configurações do processo comunicativo da leitura sob um olhar pragmático-reflexivo - as...
Post on 24-Nov-2015
21 Views
Preview:
TRANSCRIPT
-
GABRIELLE STANISZEWSKI
CONFIGURAES DO PROCESSO COMUNICATIVO DA LEITURA SOB UM OLHAR PRAGMTICO-REFLEXIVO:
AS PRTICAS LEITORAS DE ALUNOS DO 3 ANO DO ENSINO MDIO
Universidade Federal do Paran
Curitiba 2014
-
GABRIELLE STANISZEWSKI
CONFIGURAES DO PROCESSO COMUNICATIVO DA LEITURA SOB UM OLHAR PRAGMTICO-REFLEXIVO:
AS PRTICAS LEITORAS DE ALUNOS DO 3 ANO DO ENSINO MDIO Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Comunicao no Curso de Ps-Graduao em Comunicao, Setor de Artes, Comunicao e Design da Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Jair Antonio de Oliveira
CURITIBA 2014
-
Catalogao na publicao Fernanda Emanola Nogueira CRB 9/1607
Biblioteca de Cincias Humanas e Educao - UFPR
Staniszewski, Gabrielle Configuraes do processo comunicativo da leitura sob um olhar
pragmtico-reflexivo : as prticas leitoras de alunos do 3 ano do ensino mdio / Gabrielle Staniszewski Curitiba, 2014.
91 f. Orientador: Prof. Dr. Jair Antonio de Oliveira
Dissertao (Mestrado em Comunicao) Setor de Artes, Comunicao e Design da Universidade Federal do Paran.
1. Comunicao. 2. Leitura Ensino mdio So Mateus do Sul -PR.
3. Pragmtica. I.Ttulo. CDD 302.2
-
Ao meu filho Otvio, para que ele um dia
compreenda as razes de minha ausncia nestes
tempos de hoje.
-
AGRADECIMENTOS
Agradeo primeiramente aos meus pais, Rosane e Gilberto, por estarem sempre ao
meu lado, especialmente preenchendo as lacunas deixadas por mim nesses dois anos em que
estive indo e vindo e deixando os meninos em suas abenoadas mos.
Ao Diogo, companheiro de sempre, que me convenceu diariamente de que eu era
capaz de cumprir essa etapa com sabedoria, nos momentos em que eu mesma tinha dvidas.
Ao primeiro orientador que tive na vida, Prof. Me. Marcos Jos Zablonsky, que ainda
na graduao me incentivou a dar o primeiro passo em direo ao que na poca era apenas
uma ideia.
Ao orientador da ideia enfim concretizada, Prof. Dr. Jair Antonio de Oliveira, por me
ensinar a caminhar com meus prprios ps e a definir aquilo que sempre fui: Pragmtica.
s Professoras Regiane Regina Ribeiro e Djane Antonucci Correa, por aceitarem com
carinho o convite para compor a banca avaliadora, e por tanto contriburem para o
desenvolvimento deste trabalho.
E, finalmente, agradeo aos demais Professores do Programa de Ps-Graduao em
Comunicao da Universidade Federal do Paran, por participarem de forma efetiva na minha
formao, no apenas na configurao desta dissertao, mas na constituio da profissional
que hoje posso dizer que sou.
-
Para esses pesquisadores apressados,
recomendo o seguinte conselho do mestre J.L.
Austin: Neither a be-all nor an end-all be (no
seja nem um faz-de-tudo nem um encerra-tudo)
(RAJAGOPALAN, 201-).
-
RESUMO
O carter comunicacional da Leitura faz com que ela seja objeto de estudo em diversas reas. Desta forma, as teorias desenvolvidas na Escola de Constana, inicialmente como parte dos Estudos Literrios, foram sendo incorporadas ao escopo dos Estudos de Recepo no campo da Comunicao. Partindo dessas diretrizes, o pressuposto do presente trabalho est no fato da Leitura constituir um processo comunicativo e, como tal, ser passvel de produo de sentidos por parte de seu leitor/receptor. A pesquisa tem como objetivo compreender, a partir de uma perspectiva Pragmtica da Comunicao, quais as concepes de alunos do 3 Ano do Ensino Mdio de uma escola pblica em So Mateus do Sul/PR acerca das metforas Comunicao e Leitura, antes e aps uma prtica reflexiva. Intentando alcanar este objetivo principal, foram propostas leituras que apresentassem gneros textuais diversificados e temas capazes de gerar discusso em um nvel alm-texto, realizando o estudo atravs de uma interveno desenvolvida sob uma abordagem pragmtica. A pesquisa se caracteriza como qualitativa e utiliza o mtodo da pesquisa-ao, efetivado em encontros semanais de Leitura com os alunos, e mediados pelo ambiente escolar. Para a coleta de dados, tambm foram utilizados questionrios abertos e registros em dirio de campo como materiais de apoio ao mtodo, escritos e analisados adotando-se a perspectiva Pragmtica dos usos da linguagem. Os resultados evidenciaram que os alunos despertaram o olhar para uma nova forma de compreender as metforas em questo, se apropriaram das discusses realizadas nos encontros de Leitura e alguns passaram a praticar mais frequentemente e a apreciar o ato da Leitura. Ao final, questionam-se os abismos existentes entre teoria e prtica leitora e conclui-se que a Leitura um lugar de recepo em Comunicao que envolve inmeras variveis e deve ser vista como tal.
Palavras-chave: Pragmtica. Comunicao. Estudos Literrios. Prtica Reflexiva. Leitura.
-
ABSTRACT
Readings communication character causes it to be an object of study in several areas. Thus, the theories developed at Konstanz School, originally part of Literary Studies, were being incorporated into the scope of Reception Studies in Communication. Based on these guidelines, the assumption of this work is in the fact of Reading constitute a communicative process and, as such, be subject to production of meaning by its reader / recipient. The research aim to understand, from a Pragmatics perspective of Communication, the conceptions of 3rd year High School students in a public school from So Mateus do Sul/PR about metaphors Communication and Reading before and after a reflective practice. Attempting to achieve this main objective, were readings tenders offering diverse textual genres and topics open for discussion at a level beyond the text were proposed, performing the study through and intervention under a pragmatic approach. The research is characterized as qualitative and uses the action research method, realized by weekly reading meetings with students, and mediated by the school environment. For data collection, open questionnaires and records in field diaries were also used as method support materials, written and analyzed under a Pragmatic view of language uses. The results show that students aroused the look to a new way of comprehending the metaphors in question, appropriated from discussions of Reading meetings and some of them started to read more frequently and to enjoy the act of Reading. Lastly, question is about the distance between readings theory and practice, and concludes that Reading is a place of receipt in Communication involving many variables, and should be seen as such.
Key-words: Pragmatics. Communication. Literary Studies. Reflexive Practice. Reading.
-
SUMRIO
1 INTRODUO ............................................................................................................... 12
2 A DIVERSIDADE DE CONCEPES ACERCA DO PAPEL DE RECEPTOR ...... 16
2.1 AS CINCO GRANDES TRADIES, PARA JENSEN E ROSENGREN ..................... 16
2.2 TRADIO LATINO-AMERICANA ........................................................................... 19
3 COMUNICAO E O LEITOR NA ESCOLA DE CONSTANA............................. 22
3.1 JAUSS E A ESTTICA DA RECEPO ..................................................................... 23
3.2 ESTTICA DO EFEITO: A VARIANTE DE ISER ....................................................... 27
3.2.1 O Papel do Vazio na Produo de Sentidos.................................................................. 29
3.2.2 Um Festival de No Ditos nos Textos Modernos ...................................................... 34
3.3 INFLUNCIA DE AUSTIN E A TEORIA DOS ATOS DE FALA .............................. 35
3.3.1 As Lacunas Deixadas pela Teoria Iseriana e Por Que Utiliz-la ................................... 39
4 ECOSSISTEMA COMUNICATIVO E A PRTICA REFLEXIVA NA ESCOLA .... 41
5 MTODOS E OBJETO EMPRICO DE PESQUISA .................................................. 46
5.1 PLANO DE AO ........................................................................................................ 47
5.1.1 Percurso Entre a (in)Teno e o Possvel ..................................................................... 48
5.1.2 Configurao da Escola .............................................................................................. 50
5.1.3 Questionrio ................................................................................................................ 50
5.1.4 Materiais e Dirio de Campo ....................................................................................... 51
6 ANLISE E DISCUSSO DOS DITOS DADOS ...................................................... 55
6.1. DOS QUESTIONRIOS O ANTES E O DEPOIS ..................................................... 57
6.1.1 Momento Inicial .......................................................................................................... 57
6.1.2 O Questionrio Final ................................................................................................... 59
6.1.3 Consideraes Acerca do Comparativo Entre os Questionrios.................................... 62
6.2 A PRAGMTICA DO PROCESSO .............................................................................. 63
6.2.1 O(s) Contexto(s) .......................................................................................................... 65
6.2.2 Contexto Escolar e Ecossistema Comunicativo ............................................................ 68
6.2.3 A Queda da Estrutura em Detrimento da Situao de Uso ............................................ 70
6.2.4 O Preencher dos Vazios Produo de Sentido a Partir dos No Ditos ........................ 72
6.2.5 O Performativo na Escrita e na Leitura ........................................................................ 73
6.2.6 Uma Prtica Social ...................................................................................................... 75
6.2.7 Consideraes Acerca do Processo .............................................................................. 77
-
7 CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 79
REFERNCIAS ................................................................................................................. 83
APNDICES ...................................................................................................................... 89
APNDICE 1 FORMULRIO DE PESQUISA ................................................................ 90
APNDICE 2 FORMULRIO DE PESQUISA N 2 ........................................................ 91
-
12
1 INTRODUO
Inicio esta pesquisa explicando o olhar pragmtico-reflexivo presente no ttulo. A
Pragmtica constitui uma perspectiva sobre o uso da linguagem na qual, entre outras
preocupaes, esto os no ditos: perceber o que est implicado em determinado enunciado, o
que se quis dizer com aquilo que se disse, a partir de um conhecimento compartilhado de
mundo, que pode ser chamado de um nvel de contexto. Pois bem, ento eu poderia afirmar
que o tema sobre o qual me debruo nesta pesquisa se refere a uma prtica reflexiva acerca de
um dizer obviedades que podem ser de conhecimento geral, mas que se encontram no nvel
dos no ditos, tais como: Leitura tambm Comunicao1.
E justamente este carter comunicacional da Leitura que faz com que ela seja objeto
de estudo em diversas reas. Mais que simplesmente receber o texto, decifrar seu cdigo ou
procurar responder pergunta O que o autor quis dizer com isso, afinal?, trata-se, neste
trabalho, de compreender que a Leitura um processo comunicativo e, como tal, passvel de
produo de sentidos por parte de seu leitor/receptor. Sendo assim, d-se maior importncia,
neste caso, s novas narrativas que so criadas no momento de seu uso do que propriamente
sua estrutura, pois a Leitura entendida da mesma forma que Martn-Barbero (2009)
compreende toda a Comunicao: como prtica social.
O problema de pesquisa que tenho em mos est relacionado suposta escassez de
leitura (hiptese) nos/dos processos comunicativos por parte de alunos do Ensino Mdio,
tomando como motivao minha prpria experincia. Se desde a infncia eu fui uma leitora
voraz, e adentrei o Ensino Mdio com a expectativa de que eu finamente iria aprender a ler os
grandes clssicos, a primeira experincia foi extremamente frustrante. A leitura de A Senhora,
de Jos de Alencar, interrompeu abruptamente a minha linha do tempo leitora. Rejeitei o livro
assim que no compreendi sua linguagem, completamente diversa da coleo Vagalume que
eu lera com tanto prazer nos anos anteriores. Aquela leitura burocrtica destinada avaliao
foi uma das poucas que eu realizei nos trs anos do Ensino Mdio, as demais foram todas
baseadas em resumos retirados da Internet.
Buscando compreender se esse tipo de inquietao pode fazer parte do cotidiano leitor
(ou no leitor) de outros adolescentes, a questo que elucida a dissertao , portanto, Como
1 Da mesma forma, o meu modo de narrar com o uso da fala em primeira pessoa em diversos momentos do texto constitui um recurso que visa assumir a minha relao com esta pesquisa sob uma perspectiva pragmtica, distinguindo falar sobre de falar em: eu no apenas observo a construo cientfica do meu objeto, mas atuo sobre ela desde as intervenes na vida dos sujeitos at a escolha das palavras.
-
13
alunos do 3 ano do Ensino Mdio de uma escola pblica em So Mateus do Sul concebem as
atividades de Leitura e Comunicao, antes e aps o contato com uma prtica reflexiva?. A
Escola foi escolhida como ambiente de trabalho por ser a instituio formal a se ocupar das
questes de letramento na vida dos indivduos, e o 3 ano do Ensino Mdio por ser um ano em
que a ateno costuma se voltar para atender s exigncias do vestibular, ou seja, identificar
nos prprios textos o seu significado, como se este fosse esttico e inerente ao caderno de
provas.
Nesse contexto, fui em busca do dilogo com os alunos acerca da possibilidade
necessidade? de uma leitura crtica (FERNANDES, 2010), no (apenas) no sentido de opor-
se s mensagens a que so expostos, mas de instig-los a refletir acerca de suas prticas
leitoras e a criar novos sentidos a partir desses textos, em vez de simplesmente decodific-los.
Essas trocas com os alunos estiveram norteadas pelo objetivo geral da pesquisa:
compreender suas concepes a respeito das metforas Leitura e Comunicao, antes e aps
uma prtica reflexiva (interveno), assim como descrever e apontar percepes acerca do
processo de reflexo crtica. Para alcanar o objetivo indicado, propus leituras de gneros
textuais diversificados e procurei incentivar os alunos para que discutissem no nvel alm-
texto assuntos trazidos com as leituras, assim como refletissem acerca de suas prprias
prticas leitoras a partir da relao que mantiveram com cada texto em especial.
Todas as etapas foram desenvolvidas a partir de uma abordagem Pragmtica da
Linguagem (AUSTIN, 1962a, 1962b; OLIVEIRA, 2002, 2012b), que um modo de olhar. A
partir dela, compreendemos como possvel fazermos coisas com palavras e nos
apropriarmos do processo comunicativo da Leitura, em vez de simplesmente passarmos por
ele como se ns, leitores, fssemos apenas seu ponto final.
A pesquisa se caracteriza como qualitativa, atravs do mtodo da pesquisa-ao. A
estratgia adotada a denominada por Blaikie (1993) de abdutiva, que compreende que
grande parte da atividade social se d sem reflexo, e somente quando questionados por
outrem a respeito de seu prprio comportamento que os atores sociais passam a,
conscientemente, buscar ou construir significados e interpretaes. Dessa forma, a pesquisa
foi desenvolvida atravs de encontros semanais de Leitura com os alunos. O contedo de cada
encontro foi definido buscando materiais impressos de gneros textuais diversificados entre si
em contedo e forma, como tirinhas, literatura infantil, poemas, crnicas, contos, letras de
msicas, etc.
Como mtodos auxiliares de pesquisa, foram aplicados dois questionrios abertos, um
no primeiro e outro no ltimo dia dos encontros, e o processo de interveno foi registrado em
-
14
um dirio de campo. A redao dos dirios e a anlise dos encontros so realizadas adotando-
se a perspectiva Pragmtica junto com uma metodologia que consiste em uma interpretao
pessoal dos hbitos de acordo com o nosso conhecimento implcito e explcito dos indivduos
e suas crenas e com as expectativas que decorrem deste conhecimento (OLIVEIRA, 2012b,
p. 2).
Os apontamentos trazidos pelos questionrios mostram que a Leitura, a princpio
apontada pelos alunos como sinnimo de aquisio (e no produo) de conhecimento, passou
a constituir tambm um momento de prazer. Por Comunicao, os alunos compreendem um
modo de expresso e conversa (dilogo) entre as pessoas. Os encontros deixaram de ser vistos
como apenas um momento para matar aulas de portugus para se tornarem um lugar de
aprendizado e despertar de um novo olhar para a Leitura. A escrita dos alunos mostrou-se
aprimorada na comparao entre os dois questionrios, embora tenhamos trabalhado com esta
questo em apenas um encontro2.
Os resultados tambm indicam que a relao dos adolescentes com a Leitura foi
alterada aps o processo de reflexo. De incio desinteressados e imaginando se depararem
com uma atividade tediosa e obrigatria, os encontros passaram a ser um momento prazeroso
e esperado durante toda a semana; a timidez no foi completamente vencida, mas cada vez
mais alunos realizavam leituras em voz alta aos colegas. Embora faa parte dos pressupostos
tericos utilizados apontar a estrutura dos textos como algo relevante para a compreenso e
posteriormente produo de sentidos dos estudantes, houve momentos nos quais pde-se
perceber que o simples contato com um livro fsico ou uma edio de jornal foi muito mais
significativo que conhecer sua estrutura contrariando os tericos de Constana.
A funo social deste trabalho consistiu em levantar questionamentos acerca da prxis
leitora desses adolescentes e, por meio de todo um semestre com encontros semanais de
Leitura, propor alternativas e compreender que a Leitura de textos, mas no s dos livros
exigidos no vestibular, como tambm de jornais, propagandas, msicas e todas as leituras de
mundo realizadas individual e coletivamente , nada mais que um momento de recepo em
Comunicao e, como tal, precisa ser pensada como um lugar de reflexo e no um mero
repositrio de palavras. Afinal, como sugere Kleiman (2011, p. 26), recipientes no
compreendem.
2 Evidentemente Leitura e escrita so indissociveis, mas neste trabalho optamos por um recorte terico-metodolgico que contempla apenas as questes ligadas primeira, devido ao ponto de partida estar ancorado nos Estudos Literrios de Recepo.
-
15
A discusso parte, portanto, com o captulo 2 descrevendo os diferentes entendimentos
de leitor/receptor para os Estudos de Recepo (JACKS; ESCOSTEGUY, 2005): de
completamente passivo a ativo e atuante, as principais tradies internacionais e vertentes
latino-americanas. Feita a contextualizao, destacamos os pressupostos tericos dos Estudos
Literrios da Escola de Constana (JAUSS, 1993; ISER, 1996) no captulo 3, visto que a
nica linha a se preocupar diretamente com o tipo especfico de receptor que nos interessa, ou
seja, o leitor. A premissa destes estudos de que a literatura um caso especial de
Comunicao, e seus autores so comumente trabalhados tambm no ensino da Leitura. No
captulo 4 apontamos as configuraes que fazem parte da mediao das prticas leitoras no
processo proposto, ao tratarmos do ecossistema comunicativo escolar e o que compreendemos
por uma prtica reflexiva.
O captulo 5 aponta o percurso trilhado a partir de uma orientao Pragmtica, que nos
levou a optar pelo mtodo qualitativo da pesquisa-ao. Diretamente relacionado a este, o
captulo 6 apresenta uma anlise dos dados produzidos no decorrer da pesquisa, relacionando-
os com algumas noes essenciais para uma Pragmtica da Comunicao. Algumas
consideraes so feitas na sequncia, acerca da possibilidade de se refletir com os alunos
sobre suas prprias prticas leitoras e da necessidade de uma pesquisa acadmica ser til
sociedade na qual est inserida, alm de apontar os abismos que ainda separam teoria e prtica
nos estudos de Comunicao mesmo que estas sejam pragmaticamente inseparveis.
-
16
2 A DIVERSIDADE DE CONCEPES ACERCA DO PAPEL DE RECEPTOR
Ao longo dos recentes anos em que a Comunicao vem sendo estudada como
campo/disciplina, vrias perspectivas diferentes foram surgindo. Se inicialmente a
preocupao estava em compreender apenas o polo da produo, aos poucos o foco foi
deslizando em direo aos elementos que dizem respeito ao receptor. Este antes alvo aqui
entendido como sujeito ora ignorado, aceito apenas como um ser passivo ou ativo, ponta
ou centro dos processos comunicativos, mero repositrio de ideias ou produtor de sentidos.
s correntes de pesquisa que consideram a existncia e importncia de uma audincia
para o entendimento do processo comunicativo, d-se o nome de Estudos de Recepo. Sob
nica nomenclatura encontram-se os mais diversos pensamentos, que chegam a ser, em
muitos casos, contraditrios.
Visando a explicitar particularidades das pesquisas de Recepo, Jensen e Rosengren
(1990) subdividem os estudos europeus e norte-americanos em cinco tradies: Pesquisa dos
Efeitos, Usos e Gratificaes, Estudos Literrios, Estudos Culturais, Anlise da Recepo. A
fim de elucidar uma breve contextualizao acerca de como o universo do receptor fora
compreendido ao longo das diferentes correntes e como o compreendemos neste trabalho,
esboaremos resumidamente cada uma delas. Em um segundo momento, sero referenciados
tambm autores latino-americanos cuja influncia presena constante nas pesquisas
brasileiras de recepo, de acordo com levantamento realizado por Jacks e Escosteguy (2005).
2.1 AS CINCO GRANDES TRADIES, PARA JENSEN E ROSENGREN
Quando se principiaram os estudos em Comunicao, no incio da dcada de 1920,
frutos da preocupao dos pesquisadores com os novos meios de comunicao que surgiam na
poca cinema, jornais, rdio e mais tarde a televiso , a busca era por compreender quais
efeitos esses meios vinham acarretando em suas audincias. Seguindo essa linha, a primeira
grande tradio, denominada Pesquisa dos Efeitos, fundamenta-se basicamente na concepo
de que o efeito consequncia do estmulo comunicativo, e define-se em sua relao com
opinies e atitudes, incidindo, em razo disso, diretamente na conduta dos indivduos
(JACKS; ESCOSTEGUY, 2005, p. 26).
-
17
Podemos mencionar os estudos de Lasswell que, apoiado nas estratgias utilizadas nas
propagandas ideolgicas da Primeira Grande Guerra (MATTELART, 2012) e fortemente
influenciado pelo behaviorismo, desenvolveu a teoria da Agulha Hipodrmica, na qual a
mdia injetaria valores e informaes em uma frgil audincia, composta de mentes e
coraes vazios, como apontam Jacks e Escosteguy (2005). O chamado paradigma de
Lasswell tornou-se base para as pesquisas norte-americanas em Comunicao, apoiado nas
questes: Quem? Diz o qu? Em que canal? Para quem? e Com que efeito?.
Outro modelo fundamental oriundo da Teoria dos Efeitos a Teoria Matemtica da
Comunicao, conhecida como Modelo Informacional, de Shannon e Weaver. Consiste em
um modelo linear de comunicao no qual a questo central gira em torno de como enviar o
mximo de informao atravs de um dado canal e como avaliar a capacidade deste canal para
transmitir estas informaes, com o mnimo de disperso (JACKS; ESCOSTEGUY, 2005, p.
29), considerando tambm a presena de um elemento considerado disfuno, o rudo.
Embora elucidem a existncia do receptor, no geral essas teorias esto preocupadas
mais com a anlise da mensagem em si do que com o uso que faz dela o sujeito. Mais tarde
esse poder dos meios sobre os usurios seria relativizado, como no paradigma dominante
(JENSEN, 1993) dos Estudos de Recepo: a perspectiva dos Usos e Gratificaes.
Com origem no incio dos anos 1940, o programa iniciado por Lazarsfeld compreende
a audincia como ativa e realizadora de escolhas relacionadas s principais funes da mdia:
informar, entreter, e formar ou manter a identidade pessoal nesta terceira estaria a busca
pela gratificao, ou seja, a audincia procuraria nos meios o que no conseguiria obter de
outra forma.
Se no incio se caracterizava por uma orientao mais funcionalista e aplicao
direcionada ao entendimento do comportamento de ouvintes de rdio,
a corrente dos Uses and Gratifications aprofundou, nos anos 80, sua prpria noo de leitura negociada: o sentido e os efeitos nascem da interao entre os textos e os papis assumidos pelas audincias. Ao envolvimento delas vinculam-se as decodificaes; por sua vez, esse envolvimento depende da maneira pela qual as diferentes culturas constroem o papel do receptor. (MATTELART, 2012, p. 153).
A leitura tambm surge como foco de ateno da terceira tradio, representada pelo
modelo da Crtica Literria, nomenclatura sob a qual so abordados estudos sobre semitica,
sintaxe, anlise do discurso, esttica da recepo e outros assuntos. O importante para os
Estudos Literrios observar o que ocorre no contato de um leitor com um texto, algumas
-
18
vezes se tratando de grupos de leitores especficos, vistos na rea da Comunicao como a
prpria audincia inscrita no texto.
Jacks e Escosteguy (2005) destacam como principal papel desses estudos explicar
como a literatura capaz de desenvolver uma experincia esttica e, podemos dizer,
comunicacional que transcenda espao e tempo. O conceito geral o de que possvel
educar os leitores para que estes respondam de modo adequado ao que considerado tradio
literria, ou seja, especialmente a textos e autores clssicos. Os Estudos Literrios, de certa
forma, acabam por se aproximar da Pesquisa dos Efeitos, ao passo que tm em comum este
entendimento de que a estrutura dos textos a parte do processo que faz algo com seus
leitores, ou seja, causa determinados efeitos. O significado compreendido, portanto,
frequentemente como intrnseco mensagem (JENSEN; ROSENGREN, 1990).
Uma das correntes que mais se destaca dentro da Crtica Literria a Esttica da
Recepo, desenvolvida na Escola de Constana e, mais especificamente, com os trabalhos de
Jauss e Iser, ambos desenvolvendo suas teorias sob a premissa de que a literatura um caso
especial de comunicao, e deve ser analisada como tal3.
J na prxima tradio, a dos Estudos Culturais, a comunicao passa a ser associada
no somente literatura, mas a uma perspectiva mais relacionada cultura popular de um
modo geral. A Comunicao de Massa compreendida integrada a todas as outras prticas e
atividades que conferem sentido vida social. A pesquisa em Comunicao, portanto, no se
caracteriza por aquela que focaliza os meios, mas a que se d no espao de um circuito
composto pela produo, circulao e consumo da cultura (...) [o interesse se encontra] nas
relaes entre textos, grupos sociais e contextos ou ainda, em termos mais genricos, entre
prticas simblicas e estruturas de poder (JACKS, ESCOSTEGUY, 2005, p. 39).
Vem dos Estudos Culturais o que entendemos hoje por Recepo, com o estudo inicial
de Stuart Hall. Seu modelo propunha pensar o processo emissor/mensagem/receptor como
uma estrutura produzida e sustentada por momentos distintos, porm articulados, que seriam:
produo, circulao, distribuio/consumo e reproduo (HALL, 2003). O autor argumenta
que o objeto dessas prticas so cdigos utilizados dentro das regras de linguagem, pois
sob a forma discursiva que a circulao do produto se realiza, bem como sua distribuio para diferentes audincias. Uma vez concludo, o discurso deve ento ser traduzido transformado de novo em prticas sociais, para que o circuito ao mesmo tempo se complete e produza efeitos. Se nenhum sentido apreendido, no pode haver consumo (HALL, 2003, p. 366, nfase no original).
33 Ver captulo 3.
-
19
Apesar disso, Hall (2003) considera que os momentos que ele denomina codificao
e decodificao so determinados. Portanto, h um padro de leituras preferenciais e a
autonomia do receptor se d somente dentro dos limites definidos por esses padres.
Buscando suprir lacunas como esta, e apoiados no que h de melhor nas quatro
vertentes apontadas at ento, Jensen e Rosengren (1990) propem, eles mesmos, a quinta
tradio dos Estudos de Recepo, qual denominam Anlise da Recepo. O que prevalece
nessa vertente no apenas a interao entre meio, mensagem e audincia, mas a anlise do
produto de toda essa interao. Assim, atua comparando o discurso dos meios com o discurso
da audincia e a estrutura do contedo das mensagens com a estrutura das respostas da
audincia com relao a ele, observando sempre os contextos de uso.
A principal contribuio da Anlise da Recepo a constatao de que as audincias
reconstroem o significado dos discursos dos meios de comunicao, afirmando sua oposio
ou diferena em termos discursivos. Porm, se essa diferena se dar tambm em termos
cognitivos ou de ao vai depender do contexto histrico e cultural, dos gneros de
comunicao e seus usos sociais, dos repertrios interpretativos da audincia e da realidade
social das instituies (JENSEN, 1993, p. 180, traduo minha), alm de outros fatores.
Portanto, essencial prestar ateno ao cenrio em que ocorre a recepo.
2.2 TRADIO LATINO-AMERICANA
Visto que a classificao de Jensen e Rosengren (1990) contempla apenas correntes
europeias e norte-americanas, importante ao menos esboarmos os principais estudos de
recepo desenvolvidos pelos latino-americanos. De acordo com Jacks e Escosteguy (2005),
as nossas teorias estavam inicialmente baseadas em denncias ao imperialismo norte-
americano e na teoria da dependncia cultural, e comearam a alterar sua forma a partir do
momento em que pases do subcontinente saam de um longo perodo dominado pelos
regimes ditatoriais. Nesta ocasio emergem os movimentos sociais e se apreende que os
modelos tericos importados no do conta da complexidade de tamanha miscigenao
cultural.
Ironicamente, uma das principais caractersticas comuns aos autores que comeam a
trabalhar neste contexto a influncia do marxismo gramsciano, que aponta que o sentido no
imposto, mas negociado (BRITTOS, 1999). Assim, no apenas a cultura produzida pelas
-
20
indstrias miditicas entra nas casas dos indivduos, como tambm os anseios populares e
traos de diferentes culturas so assimilados pelas primeiras. Nota-se, portanto, que
o conceito de hegemonia prev resistncias, admitindo acertos e desacertos tpicos do processo de recepo. Sendo assim, hegemonia um conceito que, no seu interior, j prev o receptor como ativo. Do contrrio, no admitiria a possibilidade de resistncia do receptor e, portanto, a necessidade de seduzi-lo. (...) Ao mesmo tempo, a concepo de hegemonia deve ser pensada como expresso de relaes de poder, onde a classe hegemnica dirige a sociedade (BRITTOS, 1999, p. 6).
, portanto, sobre estas bases que se desenvolve o olhar latino-americano acerca da
recepo e que Martn-Barbero (2004, 2009) forja a teoria das mediaes, tornando-se fonte
de inspirao para boa parte dos demais pesquisadores da Amrica Latina.
Buscando compreender a insero de camadas populares neste contexto de
subdesenvolvimento, o autor identifica o aparecimento de novas identidades e sujeitos sociais
moldados pelas tecnologias de comunicao. Critica o mediacentrismo e as frmulas dualistas
de pensamento, buscando compreender a relao entre receptores e meios. De herana
culturalista, na teoria de Martn-Barbero a comunicao assume o sentido de prticas sociais
onde o receptor considerado produtor de sentidos e o cotidiano, espao primordial de
pesquisa4 (JACKS; ESCOSTEGUY, 2005, p. 66).
Preocupa-se com a apropriao das mensagens por sujeitos inseridos em uma cultura
e, portanto, com todo o ecossistema comunicativo que constitui a prpria comunicao,
deslocando o espao de reflexo dos meios ao lugar em que o sentido produzido
(mediaes).
Conquanto tido como cone dos Estudos Culturais Latino-Americanos5, a proposta das
mediaes de Martn-Barbero ainda pode ser considerada ampla e generalizante, de difcil
aplicao. Na tentativa de sistematizar sua teoria, Orozco (1996) desenvolve o modelo das
multimediaes, em que as mediaes so vistas como meras influncias do processo de
recepo.
Outro autor amplamente utilizado nas pesquisas brasileiras de recepo, de acordo
com Jacks e Escosteguy (2005), Canclini (2005). Preocupado especialmente com as
questes da globalizao, modernidade e modernizao, aponta que o consumo uma prtica
4 Estamos utilizando esta compreenso de Comunicao para fins deste estudo, embora reconhecendo que Martn-Barbero no possui uma concepo de linguagem que situe o seu pensamento. Preenchemos esta lacuna adotando a perspectiva Pragmtica de herana austiniana. 5 Nem todos os principais estudiosos latino-americanos realizam estudos de recepo, embora se ocupem da questo do receptor. Por este motivo, alguns autores preferem classific-los apenas pela sua filiao terica mais abrangente (BOAVENTURA; MARTINO, 2010; JACKS; ESCOSTEGUY, 2005).
-
21
coletiva, e no individual, e destaca que para entender cada grupo, deve-se descrever como
se apropria dos produtos materiais e simblicos alheios e os reinterpreta (...). Naturalmente,
no s as misturas: tambm as barreiras (CANCLINI, 2005, p. 25).
Contextualizando os diferentes modos de compreenso acerca do papel do receptor ao
longo das teorias internacionais e latino-americanas da Comunicao, este captulo objetivou
situar a origem dos Estudos Literrios de Constana e de sua relevncia para as pesquisas no
interior deste campo. Visto que a temtica central do trabalho gira em torno do carter
comunicacional da Leitura, o captulo seguinte tratar mais detalhadamente dos principais
modelos desenvolvidos na escola alem e adotados como teorias de Estudos de Recepo em
Comunicao.
Embora com lacunas alis como qualquer modelo terico , os Estudos Literrios,
tal qual vimos neste captulo, so a nica corrente dentre as Teorias da Recepo que se ocupa
especificamente da questo do leitor como um tipo especial de receptor das mensagens
comunicacionais. Alm de trabalharem a leitura compreendida como um caso especial de
comunicao, os autores de Constana tambm so frequentemente utilizados como modelos
do ensino de leitura nas escolas (FERNANDES, 2010) e, portanto, indispensvel que
compreendamos que modelo de leitura esse e quais seus pressupostos. Assim, o utilizaremos
como ponto de partida dos nossos estudos ao analisarmos a Leitura como um processo
constituinte da interface Comunicao e Educao, a partir de um olhar pragmtico dos usos
da linguagem.
-
22
3 COMUNICAO E O LEITOR NA ESCOLA DE CONSTANA
A Escola alem de Constana foi o bero do desenvolvimento dos Estudos Literrios
de Recepo nos anos de 1960. Naquela poca, afloravam propostas metodolgicas
inovadoras em toda a Europa, como o estruturalismo lingustico e a antropologia estrutural,
que buscavam repensar as teorias da cincia vigentes.
Jauss (1979a) explica o cenrio de mudanas em que Constana se encontrava e que
impulsionou a Esttica da Recepo, devido tanto reforma universitria e cientfica quanto
prpria funo social da arte e compreenso de experincia esttica da poca. Cita como
marcos iniciais seu prprio texto, A Histria da literatura como provocao, escrito para
uma aula inaugural de 1967, e A estrutura apelativa do texto, de Wolfgang Iser, em 1970.
Alm de Jauss (1979a, 1979b, 1993) e Iser (1979, 1996), Stieler e Gumbrecht tambm so
nomes importantes de Constana, embora os tericos desta Escola no sejam amplamente
conhecidos em territrio brasileiro, visto que poucas de suas obras foram traduzidas para o
portugus.
O grande mrito desses autores foi terem deslocado o eixo de estudo at ento
hegemnico na crtica literria, e consequentemente nos Estudos de Recepo em
Comunicao. O foco, que concentrava-se no prprio texto, passou para o lado do
leitor/receptor, com ateno especial ao dilogo existente entre leitor e obra no momento da
Leitura, alm de terem sido apontadas preocupaes com as caractersticas do contexto
histrico original do texto. Assim, percebe-se que o centro das reflexes encontra-se
especialmente na interao textoleitor, e isso acontece porque h o entendimento de que a
literatura tambm um caso particular de Comunicao.
De acordo com Mostao (2008, p. 66), nos trabalhos de Iser e Jauss, principalmente,
verifica-se que a esttica da recepo parte do pressuposto de que a arte um fazer, uma
construo e, como tal, infunde uma dada relao com o leitor/espectador. Conheceremos
um pouco mais sobre o pensamento acerca da Comunicao e(m) Leitura para esses dois
autores, que costumam aparecer classificados sob mesma nomenclatura (Esttica da
Recepo), nas sees subsequentes (3.1 e 3.2).
-
23
3.1 JAUSS E A ESTTICA DA RECEPO
Fundador da Esttica da Recepo, Hans Robert Jauss utiliza como principal conceito
o de horizonte de expectativas, no qual considera cdigos, experincias e conhecimentos que
possam ter sido institudos pelo leitor inicial de determinada obra, ou seja, aquele que era seu
pblico-alvo na poca de aparecimento de um texto. Assim, trabalha bastante com a noo
que envolve a historicidade das obras literrias.
De acordo com o autor,
para a anlise da experincia do leitor ou da sociedade de leitores de um tempo histrico determinado, necessita-se diferenar, colocar e estabelecer a comunicao entre os dois lados da relao texto e leitor: entre o efeito, como o momento condicionado pelo texto, e a recepo, como o momento condicionado pelo destinatrio (JAUSS, 1979a, p. 49-50, nfase no original).
Jauss, assim, refuta a autonomia absoluta do texto e a ideia de que a estrutura
autossuficiente e se sobreporia ao sujeito6. Explica, portanto, que a qualidade de uma obra
literria no pode ser medida apenas por circunstncias relacionadas biografia, histria ou
gnero nos quais se enquadra, mas a critrios que no so simples de se compreender,
especialmente aqueles relacionados ao leitor, dentre os quais se podem citar o momento da
prpria recepo, incluindo a influncia que provoca nos leitores de sua poca e o valor de
reconhecimento que alcana na posteridade (JAUSS, 1993).
Assim, trabalha sobre quatro premissas. A primeira diz que a natureza histrica da
literatura se manifesta durante o processo de recepo e efeito de uma obra, ou seja, no
momento de sua leitura. A Leitura, portanto, atualiza a obra historicamente atravs da relao
dialgica entre leitor e obra.
A historicidade da literatura, assim como o seu carter comunicativo, implica, simultaneamente, uma evoluo e uma troca entre obra, pblico e obra nova, as quais podem ser apreendidas tanto na relao entre mensagem e destinatrio como na relao entre pergunta e resposta ou na relao entre problema e soluo (JAUSS, 1993, p. 57, nfase acrescida).
O autor chama a ateno para o que denomina carter revolucionrio da arte: o poder
que ela teria de livrar o leitor de preconceitos e outras representaes que j se tornaram
6 Embora constitussem grandes influncias para que os tericos alemes revisassem seus prprios paradigmas, Zilberman (2009) aponta que no h semelhana entre a marcante vertente estruturalista francesa e os estudos de recepo germnicos.
-
24
comuns em sua histria, para o tornar aberto a uma percepo de mundo nova e, assim,
antecipar tambm uma realidade diferente para si.
A segunda premissa da anlise de Jauss volta-se recepo como um sistema objetivo
de expectativas. Entende que as obras apropriam-se de elementos do cdigo vigente, pois
participam de um processo de comunicao e precisam ser compreendidas pelo seu pblico.
Logo, a obra predetermina a recepo, oferecendo orientaes a seu destinatrio ou, em
outras palavras, ela evoca o horizonte de expectativas e as regras do jogo familiares ao
leitor (ZILBERMAN, 2009, p. 34). nesse entendimento que aparece a proximidade (citada
na seo 2.1) com a Pesquisa dos Efeitos, pois o significado ainda visto como imanente
mensagem.
Embora Jauss concentre seus esforos em ressaltar a recepo, trabalha
exclusivamente com um leitor ideal7, ou seja, tanto sua consulta como seus questionamentos
so todos dirigidos prpria obra. No obstante ele afirme se preocupar primordialmente com
o receptor, este aparece como uma ideia de leitor.
Cada leitor pode reagir individualmente a um texto, mas a recepo um fato social uma medida comum localizada entre essas reaes particulares; este o horizonte que marca os limites dentro dos quais uma obra compreendida em seu tempo e que, sendo trans-subjetivo, condiciona a ao do texto (ZILBERMAN, 2009, p. 34).
A premissa de nmero trs envolve a ideia de valor, pois, ao mesmo tempo que Jauss
vai contra a teorizao acerca da indstria cultural e aponta em Adorno uma espcie de arqui-
inimigo, ainda mantm a ideia de que uma arte dita autntica consiste na que se ope quela
que denomina arte culinria, na qual se enquadrariam a literatura de massa e entretenimento
popular.
Completando a grade das quatro premissas centrais de sua teoria, Jauss busca apoio
metodolgico na hermenutica literria, de onde aparece uma dupla tarefa: inicialmente,
preciso simplificar o processo atual em que se concretizam tanto efeito quanto significado do
texto para o leitor contemporneo, o que consistiria em uma tarefa de atualizao. Por outro
lado, h tambm a necessidade de se resgatar o processo histrico pelo qual o texto recebido
e interpretado, diferentemente, por leitores de tempos diversos. A aplicao da hermenutica,
portanto, deve ser capaz de realizar uma espcie de comparao entre o efeito atual de uma
obra de arte com o desenvolvimento histrico de sua experincia e formar o juzo esttico,
com base nas duas instncias de efeito e recepo (JAUSS, 1979a).
7 Este um dos aspectos mais criticados da teoria de Jauss, como aponta Zilberman (2009).
-
25
H ainda trs outras teses que complementam o programa metodolgico de Jauss
(1993):
a) para situar uma obra na sucesso histrica, preciso levar em conta a
experincia literria que propiciou inicialmente, ou seja, a histria dos efeitos;
b) na compreenso do pblico a literatura aparece como simultaneidade, ou seja,
percebemos as obras como constituintes da nossa prpria atualidade, relacionamos
com outras, etc.; e
c) devem-se considerar as relaes da literatura com a sociedade, pois a literatura pr-
forma a compreenso de mundo do leitor, ao passo que, como se comunica com
ele, passa-lhe normas que so padres de atuao, repercutindo ento em seu
prprio comportamento social.
Algumas outras caractersticas marcantes do pensamento de Jauss provm do fato de
que o terico no acredita que o significado de uma criao artstica possa ser alcanado sem
ter sido vivenciado esteticamente: assim, quando se trata de experincia esttica, no h
conhecimento sem prazer, nem o contrrio s possvel gostar do que se entende e
compreender o que se aprecia.
De acordo com o autor, a liberao pela experincia esttica pode se realizar em trs
planos (trs funes bsicas):
a) 1 plano: poiesis corresponde ao prazer de se sentir coautor da obra, pois o leitor
cria um mundo como sua prpria obra. Aqui entram elementos como a atividade
produtiva e a tcnica;
b) 2 plano: aisthesis mais relacionado experincia esttica em si, diz respeito ao
efeito de renovao da percepo do mundo provocado pela obra de arte, o
surgimento de um conhecimento sensvel. Esta a atividade receptiva,
intimamente relacionada com a viso de mundo do leitor;
c) 3 plano: katharsis a definio de catarse mostra a experincia esttica como
basicamente mobilizadora: o espectador no apenas sente prazer, mas tambm
motivado ao. As artes aparecem como tendo uma funo social, e os leitores
capacidade de julgamento. Seria o momento essencial da atividade comunicativa.
Porm, na sequncia o autor faz a ressalva de que
a funo comunicativa da experincia esttica no necessariamente mediada pela funo catrtica. Tambm pode decorrer da aisthesis, quando o observador, no ato contemplativo renovante de sua percepo, compreende o percebido como uma informao acerca do mundo do outro ou quando, a partir do juzo esttico, se apropria de uma norma de ao. (JAUSS, 1979b, p. 82).
-
26
Da mesma forma, estas trs categorias bsicas da experincia esttica poiesis,
aisthesis e katharsis no devem ser pensadas como camadas que se sobrepem
hierarquicamente. Antes, compem uma relao composta de funes autnomas, pois no se
subordinam umas s outras, mas podem estabelecer, como citado acima, relaes sequenciais
(JAUSS, 1979b).
Considerando esses trs elementos, o autor atenta para o fato de que a necessidade
esttica no completamente manipulvel, apenas em parte, visto que tanto produo quanto
reproduo artsticas no so capazes de predeterminar totalmente a recepo. A recepo da
arte no apenas um consumo passivo, mas sim uma atividade esttica, pendente da
aprovao e da recusa, e, por isso, em grande parte no sujeita ao planejamento
mercadolgico (JAUSS, 1979a, p. 57).
Neste momento, o terico de Constana busca livrar-se das crticas que seu mtodo
sofre. Pois, embora seja considerado o expoente da Esttica da Recepo ao lado de Iser , e
de no haver modelos to referenciados e at hoje utilizados no mbito da relao
comunicativa entre uma obra literria e seu leitor, h em Jauss uma srie de lacunas, como o
fato de trabalhar com o conceito de um leitor ideal e a experincia desse leitor parecer
esvaziada de realidade, porquanto muitas vezes o leitor a que o autor se refere parece ser ele
mesmo. Alm disso, os conceitos de recepo e efeito se confundem em sua teoria. Zilberman
(2009) aponta em glossrio que o efeito deveria ser uma espcie de resposta no leitor,
motivada pelo texto, ou algo relacionado ao impacto histrico, enquanto a recepo se refere
capacidade de uma obra se manter em dilogo com seu pblico, mas essas distines nem
sempre so claras em Jauss.
Tambm lcito concluir que, embora a esttica da recepo tenha se disseminado
amplamente nos estudos literrios durante os anos 70, o leitor no subiu muito de cotao
aps o projeto de Jauss, pois continuou sendo uma funo do texto (ZILBERMAN, 2009, p.
50).
A teoria de Wolfgang Iser aparece em parte em resposta Esttica da Recepo,
apontando determinados aspectos com os quais esta no trabalha, como a constituio de
sentido por parte do leitor em textos de fico8. Assim, sua publicao inicial coloca junto
Esttica da Recepo uma teoria do efeito esttico. vlido perceber que, embora Jauss seja
8 Iser argumenta repetidamente que o seu objeto so os textos ditos ficcionais, mas em uma perspectiva Pragmtica da linguagem eliminamos esses dualismos tais quais fico x realidade. Portanto, na sequncia procuraremos manter apenas a palavra texto.
-
27
mais frequentemente citado em estudos de Teorias da Comunicao, enquanto Iser aparece de
modo mais marcante quando o objetivo discutir Leitura no ambiente educacional, o segundo
d um destaque maior Comunicao em seu trabalho. Assim, consideramos fundamental
ressaltar suas contribuies em um trabalho que fala de Leitura, mas que a est considerando
sob olhar terico-metodolgico do campo da Comunicao.
3.2 ESTTICA DO EFEITO: A VARIANTE DE ISER
Em sua primeira publicao que trata da Esttica do Efeito, no ano de 1976, Iser
comea a trabalhar com a ideia de que o texto literrio possui uma estrutura de apelo, e que
por causa dessa estrutura direcionada ao leitor que ele deve se tornar pea essencial da obra.
Uma obra literria, portanto, s pode ser compreendida enquanto uma modalidade de
comunicao9. Assim,
a recepo, no sentido estrito da palavra, diz respeito assimilao documentada de textos e , por conseguinte, extremamente dependente de testemunhos, nos quais atitudes e reaes se manifestam enquanto fatores que condicionam a apreenso de textos. Ao mesmo tempo, porm, o prprio texto a prefigurao da recepo, tendo com isso um potencial de efeito cujas estruturas pem a assimilao em curso e a controlam at certo ponto (ISER, 1996, p. 7, nfase acrescida).
Considerando que algo nos acontece atravs da leitura, Iser (1996) apoia-se em uma
anlise que parte de trs problemas bsicos: de que forma os textos so apreendidos; como so
as estruturas que orientam a elaborao do texto no receptor; e qual a funo de textos
literrios em seu contexto. H, ainda, outras questes fundamentais para a esttica do efeito,
como descobrir em que medida o texto se deixa apreender como um acontecimento (Leitura)
e at que ponto as reaes provocadas pelo texto so previamente estruturadas por ele.
Atravs desses questionamentos, o autor acredita ser possvel observar a interao
entre texto e contexto, tanto quanto entre texto e leitor. Como atividade comandada pelo
texto, a leitura une o processamento do texto ao efeito sobre o leitor. Esta influncia recproca
descrita como interao (ISER, 1979, p. 83), ou seja, como parte de um processo maior de
comunicao.
9 preciso ponderar que o autor estava pensando, na poca, no Paradigma Informacional da Comunicao.
-
28
Iser (1996) explica que uma das principais diferenas entre a Esttica da Recepo de
Jauss e sua Esttica do Efeito consiste em que a primeira se preocupa apenas com as
condies histricas da recepo que se encontram documentadas nos textos. Portanto, uma
teoria da recepo est ancorada nos juzos histricos dos leitores, ao passo que uma teoria do
efeito est ancorada no prprio texto. Visto que a Esttica do Efeito compreende o texto como
um processo, a interpretao, derivada do texto, visa especialmente ao episdio da formao
de sentido.
Uma interpretao literria orientada pela Esttica do Efeito, portanto, est direcionada
funo que os textos desempenham em contextos, comunicao por meio da qual
transmitem experincias e que, apesar de muitas vezes no serem familiares ao universo do
receptor, so contudo compreensveis , e tambm assimilao do texto, atravs da qual se
evidencia o que o autor chama a prefigurao da recepo pelo texto, alm das
competncias do leitor por ele estimuladas.
Dado que um texto s produz efeitos quando lido, no possvel captar este efeito
somente no texto ou na conduta do leitor. Se o texto no idntico nem ao mundo emprico,
nem aos hbitos do leitor, o sentido deve ser constitudo pelos [a partir dos] elementos que
traz consigo (ISER, 1996, p. 129). Lembremos que o texto literrio considerado sob a
premissa de ser comunicao e, portanto, atravs dele acontecem intervenes no mundo, nas
estruturas sociais e na literatura existente. O terico trabalha com a ideia de efeito esttico e,
embora este efeito venha motivado pelo texto, necessita tambm das atividades perceptivas e
de imaginao por parte de um leitor. O texto esttico deve ser analisado, portanto, na relao
dialtica entre texto, leitor e sua interao.
O sentido do texto tambm no existe em uma forma sem contexto para o criador da
Esttica do Efeito. O leitor o verdadeiro receptor dos textos, pois ele participa da construo
do texto, e essa participao no vale apenas para o leitor inicial que conhece as normas da
poca em que um texto foi escrito, mas tambm para os leitores de pocas posteriores que
atualizam a obra, semelhana do que postula Jauss. Portanto, caracterstico dos textos
literrios que no percam sua capacidade de comunicao depois que seu tempo passou;
muitos deles ainda conseguem falar mesmo depois que sua mensagem se tornou histrica e
sua significao [inicial] se trivializou (ISER, 1996, p. 40), j que a situao histrica
inicial recuperada pelo novo leitor. Porm, Iser (1996) coloca que a mudana de atitude no
se deve a um ato do prprio leitor, mas passagem do tempo.
A obra, portanto, o texto constitudo na conscincia do leitor, e isol-los como polos
independentes do processo de comunicao significaria reduzir a obra tcnica de
-
29
representao do texto ou psicologia do leitor, eliminando justamente a relao que se deve
analisar. importante destacar tambm que a teoria do efeito tem como pressuposto a
separao entre a estrutura de realizao e o resultado, ou sentido proveniente dessa
interao e, portanto, o autor chama a ateno de que isso descartado se nos limitamos a
perguntar o que que o texto significa. De certa forma, apresenta uma postura contrria
imanncia do significado no texto, de onde devemos substituir a velha pergunta sobre o que
significa esse poema, esse drama, esse romance pela pergunta sobre o que sucede com o leitor
quando sua leitura d vida aos textos (ISER, 1996, p. 53). Aqui a interao ganha nova
funo: em vez de decifrar o sentido, ela evidencia o potencial de sentido proporcionado pelo
prprio texto no momento da leitura.
O acontecimento do texto [leitura], ao invs, antes se apresenta, em face de seus resultados, como uma fonte da qual estes se originam. Por certo este evento termina em um sentido constitudo. Esse sentido tem em princpio um carter esttico, porque significa a si mesmo; pois por ele advm algo ao mundo que antes nele no existia. Em consequncia, s pode manifestar-se enquanto efeito (ISER, 1996, p. 54).
Esse sentido, ou ato de apreenso, orientado pelas estruturas existentes no texto,
mas no determinado por elas, pois os textos tambm contm elementos de indefinio, aos
quais Iser (1979) denomina vazios.
3.2.1 O Papel do Vazio na Produo de Sentidos
Essa indeterminao verificada nos textos no um defeito, nem significa que a
compreenso seja dada de forma aleatria, antes constitui uma das principais condies da
comunicao textual, pois possibilita que o leitor participe na produo da inteno10 e do
sentido do texto.
Mas ento poderamos nos perguntar por que os juzos acerca de um texto se tornam
subjetivos, posto que esto baseados em critrios aparentemente objetivos (estruturais). O
prprio autor aponta este questionamento e trata de responder que um texto literrio contm
instrues, verificveis intersubjetivamente, para a produo de seu sentido. Esse sentido
10 A intencionalidade fundamental nos estudos de uso da linguagem, pois afirmar que h uma inteno afirmar que so inteligveis o agente, a ao, e um contexto ou situao operativa (um jogo de linguagem) em que o termo usado (OLIVEIRA, 2011, p. 5).
-
30
constitudo consegue produzir, no entanto, uma grande variedade de vivncias e, por
conseguinte, de avaliaes diferentes (ISER, 1996, p. 60, nfase acrescida). Ento os textos
escritos estruturam de antemo os resultados, mas o receptor os atualiza de acordo com seus
prprios princpios de seleo. Assim, possvel dizer que ativam processos de realizao de
sentido.
Em consequncia, a qualidade esttica de um texto, para o terico do efeito, se
encontra na sua estrutura de realizao (e no necessariamente no contedo, embora ele faa
parte dessa estrutura), que segundo ele no pode ser idntica ao produto final (obra), pois sem
a participao do leitor no se constituiria o sentido. Aproveita, nesse momento, para apontar
sua maior crtica ao leitor ideal de Jauss: ele representaria uma impossibilidade estrutural da
comunicao. Um leitor ideal deveria ter o mesmo cdigo que o autor, as mesmas intenes e,
se assim fosse, a comunicao se revelaria suprflua, pois ela deve existir para comunicar
algo que est na no correspondncia entre os cdigos de emissor e receptor11.
Em outras palavras, a comunicao seria desnecessria se ela no transmitisse algo
que no fosse desconhecido. Por isso, a fico se determina como comunicao, pois graas a
ela vem algo luz do mundo que no est a (ISER, 1999, p. 195). Um dos pressupostos
dessa linha diz justamente respeito ao no idntico: a diferena uma condio para a
constituio do sentido do texto, que se realiza no leitor como efeito.
Buscando sanar essa lacuna deixada pelo leitor ideal de Jauss, Iser (1996) desenvolve
a teoria do leitor implcito, que nada mais que uma espcie de estrutura do leitor embutida
nos textos. Tambm no tem existncia real, e materializa o conjunto das orientaes iniciais
oferecidas por um texto ficcional como condies de recepo a seus possveis leitores: so os
personagens, enredo, voz do narrador, etc. O autor se esfora em justificar que essa concepo
no a abstrao de um leitor real, mas a verificao da tenso que nele surge quando assume
seu papel de leitor inserido no texto.
Nesse ponto podemos verificar outro elemento bastante importante na teorizao, que
diz respeito a uma certa autonomia do texto.
Ora, o texto literrio no apresenta apenas uma perspectiva do mundo de seu autor, ele prprio uma figura de perspectiva que origina tanto a determinao dessa viso, quanto a possibilidade de compreend-la (...) A tal ponto uma certa estrutura textual estabelecida para o leitor que ele obrigado a assumir um ponto de vista que permita produzir a integrao das perspectivas textuais. O leitor, porm, no pode escolher livremente esse ponto de vista, pois ele resulta da perspectiva interna ao texto (ISER, 1996, p. 74).
11 Da mesma forma, Oliveira (2011) aponta essa no-comunicao como regra, no sentido de no compreender / no dizer a mesma coisa e no se fazer compreender da mesma maneira.
-
31
O prprio papel do leitor considerado, para a Esttica do Efeito, uma estrutura do
texto. Mas, como estrutura, representa sobretudo uma inteno que ser realizada somente
atravs dos atos estimulados no receptor. A estrutura do texto e o papel do leitor esto, deste
modo, intimamente unidos. A concepo do leitor implcito descreve, portanto, um processo
de transferncia pelo qual as estruturas do texto se traduzem nas experincias do leitor atravs
dos atos de imaginao (ISER, 1996, p. 79). Essa estrutura vale para a leitura de todos os
textos e, portanto, assume um carter transcendental, de teoria.
Assim, o autor argumenta que a interao a base para que compreendamos que um
texto organiza e nos comunica algo sobre a realidade, pois uma estrutura comunicativa que
faz uma espcie de mediao entre sujeito e realidade. Por conseguinte, no devemos
perguntar o que ela significa, mas atentar aos seus efeitos e ao fato de que o dilogo tambm
passvel de falhas. preciso lembrar que o texto s acontece no momento de sua Leitura, e
que, por sua vez, esta se realiza por sua condio de uso de uma linguagem concepo no
levada em conta em Iser. A Leitura de um texto uma prtica comunicativa e, portanto,
social.
Isto implica em dizer que os significados produzidos pelo leitor se modificam (so
negociados) no processo da Leitura:
a relao entre texto e leitor se atualiza porque o leitor insere no processo da leitura as informaes sobre os efeitos nele provocados; em consequncia, essa relao se desenvolve como um processo constante de realizaes. O processo se atualiza por meio dos significados que o prprio leitor produz e modifica. Desse modo, o contexto do acontecimento ganha o carter de uma situao aberta que sempre concreta e, ao mesmo tempo, passvel de mudanas (ISER, 1996, p. 127).
Para diferenciar os elementos do texto que orientam a compreenso do leitor, Iser
(1996) trabalha com as noes de: a) repertrio convenes necessrias para a produo de
uma situao; b) estratgias procedimentos aceitos, na teoria dos atos de fala12; c)
realizao participao do leitor.
O repertrio uma espcie de estrutura de organizao de sentido, que ser
percebida e otimizada na leitura do texto, dependendo do conhecimento e disposio do leitor,
alm das prprias estratgias do texto, enquanto potencial orientador dos caminhos que o
leitor dever seguir. E, se o leitor deve descobrir na atualizao do texto o sistema de
12 Ver seo 3.3
-
32
equivalncias dos elementos do repertrio, o sentido da resultante no de natureza
arbitrria (ISER, 1996, p. 156).
As estratgias organizam tanto o material do texto, quanto suas condies
comunicativas. Elas tornam possvel, desse modo, que a organizao do repertrio (imanente
ao texto) coincida com os primeiros esforos de compreenso do leitor. As estratgias so
tambm caractersticas do prprio texto, e tm como principal objetivo organizar os outros
elementos internos e, assim, assegurar as condies de recepo. Devido a essa organizao
prpria ao texto, Iser (1996) diz que, quando fazemos um resumo, substitumos as estratgias
por critrios pessoais de organizao do texto.
Apesar de estar falando primordialmente das estruturas do texto, o autor explica que o
texto literrio, ao mesmo tempo que vive das estruturas j existentes de apropriao do
mundo, tambm um sistema constitutivo de sentido.
Em oposio aos sistemas epocalmente dominantes, os textos ficcionais no explicitam suas prprias decises seletivas, de modo que o leitor precisa motivar as decises seletivas do texto ao transcodificar os valores que conhece. Nesse processo se realiza a comunicao do texto, em que se cumpre a mediao entre leitor e uma realidade que no lhe mais dada sob as condies conhecidas (ISER, 1996, p. 139).
essa indeterminao do objeto esttico no texto que faz com que seja necessrio que
o leitor construa o sentido a partir de sua imaginao. Porm, a indeterminao provocada
pelos vazios do texto no denota que a imaginao seja completamente livre para ir a qualquer
lugar, visto que as estratgias textuais esto presentes para orientar a atividade comunicativa.
O autor destaca que, alm da perspectiva que o leitor embute ao texto, a prpria
organizao do texto um sistema de perspectivas. Em princpio so quatro perspectivas
principais no texto: a do narrador, dos personagens, da ao/enredo e da fico marcada pelo
leitor. Partindo disso, pondera a ideia de Jauss de que a arte possui um carter revolucionrio:
se correto que os textos ficcionais representam uma reao ao mundo, essa reao s pode
se concretizar de modo a provocar uma reao a um determinado mundo [de perspectivas]
incorporado ao texto (ISER, 1996, p. 183).
A relao textoleitor iseriana est sempre ancorada no texto, pois se diferencia de
outras relaes, como a oralidade. H a ausncia da situao face a face, base das formas
tradicionais de interao social (preocupao que vem sendo retomada com a Internet). O
texto no capaz de entrar em sintonia com o leitor e este, igualmente, nunca ter a certeza de
que a sua compreenso a correta, a mais adequada. Portanto, Iser (1999) no est
-
33
preocupado em julgar a legitimidade de leituras ditas corretas ou erradas, apenas em
esclarecer como se d a interao entre texto e leitor.
Alm disso, no h como determinar o certo e errado, visto que so justamente os gaps
de sentido, esses vazios, que originam a comunicao no processo da leitura. O vazio constitui
a assimetria fundamental entre texto e leitor e, portanto, essa indeterminao parte essencial
do processo e das mltiplas possibilidades de comunicao. Por outro lado,
o equilbrio s pode ser alcanado pelo preenchimento do vazio, por isso o vazio constitutivo constantemente ocupado por projees. A interao fracassa quando as projees mtuas dos participantes no sofrem mudana alguma ou quando as projees do leitor se impem independentemente do texto. O fracasso a significa o preenchimento do vazio exclusivamente com as prprias projees (ISER, 1979, p. 88, nfase acrescida).
Para assegurar o sucesso da comunicao, so necessrios complexos de controle no
texto. A estes meios de controle, no entanto, dada a impossibilidade de possurem a preciso
de situaes face a face, e cabe a eles, portanto, levar a interao entre texto e leitor a um
processo de comunicao, no fim do qual aparece um sentido constitudo pelo leitor (ISER,
1979, p. 89). O que parece faltar no texto, na realidade serve para estimular o leitor a
preencher esse vazio atravs do que est implicado. So os no ditos: como no aparecem
manifestados verbalmente no texto, so produto da interao entre texto e leitor em um
determinado contexto de uso. O processo de comunicao assim se realiza no atravs de um
cdigo, mas sim atravs da dialtica movida e regulada pelo que se mostra e se cala (ISER,
1979, p. 90). Esse mais um dos pressupostos que o autor traz para orientar seu trabalho.
Os lugares vazios indicam o no-dado, criando uma forma oca para a configurao de sentido, forma oca que s o leitor poder preencher com suas representaes. Os lugares vazios tm portanto uma relevncia especfica relativa ao texto e uma relevncia especfica relativa representao; a indivisibilidade dessas funes a condio para o jogo interativo entre texto e leitor (ISER, 1999, p. 177)
Portanto, fixam o lugar do leitor no texto e, como estrutura de comunicao, a obra
no constitui nem um espelho da realidade, nem do repertrio do receptor. Os vazios abrem
um nmero crescente de possibilidades, de modo que a combinao dos esquemas passa a
exigir a deciso seletiva do leitor (ISER, 1979, p. 108) e, portanto, compreendemos um
-
34
texto ficcional atravs da experincia a que ele nos submeteu (ISER, 1979, p. 114), ao passo
que preenchemos os vazios atravs de nossas pressuposies13.
Iser (1979) diz que os vazios impedem que essa interao caia em uma arbitrariedade
subjetiva, pois se transformam na atitude imaginativa do leitor e alcanam, assim, o carter de
uma estrutura autorreguladora. E afirma que mesmo a rejeio a determinado texto, livro ou
obra testemunha o efeito da estrutura, que ainda funciona, mesmo que de um modo deficiente,
quando o leitor tenta se bloquear contra seu efeito.
3.2.2 Um Festival de No Ditos nos Textos Modernos
Iser (1999) tambm aponta que nos romances modernos temos a impresso de que o
leitor chega a ficar desorientado, to significativo o emprego dos vazios. Explica que seria
oportuno falarmos da perda de uma expectativa at ento considerada inquestionvel, a partir
do momento em que abandonamos algumas frmulas prontas do sculo XIX s quais os
leitores j estavam familiarizados. Isso acontece porque, a partir do sculo XX, esses modelos
passam a no ser realizados (realizao negativa) e isso cria um novo lugar vazio, fazendo
com que o leitor seja obrigado a mudar incessantemente seu ponto de vista. O terico chega
ao ponto de afirmar que podemos medir a modernidade de um texto verificando a
incidncia do uso de procedimentos negativos, e que, em vez de um nico modo, h hoje uma
espcie de caleidoscpio narrativo.
Disso resulta que
o leitor deve ento descobrir equivalncias para os segmentos textuais e ao mesmo tempo formular um padro para a avaliao e para a prpria atitude. Numa s palavra: enquanto pano de fundo cancelado de procedimentos esperados, os lugares vazios liberam no leitor uma crescente produtividade; esta se expressa no fato de que com cada relao realizada o leitor deve produzir tambm o cdigo para apreend-la. Assim, surge com cada relao produzida um contexto de vrias possibilidades, pois quando um significado descoberto, nele ressoam outros significados por ele estimulados (ISER, 1999, p. 167)
Ao leitor no cabe mais simplesmente decifrar o cdigo do texto, mas produzir a
condio para compreend-lo e, em muitos casos, transgredi-lo. Da resulta que a
13 vlido destacar que a multiplicidade de interpretaes no , nesse e em muitos outros casos, acidental, mas algo que qualquer autor importante invariavelmente convida os leitores a fazer (RAJAGOPALAN, 2010, p. 183)
-
35
negatividade enquanto constituio da comunicao portanto uma estrutura que possibilita
algo [produo de sentidos]. Ela requer uma determinao que somente o sujeito pode
cumprir (ISER, 1999, p. 197), mas isso no implica que esse sentido deva ser completamente
subjetivo, pois h a necessidade de manter a esttica do texto intersubjetivamente
comunicvel.
Boa parte do pensamento do autor resulta de teorias anteriormente formuladas, como
se pode perceber pela enorme quantidade de citaes e referncias que faz a outros
pensadores em seus textos. H recorrncia de teorias que visam ao do sujeito, como a dos
atos de fala, cuja relao inicial com a Esttica da Recepo destacaremos na seo seguinte.
3.3 INFLUNCIA DE AUSTIN E A TEORIA DOS ATOS DE FALA
Visto que traremos, mais claramente a partir do captulo 5 (Mtodos e Objeto
Emprico de Pesquisa), as contribuies da Pragmtica Lingustica para o desenvolvimento
deste trabalho no campo da Comunicao, consideramos importante notar que, dentre uma
imensa gama de autores utilizados como referncia no desenvolvimento de sua teoria, Iser
(1996) emprega como uma das variveis de entendimento sobre o texto o que denomina sua
dimenso pragmtica: entendemos como pragmtica, no sentido de Morris, a relao entre os
signos do texto e o interpretante. O uso pragmtico de signos tem a ver com a conduta que
ativada no receptor (ISER, 1996, p. 106).
O autor tambm cita Austin (1962a) e apropria-se da teoria dos atos de fala,
transpondo-a aos seus estudos acerca do texto literrio ao afirmar que considera a filosofia da
linguagem ordinria a que melhor se ocupou da dimenso pragmtica do uso da fala. De
acordo com Iser (1996), a teoria dos atos de fala se preocupa em descrever determinadas
condies que garantiriam o xito de aes verbais e, igualmente, essas condies esto em
jogo tambm na leitura de textos ficcionais, que motivam uma ao verbal medida que o
leitor, ao entender o texto ou aquilo que comunicado por ele, tem xito ou fracassa (ISER,
1996, p. 103), resultados aos quais Austin (1962a) denominaria felizes, se exitosos, e
infelizes, caso contrrio.
Os atos de fala tm como pressuposto o fato propriamente dito de serem atos, ou
seja, de considerar que a linguagem, mais que compor uma simples sentena a ser proferida,
realiza aes ao ser utilizada, e tem portanto uma inteno que obedece a determinadas
-
36
normas/convenes. Austin (1962a) explica que, quando dizemos algo como aceito,
batizo, aposto, etc., no estamos descrevendo ou declarando aquilo que estamos fazendo,
mas efetivamente realizando a ao de aceitar, batizar, apostar.
Para uma explanao mais completa acerca dos atos de fala, devemos recorrer ao
prprio Austin:
Em primeiro lugar, distinguimos um conjunto de coisas que fazemos ao dizer algo, que sintetizamos dizendo que realizamos um ato locucionrio, o que equivale, a grosso modo, a proferir determinada sentena com determinado sentido e referncia, o que, por sua vez, equivale, a grosso modo, a significado no sentido tradicional do termo. Em segundo lugar dissemos que tambm realizamos atos ilocucionrios tais como informar, ordenar, prevenir, avisar, comprometer-se, etc., isto , proferimentos que tm uma certa fora (convencional). Em terceiro lugar tambm podemos realizar atos perlocucionrios, os quais produzimos porque dizemos algo, tais como convencer, persuadir, impedir ou, mesmo, surpreender ou confundir. (AUSTIN, 1999, p. 95, nfase no original).
Obviamente esses atos constituem uma taxonomia que visa tornar possvel um melhor
entendimento da linguagem em uso, pois certo que todo ato lingustico locucionrio,
ilocucionrio e perlocucionrio de uma s vez.
Iser (1996) dispensa cerca de dez pginas apenas para explicar os atos de fala como
enunciaes verbais atreladas a contextos determinados e que, portanto, o sentido das frases
s pode ser constitudo no momento de seu uso. Visto que a Comunicao um dos
elementos centrais para a Esttica do Efeito, como vimos anteriormente, preocupa-se em
destacar que tambm os atos de fala so unidades comunicativas da fala e que o paradigma
melhor se revela no momento em que provocam mudanas de situao (aes), o que o leva
s enunciaes performativas.
Acerca dessa teorizao, Oliveira (2005, p. 19) aponta que todos os enunciados
contm, ao mesmo tempo, elementos constativos e performativos, ou seja: eles esto
dizendo e fazendo ao mesmo tempo. A despeito dessa diviso inicial, a pragmtica
austiniana traz, em um segundo momento, que todos os enunciados so performativos
realizam aes , e Iser (1996) trabalha principalmente com a concepo de que h
determinadas condies necessrias para o acontecimento desse performativo, ou seja, a
felicidade ou infelicidade do ato est relacionada obedincia a determinadas exigncias,
como convenes e procedimentos aceitos em torno da enunciao. Alis, o autor as
denomina a estratgia dos textos, ao passo que oferecem as orientaes que possibilitam ao
receptor reconhecer os elementos constitutivos de determinado texto.
-
37
Lembremo-nos de que Austin formula trs postulados para o xito da ao: a enunciao performativa pressupe convenes comuns entre falante e receptor, assim como procedimentos aceitos por ambos e, por fim, a disposio de participar na ao verbal. Se pressupomos que o leitor de um texto preenche aquela disposio, em troca as outras propriedades necessrias para o xito da enunciao no so dadas. O que no uso cotidiano dos atos da fala dado de antemo deve ser antes construdo diante do discurso ficcional. Em consequncia, os textos ficcionais devem trazer consigo todos os elementos que permitem a constituio de uma situao entre texto e leitor. Isso significa, no sentido dos postulados de Austin, que o texto ficcional deve apresentar convenes e procedimentos, pois no pode se realizar por meio de convenes estabilizadas e procedimentos usuais. Da resulta o alto grau de estruturao desses textos, se se leva em conta a carga simblica que trazem consigo (ISER, 1996, p. 129).
Segundo Iser (1996), nos textos, atravs da escolha do vocabulrio e outros signos
verbais e enunciaes que os atos ilocucionrios e/ou perlocucionrios buscam encontrar o
receptor. Assim, lembrando que na teoria dos atos de fala o contexto essencial para elucidar
o sentido de determinada enunciao, explica que a situao e suas circunstncias formam
um contexto bem definido, pelo qual as frases no s se transformam em enunciaes, mas
tambm constituem uma relao dialgica; este o pressuposto necessrio para a
comunicao entre falante e receptor (ISER, 1996, p. 116). Considerando que Iser est mais
preocupado com os elementos constituintes do prprio texto, provvel que ao utilizar a
palavra contexto ele estivesse, na verdade, se referindo ao co-texto.
De qualquer forma, Iser (1996) aponta que Austin (1962a) se ocupa apenas de
aspectos que dizem respeito ao falante e busca, ento, acrescentar tambm o lado do receptor,
visto que pretende avaliar as condies que levam ao xito ou fracasso da comunicao dos
textos literrios. E orienta sua discusso a partir da viso de que o discurso ficcional imita,
portanto, os hbitos verbais dos atos ilocucionrios, mas o que ele diz no produz o que
intencionado. Cabe contudo perguntar se tal discurso no produz nada ou se o que produz h
de se qualificar apenas como fracasso (ISER, 1996, p. 111), de onde chega concluso que a
compreenso14 tambm deve ser considerada um processo produtivo, ou seja, h o papel
desenvolvido pelo leitor em interao com o texto ficcional.
Na realidade o que acontece que h sempre um efeito (ato perlocutrio), que nem
sempre condiz com o intencionado (ato ilocutrio). A questo que esses efeitos no podem
ser controlados, ou interpretados sob determinadas regras, do que resulta que no h como
sabermos quando devemos levar as palavras proferidas ao p da letra, podemos apenas
considerar qual uso foi feito destas palavras.
14 Neste trabalho, adotamos a compreenso prpria da pragmtica de que a percepo (cognio) uma atividade (ao). No se trata de uma observao passiva do mundo, pois quando percebemos/compreendemos estamos elaborando novas narrativas (Austin, 1962b).
-
38
Assim, destaca elementos que auxiliam nesta compreenso, como
convenes, procedimentos, adequabilidade situao e garantias de sinceridade. Elas constituem a referncia para que a linguagem se adeque ao contexto de ao. A reduo de indeterminao, necessria para a compreenso de um texto ficcional, no se realiza por meio dessas referncias dadas de antemo. Ao contrrio, deveramos primeiro descobrir o cdigo que engloba os elementos do texto e concretiza o sentido do texto como referncia. Constitu-lo uma ao verbal medida que atravs dela que o leitor se comunica com o texto (ISER, 1996, p. 113).
Iser acaba por afirmar que as convenes e procedimentos aceitos em Austin (1962a)
esto condicionadas por uma estrutura vertical que prediz a estabilidade e aceitabilidade dos
atos de fala. Ora citando o autor diretamente, ora se apropriando de suas ideias, a teoria dos
atos de fala acaba por permear boa parte da Esttica do Efeito, ancorada na relao dialgica
entre texto e leitor, que acontece no ato da leitura.
Porm, pouco comentados em Iser, a teoria dos atos de fala tambm possui alguns
outros tpicos comuns de investigao, como o subentendido ou implicatura conversacional, a
polidez, e o contexto (OLIVEIRA, 2005). Embora de difcil delimitao, parece evidente que
o campo de equivocidade da palavra comunicao se deixa maciamente reduzir pelos
limites do que se chama noo de contexto (DERRIDA, 199115, citado por ALENCAR;
FERREIRA, 2012).
Explicando a importncia da concepo de contexto para o estudo austiniano, Danilo
Marcondes, na apresentao edio brasileira16 de How To Do Things With Words, diz:
quando analisamos a linguagem nossa finalidade no apenas analisar a linguagem enquanto tal, mas investigar o contexto social e cultural no qual usada, as prticas sociais, os paradigmas e valores, a racionalidade, enfim, desta comunidade, elementos estes dos quais a linguagem indissocivel. A linguagem uma prtica social concreta e como tal deve ser analisada (AUSTIN, 1999, p. 19).
Como podemos notar, embora Iser tenha conhecimento da teoria dos atos de fala e a
leve em considerao ao formular a sua prpria, essa apropriao no acontece isenta de
problemas, como o fato de que o autor se mantm preso aos elementos textuais e, embora os
considerem orientadores de um processo de comunicao, sequer esbarra no conceito de
15 DERRIDA, J. Assinatura, acontecimento, contexto. In: ______. Margens da filosofia. So Paulo: Papirus, 1991. 16 Embora a traduo de Marcondes seja extremamente criticada, optei por lev-la em considerao neste trabalho, partindo da reflexo do prprio Austin de que um nico e mesmo objeto pode ser ao mesmo tempo um x real e no ser um y real; um objeto que se parece muito com um pato pode ser uma verdadeira imitao de um pato (no apenas um pato de brinquedo) (AUSTIN, 2004, p. 76).
-
39
linguagem. Ento, qual a razo para insistirmos em utilizar o autor como uma das bases desta
pesquisa?
3.3.1 As Lacunas Deixadas pela Teoria Iseriana e Por Que Utiliz-la
A Esttica do Efeito apresenta algumas carncias, como o fato recm citado de haver
ignorado a viso austiniana que aponta que todos os enunciados so performativos e, portanto,
realizam aes. Esse aspecto, muitas vezes deixado de lado pelos leitores de Austin,
considerado como seu grande trunfo por autores como Rajagopalan (2010) e Oliveira (2012b),
que destacam que a performatividade intrnseca linguagem e no deve ser vista como um
adendo a ela.
Outro aspecto pouco aprofundado o da produo de sentido, embora uma das
questes essenciais trazidas por Iser (1996) seja compreender o que ocorre com o leitor
quando l um texto. Alm disso, em alguns momentos o autor explica que o texto se
transforma em experincia para o leitor, mas que ele induzido a assumir determinadas
atitudes, independentemente das experincias subjetivas (ISER, 1999, p. 178, nfase
acrescida), pois um leitor nunca poderia fazer tal experincia se a sequncia dos monlogos
no o forasse continuamente a criar expectativas (ISER, 1999, p. 184, nfase acrescida). Ou
seja, o leitor aparece muito frequentemente da forma explicitada nestes trechos: como uma
funo do texto.
O prprio autor faz uma ressalva quanto a seu modelo, ao ponderar que a estrutura do
vazio precisa ser compreendida pela participao do leitor no texto atravs de um tipo ideal
de comunicao. E, embora defenda o contrrio, um saldo geral nos mostra que a estrutura
acaba sim de certa forma por se sobrepor ao sujeito no desenvolvimento de suas ideias. De
qualquer forma, o autor consegue aproximar sua teoria da existncia de um leitor real com
mais xito que Jauss.
Outro ponto bastante positivo de Iser que ele nos mantm com os ps no cho ao
afirmar que o texto possui elementos que auxiliam na construo do caminho da produo de
sentidos. Assim, visto que especialmente o lado do receptor que nos interessa, no
incutimos no erro de pensarmos ingenuamente que o sujeito l um texto a seu bel prazer. So
(ao menos) dois fatores que caminham juntos, de onde a validade de Iser denominar essa
relao de interao textoleitor, qual acrescentaremos ainda a noo de contexto/situao
-
40
proposta por Austin (1962b), ao realizarmos a anlise do Projeto de Comunicao e(m)
Leitura realizado na escola (item 6.2).
O modelo de Iser tambm frequentemente utilizado talvez nem sempre de modo
consciente em atividades escolares de leitura (FERNANDES, 2010), como j havamos
comentado, e este um dos principais motivos pelo qual dispensamos a ele tal destaque.
Buscaremos sanar as lacunas deixadas pelo autor no decorrer do texto, iniciando com a
compreenso de que escola esta da qual estamos falando, e das prticas relacionadas ao
ambiente escolar.
-
41
4 ECOSSISTEMA COMUNICATIVO E A PRTICA REFLEXIVA NA ESCOLA
Refletir criticamente significa colocar-se no contexto de uma ao (GHEDIN, 2006, p. 138).
Se o modelo iseriano ainda aparece como orientador das atividades de leitura na
escola, convm questionarmos afinal que escola esta. No se trata mais (ou no deveria) de
seguir um sistema vertical de ensino, em que o professor detm o conhecimento e os alunos
so repositrios de seus ensinamentos, sujeitos palmatria caso no o absorvam
corretamente leia-se decorem. As relaes entre professores e alunos esto mudadas,
mas pouco se admite que isso acarreta tambm uma transformao das relaes de poder
existentes no cenrio escolar.
Martn-Barbero (1999) nos lembra que um dos centros dessa relao o livro. A
escola se nega a aceitar o descentramento cultural que atravessa o que at ento tem sido seu
eixo intelectual e pedaggico, e mantm firme o argumento de que o livro (didtico,
especialmente) sinnimo de aprendizado e de conhecimento, buscando sustentar uma
hegemonia de centro do saber h muito ameaada pelas tecnologias da imagem. O livro
didtico constitui assim uma forma de exerccio de poder, baseado na transmisso de
mensagens escritas e apoiado em nossa cultura de hegemonia grafocntrica.
E, se a exigncia para que o aluno repita o mais fielmente possvel o que lhe fora
ensinado pelo professor acentuada com a leitura da palavra escrita, a marcao com a
imagem torna-se to acirrada quanto. Para que seja assegurada a interpretao nica e correta
de uma linguagem tida como mais difcil de ser domada (embora tenhamos visto que devemos
eliminar as dicotomias tais quais verbal x no verbal e que linguagem ao17), as gravuras
e imagens de pinturas, por exemplo, vm acompanhadas no apenas do ttulo e autor da obra,
mas de uma legenda que descreve o que nos permitido enxergar quando vislumbramos
aquela pea.
A escola fomenta uma relao com o livro muito parecida com a que fomentou a Igreja entre o fiel e a Sagrada Escritura, de tal modo que, da mesma forma que os clrigos eram os detentores do poder da nica leitura autntica da Bblia, os professores detm o saber de uma leitura unvoca, ou seja, aquela na qual a leitura do aluno puro eco da do professor (MARTN-BARBERO, 1999, p. 14, traduo minha).
17 Rajagopalan (2010, p. 26) diz: falar uma lngua realizar uma srie de atos.
-
42
O autor complementa sua ideia afirmando que a posio defendida pela escola de
que a crise da leitura de livros entre os jovens deve-se u
top related