedagógicas específicas.
conteúdos destituídos de interesse e de significado para a vida dos alunos, o precário conteúdo ministrado, a pressão a partir do poder de conferir notas, a ignorância quanto aos problemas dos alunos (...) (RITTI, 2010, p.92).
Ritti sintetiza seu entendimento a respeito da escola do seguinte modo:
Como se percebe nas falas dos adolescentes e até mesmo no seu silêncio, a escola não ocupa lugar significativo em suas vidas, não cria identificações. Pelas questões que se apresentaram, percebemos que essa é uma relação de poder muito fragilizada. Por um lado, a escola não procura seduzir, buscar adesões, persuadir, não constrói estratégias, abriu mão do disciplinamento, está praticamente impotente. Por outro lado, a resistência dos educandos está no simples descaso e, em última instância, na desistência com relação aos estudos. Eles simplesmente escapam (RITTI, 2010, p.92).
Ritti desenvolve uma análise honesta da situação da escola, não foge de juízos mais
duros e pessimistas, porém acaba se confundindo diante dos vários significados e
funções que atribui à escola sem reconhecer as limitações desta diante do contexto
social apontado, por exemplo, por Canario no princípio deste trabalho, ao mesmo tempo
em que não consegue direcionar seu entendimento para uma critica social mais ampla.
Stecanela desenvolveu uma abordagem analítica mais ampla sobre a crise da escola e é
preciso analisar o conjunto de suas ideias. Segundo a autora os problemas que o sistema
escolar enfrenta decorrem de fatores exógenos e endógenos ao mesmo.
Ao tratar dos fatores externos, Stecanela aponta que um dos principais é a dificuldade
de conciliar trabalho e estudo para os jovens. A ampliação da demanda e da oferta
educacional não foi efetivada sem a criação de novas desigualdades. Nesse sentido,
observamos jovens que combinam exclusão social e fracasso escolar.
Stecanela adota também a perspectiva histórica de Canario, ao afirmar que outro ponto a
ser considerado é a passagem da escola de um contexto de certezas para um de
promessas. A desvalorização dos diplomas, as mudanças estruturais nas relações entre
capital e trabalho são destacadas pela autora.
Além disso, Stecanela assume também a posição de Dubet sobre a
desinstitucionalização. Segundo ela, este processo significa uma invasão do social sobre
a escola, como no caso dos meios de comunicação que se tornam outra expressiva fonte
de conhecimento, retirando o monopólio educativo da escola.
Stecanela afirma que a crise da escola é um fenômeno de incapacidade de adaptação ou
intolerância da mesma diante dos processos sociais que romperam com seu papel
clássico. Três funções eram entendidas para a escola antes da desinstitucionalização:
qualificação escolar, educativa e a socialização. O fato é que essa instituição não tem
mais o monopólio sobre essas funções sociais. Para ela, a escola permaneceu distante da
cultura social, imutável e estática em um contexto social de intensas mudanças:
Num contexto de incertezas e de intensas mudanças, provocadas pela crise social, a escola segue afastada da cultura social, fortemente influenciada pelos câmbios sociais, permanecendo relativamente imutável e estática (STECANELA, 2008, p.51).
Após retratar os fatores externos a pesquisadora volta-se aos fatores internos
responsáveis pela crise da escola.
Segundo ela, a principal necessidade da escola no contexto contemporâneo é aprender a
lidar com a diversidade cultural. Este é seu maior desafio, para o qual ela se encontra
despreparada.
Atualmente, a maior obrigação da escola seria articular o conhecimento que fornece
com a realidade dos indivíduos, buscar integrar as aprendizagens escolares com as
experiências de vida, permitindo assim, que o aluno construísse sentido para suas
tarefas.
Diante disso, a escola deve considerar atentamente os problemas que traz aos alunos, e
não considera-los como um problema como é feito comumente.
Além disso, Stecanela afirma que a escola, no momento de sua origem, foi a principal
responsável por desvalorizar as ações e saberes construídos fora dela.
A autora chama essa perspectiva de “escolocentrismo”. Essa concepção social centrada
na valorização do escolar seria atuante na desqualificação de outras formas de
socialização, conhecimentos e práticas estabelecidas informalmente no cotidiano. O
professor se coloca então como detentor do conhecimento, censura e julga os saberes
dos alunos. Isso ocorre atualmente. Segundo ela:
Além de trabalhar com os recortes dos saberes construídos pela humanidade a partir de uma atitude de censura, a escola promovia a domesticação, convertendo a criança em mercadoria da escola sob o pretexto de prepará-la para, no futuro, vir a ser um bom e obediente trabalhador (STECANELA, 2008, p.61).
Para Stecanela, o fato de o conhecimento de senso comum ter sido convertido em “erro”
é um fruto do pensamento pedagógico escolarizante que se considera no direito de
selecionar os conhecimentos válidos, verdadeiros e os que não são:
A forma pedagógica surgida desse movimento reforça a fissura com a vida real. Os saberes do senso comum das classes populares eram convertidos em não-saberes, em conhecimentos vulgares através da sua censura e da imposição de uma distância entre a verdade e o erro (STECANELA, 2008, p.61).
Diante desse quadro, a pesquisadora afirma que os processos educativos que ocorrem
fora da escola, o que chamamos de educação não-formal é uma das possibilidades de
lidar com a crise dessa instituição. Coloca-se como urgente a necessidade de valorizar
os saberes produzidos por processos informais: “A escola está em crise e por isso vem
sendo questionada e repensada a caminho de uma reestruturação através de práticas que
se mostrem inovadoras, apesar do peso da tradição que a acompanha”.
Stecanela afirma que a sociedade para a qual a escola foi produzida não existe mais.
Torna-se adequado então voltar a considerar a aprendizagem que ocorre fora das
instituições, nas relações cotidianas, ao longo da vida. Segundo ela, os jovens aprendem
no cotidiano, mas muitas vezes não percebem. Trata-se de um conhecimento adquirido
através da experiência. Um saber, muitas vezes incoerente, difuso e pouco consistente,
mas que não deixa de ter fundamental importância em suas vidas. Nas palavras da
autora:
Os jovens da pesquisa afirmam que a gente aprende com a sabedoria da rua ou que a vida ensina o cara a gemer e estes saberes e aprendizagens são proporcionados pela experiência, pois, segundo eles, a gente aprende com o que a gente vive, a gente aprende com o que sente no cotidiano (STECANELA, 2008, p.70).
Stecanela como parte de um pressuposto de valorização “exacerbada” das culturas
juvenis e do que chama de “a escola da vida”, como já comentamos anteriormente, não
consegue derivar uma critica social de suas observações. Suas limitações são claras:
mesmo quando apresenta autores que procuram avançar essa posição teórica, acaba
percebendo o choque com suas intenções investigativas e recua. Afinal, desde o
princípio se propôs a fazer uma crítica da escola e não do “mundo do jovem”, de suas
práticas ou das relações sociais que os permitem se constituir como sujeitos.
Primeira ideia de Dayrell é de que a Escola poderia melhorar sua dimensão educativa se
percebesse que o aluno é um sujeito sociocultural, perceber o jovem no aluno.
“O trabalho não oferece mais um tipo de regulação da sociedade, a escola não cumpre a
função de moralização e mobilidade social, e novos modelos ainda não estão
delineados”. (Dayrell P.12).
“Nos limites deste estudo, o nosso intuito não será tanto a análise do mundo do trabalho
ou da escola, mas sim de apreender como os jovens pesquisados vivenciam as
experiências nestas instituições, a forma como interferem nos modos de vida e os
significados que lhes atribuem no processo de construção como sujeitos”. (Ibidem
P.14).
Tende essa tendência de voltar-se para o futuro contribua a obscurecer as relações,
impedindo a escola de levar em conta os problemas existenciais do aluno, estar sempre
voltada ao vir-a-ser, exigências sociais, apontar o que falta para ser adulto, o que é
preciso abandonar ou adotar, etc. Ver p.14.
Dayrell faz uma avaliação das ações da escola diante dessa realidade, e indica o que
poderia ser feito:
Problemas da estrutura escolar: não atendia as demandas e necessidades destes jovens.
Não os envolvia.
“Esse depoimento nos mostra que João não encontrou na escola uma abertura para as
suas experiências com o hip hop. Fechada em si mesma, não estabeleceu canais de
comunicação com as experiências que ele vivia fora de seus muros, impedindo-o de
trazer para o seu interior os anseios e as necessidades, bem como a riqueza das
expressões culturais em que estava envolvido. No processo de conhecimento ali
existente, pelo menos no que ficou na memória de João, os conteúdos escolares não
tinham nenhuma articulação com a sua realidade, deixando de ser um dos meios pelos
quais ele pudesse se compreender melhor, compreender o mundo no qual se inseria e o
próprio momento denso de transformações pelas quais passava. É importante frisar que
a questão não se resume a introduzir as expressões culturais juvenis na escola, na
maioria das vezes como uma atividade extraclasse ou mesmo um apêndice ao currículo.
O desafio que está posto é como trabalhar com os sujeitos na totalidade das experiências
que vivencia, das quais as expressões culturais são parte” p.258.
Segundo Dayrell, ao assumir que era bagunceiro, João internalizou uma autoimagem
criada pela escola, estereótipo criado pelos outros. Isso seria parte dos mecanismos
internos que levariam à exclusão dos alunos.
“Outra experiência que parece interferir no seu desempenho escolar e na auto-imagem
são as reprovações, resultado de uma determinada forma de organização dos tempos
escolares que privilegia a homogeneização dos tempos e ritmos de aprendizagens, não
levando em conta a diversidade existente entre os alunos. Mas João elabora a
experiência da reprovação como uma questão individual, reforçando um sentimento de
incapacidade, além de contribuir para desmotivá-lo” p.259.
“Mas ele tem consciência de que os limites da sua formação é resultado de uma
condição estrutural de classe que dificulta o acesso aos bens culturais, além de
equipamentos sociais que complementassem a formação familiar, numa
corresponsabilidade dos setores públicos com as famílias das camadas populares” p.266.
“São descontextualizadas, sem uma intencionalidade explícita e, muito menos, uma
articulação com a realidade dos alunos. Junto com a prática de converter qualquer tarefa
em pontos, expressa uma concepção na qual os conteúdos são encarados como um meio
para o verdadeiro fim: passar de ano” p.295.
Escreve poesias, mas a escola nega ou ignora, não estimula essa potencialidade. Escola
como espaço de relações pessoais, ver amigos, curtir o recreio, o resto é provação.
“A relação com os professores é variada, sendo avaliados pela postura em relação à
turma. Ele dá o exemplo de dois deles. O de História seria muito brincalhão, dando
"liberdade demais", não conseguindo impor respeito na turma, fazendo da aula a maior
bagunça; o de Química é bravo, manda para fora de sala, tira pontos dos alunos por
qualquer problema, e assim todos o respeitam. São dois extremos que denotam que os
professores não se colocam como expressão de uma geração adulta, portadora de um
mundo de valores, regras, projetos e utopias a ser proposto aos alunos. Deixam, assim,
de contribuir no processo de formação mais amplo, como interlocutores desses alunos,
diante de suas crises, dúvidas, perplexidades geradas pela vida cotidiana. Ou seja, a
escola não se coloca para Flavinho como um espaço de formação humana, de
construção de referências positivas ou mesmo de interlocução com o mundo adulto”
p.296.
“Com isso, quero dizer que a crise da escola é reflexo da crise da sociedade e sua
superação demanda que nós, educadores, ampliemos a nossa reflexão para fora dos
muros escolares e busquemos saídas no jogo das forças sociais. E mais, acredito que
devemos estar mais abertos para ouvir os jovens pobres na escola, ver nas práticas
culturais e nas formas de sociabilidade que desenvolvem traços de uma luta pela sua
humanização, (o que não significa endeusá-las), aprender com eles e respeitar as formas
de sociabilidade que vivenciam” p.360.
Escola: incapaz de auxilia-los no presente, constituição como sujeitos.
“Para grande parte deles, a escola se mostrou distante dos seus interesses e
necessidades, reforçando em muitos o sentimento de incapacidade pessoal. A escola
ainda se pauta por uma visão reiterada de futuro, na lógica do "adiamento das
gratificações", mas numa sociedade que fecha as possibilidades de mobilidade social.
Mesmo quando ela apresenta uma proposta pedagógica que busca centrar sua atuação a
partir dos sujeitos jovens e sua cultura, ela se mostra frágil, evidenciando que a
instituição, por si só, pouco pode fazer se não vier acompanhada de uma rede de
sustentação mais ampla, com políticas públicas que garantam espaços e tempos de
formação desses jovens na sua totalidade” p.352.
“Diversamente das experiências de João e Flavinho, eles sentiam na escola um espaço
de ampliarem as suas potencialidades a partir do "dom" de cada um. É interessante
perceber que eles não se referiam a um determinado professor, mas ao seu conjunto, o
que nos mostra que, nessa escola, parecia existir de alguma forma um projeto político-
pedagógico e não posturas individuais de determinados professores, o que é muito
comum ocorrer. Em toda escola quase sempre existe um grupo de professores que busca
desenvolver uma ação educativa que vá ao encontro dos interesses dos alunos. São
aqueles professores que nos marcam, de quem nos lembramos por muito tempo. Mas,
para eles, era a escola, no seu conjunto, que se colocava de forma diferente. Em seus
depoimentos, eles vão pontuando os eixos constitutivos desse projeto pedagógico, na
forma como eles o vivenciaram” p.323.
“Nesse sentido, a escola pode contribuir para se efetivar como espaço de formação
humana mais amplo, articulando os processos formativos escolares com as experiências
reais dos alunos” p.326.
“Mesmo a escola assumindo um papel positivo na vida desses jovens, ela não conseguiu
mantê-los ali por muito tempo. No ano seguinte, todos os três a abandonaram
novamente: Cristian e Rubens em razão do trabalho, cujos horários não eram mais
compatíveis, e Rogério se desligou quando voltou para o tráfico de drogas. Esse
resultado mostra claramente os limites da instituição escolar diante da realidade de uma
inclusão precária e marginal em que vivem esses jovens” p.324.
Essa realidade coloca em questão a esperança salvadora na escola. Ver p.328.
COMENTÁRIOS:
O que vemos é que todos os autores reproduzem expectativas socialmente difundidas ao
falar, criticar a escola. Quando em muitos momentos parece faltar um ideal de
humanização ou de sociedade em si, não deixam de aparecer, por outro lado, inúmeros
entendimentos do que deveria ser a escola ideal e qual seria sua função social. A
posição de uma instituição que “rema contra a maré” que é capaz de suprir as
deficiências geradas pela sociabilidade presente em outros espaços da vida social está
presente na maioria deles.
Precisamos, porém pontuaras diferenças entre eles: Hirao em seu trabalho não expõe
uma opinião própria, apenas reproduz ideias presentes em Dayrell e Sposito, que foram
alias apropriadas de forma simplificada. Poucos educadores, pesquisadores gostam de
expor conclusões mais pessimistas, talvez por isso, a ideia desenvolvida por Dayrell de
que a escola constitui um espaço sociocultural seja apropriada pela maioria deles, para
exagerar seu conteúdo positivo sem levar em conta o seu lado negativo, o que significa
negar ou pelo menos colocar em questão suas habilidades de transmitir conhecimento e
humanização.
Dayrell é o autor, dentre os pesquisadores do cotidiano que ressaltamos, que com mais
coerência se aproxima de uma critica social a partir da verificação da crise da escola. No
entanto, entendemos que suas posições se tornam frágeis diante da falta de uma
explicitação mais clara das ideias de humanização, desumanização, além de uma
perspectiva de sociedade decorrente dessas noções.
6. ALIENAÇÃO E DESUMANIZAÇÃO: OS INVESTIGADORES DO
COTIDIANO TRABALHARAM COM ESTAS CATEGORIAS?
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