invisível eros - cinda gonda
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ÁGUA DA PALAVRA – REVISTA DE LITERATURA E TEORIAS / NÚMERO 4 AGOSTO 2011 ISBN 2178 0870
1
INVENCÍVEL EROS
Cinda Gonda
Para Ronaldo, pela paixão.
1. Em vez
de estrelas
acendem-se à noite palavras
Umberto Saba1
A margem do azul, Vertical o desejo, Uma colina para os lábios são obras publicadas
respectivamente em 1982, 1988 e 1993. Surgem em 2004 reunidas, acrescidas de uma outra, sob o
título: Três poemas de amor seguidos de Livro quarto, de Albano Martins.2
O último dos títulos, Livro quarto, deixa no ar a ambiguidade nele contida: a sugestão do
numeral, o quarto dos livros publicados e do substantivo, o quarto, local de intimidade. Na viagem pelos
sentidos, delineia-se o roteiro dos livros mencionados.
As epígrafes, com as quais o autor abre cada obra, nos fornecem importante chave de
entendimento sobre cada uma delas.
Em A margem do azul, convoca-se a voz de Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego: “O
nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da lua com as águas”. Em
seguida, apresenta-se a de Juan Ramón Jiménez, do livro Estío:
yo y tú somos ya tú y yo,
como el mar y como el cielo
cielo y mar, sin querer, son.
Tais apontamentos mantêm estreito diálogo com o título – A margem do azul – confirmando o
espírito apolíneo, traduzido na dimensão que o próprio azul conserva na poética de Albano Martins.
A água – elemento de renovação e purificação – nos devolve a leveza de um mundo feito de
fluidez e transparência, que o poeta confessa “perseguir implacavelmente”.
Na abertura, um poeta deixa-se guiar por um leopardo azul, (a poesia, talvez?), assumindo uma
postura passiva, contemplativa, frente ao mundo:
Um leopardo
azul me conduz
1 Tradução de Albano Martins.
2 MARTINS, Albano. Três poemas de amor seguidos de Livro quarto. Prefácio de Adriano Carlos. Vila
Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2004.
ÁGUA DA PALAVRA – REVISTA DE LITERATURA E TEORIAS / NÚMERO 4 AGOSTO 2011 ISBN 2178 0870
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pelo dorso da noite. (MARTINS, Albano, 2004, p.21)
Primeiro dos livros publicados, nele parece se fundar a poética amorosa, que reaparecia nos
subsequentes. A palavra “pedra” guarda tal sentido.
Como se esta fosse
a primeira pedra,
o lugar habitado
da primeira semente. (ibidem, p.22)
O tom oracular – indelével traço de sua poética – a vertigem demiúrgica dominam os versos:
Eu te batizo: hidrângea
é teu nome, cesto
de água, idioma
e intriga do perfume. (ibidem, p.27)
Micros poemas, à maneira de haicais, desdobram-se em sucessivas imagens:
A tua boca:
uma andorinha. (ibidem, p.30)
Ou ainda:
Em teus dedos pus
um anel de crisântemos (ibidem, p.32)
Se é verdade que a poesia reinventa o real, nos devolvendo o que previamente existia, mas que
ainda não atentáramos, descobriremos no formato do lábio a sugestão da asa de um pássaro. Talvez que,
por isso mesmo, da boca, aninhadas, voem as palavras.
Nos versos, há elementos que só se tornam compreensíveis ao resgatarmos o sentido etimológico
das palavras, a sua origem, como no caso de crisântemos. O volume da flor não nos permite que com
ela trancemos um anel, como se daria com as pequeninas e delicadas: violetas ou miosótis. O enigma
nos desafia. Torna-se necessário resgatarmos o seu significado: crisântemo, do grego, “flor de ouro” -
aliança.
Fernando Guimarães, com rara sensibilidade, definiu a poesia de Albano Martins como a da
essensualidade. Porque, de fato, o que marca a obra do autor é a vertente apolínea e dionisíaca nela
engendrada, como, por exemplo, na presença constante das cores azul e o vermelho. Confirma-se a
tensão permanente das forças dominantes de sua poética: o rigor e a paixão.
Esta é a margem
ÁGUA DA PALAVRA – REVISTA DE LITERATURA E TEORIAS / NÚMERO 4 AGOSTO 2011 ISBN 2178 0870
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do azul. Nenhum
outro limite
reconheço ao sangue. (ibidem, p.41).
2. Pede o desejo, dama, que vos veja.
Camões.
Vertical o Desejo, segundo da trilogia, sugere uma mudança de registro já enunciada em suas
quatro epígrafes. A primeira extraída do livro Razón de Amor, de Pedro Salinas:
Porque un cuerpo – lo sabes y lo sé –
sólo está en su pareja.
A segunda, de Ricardo Molina, do livro Regalo de Amante:
Así yo te amo com amor de hombre.
No se puede esquivar este cuerpo de tierra
tan bello, los ojos y los labios,
el cuello, las mejillas y los brazos y el pecho
y los pies y las piernas, la cintura y los hombros...
De Jorge de Sena, a terceira, do livro Exorcismos:
Só não é belo o que se não deseja
ou que ao nosso desejo mal responde.
E, finalmente, A Arte de Amar, de Ovídio:
Nos Venerem tutam concessaque furta canemus
Inque meo nullum carmine crimen erit.
Ainda uma vez, iremos constatar o diálogo que se estabelece do encontro das epígrafes com o
título, onde o aspecto dionisíaco sugerido acompanhará o poema.
A verticalidade proposta, unida à noção de desejo, corresponde ao movimento de ascensão em
direção ao cosmos, ao infinito. Daí a importância de conjugarmos as palavras com as quais o poeta
intitula a obra – vertical e desejo. Diante delas, um duplo desafio se apresenta. Por um lado, o de
entendê-las, ainda uma vez, etimologicamente; por outro, compreender como elas se articulam ao longo
do poema.
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Comecemos pelo significado do termo desejo. Três grandes autores o definiram. Segundo Mario
Claudio, “o desejo é a distância entre dois corpos”. Para Maurice Blanchot, “a distância é o espaço do
desejo”.
Octavio Paz o sintetizaria de forma admirável:
Nada sabemos do desejo. Apenas que ele se cristaliza em imagens. E essas imagens não cessam de nos instigar
até que as toquemos. Mal as tocamos, elas se desvanecem. O desejo é a imaginação em movimento. (PAZ,
Octavio, 1966, p.15.).
A noção de distância se impõe. Ao recuarmos às origens mais remotas da palavra encontraremos:
A palavra desejo tem bela origem. Deriva-se do verbo desidero que, por sua vez, deriva-se do substantivo sidus
(mais usado no plural, sidera), significando a figura formada por um conjunto de estrelas, isto é, constelações.
Porque se diz dos astros, sidera é empregado como palavra de louvor – o alto – e, na teologia astral ou astrologia,
é usado para indicar a influência dos astros sobre o destino humano, donde sideratus, siderado: atingido ou
fulminado por um astro. De sidera, vem considerare – examinar com cuidado, com respeito e veneração – e
desiderare – cessar de olhar (os astros), deixar de ver (os astros). [...] Cessando de olhar para os astros,
desiderium é a decisão de tomar o destino em nossas próprias mãos, e o desejo chama-se então vontade
consciente nascida da deliberação, aquilo que os gregos chamavam bóulesis. Deixando de ver os astros, porém,
desiderium significa uma perda, privação do saber sobre o destino, queda na roda da fortuna incerta.3
Então o desejo como carência, vazio, está intimamente associado ao sentido de distância – a um
espaço que pede para ser preenchido.
“O desejo é a imaginação em movimento”, assim o definiu Paz. Talvez por isso ele associe à
noção de desejo as tais “imagens que não cessam de nos instigar. Pelo desejo, imagem e memória se
harmonizam, formam uma nova aliança. Sob o signo da interdição, o desejo abre caminho para o
simbólico e para o imaginário. Como em todos os poemas, Albano Martins nos propõe uma viagem na
qual os signos e as palavras ganham um novo sentido.
Entras
em mim descalça, vulnerável
como um alvo próximo, ferida
nos joelhos e nas coxas. Pelo tacto
nos conhecemos, é essa luz
oblíqua que nos cega. E te pertenço
e me pertences como
a lâmina
à bainha, a chama
ao pavio. (MARTINS Albano, 2004, p.47)
3.Cf. Marilena Chauí. “Laços do Desejo” In: O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.22.
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Sobre os versos acima, David Mourão-Ferreira, ao comentá-los, registrara: “invertem-se as
tradicionais relações de predomínio macho / fêmea. [...] A partilha chega a ser tão completa que não há,
no par amoroso, nem dominador, nem dominada para tudo se tornar, em suma, domínio comum”
(MOURÃO-FERREIRA, David, 1988, p. 150).
O verso seguinte, “é essa luz oblíqua que nos cega”, nos devolve a vontade consciente de
“cessando de olhar os astros, tomar nosso destino em nossas mãos”. Algo que irá se corroborar nos
versos seguintes: “onde é mais surda / a floresta / aí te penso / e escuto”. Um novo aprendizado se impõe
– ouvir o silêncio. O mesmo silêncio associado à criação genesíaca: “e quando ele abriu o sétimo selo,
fez-se no céu um silêncio de quase meia hora”.
A noção de ritual acompanha todo o poema. Ela já se anunciava na escolha da palavra
“descalça”, do primeiro verso. Ganhará plenitude no segmento – “Ungida / como as corolas e as
serpentes”, ou neste ainda: “Estávamos / nus e só a pele / nos cobria e em nós se consagrava”. E,
finalmente, “um deus e a crista / duma onda / crucificados / no teu sexo”. Os símbolos da tradição
judaico-cristã, além dos mencionados acima, são incorporados ao poema: “um peixe / sobrevive / ao
mar / e seu naufrágio”; “as sandálias digitais do desejo”.
É muito possível que o ritual, que preside quase todo o poema, corresponda a um processo de
renovação objetivado pelo poeta. Do sentido de exclusão, de dispêndio que o erotismo guarda, passa-se
a um significado positivo. Não por acaso, o fogo torna-se o tradutor da noção de desejo: “E te pertenço /
e me pertences como / a lâmina / à bainha, a chama / ao pavio“; dentro do mesmo campo semântico
encontram-se as palavras: “calcinar”, “lume”.
Surge a palavra sublime, transcendente – amor: “O nosso tempo, amor. /Tempo / líquido
sulcado/ de submarinas galeras e corvetas”.
Por outro lado, a formação clássica de Albano, o gosto pelos clássicos, faz com que, de
imediato, associemos os três primeiros versos, já citados anteriormente, à figura do arqueiro ferido:
Entras em mim descalça, vulnerável
Como um alvo próximo, ferida
Nos joelhos e nas coxas.
As palavras “alvo próximo”, “ferida nos joelhos e nas coxas” sustentam a hipótese. Onde
encontraríamos os fios que uniriam o poema ao mito?
Sabemos que Filoctetes era o melhor arqueiro de seu tempo. Ao ferir-se acidentalmente, por uma
de suas flechas envenenadas, se vê abandonado pelos aliados, isolado na ilha de Lemos, porque sua
ferida causa um terrível odor. Não pode manejar seu arco encantado, lançar suas flechas. Os gregos, no
entanto, precisam de seu grande arco fundamental na guerra de Tróia. É o jovem Neoptolemo que
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partirá na tentativa de resgatá-lo. Ao ver Filoctetes, é tomado por intensa compaixão, passando a cuidar
de seu ferimento.
Podemos arriscar a hipótese de que Albano Martins ocupa, como poeta, o lugar do filho de
Aquiles. O erotismo, ferida que sangra na sociedade burguesa e a coloca em risco, tal qual Filoctetes,
deve ser expurgado, marginalizado. O poema subverte tal noção, ganha dimensões afirmativas: “Em nós
o inalterável esplendor da carne”. Afinal, as epígrafes escolhidas pelo autor apontavam nessa direção,
miravam esse alvo.
Diferentemente do jovem Neoptolemo, não se deixará levar pelo sentimento de compaixão, o
que o move é o sentido da paixão, sempre associada à interdição. Sentimento que não considera nenhum
dos apelos da razão, da sensatez.
A sugestão ao mito permanece na imagem da floresta, lugar de isolamento e silêncio.
Examinemos os versos:
Onde é mais surda
a floresta
aí te penso
e escuto. (ibidem, p.48).
A desordenada angústia da descontinuidade se associa à interdição e ao erotismo logo
estabelecido como ruptura da norma.
Indefesos, contra nós investem
os deuses todos do desejo com seus touros
de incontinência e morte.
Estávamos
nus e só a pele
nos cobria e em nós se consagrava. (ibidem, p.60)
Sabemos que não só a poesia, mas a literatura de um modo geral, integra o princípio do prazer e
talvez auxilie no processo de sublimação que o homem se vê forçado a empreender pelo princípio da
realidade, através da “fantasia”. É, a um só tempo, fonte de prazer e um meio através do qual suporta a
realidade. A literatura é, assim, uma fonte importante de energia. Ela recebe essa energia da própria vida
e lhe devolve a energia já transformada em processo de reflexão e de sensibilidade. Deste modo, a
literatura provém da literatura e modifica a literatura, provém da vida e modifica a vida, provém do
princípio do prazer e modifica o princípio do prazer, provém da realidade e modifica a realidade, num
encadeamento que compreende variáveis e que dá ao fenômeno literário uma riqueza e uma dimensão
extraordinárias. Desse modo, Albano Martins em seu poema acentua o aspecto de ruptura, contido no
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erotismo. Ao invés da noção de dispêndio, como é visto pela sociedade, pelo senso comum, reinaugura
um mundo onde o prazer se torna essencial, ilimitado, como nos versos:
Nenhum excesso
nos contém. Nenhuma
onda nos devolve. (ibidem, p64)
Pela via do erotismo e da paixão, cura-se um corpo, ferido, corrompido, incompleto.
Em nós o inalterável
esplendor da carne. (ibidem, p.66).
Tocamos a margem de um outro silêncio. Um silêncio absoluto, retorno às origens. Desnuda-se a
realidade, toca-se a substância essencial que nela se oculta.
Horizontal
o mar.
a mor
te. Vertical
o desejo. (ibidem, p. 68).
A separação intencional da palavra morte nos remete ao “centro da vida e do amor”, la petite
mort, de que nos fala Bataille.
Cada vez mais a poética passa pela imagem. Cada vez mais a imagem traduz a poética. Os versos
constroem o arco, tencionado pelo desejo. O desejo e o arco, as setas com seu veneno partem em direção
às estrelas, ao infinito.
Ao abandonar o abrigo onde vivera isolado Filoctetes sabia que outras guerras viriam. .
Caminhar pela poética de Albano Martins é como caminhar sobre um terreno minado, correr um risco.
Talvez valha a pena não nos esquecermos dos vários sentidos contidos de forma latente na palavra
desejo: estrela / siderus ou desastre. Mas, como nos lembra o poeta, “há tentações a que não se pode
humanamente resistir: a do amor, a do desejo E outra perdição não há. Como não há também outra
salvação possível”.
3. Eis-me desconhecido e nu
Para receber por rosto um sopro António Ramos Rosa
Em Uma Colina para os lábios, o jogo de epígrafes se mantém. O eu lírico se afirma de modo
pleno, total. Recuperemo-las: de Paul Éluard, “D’aimer, j’ai tout crée: réel, imaginaire”.
De Jorge Guillén, os versos:
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Tu, más aún: tu como
Tu, sin palabras toda
Singular, desnudez
Única, tu, tu sola.
Encerrando, Pablo Neruda: “yo no escogí sino uma sola ola: / la ola indivisible de tu cuerpo”.
Demiúrgico por excelência, Uma colina para os lábios, mais do que a simples presença do outro,
anuncia o desejo de criação. O poema tem início com o predomínio de um tom oracular. O uso do
imperativo confirma a hipótese:
Eu disse: faça-se
um rosto à minha
imagem e semelhança, um corpo
à semelhança e imagem
do desejo. E dei
vertentes ao mar, afluentes
aos rios, crateras
ao sangue. E uni
as minhas têmporas às têmporas
do lume. (MARTINS, Albano, 2004, p. 71).
Como um deus, o poeta, agora, se põe a agir em plenitude, como Prometeu irá experimentar o
desejo de criação de um novo ser: os clássicos, mais uma vez, exercem grande influência em sua
poética.
Albano Martins já anunciara no título – ao escolher a palavra “colina” – a referência ao Cáucaso,
a presença do mito. Convém também não esquecer que o poeta traduzira Giacomo Leopardi, Cantos.4 E
que ali ressoa um dos versos do poeta italiano, segundo o próprio Albano por muitos considerado o
maior poeta italiano depois de Dante e de Petrarca. “Cara me foi sempre esta erma colina”.
Voltemos ao mito. Prometeu, da raça dos Titãs, formou um homem ao misturar terra com água e
o animou com o fogo que roubara do céu. Júpiter se enfurece e ordena que o acorrentem no monte
Cáucaso. Uma águia lhe devoraria o fígado que cresceria em seguida. Este seria o seu silício. Os deuses
se compadecem e resolvem interferir enviando Pandora como consolo a Prometeu. Júpiter, de modo
ardiloso, diz a Pandora que leve uma caixa ao irmão de Prometeu. Quando aberta, dela saltam e se
espalham por todo o lado. No fundo da caixa, porém, ficara a esperança, um sinal, um consolo para
humanidade.
4Cf. Cantos, de Giacomo Leopardi, com apresentação, seleção tradução e notas de Albano Martins.
Prefácio de João Bigotte Chorão. Pintura de Armando Alves. Lisboa: Editora Vega, 1986.pp 9 e 41.
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Os primeiros versos confirmam a estreita ligação entre o poeta e Prometeu: os dois
experimentam a mesma vertigem, a do poeta, situada no plano simbólico.
A palavra cria e recria um novo ser. É do humano, imperfeitamente humano, que se irá originar
“um rosto à minha / imagem e semelhança”.
Há um aspecto totalizante entre o ser e natureza – nascem ao mesmo tempo:
Modelo agora as pálpebras, corrijo
o itinerário das árvores que sobram
da cabeça para os ombros. Afeiçôo
a anel dos lábios, fixo
as palpitações do fogo. (ibidem, p. 74).
Um diálogo se estabelece entre o eu poético e o outro, entre o corpo e o espaço. O amor surge
com seus múltiplos enigmas: como vertigem, interdição e embriaguez.
E me disseste: vem. E havia
alguns despojos sobre a areia, algumas
ressentidas grinaldas
no limiar das têmporas. Havia
alguns gestos suspensos, um cofre
de esmeraldas vermelhas, um torpor
nos membros retardados. E havia
um colar para as mãos, uma colina
para os lábios e uma flor
intacta perfumando
o silêncio, à beira
de indizíveis planícies. (ibidem, p, 75).
Como se dar um tempo e um espaço à emoção, senão através do silêncio?
4. O silêncio deste quarto
Fernando Pessoa
O Livro quarto ganha uma especificidade em relação aos anteriormente analisados, A margem do
azul, Vertical o desejo e Uma colina para os lábios. O título aparece reduzido ao essencial, quer no
emprego da palavra livro, quer da palavra quarto. Como já mencionamos, há uma ambiguidade latente
nesta última, vários significados ali se apresentam. A sequência do numeral, a porção de um todo, e o
local feito de nudez e silêncio absoluto, onde os amantes se encontram para realizar algo que parece ser
a vocação dos seres – o encontro amoroso, algo que os resgata e justifica.
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A palavra livro parece sustentar a unidade de uma poética amorosa que os anteriores
anunciavam. O ato do amor emerge em toda plenitude, ainda uma vez, ritualisticamente, onde livro pode
significar o livro sagrado, a reunião daqueles que o precederam, com as nuances ali contidas.
De modo homólogo ao que se passa com o par amoroso, o poeta começa por despir o livro das
epígrafes, nenhuma ali se acha. A abertura é significativa:
Ao contrário das árvores,
dizes,
é o amor. Mais altas
do que os ramos são
as raízes. (MARTINS, Albano, 2004, p.105).
Um compromisso radical, descer às raízes, marca a pulsão erótica dos versos:
Deitou-se a meu lado.
Disse que vinha de longe e tinha sede.
Bebemos pela mesma taça. (ibidem, p. 107).
A interação entre os amantes se dá de forma total:
Eu penso
porque tu existe. (ibidem, p, 108).
Ou:
Assimilar-te: ser
perfume na tua pele. (ibidem, p. 111)
Como num quadro de Botticelli, por entre águas e espumas, se dá o nascimento da deusa do
amor:
As tuas armas.
As tuas artes.
As tuas águas. (ibidem, p. 115)
É pelo princípio do prazer, no terreno dominado por Eros, que a aspiração pela permanência se
realiza - no pacto com o instante que, de tão intenso, guarda a eternidade. Porque, único e novo, é
capaz de nos transformar a cada dia onde nos descobrimos o mesmo e o outro, num eterno retorno.
Como se nasce
pela segunda vez?
– perguntei. E tu
disseste: no meu ventre
tu nasces
todos os dias. E é
de ti próprio
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que nasces. (ibidem, p. 135)
A redução ao silêncio, ao essencial, traduz o pacto amoroso contido em Livro quarto. Como nos
anteriores, Albano Martins parece confirmar o princípio segundo o qual para “apedrejarmos a morte”,
inventamos a palavra, a criação. “Eros, invencível Eros”, fonte de todas as noturnas e diurnas
constelações. Na vertigem do amor, do desejo, da paixão, o mundo alcança uma unidade total.
Em entrevista concedida a Baptista Bastos, Albano Martins afirmou: “À literatura prefiro a vida.
Digo-o num livro publicado em 89, Rodomel, Rododendro. E à cabeceira terás, como único livro de
todas as horas, o livro da vida”. Para mais adiante acrescentar: “que não são necessárias muitas palavras
para dizer o amor, o deslumbramento, a paixão. Basta, às vezes, um oh! Um ah! Outras, nem isso: um
gesto, um olhar. O silêncio, quero eu dizer”.
O poeta escreve, como nos lembra Paz, com os olhos fixados no silêncio. (PAZ, Octavio, 1966,
p.14).
É do amor, invencível amor, de uma emoção forte que aqui se fala. Bela, afirmativa. A única,
talvez, com que possamos celebrar a vida, desafiar a morte, lugar de todas as ausências no infinito azul.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FERREIRA. David-Mourão. Os Ócios do Ofício. Lisboa: Guimarães Editores, 1988.
“JL.Jornal de Letras Artes e Idéias”. Diretor José Carlos de Vasconcelos. Lisboa. Ano X, nº 418, 10 a
16 de julho de 1990.
LEOPARDI, Giacomo. Cantos. Apresentação, seleção tradução e notas de Albano Martins. Prefácio de
João Bigotte Chorão. Pintura de Armando Alves. Lisboa: Editora Vega, 1986..
“JL.Jornal de Letras Artes e Idéias”. Diretor José Carlos de Vasconcelos. Lisboa. Ano X, nº 418, 10 a
16 de julho de 1990.
MARTINS, Albano. Três Poemas de Amor, seguidos de Livro Quarto. Vila Nova de Famalicão, , Quasi,
2004
NOVAES, Adauto. Organizador. O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990
PAZ, Octavio. Poesía em movimento. México: Siglo Veintiuno Editores, 1966
Cinda Gonda é professora na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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