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Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
Centro de Artes - CEART
Programa de Pós-Graduação em Teatro
Giselly Brasil
Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch
Florianópolis - SC
2011
Giselly Brasil
Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch
Dissertação apresentada como requisito à obtenção
do grau de mestre em Teatro, Curso de Pós-
Graduação em Teatro, Linha de Pesquisa: Teatro,
Sociedade e Criação Cênica.
Orientador: Prof.Dr. Edélcio Mostaço
Florianópolis –SC
2011
GISELLY BRASIL
Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch
Dissertação apresentada para a obtenção do título de mestre, na linha de pesquisa: Teatro,
Sociedade e Criação Cênica, em sua forma final, pelo Programa de Pós Graduação em Teatro,
da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 03 de setembro de 2011.
Profa Vera Regina Martins Collaço, Dra
Coordenadora do PPGT
Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:
Orientador:
-------------------------------------------------------
Prof. Dr. Edélcio Mostaço
Universidade do Estado de Santa Catarina
Membro:
-------------------------------------------------------
Profa. Dra. Sandra Meyer
Universidade do Estado de Santa Catarina
Membro:
--------------------------------------------------------
Profa. Dra. Elisabeth Lopes
Universidade de São Paulo
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a todos que, de forma direta ou indireta, ajudaram no desenvolvimento
desta pesquisa. Pessoas, coisas e situações que alteraram caminhos, despertaram novos
trajetos e proporcionaram encontros valiosos. Agradeço também aos desencontros que
estimularam o meu pensamento e me permitiram seguir desbravando possibilidades de acesso
a um espaço que só se constrói em movimento. Espaço por onde transitei durante o tempo de
confecção desta dissertação. Idas, vinda, observações, anotações, desenhos, inúmeros
rabiscos, esquemas, papéis, muitas canetas, reflexões, frases soltas em algum papel que já não
encontro, fotografias de lugares, pausas, palavras, muitas palavras, silêncio, viagens, trânsitos,
amigos e a vida toda acontecendo ao mesmo tempo. Percursos de uma aprendizagem na qual
fui guiada por um mestre. Alguém que observou com cautela e me permitiu experimentar o
pensamento em seus inúmeros movimentos e variantes. Agradeço ao professor Edélcio
Mostaço, meu orientador, pelas conversas, pelas referências e pelo cuidado em permitir que a
pesquisa fosse mais do que um registro de informações, mas um ato de aprendizagem. Pela
qualificação cuidadosa e generosa agradeço às mulheres fortes que me inspiram. À professora
Sandra Meyer agradeço o carinho, a presença do corpo, as referências, os tantos encontros na
graduação e a continuidade deste vínculo após a conclusão do curso. À professora Elisabeth
Lopes agradeço as palavras, a escuta, a atenção e a oportunidade de perceber que é possível
sensibilizar. À professora Rosângela Cherem agradeço a aula maravilhosa sobra a História da
Arte e o cuidado em apontar com lindas e justas metáforas os meus acertos e equívocos.
Agradeço à CAPES pela possibilidade de dedicação exclusiva ao meu projeto de pesquisa e
ao PPGT pelo incentivo ao desenvolvimento de uma investigação que pode contar com
auxílio de viagens para a coleta de materiais em diferentes centros de referência. Obrigada às
secretárias maravilhosas Mila e Sandrinha pelo carinho e eficiência.
A lista de agradecimentos seria imensa, por isso gostaria de agradecer a todos e finalizar
agradecendo aos meus pais pela enorme dedicação à minha educação. Agradeço à minha mãe
pela força, pela luz, pela alegria, pelo amor que não pode ser medido e pela presença
constante em minha vida. Agradeço ao meu pai por ter me deixado o registro de que a vida é
amor, trabalho, muito esforço e dedicação. Agradeço aos meus irmãos pelos laços de amor e
afeto. Agradeço às histórias impossíveis inventadas pelo meu irmão, quando era pequena, e
que hoje influenciam na minha escolha em transitar por lugares onde as coisas todas são
possíveis. Ao Bernhard, agradeço os anos em transformação e as lições austríacas de muita
disciplina, determinação e foco.
E da família que escolhemos agradeço à Stefano Cunha, Rosa Ribeiro e Mariana Palmeira,
pessoas lindas que transformaram e continuam transformando a minha vida. Rosinha,
obrigada por ter me inspirado o exercício intelectual. Aqui estou eu.
Ao meu pai, presente no incomensurável.
“Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do
instante já que de tão fugidio não é mais porque agora
tornou-se um novo instante-já que também não é mais.
Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero
apossar-me do é da coisa.”
Clarice Lispector
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo investigar processos de produção da arte contemporânea
que se fundamentam em princípios de interação e experiência estética. Para tanto, serão
analisados os procedimentos sugeridos pelas artistas Lygia Clark e Pina Bausch. A obra como
dispositivo que provoca a ação e a percepção do espectador é o eixo central desta pesquisa. O
fenômeno da arte, neste contexto, se dá na articulação entre sujeito, objeto e espaço. Todos
acontecendo ao mesmo tempo. Público e obra pretendem formar uma única paisagem. Eles
não estão separados, mas se constituem reciprocamente. O lugar do espectador torna-se
também o lugar da obra. Este trabalho se constrói sobre referências bibliográficas que
abordam a experiência como evento que incentiva a participação do espectador a partir de
aproximações, questionamentos e revelações. Movimentos estes que coincidem com o
deslocamento do olhar e com a transformação de sentidos instituídos. As propostas e
reflexões sugeridas pelas artistas fornecem material para a especulação da arte e do ambiente
teatral contemporâneo como campo em expansão – lugar que ultrapassa os limites das
linguagens e se legitima como campo de experiência que solicita um olhar antropofágico,
olhar que observa e absorve o mundo como pela primeira vez.
PALAVRAS – CHAVE: Espaço. Espectador. Obra. Experiência
ABSTRACT
This dissertation aims to investigate processes of production of contemporary art that are
based on principles of interaction and aesthetic experience. To this end, we will analyze the
procedures suggested by the artists Lygia Clark and Pina Bausch. The artwork as a device that
causes the spectator's perception and action is the core of this research. The phenomenon of
art in this context occurs in the relationship between subject, object and space. All of them
happening at the same time. Public and artwork as an unique landscape. They are not
separated, but constitute each other. The place of the spectator also becomes the place of the
artwork. This work is built on references that addresses the experience as an event that
encourages participation from the spectator trough approaches, questions and revelations.
These movements coincide with the displacement of the gaze and the transformation of
meanings imposed. The proposals and reflections suggested by the artists provide material for
speculation of art and contemporary theatrical environment as a growing field - a place that
pushes the boundaries of languages and is legitimated as a field of experience seeking a
cannibalistic look, look which observes and absorbs the world as the first time.
WORDS - KEY: Space. Spectator. Artwork. Experience
Imagens
Why not sneeze Rrose Sélavy? ou Por que não espirrar Rrose Sélavy? (1921) (21)
First Papers of Surrealism (1942) (22)
Caminhando (1964) (54)
Luvas Sensoriais (1968) (57)
Mandala (1969) (59)
Dominique Mercy em Bandoneon (69)
Nelken (1982) (72)
Kontakthof (1978) (76)
Sumário
Introdução (11)
Ato 1 – ao abrir
Movimento 1. A noite de Marcel Duchamp e o encontro com os Dadaístas (18)
Movimento 2. Duchamp: entre moderno e contemporâneo (21)
Movimento 3. O passeio do espectador pela quarta dimensão (25)
Movimento 4. Experiência, estética, relação (27)
Movimento 5. A arte como campo em experiência ou “um mundo sem vis-à-vis” (33)
Movimento 6. Interferências: Oriente e Ocidente (35)
Movimento 7. O espectador: que sujeito é esse? Ou que espectador é esse que afeta e é
afetado? (37)
Ato 2 – ao atravessar
Movimento 1. Percurso de Lygia Clark (43)
Movimento 2. O neoconcretismo e Lygia Clark (46)
Movimento 3. Travessias de Lygia Clark (49)
Travessia A) A crise da representação ou quando a pintura transborda (49)
Travessia B) Um corpo, um espaço ou o corpo como lugar de experiência (52)
Movimento 4. Percurso de Pina Bausch (60)
Movimento 5. Tanztheater e Pina Bausch (63)
Movimento 6. Travessias de Pina Bausch (68)
Travessia A) Quebra de representação e zonas de intensidade (69)
Travessia B) Memórias, registros, perguntas, respostas e desdobramentos ou o sensível do
método Bausch (74)
Movimento 7. Breves considerações sobre o corpo neste contexto (78)
Ato 3 - ao espacializar
Movimento 1. Quando o espaço se molda (79)
Movimento 2. Espaço e corpo, instâncias entre a obra e o espectador (81)
Movimento 3. A obra como lugar de habitação (84)
Movimento 4. Uma obra, do objeto ao quase-corpus (86)
Movimento 5. Aproximação de pontos visuais e cênicos ou a liberação da arte (87)
Ato 4 – Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch
Movimento 1. Considerações sobre a interação em Pina Bausch (91)
Movimento 2. Espaços móveis contemporâneos ou as relações entre obra e espectador (94)
Movimento 3. A situação do espectador neste novo lugar: notas de Susan Sontag (102)
Movimento 4. O sensível (102)
Considerações finais ou linhas finais que se iniciam (106)
Referências bibliográficas (108)
11
Introdução
Inicio. Seleciono movimentos que me parecem fundamentais para o mapeamento do
campo de investigação aqui proposto. Inquietações minhas que justificam esta pesquisa.
Escrevo aqui uma espécie de síntese. Um possível recorte de um assunto amplo e que
certamente não terminará nas últimas páginas desta dissertação. Os motivos que me trazem às
discussões aqui expostas coincidem com o meu percurso como artista, pesquisadora e
espectadora do mundo. As coisas que eu vejo, que me transformam e alteram meus padrões de
relação com o entorno e comigo mesma são alguns dos estímulos principais que me
conduzem a esse trabalho. As coisas que não estão separadas de mim e que por isso me
afetam, me deslocam, me movem e acionam movimentos antes desconhecidos. Uma coisa
toca na outra. E nas palavras de Clarice Lispector: ―O mundo: um emaranhado de fios
telegráficos em eriçamento. E a luminosidade no entanto obscura: esta sou eu diante do
mundo.‖ (LISPECTOR, 1998, p.28).
Muitos artistas se propõem trabalhar nessa zona de contato, nesse limite que provoca o
toque entre as coisas. Obras que contém rachaduras, fissuras, frestas. Aberturas que
favorecem a superação da noção de obra como coisa separada e pertencente a um suporte
específico. Obra que vibra e aciona um espaço amplo. Obra que transborda, que extravasa os
limites convencionais e que admite o espaço do espectador como o seu próprio campo de
ação.
E é a partir deste princípio de ação e interação, que pode se dar de diferentes maneiras,
que escolho refletir sobre procedimentos artísticos que de algum modo alteram padrões
operativos tradicionais. Padrões que delimitam a obra numa área distinta daquela ocupada
pelo espectador. Interessam-me então as experiências que, de maneiras diversas, criam
espaços de interação, passagens e travessias que tendem a dissolver fronteiras e aproximar
obra e espectador.
A aproximação, o toque. Instiga-me a aventura de tentar escrever sobre esse lugar de
contato onde as coisas se tocam. Lugar-movimento-trânsito que justifica o assunto aqui
escolhido.
E de encontro em encontro e de deslocamento em deslocamento, eis que surge Marcel
Duchamp. Um encontro inusitado que me trouxe importantes estímulos para a seleção dos
movimentos que se transformariam na estrutura fundamental desta dissertação. A seguir farei
uma breve descrição de um suposto início desta pesquisa.
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Por algum motivo essa dissertação começa numa exposição do artista francês Marcel
Duchamp no Museu da Arte Contemporânea de São Paulo no ano de 2008. O nome da
exposição: ―Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra de arte‖. Este foi um dos pontos
de partida para o meu pensamento sobre a arte que acontece num lugar que escapa às
molduras, às configurações e aos padrões vigentes para se fazer num espaço onde espectador
e produção artística se conjugam em um ambiente de interações.
A obra é aquilo que acontece no intervalo, em um espaço entre o que se convencionou
chamar de obra e o que se convencionou chamar de espectador. Cabe ao artista o estímulo e a
construção de potencialidades que provocarão percepções, sensações, movimentos e a criação
de um espaço contínuo que não diferencia obra e espectador. O público não está mais à parte,
mas integrado ao evento. Aliás, é possível que neste lugar já não exista mais o espectador
como o conhecemos e o concebemos. Entre questionamentos sobre o espaço do público é
possível trazer as palavras do artista Hélio Oiticica no seguinte texto:
A questão do público: público, que, aliás, não tô mais usando essa palavra, eu tava
lendo um negócio do Nietzsche, que ele diz que o público não existe, eu acho isso
muito importante, detesto a palavra público! É uma grande generalização, é uma
individualização assim duma coisa de massa, que na realidade significa o quê? A
preferência mediana. Bom, ele falava isso em relação à coisa do Eurípedes, que
Eurípedes tinha criado o espectador , dois espectadores, um era ele mesmo, o outro
seria o espectador que ele supunha que seria igual a ele. Que na realidade é o que
passou a ser o público. (OITICICA, 2009, p.123)
A partir daí, meu interesse investigativo encontra um foco que me permite observar,
através dos exemplos das ações de vanguarda e de artistas do contexto das artes visuais,
problemáticas pertinentes às artes cênicas e mais precisamente ao teatro no que se refere à
crise da representação e à expansão do campo de ação da experiência artística. Assim como o
quadro escapa da moldura, a cena escapa do palco. O evento se dilata e toca o espaço antes
reservado à contemplação do espectador.
Inquietações minhas procuram respostas referentes ao exercício cênico. Muitas pistas
aqui e ali, e a experiência que mais me instigou, na abertura para conexões que expandiam o
meu olhar sobre a prática teatral, aconteceu nos estudos de propostas e procedimentos de
artistas inseridos num contexto das artes visuais e conectados com problemáticas filosóficas.
Encontrei, em letras brancas numa parede cinza do Museu de Arte Moderna de São
Paulo, durante uma exposição de Marcel Duchamp, uma frase que viria a me acompanhar:
―uma obra que não é uma obra de arte‖.
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Um novo campo de perguntas e respostas surgiu. Lá estava eu, imóvel e observando a
rede de conexões invisíveis que interliga todas as coisas. Nesta mostra retrospectiva dos
trabalhos de Duchamp, muitas de suas proposições ativaram uma memória minha de
ambientes já conhecidos. Eu conhecia sem poder localizar o objeto do meu conhecimento. Os
procedimentos do artista acessavam, de algum modo, questionamentos meus sobre a ação
teatral. Eu não estava no teatro, mas o teatro estava presente. Percebia um encaixe
inexplicável entre as propostas de Duchamp e um tipo de teatro que me mobiliza à ação como
artista, espectadora e pesquisadora. Despertava-me a percepção de tal modo que eu, como
público, não estava na posição de observadora ou deslocada do espaço expositivo. Ver não era
sinônimo de passividade, de recepção, na noção primeira do termo. Ver era estar presente
num espaço que se produzia entre mim e os elementos todos que estavam compondo o
ambiente. Encontrar um objeto do cotidiano, como um ready-made, em um museu, me fez
perceber o entorno, os objetos outros deste lugar, como o cenário montado para a exposição,
os sons, o silêncio, as frases que não se explicavam, as imagens de situações imprevistas, o
aleatório e o acaso. Lá estava eu. Um ambiente me absorveu. Fui devorada pelo espaço. A
experiência antropofágica do lugar. Um ambiente me movia e esse parecia ser o movimento
que eu buscava no teatro. Interessava-me compreender a ação teatral sob outros pontos de
vista. E neste trajeto, pensar sobre uma área a partir de um campo distinto pareceu-me
coerente e fundamental para revisitar conceitos e provocar deslocamentos.
Meu foco de investigação tornava-se mais nítido e direcionava meu interesse para as
crises anunciadas no final do século XIX e início do século XX. Deste período, quando as
perguntas se multiplicam e os campos todos se questionam sobre as suas fronteiras,
interessam-me os procedimentos artísticos que atuam no limite entre linguagens, entre a arte e
a vida, e que estimulam a ação do espectador.
A dissertação aqui sugerida trará como eixo principal de discussão a crise da
representação anunciada no início do século XX e ainda hoje investigada em procedimentos
de arte contemporânea. Tal crise apresenta a ação artística como possibilidade de uma
experiência ou prática que de algum modo problematiza modelos representacionais. Padrões
são questionados e a presença do espectador em seus afetos e interseções com o ambiente cria
novas paisagens no campo das artes. Tal abordagem favorece considerações sobre as
potencialidades discursivas presentes nos procedimentos das artistas Lygia Clark e Pina
Bausch, que por caminhos bastante distintos exploram espacialidades, limites, sentidos e
registros particulares do espectador.
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É importante dizer ainda que não pretendo comparar os trabalhos das artistas, mas sim
destacar procedimentos que dialoguem com o tema em questão. Práticas e propostas que
alargam o lugar da obra e incluem o espectador fazendo seu corpo vibrar em experiência.
As práticas das artistas Lygia Clark e Pina Bausch auxiliarão na investigação de
procedimentos estéticos que visam a participação e a ativação do espectador em um lugar que
pode ser comparado a uma zona liminar1. As texturas do real, a vida, o particular de cada um
e o meio entram em consonância como material de um fazer artístico que poderá provocar e
estimular experiências, memórias e a ressignificação do evento da arte.
A inserção do espectador vem sendo significativamente investigada tanto nas artes
cênicas quanto nas artes visuais. Contudo, parece ainda predominar o discurso que classifica
como interativa a proposta que solicita a manipulação da obra e contemplativa aquela que se
apresenta sem um envolvimento físico do espectador – quando este não ocupa fisicamente
uma suposta zona de ação do evento.
No contexto desta dissertação centrarei meu foco sobre duas diferentes possibilidades
de interação que surgem a partir da análise dos procedimentos e propostas de Lygia Clark e
Pina Bausch. No recorte aqui sugerido, Clark propõe o toque a partir da presença física do
corpo do espectador e Bausch incita movimentos na plateia que coincidem com a presença de
um corpo de afeto que é acionado na relação. Mesmo apresentando diferentes alternativas de
interação com o espectador, ambas exploram caminhos de acesso ao sensível, lugar por onde
se cruzam forças, afetos e memórias. Lugar que acontece na reverberação de movimentos que
escapam a moldes e padrões. Espaço de revelação de forças que habitam a forma. Lugar que
não está condicionado e que promove transformações no participante.
O teatro será aqui investigado em sua extensão ou saturação, como ambiente ou
movimento de interação presente em diferentes práticas.
Então serão destacados procedimentos da arte contemporânea que privilegiam a ação, a
relação entre espectador e obra e a criação de um espaço de tensão por onde transitam forças.
Surge uma zona de indeterminação na qual somente a ação do espectador ou o seu
engajamento ao evento poderá gerar um sentido particular da experiência. Arte e vida, real e
ficcional, visível e invisível se tocam e inauguram um ambiente que é atualizado por
interferências e contaminações. Não há isolamento. Tudo está em constante relação e os
movimentos aparecem sempre como pela primeira vez. Uma rede de conexões é ativada a
1 Conceito desenvolvido pela autora Ileana Diéguez Caballero no livro ―Escenarios Liminales: Teatralidades,
performances y política‖ (2007).
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cada ato, refazendo assim o terreno do fenômeno da arte. Destas ações e relações resulta o que
pode vir a ser a experiência estética.
A produção de arte pretende, sob esta perspectiva, dar-se como modo de ultrapassar os
limites daquilo que é previsto pelos olhos. O olhar busca novas orientações, espaços
desconhecidos e possibilidades de relações imprevistas. O olhar se alarga e acontece nos
intervalos dos demais órgãos dos sentidos. Ver-se-á com o corpo todo. A obra de arte e seus
contornos já não se limitarão à esfera das suas bordas, pedestais, molduras e da ideia de uma
quarta parede2. Pequenas ou grandes fissuras tratarão de aproximar obra e público de tal
maneira que se tornará imprescindível a presença de um e de outro.
E é no contexto deste panorama que conceitos como o de obra de arte e espectador serão
revistos. Onde começa e onde termina a obra de arte? Onde começa e termina o espaço do
público? Neste sentido, o toque do espectador auxilia na descoberta de novos conceitos para
aquilo que se convencionou chamar arte e público.
As questões lançadas aqui aparecerão como estímulos que pretendem sugerir um olhar
que ultrapassa o olho e um toque que invade a pele. O corpo, sob esta perspectiva, aparecerá
como vibração, como ato no qual o sujeito absorve e recebe o meio ambiente. Um corpo que
se constitui enquanto percorre trajetos e é afetado pelo entorno. Corpo que não está separado
dos lugares que percorre.
É importante ainda considerar que esta pesquisa não pretende se filiar a discursos que
supervalorizam procedimentos da arte contemporânea em detrimento de produções
tradicionais e fundamentadas em ideias e regras pré-estabelecidas. Pretende-se apontar
questões, como vínculos e reverberações entre obra e espectador, com o intuito de refletir
sobre a redescoberta do espaço como um ambiente de integração e interação que promove
toques entre obra e espectador - que tradicionalmente ocupavam campos distintos.
As informações e os discursos acerca desta ou daquela forma de arte serão aqui
confrontados com alternativas que questionam paradigmas dualistas e investigam
possibilidades outras para o acontecimento artístico. Não se trata de um julgamento de valores
sobre os melhores ou piores métodos e procedimentos, mas sim de uma tentativa de
identificação de diferentes possibilidades de abordagem e prática da arte.
Com base nesta perspectiva, aprofundar os estudos das artes cênicas com base na
aproximação de diferentes campos das artes é uma possibilidade de ampliar as leituras dos
processos artísticos, humanos e existenciais e de contribuir com uma bibliografia que trate da
2 Termo, que no contexto do teatro, corresponde a uma parede imaginária localizada na frente do palco. Através
dela o público é separado da encenação.
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arte como evento que reside para além de conceitos pré-estabelecidos, de limites entre
linguagens e de fronteiras entre obra e espectador.
Deste modo esta dissertação percorre o campo da estética e apresenta como eixo
principal a discussão sobre possíveis modos de ativação e incorporação do espectador ao
evento artístico.
Para abrir a reflexão aqui proposta serão levantadas considerações iniciais sobre os
vestígios da criação de um campo no qual obra e espectador se tocam. Tais apontamentos
serão pautados, inicialmente, nas propostas e conceitos presentes nos trabalhos do artista
Marcel Duchamp e em seu contexto de atuação.
Em seguida, e como núcleos de investigação, serão investigados os procedimentos das
artistas Lygia Clark e Pina Bausch. Os distintos campos de Clark e Bausch serão explorados a
partir de diferentes alternativas no que se refere à criação de um espaço que inclui o
espectador.
O terreno proposto ou o lugar da experiência será aqui abordado, inicialmente, a partir
de questões que colocam em diálogo princípios encontrados em relações que caracterizam
uma estética ocidental e uma oriental, de acordo com as reflexões sugeridas pelo músico
alemão Hans-Joachim Koeulheutter (1915-2005). Posteriormente será sugerida uma reflexão
sobre o termo estética e sobre o espectador, como sujeito da experiência. Em seguida, serão
apontados movimentos e produções da arte contemporânea que têm como fundamento a
criação da obra no mundo, na relação com o meio.
O espectador aqui abordado é aquele da experiência, solicitado em suas memórias,
rastros, percepções e sensações que reverberam no ambiente do acontecimento da arte.
Proponho como pano de fundo desta investigação a sugestão de quatro grandes atos que
coincidem com indícios de possíveis movimentos de espacialização da obra – momento no
qual esta se dilui e se faz no espaço. Os atos serão os seguintes: ato primeiro, ao abrir; ato
segundo, ao atravessar; ato terceiro, ao espacializar; e ato quarto, trajetos do espectador nas
travessias de Lygia Clark e Pina Bausch. A abertura se localiza em um cabaré dadaísta, onde
tensões, conflitos e reflexões girarão em torno de experiências e propostas lançadas pelas
vanguardas europeias e, sobretudo, por Marcel Duchamp e pelo movimento Dadaísta no que
se refere aos novos acordos propostos entre obra e espectador. As principais questões e os
embasamentos teóricos serão discutidos nos movimentos3 deste ato primeiro. No ato segundo
aparecerão reverberações desses acordos e seus efeitos nos encaminhamentos das artistas
3 Os quatro atos, correspondentes aos capítulos, serão divididos em movimentos, como tópicos de um mesmo
capítulo.
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Lygia Clark e Pina Bausch. Na sequência, no ato terceiro, serão apontados desdobramentos
desta abordagem que incluem o espectador no fenômeno artístico a partir da compreensão do
espaço e do corpo como instâncias e campos de ação. No ato quarto apresentarei movimentos
que insinuam interações e dinâmicas entre espectador e obra nos procedimentos de Clark e
Bausch.
O início do ato primeiro coincide com um acontecimento verídico – Marcel Duchamp
comparece a uma estranha apresentação teatral e assiste à encenação de Impressões da África,
espetáculo baseado em um romance de Raymond Roussel. A partir daí a problemática e as
reflexões sugeridas nesta dissertação oscilarão entre fatos, ações de artistas, considerações
teóricas e reflexões sobre o fenômeno da arte.
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ATO 1- ao abrir
Movimento 1. A noite de Marcel Duchamp e o encontro com os Dadaístas.
Uma noite no ano de 1911. Marcel Duchamp (1887-1968) e Francis Picabia (1879-
1953) foram assistir ao espetáculo Impressões da África, inspirado em romance de Raymond
Roussel (1877-1933). ―Foi extraordinário‖, diria Duchamp referindo-se àquela noite, como
aponta Rosalind Krauss (1998, p. 85). Duchamp diria ainda: ―Havia no palco um modelo e
uma cobra que se movimentava lentamente – era a absoluta loucura do inesperado. Não me
lembro muito do texto. Na verdade, nem prestamos atenção nele.‖ (KRAUSS, 1998, p.85).
Segundo Rosalind Krauss, Duchamp assistiu a uma das curiosidades da literatura
francesa que conta a ―história de uma requintada festa de gala para comemorar a investidura
de um rei africano na coroa de uma nação vizinha derrotada.‖ (KRAUSS, 1998, p.85). A festa
foi constituída por uma série de espetáculos apresentados sem nenhum vínculo narrativo entre
eles.
Todavia, a impressão de descontinuidade entre esses espetáculos desaparece tão
logo o espectador ou o leitor apreende o tema subjacente a cada ato do festejo.
Unificando todos eles, a imagem de uma série de máquinas primitivas que
trabalham para gerar um produto semelhante; cada qual envolve um intrincado
conjunto de mecanismos que terminam produzindo ―arte‖. (KRAUSS, 1998, p.85-
86)
Um dos espetáculos apresentados pode ser visualizado no seguinte trecho:
Há, por exemplo, uma máquina de pintura: uma chapa fotossensível presa a uma
roda com vários pincéis. As imagens de paisagens que incidem na chapa são
registradas e transmitidas ao mecanismo que impulsiona os pincéis, que, por sua
vez, registram a imagem em tinta sobre a tela. (KRAUSS, 1998, p.85)
A cena do espetáculo acima citado pretende criticar os processos de mecanização das
produções artísticas. Forças biológicas e físicas são transformadas em máquinas que criam
imagens que atuam como base da experiência considerada ―arte‖, conforme Krauss (1998).
Neste cenário, estruturas análogas ao funcionamento repetitivo e padronizado das máquinas
são alvos de comparações e questionamentos em relação aos modelos e padrões vigentes no
contexto da arte.
Neste processo de mecanização da arte o sujeito que fomenta a ação é, aos poucos,
excluído dos processos artísticos, como sugere Rosalind Krauss:
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Ao automatizarem a produção artística, no entanto, as máquinas chegam a um
resultado no qual a estrutura da imagem está absolutamente desvinculada da
estrutura psicológica e emocional do indivíduo que dá início à arte, que põe a
máquina em funcionamento. (KRAUSS, 1998, p.86)
A partir do espetáculo e das referências mencionadas acima, é possível dizer que
movimentos do final do século XIX e início do século XX promoveram críticas decisivas que
alteraram mecanismos de funcionamento do evento artístico. A engrenagem toda precisou ser
revisada e novas propostas incentivaram trocas, desterritorializações, mudanças de lugar,
aberturas e intercâmbios constantes que desenharam um novo lugar para o acontecimento da
arte.
Neste contexto, trarei inicialmente para o mapeamento do campo de discussão desta
pesquisa o Dadaísmo, que não constitui um movimento de vanguarda no sentido tradicional
do termo, mas antes uma atitude de questionamento e ruptura que transformará radicalmente o
modo de fazer e pensar arte. Os dadaístas negam os padrões estéticos, negam a arte do
passado, e negam ainda a arte como estrutura pautada em estilos e tendências. O intuito do
Dadá foi o de romper radicalmente com as regras que definem o lugar da arte e promover uma
revisão dos movimentos que acionam o fenômeno artístico.
O dadaísmo prevê uma revisão de conceitos que começa no próprio nome do grupo. O
movimento dadaísta traz em si e em seu nome um dos primeiros estímulos que explodirá a
concepção da palavra como vocábulo dotado de sentido. Surge uma composição de letras e
sílabas que já não se limita a uma associação imediata. Aparece então a palavra como
sugestão, som, lugar poroso e flexível logo no nome do grupo de artistas – os dadaístas4.
O elogio ao ilógico foi uma das principais motivações do Dadá. Desejavam ―(...)
destruir os enganos lógicos do homem e recuperar uma ordem natural, irracional.‖ (ADES,
1976, p.17). O espontâneo deveria agir livremente. E o acaso e a indeterminação foram
4 Considerações sobre o dadaísmo e sobre a palavra Dadá: Embora seja ainda discutida a significação da palavra
Dadá o poeta Richard Huelsenbeck (1892-1974) afirma que a descoberta do nome foi acidental. Ele e Hugo Ball
(1886-1927) descobriram a palavra num dicionário alemão-francês. O vocábulo Dadá, que significaria
cavalinho- de- pau, teria como possível sinônimo o primitivismo, o começar do zero, o novo. Um grupo de
jovens, em sua maioria pintores e poetas, refugiados na Suíça por conta da guerra adotou a palavra Dadá.
Nasceram assim os dadaístas de Zurique. As reuniões do grupo aconteciam em um night club literário, o cabaret
Voltaire, organizado por Hugo Ball em 1916. Os dadaístas desejavam uma nova ordem que pudesse restaurar o
equilíbrio entre Céu e Inferno, uma arte que pudesse salvar a humanidade da loucura furiosa visível na Primeira
Guerra Mundial. E neste movimento sofreram inúmeras reprovações. As noites no cabaret Voltaire eram
agitadas. Músicas, danças, teorias, poemas, manifestos e pinturas aconteciam diante de uma multidão. Tristan
Tzara (1896-1963), da Romênia, e integrante do movimento, diante do público, em pé e na frente da cortina
explica a nova estética: ―poema ginástico, concerto de vogais, poema ruidista, poema estático, arranjo químico
de ideias, «Biribum, biribum... poema vogal a a o, i e o, a i i ...».‖ ( ADES, Dawn, 1976, p.17)
20
trazidos como elementos ordenadores que regem uma ordem que encaminha a natureza e as
produções de arte.
Estes breves apontamentos aparecem aqui como estímulos para a reflexão sobre
algumas transformações que alteraram padrões de sentido e, consequentemente, dos vínculos
entre obra e espectador. O foco sai da compreensão de discursos visuais ou teóricos e se dirige
a uma multiplicidade de relações que acionam vínculos entre espectador e obra. Mesmo que o
objetivo dos dadaístas não estivesse na criação de novas coordenadas para o evento da arte,
mas sim na desarticulação dos padrões vigentes, o movimento antecipou importantes
deslocamentos e alterações que influenciaram inúmeras práticas e procedimentos posteriores.
O fenômeno da arte se torna livre de condicionamentos que até então impõem formatos e
estruturas; novas ações e relações são sugeridas.
Aos poucos, as vanguardas apontam novas possibilidades de compreensão e experiência.
O dadaísmo desarticula sentidos constituídos e provoca novas compreensões que se fazem na
relação entre espectador e obra.
A partir daí, meu interesse reside na mobilidade adquirida pela noção de sentido, relação
e experiência no período que coincide com os movimentos de vanguarda. Os sentidos já não
podiam ser construídos a partir de certezas e ideais conhecidos e assimilados pelo senso
comum. Havia uma nova proposta em sua organização e produção. O espectador passa então
a integrar esse processo que prevê significações e experiências particulares. O que está em
pauta não é a apreensão de um significado, mas os movimentos de interação que provocam
diferentes experiências no espectador.
Os vínculos possíveis a partir de novas organizações, de questionamentos sobre lugares
já conhecidos e de um retorno a uma materialidade ignorada em prol de ideias formatadas e
concebidas sobre as coisas são algumas das principais heranças da vanguarda. Tais iniciativas
formarão um dos principais eixos de conexão na relação direta e viva que se pretende
estabelecer entre público e obra. Não há um discurso prévio e preparado como um simulacro
que se apresentará ao espectador. As construções e as experiências se localizam nos trânsitos
de um lugar no qual se fazem presentes público e evento artístico.
Neste ponto é possível trazer novamente o protagonista que abriu esta cena – Marcel
Duchamp. Nos limites entre arte moderna e contemporânea, Duchamp anuncia paradigmas e
procedimentos que influenciarão práticas artísticas e pensamentos sobre a função e o lugar da
arte. As fronteiras entre obra e público começam a conhecer abalos.
21
Movimento 2: Duchamp, entre moderno e contemporâneo
Movimentos e intervalos no trânsito entre a arte moderna e a arte contemporânea -
períodos denominados e classificados cronológica e historicamente – parecem coincidir com o
aparecimento de um terreno no qual as relações e interações são ressaltadas em detrimento
das formas.
Nesta transição, regras, nomes, práticas e conceitos são questionados de forma radical
em algumas manifestações artísticas. E para dar conta de algumas das questões levantadas
neste período proponho considerações sobre um dos lugares mais restritos e mais livres - o
conceito de ―obra de arte‖.
A ―obra de arte‖ costuma se vincular à ideia de um objeto irreparável, completo e inteiro
em si. A obra que se constrói em um espaço delimitado e que constitui um sistema
independente daquele que a observa. A obra de arte limitada aos aspectos ―retinianos‖,
criticada e rompida por Marcel Duchamp, é a obra da apreciação, da reprodução de técnicas e
formas. A ―obra‖ que reproduz um sistema de normas e regras que serão contempladas em
suas categorias e enquadramentos. Uma ideia distinta daquela que prevê a obra como
processo que é recriado continuamente.
A crise da representação anunciada por Duchamp favorece o desdobramento de ações
que convocarão novos movimentos no contexto artístico. A desarticulação de fórmulas que
priorizam o apelo visual e a manutenção de padrões estéticos e artísticos pré-estabelecidos,
ditados pelo mercado e pelo senso comum, serão os principais alvos de discussão no trânsito
entre a arte moderna e contemporânea.
Tais configurações e suas reverberações serão aqui discutidas a partir do território da
vanguarda5, que orientará a ruptura de modelos e sentidos assimilados pelo senso comum.
Para tanto, localizo tal território, neste primeiro momento, no continente europeu.
Marcel Duchamp, artista francês, descendente do movimento dadaísta e um dos
precursores da arte conceitual, inicia sua carreira como pintor inspirado pelo Impressionismo,
Expressionismo e Cubismo. O conceito de ready-made, por ele desenvolvido, coincide com o
deslocamento de um objeto do cotidiano para o campo das artes. O ready-made mais
comentado e discutido de Duchamp é a Fonte, mictório comprado em uma casa de construção
e assinado pelo artista com o pseudônimo de R. Mutt. A Fonte provocou questionamentos e
reflexões sobre a arte e o espectador em um ambiente que legitima a arte pelas suas
5 Termo utilizado no livro O moderno e o contemporâneo: O novo e o outro novo, de Ronaldo Brito e Paulo
Venâncio (1980).
22
propriedades formais e pelos valores de mercado. Segundo o crítico e historiador Giulio Carlo
Argan (1992), os ready-mades podem ser lidos como atos de protesto contra o conceito
―sacro‖ da ―obra de arte‖. E conforme considerações apontadas no artigo ―Duchamp, o
sensível, a indiscernibilidade‖6, de Marcos Martins (2007), os ready-mades propõem ainda
uma temporalidade complexa por indicarem o registro de uma ação do artista. O objeto pela
inscrição da data, que indica o momento em que ele foi deslocado de seu espaço e inserido
num contexto artístico, anuncia um tempo, um ato, tornando-se ele mesmo a revelação de uma
ação ou percepção de Duchamp.
Há nos ready-mades vestígios de uma experiência do tempo como a permanente
presença da memória em vias de atualização, como aponta Martins (2007). O objeto,
descolado de seu espaço e livre de uma condição padrão e cotidiana, tende a se fazer agora
como um novo lugar, um espaço em vias de, um devir, uma zona de indiscernibilidade. E
assim os intervalos e deslocamentos entre sujeito e objeto, ou espectador e obra, sugerem que
as propostas do artista anunciem um espaço sensível, lugar que não separa, mas que conjuga a
visão e a matéria cinza7.
Quando Duchamp leva um mictório para o museu, ele desloca um objeto cotidiano e
provoca, com muita ironia, um confronto do espectador com uma materialidade ignorada no
dia a dia. Duchamp vai além, questiona os parâmetros que classificam um trabalho como obra
de arte e propõe uma reflexão sobre o estatuto do espectador.
A crítica ao espaço considerado ―retiniano‖ e a utilização de novos recursos em suas
produções indicam novas condutas no ambiente das artes ditas ―visuais‖ e, como cita Martins
(2007),
(...) o empenho de Duchamp em rejeitar os procedimentos da pintura como
forma de escapar ao risco de uma apreensão da obra de forma puramente visual
dada pela impregnação de convenções pictóricas de ―leitura‖ já cristalizadas.
(MARTINS, 2007, p. 2)
Como exemplo é possível citar o trabalho Why not sneeze Rrose Sélavy? ou Por que não
espirrar Rrose Sélavy?, de 1921, no qual ele apresenta uma gaiola branca que ―contém 152
cubinhos de mármore, como torrões de açúcar, um termômetro e um osso de siba.‖8 O título
do trabalho e os elementos apresentados indicam que todas as associações são permitidas,
como sugere o próprio autor.
6 Artigo publicado na VISO – Cadernos de estética aplicada. Revista eletrônica de estética. Localização:
http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_2_MarcosMartins.pdf. Acesso: 12/02/2011. 7 Relação com o conceitual, com o cerebral - alvo de seus trabalhos.
8 Catálogo da exposição Marcel Duchamp: Uma obra que não é obra de ―arte‖, 2008, p.55
23
A seguir, o trabalho mencionado acima:
Why Not Sneeze Rrose Sélavy?
ou Por que não espirrar Rrose Sélavy?( 1921)
Marcel Duchamp, que estimulará as vanguardas do século XX ao acionar o pensamento,
recupera o corpo como lugar potencial para a realização do evento artístico. O espectador é
aos poucos inserido ao acontecimento da arte. Em seus trabalhos como curador, as propostas
são mais radicais no que se refere à presença e ativação do corpo. O artista cria espaços ou
environments9 por onde o público circula e é afetado por experiências sensoriais. Em uma das
exposições que realizou, do movimento surrealista, linhas foram colocadas no espaço
expositivo, de modo que o espectador precisava se livrar dos emaranhados para conseguir se
aproximar dos quadros. A experiência tátil e os estranhamentos assim sugeridos provocaram a
inserção do corpo do espectador na relação com a ―obra‖. A ―obra‖, aliás, já não estava
apenas na parede, mas também nesse percurso que possibilitou a criação de uma nova relação
entre a ―obra‖ e o ―espectador‖.
Este exemplo se refere à exposição First Papers of Surrealism, realizada em 1942 na
Whitelaw Reid Mansion, em Nova York.
9 Termo que pode ser ―traduzido como meio ambiente ou envoltório‖, de acordo com Glusberg (2009, p. 29). E
ainda sobre as relações entre Duchamp e o environment é possível destacar sua última obra, Étant donnés. ―A
obra não podia ser fotografada, só vista. Pela abertura de uma porta grande de madeira incrustada em uma parede
de tijolos via-se outra parede similar e, através de um buraco aberto nela, um bosque e uma cascata pintados. Em
primeiro plano, deitado sobre um monte de galhos, o manequim de uma mulher nua, com o rosto coberto pelo
cabelo loiro. Seu braço direito está erguido e de sua mão pende uma lâmpada elétrica.(...) pode-se inferir (...) que
este environment é uma extensão do trabalho sugerido por Roussel em 1912, com o Impressions d´Afrique
(GLUSBERG, 2009, p. 30-31)
24
First Papers of Surrealism (1942)
Neste contexto, modelos são rompidos e novos espaços e conceitos são sugeridos.
Contudo, ao romper com um modelo não teria Duchamp criado outro? Duchamp estava
inserido em um contexto em que suas propostas surgiram como respostas a um sistema que
supervalorizava a figura do artista, as técnicas, a apreciação e a contemplação. Suas questões
propunham um novo olhar sobre a ação criadora. Contudo, quais são as bases e as questões
que provocam tais rupturas hoje? Não estariam muitos artistas reproduzindo um modelo que
tem sua origem nas inquietações pertinentes de Duchamp ou de algum outro artista? Com
sarcasmo e ironia o artista perturbou o ambiente tranqüilo dos museus e lançou perguntas que
continuam instigando propostas artísticas.
A partir deste ponto de vista é necessário rever a condição do espectador. Se a proposta
artística sugerida é a imitação de um modelo, independentemente de sua matriz conceitual, a
relação com o público não é aquela do campo da apreciação? Voltamos, ao que tudo indica,
para a mesma situação verificável na arte renascentista. O alerta, neste caso, se dá como
questionamento das formas que se reproduzem, mesmo em contextos que se apresentam
construídos sobre bases contemporâneas. Será do terreno da arte contemporânea a ação
investigativa do fazer artístico ou a apreensão e repetição de modelos sugeridos? A
reprodução de esquemas e composições que demonstram rupturas de convenções tradicionais
e visuais não garante a subversão da forma e nem sugere encaminhamentos para uma
25
experiência estética. Pelo contrário, constroem um conjunto novamente emoldurado com base
apenas em novos arranjos e associações.
Ao provocar deslizamentos, rupturas e criar zonas de instabilidade, alguns movimentos
de vanguarda provocaram a descoberta daquilo que se pensava saber e conhecer. As sugestões
tornam-se mais relevantes do que a obra como objeto e o espectador é solicitado em uma
experiência que extravasa padrões e categorias.
Aquilo que estava ali, está agora aqui. Aquilo que se vinculava a esta forma se vincula
agora àquela forma.
Deslocamentos provocam alterações em concepções e encaminhamentos. O processo, o
acontecimento ou o evento são categorias móveis, lugares de trânsito, que talvez possam
melhor retratar o movimento das tendências que surgem em um contexto de ruptura com
padrões e fórmulas fixas. Rupturas estas que promovem aberturas para a interação do
espectador.
E ainda sobre a interação do espectador é possível trazer as seguintes considerações
sobre trajetos sugeridos por Marcel Duchamp:
Movimento 3. O passeio do espectador pela quarta dimensão
Apresento breves considerações sobre o espaço que surge como interação e movimento
a partir da ideia de quarta dimensão investigada por Marcel Duchamp.
Em setembro de 1918 Duchamp viaja para Buenos Aires e lá permanece até junho de
1919. Existem diferentes explicações e especulações sobre os motivos desta viagem. Contudo,
interessam-me aqui as reflexões subjacentes que surgem com este acontecimento.
De acordo com o autor Gonzalo Aguilar10
, Julio Cortázar foi o primeiro a escrever sobre
a viagem de Duchamp a Buenos Aires. Cortázar aponta para o fato de Marcel Duchamp ter
viajado para a Argentina após ter assistido à Impressões da África, de Raimond Roussel. A
apresentação que impactou Duchamp, e descrita no início desta dissertação, narra, entre
outros episódios, uma viagem para Buenos Aires. De acordo com uma declaração do próprio
artista presente no texto de Aguilar, o caminho que ele devia adotar foi indicado pelas suas
impressões da obra de Roussel.
10
No texto ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖ publicado no CD que acompanha o Catálogo da exposição
―Uma obra que não é uma obra de arte‖.
26
O tom de ironia, presente nos comentários e produções de Marcel Duchamp, permite
que cada ato seu possa ser interpretado e abordado sob diferentes pontos de vista. Não há
como saber se a viagem de Duchamp a Buenos Aires foi mesmo influenciada por Raimond
Roussel, entretanto, o mais relevante é discorrer sobre o importante trajeto que o artista
percorreu durante sua estadia na cidade.
No ambiente tranquilo e em crescimento cultural da capital argentina, o artista investiga
a desmontagem da perspectiva renascentista, ou euclidiana. Segundo Aguilar, o tema e as
investigações de Duchamp, neste período, coincidem com interesses que dão ênfase às
―relações da percepção do espaço físico com o desejo, a volição, a intuição e o
entendimento.‖11
O artista propõe uma ―reflexão sobre o estatuto do espectador numa arte que
já não é regida pelas leis da perspectiva tridimensional e o afã da representação, senão uma
arte que procura conseguir um novo espaço, quadrimensional e mental antes que físico.‖12
A
partir destas considerações é possível prever que o interesse de Duchamp não estava na obra
como matéria, como elemento físico, mas como via de acesso e mobilização do pensamento e
da reflexão. Aliás, pensamento este que por não estar dissociado do corpo prevê um
acionamento integral do espectador.
Marcel Duchamp se dedica à investigação de um espaço que permite o trânsito e a
descoberta do avesso da obra. O que é oferecido ao espectador não se limita aos efeitos de
uma tridimensionalidade representativa, ele é agora convidado a atravessar a obra, a continuá-
la e completá-la. O movimento, o efeito pertubador que desloca o espectador de sua zona de
conforto e passividade é o ato que está sujeito às interferências do acaso e do tempo. Em
última análise, é uma quarta dimensão que não pode ser fixada em abstrações geométricas,
porém apenas experimentada como afirmação do instante. A quarta dimensão como uma
sucessão de movimentos que se apresentam entre um ato e outro, um momento que não pode
ser apreendido, uma intuição que impulsiona diferentes percursos, movimentos que surgem
sempre novos, um início que não tem início e nem fim, uma sucessão de interferências que
alteram as rotas previstas. As inquietações e produções de Marcel Duchamp como pano de
fundo de alterações e perturbações que reverberam em todos os cantos favorecem a
compreensão de uma abordagem estética que prevê a experiência.
11
AGUILAR, Gonzalo, 2008, p.7 in ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖. Original: ―investigar las
relacionesde la percepción del espacio físico con el deseo, la volición, la intuición y el entendimiento.‖ Tradução
nossa. 12
AGUILAR, Gonzalo, 2008, p.7 in ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖. Texto original: ―reflexión sobre
el estatuto del espectador en un arte que ya no se rige por las leyes de la perspectiva tridimensional y el afán de
la representación, sino que procura conseguir un nuevo espacio, cuatridimensional y mental antes que físico.‖
Tradução nossa.
27
As primeiras perturbações e desconfortos provocados nos espectadores por Duchamp
reverberam e cruzam práticas, procedimentos, artistas e propostas. Retornam destacando que
o fundamental não pode ser visto e nem mesmo medido. O motor que aciona a obra aciona a
vida. Uma toca na outra e entre loopings eis que o evento artístico se dá. A obra se abre,
transborda e atravessa lugares enquanto se constitui como quarta dimensão e experiência
estética.
Movimento 4: experiência, estética, relação
Em alguns instantes antes da apresentação do próximo movimento questiono-me sobre
possíveis modos de participação do espectador no contexto do fenômeno da arte. Será que
todo modo de interação pressupõe um contato físico? É possível mobilizar e tocar sem que
dois corpos se aproximem fisicamente? Em quais condições é criado um terreno no qual os
espaços individuais se dissolvem dando lugar a um campo compartilhado de relações?
Quando as molduras, as quartas-paredes e os pedestais se rompem favorecendo o
acontecimento da obra no mundo? Quando sujeito e objeto se afetam?
Falar de relação é falar de experiência, de estética. Neste ponto fundamento alguns dos
pensamentos subjacentes aos vínculos que se pretende criar entre espectador e obra no
contexto dos questionamentos levantados pelas vanguardas, sobretudo pelo Dadaísmo e por
Marcel Duchamp. É importante ressaltar ainda que tais referências de movimentos e rupturas
de vanguarda aparecem aqui como ambientes que dialogam com as práticas das artistas Lygia
Clark e Pina Bausch, e não como lugares que inauguram pensamentos inéditos. O que
interessa é a fissura, a abertura apontada pelas transformações das ações de vanguarda que
irão reverberar nos trabalhos e práticas das artistas em questão.
A experiência
Localizo os movimentos e ambientes de interação propostos no contexto da estética e da
experiência. Para tanto, trarei inicialmente apontamentos sobre a experiência, como questão
estética discutida a partir do pragmatismo.
28
Entre os pioneiros da escola filosófica americana conhecida como pragmatismo estão os
pensadores Charles Peirce (1839-1914), William James (1841-1910) e John Dewey (1859-
1952).
Para iniciar essa discussão é interessante partir das propostas levantadas pelo filósofo
americano John Dewey (1859-1952) quanto à experiência. O autor propõe que ela pode ser
geral ou estética, que pode acorrer tanto no cotidiano quanto em situações de produção de
arte. A experiência, deste modo, não se volta a um objeto, mas a uma atividade da própria
percepção. E segundo Dewey (1974), um dos inimigos do estético é a submissão à convenção
nos procedimentos práticos e intelectuais. A experiência estética implica uma reconstrução do
supostamente conhecido. Há movimento e mudanças constantes. E nas palavras do autor: ―a
experiência constitui-se de um material cheio de incertezas, movendo-se em direção a sua
consumação através de uma série de variados incidentes.‖ (DEWEY, 1974, p.253). E ainda:
Não é a experiência que é experienciada, e sim a natureza – pedras, plantas,
animais, doenças, saúde, temperatura, eletricidade, e assim por diante. Coisas
interagindo de determinadas maneiras são a experiência; elas são aquilo que é
experienciado. (...) Portanto, a experiência avança para dentro da natureza; tem
profundidade. É também dotada de largura infinitamente elástica. Estira-se. Esse
estirar-se constitui a inferência.‖ (DEWEY, 1980, p.163)
Para o autor, é importante abordar a experiência estética como o próprio e o único
método para atingir a natureza, penetrar seus segredos, e o lugar no qual a natureza, revelada
empiricamente, aprofunda, enriquece e dirige o desenvolvimento posterior da experiência
(DEWEY, 1980).
Neste contexto, experiência e natureza convivem harmoniosamente juntas, e segundo
Dewey:
A experiência, se a investigação científica se justifica, não é alguma camada
infinitamente fina ou um primeiro plano da natureza, mas penetra dentro dela,
atingindo suas profundezas, e de maneira tal que seu apoderar-se é capaz de
expansão; constrói túneis em todas as direções, e ao fazê-lo traz à superfície coisas
anteriormente ocultas – tal como os mineiros amontoam sobre a superfície da terra
tesouros trazidos do subsolo. (DEWEY, 1980, p.162)
Contudo, existem condições que atuam como facilitadoras de experiências estéticas.
Levando-se em conta que toda experiência ocorre na interação entre uma criatura viva e
algum aspecto do mundo no qual ela vive, a adaptação mútua do sujeito e do objeto em
determinada ação anuncia um processo em vias de tornar-se uma experiência estética. Nesta
trajetória, ação e consequência devem estar juntas, assim como acontece no ato perceptivo.
Assim:
29
(...) se imaginarmos uma pedra, a qual esteja rolando por uma colina, para ter uma
experiência. (...) A pedra parte de algum lugar, e movimenta-se, conforme o
permitam as condições, para um lugar e para um estado onde possa permanecer
imóvel – para um fim. Agreguemos, pela imaginação, a tais fatos externos, as
ideias de que a pedra olha para diante desejando um resultado final; que se
interessa pelas coisas que encontra pelo caminho, condições que aceleram e
retardam seu movimento em relação a seu término; que atua e sente com respeito a
elas de acordo com a função de impulsioná-la ou detê-la que lhes atribua; e que a
chegada final ao repouso seja relacionada com tudo o que aconteceu antes
enquanto a culminância de um movimento contínuo. Então a pedra teria uma
experiência, e dotada de qualidade estética. (DEWEY, 1974, p.250)
A experiência estética, deste modo, relaciona-se diretamente com a ação, com o ato. Ato
como evento que assume interferências, pausas e suspensões. Ação que não se limita à
repetição ou a uma atividade mecânica. Uma ação que acontece enquanto padrões se
desfazem. A percepção é assumida em seu próprio ato. Percepção que se distingue de
reconhecimento, já que reconhecer prevê uma antecipação de uma possível ação ou
experiência. Quando há o reconhecimento há também um esquema previamente organizado.
Reconhecimento é a percepção detida antes que esta tenha oportunidade de desenvolver-se
livremente, segundo Dewey (1974). A arte neste contexto assume-se como ato, ação,
movimento e experiência estética.
Neste ponto, seria possível discorrer sobre a postura reforçada por Jorge Larrosa
Bondía13
, ao afirmar:
Começarei com a palavra experiência. Poderíamos dizer, de início, que a
experiência é, em espanhol, o que nos passa‖. Em português se diria que a
experiência é ―o que nos acontece‖; em francês experiência seria ―ce que nous
arrive‖; em italiano, ―quello che nos succede‖ ou ―quello che no accade‖; em
inglês, ―that what is happening to us‖; em alemão, ―was mir passiert‖. A
experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se
passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas,
porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ía que tudo o que se
passa está organizado para que nada nos aconteça. (LARROSA, 2001, p.21)
Esta abordagem apreende na palavra experiência os vestígios de uma compreensão que a
situa em um território de passagem, uma zona de encontros, de aproximações e
agenciamentos onde a experiência se distingue da informação. Receber ou dar uma
informação não corresponde necessariamente ao ato de promover uma experiência.
Experienciar, segundo Larrosa, requer suspensões, pausas, silêncios, (...)
13
* Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada, em
julho de 2001, por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de
Educação de Campinas/FUMEC. In Revista Brasileira de Educação.
30
requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar,
demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a
vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço. (LARROSA, 2001, p.24)
Assim, algo acontece e algo se transforma. No desdobramento de um evento – que não
se limita a um campo ou área determinada - acorre a experiência investigada nesta
dissertação. Ela é um acontecimento complexo que implica no cruzamento de diferentes
conceitos, práticas e teorias que neste estudo está centrado na questão do espaço que emerge
como manifestação de interconexões entre espectador e obra. O espaço metafórico é superado
e um espaço de trânsitos e contatos é inaugurado.
A experiência, nesta esfera de inter-relações, altera o vetor de uma situação. Sua
característica fundamental é a reconfiguração de hábitos a partir de propostas que incitam
alterações, mudanças nas relações e nas configurações.
A estética, a relação
O pensamento aqui apresentado levanta questões relativas à aisthesis, como meio das
relações que se estabelecem entre o mundo e o sujeito – aqui escolhido como o espectador -
os modos como a percepção cria as intermediações entre o interno e o externo, e como a
consciência é afetada pelas informações fornecidas pelas sensações, afetos e emoções.
A estética, como domínio da ciência e do conhecimento, tem origem na segunda metade
do século XVIII e o filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) é
considerado uma espécie de fundador desta disciplina filosófica. A partir dele a estética reúne
distintos campos do conhecimento e passa a se situar num âmbito que congrega conceitos
como os de obra de arte, percepção e beleza. Tais conceitos, que pertenciam a distintos
domínios, aparecem como variantes de um mesmo fenômeno – o fenômeno estético.
A estética proposta por Baumgarten propicia e avalia a produção de conhecimento, seu
grande interesse de estudo. Sua zona de ação abrange aspectos sensíveis, como percepção e
faculdades racionais.
Antes de escrever ―Aesthetica‖, entre 1750 e 1758, o filósofo propôs a ―tese de que o
campo da lógica deveria ser ampliado por uma estética, que incluiria, como objeto, a res
sensitive cognoscendae, ou a coisa cognoscível sensitivamente.‖ (KIRCHOF, 2003, p.25).
Contudo, a configuração do pensamento sensível foi, por algum tempo, obscura e esteve
31
condicionada à superação a partir de uma lógica racional. Somente após inúmeros ajustes e
modificações em suas abordagens é que ele sugere uma visão mais abrangente sobre a
percepção e a sensibilidade, incluindo o não-racional nos processos cognitivos humanos.
Assim, suas colocações podem ser apreendidas:
Baumgarten, contrariando a tendência predominante em sua época, investe sobre a
percepção de um valor cognitivo positivo, concebendo a estética como disciplina
que propicia e avalia a produção do conhecimento desde o seu lado sensível, dado
pela percepção, até o seu lado lógico, avaliado pelas faculdades racionais. De forma
simplificada, pode-se dizer que o lado perceptivo do conhecimento corresponde,
para Baumgarten, àquelas impressões que possuímos dos objetos antes de
formularmos o seu conceito. (KIRCHOF, 2003, p.147)
A arte e o belo eram compreendidos, antes de Baumgarten, como técnica e concepção
moral, respectivamente, conforme indicação de Edgar Roberto Kirchof (2003). A integração
de diferentes aspectos para a discussão do fenômeno estético cria uma área de conhecimento
que, paralela ao pensamento cartesiano e lógico, sugere brechas para a discussão do sensível.
Ela indica uma capacidade primordial do ser humano de sentir a si próprio e ao mundo
num todo integrado, como anuncia o autor João Francisco Duarte Júnior (2001). Ela restitui o
conhecimento sensível e é contra o privilégio tradicionalmente concedido ao conhecimento
conceitual, conforme anuncia Hans Robert Jauss (1979):
Enquanto experiência estética receptiva básica, a aisthesis corresponde assim a
determinações diversas da arte: como ―pura visibilidade‖ (Konrad Fiedler), que
compreende a recepção prazerosa do objeto estético como uma visão intensificada,
sem conceito ou, através do processo de estranhamento (Chklovski), como uma
visão renovada; como contemplação desinteressada da plenitude do objeto‖ (Moritz
Geiger); como experiência da ―densidade do ser‖ (J-.P. Sartre); em suma, como
―pregnância perceptiva complexa‖ (Dieter Henrich). (JAUSS, 1979, p.101)
Entretanto, por um longo período a estética esteve vinculada às qualidades relativas ao
objeto ou à obra da arte, como aconteceu no Renascimento, quando os aspectos formais e
analíticos estipulavam valores e padrões artísticos. Neste momento, cabia ao espectador uma
função muito mais analítica e orientada pelos valores constituídos do que o exercício da
percepção e da sensibilidade. A obra de arte ocupava uma área delimitada por regras e
parâmetros tão claros quanto os limites construídos entre esta e o público.
Referências da fenomenologia podem ser aqui apontadas como pensamentos e conceitos
que se articulam com propostas de vanguarda. Procedimentos que procuram superar os
binômios dicotômicos anunciados acima e típicos dos ambientes onde obra e espectador são
32
considerados como eventos distintos. Parece-me pertinente então levantar breves
considerações sobre aspectos fenomenológicos da questão, como modo de exemplificar
pensamentos e reflexões que se propõem romper modelos pautados pelas dicotomias.
A fenomenologia, que tem sua origem no início do século XX com o filósofo alemão
Edmund Husserl (1859-1938), traz como principal alvo um retorno ao homem em suas
relações imediatas com as coisas, com o mundo, com o entorno e consigo próprio. A
alternativa fenomenológica não aparece como um método, mas como uma atitude frente aos
eventos da vida. Nas considerações de Maurice Merleau-Ponty, os alvos de interesse são: a
essência que se esconde por detrás da aparência e os atos praticados, como o da percepção,
que são em si a própria consciência sobre as coisas. Tal abordagem prevê ainda o corpo como
lugar da percepção, do sentido e da experiência. E nas palavras do autor:
A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar,
uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro e que se
confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo, nós o vimos, é estar atado a um
certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço‖
(MERLEAU-PONTY, 1999. p.205)
A percepção, deste modo, manifesta-se como evento de corporeidade, como relação
estabelecida, e não como uma representação analítica e racional. Merleau-Ponty critica a
supremacia da razão e anuncia que o conhecimento do mundo se dá através de experiências
que desenham continuamente um novo corpo. Corpo este que aparece como o próprio lugar
do conhecimento.
Um outro nome da fenomenologia é Martim Heidegger, que aparece no contexto desta
pesquisa por conta das suas considerações sobre a percepção como acontecimento e não como
faculdade do homem. ―A percepção não é um modo de comportar-se, que o homem possui,
como uma propriedade. Muito pelo contrário: a percepção é o acontecimento, que possui o
homem.‖ (HEIDEGGER, 1978, p.165).
Sob este enfoque e reconhecendo o conhecimento do mundo como superação de
categorias dicotômicas, é possível vislumbrar aproximações entre pontos da fenomenologia e
a noção de estética em seu sentido mais original. Assim, segundo João Francisco Duarte
Júnior, a experiência estética seria um vibrar em comum, sentir em uníssono, experimentar
coletivamente e colocar-se face a face com os estímulos do mundo.
A experiência estética pode então assim ser comparada com a seguinte situação:
movimentar-se através de brechas, de aberturas e lugares que oferecem novos acessos àquilo
que se supõe conhecer. Deparar-se com o conhecido e encontrar o novo em novas abordagens
33
e relações. Experimentar o mundo como pela primeira vez, quando o entorno interfere na
apreensão e incorporação do conhecimento.
A arte, nesta acepção, é um ―estado de encontro‖, conforme a noção do crítico Nicolas
Bourriaud, e um espaço de produção e troca que dá testemunho das efêmeras relações com o
outro. Assim, ele ratifica sua abordagem fenomenológica da estética relacional. Tais
encontros tendem a transformar as relações com o entorno e possibilitar experiências que
desestabilizam padrões de interação e movimentos. Padrões estes que de algum modo
anestesiam os sentidos. O tecido conectivo proposto pela estética que investe em relações que
não se fundamentam em regras e padrões vigentes é um lugar de passagem onde se negociam
trocas, deslocamentos, contaminações e agenciamentos.
Movimento 5: Arte como experiência estética ou “um mundo sem vis-à-vis”
Ainda na abordagem da arte enquanto experiência estética e relação é possível citar
procedimentos recorrentes em pensamentos e práticas orientais que dialogam com o objeto
desta pesquisa, favorecendo a visualização de campos que se fundamentam em condições nas
quais obra e espectador se aproximam.
Para levantar algumas considerações sobre essa abordagem serão considerados
apontamentos do músico e compositor Hans-Joaquim Koellreutter (1915-2005) a partir da
troca de cartas com o músico japonês Satoshi Tanaka, no livro ―Estética: à procura de um
mundo sem vis-à-vis‖. Uma das principais questões levantadas já no início das
correspondências trata de expor contextos ideológicos e estéticos do Oriente e do Ocidente.
Para tanto, Takana sugere o desenho das condições que diferem as relações ocidentais e
orientais a partir da imaginação de uma superfície, metáfora para a compreensão de um
terreno de relações e engajamentos no mundo. Tal superfície, sob o ponto de vista da estética
ocidental, tende a se relacionar com um ponto deslocado e situado logo acima da mesma.
Takana descreve a imagem do seguinte modo:
Imaginemos um ponto colocado acima dessa superfície, sem ter com ela qualquer
ligação direta. Esse ponto representa o Absoluto. Enquanto o ocidental, de alguma
maneira, tende a ligar a superfície com esse ponto, o japonês prescinde disso.
(Koellreutter, 1983, p.14)
34
Nesta imagem estão sugeridas analogias que procuram viabilizar a compreensão de
diferenças que estão na base dos procedimentos estéticos orientais e ocidentais. O oriental
localiza-se na superfície e é de lá que estabelece seus vínculos. Ele não consegue visualizar o
Absoluto, o ponto acima da superfície, e se compreende num plano bidimensional em que
tudo é relativo e depende do ponto de vista. Neste contexto não há separação. O ocidental, em
oposição, se dirige ao Absoluto e assim se separa, analisa e constrói sistemas de apreensão. A
não separação oriental inclui e aproxima. Arte e vida não estão separadas e são consideradas
―caminho‖, do vocábulo japonês ―Dô‖. Assim ―sa-dô‖ é traduzido como cerimônia do chá, e
―ka-dô‖, arranjo de flores. Tais práticas não são consideradas como arte no sentido isolado do
movimento da vida, mas sim como ―caminhos‖, um caminho para filosofar e viver. Portanto,
as relações do oriental com a arte parecem se dar de modo imediato e direto. Ao contrário da
relação do ocidental, que passa pelo contato tridimensional com o Absoluto.
Dos agenciamentos possíveis, os orientais constroem elos que se fazem no contato com
seus pares e com o entorno. E somente quando este elo se rompe ele se sente isolado. No caso
dos ocidentais, os indivíduos estão na superfície e isolados, cada um conectado ao seu
Absoluto, ou ao seu Deus. Os elos são construídos em relação ao Absoluto e não em relação
ao outro.
Neste ponto é possível destacar apontamentos no texto de Tanaka sobre aspectos
negativos que podem se fazer nessa conexão oriental e bidimensional. Uma das questões é a
dificuldade dos japoneses em se distanciar dos objetos que não são próprios da sua cultura e
criticá-los de modo objetivo. O déficit de crítica anuncia também uma falta de auto-
conhecimento. O japonês não se defronta verdadeiramente com outras culturas porque
facilmente se entrega a elas, se mistura, se relaciona sem o auxílio de um ponto de fuga que o
auxiliaria na visualização do contexto. A não visualização do outro parece demonstrar então a
não visualização de si.
Levando-se em conta os prós e contras de qualquer sistema relacional e operacional
vigente, como os acima mencionados, esta investigação se situa num intervalo em que
premissas e movimentos orientais e ocidentais se encontram, daí nascendo uma variedade de
pensamentos e ações. O estatuto da arte sob esse viés e suas áreas com limitações claras e
visíveis se entrelaçam e anunciam um campo estendido. Campo este que supera o pensamento
ocidental e dualista no qual objeto e sujeito tendem a ser entendidos como realidades de
distintas naturezas.
35
Tais considerações lançam as bases para uma reflexão estética que não pretende
formatar ou delimitar zonas, como Ocidente e Oriente, mas sim fomentar uma discussão que
admite distintas possibilidades de agenciamentos do sujeito com a vida e com a arte, e
diferentes vínculos entre obra e espectador.
Ao se fazer nos eventos diários, a arte não se isola em um espaço destinado a sua
execução e ainda promove constantes encontros com o sujeito, seja ele artista ou espectador.
O espaço entre obra e espectador aparece como um lugar de conexões e vínculos. Neste
contexto, a obra é sugestão de relação e contato.
Contatos entre Ocidente e Oriente provocam alterações em noções e conceitos.
Vestígios de uma zona conhecida pela orientação geográfica como oriental irão influenciar e
reverberar em diferentes direções.
Movimento 6. Interferências: Oriente e Ocidente
Ainda sobre as interferências e trocas entre Ocidente e Oriente, é possível dizer que em
diversos momentos da História da zona ocidental do mapa-mundi, e mais precisamente das
regiões que se somam e compõem aquilo que conhecemos como Continente Europeu,
ocorreram contaminações que alteraram profundamente padrões e referenciais. Tais alterações
não foram e não são privilégio deste continente. Contudo, o interesse aqui é mapear e
localizar interferências que parecem ter provocado a agitação de uma grande placa tectônica
no campo das artes no Ocidente. Bases se alteram, o chão conhecido se rompe e um novo
paradigma encontra solo para o seu desenvolvimento. Configura-se aqui um momento da
História no qual processos de transformação alteram eixos e referenciais daquilo que se
conhece como Arte.
No que se refere à arte contemporânea ocidental ou aos movimentos de vanguarda, é
possível relacionar o campo em expansão que surge vinculando obra e espectador às
influências de princípios como os de unidade, silêncio, vazio e fluxos espontâneos, originários
de práticas como o Zen Budismo e o Taoísmo, principalmente. Tais princípios trouxeram ao
contexto ocidental fundamentações que pretendiam romper com regras e esquemas binários e
dualistas.
As coordenadas referentes às tendências ocidentais costumam se basear em princípios
como a racionalização, o acúmulo, a informação, a categorização e a formatação de esquemas
36
dualistas, como dentro e fora, eu e mundo, claro e escuro, matéria e espírito, céu e terra e
corpo e alma. Neste contexto, a tendência é compreender o mundo como espaço distinto e
localizado fora do sujeito. Fronteiras e limites separam sujeito e objeto, aquele que observa e
aquele que é observado. E assim nasce uma dicotomia decisiva no pensamento ocidental – o
dualismo. A natureza é percebida como algo exterior e o distanciamento da consciência do
sujeito permite a ordem do pensamento. O sujeito age sobre a natureza e a controla. Nesse
molde, o método é dualista e impõe uma clara separação entre o dentro e o fora, entre corpo e
espírito, entre alma e matéria.
Muitas correntes orientais se fundamentam, ao contrário, em princípios do Taoísmo –
tendência do pensamento chinês que dá ênfase à sabedoria intuitiva, à espontaneidade e à
harmonia com a natureza. O Taoísmo caracteriza-se pela ideia de complementaridade entre as
coisas, unidade e caminho, como ordem ou movimento natural. Tais princípios, de algum
modo, se aproximam da dialética, filosofia que procura compreender o permanente
movimento das coisas em suas relações históricas, ambientais e materiais. O estudo dos
fenômenos naturais e do pensamento, neste contexto, são processos em constante
transformação. A realidade, sob este ponto de vista, é matéria em movimento. A dialética
parece ter suas raízes na Grécia Antiga, quando a natureza era vista como um todo, já que os
gregos, neste período, não possuíam recursos que permitissem a análise dos fenômenos em
partes separadas. A dialética admite relativizações, contradições e mudanças. Nas palavras do
filósofo grego Heráclito: ―nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.‖
(HERÁCLITO, 1973, p.90).
E neste ponto, e na ruptura de padrões dualistas, é possível apontar ainda procedimentos
da psicanálise, a física relativista e o materialismo dialético, que procuram compreender o
mundo a partir das condições apresentadas, da integração, da relação e do movimento. Daí é
possível mencionar o pensamento complexo proposto pelo filósofo francês Edgar Morin. A
percepção da impossibilidade de se compreender o universo apenas como ordem, trouxe ao
pensamento ocidental uma complexidade anticartesiana, que não exige a distinção e a clareza
como princípios de verdade. O pensamento complexo não isola os objetos uns dos outros, mas
antes sugere processos de interação que, pautados no ―princípio dialógico, permitem manter a
dualidade no seio da unidade. Associa dois termos ao mesmo tempo complementares e
antagônicos.‖ (MORIN, 2005, p.107). Como aponta Edgar Morin:
A própria ideia de complexidade comporta em si a impossibilidade de unificar, a
impossibilidade da conclusão, uma parcela de incerteza, uma parcela de
37
indecidibilidade e o reconhecimento do confronto final com o indizível. (MORIN,
2005, p.96)
Contudo, o intuito aqui não é discorrer sobre especificidades orientais ou ocidentais,
mas sim apontar estímulos que podem dialogar com questões atuais e referentes às práticas e
às escolhas estéticas contemporâneas.
Frente às breves considerações acima mencionadas sobre aspectos e tendências do
Ocidente e do Oriente é importante que os trânsitos e as trocas apontem os movimentos
curvos e não lineares que relacionam pontos de um e de outro lugar.
As perguntas ―Qual a função da arte?‖, ―Quais as coordenadas que indicam o
acontecimento ou não de uma ação artística?‖ e ―Um acontecimento artístico pode coincidir
com uma experiência estética?‖ são alguns dos questionamentos que, já no início do século
XX, no contexto europeu, indicam desestabilizações de padrões coordenados por uma lógica
dualista - que tende, por exemplo, a separar arte e vida e obra e espectador. São então
oferecidas novas possibilidades de fundamentação do terreno das artes. Em um compasso que
prevê a superação de limites entre áreas delimitadas a esta ou aquela linguagem e ao lugar
restrito da arte ou da vida, rupturas anunciam um novo espaço formado na relação e no
processo artístico.
Movimento 7: O espectador: que sujeito é esse? Ou que espectador é esse que afeta e é
afetado?
A partir das indicações e das reflexões propostas até aqui é possível apresentar uma
noção de espectador que coincide com a concepção de um sujeito que é constituído no
decorrer e no desenvolvimento do evento artístico. Um sujeito que não está preso a uma
identidade, mas antes em construção e em experiência. Que não é uma unidade independente
ou ponto fixo e que pode ser apresentado como espaço de trânsito e fluxo que sofre
perturbações e transformações continuamente.
O sujeito aqui investigado é de difícil localização. É um sujeito que se faz ao se
desfazer. Entretanto, seguirei buscando novas pistas.
A partir de considerações da psicanálise, as transformações na concepção do sujeito
estão diretamente relacionadas aos cruzamentos entre o sujeito e o espaço, de acordo com
38
Tania Rivera (2007)14
. A autora aponta dois importantes episódios que incentivam alterações
decisivas no que se refere à noção de sujeito. O primeiro é quando Sigmund Freud (1856-
1939) desaloja a razão e a consciência afirmando que ―o eu não é mais senhor em sua própria
casa‖ (FREUD, 1917/1944, p.295 apud RIVERA, 2007). Com isso, a dinâmica do
inconsciente desestabiliza o lugar que o eu supunha habitar. O espaço do eu, ou do sujeito,
não é mais o lugar fixo, a casa conhecida e construída. Há lugares desconhecidos, espaços
móveis, áreas em constante transformação. O sujeito já não domina o espaço, ele se confunde
com esses lugares em determinados momentos. O segundo episódio é anunciado por Jacques-
Marie Émile Lacan (1901-1981) no ―divórcio existencial onde o corpo desmaia na
espacialidade‖ (LACAN, 1960/1966a, p.681apud RIVERA, 2007). O espaço aqui deixa de ser
uma categoria e se torna um elemento despercebido, instável e imprevisível que se molda de
acordo com os atos praticados. Neste momento surge o espaço como desdobramento do
sujeito. Sujeito este que é corpo em movimento e em interação.
Como observamos no tópico anterior, pode-se perceber que o desdobramento do sujeito
admite mobilidades e trânsitos que apontam formatos múltiplos, descentrados e nômades para
a subjetividade. Este caráter móvel e transitório do sujeito, e consequentemente da
subjetividade, promove uma ruptura com a concepção clássica do espaço. Há um
―rompimento com o esquema da perspectiva fazendo com que o sujeito fixo, olho central que
organizava, saia de repente a perambular por aí.‖ (RIVERA, 2007).
E é justamente neste ponto que aparece o sujeito ou o espectador referido nesta
dissertação. O sujeito que está a perambular, que não está fixo em um ponto, mas em
constante movimento no âmbito do fenômeno artístico. Movimento este que pressupõe a
interação – deslocamentos que ultrapassam as bordas daquilo que pode ser visto. Transitar,
provar e experienciar sem que um discurso intelectual oriente as compreensões que agitarão o
corpo. Deixar-se afetar, permitir-se atravessar um espaço que não está delimitado pela
representação, pela imagem fixa, mas que apresenta fissuras e passagens que incentivam o
contato, a presença e o toque, que aproximam arte, vida, sujeito, objeto e espaço. Pois, de
acordo com Rivera (2007): ―Divorciado do espaço, o sujeito não tem mais casa. Recolocado
no interior da geometria que ele antes sustentava como que de fora, inquestionado, ele
cambaleia e põe a girar, a oscilar o próprio espaço.‖
14
Tania Rivera é psicanalista e professora da UnB. Doutora em Psicologia pela Université Catholique de
Louvain. Pós-doutorado em Artes Visuais (EBA-UFRJ). Pesquisadora do CNPq. Autora do artigo ―Ensaio sobre
o espaço e o sujeito. Lygia Clark e a Psicanálise.‖ Ano: 2007
Localização:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151614982008000200004&lng=en&nrm=
iso. Acesso: 31/04/2011.
39
Este sujeito pode ainda ser aproximado da noção de ―sujeito da experiência‖, de Larossa
(2001). A partir das considerações do autor, o sujeito aparece como um lugar, uma superfície
sensível e porosa que é afetada, que se transforma e que está aberta às interferências do meio.
Sujeito este que se constitui pelas suas conexões, engajamentos e disponibilidades para com o
entorno. Larrosa contextualiza o sujeito da experiência em sua passividade, receptividade e
abertura. Contudo, tal passividade não se vincula à dualidade de agente e paciente sugeridas
pelo pensamento cartesiano e analítico, mas à uma disponibilidade primeira e fundamental.
Esse sujeito/espectador que surge, inicialmente, nas inquietações da psicanálise pode ser
encontrado ainda junto às concepções de subjetividades nômades que apontam o corpo como
superfície e campo de reverberação e interação. Um corpo não limitado pelas fronteiras da
pele, mas que se expande, se contrai e se constitui enquanto vaga pelo espaço. Assim, surge
um corpo que interage e aproxima observador e observado. Do olho para o olhar. Do objeto e
do sujeito para a relação. Nessa superação de dicotomias o espectador é incluído na
experiência artística, o que convém dizer que sua participação coincide com as reverberações
que acontecem em seu corpo. O campo de ação da obra se amplia e o corpo do espectador se
torna lugar por onde transitam cheiros, texturas, toques, sons e memórias que alterarão a
percepção e a configuração do espaço. O acontecimento da arte, neste contexto, parece
coincidir com a alteração de trajetos conhecidos e previstos, estimulando a experiência de
movimentos particulares que aproximam obra e espectador.
Nesta abordagem, que prevê a discussão sobre os movimentos e os trânsitos que
parecem configurar espaços e eventos entre obra e espectador, pode ser incluída a noção de
matéria definida pelo filósofo Henri Bergson (1859-1941).
Para o filósofo, matéria é como um conjunto de imagens. As imagens, por sua vez,
podem ser entendidas como uma existência situada entre a ―coisa‖ e a ―representação‖. Para o
senso comum, a ideia de imagem costuma coincidir com a ideia de objeto, como algo que
existe independentemente da percepção e que constitui por si próprio uma imagem.
Entretanto, para Bergson (2010), é falso reduzir a matéria à representação que temos dela. O
modo como percebemos é um trajeto particular de construção de imagens. Imagens que
nascem então da relação que estabelecemos com algo.
É possível afirmar ainda que a representação de uma imagem não é o conhecimento
total que se tem dela. O conhecimento primeiro, ou o contato primeiro com a matéria – que é
um conjunto de imagens – acontece mediante afecções, o que supõe a presença e ação do
corpo em um processo complexo. De modo que a imagem que meu pensamento conhece,
40
muitas vezes abstrata, não coincide com o conhecimento que o meu corpo tem sobre ela.
Chego assim à questão da ação e da interação.
A interação diz respeito à noção de movimento real. Tal movimento se constitui como
uma qualidade ou sensação em vibração e em desenvolvimento num número incalculável de
eventos. E o movimento não é aquele estudado pela física ou pela mecânica, como são os
símbolos ou as abstrações. Mas sim o movimento que acontece em estreita relação com o
espaço. Bergson (2010) sugere, portanto, a noção de um movimento real, que é o movimento
considerado nele mesmo e vibrando em suas qualidades. E, neste contexto, é possível dizer
que a matéria converte-se assim em inumeráveis estímulos, todos ligados numa continuidade
ininterrupta, todos solidários entre si, e que se prolongam em todos os sentidos como
tremores. (BERGSON, 2010, p.245). E a experiência do movimento real poderia ser assim
apresentada: ―Vale dizer que toco a realidade do movimento quando ele me aparece,
interiormente a mim, como uma mudança de estado ou de qualidade.‖ (BERGSON, 2010,
p.229-230).
O movimento real de Bergson não coincide com a abstração ou o símbolo, tais como
são estudados pela física ou pela mecânica, mas sim com um deslocamento que acontece à
medida que as interferências e as sensações acontecem. Deste modo, a ideia da existência de
um mundo exterior a nós é transformada na compreensão de um mundo criado por
movimentos reais, que não são dissociados das sensações, e que são os grandes responsáveis
pela construção dos espaços que conhecemos. O mundo existe à medida que eu me relaciono
com ele, à medida que o movimento coincide com a sensação.
Neste contexto, tende a ser superada a descontinuidade que separa as coisas e os
objetos uns dos outros, como aponta e estabelece o senso comum. Contudo, vale a pena
lembrar que, de acordo com Bergson (2010), tal descontinuidade que se manifesta nas
separações e distinções entre uma coisa e outra é um dos mecanismos de manutenção da vida.
Como exemplo, é possível dizer que o reconhecimento do próprio corpo e dos demais, como
unidades que se relacionam, favorece aproximações e afastamentos em diferentes situações.
Um corpo em sua busca por comida deve reconhecer seu alvo e se aproximar. Um corpo num
ambiente hostil deve reconhecer os corpos que supõem ameaças para poder se proteger ou
fugir. E é deste modo que a descontinuidade criada pela própria vida atua como um
mecanismo de proteção da espécie. Entretanto, tal necessidade fundamental da vida – de
reconhecimento do outro como evento, até certo modo, independente - não coincide com os
processos de interação ou conhecimento. Como questiona e discorre Bergson:
41
(...) se essa primeira subdivisão do real corresponde muito menos à intuição
imediata do que às necessidades fundamentais da vida, como se obteria um
conhecimento mais próximo das coisas levando a divisão ainda mais longe? Deste
modo prolongamos o movimento vital; viramos as costas ao conhecimento
verdadeiro. (...) Tal operação representa, com efeito, uma forma usual da ação útil,
indevidamente transportada ao domínio do conhecimento puro. (BERGSON, 2010,
p. 233)
Deste modo, é importante lembrar que as leis que favorecem a sobrevivência não devem
ser comparadas ao domínio do conhecimento ou ao modo como o corpo se relaciona com seu
ambiente, já que este processo é fundamentado numa sucessão de fenômenos que não podem
ser separados das relações com o entorno.
Que existem, num certo sentido, objetos múltiplos, que um homem se distingue de
outro homem, uma árvore de outra árvore, uma pedra de outra pedra, é
incontestável, uma vez que cada um desses seres, cada uma dessas coisas tem
propriedades características e obedece a uma lei determinada de evolução. Mas a
separação entre a coisa e seu ambiente não pode ser absolutamente definida; passa-
se por gradações insensíveis, de uma ao outro: a estrita solidariedade que liga todos
os objetos do universo material, a perpetuidade de suas ações e reações recíprocas,
demonstra suficientemente que eles não têm os limites preciosos que lhes
atribuímos. Nossa percepção desenha, de certo modo, a forma de seu resíduo; ela o
delimita no ponto em que eles cessam, consequentemente, de interessar nossas
necessidades. (BERGSON, 2010, p.246)
Aqui pontuo o foco de interesse desta dissertação – a abordagem da ação, da relação, da
interação e do movimento como continuidade, como ato que não está separado do trajeto e
nem mesmo do espaço.
Henri Bergson (2010) localiza esses processos de interação com o entorno na memória,
registro de qualidades sensíveis que acontecem enquanto o corpo se relaciona. E seguindo
este pensamento, a percepção parece coincidir com toques e deslocamentos de memórias.
Qualidades sensíveis são acessadas a partir de movimentos reais, que não acontecem num
mundo exterior, mas na relação do corpo com o ambiente. Movimentos que não podem ser
mensurados, mas apenas experienciados em intervalos nos quais o corpo percebe, interage e
move memórias criando novos fluxos de imagens e alterando a matéria.
E é nesse constante trânsito que provoca alterações e solicita o corpo como lugar de
acontecimento que devemos nos concentrar para dimensionalizar o trabalho de Lygia Clark e
o de Pina Bausch, uma vez que ambas propuseram novas relações para as interações com o
espectador. As práticas e movimentos aqui destacados foram influenciados por tendências
filosóficas que compreendem o evento como uma sucessão de relações que não estão fechadas
em si, mas que dialogam com o ambiente e superam classificações e divisões. Princípios
42
fundamentais da vida, da natureza, entram em diálogo com procedimentos artísticos que
dirigem sua atenção para a ação do espectador como ponto principal do fenômeno artístico.
O espectador no contexto aqui apresentado coincide com o sujeito da experiência
artística. Experiência que neste caso está pautada nos vínculos entre espectador e obra.
Entretanto, o espectador aqui investigado está inserido numa ação que pretende superar os
limites entre obra e público e sujeito e objeto. Este é o sujeito da experiência, que se constitui
no ato, no acontecimento da arte. Desse toque que desfaz sujeito e objeto como unidades
independentes surge um espaço ou ambiente no qual o espectador é acionado em suas
faculdades perceptivas e sensoriais. Pretende-se ativar os sentidos para além do discurso
formal e dos padrões já conhecidos. O espectador transita por zonas de indeterminação que
estimulam percepções e movimentos que o incluem no acontecimento da arte como um
participante ativo. O que há entre obra e espectador é uma tensão particular que aciona a
percepção, a sensação e a participação no evento artístico. O espaço, neste contexto, é
redimensionado e os sentidos são estimulados para novas relações.
43
ATO 2 – Ao atravessar
Neste ato, trago apontamentos sobre importantes aspectos e procedimentos nos
trabalhos de Lygia Clark e Pina Bausch no que se refere à incorporação do espectador.
No caso de Pina Bausch, as investigações aqui apresentadas apontam aspectos da sua
produção que podem ser localizados em trechos de espetáculos e em comentários de
pesquisadores. Não faço uma análise das peças completas de Bausch, mas antes aponto
referências que possam dialogar com esse texto. As peças de Pina Bausch costumam reunir
uma quantidade enorme de variações e possibilidades de abordagem, e é por este motivo que
detive minha atenção tão-somente sobre procedimentos que problematizam os mecanismos de
aproximação entre obra e espectador.
Sobre Lygia Clark as análises e reflexões aqui apresentadas tendem a recair sobre os
próprios trabalhos da artista. Seus trabalhos são proposições que apresentam, de modo
bastante claro e objetivo, os questionamentos e as problemáticas subjacentes à ação artística
em suas relações junto à experiência do espectador.
Movimento 1. Percurso de Lygia Clark
Lygia Clark (1920-1988) nasceu em Belo Horizonte e aos 27 anos libertou-se das
obrigações familiares – era casada e mãe de três filhos. Iniciou seus estudos de arte com
Roberto Burle Marx, em 1947, no Rio de Janeiro. Deste encontro com o paisagista a artista
herdou, principalmente, a necessidade de trabalhar com o orgânico – que fundamentou suas
pesquisas sobre o espaço. A autora Dirce Helena Benevides de Carvalho, na pesquisa ―Lygia
Clark, o vôo para o espaço real: do bi para o tridimensional‖, sinaliza ainda que a
problematização do lugar da obra em relação ao espaço do mundo foi a grande motivação de
Lygia Clark desde os seus trabalhos iniciais. Havia um desejo de integrar espaços – o
pictórico e o real, o dentro e o fora, o sujeito e o objeto, a vida e a arte. Tais espaços deveriam
superar as divisões que apontam dicotomias e fronteiras entre um lugar e outro.
As propostas da artista refazem, de algum modo, caminhos percorridos em suas próprias
investigações pessoais. Textos, anotações, sonhos, reflexões e apontamentos de Clark
favorecem a compreensão dos lugares por onde ela transita. Sobre seus sonhos ela escreveu:
44
Perco o sentido do tempo e percebo a Terra que continua o mesmo processo, se
fazendo e se desfazendo continuamente. (...) A Terra sempre no processo do fazer-
se a cada instante. (...) Como alguns calamares: é como se engolisse a paisagem, é
algo sensacional. (...) Pensamento mudo, o se calar, a consciência de outras
realidades, do meu egocentrismo que de tão grande me fez dar tudo ao outro, até a
autoria da obra. O silêncio, a interação no coletivo, a recomposição do meu eu, a
procura de um profundo sentido de vida no grande sentido social, o meu lugar no
mundo. (CLARK, 1980, p. 5)
No interior que é exterior, uma janela e eu. Quando acordo, a janela do quarto é a
do sonho, o de dentro que eu procurava é o espaço de fora. Deste sonho nasceu o
Bicho que denominei ―dentro-fora‖.‖ (CLARK, 1980, p. 23)
Artista e obra se tocam. Os trabalhos de Clark são desdobramentos de questionamentos
e inquietações suas. Trabalhos que geram questões, e questões que geram trabalhos. Há uma
ação contínua, uma exploração que não encontra um repouso. O repouso se dá em
movimento, e são muitos os lugares por onde a artista transita. Caminhos que convidam o
público, que solicitam a percepção, que transformam as rotas e que estão sempre em viagem.
Propostas nômades que não buscam o fim, mas o percurso. E, de acordo com Maria Alice
Milliet:
A atividade criadora de Lygia compreende obra e pensamento amalgamados por
uma vivência profunda do ―ser no mundo‖. Seu processo artístico é marcado por
constante busca, num encadeamento em que cada etapa prenuncia a seguinte,
surpreendendo ainda assim pela inventividade das soluções. O caráter não
preconceituoso do fazer artístico, a coragem de abandonar territórios já
conquistados, o lançar-se em novas propostas num permanente questionamento da
função da arte e do artista são qualidades definitivamente associadas à obra dessa
artista.‖ (MILLIET, 1992, p. 15)
Na década de 1950, Clark intitula-se não-artista e provoca assim a desmistificação da
figura do artista como o ser criador, como anuncia Allan Kaprow no texto ―A Educação do A-
Artista‖15
. Clark se anuncia fora de categorias e questiona seu lugar no mundo. A artista
pretende que o espectador seja ele mesmo responsável pela sua experiência, independente dos
estímulos sugeridos por ela. No trânsito entre práticas e atitudes de difícil classificação, a
artista anuncia: ―Não aceito coisa alguma de quem quiser me catalogar. Só aceito as críticas
de quem seja capaz de vivenciar comigo a sensibilidade e a experiência que me levaram a um
quadro ou a uma atitude.‖16
Integrante e uma das fundadoras do Grupo Frente em 1954, a artista dedica-se ao estudo
do espaço e apresenta as séries ―Superfícies Moduladas, 1952-57‖ e ―Planos em Superfície
Modulada, 1956-58‖. Ambas ampliando o campo de ação da obra para além dos limites da
15
Texto online: http://www.concinnitas.uerj.br/resumos6/kaprow.pdf Acesso: 04/06/2011 16
Dantas, ―Lygia Explica Sua Pintura: Todo Artista é um Suicida‖, Diário Carioca, Rio de Janeiro, 11 out.1959
apud MILLIET, 1992, p. 13
45
moldura. Em 1959 assina o Manifesto Neoconcreto. Sua composição pictórica se confunde
com a moldura – a tela absorve a moldura – e a artista propõe deste modo novas
possibilidades de configuração do espaço. Tal assunto será discutido detalhadamente mais
adiante, no tópico destinado às transformações e às concepções do espaço nos procedimentos
de Lygia Clark.
O espaço da obra pretende coincidir com o espaço do mundo. Os planos são então
dobrados e a tridimensionalidade é explorada. São criados neste momento os Bichos,
esculturas em alumínio com dobradiças que permitem a articulação, feita pelo público, das
partes que formam o todo. A estrutura aberta da série Bichos torna a artista uma referência
mundial da arte participativa e promove o início de um período de exploração da
maleabilidade dos materiais. A madeira, matéria dura, é substituída pela matéria mole, como o
alumínio, metal flexível dos Bichos. As transformações na trajetória de Lygia Clark
demonstram que as mudanças de interesse tendem a ressaltar a figura do artista como o
propositor. As sugestões, por sua vez, procuram desligar-se das tradições e assumir novos
procedimentos e relações. A Obra Mole, de 1964, feita de borracha, e Caminhando, também
de 1964, ação de cortar a fita de Moebius, rompem heranças de conceitos tradicionais e
promovem novos paradigmas nas artes visuais brasileiras.
Caminhando, de 1964, é a proposta de Clark que rompe de modo radical com os limites
entre obra e espectador, recusando assim a noção de obra de arte. A força do ato se sobrepõe
ao objeto artístico, como se verá a seguir. De acordo com a autora Tania Rivera (2007),
―Clark desmaterializa de forma revolucionária a obra de arte, introduzindo uma sofisticada
reflexão artística acerca das relações entre sujeito e objeto.‖17
A partir dos apontamentos acima é possível afirmar que a participação e a interação em
Clark coincidem com o movimento de espacialização da obra, quando esta avança para além
dos limites da moldura, e a descoberta do corpo como espaço de trocas e trânsitos que é
ativado no processo de produção de arte.
17
Citação extraída do artigo de Tania Rivera ―Ensaio sobre o espaço e o sujeito. Lygia Clark e a Psicanálise.‖
Ano: 2007. Acessado em 17/05/2011. Localização: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-
14982008000200004&script=sci_arttext
46
Movimento 2. O neoconcretismo e Lygia Clark
Na origem do movimento neoconcreto está o movimento concreto. O Concretismo, ou
movimento concreto, foi um movimento estético nascido na escola de Ulm, na Alemanha, e
teve como líder o artista Max Bill, que em 1949 expôs suas obras pela primeira vez no Brasil.
Em 1951, Bill foi premiado na I Bienal de São Paulo e sua influência no país tornou-se
decisiva.
O Concretismo (1954-1958) aposta na arte não-representativa como modo de
questionamento e superação de um sistema de representação pautado em conteúdos éticos e
políticos. As questões plástico-formais se sobrepõem e o abstracionismo desloca o olhar dos
modelos representacionais miméticos para elaborações geométricas baseadas no raciocínio,
no rigor e na demonstração ou aplicação de resultados da matemática e da física. O
rompimento com o espaço visual renascentista favorece investigações que renovarão a
linguagem plástica. Entretanto, neste contexto a arte começa a se limitar à expressão de
teorias mecanicistas e ―conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das
artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva, afetiva – são confundidos com a
aplicação teórica que deles faz a ciência.‖18
No Brasil, dois grupos se formaram em torno das questões e princípios do movimento
concreto, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro. O grupo de São Paulo era liderado por
Waldemar Cordeiro e apresentava uma visão mais racional dos processos e procedimentos
artísticos, enquanto que o grupo carioca liderado por Mário Pedrosa caracterizava-se por uma
abordagem mais livre e experimental da arte.
A grande diferença entre os grupos apareceu em 1956, na I Exposição Nacional de Arte
Concreta, em São Paulo. O contato entre os grupos tornou evidente divergências que deram
origem a polêmicas e a posterior ruptura do movimento, em 1957. A partir de então os grupos
se tornam independentes e desvinculados um do outro, cada um com trajetórias bastante
distintas.
O Neoconcretismo surge em 1959 como uma alternativa em relação ao impasse
concretista. O movimento neoconcreto era formado por pintores, escultores e escritores que
questionavam os limites de tais áreas e as supostas categorizações, revisando posições teóricas
e as estruturas de referenciais da arte concreta. Os excessos racionalistas, pautados em noções
18
Texto extraído do Manifesto Neoconcreto republicado em ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto
construtivo brasileiro‖, de Ronaldo Brito, de 1985.
47
construtivistas, pontuavam procedimentos do Concretismo que serão criticados pelo
Neoconcretismo.
Para os neoconcretistas, como Lygia Clark, o foco do acontecimento artístico estava na
experimentação e na integração entre obra e espectador. E ainda sobre os fundamentos do
Neoconcretismo é possível afirmar que seu interesse concentrava-se no estiramento de
limites, na experimentação e no ―transbordamento da arte para a vida, atingindo o ‗singular
estado da arte sem arte‘19
‖, como anuncia Maria Alice Milliet (1992, p.15). Ferreira Gullar,
um dos principais articuladores do Neoconcretismo, anunciou mais tarde que ―o movimento
neoconcreto foi uma das mais originais contribuições da arte brasileira à história da arte
contemporânea.‖20
Com a morte do plano, o quadro como espaço semântico isolado é superado e aos
poucos é inserido à sala onde é exposto. Há uma continuidade, uma transferência do olhar da
figura para as linhas que percorrem um espaço que convencionalmente é destinado ao
espectador. Abalos na imagem reverberam criando movimentos que já não cabem mais no
espaço fechado da moldura. Clark ―desdobra gradualmente o plano em articulações
tridimensionais – ―casulos‖, ―bichos‖ e ―trepantes‖ – onde vai se insinuando a participação do
espectador.‖ (MILLIET, 1992, p. 21). E ainda sobre o plano:
O plano é um conceito criado pelo homem com fins práticos: para satisfazer sua
necessidade de equilíbrio. O quadrado, criação abstrata, é um produto do plano. O
plano, marcando arbitrariamente os limites do espaço, dá uma ideia inteiramente
falsa e racional de sua própria realidade. Daí surgem os conceitos antagônicos como
o alto e o baixo, o avesso e o direito – contribuindo para destruir no homem o
sentimento da totalidade. É também a razão pela qual o homem projetou sua parte
transcendente e lhe deu o nome de Deus. Assim colocou o problema de sua
existência – inventando o espelho de sua própria espiritualidade.
O quadrado se carregava de uma significação mágica quando o artista o considerava
como levando uma visão total do universo. Mas o plano está morto. (CLARK, 1980,
p.13)
Clark percorre uma trajetória que coincide com rupturas e investigações que promovem
a superação da materialidade da obra. E de acordo com o ―Manifesto Neoconcreto‖:
Não concebemos a obra de arte nem como ―máquina‖, nem como ―objeto‖, mas
como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações
exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só
se dá planamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de
19
Referência do termo: ―1965: Um Mito Moderno: A Colocação em Evidência do Instante como Nostalgia do
Cosmos‖, op.cit., p.29 apud MILLIET, 1992, p. 15 20
Texto ―Manifesto Neoconcreto‖ republicado no catálogo do evento ―Marginais - Heróis: 50 anos do Manifesto
Neoconcreto‖, que aconteceu nos dias 02, 05 e 16 de dezembro de 2009, no Centro Cultural do Banco do Brasil
do Rio de Janeiro. Pág.16.
48
arte supera o mecanismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude
extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt
objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M.Ponty) que emerge nela pela
primeira vez.21
Como integrante do movimento neoconcreto, Lygia Clark radicaliza seus
questionamentos sobre a obra como objeto e solicita a presença do público como eixo
fundamental de seus trabalhos. A obra de arte se transforma em propostas que pretendem
estimular o corpo em seus sentidos e relações com o ambiente.
Da investigação do objeto para o corpo, a artista questiona os limites entre sujeito,
objeto, arte e vida e aborda o fenômeno artístico como dinâmica e experiência.
As práticas de Clark são experiências multissensoriais que ultrapassam o âmbito do
olhar e pretendem mobilizar as capacidades de apreender a realidade e a alteridade do mundo.
Segundo Suely Rolnik (2007)22
, Lygia Clark buscou mobilizar nos receptores de suas
proposições a apreensão vibrátil do mundo. O corpo aparece como lugar que toca e que é
tocado.
Clark apresenta o corpo como o centro do acontecimento da arte. Um corpo que se
constitui em trânsito e em movimento. São as experiências vividas pelos sentidos que
mobilizarão as transformações de um corpo que se faz em ―processo contínuo de
diferenciação‖, utilizando as palavras de Sueli Rolnik (2007).
O Neoconcretismo apresenta o corpo como o novo suporte, como o lugar da experiência
artística, promovendo assim contatos entre vida e arte. E ainda sobre a atuação de Lygia junto
ao movimento neoconcreto, é possível apontar as seguintes considerações:
Lygia e Hélio estão à frente desse movimento, cujo engajamento diz respeito aos
limites da arte e do homem, do sujeito e do objeto em suas oposições, convergências
e imbricações. Isso significa o mais contundente questionamento do estatuto da arte
e do artista em nosso meio, abrindo flancos para a desmaterialização da obra, para a
dissolução da individualidade do artista no fazer coletivo, para a recuperação do
sensório através da estimulação do corpo. (MILLIET, 1992, p.27)
Do ponto de vista estético, a obra começa a interessar precisamente pelo que nela há
que transcende essas aproximações exteriores: pelo universo de significações
existenciais que ela a um tempo funda e revela.23
21
Texto extraído do Manifesto Neoconcreto republicado em ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto
construtivo brasileiro‖, de Ronaldo Brito, de 1985. 22
Texto ―A memória do corpo contamina o museu‖ publicado em: http://eipcp.net/
Localização: http://eipcp.net/transversal/0507/rolnik/pt. Ano: 2007 Acesso: 12/05/2011. 23
Manifesto Neoconcreto, texto republicado no livro ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo
brasileiro.‖ Ronaldo Brito, 1985.
49
O evento da arte se abre em duração convocando o espectador num fluxo que integra
sujeito e objeto.
Movimento 3. Travessias de Lygia Clark
De que modo as travessias propostas por Lygia Clark favorecem a ação e a participação
do espectador?
O primeiro aspecto é apresentado no subcapítulo Travessia A, a partir da transferência
de interesse do quadro para o espaço como lugar de interação e movimento. A pintura
atravessa a moldura e a arte acontece em intervalos que aproximam arte e vida. No
subcapítulo Travessia B aparecem as propostas sensoriais da artista e a presença do
espectador como principal agente do fenômeno artístico. O corpo é aqui o principal alvo de
investigação em um campo que tradicionalmente esteve muito mais focado em questões
relativas à visualidade.
Travessia A: Crise da representação ou quando a pintura transborda.
Lygia Clark extravasa limites e localiza a obra na relação, em uma zona liminar. Aos
poucos a moldura é incluída ao espaço pictórico do quadro e as bordas sugerem novas
organizações espaciais. No percurso de abertura da área fechada do quadro, a moldura é um
dos principais focos orientadores desta expansão. Num primeiro momento as fronteiras entre
quadro e moldura são amenizadas por uma convenção cromática, na qual a área da moldura é
preta e a área da tela é verde, como menciona Ferreira Gullar (1980). No momento seguinte, o
preto da moldura é transferido para dentro da tela, ou do quadro, e a cor da tela aparece na
moldura, invertendo deste modo os acordos de limitações, áreas e fronteiras. ―O espaço
pictórico está agora fora da moldura, liberto dela.‖ (GULLAR, 1980, p.10).
Prestes a invadir o espaço, havia ainda uma questão que deveria ser superada nesta
trajetória: o retângulo dentro da superfície, que traz para si toda atenção e torna-se o centro de
referência do olhar, impede a articulação da obra com o entorno, ou com a arquitetura, e
deveria ser eliminado. É neste momento que a artista destrói esse ―centro‖ e restaura o
reencontro da superfície com um espaço livre de delimitações convencionais. Neste período,
há um esvaziamento do espaço pictórico e a atenção da artista se volta para o espaço
arquitetônico. ―É então para a parede, para a superfície das portas, para o espaço arquitetônico
50
enfim, que a pintura de Lygia Clark, livre do quadro, quer agora se transferir.‖ (GULLAR,
1980, p.11).
Ferreira Gullar no texto ―Lygia Clark: uma experiência radical (1954-1958)‖24
alerta
para o fato de que os quadros da artista não têm moldura de qualquer espécie, ―não estão
separados do espaço, não são objetos fechados dentro do espaço: estão abertos para o espaço
que neles penetra e neles se dá incessante e recente: tempo.‖(GULLAR, 1980, p.7). O
ambiente penetra, participa e faz-se lugar de experiência e acontecimento da obra.
Gullar faz considerações sobre o ato de pintar nos procedimentos da artista:
Pintar para Lygia Clark não é mais resolver uma área dada, dividindo-a em planos e
pintando esses planos; não é tampouco inscrever uma ideia pictórica num espaço
preexistente, limitado ou ―ilimitado‖. Não existe mais para esta artista qualquer
separação entre espaço e obra, entre o espaço material – a tela – e o espaço virtual
futuro – a obra. Porque o ―quadro‖ (a tela) não preexiste ao ato de pintar, porque
Lygia Clark constrói simultaneamente o quadro como objeto e como expressão, ela
trabalha diretamente sobre o espaço real e o transforma sur le champ em pintura.
Daí porque os seus quadros são esses objetos vivos, ambíguos, acionados pelo
movimento constante de uma metamorfose espacial que, nem bem se faz, já se
refaz: absorve, transforma e devolve o espaço, incessantemente. (GULLAR, 1980,
p.7-8)
A superfície é explorada pela artista como lugar da realidade imediata, espaço percebido
sem o apoio de representações ou alusões a espaços outros. ―Trata-se de uma corajosa
tentativa de dar na própria experiência perceptiva a transcendência dessa experiência.‖
(CLARK, 1980, p.8). O quadro é então absorvido e a obra é criada pelo próprio ambiente.
―Da integração do quadro no espaço arquitetônico, passa à integração do quadro no espaço
mesmo, em pé de igualdade com a arquitetura.‖ (CLARK, 1980, p.8). A moldura, que
costuma separar o espaço real do ficcional, perde sua função à medida que o quadro, ou a
obra, se lança ao espaço e confunde os limites entre sujeito, objeto e espaço. Nas palavras de
Ferreira Gullar,
(...) liberto o espaço preso no quadro, liberto a minha visão, e como se abrisse a
garrafa que continha o Gênio da fábula, vejo-o encher o quadro, deslizar pelas
superfícies mais contraditórias, fugir pela janela para além dos edifícios e das
montanhas e ocupar o mundo. É a redescoberta do espaço. (GULLAR, PEDROSA,
CLARK, 1980, p.9)
Na trajetória de Lygia Clark é possível mapear dois importantes períodos que se
relacionam com suas abordagens do espaço pictórico tradicional e do espaço das espessuras
do real. Em seus primeiros trabalhos, o quadro foi utilizado como suporte para denunciar
24
Texto de 1958 publicado no livro ―Arte Brasileira Contemporânea: Lygia Clark, de 1980‖.
51
problemáticas referentes à representação, às divisões e criações metafóricas confinadas em
um lugar que não se relaciona diretamente com o entorno. ―A sucessão de relações que Lygia
Clark vai estabelecendo entre tela e moldura, cor e espaço, é como a tateante decifração de
um enigma, a procura do suporte essencial do quadro – núcleo puro da pintura.‖ (CLARK,
1980, p.9). A procura pelo núcleo orientador que fomenta a existência do quadro leva à
revelação do impulso criador que está no ato de pintar. Os elementos pictóricos vão sendo
eliminados e a superfície avança pelo espaço. Real, ficcional, sujeito, objeto e espaço se
misturam. A residência da obra amplia-se para o mundo e para os possíveis vínculos com a
arquitetura e os elementos que configuram diferentes ambientes.
É neste momento que a artista descobre a linha orgânica ou a linha de encontro – que
permite junções entre espaços que são ditos como separados, como a linha entre a tela e a
moldura, entre duas tábuas, no assoalho, e entre um móvel embutido e a parede, conforme
exemplos de Ferreira Gullar (CLARK, 1980, p. 11). E deste ponto em diante, Clark abandona
a tela e experimenta novas possibilidades para o quadro, como a conjugação de placas ou
pedaços de madeira cortados. Quando as placas apresentam cores iguais e se tocam a linha de
encontro é absorvida pelas cores. Porém, quando as cores são diferentes a linha aparece como
elemento da estrutura do quadro.
Lygia Clark se interessa pela arquitetura e pelos encontros possíveis entre o quadro e o
ambiente. A pintura que antes repousava sobre o quadro, se movimenta percorrendo novos
caminhos. Surge um lugar de tensão entre o quadro e o mundo.
Clark se inspira em Piet Mondrian (1872-1944), artista que se preocupou com a
integração da arte no cotidiano, e experimenta relações com um quadro que aparece livre de
representações e significações. Este isolamento semântico esvazia o espaço pictórico e o
quadro como objeto material tenderá a ser integrado ao entorno.
O quadro de Clark está deserto e é pela linha orgânica, pelas brechas e espaços abertos
que ele ganhará vida. Linha-espaço. Vitalidade orgânica. Até chegar à superfície toda branca,
onde as ―linhas penetram profundamente‖ (CLARK, 1980, p.12). ―Diante daquela área viva, a
percepção atinge um limite de ambigüidade e precisão: o espaço se faz veículo do tempo e o
tempo se revela.‖ (CLARK, 1980, p.12).
E ainda sobre a linha orgânica é possível dizer que ela foi a primeira tridimensionalidade
descoberta pela artista. Esta linha recebe diferentes nomes, como linha espaço, nas Superfícies
Moduladas e Planos em Superfícies Moduladas; linha luz, em Espaços Modulados e
52
Unidades; linha de sobreposição, em Contra-Revelos; linha dobra, em Casulos; dobradiças,
em Bichos e torção, em Trepantes e Obras-Moles. (Dirce)
No momento seguinte, a artista passa a se interessar mais pelo próprio tempo da obra do
que pela revelação do tempo através da obra. ―Atualidade plena que identifica o trabalho
criador com a obra criada, que faz da obra a presença integral, sem resíduo, de um fato que
não acaba nunca de acontecer.‖ (CLARK, 1980, p.12). Enquanto o quadro deixa de ser
suporte de uma representação e perde um sentido que a ele foi dado, o movimento, a ação e a
interação passam a mobilizar o fenômeno da arte. A relação do artista com a sua produção e o
vínculo do espectador com o acontecimento artístico ganham sentido à medida que o quadro,
como lugar fechado de representação, perde sentido.
A abordagem do espaço investigada por Lygia Clark pretende alterar perspectivas de um
lugar determinado e estável e anunciar interações entre espectador e elementos do meio
ambiente. Seus lugares são vias de ação e interação - espaço configurado por movimentos. A
obra ganha espaço, se faz espaço, e se torna, ela mesma, ambiente ou lugar de experiência e
interação. Espaço que inclui o espectador ao acionar seu corpo em sensações, forças e
percepções. Movimentos que desenham redes, conexões e que mobilizam assim o fenômeno
artístico.
Das incursões dos trabalhos de Clark pelo espaço antes destinado ao público, nascem as
proposições sensoriais que serão responsáveis pela grande notoriedade da artista. É quando as
linhas fogem para o espaço que novas experiências são investigadas e inaugura-se a fase
sensorial da artista.
Travessia B. um corpo, um espaço ou o corpo como lugar de experiência.
Na trajetória de Lygia Clark é possível observar que seus trabalhos seguem uma direção
que coincide com a perda de identidade da obra de arte como unidade ou objeto. O que vale
dizer que suas propostas caminham em uma direção que irá desmistificar a ideia do objeto de
arte como elemento dissociado do espaço onde ele aparece. Clark segue então um movimento
de integração e fusão entre arte, vida, sujeito, objeto e espaço. Tal impulso parece ter início no
momento em que seu quadro absorve a moldura para integrar-se no mundo. Nas etapas
seguintes a inserção do corpo, como espaço de experiências, é o foco central das propostas da
artista.
O primeiro trabalho de Clark pautado no ato do espectador e em sua corporeidade é
Caminhando, de 1964. A partir deste trabalho o corpo aparece como o centro de discussão e
53
reverberação do acontecimento da arte. O objeto artístico não está mais fora do corpo, mas
passa a ser o próprio corpo em movimento e em experiência.
―Caminhando‖ é o nome que dei à minha última proposição. Daqui em diante
atribuo uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante. O
―Caminhando‖ leva todas as possibilidades que se ligam à ação em si mesma: ele
permite a escolha, o imprevisível, a transformação de uma virtualidade em um
empreendimento concreto. (CLARK, 1980, p.25)
De acordo com Lygia Clark (1980), a proposição se dá do seguinte modo: pegar uma
dessas tiras que envolvem um livro, cortá-la em sua largura, torcer e colar de modo que se
obtenha uma fita de Moebius. Pegar uma tesoura, cravar uma ponta na superfície e cortar
continuamente no sentido do comprimento. O caminhante, ou aquele que executa a proposta,
deve prestar atenção para não recair no corte já feito, o que dividiria a faixa em dois pedaços.
Após a primeira volta na fita de Moebius, o caminhante deve cortar à direita e cortar à
esquerda do corte já feito. O sentido encontra-se no ato de fazer. O ato surge como processo e
produção de arte.
Nesta proposição não há um objeto à priori, mas sim uma proposta, uma potencialidade
que favorece a criação de um percurso particular para cada participante, onde a noção de
escolha é decisiva; o modo que cada pessoa encontrará para cortar a fita de papel, os
caminhos escolhidos enquanto cortam o papel. Sujeito e objeto formam-se mutuamente.
Espectador e obra tornam-se indissociáveis, superando referenciais dualistas comuns no
contexto da arte como objeto ou coisa exposta à apreciação do público.
Quando o público é convidado a cortar uma tira de papel, a obra é o próprio ato de
cortar, a ação e o foco no instante presente, enquanto o movimento se desenvolve. Não há
uma obra a priori, mas um percurso, um deslocamento e a criação de um espaço de
intensidades na relação do corpo com os materiais, neste caso papel e tesoura. O participante é
engajado numa atividade que solicita sua presença e atenção. Seu corpo afeta e é afetado. A
sequência de ações, desde pegar a tesoura até cortar as tiras de papel, são gestos que engajarão
o participante ao instante presente de desenvolvimento e produção do evento artístico. Os
percursos e os desdobramentos possíveis desta ação são os principais focos de interesse desta
proposição. E de acordo com a artista: ―Se utilizo uma fita de Moebius para esta experiência,
é porque ela contrasta com nossos hábitos espaciais: direita/esquerda; avesso/direito etc. Ela
nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo.‖ (CLARK,
1980, p.26)
54
Clark pontua ainda que não há nada antes e nem depois de Caminhando. Apenas o ato é
capaz de revelar a sua existência e transitoriedade. Para a artista, o sentido de caminhando se
deu na seguinte experiência:
(...) atravessando o campo de trem, senti cada fragmento da paisagem como uma
totalidade no tempo, uma totalidade do ser, de se fazer sob meus olhos, na
imanência do momento. O momento era a coisa decisiva. Uma vez também,
contemplando a fumaça de meu cigarro: era como se o próprio tempo fizesse seu
caminho, sem cessar, se aniquilava, se refazia continuamente... Eu já provei isso no
amor, nos meus gestos. E cada vez que a expressão ―Caminhando‖ surge na
conversa, ela suscita um verdadeiro espaço e me integra no mundo. Eu me sinto
salva. (CLARK, 1980, p.26)
Caminhando, 1964
Sobre o ato ou o instante que marcam a proposição Caminhando, a artista faz as
seguintes considerações:
O instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o repetir é lhe dar uma
outra significação. Ele não contém nenhum traço da percepção passada. É um outro
momento. No momento mesmo em que ele se desenrola, ele já é uma coisa em si. Só
o instante do ato é vida. Por natureza, o ato contém em si mesmo seu próprio
excesso, seu próprio vir-a-ser. O instante do ato é a única realidade viva em nós
mesmos. (CLARK, 1980, p.27)
55
Caminhando não é um objeto, mas a proposta de uma ação. Ação esta que pode alterar a
relação que o participante tem com o mundo. A própria artista lança esta reflexão: ―Eu me
pergunto se após a experiência do Caminhando não se toma melhor consciência de cada um
dos gestos que fazemos – mesmo os mais habituais.‖ (CLARK, 1980, p.27).
Clark (1980) diz ainda que viveu um ritual muito significativo na primeira vez em que
cortou Caminhando. Em suas próprias palavras:
E eu desejo que esta mesma ação seja vivida com a máxima intensidade pelos
participantes futuros. É preciso que ela seja puramente gratuita e que ninguém
procure saber – quando estiver cortando – o que vai ser cortado a seguir ou o que já
foi talhado antes. Aí é preciso concentração e, talvez uma vontade ingênua de
apreender o absoluto de fazer o ―Caminhando‖, conservando a gratuidade do gesto.
(CLARK, 1980, p.27)
A artista dá ênfase ao instante presente, ao ato, ao momento de ação e interação do
corpo. Momento no qual o pensamento se dá na ação. Pensamento e corpo acontecendo ao
mesmo tempo. O ato surge como um percurso criado pelo participante. Percurso este definido
pela sua ação, pelo engajamento e interação de seu corpo no evento. Sua ação se manifesta
como pensamento que só pode pensar enquanto corpo e relação. De acordo com Lygia Clark:
Com Nietzsche todas as projeções religiosas do homem em direção ao exterior são
rejeitadas, o sentimento religioso se introverteu: o homem é divino. O mesmo
acontece na arte: a proposição, antigamente percebida pelo espectador como exterior
a ele, encerrada em um objeto estranho, é agora vivida como parte dele mesmo,
como fusão. Todo homem é criador. (CLARK, 1980, p. 29)
Sob esta perspectiva, a obra surge como potencialidade de interação que aciona e
vincula o espectador, ou o participante. Não existem diferentes planos ou mediações, tudo se
dá na ação e no movimento. A obra não está limitada a um espaço fechado cumprindo regras
e se apresentando ao público, ela acontece no espaço compartilhado no qual o espectador
transita livremente enquanto cria percursos e sentidos. O sujeito é o grande responsável pelos
seus atos, pelas suas transformações e experiências. E segundo Clark: ―O homem deve tomar
posição em face dele mesmo, com toda independência que adquiriu em sua terrível solidão.‖
(CLARK, 1980, p.29)
Sob esta perspectiva, o corpo como matéria flexível torna-se o lugar da experiência e
interessa cada vez mais a artista. O lugar das experiências de Clark coincide com os
movimentos do corpo, com trajetórias particulares que levam a instâncias que não podem ser
classificados ou delimitados em categorias. De acordo com Maria Alice Milliet, Lygia Clark:
56
Recusa a classificação em categorias estéticas ou estilísticas, porque incompatíveis
com a sua poética de desrepresentação, de superação dos suportes, de deslocamento
do privilégio do olhar para uma ampla percepção sensorial, de integração do corpo
na arte e da arte no corpo coletivo. ( MILLIET, 1992, p.14)
As interações da obra no espaço aproximam elementos que pareciam distantes e
dissociados e promovem o início da fase sensorial da artista. Para discorrer sobre esta fase
focarei em dois momentos, assim denominados pela artista: Nostalgia do Corpo, quando o
sujeito entra em contato com o seu próprio corpo a partir de objetos para a sensibilização; e
Corpo Coletivo, quando os elementos ou ambientes sugeridos atuam como meio para as
experiências em grupo. É possível dizer que nos procedimentos de Clark o corpo parte da
fragmentação e do trabalho analítico para um corpo integrado. Apenas no final da sua
trajetória Lygia voltará a explorar o corpo individualmente, em sessões que ela denominará A
estruturação do self25
.
Entre as proposições que solicitam a presença de espectador e consequentemente de seu
corpo como elemento fundamental da experiência artística, é possível trazer dois exemplos
que podem ilustrar aspectos da discussão aqui proposta.
O primeiro exemplo é da fase Nostalgia do Corpo, de 1966. Clark pretende despertar a
consciência do corpo a partir da redescoberta dos sentidos. Nostalgia indica saudade e um
possível resgate do corpo perdido. O reencontro com este corpo esquecido acontece por meio
de objetos que agem como intermediários dentro do processo de despertar as sensações
corporais. Os objetos utilizados são elementos do cotidiano, como água, sementes, conchas e
borrachas, por exemplo.
Nesta fase em que as propostas consistem na manipulação de objetos que poderão
sensibilizar o corpo, Clark propõe ainda luvas, óculos e cintos, e sugere ambientes e roupas
que tendem a estimular a percepção. Como exemplo, tem-se Luvas Sensoriais, que coincide
com a redescoberta do tato, e Ar e Pedra, sensação de um organismo vivo em uma cópula da
qual se participa. Nestes trabalhos, as experiências são vividas individualmente. O
participante está ainda sozinho. Ele manipula objetos e atualiza memórias esquecidas. Nesta
fase a artista foca seu interesse nas reverberações possíveis no decorrer da ação do
participante. A ativação de sensações, memórias e impressões são as bases por onde transitam
25
O método, considerado terapêutico pela própria artista, admite inúmeras considerações e não será abordado
nesta pesquisa. O foco aqui está nos procedimentos de espacialização da obra, instante em que o objeto se
dissolve e estimula a ação do espectador a partir da mobilização do seu corpo, e não nos processos e
conseqüências psicológicas das práticas propostas nesta fase final da artista.
57
as proposições de Lygia Clark neste momento. A artista pretende acessar forças, tocar em
registros adormecidos, acordar e atualizar sentidos.
Entre os trabalhos desta fase destinada às manipulações individuais, destaco Luvas
Sensoriais, de 1968. O participante deve vestir luvas de diferentes materiais para pegar bolas
de tamanhos, texturas e pesos diferentes, como aponta Milliet (1992). Após tocar as bolas
com as luvas, o participante deve experimentar a mesma ação, porém, desta vez sem as luvas.
Há nesta proposta uma redescoberta do tato. O peso e os aspectos materiais das bolas em
contato direto com a pele e com o corpo estimulam a sensação do toque. O corpo reage ao
tocar e ser tocado pelas bolas. Tocar o objeto diretamente e ser por ele tocado ganha uma
nova perspectiva após a experiência de toque com a luva. Enquanto a mão toca a partir de um
mediador, neste caso a luva, o corpo recebe diferentes informações sobre as propriedades do
objeto que está sendo tocado. Há uma alteração na sensação e memória do objeto, e tal
transformação interfere na relação posterior que o corpo estabelece com o mesmo.
Luvas sensoriais, 1968
A experiência dos participantes é fundamentalmente sensorial, o que permite a
redescoberta daquilo que não cabe num discurso verbal. O que se pode relatar, verbalmente,
do contato com um objeto, é a redução de um ato que envolve ativações, movimentações e
deslocamento de forças que só ganham corpo e sentido na reverberação do próprio corpo. Um
discurso que não está dissociado daquilo que o corpo experimenta.
As proposições seguintes se destinarão a duplas e por fim a grupos. E ainda sobre a fase
das práticas individuais é possível trazer as palavras de Lygia Clark:
58
(...) o homem encontra seu próprio corpo através de sensações táteis realizadas em
objetos exteriores a si. (...) Entretanto, é o homem que assegura seu próprio
erotismo. Ele torna-se o objeto de sua própria sensação, afirma Lygia em 1969.
(MILLIET, 1992, p.110)
Posterior à fase dos trabalhos que enfatizam a sensibilização individual, seguem as
propostas de redescoberta do eu e do outro. A ênfase dos trabalhos neste período reside na
superação de dualidades presentes nas divisões entre masculino e feminino e que podem se
relacionar com a metáfora do corpo aprisionado, dividido e pertencente a categorias. Como
exemplo desta fase é possível citar o trabalho roupa-corpo-roupa, no qual o corpo é
―encoberto por pesados uniformes de tecido plastificado que ocultam a identidade sexual e
eliminam o contato da pele‖, conforme descrição de Milliet (1992, p.111). O homem veste o
macacão da mulher e a mulher veste o do homem. Nestas ―roupas‖, as aberturas incentivam o
encontro, o reconhecimento do corpo do outro, a exploração tátil e o toque. Um corpo livre
das separações e limitações de gênero surge na relação e reconhecimento entre os corpos.
A partir de 1969 destacam-se as experiências em grupo, e ainda de acordo com Milliet:
―Esse corpo revisitado adquire dimensão social e, entrelaçado a outros, forma uma trama de
comunicação coletiva.‖ (MILLIET, 1992, p. 30). As práticas deste período são conhecidas
como Corpo Coletivo.
Um dos trabalhos desta fase, Mandala (1969), tem como proposta a aproximação, a
relação e a ligação entre indivíduos. Elásticos ligam os participantes pelos pulsos e tornozelos.
Há aqui um modelo existencial que coincide com a superação das dicotomias, quando a ação
de um repercute no todo. A ação de um participante interfere na ação dos demais, pois estão
interligados. Toda ação provoca uma reação. A sensação é a de não estar só, de fazer parte de
um complexo emaranhado onde as partes formam um todo pulsante e dinâmico. Forças se
cruzam e provocam o desejo do corpo de se libertar das amarras. Há a percepção de uma
situação limite na qual a interferência e a presença do outro mobilizam os demais
participantes.
59
Mandala, 1969
A possibilidade de desdobramentos do sujeito surge enquanto registros, memórias e
afetos se movem, transitam e se transformam no contato com o entorno. Neste contexto, Clark
pretende ativar ou estimular o corpo a partir de toques, contatos e ações coletivas que
incentivam o imaginário e a experiência do movimento em um evento livre de padrões,
modelos e regras. Pretende-se reativar a criação no contexto da ação artística e na superação
dos limites entre espectador e obra.
A partir de 1970 Lygia se muda para Paris e atua como professora, ou propositora, na
Universidade de Sorbonne.
Deste período é possível citar Túnel, de 1973. Neste trabalho as pessoas entram em um
tubo de 50 metros de comprimento feito de pano no qual a propositora faz incisões com a
tesoura, criando aberturas por onde os participantes ―nascerão‖. As sensações fazem reviver
os esforços de uma criança para nascer.
Ainda como práticas deste período é possível citar: Rede de Elásticos (1974), que
retorna a ideia de organicidade já presente em Mandala; Canibalismo (1973), na qual uma
pessoa deitada é cercada por outras com olhos vendados que devoram as frutas que lhes
cobrem o corpo; e Baba Antropofágica (1973), quando várias pessoas derramam sobre
alguém deitado fios que saem de suas bocas. Nestes dois últimos trabalhos mencionados há
uma aproximação da ideia de psiquismo arcaico. Como anuncia Clark: ―O corpo
dessublimado e liberto do princípio de desempenho, em sua potencialidade espaço-temporal, é
o lugar irredutível dessa aventura.‖ (MILLIET, 1992, p.147)
Diante das etapas e propostas mencionadas acima é possível perceber que uma das
principais preocupações da artista, sobretudo a partir do final da década de 1960, é a
sensibilização e a inserção do elemento humano como constituinte da obra, como aponta
60
Milliet (1992). Obra e espectador se conjugam, se aproximam e se movimentam juntos. O
espaço da obra e o espaço do espectador se confundem, e é na reverberação do espectador
enquanto corpo em experiência que o evento da arte acontece.
Entretanto, mesmo apresentando aberturas e atos de interação como foco de seus
trabalhos, as elaborações estéticas e o tratamento plástico de Clark não deixam de ser
cuidadosamente estudados dentro das suas propostas.
Em seus últimos trabalhos, os fins terapêuticos das suas práticas ganham destaque e
aparecem em proposições que resgatam os objetos relacionais presentes em seus trabalhos
anteriores. Desta fase de Clark é possível destacar o seguinte comentário de Milliet sobre os
procedimentos explorados pela artista:
Trabalha a recuperação da memória do corpo através desses objetos capazes de
reviver sensações adormecidas, trazendo à consciência experiências difíceis de
verbalizar. (...) O processo e não a obra, torna-se definitivamente o centro de sua
atenção. (MILLIET, 1992, p. 30)
Lygia Clark no final de sua trajetória passa a trabalhar com sessões particulares nas
quais seus pacientes são estimulados a experiências sensoriais através de objetos manipulados
pela artista. São conchas, sacos plásticos cheios de ar, areia ou água e folhas secas, por
exemplo.
Em Clark, o espectador ou o participante é estimulado em suas relações subjetivas.
Relações estas que superam as interpretações e os sentidos prévios que costumam orientar o
olhar e que coincidem com alterações no modo de perceber e experienciar o mundo.
Movimento 4. Percurso de Pina Bausch
Philippine Bausch nasceu no ano de 1940 em Soligen, uma pequena cidade alemã. Aos
15 anos, Pina Bausch, como ficou conhecida, iniciou seus estudos de dança na Escola
Folkwang, em Essen, cidade industrial alemã, e teve aulas com o diretor e coreógrafo Kurt
Jooss (1901-1979) que, por sua vez, foi aluno e assistente de Rudolf Von Laban (1879–1958).
Artista da primeira geração do pós-guerra, Bausch graduou-se em Dança e Pedagogia da
Dança em 1958, na mesma escola onde deu seus primeiros passos como dançarina. Recebeu
uma bolsa para estudar em Nova York entre 1959 e 1962, onde dançou na Juilliard School e
na Metropolitan Opera House. A experiência nos Estados Unidos lhe rendeu influências que
61
marcaram seu trabalho, sobretudo como coreógrafa. Ciane Fernandes destaca pontos da
trajetória da artista:
O trabalho de Bausch combina seu treinamento com Jooss na Escola Folkwang e
como solista na companhia dirigida por ele, a Folkwangballet, com sua
experiência das artes e dança em New York nos anos 60 e 70. Muitos
dançarinos e coreógrafos norte-americanos reagiam então as técnicas de dança
moderna, e juntavam-se a artistas plásticos e músicos na produção de trabalhos
colaborativos, expressando preocupações sócio-políticas sobre direitos humanos,
meio ambiente, feminismo, e questionando o conceito de arte. Artistas
pretendiam derrubar a separação entre arte e vida cotidiana, dançarinos/atores e
platéia. As peças colaborativas envolviam movimentos e trajes da vida cotidiana,
contra uma representação teatral formal e artificial.‖ (FERNANDES, Ciane,
2009).26
De volta à Alemanha em 1962, Bausch trabalhou com Kurt Jooss e em 1973, aos 33
anos, foi contratada como diretora do Teatro de Wuppertal, na cidade de Wuppertal. Pina
Bausch troca o nome do Teatro para Wuppertal Tanztheater. Neste ano e após ―quase 40 anos
depois de o mestre Jooss ter cunhado o termo Tanztheater, Bausch retoma com força uma
ideologia de expressão cênica‖, e ainda conforme Lícia Maria Morais Sanchéz, ―o teatro-
dança mantém-se e renova-se, revolucionando o mundo da cena contemporânea dessa forma
de arte.‖ (SANCHÉZ, 2009, p.46).
A partir daí a artista passa a desenvolver trabalhos com uma particularidade que ficará
conhecida em todo o mundo. Seus bailarinos-atores, também chamados ―performers‖27
, são
de diferentes culturas e nacionalidades. Corpos de diferentes lugares se encontram nas
propostas de Bausch.
Suas ―peças dançadas‖ apresentam elementos encontrados tanto no teatro quanto na
dança. Tanto no que se refere aos processos de criação quanto às produções levadas a público
há uma fusão de procedimentos – geralmente associados ao campo do teatro ou da dança. Este
deslocamento favorece movimentos nos quais as coisas não repousam numa categoria e por
isso incentivam diferentes experiências.
Os bailarinos-atores participam dos processos de preparação dos espetáculos, nos quais
trazem como principal material de trabalho registros e memórias pessoais. Apresentam-se em
suas aparências, conflitos, medos, alegrias e desesperos. Neste estágio da criação, os
26
Artigo: A dança teatro de Pina Bausch: redançando a história corporal. In O Percevejo online ano VII –n7–
1999. Texto online: http://nucleoatmosfera.blogspot.com/2009/09/danca-teatro-de-pina-bausch-redancando.html.
(2007) Acesso: 21.11.2010. 27
Termo usado por Luke Jennings no texto Tanztheater Wuppertal Pina Bausch em publicação online no link
seguinte : http://www.guardian.co.uk/stage/2010/mar/28/tanztheater-wuppertal-pina-bausch, 2010. Acesso:
04/03/2011
62
dançarinos são provocados de modo a tocar em registros e rastros particulares e assim trazer à
tona conteúdos escondidos, adormecidos ou esquecidos em algum lugar de seus corpos.
Relembram a infância, fantasias, eventos e sensações. Todo o material é cuidadosamente
analisado por Pina Bausch e posteriormente organizado em sequências. O processo de
preparação da Wuppertal Tanztheater será aprofundado a seguir no desdobramento dos
tópicos relacionados aos procedimentos de trabalho de Bausch.
É interessante frisar ainda que a vasta produção de Pina Bausch apresenta diferentes
tendências e procedimentos ao longo dos anos. Se compararmos A Sagração da Primavera,
de 1975, e Ten Chi, de 2004, é possível perceber uma diferença enorme tanto nas
composições – que já não se concentram tanto na repetição de gestos e movimentos – quanto
nas interações com o espectador – que acontecem com mais frequência favorecendo um
diálogo ainda mais íntimo entre a obra e o público.
Sobretudo em sua fase inicial, Pina Bausch trata da crise da representação intensificando
ou ressaltando a forma. A artista destaca os efeitos visuais e do universo da alegoria para
denunciar o campo das representações no qual estamos mergulhados.
Mulheres e homens transitam pelo palco usando trajes elegantes como ternos, vestidos
coloridos, sapatos de salto alto e maquiagem. Suas posturas e movimentações em cena
indicam fortes críticas aos comportamentos e aos eventos sociais. Segundo Ciane Fernandes,
a intenção é mostrar a artificialidade que há na própria vida. Esse universo grandioso e
mantido por regras e modelos sofre fissuras quando, por exemplo, os dançarinos exaustos
depois de uma longa série de repetição de um mesmo movimento se apresentam diretamente
para o espectador, sem a proteção dos limites comuns da representação. Quando se
apresentam em suas fragilidades e contradições, eles revelam movimentos que se escondem
por detrás de formas convencionadas e já conhecidas. Como menciona Lícia Sanchéz, uma
nova percepção é solicitada:
As rupturas introduzidas na dança pela coreógrafa acordam nos espectadores uma
nova percepção que subverte a constância ocidental da linearidade da cena herdada
do século XIX. Não surpreende, então, que Bausch se distancie da dança ―pura‖. E
ela mesma declara, ao assumir a direção do Tanztheater, que não lhe interessava
como se moviam as pessoas – buscava o que as movia, comovia, o plano das
emoções mais que o das formas.‖ (SANCHÉZ, 2009, p.46)
No palco, os dançarinos dançam, cantam e falam envolvendo o espectador. As
composições se assemelham à técnica de colagens, muito comum nas práticas artísticas dos
anos 1960.
63
Gestos, movimentos e palavras aparecem em um contexto que permite à plateia trafegar
livremente entre os estímulos da cena, criando sentidos e relações particulares com o evento
artístico. Neste contexto de interação e ativação do espectador, o processo de preparação dos
artistas está diretamente ligado com as aberturas sugeridas nas propostas de Pina Bausch.
Atos, movimentos e ações que transbordam, que reverberam, que tendem a acionar e integrar
o espectador a partir de alterações e deslocamentos.
Movimento 6. Tanztheater e Pina Bausch
Para iniciar este movimento é importante fazer aqui uma pergunta inicial que poderá
orientar conexões entre a prática de Pina Bausch e o Tanztheater. Como o Tanztheater se
desenvolve e como que Bauch atravessa limites da dança, no que concerne a padrões e
formalidades, para trazer novos parâmetros para aquilo que era conhecido como dança e,
consequentemente, para aquilo que era conhecido como teatro?
Existe hoje uma polêmica relativa às definições e aos limites tanto do teatro quanto da
dança. Inquietações que procuram resolver o indeterminado a partir de conceitos estáveis e
definidos. Contudo, vale à pena ressaltar que ―teatro e dança já apresentam simbiose desde os
cultos báquicos‖ (SANCHÉZ, 2010, p. XVI – introdução ), como afirma Lícia Sanchéz. O
comentário de Sanchéz de algum modo considera a aproximação efetuada pela dança-teatro
como fruto de uma experiência cuja gênese é cênica.
Levando-se em conta que teatro e dança são manifestações que se apresentam
entrelaçadas em suas origens, é interessante ressaltar aqui o momento em que uma corrente
conhecida como teatro-dança ou dança-teatro tentou unir, através de um hífen, aquilo que
acontecimentos históricos trataram de separar.
Após divisões entre o campo de ação do teatro e o campo de ação da dança, houve o
questionamento. Das questões surgiram os movimentos e os lugares se afetaram. A dança
escapou da dança e o teatro escapou do teatro. Houve então um toque. Um tocou no outro. Foi
a dança que se aproximou do teatro ou foi o teatro que se aproximou da dança? Não há como
saber ao certo quem caminhou em direção a quem. Contudo, houve uma aproximação e é
deste lugar que pretendo tratar agora – a zona de contato criada entre eles.
Uma das principais figuras responsáveis pela corrente alemã desta manifestação cênica
foi Rudolf Von Laban (1879-1958), também fundador de uma escola expressionista na
64
Alemanha, conforme informação de Sanchéz (2010). Importantes figuras como Mary
Wigman, Kurt Jooss e Pina Bausch foram influenciados por ideias e práticas de Laban.
Durante o nazismo, Laban fugiu da Alemanha e instalou-se na Inglaterra, onde trocou o
nome para Rudolf Laban e renovou a dança a partir de um enfoque teatral. Neste contexto, é
importante considerar ainda a seguinte anotação:
Por não aceitar o vazio existente nas peças de teatro e dança dessa época, trouxe
para o seu trabalho o resultado das próprias paixões e lutas interiores e sociais,
representadas por personagens simbólicas ou estados de espírito puros, vividos
através do movimento utilizado de maneira mais espontânea e sempre como
resultado consciente da união corpo-espírito. (LABAN, 1978 , p.9)
Laban promove uma aproximação do movimento e do gesto com as forças da vida.
Uma coisa não está separada da outra. A matéria de seu trabalho é basicamente o corpo, os
movimentos da vida e os comportamentos cotidianos. Seu intuito é libertar o movimento,
mesmo conservando elementos do balé clássico em seus procedimentos de trabalho, como
indica Sanchéz (2010). Em uma de suas análises, Laban aponta o estudo dos movimentos
emocionais e mentais na relação com o espaço – a ―corêutica‖. Tal estudo parece favorecer
breves contatos de seus métodos de trabalho com princípios desenvolvidos por Bausch. O
corpo, em seus aspectos perceptivos, sensoriais e vitais, está implicado na ação e movimenta-
se em várias direções – não mais guiado por padrões impostos por normas ou modelos
exteriores. Ato e dança se tornam sinônimos, à medida que a dança foge aos modelos de
representação. Sanchéz aponta ainda que em Laban o ser humano é privilegiado ―como ser
infinito na inter-relação corpo-espírito-emoção-vida-movimento, e sua filosofia tem como
meta trabalhar para que as emoções sejam expressadas pelo corpo humano por meio de ações
corporais reais.‖ (SANCHÉZ, 2010, p.4)
E neste ponto é possível estabelecer um vínculo entre os procedimentos propostos por
Laban e adotados por Bausch. Ambos se interessam pelo movimento humano que move o
ator-bailarino à experiência no evento da arte. Tanto para um quanto para o outro a dança está
intimamente ligada à vida e à ação humana. Movimentos são interações com o ambiente.
A partir daí é possível apontar a memória, ou a dramaturgia da memória28
, e o afeto
como elementos fundamentais nos processos sugeridos pela dança-teatro. Ao promover
interações com conteúdos íntimos e particulares, o movimento favorece a ativação e a
28
Termo utilizado por Lícia Maria Morais Sanchéz em seu livro ―A dramaturgia da memória na dança-teatro‖,
para tratar de procedimentos da dança-teatro que dão ênfase à memória e aos registros inconscientes como
caminhos pessoais na construção do processo da cada artista.
65
interação do artista no evento da arte. Sua participação, seu gesto e sua fala vêm
acompanhados de resíduos seus, de excessos que se encontram em vivências suas e que
favorecem a aproximação com o espectador. Ao falar de si, ao se revelar diante do outro, o
artista estabelece uma comunicação direta com o público e promove cruzamentos entre
espaços que estão visualmente separados, como o lugar do espectador e o lugar da obra.
A observação e a apropriação de movimentos do cotidiano são também práticas comuns
na dança-teatro. No acontecimento mais corriqueiro, é possível perceber modos
completamente distintos de abordagem e execução. Há uma carga de afetos, de registros e
marcas que encaminham as atividades mais simples dos modos mais diversos. E é nesse
particular que repousa o maior interesse de muitas propostas desta linguagem em trânsito
denominada dança-teatro. E em considerações sobre Laban:
Para Laban, a dança é o meio de dizer o indizível, da mesma forma que a
característica da poesia é ultrapassar o sentido estrito das palavras. Acredita que a
dança seja um meio de introspecção profunda: revela ao homem suas tendências
fundamentais; a partir deste ponto, projeta-o para o futuro, fazendo-o pressentir sua
personalidade virtual, que poderia realizar indo até o fim de suas pulsões.
(LABAN, 1978, p.9)
Desejos, pulsões e impressões particulares agem como faíscas que impulsionam as
formas e as relações. O gesto que escapa do gesto, a palavra que escapa da palavra e o
movimento que escapa do movimento anunciam vestígios de uma obra que extravasa suas
bordas e acontece no meio, na relação com os elementos circundantes e com o espectador.
Levando-se em consideração os apontamentos acima, é importante salientar que para
Laban há na ação dramática e no teatro um insight, ou um potencial gerador de reflexão e de
ação do homem, como aponta Sanchéz (2010). Este insight ―oferece a experiência inspiradora
de uma realidade que transcende a nossa.‖ (SANCHÉZ, 2010, p.5).
E é deste modo que Laban aproxima teatro e dança – pela experiência do corpo – e em
1920 é considerado como o precursor da dança-teatro, dada a união dos termos e práticas.
Ao unir a dança e o teatro, o coreógrafo e pesquisador enfatiza o movimento humano e a
capacidade de se movimentar em diferentes situações – a partir de diferentes estímulos e
condições que a vida apresenta. Os movimentos e seus desdobramentos aparecem, deste
modo, como um denominador comum entre as artes cênicas.
Na tentativa de aproximar campos, entre 1913 e 1914, Laban ―promoveu cursos na sua
escola, no Monte Veritá, em Ascona, na Suíça, às margens do lago Maggiore‖ (PEREIRA,
2010, p.28), e lá se reuniram escritores, como Hermann Hesse (1877-1962), James Joyce
66
(1882-1941), Rainer Maria Rilke (1875-1926); pintores, como Paul Klee (1879-1940) e o
psicanalista Otto Gross (1877-1920) com o objetivo de formarem uma comunidade artística,
como aponta Sayonara Pereira (2010). Artistas de diferentes campos se concentravam em
torno de investigações em comum. E é nesse ambiente que são criados fundamentos que
fomentarão o Tanztheatre.
De acordo com as autoras Ciane Fernandes e Melina Scialom (2010), há ainda na base
do Tanztheater princípios orientais que justificam aproximações entre vida e arte e a
compreensão do ser humano como presença integrada ao meio.
A dança-teatro contemporânea tem suas origens na obra do pioneiro Rudolf Laban,
no início do século XX, que por sua vez buscou inspiração no oriente, especialmente
nas artes marciais e danças dos dervishes, na compreensão do ser humano como um
todo e integrado ao ambiente. Leis do movimento, como espaço (Corêutica) e
qualidades dinâmicas (Eucinética), ao invés de um estilo de dança ou de uma forma
padronizada e ideal, marcaram um trabalho de amplitude simultaneamente artística e
científica. (FERNANDES; SCIALOM, 2010)29
Outra importante figura no contexto da dança-teatro foi Kurt Jooss, que apresentou a
expressão Tanztheater, já utilizada anteriormente por Laban, sob outra perspectiva. Para
Jooss, Tanztheater era uma forma de arte que poderia dar conta de todas as exigências do
teatro, contudo deveria ser dançada, como afirma Sayonara Pereira (2010).
O termo dança-teatro ou teatro-dança sofre alterações e recebe diferentes definições.
Entretanto, pelo fato do termo Tanztheater ser utilizado em diferentes propostas que estão
longe daquelas indicadas por Jooss ou por Laban, Richard Silkes, em indicação de Sanchéz,
apresenta a seguinte definição para problemáticas relativas ao termo e às práticas: ―O
Tanztheater é um processo, não uma resultante, muda o tempo todo.‖30
Outro aspecto importante do Tanztheater é mencionado por Solange Caldeira (2009) no
livro ―O Lamento da Imperatriz‖, onde a autora afirma que tal prática pode ser compreendida
como um processo intersemiótico entre dança, teatro, pintura, circo, cinema e tecnologia.
No contexto da dança-teatro há uma atenção sobre o efêmero, sobre o ―processo de
criação coletiva fundamentado no encontro e na troca‖, onde ―o renascimento dos corpos
orgânico e biográfico do artista são mostrados pelo imediatismo do ato criador e de sua
produção no espaço.‖ (CALDEIRA, 2009, p.21).
29
Referência: Texto Caminhos, Corpo e Confluências, de Ciane Fernades e Melina Scialom. Localização:
http://idanca.net/lang/pt-br/2010/05/20/caminhos-corpos-e-confluencias/15135. Acesso: 03/01/2011. 30
R.Silkes, But is it dance?, Dance Magazine, p.52 apud SANCHÉZ, 2010.
67
As vanguardas, sobretudo do pós-guerra em meados do século XX, investigam a
revelação de um tempo-espaço que se apresenta na desarticulação da ordem representacional
estabelecida. O tempo real favorece relações que incitam a presença do artista e do espectador
como próprio núcleo do evento artístico. É a movimentação e a interação que favorecerá a
experiência artística. Forças, desejos e impressões que pedem passagem e se fazem presentes
nos procedimentos e práticas de arte.
Seguindo esta tendência, muitas práticas como no caso da dança-teatro se utilizam de
métodos como a colagem. Ações e elementos são agrupados em composições que transitam
entre uma e outra linguagem. Outro dado importante neste contexto de transformações e
hibridismos investigados pelas vanguardas e pela dança-teatro é o deslocamento de princípios
da arte pictórica em direção a atos teatrais e a utilização de espaços pouco convencionais,
como afirma Solange Caldeira (2009):
Todas as combinações são exploradas: música, vídeo, slides, poesia, dança e rádio;
o único denominador comum é a existência desses mesmos elementos num mesmo
local. Há a circulação espontânea entre o artista e a sua arte, que se faz mostrar nas
garagens, nos apartamentos ou em locais incomuns. (CALDEIRA, 2009, p. 22)
E ainda sobre aspectos da dança-teatro, é possível apontar o seguinte:
Definida como consciência corporal e a maneira na qual formamos as coisas, a
natureza simbólica da dança-teatro é associada ao desenvolvimento humano físico e
psíquico. De fato, como colocado por Jacques Lacan, é através da linguagem
simbólica que o ego não apenas interage com o mundo, mas é em si mesmo
construído física e psiquicamente, em sua imagem corporal. (FERNANDES, 2009)
Em uma última consideração sobre a dança-teatro é possível dizer que:
A dança-teatro desenvolveu-se numa arqueologia das maneiras de vida. Gesto,
movimento e espaço são elementos de uma estética de atravessar fronteiras, que
busca desenvolver uma nova maneira de perceber, em oposição a mundos prontos de
imagens que adulteram nossas formas de ver.31
Em relação à dança-teatro proposta por Pina Bausch, Helena Katz faz o seguinte
comentário:
(...) já não se trata de uma maneira nova de representar os mesmos conteúdos pré-
existentes como dança ou como teatro. Pina Bausch cria novas formas-conteúdos.
Inventar formas estéticas é colocar no mundo aquilo que o mundo não conhecia,
parafraseando livremente Pierce. Transitar por singularidades. (KATZ, 1989, p.10)
31
Inge Baxmann, ―Dance Theatre: Rebellion of the Body, Theatre of Images and na Inquiry into the ―Sense of
the Senses‖, in Ballet Internacional, v.13, n.1 (January, 1990), 60, apud FERNANDES, 2007.
68
Movimento 7: Travessias de Pina Bausch
Neste ponto, os procedimentos trabalhados pela artista serão aqui localizados nos ítens
denominados como Travessia A e Travessia B. Tais travessias são indicações de forças que
atuam em todas as direções e sentidos e que somadas, subtraídas, multiplicadas e divididas
poderão sugerir algum resultado de um cálculo que nunca será exato, haja vista a
complexidade dos caminhos percorridos. Entretanto, o interesse nessas travessias reside nas
possíveis conexões entre obra e espectador. De que modo os procedimentos trabalhados com
os atores-bailarinos favorecem estímulos para a ativação e participação da plateia? De onde
vêm as forças que atravessam os limites do palco e invadem o espaço criando um ambiente
onde obra e espectador se tocam?
Entre tantos escolho dois possíveis caminhos de acesso a um trabalho complexo de uma
artista que dirige sua atenção às possibilidades de desvelamento e movimentação da vida entre
formas que oscilam, se fazem e se desfazem em acontecimentos que nunca se repetem.
É simplesmente a vida, em última instância, o material fundamental das criações de
Bausch. Outro dado importante, no que concerne à dificuldade de localização das práticas de
Pina Bausch, diz respeito à variedade de referências e elementos presentes em seus trabalhos.
Conforme informações de Solange Caldeira:
Na sua dança está também o cinema de Walter Murnau (Fausto), Fritz Lang (O
Vampiro de Düsseldorf, Metrópolis) e Robert Wiene (O Gabinete do Dr. Caligari).
Podemos encontrar ainda influências do Dadaísmo do Cabaret Voltaire.
(CALDEIRA, 2009, p. 27)
Travessia A: Quebra de representação e zonas de intensidade
Para responder as questões levantadas acima faz-se importante abordar o interesse de
Pina Bausch em provocar questionamentos sobre a figura do bailarino como eixo de uma
representação pautada em padrões e formas já conhecidas. A crítica à dança como
procedimento que exige movimentos espetaculares aparece em diferentes trabalhos de
Bausch. As formatações previsíveis e a execução de movimentos que reproduzem a técnica do
balé clássico cedem lugar à revelação do artista, do ser humano, daquele que executa as
formas e que foge dos limites impostos por modelos e regras. A partir desta ruptura, ou
crítica, serão discutidos aspectos referentes à criação de espaços potenciais ou de interação.
69
Intensidades que do palco invadem a plateia, experiências de contato e afeto que surgem na
intersecção entre obra e espectador.
Nesta primeira travessia de Pina Bausch saliento a quebra de imagem do bailarino como
um corpo-lugar de técnicas e execução de movimentos formatados e previsíveis.
Tal questão aparece em espetáculos como Nelken, de 1982, quando o ator-bailarino
Dominique Mercy se apresenta para a avaliação do espectador. O solo de Dominique é uma
forte crítica aos movimentos padronizados e aos corpos condicionados pelas regras do balé.
No decorrer das demonstrações de passos virtuosos, o intérprete se dirige ao público e
pergunta: ―É isto que vocês querem? O que você quer?‖
Em Bandoneon, peça criada no final dos anos 1980, os passos virtuosos do balé clássico
são questionados. Bausch critica o universo da dança como um campo orientado por regras e
padrões rígidos. O bailarino Dominique entra em cena vestindo um tutu e executando passos
de balé de forma irônica.
Dominique Mercy em Bandoneon
A partir de tais exemplos é possível perceber que Bausch explora possibilidades de
quebra da imagem do bailarino como um ser pertencente a uma realidade paralela e
espontânea. São colocados em pauta desejos e frustrações que se escondem por detrás de
representações e formas padronizadas. Aparecem lacunas entre a dança, o teatro, a
espontaneidade, a vida e a representação.
A figura do bailarino como representação que se apresenta à apreciação do espectador
sofre alterações, e os gestos que antes cabiam em modelos conhecidos revelam-se em suas
complexidades e contradições. Os gestos se prolongam, atravessam limites e revelam forças
que transitam entre formas.
70
As questões formais da dança, exploradas dentro dos limites do palco, já não são
suficientes para o acontecimento da obra. Como a superação do plano de Lygia Clark anuncia
novos espaços para o acontecimento da arte, a apresentação dos bailarinos, livres de padrões e
fórmulas conhecidas, expande a zona de ação do fenômeno artístico. Já não interessa o que
acontece dentro dos limites de uma área, mas aquilo que escapa e que promove novas
possibilidades de experiência no espectador.
A partir do exemplo acima, é possível analisar as peças de Bausch da perspectiva de um
quadro cênico – utilizando a metáfora do quadro como espaço pictórico que vai sofrendo
rachaduras ao longo das apresentações. Os quadros cênicos de Pina Bausch sofrem abalos e
deslizes, atravessam os limites do palco. O espectador se depara com a revelação de forças
antagônicas que habitam um corpo condicionado por regras e formatações. O corpo que se
apresenta não cabe em formas e não está preso aos limites da cena. Há uma reverberação que
aproxima vida e representação. O visível é apenas uma parcela daquilo que observamos. O
olho perde os referenciais seguros, os lugares já conhecidos e as zonas de conforto para o
olhar. O olhar transita, se move e experiencia novos espaços. Entre obra e espectador surge
uma área instável que comprova que a forma já não cabe mais em si, e que aquilo que se vê
não está separado de quem vê.
O palco surge como um local de transição, como um atrator, como espaço indefinido,
móvel, inclassificável e em vias de ser habitado. ―Pina Bausch sempre subtrai de seus
personagens – e dos seus espectadores – o chão firme de seus hábitos, enviando-os a paragens
distantes nas quais eles se vêem obrigados a encontrar a si mesmos, uma vez que todas as
perspectivas foram invertidas.‖ (SERVOS apud CYPRIANO, 2005, p.36)32
E ainda sobre as aproximações entre obra e espectador em Bausch é possível trazer o
seguinte exemplo que trata da expansão do espaço de ação do palco, a partir da peça Árias:
(...) um dos bailarinos surge no balcão do teatro, portanto, na plateia, e grita para os
que estão no palco que quer se jogar lá de cima. A cena é dramática, um jogo de
encenação entre ficção e realidade. Todo elenco implora para que ele não pule. É
comum que os bailarinos caminhem pela plateia e utilizem as portas laterais como
entrada e saída. Os limites físicos do teatro não são intocáveis para Bausch,
rompendo os limites da representação, como também propunha Brecht.‖
(CYPRIANO, 2005, p.36)
As investigações de Bausch anunciam crises na forma e na área de ação do evento
cênico, como demonstram os exemplos acima, e promovem ainda mais expansões da cena
32
Norbert Servos, ―As muitas faces de Pina‖. Bravo! Número 40. São Paulo, 2000, p.68
71
através da utilização e incorporação de elementos que potencializam a presença dos bailarinos
diante dos espectadores.
É recorrente nos trabalhos de Bausch a presença de elementos orgânicos, como terra,
água, flores, folhas, pedras e objetos que potencializam a experiência do corpo no espaço.
Quando o palco é coberto de terra em A sagração da primavera (1975) ou de água em Árias
(1979), eles aparecem como meios através dos quais os corpos experimentam, agem e reagem
criando atos sempre novos, mesmo que os percursos traçados ou as coreografias sejam as
mesmas. Em contato com tais elementos o corpo interage, reverbera e cria zonas de
intensidades. O ambiente aparece como um potencializador de instabilidades que promoverão
desafios e escolhas durante a atuação dos bailarinos. O meio favorece a presença de um corpo
que pensa em ação.
Nas cenas de Bausch os atores-bailarinos constroem o espaço a partir das suas relações
com os elementos e parceiros de cena, o que estimula a percepção do público em várias
direções enquanto a própria percepção dos artistas é alterada.
O visual e a intensidade que surgem da interação dos bailarinos com os elementos que
compõem a zona de ação do espetáculo reverberam no espectador. O palco é uma zona
provocativa que estimula o risco e desafia o ator-bailarino em suas ações. Aquilo que vemos
sofre constantes transformações já que as relações dos bailarinos com seu espaço de atuação
fazem reverberar um lugar sempre novo. Algo nasce no instante da apresentação e ao
acompanhar este nascimento o espectador participa de uma ação que não está fechada em si,
mas em diálogo com os estímulos e com alterações do ambiente. Lidar com terra, água e
flores, por exemplo, é sempre uma situação que não pode ser mensurada e repetida sem que o
corpo experimente o desafio de encontrar mecanismos de defesa e libertação nesses cenários.
Os elementos alteram as movimentações e agem como estímulos que dificultam a mera
execução de uma sequência. Há um fator do acaso que se faz presente a cada apresentação nos
vínculos que nascem entre o artista e os elementos que compõem o cenário. Cenário este que
pode ser comparado a um ambiente vivo e pulsante que estimula a habitação do artista e do
espectador.
Ainda em relação aos elementos acima mencionados, e que aparecem nas cenas de
Bausch, é possível afirmar que eles compõem uma textura viva que provocará os sentidos da
plateia.
72
Em Nelken (―cravos‖, em português) o cenário é repleto de flores de plástico coloridas
espalhadas pelo palco, homens em trajes elegantes se movimentam entre as flores, rindo e
pulando, uma mulher seminua cruza o palco com um acordeon.
Nelken,1982
O palco de Bausch surge como um ambiente ou cenário sensorial que tende a acionar o
corpo do espectador. Fluxos de prazer e desejo se movimentam ativando vínculos entre obra e
plateia. De acordo com Patrice Pavis é possível dizer que:
(...) fica-se sensível ao espetáculo sobretudo como ação real e material (e não como
produção de imagens, signos e metáforas). O corpo do ator, assim como o do
espectador, é o corpo de um ser real e incarnado e não de um espectador-modelo
abstrato. Interessa aqui as modificações tônico-posturais do espectador, reabilita-se
sua visão ávida, seu toque, seu olfato, sua cinestesia: sentidos muitas vezes
esterilizados ou anestesiados. (PAVIS, 2003, p.216)
Bausch provoca diferentes experiências do espaço na relação entre obra e espectador. Os
elementos que potencializam a ação dos bailarinos estimulam também as reações do
espectador.
Na dança-teatro, observamos a superabundância espacial na utilização cada vez
mais freqüente de diferentes espaços. Pina Bausch, ao levar para o palco água e
terra, troncos de árvores e folhas secas, milhares de cravos ou dezenas de
73
cadeiras, instaura um novo modelo espacial para a dança, até então inédito.
(CALDEIRA, 2009, p.18)
Como se observa na reação do cineasta Federico Fellini33
(1920-1993), em citação de
Fabio Cypriano (2005):
O que Pina Bausch conta no palco e na plateia é um teatro que liberta todas as
inibições, é festa, jogo, sonho, símbolo, recordação, antecipação, cerimônia. É
confronto que se destroi doce e insidiosamente, porque o que a gente quer é que
toda essa harmonia, toda essa leveza, todo esse encantamento não acabe jamais e
que a vida seja assim...‖
A partir daí é possível afirmar que tal evento cênico em suas proposições sensoriais
intensifica o espaço e favorece o transporte do espectador para o centro do fenômeno artístico.
Isto indica que a separação entre espectador e espetáculo, constatada visualmente, não dá
conta da complexidade das relações que se interpõem entre palco e plateia. E ainda sobre a
interação, neste contexto, é possível dizer que a ―neutralização do sistema motor (...) é apenas
aparente: na realidade, o observador age e reage fisicamente com aquilo que percebe.‖
(PAVIS, 2003, p. 226).
Pina Bausch faz apelo a várias percepções sensoriais em suas criações. Essa
multiplicidade torna difícil qualquer tentativa de organização de suas ideias como
um sistema de aprendizado de técnicas ou como código. Artes plásticas, ópera,
teatro, cinema partilham de seu universo em harmonia. Seu interesse está não no
movimento corporal dançante em si, mas no impulso, na vontade interna que dá
origem à ação. (CALDEIRA, 2009, p.56)
Bausch faz assim um ―teatro da experiência‖, de acordo com a definição do crítico
Norbert Servos34
, e o que a artista apresenta é ―um teatro que, através de recursos de
confrontação direta, constrói uma realidade, comunica de forma estética, tangível como uma
realidade física.‖ (SERVOS apud CYPRIANO, 2005, p. 28)
Travessia B: Memórias, registros, perguntas, respostas e desdobramentos ou o sensível
do método Bausch
Nesta travessia localizo os procedimentos de Pina Bausch que têm como intuito acessar
memórias e registros particulares dos artistas como forma de tocar em conteúdos e marcas
33
Frederico Fellini apud Fábio Cypriano, 2005, p.18. Fellini convidou Bausch para participar de seu filme E la
nave va, de 1983. O convite aconteceu após o diretor ter assistido à sua peça no Teatro Argentina, em Roma. 34
Norbert Servos, ―Pina Bausch Wuppertal Dance Theater or the art of training goldfish. Colônia: Rolf Garske,
1984, p.20 apud Fabio Cypriano, 2005, p. 28.
74
escondidas nos corpos que constituem a sua companhia. Deste procedimento, interessa-me o
material humano e vivo que dará conta da revelação de forças que superam modelos
representacionais e anunciam o ator-bailarino como núcleo pontencializador do fenômeno
artístico.
A preparação do bailarino pela coreógrafa coincide com o exercício de um corpo
sensível, que se abre às interferências do ambiente e se coloca diante do outro no instante em
que cruza os limites de modelos e formas padronizadas. O corpo sensível escuta, age e reage.
É um corpo que não termina ou começa nos limites da pele, mas que se apresenta como
trânsito e movimento.
Como método ou legado de Bausch é possível mencionar a imensa lista de perguntas
que estimulam respostas pessoais e íntimas dos artistas. Tais respostas são posteriormente
utilizadas na composição de cada peça (Stück). Os espetáculos nascem de respostas às
perguntas de Bausch. No início das práticas de perguntas-respostas o clima é de inquietação e
resistências, segundo Leonetta Benivoglio35
, e só mais tarde acontece o ―levantar vôo‖,
quando os artistas começam a compreender aquilo de que se trata. Cada artista responde às
perguntas como as entende, não há indicações ou induções neste processo. Particularidades
são reveladas verbalmente ou através de movimentos e ações. Respostas aparecem como
palavras, gestos, imagens, narrativas e sequências improvisadas de dança. Independentemente
da resposta, cada artista deve anotá-la para não se esquecer e para poder repeti-la
posteriormente. Neste estágio da criação Bausch anota todas as respostas pacientemente e
estrutura assim a base fundamental do seu trabalho.
De acordo com Fabio Cypriano, nesta etapa do trabalho ―não há, obviamente, qualquer
forma de controle sobre as respostas apresentadas‖ (CYPRIANO, 2005, p. 33).
(...) o bailarino é livre para colocar-se no plano que achar mais adequado. Ele pode
inventar histórias, mas, mesmo assim, parte de um imaginário concreto que expressa
algum desejo pessoal. Muitas vezes não são perguntas, mas apenas palavras.
(CYPRIANO, 2005, p.33)
Como exemplo de tais práticas é possível citar as provocações de Bausch na preparação
para a peça Valsas, de 1982:
Fazer uma armadilha a alguém/ consolar/ um jogo com o próprio corpo/ o que
receberam dos seus pais/ renunciar / verão/ preconceitos que nos fazem sentir
35
Leonetta Bentivoglio, ―O método Bausch‖ in L. Bentivoglio, O Teatro de Pina Bausch, fundação Calouste
Gulbenkian, trad. Portuguesa, Lisboa, 1994, p.25 apud GIL, 1994, p.216.
75
marginalizados / qualquer coisa de puro / hinos / uma poesia de amor / atenção, o
programa mudou. (CYPRIANO, 2005, p.33)
As sessões com o grupo de artistas parecem coincidir com um fenômeno que promove
experiências de ―verdade‖ e de ―identidade‖ profundas e pessoais, segundo depoimentos dos
integrantes da Cia. de Wuppertal e de acordo com José Gil (2001, p.216). Sobre tais
características o autor considera ainda que o ―método Bausch parece fazer vir à superfície
camadas soterradas de emoções e sentimentos‖ (GIL, 2001, p.216). E de acordo com Fabio
Cypriano: ―Seus bailarinos representam no palco a si próprios. Nos espetáculos são chamados
pelo nome, mostram fotos antigas, contam experiências vividas. Cria-se assim uma
cumplicidade entre público e bailarino, um jogo entre realidade e representação.‖
(CYPRIANO, 2005, P.29)
Mas quanto às aproximações do seu método com procedimentos terapêuticos, a artista
faz questão de salientar que seu intuito não é fazer terapia. Muito embora, integrantes da sua
companhia afirmem que as práticas tendem a engajá-los de uma maneira bastante particular
nas ações propostas pela artista.
A partir deste ―método‖, é possível se observar uma intensa simbiose produzindo-se
entre o palco e a plateia, encadeando a comunicação entre o bailarino e o espectador. O
fenômeno pode se dar sem mediações – como uma extensão empática direta – ou através das
reverberações imaginárias então produzidas, quando falas e gestos tornam-se elementos
desencadeadores fundamentais. Eles trazem ressonâncias do corpo, daquilo que o corpo
queria falar e não fala. A relação com o público tende a se dar em um estágio não-verbal no
qual as palavras e as frases trazem consigo registros e memórias que se encontram no corpo
como materiais ou fluxos arcaicos e infantis que sofrem atualizações ao serem agitados, de
acordo com José Gil (2001).
Destas relações, um espaço potencial parece ser criado tanto pelo olhar do público, que é
estimulado às alterações de percepções, quanto pelas ações dos atores-dançarinos, ao
interagirem entre si e com os elementos de cena criando reverberações que transformam o
evento cênico em ambiente de experiências compartilhadas. As qualidades do evento, deste
modo, só podem ser compreendidas e assimiladas enquanto processo e relação.
Nas peças de Bausch, uma palavra, um movimento ou um gesto aparecem sempre
acompanhados de informações não definidas, de pistas de afetos, de esboços e vibrações de
movimentos. Constituem manifestações do invisível habitando o visível da cena, tornando-a
densa e porosa.
76
Qualquer coisa que passa entre e a fala e o silêncio e é o murmúrio do corpo que
compõe o seu sentido irradiante. Não o seu contexto, mas aquilo que toda a fala
produz sobre as camadas não-verbais corporais ou psíquicas, ressonâncias,
sensações, afetos e movimentos de pensamento que não pensam em nada.‖ (GIL,
2001, p.218)
O que parece fundamentar as ações dos bailarinos em cena são as práticas anteriores de
acesso a registros pessoais. Tais registros aparecem como um ―corpo de pensamento‖, para
utilizar as palavras de José Gil. Este corpo de pensamento se aproxima da ideia de ação, de
um pensamento que não pode ser pensado, mas apenas vivido pelo corpo. Um pensamento
que se desenvolve em um tempo-espaço que solicita a presença deste mesmo corpo. O corpo
de pensamento se distingue da noção de pensamento como imagem ou representação de
fantasmas e prospectos que habitam o corpo. Um corpo de pensamento é então um corpo em
experiência.
Em uma das cenas de Kontakhof, de 1978, vários bailarinos se aproximam de uma das
bailarinas e a tocam de várias maneiras. Apertam seu nariz, sua face, esfregam-se em seus
braços, pernas, puxam seus cabelos, coçam sua pele e tudo isso acontece sem a
intencionalidade de uma representação ou simulação. As ações e os gestos são verdadeiros,
acontecem de fato e se desenvolvem diante do espectador. Para esclarecer tal exemplo,
seguirei com as reflexões de José Gil:
Coçar o pescoço dessa mulher não é o que eu queria fazer (e não posso), mas o que
acompanha, no plano dos gestos emocionais, a minha atitude e o meu pensamento
quando estou diante dela. Digo então: o meu pensamento acaricia-a (porque há
pensamentos acariciantes, com um ritmo e um movimento acariciantes); ou ainda: o
meu pensamento afasta-se violentamente dela; ou: pensar nela é coçar-lhe o pescoço
(como só as crianças podem fazer). A minha resposta a um ―amo-te‖ apaixonado
exprimi-se melhor no gesto de deixar cair por terra a mulher que me diz do que em
qualquer réplica verbal que seja. (GIL, 2001, p. 219)
Kontakthof, 1978
77
Tais falas-movimentos não ilustram alusões a movimentos. São ações que se fazem
presentes no instante presente. Pensamento e ação acontecem ao mesmo tempo. Pensamentos
que não poderiam existir sem a presença do corpo.
O impensável do pensamento e o inatuável do gesto reverberam no corpo e convocam
múltiplas vozes, palavras e movimentos silenciosos que comunicam no nível das pequenas
percepções. São prolongamentos e forças invisíveis que, como as emoções e todo o tipo de
afeto, compõem o complexo universo daquilo que se manifesta a partir de oscilações e
intervalos da forma. O invisível ressoa no material concreto – neste caso, o corpo, como
aponta José Gil (2001).
José Gil conclui seu pensamento dizendo: ―Toda a fala se prolonga em gestos virtuais.
Quer dizer, toda a fala comporta múltiplos gestos.‖ (GIL, 2001, p.220). É possível afirmar que
Pina Bausch trabalha nesta zona de interesse. Movimentos e falas que se multiplicam, se
proliferam e não comunicam apenas o já conhecido. E de acordo com Helena Katz (1989,
p.9): ―Dança-ato; palavra-ato. Fatos e coisas explicitando a impossibilidade do em-si, pois
plasmados como linguagem conhecida, tramam eventos inéditos.‖
Ainda no que se refere aos processos de preparação dos artistas e as possíveis
reverberações nos vínculos entre obra e espectador é possível apontar os processos de criação
nas residências da Cia. de Wuppertal por diferentes cidades.
Algumas produções de Pina Bausch são pautadas em experiências de lugares ou
passagens por cidades e países. Nestes trabalhos, a companhia se desloca para uma cidade e
das vivências dos atores-bailarinos nesses lugares são recolhidos e produzidos os materiais
que servem de base para a criação dos espetáculos assinados pela coreógrafa. Entre os
espetáculos que se inserem neste contexto de produção é possível citar Nur Du, que foi
inspirado em suas visitas ao oeste norte-americano; Der Fenster Putzer, em Hong Kong;
Água, no Brasil; Masurca Fogo, em Lisboa; Nefés, em Istambul e outros criados em cidades
como Roma, Palermo e Budapeste.
Nestes espetáculos, a artista investiga possibilidades de afetos com as cidades. Afetos
que aparecem como interações, experiências, impressões, gestos que falam sobre lugares
desconhecidos do mapa e que reverberam no contato com o espectador. Nas palavras de
Bianca Scliar36
, ―a maior realização de Bausch é ter conseguido guiar-nos por espaços que
36
Texto de referência: Textos Dançar afetos com a cidade: Pina Bausch, Tanztheater Wuppertal e Istambul por
Bianca Scliar Mancini • 02/04/2009. Site: http://idanca.net
Localização:http://idanca.net/lang/pt-br/2009/04/02/dancar-afetos-com-a-cidade-pina-bausch-tanztheater-
wuppertal-e-istambul/10130. site acessado em 05.12.2010.
78
não são mapeáveis, que não são tombáveis e que são inexistentes geograficamente.‖
(SCLIAR, 2009).
Movimento 7. Breves considerações sobre o corpo neste contexto
O corpo aqui discutido, nas entrelinhas das práticas de Lygia Clark e Pina Bausch,
coincide com a noção de um corpo de pensamento, um corpo vibrátil37
ou um corpo real. O
conceito de corpo real, também criado por Deleuze e Guattari, ―comporta todo o virtual do
seu desejo, ultrapassando o corpo anatômico da medicina e o corpo-fantasma da psicanálise.‖
(GIL, 1997, p. 184).
A ação deste corpo acontece no espaço e nas múltiplas relações com objetos e estímulos.
Corpo este que não está separado dos caminhos que percorre. Corpo que coincide com seus
trajetos e movimentos. E é neste ponto de intersecção, quando as coisas todas se cruzam
através de toques físicos ou virtuais, que as interações acontecem.
O corpo, seja ele do espectador ou do dançarino, surge como lugar onde ressonâncias
anunciam transformações e implicações de toques e aproximações entre coisas que pareciam
distintas. Sob esta perspectiva, o corpo é o espaço que possibilita a visualização do invisível, a
experiência daquilo que não pode ser explicado e a compreensão que não cabe em discursos
intelectuais. Quando a pele deixa de ser um limite do corpo e é entendida como conexão e
espaço de interação e criação de novos lugares.
Entretanto, no âmbito desta pesquisa o corpo do espectador é o principal alvo de
investigação no que se refere aos vínculos entre obra e espectador. E é na vibração deste
corpo que um campo de partilha do sensível é inaugurado. Lugar que não separa obra e
plateia.
37
“Corpo vibrátil” é uma noção que a autora Sueli Rolnik vem trabalhando desde 1987, quando propôs pela
primeira vez em sua tese de doutorado, publicada em livro em 1989 (Cartografia Sentimental. Transformações
contemporâneas do desejo. Reedição: Porto Alegre: Sulina, 2006, 3a edição 2007). Tal noção designa a
capacidade de todos os órgãos dos sentidos de deixar-se afetar pela alteridade. Ela indica que é todo o corpo que
tem tal poder de vibração às forças do mundo.
79
ATO 3 – Ao espacializar
O conceito de espacialização aqui sugerido coincide com a superação do espaço
ilusório, do espaço da representação, e apresenta a obra como movimento que cria lugares,
que inclui o espectador e que acontece como dinâmica em constante atualização.
O intervalo entre obra e espectador em um contexto que localiza a ação artística como
experiência prevê interações e reverberações que solicitam a presença do corpo – do
espectador, no contexto desta dissertação – como lugar instável e que necessita de
perturbações constantes.
Espaço e corpo se constroem mutuamente como lugares em trânsito que se moldam a
partir de relações, percepções e sensações. Caminhos com muitos acessos. Espaço e corpo
como potências de interação.
Movimento 1. Quando o espaço se molda
É importante destacar que o mundo – lugar de passagem e trânsito – costuma ser
estudado, analisado e classificado de acordo com medidas abstratas que se prestam ao
objetivo que fixar e definir uma ideia e um conceito sobre um território incomensurável. O
mundo real é um mundo descrito a partir de abstrações, como medidas de tempo e espaço, que
projetam experiências quantitativas e explicações que procuram reter um lugar que está em
constante movimento. Há uma tendência que visa medir a qualidade e transformá-la em
quantidade como modo de assegurar uma área limitada e controlável. E sobre este aspecto, é
interessante notar:
Quando um cozinheiro, preparando um ensopado, acrescenta sal, acrescenta sal,
prova o sabor, põe um pouco mais de sal, prova de novo e então diz: ―Agora está
perfeito‖, podemos ter alguém atrás dele registrando a afetiva quantidade de sal
acrescentada. E isso seria a abstração quantitativa que corresponde a uma
experiência de sabor que não foi absolutamente uma abstração. Entretanto, para
trazer as pessoas de volta ao mundo real, você precisa suspender temporariamente o
pensamento abstrato delas, porque é através da abstração que se divide tudo em
diferenças. É através da abstração que você chega à noção de que você é uma coisa
e eu sou uma outra e de que os acontecimentos são separados uns dos outros do
mesmo modo como os minutos são separados. (WATTS, 2002, P.61)
Então o mundo como compreensão intelectual é uma abstração e não algo concreto. O
conhecimento do mundo, neste caso, parece coincidir com o conhecimento de medidas
abstratas e não com a experiência do espaço. Neste contexto, vale à pena pontuar tal questão a
partir da seguinte reflexão:
80
Como um cientista trata o que ele chama de mundo material? Resposta: através de
métodos quantitativos. Como se estabelece a quantidade? Pela medição, pelo
número, isto é, representando a natureza em termos de categorias abstratas –
metros, centímetros, segundos, graus e assim por diante -, todas elas exatamente tão
abstratas quanto as linhas de latitude e longitude em um globo. (WATTS, 2002,
p.60)
Entretanto, a experiência do mundo e do espaço é algo que ultrapassa os entendimentos
abstratos e acontece diretamente na interação do sujeito com o entorno. Considerando os
apontamentos de Alan Watts:
O mundo que pode ser visto e sentido sem abstrações é o mundo no qual
você está ligado a tudo que existe, ao Tao e a todo o curso da natureza. No
entanto, você tem sido ensinado de modo diferente porque tem sido logrado
e manobrado por pessoas que tagarelam e explicam, e que já hipnotizaram a
si mesmas com uma visão do mundo que é bastante abstrata, bastante
arbitrária e não necessariamente do modo como as coisas são. (WATTS,
2002, p.62)
A partir desta abordagem de espaço é possível trazer a noção de espaço potencial de
Donald Woods Winnicott (1896-1971), que deriva do seu conceito de espaço transacional.
Para o psicanalista inglês, o espaço transacional está relacionado com as maneiras de captar e
apreender o mundo. Tal espaço pode ser compreendido a partir das relações que as crianças
estabelecem com objetos por elas escolhidos, como bonecas, fraldas de pano, chupetas etc.
Depois de alguns meses de vida a criança começa a perceber a separação entre o seu
corpo e o da sua mãe. E é desta experiência que a criança sentirá a necessidade de encontrar
meios e elementos que a auxiliem em sua relação com o mundo. Surgem então os objetos
transacionais e com eles o espaço transacional. E é deste lugar que a criança parece lidar
melhor com as suas angústias e dialogar com o entorno. Acontece um jogo particular que
permite à criança interagir com o meio.
Segundo Josette Féral (2003), o espaço transacional é potencial e virtual, podendo ser
físico ou mental. Ainda de acordo com a autora ―Winnicott toma esta ideia como base de sua
análise e mostra que a cultura cria seu espaço potencial através da arte. Para que a arte exista
deve haver o espaço potencial.‖ (FÉRAL, 2003, p.42).
O espaço potencial, na concepção de Winnicott, não se limita aos aspectos reconhecidos
visualmente, da esfera das propriedades físicas, mas também aos princípios e às dinâmicas
mentais. De modo que este espaço pode estar nos olhos daquele que vê, como nos olhos do
espectador, como afirma Féral.
Ao tomar então como base o espaço potencial, que não é aquele onde coisas são
dispostas, mas sim aquele que surge da relação, é possível seguir com o movimento seguinte.
81
Movimento 2. Espaço e corpo, instâncias entre a obra e o espectador
Os procedimentos de Pina Bausch e Lygia Clark mencionados no ato anterior sugerem
possíveis diálogos com a noção de espaço investigada no contexto da arte contemporânea no
que se refere ao lugar como campo potencial. Tal noção se interessa pela transformação do
espaço ordinário, favorecendo alterações na percepção e na experiência do acontecimento
artístico.
Um espaço de relação surge entre obra e espectador. O corpo e o espaço aparecem como
instâncias, dinâmicas, interações e movimentos. O corpo aparece como suporte da experiência
artística e uma nova perspectiva quanto à configuração de espaço é apresentada. As relações
preveem o deslocamento do corpo em suas interações e reverberações.
Corpo
No âmbito desta pesquisa destaco a presença do corpo do espectador, muito embora a
preparação e o modo como os corpos dos bailarinos-atores da Cia. de Pina Bausch se colocam
diante da plateia sejam um dos principais fatores desta ativação.
A noção de corpo aqui adotada coincide com a ideia de um ―corpo à espera de‖, como
sugere José Gil em seu livro ―O Movimento Total‖; ou como ―becoming-body‖, (―tornando-se
corpo‖, em português) como indica Erin Manning38
. Ambas as noções favorecem a
compreensão de um corpo que está em constante mobilidade e transformação. Seus
movimentos são atravessados por pequenas interferências que provocam contrastes,
diferenças e a ativação da memória.
Enquanto a função da arte é questionada, o corpo do espectador em sua presença ativa
no espaço é alvo de especulações e propostas que compreendem a arte como experiência. Tal
experiência implica na ativação de forças que impulsionam o corpo em direção à construção
de novos sentidos. Há então uma ação de mão dupla. O ambiente estimula – muitas vezes em
sua própria presença – e o corpo ao interagir com o ambiente aciona conexões, trajetos e redes
que se atualizam no espaço onde ele transita. O corpo se altera e altera o ambiente. O ato
acontece em curvas. As interferências do meio afetam os movimentos através de pequenos
desvios que alteram os trajetos lineares previstos. A linha reta se desestabiliza e percorre
38
MANNING, Erin, no artigo ―Prepositions for the Vergue – William Forsythe´s Choreographic Objects‖.
Inflexions No.2 ―Nexus‖ (December 2008) www.inflexions.org
82
caminhos que sugerem diferentes direções. Na mudança do sentido do movimento acontece a
curva, o instante em que a trajetória surpreende. Um novo direcionamento é apontado e novos
caminhos podem ser percorridos – no âmbito artístico ou cotidiano.
No contexto abordado acima, o corpo aparece como ―poder de transformação e devir‖,
conforme síntese criada por José Gil (2007) em suas reflexões sobre Deleuze e Guattari.
A redescoberta do corpo sugerida e proposta por ações de vanguarda coincide, de algum
modo, com a descoberta do espaço (ou vice-versa) como lugar que não está dissociado das
coisas e dos acontecimentos, e favorece uma renúncia à representação. Análises e julgamentos
são reconsiderados em prol de uma ―percepção total‖ que prevê a premência da subjetividade
e da experiência estética em relação aos códigos conceituais que delimitam zonas de ação
para o evento da arte.
Ao discorrer sobre a presença do corpo nas vanguardas artísticas, Renato Cohen (1989)
aponta:
Jackson Pollock lança a idéia de que o artista deve ser o sujeito e o objeto de sua
obra. Há uma transferência da pintura para o ato de pintar enquanto objeto artístico.
A partir desse novo conceito, vai ganhar importância a movimentação física do
artista durante sua ‗encenação‘. O caminho das artes cênicas será percorrido então
pelo approach das artes plásticas: o artista irá prestar atenção à forma de utilização
de seu corpo-instrumento, a sua interação com a relação espaço-tempo e a sua
ligação com o público. (COHEN, 1989, p.44)
No contexto dos processos artísticos que se concentram nas interações e na presença do
corpo, os aspectos visíveis e invisíveis deste mesmo corpo desencadeiam análises, estudos,
práticas e reflexões que pretendem promover o acontecimento da obra na ação, na interação
do sujeito com o ambiente. O corpo é descoberto pelas vanguardas como possibilidade de
suporte, em uma concepção que o anuncia como espaço móvel, maleável, vulnerável e sujeito
a interferências em distintos campos da arte. Para elucidar tal condição do corpo é possível
mencioná-lo como órgão que capta as mais sutis vibrações do mundo, como anuncia José Gil
(2004).
Espaço
Para tratar do espaço, inicio com a seguinte citação de Didi-Huberman, estudioso de
psicanálise, crítico e teórico da arte:
Portamos o espaço diretamente na carne. Espaço que não é uma categoria ideal
do entendimento, mas o elemento despercebido, fundamental, de todas as nossas
experiências sensoriais ou fantasmáticas. (...) As imagens — as coisas visuais —
83
são sempre já lugares: elas só aparecem como paradoxos em ato nos quais as
coordenadas espaciais se rompem, se abrem a nós e acabam por se abrir em nós,
para nos abrir e com isso nos incorporar (DIDI-HURBERMAN, 1998, p.246-
247, apud Tania Rivera39
)
O espaço concebido no Ocidente como lugar dentro e fora constitui o interior no sujeito
ou no objeto e o exterior na realidade que o cerca. Assim, sujeito e ambiente aparecem
separados na sua origem, mobilidade e apresentação no mundo. E é pautada nesta cisão que a
arte ocidental se desenvolve, até que sejam lançadas as interrogações anunciadas pelas
vanguardas no final do século XIX e início do século XX na Europa. Neste momento
concepções menos dualistas, muitas vezes fundamentadas em princípios de procedimentos
orientais sobre a concepção do espaço, do objeto e do sujeito, tratam de reformular o lugar do
acontecimento da arte. Os planos se tocam e uma plataforma móvel e comunicante assegura o
trânsito entre objeto, sujeito e espaço.
Sobre tais transformações afirma Mario Pedrosa:
Não se trata mais de um espaço contemplativo, mas de um espaço circundante. Já
em 1922, Maholy-Nagy, com Alfredo Kemeny, lançavam, nas pegadas de Gabo-
Pevsner, um manifesto sobre o sistema de forças dinâmico-construtivo que,
―ativando o espaço‖, permitiria ao homem, ―até aqui meramente receptivo em sua
observação das obras de arte, experimentar uma intensificação de suas próprias
faculdades, tornando-se ele mesmo um parceiro ativo das forças que por si mesmas
desabrochavam. (CLARK, 1980, p. 17)
Este novo espaço que surge após rupturas e alterações em estruturas pautadas em
normas e referenciais fixos revisa princípios fundamentais para os processos artísticos. O ato,
ou a ação desencadeada, é um dos principais alvos de interesse nos procedimentos no início
do século XX e, sobretudo, na década de 1960. Neste ato está implicado o espaço, o sujeito e
o objeto. A interação entre eles provocará transformações na concepção do evento artístico,
assim como em outras áreas do conhecimento.
As vanguardas do início do século XX experimentaram na performance, no happening,
na live art e em movimentos outros, rupturas que provocaram expansões de limites entre um e
outro campo artístico e questionamentos sobre a função e o espaço da arte. O espaço das
representações foi transformado em tempo-espaço ―vivo‖. As influências de práticas orientais
são percebidas principalmente nas orientações de aqui-agora e arte e vida. Aproximações
39
Localização, http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S151614982008000200004&script=sci_arttext.
Acesso dia 17.05.2011
84
entre o cotidiano e o fenômeno artístico transportam a arte de uma posição sacra e inatingível
para os movimentos do cotidiano.
Sobre investigações das vanguardas artísticas, Jorge Glusberg aponta que havia:
(...) uma busca de envolvimento do público na atividade artística. Poetas, pintores,
dramaturgos e músicos denunciavam a estagnação e o isolamento da arte de então. O
que se buscava era uma vasta abertura entre as formas de expressão artística,
diminuindo de um lado a distância entre vida e arte e, por outro lado, que os artistas
se convertessem em mediadores de um processo social (estético-social).
(GLUSBERG, 2009, p.12)
No livro ―Performance como Linguagem‖, Renato Cohen utiliza as palavras de John
Cage: ―Gostaria que se pudesse considerar a vida cotidiana como um teatro‖. (1989, p.38).
O lugar que surge, da revisão de conceitos apontada acima e das aproximações entre arte
e vida exploradas pelos movimentos de vanguarda é um espaço de interações ou conforme
considerações de Beatriz Scigliano Carneiro40
: ―espaços onde se reuniram resquícios de vários
outros espaços e tempos formando um conjunto que se deslocaria do cotidiano, permitindo
experiências paralelas diversas‖ (CARNEIRO, 2004, p.40). Foucault, em considerações de
Carneiro (2004), afirma ainda que no século XIX o foco era o tempo e que ―nossa época atual
será talvez a época do espaço.‖41
Sob este enfoque, o tempo não aparece de modo independente ou deslocado do evento,
mas como agente e distribuidor de elementos no espaço, como indica Carneiro (2004).
Inaugura-se então um espaço compreendido como sistema de relações e não como lugar vazio
que abriga coisas e pessoas. Lugar é espaço vivenciado, descrevê-lo é descrever as relações
que o configuram.
Movimento 3: A obra como lugar de habitação
Ambientes de interação são lugares que pressupõem a habitação, espaço por onde
transitam desejos, afetos e forças que transformarão o lugar. O espaço se move, afeta e é
afetado. Sujeito, objeto e espaço se tocam. Este toque pode ser tanto físico quanto virtual.
Virtual como aquilo que escapa aos contornos visíveis e se prolonga pelo espaço provocando
ressonâncias e deslocamentos.
40
Artigo de Michel Foucault (1926-1984) ―Dos espaços outros‖ apresentado na conferência de 1967 e liberado
para publicação em 1984. 41
Des espaces autres, Dits et Ecrits IV, p. 752 apud CARNEIRO, 2004, p.41
85
A criação de ambientes, lugares, vias, trajetos e passagens coincide com a presença e a
experiência do espectador quando sua presença é fundamental para o acontecimento artístico.
Para abordar tal temática farei referências a Hélio Oiticica que podem auxiliar na
visualização do ambiente de interação que aparece em traços das artistas Lygia Clark e Pina
Bausch.
Originário das artes visuais, o artista Hélio Oiticica é um dos nomes mais importantes
no que diz respeito às propostas de interação. Seus interesses se centralizam na criação de
trabalhos que estimulam a ação do espectador em suas relações como o entorno, sugerindo as
obras ambientais.
Um de seus trabalhos é um labirinto penetrável criado ―para estimular o espectador
dentro de uma rede de relações com coisas a serem apreendidas fisicamente (pisar na areia,
por exemplo)‖, como descreve a curadora e crítica de arte Lisette Lagnado42
. Este trabalho,
intitulado Tropicália, dá nome a um dos maiores movimentos artísticos e culturais do Brasil
no final da década de 1960 – a Tropicália – e contribui para o aparecimento de clichês
referentes às particularidades brasileiras (brasilidades) na relação que seu povo mantém como
o corpo. Entretanto, ainda de acordo com apontamentos de Lagnado,
(...) essa cena obviamente tropical, que trazia plantas, araras e seixos, entre outros
elementos, contribuiu para louvar uma espécie de folclore nacional (contra o qual
Oiticica dedica em vão fartas críticas) quando se deveria prestar mais atenção para
a vontade do artista de ―criar ambientes para o comportamento‖. (LAGNADO,
2004)
Nestes movimentos que pretendem acontecer na fusão da pele com o ambiente existe
uma intenção de articular aberturas no corpo para aquilo que está por vir, o desconhecido e o
indeterminado, segundo Lagnado. E é neste sentido que as produções de Hélio Oiticica
inauguram, no momento seguinte, as ―ordens de manifestações ambientais‖, com a criação de
Núcleos e Penetráveis, conforme indica Luciana Figueiredo na introdução do livro ―Aspiro ao
Grande Labirinto‖ (1986). Oiticica transita da teoria do Não Objeto, de Ferreira Gullar, que
questiona a dissolução do objeto de arte para a criação em um espaço coletivo que integra e
solicita a participação. O artista radicaliza e pensa a ―obra‖ como o ―mundo‖.
42
O artigo de referência "Longing for the body", ontem e hoje‖ foi escrito para a mostra "Brasil - Body
nostalgia", com curadoria de Katsuo Suzuki. A mostra foi realizada em 2004 para duas instituições:
The National Museum of Modern Art de Tokyo e The National Museum of Modern Art de Kyoto. Os
artistas convidados foram: Tarsila do Amaral, Miguel Rio Branco, Adriana Varejão, Dias & Riedweg,
Lygia Clark, Ernesto Neto, Mira Schendel, Brígida Baltar e Rivane Neuenschwander. Agradeço ao
curador Katsuo Suzuki a autorização para republicar este ensaio, sem a qual ele permaneceria inédito
no Brasil.
86
Movimento 4: Uma obra, do objeto ao quase-corpus
Primeiramente, para tratar do conceito de objeto é importante contextualizá-lo no campo
dessa investigação – a arte. Vinculada à ideia de ―obra de arte‖, a palavra ―objeto‖ esteve
condicionada por muitos séculos, sobretudo no âmbito ocidental, a um sistema organizador de
códigos vigentes que se configuram de modo a apresentar-se diante de um sujeito. Em um
momento anterior aos questionamentos lançados pelos movimentos e ações da vanguarda
histórica, a ―obra de arte‖ é uma possível analogia de um objeto que se lança à apreciação.
Sujeito e objeto se confrontam a partir de espaços distintos. O objeto é uma área de
representação, de ficção, e uma construção que se apresenta ao sujeito. Nesta configuração
que trata de separar sujeito e objeto, a análise e a observação tornam-se os principais elos
entre os lugares do sujeito e os do objeto.
Neste movimento e na superação da noção acima apresentada, proponho a partir da
leitura do ―Manifesto Neoconcreto― a visualização da obra de arte como um corpo ou um
organismo em constante transformação, como um sistema que se abre à medida que permite o
trânsito dentro e fora e a relação com o entorno. O ―Manifesto Neoconcreto‖ questiona o
conceito de obra de arte e critica concepções que fazem analogias à obra como máquina ou
objeto. É possível perceber que a obra é compreendida como um quase-corpus, isto é, um ser
cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que,
decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta,
fenomenológica.‖43
O que o ―Movimento Neoconcreto‖ pretende é reacender a experiência
primeira do real, conforme indicações nele contidas:
A obra como organismo, como organismo estético, que não se encerra em si, mas
que se abre para o entorno, que se faz na relação e que não solicita ―de si e do
espectador apenas uma relação de estímulo e reflexo, mas que fala ao olho como
um modo humano de ter o mundo e se dar a ele, fala ao olho-corpo e não ao olho-
máquina.‖
Pensar a obra como organismo, como sistema aberto e em comunicação com o
ambiente, eis o que defende o ―Manifesto Neoconcreto‖. Abordar a obra como organismo
implica ainda refletir sobre a espacialização da obra abordada no Manifesto, e que trata do
43
Manifesto Neoconcreto, texto republicado em ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo
brasileiro‖, de Ronaldo Brito.
87
fato de que ela está sempre se fazendo presente, ―está sempre recomeçando o impulso que a
gerou e que ela era já a origem.‖44
.
Movimento 5: Aproximações de pontos visuais e cênicos ou a liberação da arte
Nas artes visuais, o declínio da pintura figurativa associa-se à transferência da
objetivação para a impressão – Impressionismo. Neste momento é possível observar a
dissolução dos objetos em manchas de cor e a representação usual das coisas se confundir
entre reflexos luminosos.
A partir daí, o objeto representado vai perdendo cada vez mais a significação, e como
consequência, o quadro, como objeto, ganha importância. Como exemplo é possível ressaltar
o momento em que Piet Mondrian retira da tela todos os vestígios do objeto, não apenas a
figura, mas também a cor, e sobra-lhe então a tela em branco que ressaltará a presença
material da tela e a transformará no novo objeto da pintura.
Se para um pintor tradicional a tela em branco representava o suporte material sobre o
qual ele representava espaços, para Mondrian a tela em branco é uma alternativa que tem
como principal função a transcendência e a realização da obra no espaço real. Vinculada a
esta ideia aparece a problemática da moldura, que no primeiro momento atua como um meio-
termo entre a ficção e a realidade, e em Modrian esta mesma moldura perde o sentido já que
não se trata mais de criar um espaço metafórico protegido do mundo, e sim de utilizar-se do
espaço real para criar uma nova significação.
Enquanto os europeus investigavam problemáticas estéticas da pintura no próprio
quadro, os artistas americanos (Brasil, México, Estados Unidos etc.) expandem suas
experiências para outros domínios ou gêneros. Se a pintura moderna não alcançou nas
Américas a profundeza ou a transcendência puramente estética, em termos visuais e formais,
como na Europa, conforme Mário Pedrosa (1981), é nos países americanos onde foram feitas
as tentativas mais audaciosas de restaurar uma dignidade que insere o homem e o humano nos
processos artísticos dos quais ele havia sido excluído.
Os artistas mexicanos ao constatarem as limitações da pintura de cavalete foram os
primeiros a experimentar alargamentos no campo pictórico quando dirigiram sua atenção ao
afresco, como anuncia Mário Pedrosa (1981). Na tentativa de resgatar a participação da
44
Manifesto Neoconcreto, texto republicado em: ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo
brasileiro, de Ronaldo Brito.
88
sociedade no evento da arte, o muralismo mexicano, pintura realista e monumental, liga-se ao
contexto social e político do país. O movimento muralista mexicano, baseado nos ideais da
Revolução Mexicana (1910-1920), agitou o interesse dos artistas e despertou a necessidade de
ir para a rua. Os ateliês são abandonados e os artistas saem às praças públicas em busca de
muros para pintar. O programa de pinturas de murais, narrando a história do país e exaltando
o fervor revolucionário do povo, adquire lugar de destaque no projeto educativo e cultural do
período, conforme informação da ―Enciclopédia de Artes Visuais‖ do Itaú Cultural45
. A arte
passa a ocupar espaços públicos, sai dos museus e das galerias para resgatar um espaço mais
próximo do cotidiano. Lugares de trânsito onde a arte torna-se coletiva ao romper com o
individualismo da pintura de cavalete. Os principais muralistas foram Diego Rivera, José
Clemente Orozco e Davi Alfaro Siqueiros que pintaram murais em vários e diferentes lugares
da cidade, como escolas, palácios e igrejas. Vinculados à arquitetura e criando o efeito de um
novo espaço em um mesmo lugar, os murais – presentes também em civilizações como a
grega, a romana e as pré–colombianas – surgem neste período com um caráter social e
político que anunciava uma arte nacional popular. O intuito era que a arte tivesse um alcance
social e fosse acessível a todos.
Deste modo, a revolução estética explorada no quadro é extravasada pelos artistas
americanos que expandem suas ações e rompem com a unidade de superfície da pintura-
quadro em um regresso que Pedrosa (1981) aproxima da maneira como os primitivos tratavam
a pintura.
Levando-se em conta que os principais interesses do muralismo mexicano são as
questões ideológicas e políticas que preveem a mobilização social, interessa-me aqui destacar
o impulso fundamental que desloca a arte dos espaços fechados e propõe um encontro com o
espaço cotidiano e de circulação das pessoas, favorecendo o contato com o espectador em um
lugar que não é aquele da instituição.
Após esse breve comentário sobre a ação dos artistas mexicanos, que influenciaram
diretamente os movimentos artísticos brasileiros em suas investidas de criação em espaços
que ultrapassam as bordas das molduras, como o Neoconcretismo, é importante destacar que a
questão de romper com a moldura na pintura não é uma preocupação meramente técnica ou
física. O que se pretende é libertar-se de convenções, libertar-se para reencontrar o instante
45
Site: www.itaucultural.org.br
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3
190. Acessado em 20.10.2010
89
em que a ―(...) obra aparece pela primeira vez livre de qualquer significação que não seja seu
próprio aparecimento‖. (Gullar, 1959).
A partir das considerações acima é possível apresentar um panorama de mudanças
ocorridas no teatro que coincidem com a ruptura de limites, regras e padrões. Pretende-se
liberar a arte e provocar encontros com o espectador. Assim como no retrospecto anterior
referente às artes visuais, é possível de modo bastante sintético e geral destacar pontos de
transformação a partir do final do século XIX, quando a doutrina naturalista libera a
dramaturgia de regras baseadas na ―Poética‖ de Aristóteles provocando alterações
significativas na representação e direção cênica.
Inspirado no ideal naturalista, Constantin Stanislavski (1863-1938), ator e diretor teatral
russo, investiga e sistematiza um ―método‖ para a preparação dos atores que revoluciona as
técnicas de interpretação e as investigações sobre a arte do ator. Para o diretor, em primeiro
lugar o ator precisa aprender a dominar-se, isto é, a localizar as suas tensões e controlá-las
para que não haja a perda da sensibilidade. Após as sistematizações e técnicas referentes à
preparação dos atores sugeridas por Stanislavski no Teatro de Moscou, novas
experimentações práticas e teóricas aparecem, de um modo geral, enquanto afirmação ou
negação das propostas deste diretor.
A evolução do naturalismo/realismo proposto por Stanislavski tem como consequência
o aparecimento de novas tendências que modificaram substancialmente as práticas teatrais,
que já não se interessavam em esconder o jogo que se estabelecia em cena. Ao público são
revelados os ―segredos‖ da estrutura teatral, e este é então convidado e a se aproximar deste
pacto sem a proteção de uma ―quarta parede‖, que exercia a função de incentivar a ideia da
cena enquanto realidade paralela e separada do público.
O teatro passa a se interessar por movimentos que conduzem a cena teatral como
acontecimento capaz de estabelecer uma comunicação direta e viva. Traços da obra antes
fechada e focada em si escapam favorecendo contatos entre realidade e ficção, entre arte e
vida, sujeito e objeto etc. Artistas e público se tocam. Toques visíveis e invisíveis que
proporcionam o encontro, como pretendia o ator e diretor francês Antonin Artaud.
Tais mudanças alteram eixos e áreas, e fazem oscilar os campos. A arte não está mais
presa a algum suporte definitivo e delimitado, ela percorre caminhos, aciona o espectador e
propõe novas experiências.
Levando-se em consideração que no panorama da arte hoje o teatral escapa ao teatral,
que a dança escapa à dança e que as artes visuais escapam às artes visuais, é possível afirmar
90
no foco de interesse desta dissertação que há uma revisão de conceitos e estruturas. As
verdades absolutas e inflexíveis são transformadas em condições que estão sempre em diálogo
com diferentes contextos. As áreas, os campos e as linguagens se influenciam mutuamente. O
que acontece no teatro reverbera na dança, o que acontece nas artes visuais reverbera no
teatro, por exemplo. E assim a arte se movimenta, transita e não se limita a um suporte
específico. As questões subjacentes ao universo artístico tocam na vida e em problemáticas
que não se restringem aos aspectos visíveis. Os lugares investigados pelas artes são muito
mais zonas que preveem movimentos, percepções, deslocamentos, deslizamentos e trânsitos
do que espaços que se configuram em plataformas fixas, estáveis e reconhecíveis logo à
primeira vista. Não é o formato que assegura a experiência, mas a ruptura com relações
previsíveis que impulsiona o sujeito para novas conexões e experiências.
Neste ponto é possível aproximar o Neoconcretismo do Tanztheater. Embora tais
tendências se manifestem em diferentes lugares, o Neoconcretismo nas artes visuais e o
Tanztheater nas artes cênicas, existe uma raiz que parece comum a ambos – a arte muito mais
como processo e experiência do que como forma e compreensão intelectual. O caráter
processual destas práticas, ou movimentos, acompanha as mudanças que marcam as ações de
vanguarda do início e meados do século XX.
No Neoconcretismo e no Tanztheater a força propulsora do fenômeno da arte é o
principal foco de interesse das investigações que questionam padrões tradicionais e pautados
em normas definidas.
Pretende-se resgatar o instante primeiro do ato. O momento em que as coisas não estão
separadas umas das outras, mas em constante comunicação possibilitando uma variedade
enorme de combinações, entendimentos e sentidos. Aliás, o sentido não está mais separado da
experiência direta, do momento em que o espectador é inserido em uma ação. A participação
direta ou indireta do espectador em um evento artístico prevê a produção de um sentido
particular que nasce da sua relação com os elementos sugeridos. O intuito da arte, neste
contexto, não é o de transmitir uma mensagem, mas provocar diferentes relações no espaço
concebido como ambiente de produção artística. O espaço da metáfora simbólica se expande e
se transforma no espaço da criação e das afecções, como sugere Deleuze.
91
ATO 4 – Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch
O trabalho não mais se interromperia na finitude da espacialidade do objeto;
realizava-se agora como temporalidade numa experiência na qual o objeto se
descoisifica para voltar a ser um campo de forças vivas que afetam o mundo e são
por ele afetadas, promovendo um processo contínuo de diferenciação. (ROLNIK,
2007)
A partir das considerações e colocações dos atos anteriores sigo com apontamentos e
investigações sobre possíveis trajetos do espectador em percursos e práticas de Pina Bausch e
Lygia Clark.
A compreensão da obra como um ambiente ou paisagem que pressupõe a habitação do
espectador através de forças que se cruzam e apagam as bordas que separam objeto e sujeito,
é o principal ponto de contato entre as práticas de Lygia Clark e Pina Bausch, na perspectiva
desta pesquisa. Propostas que rompem com paradigmas da representação e promovem
movimentos e tensões entre obra e espectador.
Promover o acontecimento da obra na expansão de um plano que reverbera em todas as
direções e que convida o espectador a uma experiência particular de movimento é o eixo
fundamental que sustenta esta dissertação. Tal eixo pode ser observado nos diferentes
vínculos entre obra e espectador e nas movimentações sugeridas neste encontro. Trafegar pela
quarta dimensão pode ser, um última instância, o efeito provocado pelo toque entre sujeito e
objeto.
Movimento 1: Considerações sobre a interação em Pina Bausch
Os espetáculos de Pina Bausch se apresentam como um acúmulo de experiências. Os
bailarinos levam para a cena gestos que nasceram em investigações, trajetórias particulares,
depoimentos pessoais e alteram assim a perspectiva restrita da obra de arte como a aplicação e
a execução de formas já conhecidas e decodificadas.
Informações, memórias, traços, gestos e silêncios se tocam desencadeando processos
particulares e íntimos, tanto no ator-bailarino quanto no espectador que mesmo por poucos
minutos perde seu referencial de separação da cena. Em alguns momentos da apresentação,
tempo e espaço são compartilhados em encontros nos quais os limites entre o real e o
92
ficcional se confundem. Nestes momentos, os dançarinos falam de si próprios, se dirigem
diretamente à plateia e provocam movimentos que alteram as bordas entre a cena e a vida. Um
encosta no outro, o evento se amplia e pequenos transbordamentos favorecem a criação de um
lugar propício ao compartilhamento de ações. Segundo Ciane Fernandes:
Suas peças apresentam um caos grupal generalizado, com uma ordem inerente,
favorecendo processo sobre produto. Além disso, as peças provocam experiências
inesperadas em ambos dançarinos e plateia. Mas as obras de Bausch atingem tais
qualidades seguindo um caminho distinto daquele dos anos 60. Suas peças
apresentam a interação entre as artes sem rejeitar a grandiosidade teatral.
(FERNANDES, 2009)
A inclusão do espectador ao evento cênico acontece de diferentes maneiras. Em alguns
momentos é a ampliação do gesto do bailarino que se prolonga e toca na plateia, em outros, é
a interação direta que convida o espectador a participar da dança proposta por Pina Bausch.
Como exemplo desta interação direta trarei a descrição de uma cena da peça 1980 conforme
Ciane Fernandes:
Nazareth Panadero bebe uma xícara de chá, servida por outro dançarino na frente
do palco, enquanto outros dois dançarinos servem a mesma bebida aos
espectadores no auditório. Dançarinos e público são igualmente incluídos na
experiência física desta dança, inspirada num ato social. (FERNANDES, 2007,
p.66)
Pina Bausch transita entre dança, teatro e incursões pelo cinema, como no trabalho
Lamento da Imperatriz, para investigar as forças que movimentam os corpos. Seu lugar não é
nem o teatro nem a dança, mas a vida em suas variações, multiplicidades, acasos e
aleatoriedades.
É possível visualizar princípios de interação em procedimentos de Pina Bausch a partir
de comentários do autor Hubert Godard (1996) sobre dinâmicas presentes no trabalho de
Trisha Brown. Godard aponta que o dançarino de Brown é menos fiel ao desenho espacial,
―porém mais atento a uma dinâmica particular do movimento, que necessita uma escuta e uma
sensação da frase vivida, do mais ínfimo rastro de sua origem: no pré-movimento.‖
(GODARD, 2006, p.29). Ainda de acordo com o autor, Trisha Brown considera ―que a
presença do espectador e do meio podem influenciar e modificar a representação.‖
(GODARD, 2006, p.29). É a partir destas oscilações e reverberações que ―dançarino e
espectador embarcam na direção da terra incognita de espaços sensíveis a serem
descobertos.‖ (GODARD, 2006, p.29).
Utilizando ainda as palavras de Godard sobre possíveis interações entre obra e
espectador é possível trazer sua noção de ―transporte‖ - instante em que ao perder a certeza do
93
―seu próprio peso o espectador se torna, em parte, o peso do outro‖ – para o contexto de Pina
Bausch. Ao promoverem uma espécie de partilha de território enquanto ocupam o palco, os
atores-bailarinos incitam um deslocamento particular do espectador. Acontece o que Godard
chama de empatia cinestésica – ―sensações internas dos movimentos de seu próprio corpo‖
(GODARD, 2006, p.24) – ou contágio gravitacional. E ainda de acordo com Godard:
Temos aqui um ponto essencial: no corpo do dançarino, em sua relação com
outros dançarinos, ocorre uma aventura política, a partilha de territórios. Uma
nova organização do espaço e das tensões que o habitam vão interrogar os
espaços e as tensões próprias do espectador. É a natureza desse ―transporte‖ que
organiza a percepção do espectador. É então impossível falar de dança ou do
movimento do outro sem lembrar que falamos de uma percepção particular, e
que a significação do movimento ocorre tanto no corpo do dançarino, como no
corpo do espectador. (GODARD, 2006, p.25)
Os caminhos que o espectador percorre nos ambientes cênicos de Pina Bausch são
influenciados pelos procedimentos da preparação dos artistas que alteram o modo pelo qual
estes se colocam diante daquele, e pela sugestão de elementos que potencializam a
experiência de um espaço potencial no qual os sentidos todos da plateia são solicitados. Os
espaços, as aberturas, as zonas de tensão e os estímulos que convocam o olfato, a visão e a
experiência de diferentes texturas presentes na cena convidam o espectador para uma aventura
que o permite atravessar o palco sem sair de sua poltrona. O campo imagético proposto por
Pina Bausch permite ao espectador dançar enquanto habita a obra.
Despertar sensações adormecidas, ativar memórias, estimular o corpo a novas
interações e libertá-lo de padrões é uma de suas principais metas. E é deste interesse que
nascem as suas aproximações da arte com a vida, assunto e condição abordada também por
Lygia Clark.
Visitar o avesso da obra, percorrer caminhos por onde o corpo reverbera em sensações,
trafegar, ir e voltar, perceber de longe e de perto e ser transportado para o centro do
acontecimento, eis os estímulos de Clark e Bausch. Utilizando-me das palavras de Patrice
Pavis (2003, p. 213): ―Imagina-se tal espectador no epicentro de um tremor de cena.‖
As práticas de Lygia Clark e de Pina Bausch podem ser aproximadas a partir de
conceitos e noções que pretendem superar fronteiras entre obra e espectador. Tais
aproximações favorecem ainda o diálogo entre distintos campos da arte que impulsionados
por uma crise em comum se lançam em um terreno no qual uma das principais motivações se
encontra na sugestão de uma espacialização da obra – o que coincide com a criação de
ambientes para a experiência do espectador.
94
O teatral, discutido dentro e fora do teatro, pode ser compreendido então como um
lugar de contato, como estímulo a novas compreensões, alteração de sentidos e experiência
estética.
Para direcionar a discussão aqui proposta para o campo do teatro como área ou espaço
expandido faz-se necessário tocar em noções como: teatralidade, performatividade e teatro
pós-dramático. Neste contexto, as ações tendem a se desenvolver como atos concretos e não
como representações presas a um espaço preso a convenções.
Movimento 2 : Espaços móveis contemporâneos ou as relações entre obra e espectador
No intervalo entre obra e espectador, se localizam noções que apresentam a obra como
movimento que prevê a superação de limites e a assimilação do entorno. Uma obra ambiental,
como desejava Hélio Oiticica, ou um teatro ambiental, como apontou Richard Schechner.
Tais propostas sugerem um novo espaço, ou um lugar de inter-relações que confunde
limites, promove a ação do espectador e amplia a compreensão da arte. O fenômeno artístico
se aproxima de uma prática social alternativa ou de um projeto político, e favorece uma troca
distinta nas ―zonas de comunicação‖ que nos são impostas, conforme Caballero (2007).
Breves noções sobre performatividade, teatralidade e um teatro pós-dramático, serão
apresentadas como alternativas para a reflexão sobre os espaços móveis que configuram o
ambiente cênico. A compreensão do teatro como relação, como movimento, justifica a
abordagem dos conceitos que aparecem a seguir.
A condição do teatro como espaço cambiante pode ser melhor visualizada a partir da
seguinte anotação proposta por Deleuze:
Ora, o que está em questão em toda a sua obra é o movimento. O que eles
criticam em Hegel é a permanência no falso movimento, no movimento lógico
abstrato, isto é, na ―mediação‖.‖ (...) Não lhes basta, pois, propor uma nova
representação do movimento; a representação já é mediação. Ao contrário, trata-
se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda
representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem
interposição; (...) de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou
saltos que atinjam diretamente o espírito. Esta é uma ideia de homem de teatro,
uma ideia de encenador – avançado para seu tempo. É nesse sentido que alguma
coisa de completamente nova começa com Kierkegaard e Nietzsche. Eles já não
refletem sobre o teatro à maneira hegeliana. Nem mesmo fazem um teatro
filosófico. Eles inventam na Filosofia, um incrível equivalente do teatro,
fundando, desta maneira, um teatro do futuro e, ao mesmo tempo, uma nova
Filosofia. (DELEUZE, 2006, p.29)
95
Performatividade, teatralidade e um teatro pós-dramático são noções que procuram dar
conta de procedimentos e ambientes que escapam dos limites daquilo que se convencionou
classificar ou conceitualizar como arte. Fronteiras são questionadas. O espaço se expande. O
evento artístico encontra outros espaços, zonas indeterminadas. Áreas são afetadas. O
acontecimento da arte não está preso, mas em desenvolvimento no espaço. Um lugar que não
separa. Espaço de encontro no qual acontecem toques, interações e movimentos. Há nesta
orientação sobre os termos mencionados acima uma indicação que parece atravessar os três
termos e que pode ser compreendida como espaço potencial. É neste lugar que os termos
performatividade, teatralidade e teatro pós-dramático, na abordagem desta pesquisa, se
cruzam.
Sobre a performatividade
Inicio com noções sobre a performance para então chegar à performatividade. Aponto,
a seguir, breves considerações sobre a performance no contexto da arte e me aproximo assim
de importantes transformações ocorridas em práticas e procedimentos artísticos. É importante
destacar ainda que são muitos e complexos os estudos, os conceitos e os pressupostos
referentes à performance. Certamente, uma dissertação inteira sobre tal temática não seria o
suficiente para dar conta desta noção que se multiplica em diferentes contextos, áreas e
situações. Entretanto, é preciso começar de algum lugar.
Josette Féral(2009) apresenta o livro ―Performance studies: an introduction‖, de
Richard Schechner, como uma das mais completas investigações sobre as múltiplas noções e
leituras que o conceito de performance pode adquirir.
Schechner (2007) pontua que nas bases de uma nova perspectiva de abordagem dos
eventos artísticos – ou nas bases da performance – estão o pós-modernismo e o pós-
estruturalismo. Princípios e teorias sobre o pós-modernismo ganham força, principalmente, na
década de 1960 e encontram ecos em diferentes campos do conhecimento. Uma das principais
preocupações do movimento pós-moderno é a superação de modelos binários, de uma verdade
universal aplicável a qualquer fenômeno. E este é o ponto decisivo na fundamentação de
princípios que orientam novas premissas, reflexões e procedimentos no contexto da arte
contemporânea. É possível afirmar ainda que como resposta teórica e acadêmica aos ideiais e
às questões trazidas pelo pós-modernismo, aparece o pós-estruturalismo.
Uma das qualidades decisivas, no âmbito da pós-modernidade, e consequentemente, do
96
pós-estuturalismo, é a aplicação de princípios da performance a todos os aspectos da vida
social e política, como aponta Schechner (2007). A performance aparece então como ato que
não se restringe a um espaço específico, mas que transita por diferentes campos ao investigar
distintos modos de ação.
Neste novo ambiente, a relação e a interação surgem como novas concepções que
guiam a compreensão sobre a arte numa perspectiva interdisciplinar. As disciplinas, os
campos e as áreas se aproximam a partir de uma perspectiva que agrega, trama e conjuga
espaços que pareciam distantes. Uma coisa intervém na outra. Uma coisa toca na outra. E são
todos os toques que constituem a estrutura móvel dos eventos.
Outro ponto importante que está na ressonância do contexto acima mencionado é o
questionamento da autoridade do objeto que, segundo Scherchner (2007), provocou a
desmistificação da arte e a transferência da força das elites para as massas. A arte deixa de ser
assunto e prática de uma minoria – e de lugares específicos – e passa a acontecer também em
espaços que provocam interações e partilhas de experiências.
Deste modo, é possível afirmar que a performance, no campo das artes, está ligada a
um movimento de desmistificação do objeto, do material e do visível como medidas que
determinam suportes e espaços para aquilo que será classificado como pertencente ao âmbito
artístico. O espaço, de acordo com premissas da performance, assume a relação, os vínculos e
as experiências que acontecem nos eventos artísticos. O espaço potencial, as movimentações e
os deslocamentos passam a ser considerados como os principais fundamentos do fenômeno
artístico.
O conceito de performance se espalha por diferentes áreas e traz em sua noção
fundamental a ideia de ação, de movimento imprevisto, de abordagem segundo diferentes
mecanismos e estruturas, de encaminhamento que provoca alterações na percepção, entre
outras características. A performance pode ser compreendida como ação que pretende
encontrar modos de discurso que possam incorporar múltiplas e distintas vozes.
De acordo com o autor Jorge Glusberg (2009), a performance é um evento-ação de
caráter híbrido, de condição cênico-teatral e que tem a sua origem na dinamização das artes
plásticas. Conforme Glusberg, na performance o corpo aparece como sujeito e força motriz do
acontecimento artístico.
O processo performativo age diretamente no coração e no corpo da identidade do
performer, questionando, destruindo, reconstruindo seu eu (moi), sua subjetividade
sem a passagem obrigatória por uma personagem. A performance toca o sujeito que
vai para a cena, que se produz, que executa. Se o ator performa ele realmente age
com o seu corpo e sua voz em cena. Seu corpo efetivamente age. (FÉRAL, 2009,
p.83)
97
Edélcio Mostaço, no texto ―Fazendo cena, a performatividade‖ indica ainda que:
Ela está interessada, sobretudo, na originalidade da experiência corporal, na natureza
indivisa e voluntária do gesto, na atitude e na conduta do artista numa situação
extra-cotidiana que visa, primordialmente, desestabilizar tudo que é repetitivo ou
corriqueiro, perpetrando um ato inaugural. Inscrita na ordem das percepções, sua
ação poética busca a transgressão, a ruptura, o corte. (MOSTAÇO, 2009, p.21)
Conforme Mostaço (2009) a performance está, de algum modo, vinculada à
mobilização de procedimentos estéticos que visam estreitar as relações entre a vida e a arte.
A performatividade é inerente a qualquer performance, uma vez que constitui o seu ―como‖.
Ou seja, seu gesto, sua ação, sua concretização enquanto ato.
A performatividade, de acordo com Féral, ―acompanha necessariamente o surgimento
de significados múltiplos e oscila entre o reconhecimento e a ambiguidade dos significados.
Ela aparece como sinônimo de fluidez, instabilidade e abertura do campo de possibilidades‖
(FÉRAL, 2009, p.74). A partir de tal consideração, é possível afirmar que a performatividade
aparece como processo de concretização que admite múltiplos olhares e perspectivas. Como
exemplo é possível trazer a fragmentação e os paradoxos presentes em produções cênicas,
especialmente. Tais recursos tendem a induzir à livre associação de ideias em detrimento do
pensamento analítico e racional. E é deste modo que os sentidos se multiplicam.
A noção de performatividade admite ainda uma quebra no paralelismo entre sentido e
representação e aparece como um processo que é privilegiado em detrimento do produto final
acabado em si.
A partir das noções e conceitos apresentados acima, é possível dizer que um campo de
caráter efêmero e processual é inaugurado. O espaço artístico se transforma em zona que
pretende alterar dispositivos que costumam regular a percepção e as relações entre obra e
espectador.
Féral (2009) afirma ainda que a performatividade é aquilo que faz escapar em uma obra
as fragilidades do pensamento linear e unívoco, fazendo emergir o plural.
Um dos principais focos das propostas artísticas no contexto mencionado acima passa a
ser a criação de ambientes para a inserção do espectador, para a experiência na relação com
elementos e estímulos. O foco não está naquilo que os olhos vêem de imediato, mas na
presença que se esconde e se revela no decorrer do evento artístico.
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Sobre a teatralidade
De acordo com Edélcio Mostaço, ―teatralidade e performatividade são irmãs siamesas,
nascidas do mesmo influxo fenomenológico que fundamenta a mais elementar experiência de
um sujeito: olhar‖ (2009, p. 39). Olhar este que enxerga com o corpo todo.
Para discorrer sobre a teatralidade tomarei como principal referência a noção de
liminaridade, indicada pela autora Ileana Diéguez Caballero. A investigação da teatralidade
proposta por Caballero não se limita ao âmbito do fazer considerado e configurado como
teatral. Aquilo que escapa ao já conhecido, as experiências incompreensíveis e as pulsões que
se movimentam entre a vida e a arte nos fenômenos e processos cênicos instigam a autora
como pesquisadora e espectadora. Tais movimentos mobilizam reflexões sobre a teatralidade
como um adjetivo ou qualidade do teatro, mas que não se limita ao campo teatral. Ao abordar
a teatralidade a partir de uma perspectiva liminar, conceito que Caballero (2007) toma da
antropologia social de Victor Turner e que busca transferir para a arte, há a intenção de
abordar o teatral como um corpus efêmero e performativo, já que a vida do evento depende da
rede de relações em que o fenômeno cênico acontece e se transforma.
O caráter processual sob este enfoque tende a se destacar e as composições cênicas
admitem variações que são, muitas vezes, estratégias conhecidas em outros campos, como o
das artes visuais. As investigações ultrapassam as bordas do considerado teatral e encontram
referenciais e estruturas outras para o seu acontecimento. Ações problematizadas na dança,
nas artes visuais, na música, na filosofia e em campos outros do conhecimento tomam conta
de um espaço considerado teatral e provocam encontros mobilizadores de uma teatralidade
cambiante que vai e vem ao teatro.
A noção de liminaridade – como lugar fronteiriço, zona transdisciplinar e de
hibridização – proposta por Ileana Caballero pode ser considerada como uma situação em
movimento que é redefinida pelo devir das práticas artísticas e humanas. Na fronteira entre
espaço real e de criação acontecem os cruzamentos que se manifestam em condições
liminares – dinâmicas que provocam a assimilação do imprevisto e a contaminação que afeta
os processos de produção artísticos. Há um canal por onde o evento da arte troca com o
entorno. O formato pode ser repetir, contudo as interferências do ambiente não são ignoradas,
mas antes fontes mobilizadoras das ações.
Ainda sobre a teatralidade é possível acrescentar a noção defendida pela autora Josette
Ferál (2003) que anuncia, assim como Caballero, a verificação deste fenômeno em situações
99
outras que não apenas aquelas vinculadas ao teatro. A teatralidade, para Ferál, está
diretamente associada ao espaço potencial, no qual a percepção sobre as coisas é alterada. A
criação da teatralidade depende, em grande medida, do olhar do espectador. Daquilo que está
entre a ―obra‖ e o ―público‖, ou do espaço que se expande e supera limites entre obra e
espectador através da criação de um ambiente de ressonância, que surge da aproximação ou
do toque. Em uma possível definição do termo teatralidade, a autora faz a seguinte
consideração:
Não é uma qualidade (no sentido kantiano) que pertence ao objeto, ao corpo, a um
espaço ou a um sujeito. Não é uma propriedade pré-existente das coisas, não está à
espera de ser descoberta e não tem uma existência autônoma, só é possível entendê-
la ou a captá-la como processo. (FERÁL, 2003, p. 44)
A teatralidade coincide com o modo de perceber. A percepção é alterada e tal
movimento confirma um pressuposto de Féral no que diz respeito à noção de teatralidade
como criação do espectador, como espaço construído na relação dada pela visualidade, e não
como qualidade de um objeto.
Sobre o teatro pós-dramático
No que se refere ao pós-dramático e levando-se em conta os inúmeros questionamentos
e ressalvas inauguradas quando Hans-Thies Lehmann sugeriu o termo ―teatro pós-dramático‖,
farei aqui um pequeno recorte em relação ao amplo conceito do autor. No centro do diálogo
aqui proposto está o espaço metonímico abordado por Lehmann. Tal espaço apresenta uma
concepção de lugar do pós-dramático que se opõe ao espaço dramático.
O espaço do drama costuma ser compreendido como um quadro cênico, um lugar
metafórico-simbólico e com linhas divisórias claras. A ―obra‖ é separada do público. ―Obra‖ e
público encontram-se em espaços distintos. O espaço metonímico do teatro pós-dramático é
um espaço cênico que sugere continuações do espaço real. As bordas entre obra e público não
são tão claras ou se transformam ao longo do acontecimento teatral. Há mais flexibilidade e
deslocamentos nas relações que configuram o evento teatral. Enquanto o espaço dramático
atua como janela que apresenta uma realidade, o espaço metonímico absorve a realidade e
joga com o indeterminado e o imprevisível. Um terreno móvel e em constante movimento
parece se aproximar do conceito de espaço metonímico.
Sob este ponto de vista, e apresentando como pano de fundo a crise da representação, o
espaço do teatro na contemporaneidade admite um paralelo com os espaços investigados nas
100
artes visuais. Estes, sobretudo a partir de fins do século XIX, podem fornecer metáforas para a
compreensão das áreas de ação do teatro atual. Ambos os territórios questionam o lugar do
sujeito e do objeto e preveem a superação da moldura e da quarta-parede, promovendo
aberturas que superam modelos de representação daquilo que se entende e que se conhece
como arte.
Sobre Lygia e Pina
No que se refere às práticas de Lygia Clark e Pina Bausch é possível lançar a seguinte
reflexão: é possível afirmar que as experiências propostas por Lygia Clark e Pina Bausch
apresentam aspectos teatrais? Sob quais pontos de vista? Para tanto, é interessante retornar ao
evento anunciado logo no início desta dissertação sobre a experiência de Marcel Duchamp em
um cabaré dadaísta, quando o artista assistiu a uma encenação teatral que rompia estruturas e
cânones que delimitavam conceitos e práticas. A peça assistida por Duchamp fugia às regras,
desestabilizava padrões e promovia movimentos que não encontravam pontos de apoio que
pudessem afirmar ou negar o campo ao qual tal apresentação deveria pertencer. Um
acontecimento que escapava ao teatro e que de algum modo reconfigurava o terreno daquilo
que é conhecido como teatral. Sob esta perspectiva, que prevê o evento artístico como
experiência, como trânsito e lugar que não se limita, mas que se move, Clark e Bausch trazem
apontamentos e procedimentos importantes. Elas rompem com modelos através de seus
procedimentos e permitem aproximações de diferentes campos e linguagens vindos de noções
e conceitos hoje desenvolvidos a partir de reflexões práticas e teóricas sobre o fenômeno da
arte.
Ao observar as práticas e procedimentos das artistas, a partir das noções apontadas
acima, é possível verificar tanto vestígios de teatralidade quanto de performatividade em seus
trabalhos.
Entretanto, faço agora um breve recorte para a análise de movimentos presentes nas
suas produções como modo de propor a visualização das noções de teatralidade e
performatividade em diálogo com as práticas de Clark e Bausch.
No recorte aqui proposto, escolho a teatralidade para a referência de Pina Bauch e a
performatividade para a referência de Lygia Clark, mesmo sabendo que o inverso também é
possível. Um teatro pós-dramático, tomando como ponto de referência o espaço metonímico,
surge como conceito que aproxima os exemplos selecionados a seguir.
101
Pina Bausch, a descrição:
Uma pessoa, duas pessoas, três pessoas. Várias pessoas se aproximam de uma pessoa e a
tocam de várias maneiras. Alguém aperta o seu nariz e toca o seu rosto. Os corpos se
aproximam, se tocam. A pele, o contato. Algo acontece. Há uma ação e uma reação. O corpo
afeta e é afetado. A redescoberta do tato.
Lygia Clark, a descrição:
Alguém entra e coloca uma luva. Com a luva toca uma pedra. Tira a luva e toca a pedra com
as mãos. As mãos tocam a pedra e são por ela tocadas. O peso, a textura. O corpo reage.
Algo acontece. A redescoberta do tato.
A performatividade presente no trabalho de Lygia Clark aparece, por exemplo, em
procedimentos pautados em ações, gestos e movimentos que solicitam a presença do
espectador. Neste contexto, o corpo é o lugar fundamental do acontecimento artístico. Atos
que executados automaticamente são retomados em proposições que visam mobilizar a
percepção e os sentidos. Há uma tentativa de estimular a percepção para uma relação primeira
com as coisas, com o outro e com o mundo. Como acontece a ação e a reação? Como a
percepção é reativada? Como me coloco naquilo que faço?
A teatralidade em Pina Bausch está principalmente no modo como o espectador vê e
percebe o evento cênico. Seu olhar se vincula aos acontecimentos e movimentos que
acontecem no palco. O espectador presencia atos que nascem diante dos seus olhos. Há nesses
momentos o compartilhamento de um espaço-tempo que altera a sua percepção. O espectador
é estimulado a perceber sob diferentes perspectivas. Estímulos sensoriais, revelações de
histórias íntimas e depoimentos pessoais atuam na alteração dos ângulos de observação da
plateia. Surgem assim, diferentes perspectivas nas relações do espectador com o fenômeno
cênico.
Em Bausch, o que é apresentado é um ato que se desenvolve diante dos olhos daquele
que observa. De tal modo que é possível a seguinte analogia: o espectador de Bausch vê um
bailarino como um participante do trabalho Caminhando, de Lygia Clark. O que ele faz é uma
ação concreta e não a representação de um personagem isolado num campo de representação.
O bailarino estimula assim o compartilhamento de uma ação. O espectador é convidado a
atravessar o palco e a dançar livremente sem que precise abandonar a poltrona.
A noção do teatro pós-dramático, a partir da perspectiva do espaço como lugar de
102
partilha, aparece em procedimentos de Clark e Bausch como um terreno móvel que absorve o
espectador. A desterritorialização surge, em última instância, como o plano em comum
investigado nas artes visuais e nas artes cênicas a partir do diálogo aqui proposto.
Movimento 3 : A situação do espectador neste novo lugar: notas de Susan Sontag
De acordo com a concepção de espaço sugerida neste capítulo e que coincide com
práticas e procedimentos artísticos contemporâneos, sobretudo, o espectador surge em um
novo lugar. Susan Sontag levanta reflexões sobre esta questão:
Nietzsche observou em ―O Nascimento da Tragédia‖, que um público de
espectadores como o conhecemos, aquelas pessoas presentes que os atores ignoram,
era desconhecido entre os gregos, uma boa parcela da arte contemporânea parecia
movida pelo desejo de eliminar a público da arte, uma empresa que com freqüência,
se apresenta como uma tentativa de eliminar a própria Arte. (Em benefício da
―vida‖?) (SONTAG, 1987, p.15)
Em direção à eliminação do espectador passivo e dispensável ao evento da arte surgem
estratégias que visam o aprimoramento das suas experiências, como o aparecimento da área
central da obra em branco, como indica Sontag (1987). A área central em branco estimula o
surgimento de zonas de trânsito para o espectador, espaços que este construirá ao percorrer
um lugar que estava antes restrito à disposição de elementos constituintes do objeto artístico.
Inauguram-se novas áreas na relação do espectador com a obra. Áreas de trânsito, de
discursos sensoriais, de compreensões e de experiências diretamente associadas à presença do
corpo, já que livre do corpo o discurso se desfaz.
Os novos recursos e proposições são tentativas de provocar diferentes vínculos entre
obra e espectador. Surgem novos modos de olhar, ouvir, tocar e agir. O espectador já não está
isolado, mas em uma zona de tensão que promove aproximações e experiências mais
imediatas e sensíveis. De acordo com Sontag, este enfrentamento entre obra e espectador
favorece uma relação mais consciente ou mais conceitual.
A situação de voyeurista do espectador, daquele que observa, mas que é dispensável no
contexto do evento da arte é transformada na solicitação de uma presença ativa.
103
Movimento 4. O sensível
Os trabalhos de Lygia Clark e Pina Bausch expandem a área de alcance daquilo que é
visto e sugerem oscilações, interferências e instabilidades que instigam novas experiências
temporais.
A condição transitiva e processual encontrada nas propostas de Clark e Bausch pode ser
verificada nas indagações e especulações que justificam as produções das artistas. Tanto Clark
quanto Bausch se interessam pelas forças e motivações que acionam o evento artístico. Para
tanto, utilizam-se de procedimentos que favorecem descobertas sensoriais, a ativação da
percepção e a participação do espectador. Impulsos e vínculos se cruzam e desenham
percursos particulares em um espaço que surge no instante do acontecimento artístico e que
estimula o aparecimento do sensível como condição de interação.
Clark e Bausch inauguram regimes de visibilidade que superam modelos de
representação e apresentam o sensível como ponto de partida e zona de trânsito em suas
produções. Trata-se de uma partilha, assim descrita por Jacques Rancière:
Esse sensível, subtraído às suas conexões ordinárias, é habitado por uma potência
heterogênea, a potência de um pensamento que se tornou ele próprio estranho a si
mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos
idêntico a um phatos, intenção do inintencional etc. (RANCIÈRE, 2005, p. 31-32)
O sensível aqui invocado coincide com a noção de estética abordada nesta dissertação,
e tal noção aparece na seguinte consideração de Rancière:
(...) O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no
singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia
de temas, gêneros e arte. Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destroi ao
mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade. Funda, a uma só vez, a
autonomia e a identidade de suas formas com as formas pelas quais a vida se forma
a si mesma. O estado estético é pura suspensão, momento em que a forma é
experimentada por si mesma. O momento de formação de uma humanidade
específica. (RANCIÈRE, 2005, p. 33-34)
Uma das questões centrais investigadas nos procedimentos de Clark é a reativação nos
participantes de suas criações da qualidade de experiência estética. E de acordo com Rolnik:
―Refiro-me à capacidade dos mesmos de deixar-se afetar pelas forças dos objetos criados pela
artista e do ambiente onde estes eram vividos; mas também e sobretudo, de deixar-se afetar,
por extensão, pelas forças dos ambientes de sua existência cotidiana.‖ (ROLNIK, 2007)
Tal consideração de Rolnik sobre as propostas de Lygia Clark pode ser estendida para
104
os procedimentos de Pina Bausch, já que a experiência do espectador em suas produções está
vinculada ao consentimento deste em mobilizar afetos e ―participar das coisas do mundo sem
engessá-las numa interpretação‖, como aponta Hubert Godard (2004)46
. Ainda de acordo com
Rolnik, sobre as propostas de Clark: ―A obra se realizava na tomada de consciência desta
qualidade de relação com a alteridade na subjetividade de seus receptores.‖
O espectador é convidado a sair de um estado de anestesia sensível, nas palavras de
Rolnik, e há uma liberação de movimentos.
A ação artística intervém na dinâmica paradoxal entre, de um lado, a cartografia
dominante com sua relativa estabilidade e, de outro, a realidade sensível em
constante mudança, efeito da presença viva da alteridade que não para de afetar
nossos corpos.‖(ROLNIK, 2007)
Neste contexto o evento da arte aparece como ato, como ação e reverberação, como
anuncia Dani Lima:
Este ato endossa a importância do espectador dentro do dispositivo espetacular, que
não existe sem ele. Uma vez que o público testemunha e recebe a obra, ela se
dispersa. Esta fragilidade e efemeridade do espetáculo têm força política. Ela
recoloca a questão da comunidade que se constitui a cada espetáculo, neste encontro
entre bailarinos e público, para desfrutar uma experiência de partilha do sensível.
(LIMA, 2005)
E sobre a força que emerge do encontro entre bailarinos e público em Pina Bausch é
possível trazer as seguintes palavras de Helena Katz, presentes na introdução do livro
―Bandoneon‖:
O poder está lá, no encenado, cena onde o logos autoritário foi pulverizado, reino de
sujeitos evanescentes e oralidades disseminadas. Acordo nascido de desacordos.
Confluências de vozes históricas com as virtudes metafóricas que dão presença ao
outro que escuta o que digo a mim, e ao eu que ouve o que falo com os outros. Seres
que são espaços vazios carregados de iminências.‖ (KATZ, 1989, p.10)
Katz (1989, p.10) pontua ainda que ―no trânsito dos sentidos que promove, Pina Bausch
encapsula na sua escrita singular o saber sensível das formas.‖
Sobre um dos objetivos das investigações artísticas de Lygia Clark que podem ser
observados também em procedimentos de Pina Bausch é importante trazer a seguinte
consideração de Sueli Rolnik:
(...) reativar nos receptores de suas criações esta qualidade de experiência
estética. Refiro-me à capacidade dos mesmos de deixar-se afetar pelas forças dos
46
Entrevista com Hubert Godard. Abordagem terapêutica do corpo. ―Olhar Cego‖. Por Suely Rolnik. 2004.
105
objetos criados pelas artistas e do ambiente onde estes eram vividos; mas
também e sobretudo, de deixar-se afetar, por extensão, pelas forças dos
ambientes de sua existência cotidiana.
106
Considerações finais ou linhas finais que se iniciam
Apontadas as entradas, trilhados os caminhos, desenhadas e previstas as conclusões e
finalizações de um trajeto, encontro o inesperado. Saídas que apontam novas entradas,
questões que se respondem enquanto respostas sugerem novas perguntas. Quando fecho este
último ato, outros se abrem. O final desta trajetória me anuncia que o fim é apenas mais uma
convenção. É preciso então parar para que os movimentos continuem.
Sob este ponto de vista que prevê o evento artístico como experiência, como trânsito e
lugar que não se limita, mas que se move, Lygia Clark e Pina Bausch trazem apontamentos e
procedimentos importantes. Eles rompem modelos e permitem aproximações e trânsitos entre
diferentes campos. A ação teatral como movimento subjacente às práticas das artistas aparece
como relação que inclui sob um mesmo teto obra e espectador.
A partir da verificação de procedimentos presentes nas práticas por elas desenvolvidas é
possível afirmar que seus trabalhos acontecem em terrenos móveis, em zonas fronteiriças
onde arte e vida se tocam. O conhecido é percebido sob novas perspectivas. Perceber é
exercitar um olhar que entende com o corpo todo, acionar mecanismos que integram,
interligam e desenham novos ambientes em lugares comuns.
Sob esta perspectiva é possível afirmar que em Pina Bausch a obra apresenta-se como
potencialidade de movimento e interação, o que acontece no palco reverbera diretamente no
corpo do espectador com a utilização de estímulos sensoriais e mecanismos que favorecem o
cruzamento do espaço cênico com o espaço do público. A obra em Lygia Clark acontece no
contexto de propostas que incentivam o movimento, a participação e a presença corporal e
física do espectador.
As interações que acontecem são diretas ou indiretas, como aquelas que solicitam a
alteração da posição do espectador, como em propostas em que o público é convidado a
participar de ações e a colocar-se diante de outras pessoas, ou como em procedimentos que
mantém o espectador numa posição de suposto observador e que nesta disposição solicitam
sua participação ativa através de processos e procedimentos que diminuem os limites entre o
espaço da obra e o espaço do público e criam um espaço comum de experiência. Em ambos os
procedimentos o corpo do espectador surge como um suporte do evento artístico. Um suporte
que entra em diálogo com os estímulos oferecidos no contexto do acontecimento da arte. Um
corpo que ativando o evento diretamente ou não é por ele ativado.
107
A reverberação de um corpo sutil ou de um corpo vibrátil é o principal ponto dinâmico
e instável entre a obra e o espectador apontado neste percurso. Ponto este que confunde
limites entre uma coisa e outra e que solicita a agitação e o deslocamento de pensamentos que
só acontecem na experiência e ação do corpo. A obra, neste contexto, surge como estímulo de
devires múltiplos e singulares.
Há uma experiência que favorece a compreensão que escapa à palavra, que escapa ao
gesto e que transita nas interações do corpo com o espaço. A oscilação permanente
desencadeada pelas propostas de Bausch e Clark permitem ao espectador percorrer caminhos
desconhecidos, acessar registros, silenciar, parar e atravessar limites entre obra e espectador e
arte e vida. O espetáculo se molda, se abre, ecoa, pulsa e não cabe nos limites do palco ou do
quadro. Há vida em demasiado. E toda vida em seu limite transborda. Vetores, forças e
desejos se espalham e atravessam um lugar que era antes exclusivo da plateia. Um
pensamento que só existe quando o corpo se move. Um corpo de pensamento, um corpo
vibrátil.
Em última instância é possível dizer que tanto Lygia quando Pina, por caminhos
bastante distintos, se interessam por este instante em que o corpo vibra, ressoa, rodopia e
descobre trajetos desconhecidos. O espaço se expande, a obra devora o espectador e o
acontecimento artístico repercute criando uma dimensão que consolida a experiência estética.
Tal movimento coincide com um passeio pela quarta dimensão, quando o espectador é
participante do evento, se desloca com ele, desliza, recorda, se move e percorre caminhos
desconhecidos. Um instante em que ele como corpo, pensamento ou matéria física transita,
caminha, flutua, pisa, olha, observa, escuta, expande, contrai, acelera e desacelera fazendo-se
sempre novo. O contato do particular com o coletivo. Os toques que o corpo provoca e
aqueles que provocam o corpo. Um ambiente, qualquer lugar, espaço onde estímulos
trafegam, encontram e desencontram corpos. O ambiente é ativo assim como o corpo que
guarda e devolve impressões, sensações, afetos e memórias.
Esta dissertação coincide com a investigação de espaços que se fundamentam em
aberturas e trânsitos. Espaços que absorvem, metabolizam e se transformam continuamente.
Espaços que não cabem em si mesmos e que por isso se alargam, expandem, hibridizam,
contraem, movem e pausam.
108
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Nota sobre o uso das imagens:
A autora envidou-se em localizar todos os detentores dos direitos das imagens reproduzidas
nesta dissertação e agradece qualquer informação que venha a completar e/ou corrigir os
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imagens. Algumas delas, no entanto, não foram localizadas e tiveram de ser escaneadas de
fontes diversas, o que explica a apresentação de imagens sem os devidos créditos.
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