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Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino,
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HISTÓRIA AMBIENTAL E INTERDISCIPLINARIDADE NA ANÁLISE DE
DESASTRES
Marcos Aurélio Espíndola Pós-doutorando (PPGICH-UFSC) - marcredriver@gmail.com
Eunice Sueli Nodari Professora (PPGH-UFSC) e do (PPGICH-UFSC) - eunice@cfh.ufsc.br
Alfredo Ricardo Silva Lopes Doutorando do (PPGH-UFSC) - alfredorsl@gmail.com
Eixo Temático: Conhecimento Interdisciplinar
Este trabalho integra o Projeto Desastres Ambientais e Políticas Públicas em Santa Catarina nos
séculos XIX, XX e início do XX1 e propõe a analisar as questões interdisciplinares dentro do campo da
História Ambiental para o estudo dos desastres socioambientais.
A História Ambiental, que é interdisciplinar na sua essência, reconhece que formas vivas e não vivas
do sistema terrestre, tem afetado os seres humanos. Também avalia os impactos e as mudanças causadas
pelos agenciamentos humanos no mundo natural. Estes processos ocorrem há algum tempo e são
mutuamente condicionados (HUGHES, 2001). A narrativa da História Ambiental leva em conta as
mudanças nas sociedades humanas e como elas interferem nas mudanças no meio natural e como o meio
natural condiciona a experiência humana. Desta maneira, promove a aproximação entre as ciências sociais e
naturais, na medida em que tenta redefinir a investigação do passado humano vem retirando subsídios de
diferentes disciplinas.
O diálogo de diferentes áreas da ciência se mostra fundamental para os estudos ambientais, pois ela
insere-se numa perspectiva interdisciplinar que implica na articulação de recortes analíticos e metodologias
distintas, oriundas de diferentes disciplinas, na busca de constituição de entendimentos mais amplos dos
temas nele propostos. As diversas disciplinas (História, Geografia, Antropologia, Filosofia, Sociologia e
Psicologia Ambiental, entre outras) são necessárias para a compreensão da constituição cultural e histórica
das relações da humanidade com a Natureza, em diferentes sociedades, sendo por isto que o campo que
denominamos de História Ambiental torna-se interdisciplinar por excelência.
Definem-se desastres ambientais como fenômenos ao mesmo tempo físicos e humanos, sob a
perspectiva de que a Natureza hoje existente é resultado também da ingerência humana, que rompe uma
1 O Projeto tem a duração de dezembro de 2011 a agosto/2014 e está sob a Coordenação da professora Drª Eunice Sueli Nodari na Área de Concentração Sociedade e Meio Ambiente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH-UFSC) com apoio financeiro da CAPES.
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“normalidade” anterior estabelecida no tecido social, caracterizando a contraditória relação
Homem/Natureza. As discussões em relação aos processos de apropriação da Natureza na área das ciências
humanas somam-se, em grande parte, à ansiedade em relação aos problemas ambientais contemporâneos.
Existem estudos em diferentes áreas do conhecimento, sem a preocupação de uma visão interdisciplinar
onde o processo histórico não está presente nos estudos, dificultando o entendimento das ações, pois de
acordo com Worster:
Se optamos ou não por aprender com o passado, se escolhemos aprender ou ignorar esse
passado, o passado é nosso único instrutor. Nós não temos uma revelação nem uma
autoridade dos quais depender. Desse passado em constante mudança, e só dele, nós
devemos. De algum modo, tirar, com auxílio da razão imperfeita, o que nós valorizamos de devemos defender. (WORSTER. 2012, p. 384).
Em Santa Catarina, apesar dos inúmeros desastres ambientais que têm atingido o Estado, os desastres
são tratados como fenômenos independentes, onde as causas ambientais, sociais, econômicas, culturais e
políticas não são articuladas na compreensão dos eventos danosos. Assim, “a interdisciplinaridade surge
como uma necessidade prática de articulação dos conhecimentos; [...] constitui um dos efeitos ideológicos
mais importantes sobre o atual desenvolvimento das ciências, justamente por apresentar-se como
fundamento de uma articulação teórica” (LEFF, 2007, p. 37-38).
Interdisciplinaridade na história
A guinada interdisciplinar na História tem seu início na década de 1930, quando Lucien Febvre e
Marc Bloch, fundadores da Revista dos Annales d’Histoire Économique et Sociale, passaram a influenciar
toda uma geração de historiadores. Essa Nova História vinculada à política e a intelectualidade reivindicava
novas perspectivas para o campo histórico. Questões sociais e econômicas vinham à tona como palavra de
ordem a fim de orientar o percurso historiográfico francês, que ainda, abria-se às outras Ciências Sociais e
rompia os compartimentos especializados dos historiadores que trabalhavam com períodos ou temáticas
estanques (FONTANA, 2004, p. 267).
Entretanto não cabe aqui fornecer a ideia de uma irrupção nos estudos históricos, pois a primeira
geração do grupo da revista Annales, como ficou popularmente conhecida, traz consigo as transformações
sociais que o período impôs à História, além da herança da Geografia de Vidal de La Blache, da Sociologia
de Durkheim e dos historiadores Henri Berr e Henri Pirenne. Nesse momento na área das Ciências Humanas
as análises com enfoque estritamente político perdiam fôlego, já que eventos como a Grande Depressão e as
duas Grandes Guerras, por exemplo, não podiam ser explicados simplesmente através da política. “Os
Annales vão definir-se, em primeiro lugar, como hostis ao discurso e à análise políticos” propondo um
alargamento do campo da história, surgindo então: a natureza, a paisagem, a população e a demografia, os
costumes, dentre outros (DOSSE, 2003, p. 83).
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A Crise Ambiental
A crise ambiental presenciada depois da segunda metade do século XX transformou a percepção dos
seres humanos sobre a realidade do planeta, pois evidenciou a uma possível crise que não se relacionava
simplesmente a escassez ou fartura dentro das fronteiras políticas. Nas palavras do economista Enrique Leff,
a degradação ambiental irrompeu na cena política como sintoma de uma crise de civilização, marcada pelo
modelo de modernidade regido sobre o predomínio do conhecimento científico e da razão tecnológica sobre
a natureza. “A questão ambiental problematiza assim as próprias bases da produção: aponta para a
desconstrução do paradigma econômico da modernidade e a construção de uma racionalidade produtiva,
fundada nos limites das leis da natureza, assim como nas potencialidades ecológicas e na criatividade
humana” (LEFF, 2006, p. 136).
Esse processo se deu em virtude da excessiva objetivação da natureza na ordem econômica, que
produz seu reflexo deformado em todos os campos do conhecimento. Nesse caso, todo e qualquer estudo
sobre a realidade humana se estabelece em uma estrutura simbólica sem relação com a natureza. Segundo
Leff, “o ecologismo não se constitui apenas como um movimento de defesa da natureza, mas como uma
nova cosmovisão baseada na compreensão do mundo como um sistema de inter-relações entre as populações
humanas e seu entorno natural (LEFF, 2006, p. 78).
Os problemas estruturais que a crise ambiental, analisada por Leff, são fruto de uma “economização”
da sociedade, onde se espera que as forças invisíveis do mercado, com base na lei de oferta e procura,
atribua valor à natureza. Pois “o discurso do desenvolvimento sustentado colonizou a natureza, convertendo-
a em capital natural” (LEFF, 2006, p. 142). Entretanto, o mercado tem se mostrado incapaz de atribuir
valores econômicos à produtividade da natureza e aos serviços ambientais. Desta forma, a crise dos recursos
deslocou a natureza do campo de reflexão filosófica e da contemplação estética para reintegrá-la ao processo
econômico, processo que foi se desprendendo de suas bases materiais para ficar suspenso no circuito
abstrato dos valores e preços do mercado.
Ao apontar estratégias para lidar com a crise ambiental, o economista mexicano defende a
necessidade de interiorizar um saber ambiental emergente no corpo das ciências naturais e sociais.
Para construir um conhecimento capaz de integrar a multicausalidade e as relações de
interdependência dos processos da ordem natural e social que determinam, condicionam e
afetam as mudanças socioambientais, assim como para construir uma racionalidade produtiva fundada nos princípios do desenvolvimento sustentável (LEFF, 2006, p. 239).
Nesse sentido a racionalidade ambiental que orienta a construção da sustentabilidade implica um
encontro de racionalidades - de formas diferentes de pensar, de imaginar, de sentir, de significar e de dar
valor às coisas do mundo. Portanto, não é a expressão de uma lógica, mas sim um nó complexo, de
raciocínios e significados construídos por conjuntos de práticas sociais e culturais, heterogêneas e diversas
(LEFF, 2006, p. 250).
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A Emergência da História Ambiental
A História Ambiental surge no contexto dessa crise ambiental, pois nasce da necessidade de melhor
compreender a interação dos seres humanos com o meio ambiente. O historiador ambiental José Augusto
Pádua explica que as “vozes da rua”, ou seja, as demandas da sociedade foram basilares para o crescimento
da História Ambiental, pois no primeiro momento havia uma premissa moral que norteava o direcionamento
das pesquisas.
Apesar das pesquisas históricas se interessarem pelo ambiente desde o final do século XVIII, a
grande novidade das últimas décadas se deve à difusão na esfera política do emaranhado de ideias e
percepções sobre o mundo natural. Nesse cenário três ideias são fundamentais para as mudanças
epistemológicas que incidiram sobre os mais diversos campos científicos. A primeira faz referência à ação
humana e seu impacto no mundo natural, inclusive a ponto de provocar degradação ambiental; a segunda,
uma revolução nos marcos cronológicos de compreensão do mundo; e finalmente, a visão de natureza como
uma história, como um processo de construção e reconstrução ao longo do tempo (PÁDUA, 2013, p. 19).
A interdisciplinaridade aparece como característica essencial dessa nova forma de se fazer história,
como exemplo pode ser citadas as diretrizes que Donald Worster traz para o domínio do historiador
ambiental. A primeira diretriz lida com domínios das ciências naturais, pois trata da busca pelo
entendimento do funcionamento do meio analisado, nesse ponto Geologia, Hidrologia, Agronomia, Biologia
são colocadas para conversar a fim de compreender as dinâmicas do ambiente. O segundo nível de análise
diz respeito às relações socioeconômicas realizadas pelos seres humanos para produzir sua subsistência
naquele ambiente, Economia, Sociologia, e outros campos do conhecimento, são trazidos à baila para
melhor vislumbrar a complexa teia de relações dos seres humanos com o ambiente. O terceiro e último nível
é o palco das ideias, onde as concepções sobre a natureza são analisadas; aqui as ideias são vistas como
ferramentas utilizadas para interagir com o mundo natural, cada tipo de ideia gera um tipo de interação
diferente. Filosofia, Psicologia, Antropologia são algumas ciências que produzem metodologias eficazes
para o exame dessas ideias. Por fim, o historiador estadunidense destaca que o ponto teórico essencial se
encontra na combinação dos níveis para uma análise cada vez mais integral (WORSTER, 1991).
O desafio da História Ambiental está em, como a ciência social, inclui a historicidade dos processos
naturais na experiência das sociedades humanas no tempo.
Desastres Socioambientais
Os desastres de maneira geral têm sido estudados pela história na escala dos eventos únicos e
explicitamente naturais. O desafio da História ambiental ao direcionar seu trabalho para esta temática está
em perceber os desastres como processos socioambientais, ou seja, buscar compreender como, ao longo do
tempo, determinados grupos sociais através de sua interação com o ambiente produzem e/ou intensificam
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cenários de vulnerabilidade.
O historiador Christof Mauch destaca que o estudo dos desastres tem assumindo um papel
proeminente em diversas disciplinas. Sociólogos, antropólogos e psicólogos tem se focado nos efeitos
imediatos dos desastres em indivíduos e sociedades. Antropólogos e historiadores exploram as conexões
entre catástrofe e identidade, enquanto geólogos e climatologistas se concentram principalmente nas causas
naturais (MAUCH, 2012, p. 4).
Segundo o antropólogo estadunidense Anthony Oliver-Smith, os desastres tem sido fortemente
estudados pelas ciências sociais nas últimas sete décadas, durante este período múltiplos conceitos e focos
emergiram de variadas origens, cada um contribuindo de formas diferentes para o desenvolvimento dos
estudos, entretanto existe pouco consenso na definição de desastre. Em alguns casos, a falta de consenso tem
causado sérias preocupações levando em consideração a integridade do campo de pesquisa. Nessa
perspectiva, o autor enseja uma conceitualização do desastre e discute o desenvolvimento de uma política
ecológica do desastre (OLIVER-SMIYH, 1999).
Alguns elementos são centrais para categorização e compreensão dos desastres. No tocante à
variabilidade externa referem-se a uma larga gama de “objetos”, fenômenos tidos como naturais e
tecnológicos que geram ou desencadeiam tipos diferentes de impactos físicos. Enquadram-se nesse grupo,
desde desastres com impactos imediatos, como tornados, a desastres de contato prolongado como exposição
a toxinas.
Um dos pontos centrais para conceituação do desastre está em perceber sua variabilidade e
complexidade. Oliver-Smith enfatiza que a variabilidade refere-se à imensa gama de fenômenos de caráter
natural e tecnológico que geram “gatilhos” de desastres e produzem diferentes tipos de impactos físicos
(OLIVER-SMIYH, 1999, p. 20). Por si só a variabilidade das ocorrências de desastres já desafia o potencial
analítico dos pesquisadores que procuram estabelecer características comuns para o vasto conjunto de
eventos. A complexidade também está no centro da análise, em função dos desastres serem um ponto de
intersecção de diversos processos e eventos de natureza social, ambiental, cultural, política, econômica,
física e tecnológica. Nesta perspectiva, “os desastres são eventos totalizantes” (OLIVER-SMIYH, 1999, p.
20), pois neles se desenrolam todas as dimensões da formação da estrutura social. Não se pode esquecer que,
a complexidade também está envolvida numa multiplicidade de perspectivas que variam de acordo com os
indivíduos e grupos impactados ou participantes dos eventos ou processos.
Apesar da falta de consenso das diversas disciplinas que debruçam seus olhares sobre os desastres,
algumas balizas são salutares para o estabelecimento de parâmetros que facilitem o diálogo entres os
diversos campos da ciência. Desastres normalmente são rotulados como eventos não rotineiros,
desestabilizantes, causadores de incerteza, desordem e colapso sociocultural. Nessa lógica, são percebidos
como acontecimentos que produzem a disrupção da rotina vivida e dos sistemas de compreensão (OLIVER-
SMIYH, 1999, p. 23). Contudo, deve-se partir do pressuposto que alguns grupos estão cientes em habitar
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áreas denominadas “de risco”, isso não quer dizer que houve uma escolha pela área. Muito pelo contrário,
não raro, o estabelecimento em áreas de risco é fruto da segregação espacial, ou seja, a tácita aceitação da
“normalidade” pode produzir a ideia de disrupção, mas quando visualizada numa escala temporal distante do
acontecimento, põe por terra a ideia de segurança e ordem.
Apesar da unicidade e complexidade de cada acontecimento, os desastres devem ser analisados para
além da esfera de eventos únicos, para se perceber como a noção de normalidade é produzida dentro de um
ambiente continuamente afetado por desastres. A disrupção tem um papel fundamental para compreensão da
noção de normalidade, entretanto não deve ser o ponto focal para o entendimento do fenômeno desastre, em
razão dele não estar apenas inscrito numa curta duração. Outro ponto importante também reside em não
esperar que o evento demonstre uma sociedade que se transforma durante os momentos de calmaria/caos, o
desastre deve ser visto como mais um dos eventos produzidos pela sociedade na sua relação com o ambiente,
mesmo que em diversos momentos a maioria esmagadora dos indivíduos sequer lembre-se do desastre como
possível de ocorrer.
Formação sócio-espacial
Nesta perspectiva, pode-se observar que todo conhecimento ambiental é culturalmente constituído e
historicamente contingente. Reconhecer o conhecimento histórico como contingente ajuda a proteger o
historiador ambiental, ou qualquer historiador, contra os perigos das definições absolutas, das
descontextualizadas “leis” e “verdades”, as quais podem facilmente obscurecer a diversidade e sutileza da
cultura e do ambiente. No fim das contas, essa é mais uma lição sobre humildade, tolerância e autocrítica
para aqueles que produzem o conhecimento histórico.
As proposições do geógrafo brasileiro Milton Santos, concernentes a formação sócio-espacial e ao
dinamismo dos processos que incidem sobre o espaço são seminais para os estudos de História Ambiental. O
legado materialista, marcante no trabalho de Santos, contribui de forma interdisciplinar para uma percepção
dinâmica das transformações no espaço.
Em Espaço e Método (SANTOS, 1992) e A Natureza do Espaço (SANTOS, 2012) o autor externa
sua preocupação com o desenvolvimento metodológico da Geografia e explica que é uma dúvida frequente
dentro da disciplina a conceitualização do espaço, tal anseio deve levar em consideração fatores sociais e
naturais. Como ponto de partida propõe que o espaço seja definido como “um conjunto indissociável de
sistemas de objetos e sistemas de ações” (SANTOS, 2012, p. 21), ainda sugere que o espaço assim definido
seja considerado como um fator de evolução social, ou seja, uma instância da sociedade, assim como cultura,
economia.
A empreitada miltoniana, segundo Dias, caminha na “direção do difícil exercício do pensamento
crítico e reflexivo, no qual não há praticamente distinção entre termos teóricos e termos empíricos” (DIAS,
2007, p. 11). No caminho pela definição, Santos também se preocupa em tratar cronologicamente dos
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elementos constitutivos do espaço, explica que cada variável inserida no espaço muda de valor a cada
período histórico e, até mesmo, qualquer análise geográfica que seja, demanda um esforço de periodização,
“cada lugar tem um momento no processo produtivo” (SANTOS, 1992, p. 3). Entretanto a escolha das
variáveis que compõe a análise não pode ser aleatória, deve levar em conta o fenômeno estudado e sua
significação em um dado momento. Desta forma, suas ponderações mostram-se profícuas como ferramentas
interdisciplinares para o exercício da História Ambiental. O autor ainda explica que a maioria dos estudos
espaciais é deficiente em virtude de tenderem a representar situações atuais como se elas fossem resultado
das suas próprias condições no passado (SANTOS, 1992, p. 20). O que corrobora para o aumento da
responsabilidade metodológica dos historiadores ao tratar do espaço.
Nesse espaço como sistema de objetos e ações, Santos explica que “na medida em que função é ação,
a interação supõe interdependência funcional entre os elementos. Através da estreitada interação
recuperamos a totalidade social, isto é, o espaço como um todo e, igualmente, a sociedade como um todo”
(SANTOS, 1992, p. 7). A ânsia pela totalidade em Santos se explica na necessidade da divisão em partes do
espaço, para uma posterior reconstrução dessa totalidade examinada. Pois, a distinção entre os elementos de
um território é fundamental para compreensão dos encadeamentos de funções e ações destes elementos para
análise da lógica das dinâmicas que incidem sobre o espaço.
As especificidades do lugar oferecem subsídios para decifrar as ações e funções dos objetos nele
inseridos, pois “cada lugar atribui a cada elemento constituinte do espaço uma significação particular”
(SANTOS, 1992, p. 10), pela dinâmica dialética das relações com os elementos daquele lugar, “o valor de
uma variável não é a função dela própria, mas seu papel no interior de um conjunto. Quando este muda de
significação, de conteúdo, de regras ou leis também muda o valor de cada variável (SANTOS, 1992, p. 11).
No esforço de classificação dessas variáveis pelo ângulo da técnica e suas organizações, mostra-se
necessário considerar que cada lugar é marcado por uma combinação técnica, um nível de desenvolvimento
tecnológico, e um nível e estruturas de organização social usados para interagir com o espaço (SANTOS,
1992, p. 11). Nesse sentido, tanto a produção social dos desastres quanto as estratégias para mitigação desses
eventos estão relacionadas com tais condicionantes espaciais.
Santos ainda defende o valor particular de cada lugar em sua relação com as cadeias produtivas.
Cada lugar é marcado por uma combinação de técnica diferente e por um combinação diferente dos elementos do capital, que atribui a cada qual uma estrutura técnica própria. [...].
Como resultado cada lugar é uma combinação de diferentes modos de produção
particularmente ou modos de produção concretos (SANTOS, 1992, p. 13).
Qualquer análise geográfica ou histórica leva em consideração escalas. A primeira advoga em defesa
das espaciais e a segunda das cronológicas. O geógrafo brasileiro explica que até mesmo usando uma escala
global, o espaço se mostra como um sistemas de sistemas, ou seja, um sistema de estruturas, com base na
constatação de que as relações entre os elementos do espaço não são bilaterais, mas relações multivariáveis,
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onde as interações ente as partes são mediadas pelo todo. “Deste modo a noção de causa e efeito, que
permite a simplificação das relações entre os elementos é insuficiente para compreender e valorizar o
movimento do real” (SANTOS, 1992, p. 14). Explica ainda, que o simples nexo causal linear é ineficiente
para compreender a dinâmica espacial das variáveis em relação à sua função e ação no interior da totalidade.
A verdade é que, seja qual for a forma de ação, entre as variáveis ou dentro delas, não se
pode perder de vista o conjunto, o contexto. As ações entre as diversas variáveis estão subordinadas ao todo e aos seus movimentos. Se uma variável atua sobre outra, sobre um
conjunto delas ou, ainda, conhece uma evolução interna, isso se dá com pelo menos dois
resultados práticos, que são igualmente elementos constitutivos do método (SANTOS, 1992, p. 15).
Esses movimentos dialéticos de transformação do todo, arbitram novas interações sobre as partes,
que por sua vez se caracterizam como as relações dos elementos inseridos no espaço.
O movimento que estamos tentando explicitar nos leva a admitir que o espaço total, que
escapa a nossa apreensão empírica e vem ao nosso espírito sobretudo como conceito, é que constitui o real, enquanto as frações do espaço, que nos parecem tanto mais concretas quanto
menores é quem constituem o abstrato, na medida em que seu valor sistêmico não está na
coisa tal como a vimos, mas no seu valor relativo, dentro de um sistema mais amplo (SANTOS, 1992, p. 19).
O que se mantém latente na preocupação de Santos não é a sucessão dos elementos isolados, mas,
sim, dos sistemas. A formação de um espaço, ou seja, a acumulação de ações localizadas em diferentes
momentos se dá como um processo químico, onde “o que é formado extrai sua especificidade exatamente de
certo tipo de combinações posteriores, a sua continuidade é consequência de sua dependência de cada
combinação em relação às precedentes” (SANTOS, 1992, p. 23).
Apesar da fertilidade da adoção do conceito de espaço de Milton Santos para uma análise
interdisciplinar do processo de transformações que incidem sobre um determinado meio, há uma série de
implicações que devem ser esclarecidas. Não se trata de “disciplinarizar” conceitos importados de outras
disciplinas, mas para desígnios interdisciplinares se deve evitar um certo “contrabando”, fazendo as devidas
ressalvas tributárias, pois da mesma forma que a Geografia possui um movimento e momento
epistemológico, a História também.
Apesar da constante preocupação com as escalas temporais e espaciais, sua percepção está inscrita
em uma teleologia, onde cada lugar apesar de sua especificidade está inscrito em um quadro de “evolução
social”. Moreira, ao balizar a relação dos indivíduos com o espaço na obra miltoniana, destaca que a
interação entre homem e meio também pode ser traduzida na relação história/natureza, onde a história dos
seres humanos seria resultado da transformação acumulativa da natureza para promover a subsistência
humana (MOREIRA, 1982). As considerações de Moreira enfatizam um panorama estrutural, no qual a
primazia do econômico dita as regras da existência humana.
Cruz evidencia a hereditariedade materialista nos trabalhos de Santos e considera que o
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estruturalismo Althuseriano foi fundamental para construção do conceito de formação espacial, sua
contribuição consiste em uma visão mais sistematizada do conceito de modo de produção e sua relação com
o conceito de formação econômica e social.
A leitura de Louis Althusser da obra de Marx constitui uma explicação estruturalista do materialismo histórico e da dialética marxista. Para Althusser, o conceito de modo de
produção é a base para a compreensão da estruturação. Este processo pode ser utilizado para
explicar o movimento real do mundo social. A ideologia (super-estrutura) atua na
manifestação das aparências da sociedade e as reproduz como categorias em um discurso não examinado (CRUZ, 2003, p. 70).
Ainda que os trabalhos de Santos, apoiados no materialismo histórico da década de 1970, acusarem a
existência de uma forte noção de cadeias estruturais derivadas das proposições de Louis Althusser, a teoria
espacial de Milton Santos já apresenta uma percepção de ruptura e descontinuidades que lesa a proposta
metodológica de Althusser. Entretanto, o geógrafo brasileiro não abre mão da noção de totalidade, pois “tais
descontinuidades não implicam a ausência de inter-relação entre as diferentes formas espaciais” (SANTOS
apud CRUZ, 2003, p. 68). Como foi destacado anteriormente, é nesta ânsia por totalidade que está
legitimada a partilha as múltiplas divisões do espaço, para consequente reconstrução do todo.
A particularidade do lugar, ou seja, as especificidades das relações espaciais em cada território para
Santos ditam as premissas metodológicas. Neste caso, a relação com o objeto em Santos é bem semelhante à
relação do historiador inglês Edward P. Thompson. Embora estejam em disciplinas diferentes, destacam que
o primado metodológico no materialismo se dá na relação do objeto com o pesquisador, e não o contrário.
O presente trabalho se apropria das ponderações teórico-metodológicas do historiador inglês para
refutar a ideia de um materialismo estrutural e estruturado, no qual as relações entre os indivíduos e,
especialmente, as interações dos indivíduos e ambiente sejam amparadas num propósito imanente.
Em Miséria da Teoria, E. P. Thompson rechaça materialismo histórico de Althusser enfatizando o
seu caráter idealista, e por isso contrário a proposta desenvolvida por Marx e Engels. Thompson explica que
Althusser e os seus seguidores questionam o próprio materialismo, “não pretendem modificá-lo, mas
deslocá-lo, em troca oferecem um teorismo a-histórico que ao primeiro exame, revela-se um idealismo
(THOMPSON, 1981, p. 11). Estruturalismo marxista de Althusser, de forma geral, é uma teoria que não se
estrutura a partir do objeto, conforme elucida Thompson, o materialismo de Althusser se instala como uma
lógica auto-definidora, da mesma forma que a matemática, utiliza apenas a lógica e as ferramentas
concebidas dentro da própria disciplina (THOMPSON, 1981, p. 35).
O marxismo estruturalista do filósofo francês não leva em conta a possibilidade de rupturas e
descontinuidades, produzidas segundo Thompson pela agência humana. Thompson ainda explica que
Althusser se apropria da categoria “luta de classes” e concede a ela um valor atemporal, pois no planetário
de Althusser, a metáfora utilizada para explicar a movimentação da sociedade - a luta de classes - seria a
força que produz a movimentação deste universo. O historiador inglês explica que as categorias utilizadas e
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desenvolvidas pelo materialismo histórico devem considerar o contexto histórico em que são produzidas e
utilizadas, pois a história é a disciplina do contexto (THOMPSON, 1981, p. 49).
Conclusões
O espraiamento do capitalismo industrial e de mercado depois da década de 1970, disseminou pelo
globo um padrão de consumo que coloca em xeque em longo prazo a sustentabilidade humana no planeta. A
crise ambiental analisada por Enrique Leff trouxe novamente a natureza para o centro do debate político. A
necessidade de compreender como a crise se estruturou e quais as possíveis alternativas, impuseram aos
diversos campos do conhecimento a necessidade de “recalibrar” seus instrumentos de análise.
Entretanto, nenhum campo do conhecimento se mostrou capaz de encarar sozinho a tarefa de lidar
com essa crise de proporção planetária. A interdisciplinaridade emergiu como uma estratégia eficaz para o
diálogo em prol da disseminação do conhecimento sobre o meio ambiente.
Já os desastres são percebidos como socioambientais pelas suas diversas características e
consequências, contudo não são aqui compreendidos apenas como consequência da interação humana com o
ambiente, pois existem eventos que tem sua gênese exclusivamente natural. Neste caminho, a História
Ambiental tem muito a oferecer, pois tem como premissa fundamental a busca pela compreensão da
interação humana com o ambiente através do tempo.
A definição de espaço na obra de Milton Santos faz alusão a um dos pontos mais importantes para a
análise interdisciplinar nos estudos de desastres, a objetividade da matéria como ponto inicial da pesquisa,
ou seja, é a partir da realidade socioambiental do ambiente que as estratégias de compreensão são definidas,
nunca o contrário.
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