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A construção da identidade a partir da genealogia e da tradição oral
em “Raízes”, de Alex Haley
EDSON PEDRO DA SILVA
No final da década de setenta observou-se, nos Estados Unidos, um pronunciado
interesse por genealogia e pesquisas sobre origens étnicas, ancestralidade e linhagens
genealógicas. Tal entusiamo pode ser explicado em grande parte por uma complexa
conjuntura de valorização da etnicidade com vinculações, em muitos aspectos, na luta
pelos direitos civis da população afro-americana ocorrida na década anterior. Não se
pode deixar de apontar, no entanto, a influência de um fenômeno de inegável impacto
no cenário cultural norte-americano da mesma época: a publicação e posterior
adaptação televisiva do romance “Raízes”, de autoria do escritor e jornalista Alex
Haley.
“Raízes”1 foi publicado em 1976 após noves anos de exaustiva pesquisa
empreendida por seu autor. Com o título original de “Roots: the saga of an American
Family”, a narrativa reconstrói um relato de tradição oral que os familiares de Haley
transmitiram de geração a geração, a partir de um ancestral conhecido como “o
africano”. Com base neste relato, Alex Haley iniciou uma investigação para registrar em
livro sua saga familiar, fundamentando-a com registros da tradição oral e documentos
históricos. A narrativa tem início na segunda metade do século XVIII, em uma aldeia
nas proximidades de Juffure, às margens do rio Gâmbia, na África Ocidental. Neste
local o africano Kunta Kinte, um jovem mandinga, foi capturado por mercadores de
escravos e, em uma tortuosa travessia em um navio negreiro, é trazido aos Estados
Unidos. Vendido em um leilão para um proprietário de terras da Virgínia, recebeu de
seu dono um novo nome: Toby. Disposto a lutar por sua liberdade e preservar sua
herança cultural, Kunta Kinte recusou-se a aceitar o nome escolhido por seu senhor e
tentou escapar do cativeiro diversas vezes, sem sucesso. Subjugado pela violência do
USP, Doutorando em História Social 1 O romance recebeu no Brasil o título de “Negras Raízes”. Adotamos neste texto o título “Raízes” tanto
para o romance quanto para o teledrama baseado no livro
2
regime escravista, ele acaba por se unir à Belle, uma escrava cozinheira com quem tem
uma filha, a quem dá o nome de Kizzi.
Sob o jugo da estrutura escravista, Kunta Kinte encontra uma maneira de resistir
e reforçar sua identidade étnica ao transmitir a Kizzi o relato de sua origem, registrando
inclusive os vocábulos de origem africana que servirão de rastro para a futura
reconstrução genealógica da família. Posteriormente vendida a outro proprietário após
envolver-se em uma tentativa de fuga, ela se torna o primeiro elo de transmissão entre
as gerações ao manter a tradição e também repassar a seu filho Chicken George o
mesmo relato. Primeiro membro da família a obter a alforria, antes mesmo da
emancipação dos escravos afro-americanos, Chicken George refaz a conexão do núcleo
familiar com a África, rememorando seu avô Kunta Kinte, nascido em liberdade. Alex
Haley conclui seu romance reconstruindo a linhagem que o liga a Chicken George e a
seus outros antepassados africanos.
Alex Haley produziu seu romance a partir de uma narrativa oral, transmitida de
geração a geração como uma marca de identidade que ultrapassou os limites familiares
para se tornar, após a publicação do livro e sua versão audiovisual, um símbolo de
valorização étnica para todos os afro-americanos. De fato, a sobrevivência do relato e
dessa marca identitária africana foi algo bastante incomum se considerarmos as
especificidades do violento regime escravista estadunidense em que o processo de
desenraizamento (natal alienation) foi bem mais profundo quando comparado, por
exemplo, ao regime escravista no Brasil. O historiador Orlando Paterson, ao descrever o
que caracterizou de “morte social” do escravo, aponta de que maneira os laços
familiares eram desfeitos no escravismo, não apenas em relação aos parentes vivos, mas
também aos mortos: “...formalmente isolado de suas relações sociais com aqueles entre
os quais vivia, ele (o escravo) também estava culturalmente isolado da herança social de
seus antepassados” (PATTERSON, 2008: 24)
“Raízes” é um exemplo interessante de um produto da indústria cultural que
permite articular conceitos e reflexões sobre memória, tradição oral e parentesco a partir
da recuperação do passado por meio da reconstrução genealógica e da narrativa. A
adaptação e veiculação do romance em uma série televisiva pouco tempo depois de sua
publicação foi fundamental para a divulgação da obra e ampliou a questão do
afrocentrismo para a esfera pública. Para os afro-americanos engajados nos movimentos
de valorização étnica, a questão do retorno à ancestralidade finalmente alcançou uma
ampla dimensão pública há muito tempo ansiada.
3
A aproximação entre o trabalho empreendido por Alex Haley com o fazer
historiográfico engendrou uma série de polêmicas em relação à sua metodologia de
pesquisa e consequentemente à natureza da própria obra, oscilando entre a declaração
inicial de veracidade até uma classificação quase que totalmente ficcional da obra
literária.
É fundamental destacar a centralidade da história oral e de sua metodologia na
trajetória de recuperação do passado empreendida por Alex Haley. O próprio autor,
antes mesmo da publicação de “Raízes”, escreveu um artigo para a revista “The Oral
History Review” apresentando sua narrativa familiar e as etapas de sua investigação na
busca de outros relatos ou evidências documentais que a corroborassem. Haley inicia o
texto destacando a cadeia geracional que permitiu a sobrevivência do relato a partir de
Kunta Kinte, presente nas histórias relatadas por sua avó materna e acrescentou o
auxílio obtido pelo antropólogo e historiador belga Jan Vansina para decifrar as palavras
“ko” e “kamby bolongo” (termos da tradição mandinga presentes no relato), indicando
posteriormente o caminho para a investigação a partir de outros detalhes. As orientações
de Vansina levaram Alex Haley até Juffure, onde ele foi apresentado ao griot Kebba
Kanga Fofana.
As palavras “ko” e “kamby bolongo” podem ser caracterizadas como um dos
conectores entre o tempo físico e o tempo vivido apontados pelo filósofo francês Paul
Ricoeur em sua articulação das formas temporais em sua obra “Tempo e Narrativa”. Os
termos (considerando sua especificidade de uma transmissão oral) funcionam como
rastro, vestígio de uma presença que já não é, mas cuja significância é reconstruída pelo
historiador. Esta busca e orientação partem do presente, para significar um passado
findo. Nesse sentido, a coisa marcante é a transmissão dos termos pelo ancestral
comum. A coisa marcada é a transmissão, no decorrer das gerações, das mesmas
palavras que se tornaram objeto de investigação no presente (RICOUER, 1984: 196-
207).
Fofana permitiu a Alex Haley estabelecer o elo entre o relato familiar e a
tradição oral mandinga, ao localizar a história de Kunta Kinte, filho de Omoro e Binta
Kinte, um membro do clã que nunca mais foi visto após sair em busca de um tronco
para confeccionar um tambor. A descrição de Alex Haley de seu encontro pessoal, em
uma vila próxima a Juffure, com o griot Fofana e outras figuras relacionadas com sua
ancestralidade recuperada, concretizam a conclusão de sua busca, ao menos sob o ponto
de vista da tradição oral.
4
A história oral e a tradição oral foram, e em certa medida ainda são, alvos
frequentes do ceticismo por parte de uma parcela da historiografia de tradição
positivista quando não consideradas no cotejamento com fontes escritas. No que diz
respeito à tradição oral, a especificidade desta forma de expressão, frequentemente
ligada a elementos míticos e a sociedades àgrafas, salienta aspectos complexos que
geralmente são negligenciados nas críticas às evidências de determinadas reconstruções
históricas. Como afirma Jan Vansina a respeito da validade ou não de um relato da
tradição oral como evidência histórica: “A resposta não pode ser um simples sim ou
não. Pelo contrário, como acontece com outros tipos de fontes históricas, esta é a
questão que leva a um exame de como a confiabilidade de várias tradições particulares
pode ser avaliada. ” (VANSINA, 1985: xxii)
Ao ser aprisionado na África e transportado para os Estados Unidos, Kunta
Kinte passou a ser parte de um registro documental que foi acionado por Haley tanto na
comprovação do relato familiar quando na construção de sua narrativa. O percurso de
Alex Haley pelos vários arquivos sobre o comércio escravista e sobre o registro de
propriedade e identidade dos senhores de seus antepassados escravizados procurou,
dentro do universo narrativo do período escravista, estabelecer o tom de veracidade
sugerido pela tradição oral. Desta forma, no universo ancestral africano é a centralidade
da tradição oral que se estabelece enquanto fonte primordial. Após a chegada de Kunta
Kinte aos Estados Unidos e o início de sua trajetória familiar na América que permitirá
a sobrevivência de seu relato, os documentos escritos ganham importância em sua
finalidade de fundamentação histórica, como ele mesmo explica: “Comecei seguindo o
trilho da história. Em registros de fazendas, testamentos, recenseamentos. Documentei
trechos aqui, pedaços ali. Em 1967 senti que tinha sete gerações do meu lado americano
documentadas”2 (HALEY, 1997: 149).
Fenômeno editorial e televisivo, marco cultural de um anseio da comunidade
afro-americana na busca por sua ancestralidade, “Raízes” foi alvo de uma série de
críticas, tornando-se também objeto de uma ampla controvérsia envolvendo plágio e
direitos autorais. O destaque ao escrutínio e à crítica dos historiadores profissionais para
o trabalho de pesquisa e fundamentação documental empreendida por Alex Haley é o
2 (Tradução do autor). No original: “I began following the story’s trail. In plantation records, wills, census
records, I documented bits here, shreds there...By 1967, I felt I had the seven generations of the U. S. side
documented.”
5
aspecto que mais nos interessa, por evidenciar a complexa relação entre memória
coletiva, tradição oral e narrativa.
A crítica historiográfica evidenciou falhas tanto em relação ao cotejamento dos
registros documentais selecionados para comprovar o encadeamento de sua narrativa
como a própria recuperação da história de seus ancestrais africanos por meio do griot
Kebba Kanga Fofana. As críticas dirigidas à reconstrução genealógica foram feitas em
duas frentes: a primeira delas colocando à prova a veracidade dos relatos orais ouvidos
pelo autor para localizar a origem mandinga de Kunta Kinte e a segunda que apontou
erros primários na avaliação de documentos históricos que comprovassem a identidade
de Kunta Kinte como o escravo Toby, e da própria veracidade dos fatos, datas e
personagens presentes em “Raízes”. A crítica dos genealogistas Gary B. e Elizabeth
Shown Mills são um exemplo da avaliação feita por historiadores profissionais para os
métodos de reconstrução histórica empreendidos por Haley:
Evidências históricas indicam que o Sr. Haley herdou as mesmas frustrações
enfrentadas por inúmeros outros genealogistas amadores que procuram
documentar tradições e lendas familiares tornando-se vítima da mesma
armadilha psicológica que atrapalhou muitos outros: uma relutância em
aceitar qualquer verdade que o desvie da lenda da família querida. 3 (MILLS,
1981: 6)
Na ausência de registros documentais que pudessem validar a trajetória de Kunta
Kinte antes de seu aprisionamento e entrada no universo escravista, Alex Haley deu
crédito ao papel do griot Fofana como o intermediário que preservou a tradição oral de
sua família. Sua própria impressão ao ouvir o longo relato de Fofana a respeito da
genealogia dos Kinte, no exato momento em que o griot localiza o desaparecimento de
Kunta após sair da aldeia para cortar madeira, revela o preenchimento de suas
expectativas em relação à comprovação do relato familiar:
Fiquei imóvel, como se fosse uma pedra. Meu sangue parecia ter congelado.
Aquele homem, que passara toda a sua vida numa aldeia do interior africano,
não tinha condições de saber que acabara de repetir o que eu ouvira ao longo
de todos os anos da minha infância, na varanda da casa de minha vó, em
Henning, Tennessee. (HALEY, 1976: 520)
3 (Tradução do autor). No original: “Historical evidence indicates that Mr. Haley has been heir to the
same frustrations faced by untold numbers of other amateur genealogists who seek to document family
traditions and legends, and he has fallen victim to the same psychological hangup that has entrapped
many others: a reluctance to accept any truths that deviate from the cherished family legend.”
6
O fato é que o Fofana aparentemente não era um iniciado na complexa
ritualística da tradição oral dos mandingas. Evidências apontaram que o griot procurou
dar a Haley um relato que pudesse satisfazer as aspirações de sua jornada. E o próprio
Haley havia sido alertado, durante sua investigação no Gâmbia, sobre seu excesso de
confiabilidade na narrativa apresentada por Fofana por Bakari Sidibe, um acadêmico
gambiano: “é impossível representar a performance de um griot através da escrita, que
perde muito de seu estilo, qualidade vocal e carisma, porque eles são artistas”4
(DELMONT, 2016: 51).
É necessário, no entanto, fazer uma caracterização da tradição oral na África
subsaariana, de suas cadeias de transmissão e das figuras envolvidas nesta tradição. A
esse respeito, nos esclarece Hampete A. Bâ:
Não se deve confundir os tradicionalistas-doma, que sabem ensinar enquanto
divertem e se colocam ao alcance da audiência, com os trovadores e
contadores de história e animadores públicos, que em geral pertencem à casta
dos Dieli (griots) ou dos Woloso ("cativos de casa"). Para estes, a disciplina
da verdade não existe; e, como veremos adiante, a tradição lhes concede o
direito de travesti-la ou de embelezar os fatos, mesmo que grosseiramente,
contanto que consigam divertir ou interessar o público. "O griot" como se diz -
"pode ter duas línguas. (BÂ, 2010: 190)
A partir desta perspectiva, Fofana pode ter recriado trajetórias genealógicas
inexistentes e confirmado fatos e eventos que possibilitassem a Alex Haley estabelecer
o elo esperado entre o relato de sua tradição familiar afro-americana e as origens
ancestrais de Kunta Kinte.
Há aqui uma aproximação com as proposições do antropólogo Tim Ingold a
respeito da linha genealógica e as distinções entre a noção de pedigree e de genealogia,
associando a primeira a uma construção cultural e a segunda a uma comprovação
científica de linearidade (INGOLD, 2007: 104-119). As críticas direcionadas à Haley no
crédito dado à reconstrução genealógica do griot Fofana ou até mesmo na própria
diagramação genealógica de seus parentes escravizados em conformidade com a sua
construção narrativa parecem partir da noção da possibilidade de uma genealogia
depurada. O que aparentemente não foi observado pelas avaliações críticas à obra do
escritor é o caráter mitológico das genealogias e a sua pouca proximidade com uma
verdade histórica objetiva. Embora tais críticas tenham se justificado em alguma medida
4 Tradução do autor. No original: “It is impossible to represent a griot’s performance in writing, which
loses much of this style, voice quality, and general showmanship, for they are entertainers”.
7
ao destacar as afirmações de Haley no que diz respeito o aspecto de veracidade de sua
narrativa fundamentada em pesquisa documental, faltou a essas avaliações compreender
as intenções e os significados subjacentes à feitura do romance e de seu impacto.
O historiador Paul Thompson também apontou o excesso de entusiasmo por
parte de Alex Haley com a identificação de Kunta Kinte e sua família africana antes de
sua captura e transporte para o continente americano. Mas Thompson também destaca
que, a despeito das imprecisões:
O relato de Haley prova, com grande vigor, o prestígio de que desfrutava o
historiador oral, antes que a disseminação da documentação nas sociedades
letradas tornasse supérfluos esses momentos públicos de revelação histórica.
Não podemos mais distinguir, como os suaíles, entre os ‘mortos vivos’, cujos
nomes ainda são relembrados na tradição oral, e os inteiramente esquecidos.
O genealogista de hoje trabalha em reservado silêncio no gabinete de um
arquivo. A memória foi rebaixada do status de autoridade pública para o de
um recurso auxiliar privado. (THOMPSON, 1988: 50).
Diante das imprecisões de “Raízes” reveladas após o sucesso do livro e da
minissérie, Alex Haley minimizou as críticas que recebeu alegando que seu objetivo não
foi o de construir um trabalho historiográfico (no sentido do método científico da
historiografia), mas um esforço de recriação ficcional com base em fatos reais do
passado e na tradição oral. A essa metodologia ele deu o nome de faction (uma
conjunção dos termos em inglês “fact” and “fiction”). As alegações de Alex Haley
referentes a uma imaginação ficcional calcada em fatos e eventos reais estabelecem um
diálogo com o debate a respeito dos limites entre a história, a narração e a ficção e a
própria natureza literária da escrita da história.
As críticas sobre as falhas metodológicas na investigação de Alex Haley também
permitem uma aproximação com aquilo que um outro antropólogo, Michael Herzfeld,
chama de “distinções simplistas entre culturas ‘orais’ e ‘literárias’ – como se culturas
inteiras pudessem ser definidas nesses simples termos fracassados” (HERZFELD, 2014:
81). Herzfeld também procura apontar a importância dos sentidos de história e do
passado pensando também os métodos historiográficos dos interlocutores algo que
aparentemente não foi levado em conta por aqueles que procuraram deslegitimar a
pesquisa empreendida pelo autor de “Raízes” evocando os pressupostos da
historiografia de tradição positivista.
Pode-se fazer aqui uma analogia com a polêmica proposição de Hayden White
de que a recriação do passado pelo historiador através do ato poético da narrativa não
faz referência a um passado acessível tal como realmente aconteceu, tema que despertou
8
a discussão do papel da imaginação na escrita histórica e das aproximações da história
com o gênero literário. Herzfeld menciona White ao apontar que “as narrativas
principais da historiografia ocidental representam uma sucessão de dispositivos dos
quais se pode dizer que nenhum oferece uma interpretação literal do passado”
(HERZFELD, 2014: 88).
Ao apresentar o texto histórico como um relato literário, White valoriza o papel
da linguagem figurativa tanto para caracterizar os objetos da representação histórica
quanto em relação às estratégias pelas quais a narrativa apresentará a transformação
desses objetos no tempo. Tal aproximação, em sua concepção, não diminui o valor do
conhecimento histórico:
Dizer que conferimos sentido ao mundo impondo-lhe a coerência formal que
costumamos associar aos produtos dos escritores de ficção não diminui de
maneira nenhuma o status de conhecimento que atribuímos à historiografia.
Só o diminuiria se acreditássemos que a literatura não nos ensinou algo
acerca da realidade, por ter sido um produto de uma imaginação que não era
deste mundo, mas de outro, de um mundo inumano. (WHITE, 2001: 115)
As inúmeras críticas em relação aos aspectos factuais e ficcionais presentes em
“Raízes” poderiam se apoiar nas afirmações de Hayden White a respeito do papel do
sentido da narrativa e da imaginação historiográfica.
Leslie Fishbein aponta que as inexatidões factuais de “Raízes”, tanto no romance
como em sua adaptação para televisão, não foram cruciais para diminuir a importância
da obra porque “os fatos eram muito menos significantes do que os mitos que ‘Raízes’
desejava gerar” (FISHBEIN, 1999: 285). Assim, o objetivo de Alex Haley aponta para a
construção de uma imagem mitológica de determinada representação da ancestralidade
afro-americana. Como afirma Stephanie Athey:
O foco apenas na manipulação incorreta da recuperação histórica efetuado
por Haley ignora a relevância de seu livro para seu momento contemporâneo.
É a maneira pela qual Haley se baseia na tendência acadêmica e popular para
recuperar a história e, em seguida, a canaliza em uma direção política e
emocional específica que deve ser examinada.5 (ATHEY, 1999: 174)
5 Tradução do autor. No original: “To focus solely on Haley’s mishanding of the work of historical
recovery is to miss the relevance of his book to the contemporary moment. It is the way in which Haley
draws on the scholarly and popular drive to recover history and then channels that drive in a specific
political and emotional direction that must be examinated. ”
9
Parece evidente que as avaliações críticas apontando a ausência do rigor
científico nas pesquisas empreendidas por Alex Haley e em suas conclusões para a
feitura de sua obra ignoraram a real natureza da proposta do escritor ao construir o seu
romance. De fato, tais críticas veem o passado recuperado por Haley sem levar em
consideração as diferenças entre memória e história e a relação de ambas com a
afirmação da identidade. Como afirma o historiador Allan Megill, ao se referir à
valorização da memória e sua relação com a afirmação da identidade:
uma alta valorização da memória tende a entrar na historiografia (e no
interesse público na história) naqueles pontos em que eventos e circunstâncias
históricas se cruzam com a experiência pessoal e familiar. (MEGILL, 2007:
53)
Ao expandir a história de Kunta Kinte para além da experiência familiar,
possibilitando que o relato alcançasse um público mais amplo e se tornasse uma
narrativa exemplar da sobrevivência da ancestralidade africana mesmo na violenta
estrutura escravista, Alex Haley equiparou-se ao griot Kebba Fofana em sua
performance de experiente contador de história. Como aponta Matthew F. Delmont:
“Para Haley, ouvir a Kebba Fofana Kinte contar a história do clã Kinte deve ser sido
como olhar-se no espelho”6 (DELMONT, 2016: 52).
Recuperemos os argumentos da historiadora Gabrielle Spiegel, ao advogar a
impossibilidade de uma conversão recíproca entre a memória e a história. Ao se referir à
questão do trauma na memória e na história judaica, esta pesquisadora elenca uma série
de características da memória que se adequam ao empreendimento de Alex Haley:
monumentalização, reencarnação do que já viveu, caráter litúrgico do passado e
presença da oralidade (SPIEGEL, 2002: 149-162).
Spiegel também faz referência a uma inscrição presente no Yad Vashem, o
museu do Holocausto em Israel, que poderia ser aplicada facilmente para o caso de
“Raízes”: “o esquecimento leva ao exílio enquanto a memória é o segredo da redenção”.
Diáspora, exílio, redenção, são termos presentes nas realidades históricas da
comunidade judaica e da comunidade afro-americana. No caso da segunda, a redenção
também é o retorno às raízes, a África edênica em que o escravizado vivia livre. Um
sentido de liberdade e de nobreza que Alex Haley reconstruiu a partir do passado para
informar um anseio do presente. Uma memória que não é capaz de performar
6 Tradução do autor. No original: “For Haley, listening to Kebba Fofana Kinte tell the story of the Kinte
clan must have been like looking in a mirror”.
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historicamente porque se nega a manter o passado no passado. Mais do que isso: a
presença desse passado é parte fundamental de um esforço de uma história afirmativa
que tem muito mais de memória do que de história.
Jan Vansina, que teve um papel fundamental na busca de Alex Haley por sua
ancestralidade africana, nos oferece uma reflexão pertinente sobre a importância
documental da tradição oral ao destacar seu aspecto de representação do passado feita
no presente:
Ninguém pode negar o passado ou o presente nas tradições orais. Atribuir
todo o seu conteúdo ao presente evanescente, como alguns sociólogos fazem, é
mutilar a tradição; é reducionista. Ignorar o impacto do presente, como
alguns historiadores fizeram, é igualmente reducionista. As tradições devem
sempre ser entendidas como refletindo passado e presente de uma só vez.7
(VANSINA, 1985: xii)
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DELMONT, Matthew. Making Roots: a nation captivated. Oakland: University of
California Press, 2016
7 Tradução do autor. No original: “One cannot deny either the past or the present in them. To attribute
their whole content to the evanescent present as some sociologists do, is to mutilate tradition; it is
reductionistic. To ignore the impac of the present as some historians have done, is equaly reductionistic.
Traditions must always be understood as reflecting both past and present in a single breath”
11
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