capitao golfo
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CAPITÃO GOLFO texto de Guilherme Ismael e ilustração de Lourdes Sendas
CAPITÃO GOLFO dizia:
Olhar é ver as cores.
O Azul e o Vermelho, o Verde, o Amarelo.
O PRETO dançando com o BRANCO.
E quando está tudo pronto temos uma vida.
Mas às vezes há coisas que
se desorganizam.
… e já me esquecia do que ia a dizer.
Sim, o Capitão Golfo.
Querem então saber quem ele é
e como o conheci?
Pois esperem
que já vos conto:
I - DE COMO COMECEI A VIAGEM E ENCONTREI UMA MENINA AZUL CHAMADA ÁRVORE:
Como ia dizendo neste meu contar, às vezes há coisas que se de-
sorganizam. Assim como uma pessoa ir a entrar em casa, tropeçar no
tapete que sempre ali esteve mas mudou de cor, partir o primeiro espe-
lho do corredor, fazer cair um banco e partir em voo pela janela das
traseiras, dizendo adeus, encontrando pássaros espantados, chaminés
sem fumo e antenas de televisão que se embaraçam nos cabelos.
Isto vos conto, porque foi o que me aconteceu:
Cheguei a casa, tropecei no primeiro degrau, embaracei-me no ta-
pete, parti o espelho, enfiei um braço no lavatório cheio de água trans-
parente e parti viajando pela janela.
Encontrei no voo pássaros espantados, embaracei-me num lençol
estendido a secar e caí cá em baixo.
Cá em baixo o gato miou e eu desatei a correr.
Ao passar por uma casa no meio de um caminho sem sombra, uma menina azul
estava à janela e chamou-me:
-Pssst, pssst…
Parei e olhei. Ela sorriu:
-Porque corres?
-Corro porque tenho cócegas nas mãos, respondi.
- Então porque não voas?
-Tens razão. Porque não? Disse eu meio risonho.
Então levantei os braços mas não saí do mesmo sítio. A menina azul, que se cha-
mava Árvore, riu-se. Atirou-me uma tangerina.
-Come, deves ter sede.
Comecei a descascar a tangerina e a atirar as cascas para baixo de uma árvore.
Não havia vento mas a árvore mexeu-se:
- Ao menos atira os caroços, disse ela, que assim crescem outras árvores para mi-
nha companhia!
-Não ligues, disse a menina. É uma árvore que fica aí todo o dia sem fazer nada
só para me aborrecer.
-Ah, tu aborreces-te …
-Sim, disse a menina debruçando-se na janela.
-Porquê? Perguntei eu.
E ela debruçando-se cada vez mais disse:
-É sempre a mesma coisa. Não há espelho que se torne água,
nem flor que seja pássaro, nem pássaro que seja peixe. É sempre a
mesma história: o Sol dá Sol, a Lua dá luz e as pessoas falam.
Ficou durante um
tempo calada a pen-
sar e depois continu-
ou:
-Sabes o que eu
queria? Eu queria
ser girassol e depois
de girassol roda e da
roda ser palavra e da
palavra um fio e do
fio uma música e de-
pois auto-estrada;
ser sal e depois nu-
vem e depois lago e
água e outra vez es-
pelho e depois pon-
te.
A menina continuava a debruçar-se da janela, eu tinha acabado a
tangerina que me sabia a romã. Ela olhou para mim:
-Tu para onde vais? perguntou.
Só então me lembrei. E disse a verdade:
-Não sei.
Contei-lhe então a história do degrau, do espelho,
do lençol a secar.
-A partir daqui, concluí, bem podes ver que não sei
para onde vou.
-Levas-me contigo para onde não sabes que vais?
Eu respondi:
-Não te levo comigo. Tropeça o teu próprio degrau e
faz-me companhia.
Nessa altura ela caiu mesmo da janela. Riu-se muito alto e levan-
tou voo. Lá de cima gritou:
-Eh, não fiques aí parado a olhar. Anda, vem ser
pássaro comigo.
II - DE COMO FOMOS RECEBIDOS PELO CAPITÃO GOLFO E
DE COMO ILUMINÁMOS OS MASTROS NOITE FORA:
Depois de muito voar, de ter encontrado o arco-íris, de ter ouvido na
viagem o canto dos chorões, chegámos ao mar.
O mar visto de cima parece um espelho a reflectir o céu. E enquanto
acompanhávamos as nossas sombras nele reflectidas, vimos, lá muito
ao fundo, no arco que o mar faz com o azul do céu, um esvoaçar como
de velas livres e limpas.
- Um barco à vela, gritou Árvore. Vem mesmo a calhar que estou
a ficar cansada.
Virámos então o vento dos nossos cabelos e rumámos até lá.
Quando nos aproximámos vimos as belas velas brancas e, no convés,
o reboliço dos marinheiros, o serpentear das cordas, o chilrear dos
apitos.
Capitão Golfo preparava-se para receber os pássaros.
É que os pássaros para ele significavam terra. E embora mari-
nheiro das águas revoltas, Capitão Golfo, mesmo assim, ou por isso
mesmo, preferia a terra. E o mar era só, para ele, uma auto-estrada
que o ligava a outra terra.
Não sou peixe para andar dentro de água, dizia ele sempre que
lhe falavam dos encantos do mar, das tempestades e da beleza fluida
das algas.
-Pássaros a estibordo, gritou o Capitão Golfo.
Árvore olhou à volta e não viu nada.
-Devemos ser nós, concluiu.
Começámos a voar para aquele barco plantado no meio do mar.
Bom marinheiro, conhecedor de todos os mares e mesmo dos ma-
res mortos da Lua, Capitão Golfo entrava em festa quando os pássaros
poisavam no alto dos seus mastros.
-Os mastros foram feitos para os pássaros descansarem, dizia ele.
-Pássaro não é peixe e por isso precisa descansar antes de terra.
Depois de tomarem fôlego as aves içavam-se no ar rumando para terra. O
Capitão Golfo ficava a ver as velas baterem ansiosas do verde das árvores,
do cheiro quente da terra.
Capitão Golfo não largava então o óculo, cheirava o vento e só descan-
sava quando o marinheiro do mastro grande gritava o nome cheio de flo-
res:
-Terra!
O Capitão Golfo ficou boquiaberto quando poisámos no convés.
-Que vem a ser isto? Perguntou.
Eu respondi antes que Árvore dissesse asneiras:
- O mar é grande. Viemos para descansar.
O capitão ficou a olhar para nós.
-Como os pássaros, comentou.
Olhou para os marinheiros que nos observavam. Gritou com quantas for-
ças tinha:
-Nunca viram pessoas no mar? Ao trabalho que a terra está perto.
Depois virou-se para nós e disse encolhendo os ombros:
- Eu cá não tenho nada a ver com isso. Sempre fui da opinião
que quem quisesse voar que voasse. E já que estão aqui conside-
rem-se meus convidados.
A explicação para a atitude do Capitão Golfo era simples, como
viemos a saber no seu camarote. Rodeado de mapas dos ma-
res, globos terrestres e lunares, o Capitão confessou sem rodeios:
-Estamos perdidos. O mar em que estamos não existe porque
para qualquer lado que se rume não se encontra terra.
Eu e Árvore perdemos a fala. Árvore tentando perceber melhor,
perguntou:
-Então isso é como um eclipse do Sol?
-Claro que era como um eclipse de Sol. E de eclipses, toda a
gente sabe, só as gazelas percebem. E no mar não há gazelas.
Debruçados sobre os mapas ficámos a pensar. Devia haver maneira
de sair daquele sarilho.
Árvore intrigada perguntou:
- Se calhar a terra foi dar uma volta e já volta. Tem o direito,
não?
O Capitão foi claro:
-Mesmo quando a terra vai dar uma volta, deixa as ilhas a
brincar no pátio.
Mas Árvore afastara-se e, pela vigia do barco, olhava o mar. De re-
pente virou-se para o Capitão Golfo e perguntou:
-E não te terás esquecido do vento?
O Capitão bateu com a mão na testa:
- Estou cada vez mais distraído. É isso, falta-me o vento.
E depois de rapidamente fazer umas contas sobre os mapas saiu
aos gritos para o convés:
- É o vento, é o vento, gritava.
Toda a gente se reuniu à volta dele
-Não foi a terra que se mudou, disse, foi o vento que se perdeu.
Vamos disparar tiros de canhão, acender archotes no alto dos mas-
tros para que o vento descubra o caminho até nós.
E, toda a noite, no convés, fizemos fogo de artifício e dispará-
mos setas azuis a indicar o nosso caminho e dançámos as músicas
mais loucas para que os sons, viajando à flor da água, encontras-
sem o vento e o trouxessem até nós.
E com o nascer do dia, uma brisa leve começou a remexer os nossos ca-
belos soltos e a encher-nos a boca de bolhas de ar.
Corremos a saudar o vento que finalmente chegava e nos acari-
nhava com as suas mãos ao mesmo tempo suaves e agrestes e salgadas,
pois era o vento do mar, que passeara com as algas e os peixes e conhe-
cia a luz da Lua e o encanto das estrelas do mar.
E, com um suspiro, o barco começou a mover-se. O Capitão Golfo
ao leme, de contente, cantava uma canção de piratas onde se contavam
as suas brincadeiras com o vento e os bailados das tartarugas nas ilhas
do pacífico.
Na luz alaranjada do princípio da tarde, rumámos a terra.
Até que os primeiros pássaros poisaram nos mastros grandes.
III - DE COMO O CAPITÃO GOLFO ENCONTROU OS BÚZIOS E
SE TORNOU MARINHEIRO
Já com o vento a encher as velas e o
barco deslizando suavemente, sentá-
mo-nos no convés ouvindo as histó-
rias do Capitão Golfo.
-Querem então saber, disse-nos
ele, como me tornei marinheiro de
todos os mares, da terra e da lua?
Esperem que já vos conto.
Eu nasci no interior, em casas feitas
de pedra. Brincava com as vacas, que
são o mar a entardecer, cavalos e ber-
lindes de azeitonas.
Meus pais eram camponeses.
Um dia, numa daquelas tardes muito quentes em que as mos-
cas ficam a zumbir à nossa volta, a convidar os pais ao sono e
as árvores à sombra, pareceu-me ouvir um outro zumbido que
não era o das moscas.
Curioso, comecei a seguir esse zumbido que vinha de longe,
muito para o lado de lá dos montes.
Andei, andei, até que perdi de vista a minha casa.
Quis então voltar atrás mas o zumbido, como uma voz, disse-
me:
-Não voltes sem primeiro experimentar o sal.
Continuei o caminho e, ao chegar ao cimo do monte, vi o mar,
esse grande estendal de água que tanto é verde como azul co-
mo prata; que tanto é escuro como luz.
Aí, sem hesitar, corri para o mar e molhei os pés.
Diverti-me a correr com as ondas, a persegui-las como antes me
perseguiam os milhafres e a fugir como um coelho à solta. Até que
encontrei na areia um búzio que me disse:
-Entra e eu faço-te viajar no mar do meu ventre.
Aprendi então que os búzios são as portas abertas do mar. E que a
sua voz é a voz do mar no ouvido.
Ao entrar, caí logo dentro d’ água. Fechei os olhos e es-
tenderem-me um braço. Eu agarrei-me e de repente vi-me sentado
numa pequena ilha em forma de jangada feita de rochas.
Quem me deu a mão foi uma estrela-do-mar. E, à volta de nós,
muitas outras nos olhavam e riam alto com o meu ar atarantado.
Baptizado do mar, depois de algas e alforrecas me ensinarem a
nadar, a fazer repuxo como as baleias, a conhecer os ventos e as
marés, ensinaram-me ainda a ser marinheiro. Disseram-me:
Enfia uma estaca num tronco oco, põe-lhe uma vela e
dá-lhe rumo de terra.
Assim o fiz. E a partir de então o mar foi terra minha, quando a mi-
nha casa era em terra.
-Montado no meu barco de velas brancas, uma estaca num
tronco oco. E depois de brincar o bailado salgado dos braços
das estrelas-do-mar, a Estrela-Mãe e o Búzio-Vermelho
disseram-me:
-Não te esqueças: a terra e o mar são solidários. Como os
búzios e os cometas, os pescadores e as árvores, os peixes e o
horizonte.
IV – DE COMO UM PESCADOR AMIGO DO CAPITÃO
GOLFO CONHECEU A ILHA DOS SONHOS:
Um dia em que estávamos encostados ao mastro grande ouvindo
as aventuras maravilhosas do Capitão Golfo, começámos a sentir
o cheiro de flores e frutos que nos era trazido pela brisa. E ao lon-
ge havia gaivotas a boiar nas ondas do vento. E um marinheiro
gritou TERRA!
Capitão Golfo olhou para nós e sorriu:
-Terra, a palavra mágica. Porque para nós que andamos no mar,
todas as terras são boas e somos de todos os lugares. E todas as pesso-
as que nelas vivem são companheiras porque conhecem o vento e co-
nhecem o cheiro do mar. E, porque sabem isso, mandam este cheiro de
frutos, este cheiro de flores para nós sonharmos com a terra quando
estamos a chegar.
É para nos dizerem que somos bem-vindos.
E o Capitão Golfo contou-nos mais uma das suas
histórias. E disse:
Saibam que numa terra havia um pescador que
saía manhã cedo na sua jangada a pescar.
Embalado pela dança da água o pescador lançava
a linha e assobiava.
O dia é lento à tona da água. Peixes voadores
atravessavam por vezes a jangada olhando espantados
aquele homem só.
- Com que então voando, dizia o pescador aos
peixes, rindo-se do seu espanto.
Ao fim do dia, guiado pelas estrelas ainda azuis, o pes-
cador voltava com o peixe pescado. Nem mais nem me-
nos do que o que lhe chegava para viver até ao dia se-
guinte.
De qualquer modo, embora habituado, o dia todo no mar, sem
ninguém com quem falar, aborrecia-o. Ele bem falava com os remos
da sua jangada, com os bocados de coco que punha no anzol, com
as gaivotas e os peixes voadores, com os raios de sol que brilhavam
nas ondas e pareciam brincar. Mas nenhum deles respondia.
Uma tarde, precisamente à hora em que no mar o dia parece
mais lento, cansado do silêncio, o pescador adormeceu. E sonhava
com lagartos ao sol, ovos de tartaruga e pinguins da terra do seu bi-
savô quando, de súbito, sentiu um grande puxão na linha.
-É como falar com as paredes, dizia ele.
Mas se bem que isso o entristecesse, o pesca-
dor não deixava de continuar a viver a sua
vida, a assobiar as suas canções que eram to-
das feitas de mar, e a voltar a casa guiado pe-
las ondas tracejadas de estrelas azuis.
Acordou para ver, preso ao anzol, um enorme peixe de esca-
mas encarnadas que volteava no ar e olhava espantado o pescador. E
uma vez dentro d’água, o peixe começou a puxar com toda a força e
foi arrastando o pescador e a sua jangada.
Durante horas puxou até que veio a
noite. Uma noite escura, sem lua e sem estre-
las. O pescador não sabia muito bem o que
fazer quando sentiu que estava em terra por
causa do cheiro das flores.
Saiu da jangada para a areia molhada
da praia. Andando um bocado viu uma ár-
vore que dava uma luz pequena e difusa. O
pescador caminhou para lá e viu que eram os
grilos que davam essa pouca luz e assobia-
vam como se fosse vento. A árvore pareceu-
lhe uma casa. Por baixo dela se deitou e
adormeceu.
E porque a árvore era quente e suave, o pescador sonhou com
uma mulher de cabelos pretos que fosse sua mãe. Essa mulher tinha
na mão um barco encarnado e cantava uma canção de embalar.
O pescador então dizia-lhe:
Um peixe encarnado me trouxe para aqui. Mas eu não me im-
porto porque sei que o mundo é grande e que em todo o lado há uma
árvore para ser nossa casa.
A mulher sorria:
- Dorme que já é tarde, dizia ela.
Quando o pescador acordou, o peixe vermelho estava perto da
árvore. O pescador perguntou:
-Que terra é esta?
- Esta é a terra das árvores-casas, disse ele. É aqui que eu moro e
onde também mora o sonho.
- Então eu não posso voltar para a minha terra, para a minha ca-
sa? Perguntou o pescador.
E o peixe vermelho disse:
-Qual terra e qual casa? Eu conheço todas as terras e todas as ca-
sas e sei que o mundo te pertence e são tuas todas as terras e todas as
casas por onde o teu caminho te levar. Do mesmo modo que é tua esta
ilha para onde te levou o teu caminho e o teu mar de todos os dias. Pa-
ra aqui andavas a viajar há muito tempo. Até que agora encontraste es-
ta e todas as terras.
O pescador ficou a pensar um pouco para responder:
-Tens razão, sonho-peixe. É meu todo o bocado de mar onde
planto a minha jangada, onde lanço a minha linha. É minha a terra on-
de encontro a minha casa e o meu sonho.
.
E assim aquela terra fez-se sua. A partir daí, no mar, de-
pois da pesca e ao cair do dia, quando as estrelas estavam
azuis, o peixe vermelho aparecia e guiava o pescador até à ilha.
Nessa ilha o pescador ficava muitas horas a sonhar.
O Capitão Golfo sorriu para nós. E continuou:
-As pessoas dizem que esse pescador não existe, porque nunca
ninguém o viu naquela terra, em nenhuma casa feita de lata.
Mas eu sei que ele existe porque ainda no outro dia o encontrei
no mar. E ele falou-me e contou-me tudo sobre a ilha onde o
sonho entra nas árvores. E onde a mulher de cabelos pretos e
um barco vermelho na mão sossega as pessoas à noite e as
adormece cantando músicas de roda de quando eram crianças.
Epílogo:
Foi assim que conheci o Capitão Golfo.
Agora eu e Árvore, continuamos a nossa via-
gem pelo mundo, contando a toda a gente as histó-
rias do Capitão Golfo e de como ele gostava do mar
e da terra, dos peixes e das aves e da alegria das
histórias contadas.
E desde então, quando à noite
não tenho sono, penso nele, no seu barco de
velas brancas e naquele cheiro de frutos e
de mar, e deixo vir o sono. Então,
adormeço recolhido
na minha nuvem.
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