assassin's creed renegado oliver bowden

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Obras do autor publicadas pelaEditora Record: Série Assassin’s

Creed RenascençaIrmandade

A cruzada secreta

Renegado

Tradução de

Domingos Demasi

1ª edição

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES

DE LIVROS, RJ

Bowden, Oliver

B782rRenegado / Oliver Bowden; tradução

de Domingos Demasi. – Rio de Janeiro:Galera Record, 2012.

Tradução de: Assassin’s Creed:ForsakenFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe DigitalEditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-01-40199-1 (recursoeletrônico)

1. Assassinos – Ficção. 2. Ficçãoinglesa. I. Demasi, Domingos. II.Título.

III. Série.

12-6854CDD: 823CDU: 821.111-3

Título original em inglês:Assassin’s Creed: Forsaken

Copyright © 2012 Ubisoft Entertainment.Todos os direitos reservados.

Assassin’s Creed, Ubisoft e a logo da Ubisoftsão marcas registradas de Ubisoft

Entertainment nos Estados Unidos e/ou emoutros países.

Publicado primeiramente na Grã Bretanha eminglês por Penguin Books Ltd.

Todos os direitos reservados.Proibida a reprodução, no todo ou

em parte, através de quaisquer meios.Os direitos morais do autor foram assegurados.

Composição de miolo da versão impressa:Abreu’s System Texto revisado segundo o

novo Acordo Ortográfico da LínguaPortuguesa.

Direitos exclusivos de publicação em línguaportuguesa somente para o Brasil adquiridos

pelaEDITORA RECORD LTDA.

Rua Argentina 171 – Rio de Janeiro, RJ –20921-380 – Tel.: 2585-2000

que se reserva a propriedade literária destatradução.

Produzido no Brasil ISBN 978-85-01-40199-1

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Atendimento e venda direta ao leitor:mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002.

Prólogo

Eu nunca o conheci. Não deverdade. Pensava que sim, mas sódepois de ler seu diário percebi querealmente não o conhecia. E agora étarde demais. Tarde demais paradizer a ele que o julguei mal. Tardedemais para dizer que sinto muito.

P A R T E U M

Trechos do diário deHaytham E. Kenway

6 de dezembro de 1735

i

Dois dias atrás, eu deveria estarcomemorando meu décimoaniversário na minha casa, na QueenAnne’s Square. Em vez disso, a datapassou despercebida; não hácomemorações, apenas funerais, enossa casa incendiada é como umdente enegrecido e podre entre asaltas mansões de tijolos brancos davizinhança.

Por enquanto, estamos ficando

em uma das propriedades do meupai, em Bloomsbury. É uma boacasa e, embora a família estejaarrasada e nossas vidas destroçadas,pelo menos temos de agradecer porisso. Vamos continuar por aqui,chocados, no limbo — comofantasmas perturbados —, até nossofuturo ser decidido.

O fogo devorou meus diários,então, iniciar este me dá a sensaçãode um recomeço. Por isso, devoprovavelmente começar pelo meunome, que é Haytham, um nomeárabe, dado a um menino inglês que

mora em Londres e que, desde onascimento até dois dias atrás,levou uma vida dos sonhosprotegida do pior do lixo que existeaí pela cidade. Da Queen Anne’sSquare, podíamos ver a neblina e afumaça que pairam sobre o rio e,como todo mundo, ficávamosincomodados com o fedor, queconsigo apenas descrever como o de“cavalo molhado”. Mas nãotínhamos de caminhar pelos rios dedejetos fedorentos vindos doscurtumes, açougues e traseiros dosanimais e das pessoas. Os fluxos

rançosos de efluentes que acelerama passagem de doenças: disenteria,cólera, pólio...

— Precisa se agasalhar, Sr.Haytham. Ou a gripe vai pegar você.

Nas caminhadas pelos campos atéHampstead, minhas amascostumavam me desviar dos pobresdesafortunados assolados por tossese proteger meus olhos contracrianças com deformidades. Maisdo que tudo, temiam doenças. Creioque porque não se consegueargumentar com doença; não sepode suborná-la nem lutar contra

ela, pois não respeita riqueza oureputação. É um inimigoimplacável.

E, é claro, ataca sem avisar.Portanto, todas as tardes meexaminavam à procura de sinais desarampo ou catapora e informavamsobre minha boa saúde à minhamãe, que vinha me dar um beijo deboa noite. Eu era um dos sortudos,sabe, que tinha mãe para me darbeijo de boa noite, e pai quetambém fazia isso. Que amava amim e à minha meio-irmã Jenny,que falava sobre ricos e pobres, que

fazia com que eu acreditasse naminha boa sorte e insistia para queeu sempre pensasse nos outros; eque empregava tutores e amas paracuidar de mim e me educar, paraque eu crescesse como um homemde bons valores e de utilidade para omundo. Um dos sortudos. Não comoas crianças que têm de trabalhar noscampos e nas fábricas e lá em cima,nas chaminés.

Mas, às vezes, eu ficavaimaginando... essas outras criançastinham amigos? Se tinham, então,ao mesmo tempo que, naturalmente,

sabia muito bem que não deviainvejar suas vidas, já que a minhaera muito mais confortável, eu asinvejava só por aquilo: seus amigos.Eu, eu não tinha nenhum, nada deirmãos ou irmãs próximos da minhaidade, e, para fazer amigos, bem, euera tímido. Além disso, havia outroproblema: algo que viera à luzquando eu tinha apenas 5 anos.

Aconteceu numa tarde. Asmansões da Queen Anne’s Squareeram construídas próximas umasdas outras, de modo quefrequentemente víamos nossos

vizinhos, ou na própria praça ou nosfundos dos terrenos. De um dosnossos lados, vivia uma família quetinha quatro meninas, duas mais oumenos da minha idade. Parecia quepassavam horas pulando corda oubrincando de cabra-cega no jardim.E costumava ouvi-las enquantopermanecia sentado na sala de aulasob o olhar vigilante do meu tutor, oVelho Sr. Fayling, que tinhasobrancelhas grisalhas e grossas e ohábito de vasculhar o nariz,analisando cuidadosamente o quequer que tivesse escavado de lá, e

em seguida, sorrateiramente,comendo-o.

Nessa tarde em particular, oVelho Sr. Fayling deixou a sala, eeu esperei até que seus passos seafastassem antes de abandonar meuscálculos, ir até a janela e olhar porum tempo o terreno da mansãovizinha.

Dawson era o nome da família. OSr. Dawson era Membro doParlamento — pelo menos foi o quemeu pai dissera, mal disfarçando aexpressão zangada. Eles tinham umjardim cercado por um muro alto e,

apesar das árvores, dos arbustos edas plantas totalmente floridos,partes eram visíveis da janela daminha sala de aula, de modo queconseguia ver as meninas Dawsondo lado de fora. Estavam brincandode amarelinha, para variar, e tinhamimprovisado um percurso no chãocom bastões de palamalhar, mas nãopareciam levar a brincadeira muitoa sério. Provavelmente as duas maisvelhas tentavam ensinar às duasmais novas como conseguir pontosmelhores no jogo. Como um borrãode rabos de cavalo e vestidos cor-

de-rosa amarrotados, gritavam eriam, e, de vez em quando, eu ouviaa voz de uma pessoa adulta, que eracapaz de ser uma ama e que eu nãopodia ver porque ela estava sob umdossel de árvores.

Abandonei meus cálculos namesa por um momento, enquanto asobservava brincar, até que derepente, como se ela pudesse sentirque estava sendo observada, umadas mais novas, mais ou menos umano mais nova do que eu, olhou paracima e me viu na janela, e os nossosolhares se encontraram.

Engoli em seco, então, hesitante,ergui a mão para acenar. Para minhasurpresa, ela sorriu de volta. Emseguida, chamou as irmãs, que seaglomeraram, todas as quatro,esticando empolgadas o pescoço eprotegendo os olhos do sol paraolhar para a janela da sala de aula,onde eu permanecia como uma peçaem um museu — mas uma peça quese mexia, que acenava e ficavaligeiramente rosada deconstrangimento, e, mesmo assim,sentindo o suave brilho cálido dealgo que talvez pudesse ser

amizade.Que se evaporou no momento em

que a ama delas surgiu de baixo dacobertura das árvores, olhouzangada para a minha janela, comum olhar que não me deixounenhuma dúvida do que pensava demim — um bisbilhoteiro ou coisapior —, e então tirou as quatromeninas da minha vista.

Aquele olhar que ela me deu eu jávira antes, e o vi novamente, napraça e nos campos atrás de casa.Lembra-se de como minhas amasme afastavam dos infelizes

esfarrapados? Da mesma forma,outras amas mantinham as criançasdistantes de mim. Nunca haviarealmente pensado por quê. Nãoquestionei isso pois... não sei, achoque talvez porque não tivessemotivo; era simplesmente algo queacontecia e eu não via diferença.

ii

Quando eu tinha 6 anos, Edith medeu de presente uma trouxa deroupas passadas e um par de sapatos

com fivelas de prata.Saí de trás do biombo, usando

meus sapatos novos com fivelasbrilhantes, um colete e uma jaqueta,e Edith chamou uma das criadas,que disse que eu era a imagemperfeita do meu pai, o que, é claro,era a ideia.

Mais tarde, meus pais vieram mever, e eu poderia jurar que os olhosdo meu pai marearam um pouco, aopasso que minha mãe não se prestoua qualquer fingimento esimplesmente caiu no choro alimesmo, e depois no quarto,

abanando a mão, até Edith lheentregar um lenço.

Parado lá, me senti adulto einstruído, embora sentissenovamente o calor nas bochechas. Eme peguei imaginando se asmeninas Dawson teriam meconsiderado realmente elegante naminha roupa nova, realmente umcavalheiro de verdade. Pensavanelas com frequência. Às vezes, asvia da janela, correndo pelo jardimou sendo conduzidas paracarruagens diante das mansões.Fantasiei, um dia, ter visto uma

delas furtar um olhar para mim,mas, se me viu, não houve sorrisosou acenos dessa vez, apenas umasombra daquele mesmo olharexibido pela ama, como se orepúdio a mim fosse algo que sepassasse adiante comoconhecimento secreto.

Tínhamos, portanto, os Dawsonde um lado; aquelas esquivasDawson, rabos de cavalo saltitando,enquanto, do outro, havia os Barrett.Era uma família com oito filhos,meninos e meninas, embora eutambém raramente os visse; assim

como os Dawson, meus encontroseram restritos a vê-los entrando emcarruagens ou avistá-los à distância,nos campos. Então, uma vez, poucoantes de fazer 8 anos, eu estava nojardim e andava ao redor dele,arrastando uma vara pelos tijolosvermelhos e despedaçados do muroalto. De vez em quando, parava paravirar pedras com a vara e observaros insetos que saíssem correndo debaixo — tatuzinhos de jardim,centopeias, minhocas queziguezagueavam como seesticassem seus longos corpos —,

quando cheguei à porta que davapara uma passagem entre a nossacasa e a dos Barrett.

O pesado portão estava trancadocom uma enorme e grossa correntede metal enferrujado que parecianão ser aberto havia anos, e o olheipor um tempo, avaliando o pesodele nas mãos, quando ouvi umsussurro urgente em uma voz demenino.

— Ei, você. É verdade o quedizem sobre seu pai?

Veio do outro lado do portão,embora eu tivesse demorado um ou

dois instantes para localizar aquilo— um instante em que fiqueichocado e quase sem me mexer, demedo. Então, quase saltei do meupróprio corpo quando vi, por umburaco na porta, um olho sem piscarque me observava. Novamente, apergunta.

— Vai, fala logo, vão me chamara qualquer segundo. É verdade o quedizem sobre seu pai?

Com calma, me curvei para quemeus olhos ficassem na mesmaaltura do buraco na porta.

— Quem está aí? — perguntei.

— Sou eu, Tom, que mora aquido lado.

Eu sabia que Tom era o maisjovem dos filhos, quase da minhaidade. Já tinha ouvido chamaremseu nome.

— Quem é você? — indagou ele.— Ou melhor, qual é o seu nome?

— Haytham — respondi, e fiqueiimaginando se Tom era meu novoamigo. O olho dele, pelo menos,tinha aparência amigável.

— É um tipo estranho de nome.— É árabe. Significa “águia

jovem”.

— Bem, isso faz sentido.— Como assim “faz sentido”?— Ora, sei lá. Simplesmente faz.

E só tem você aí?— E a minha irmã — retruquei.

— E minha mãe e meu pai.— Uma família bem pequena.Concordei.— E aí — insistiu —, é verdade

ou não? Seu pai é o que dizem queele é? E nem pense em mentir.Posso ver seus olhos, sabe? Dá parasaber na hora se está mentindo.

— Eu não minto. Nem sei o que“eles” dizem que ele é, nem mesmo

quem são “eles”.Ao mesmo tempo, crescia em

mim uma estranha e nada agradávelsensação: que em algum lugarexistia a ideia do que eraconsiderado “normal”, e que nós, afamília Kenway, não estávamosincluídos nela.

Talvez o dono daquele olhonotasse algo em meu tom de voz,pois se apressou em acrescentar: —Desculpe... desculpe, se eu dissealgo inconveniente. Eu estavaapenas interessado, só isso. Sabe, háum boato, e ele é terrivelmente

emocionante, se for verdade...— Que boato?— Você vai achar que é

bobagem.Sentindo-me corajoso, me

aproximei do buraco e olhei paraele, de olho para olho, e perguntei:— Que história é essa? O que aspessoas dizem sobre meu pai?

Ele piscou.— Dizem que ele foi um...De repente, houve um ruído atrás

dele, e ouvi uma voz masculinazangada chamar seu nome: —Thomas!

O choque fez com que elerecuasse.

— Ah, meu pai — sussurrourapidamente. — Preciso ir, estão mechamando. A gente se vê, espero.

E, com isso, ele sumiu e fiqueipensando no que quis dizer. Queboato? O que as pessoas andavamdizendo sobre nós, sobre nossapequena família?

Ao mesmo tempo, me lembrei deque era melhor me apressar. Eraquase meio-dia — a hora do meutreino com armas.

7 de dezembro de 1735

i

Eu me sinto invisível, como seestivesse preso num limbo entre opassado e o futuro. À minha volta,os adultos mantêm conversastensas. Seus rostos estão comaparência de cansaço, e as senhoraschoram. As fogueiras sãoconservadas acesas, é claro, mas acasa está vazia, exceto por poucosde nós e as posses que salvamos damansão incendiada, e ela parece

permanentemente fria. Lá fora aneve começou a cair, enquantodentro de casa há uma tristeza quegela até os ossos.

Com pouco mais a fazer do queescrever meu diário, tinha esperadocolocar em dia a história da minhavida até agora, mas parece que hámais a dizer do que pensei nocomeço, e, é claro, houve outrosassuntos importantes a seremtratados. Funerais. O de Edith hoje.

— Tem certeza, Sr. Haytham? —perguntara Betty mais cedo, com atesta enrugada de preocupação, os

olhos cansados. Durante anos, otanto que consigo me lembrar, elaajudara Edith. Estava tão arrasadaquanto eu.

— Tenho — falei, vestido comosempre, com meu terno e, hoje, umagravata preta.

Edith era sozinha no mundo,portanto foram os Kenwaysobreviventes e os empregados quese reuniram debaixo da escada paraum banquete de funeral, compresunto, cerveja e bolo. Quandoacabou, os homens da funerária, quejá estavam bêbados, colocaram o

corpo na carruagem funerária paralevá-lo à capela. Atrás dele,tomamos nossos lugares nascarruagens do séquito. Sóprecisamos de duas. Quando tudoacabou, fui para o quarto, continuarminha história...

ii

Dois dias após ter falado com TomBarrett e seu olho, o que ele disseracontinuava mexendo comigo. Então,certa manhã, quando Jenny e eu

estávamos sozinhos na sala de estar,decidi perguntar a respeito.

Jenny. Eu tinha quase 8 anos, eela, 21, e tínhamos tanto em comumquanto eu tinha com o homem queentregava o carvão. Menos,provavelmente, se pensarmos bem,porque o homem que entregava ocarvão e eu pelo menos gostávamosde rir, enquanto raramente vi Jennysorrir, quanto mais rir.

Ela tem cabelos negros quebrilham, e seus olhos são negros e...bem, “sonolentos” é o que eu diria,embora os ouvisse descritos como

“pensativos”, e pelo menos umadmirador foi longe demais ao dizerque ela tinha um “olhar obscuro”,seja lá o que aquilo quisesse dizer.A aparência de Jenny era um temapopular de conversas. Ela é muitobonita, ou assim frequentemente medizem.

Mas não para mim. Ela eraapenas Jenny, que se recusou abrincar comigo tantas vezes quehavia muito tempo eu desistira depedir; que eu sempre imaginavasentada em uma poltrona de encostoalto, a cabeça abaixada sobre o que

estava costurando ou bordando — oque quer que fizesse com linha eagulha. E o olhar carrancudo.Aquele olhar obscuro que seusadmiradores diziam que tinha? Euchamava de olhar carrancudo.

A questão era que, apesar do fatode cada um de nós ser pouco maisdo que um convidado na vida dooutro, como navios velejando emvolta do mesmo pequeno porto,passando perto, mas nunca fazendocontato, tínhamos o mesmo pai. EJenny, por ser doze anos mais velha,sabia muito mais sobre ele do que

eu. Por isso, embora já houvesseanos que ela me dizia que eu eraburro demais ou jovem demais paraentender — ou burro demais ejovem demais para entender; e,certa vez, inclusive baixo demaispara entender, independente do queisso quisesse dizer —, eu tentavaenvolvê-la em uma conversa. Nãosei por quê, pois, como disse,sempre me recusei a ser sensato.Para irritá-la, talvez. Mas, nessaocasião em particular, mais oumenos uns dois dias após minhaconversa com Tom e seu olho, foi

porque eu estava realmente curiosopara descobrir o que ele quis dizer.

Por isso, perguntei a ela: — Oque as pessoas falam de nós?

Ela suspirou teatralmente eergueu a vista do bordado.

— O que quer dizer, FedelhoEspertinho? — perguntou ela.

— Só isso mesmo... O que aspessoas falam de nós?

— Está se referindo a fofocas?— Se prefere.— E você liga para fofocas? Você

não é muito...?— Eu ligo — interrompi, antes de

entrarmos no assunto de eu sermuito jovem, muito burro ou muitobaixo.

— É mesmo? Por quê?— É que alguém disse uma coisa,

por isso.Ela pôs o trabalho de lado,

enfiando-o debaixo da almofada dapoltrona ao lado da perna, e apertouos lábios.

— Quem? Quem disse e o que foique disse?

— Um garoto, no portão dojardim. Ele disse que nossa famíliaera estranha e que nosso pai era

um...— O quê?— Não cheguei a descobrir.Ela sorriu e pegou o bordado de

volta.— E foi isso que fez você pensar,

é?— Bom, isso não faria com que

você pensasse?— Eu já sei de tudo que preciso

saber — disse ela de modoarrogante —, e digo uma coisa,estou pouco ligando para o quedizem sobre a gente na casa vizinha.

— É, então diz para mim — pedi.

— O que nosso pai fez antes de eunascer?

Jenny sorria, às vezes. Ela riaquando tinha o controle da situação,quando podia exercer um pouco depoder sobre alguém —principalmente se esse alguém fosseeu.

— Você vai descobrir — disseela.

— Quando?— No devido tempo. Afinal, você

é o herdeiro varão dele.Houve uma longa pausa.— Como assim, “herdeiro

varão”? — indaguei. — Qual adiferença entre isso e o que você édele?

Ela suspirou.— Bem, no momento, não muita,

embora você treine com armas e eunão.

— Você não? — Mas, pensandobem, já sabia disso, e acho que játinha parado para pensar por que eutrabalhava com a espada e ela com aagulha.

— Não, Haytham, não treino comespada. Nenhuma criança treinacom espada, Haytham, pelo menos

não em Bloomsbury, e talvez nãotreinem em toda a Londres.Ninguém, a não ser você. Não lhedisseram?

— O quê?— Para você não dizer nada.— Sim, mas...— E nunca se perguntou por

que... por que não deve dizer nada?Talvez eu tivesse. Talvez

soubesse secretamente o tempotodo. Fiquei calado.

— Em breve vai saber o que estáreservado para você — afirmou. —Nossas vidas foram traçadas para

nós, não se preocupe com isso.— Bem, e o que está reservado

para você?Ela bufou em tom de brincadeira.— O que está reservado para mim

é a pergunta errada. Quem estáreservado para mim é maisacertado.

Houve um vestígio de algo emsua voz que só fui entender direitomuito depois, e a olhei, sabendomuito bem que não deveriaperguntar mais e me arriscar asentir a pontada daquela agulha.Mas, quando finalmente larguei o

livro que estava lendo e deixei asala, fiz isso sabendo que, emboranão tivesse aprendido nada sobremeu pai ou minha família, eu tinhaaprendido algo sobre Jenny: por queela nunca sorria; por que ela erasempre tão hostil em relação a mim.

Era porque ela tinha visto ofuturo. Vira o futuro e sabia queeste me favorecia, por nenhummotivo melhor do que o de eu ternascido homem.

Deveria ter sentido pena dela. Eteria sentido — se ela não tivessesido tão rabugenta.

Sabendo o que sabia até ali,porém, o treinamento com armas nodia seguinte teve uma empolgaçãoextra. Mas enfim: ninguém maistreinava com armas além de mim.De repente, a sensação era a de queeu provava um fruto proibido, e ofato de meu pai ser meu tutorapenas tornava o fruto maissuculento. Se Jenny estava certa ehavia alguma carreira para a qual euestava sendo preparado para seguir,como outros meninos são treinadospara o sacerdócio, ou para seremferreiros, açougueiros ou

carpinteiros, então ótimo. Euconcordava plenamente. Não havianinguém no mundo que eu vissecom mais respeito do que meu pai.A ideia de que ele estava passandoseu conhecimento para mim era aomesmo tempo reconfortante eemocionante.

E, é claro, isso envolvia espadas.O que mais um garoto poderiaquerer? Relembrando o passado, seique daquele dia em diante me torneium aluno mais disposto eentusiasmado. Todos os dias, aomeio-dia ou depois do lanche,

dependendo da agenda do meu pai,nos encontrávamos no quechamávamos de sala detreinamento, mas que, na verdade,era uma sala de jogos. E foi ali queminhas habilidades com a espadacomeçaram a progredir.

Não tenho treinado desde oataque. De qualquer jeito, não andoanimado para pegar em uma lâmina,mas sei que, quando pego, imaginoaquela sala, com suas paredesescuras cheias de painéis decarvalho, estantes e a mesa de bilharcoberta que fora afastada para o

lado para abrir espaço. E, nela, meupai, com os olhos brilhantes,aguçados mas bondosos, e sempresorrindo, sempre me incentivando:bloqueio, parada, jogo de pernas,equilíbrio, atenção, antecipação. Elerepetia essas palavras como ummantra, às vezes não dizendo maisnada durante uma aula inteira,apenas bradando as ordens,assentindo quando eu fazia certo,balançando a cabeça quando faziaerrado, parando de vez em quandopara afastar o cabelo do rosto e irpara trás de mim, a fim de

posicionar meus braços e pernas.Para mim, eles são — ou foram

— as imagens e os sons do treino deespada: as estantes, a mesa debilhar, os mantras do meu pai e oruído das espadas se encontrando...

Madeira.Sim, madeira.Usávamos espadas de madeira

para treino, para meu desgosto. Oaço viria depois, dizia ele, sempreque eu reclamava.

iii

Na manhã do meu aniversário, Edithfoi especialmente mais do queamável comigo, e minha mãecuidou para que eu tivesse tudo quemais gostava de comer no café damanhã daquele dia: sardinhas commolho de mostarda e pão frescocom geleia de cereja feita com asfrutas das árvores de nosso terreno.Peguei Jenny me dando um olhar deescárnio, enquanto meempanturrava, mas não liguei.Desde a nossa conversa na sala deestar, seja lá o poder que ela tivessesobre mim, mesmo minúsculo como

tinha sido, ele havia, de algummodo, se tornado menos evidente.Antes disso, eu teria levado a sériosua zombaria, talvez me sentido umpouco bobo e constrangido comrelação ao café do meu aniversário.Mas não naquele dia. Relembrando,imagino se o meu oitavo aniversáriomarcou o dia em que comecei amudar de menino para homem.

Portanto, não, não liguei para olábio torcido de Jenny nem para osruídos de porco que ela fez para si.Só tinha olhos para minha mãe emeu pai, que só tinham olhos para

mim. Eu podia garantir, pelalinguagem corporal deles, ospequenos códigos que captei dosmeus pais ao longo dos anos, quemais coisas estavam por vir; que osprazeres do meu aniversáriocontinuariam. E isso se confirmou.Ao final da refeição, meu paianunciara que, à noite, iríamos àWhite’s Chocolate House, naChesterfield Street, onde ochocolate quente é feito de blocosmaciços de chocolate importados daEspanha.

Mais tarde, naquele dia, fiquei

com Edith e Betty agitadas ao redorde mim, me vestindo com meuterno mais elegante. Então, nósquatro subimos em uma carruagemque esperava lá fora, no meio-fio,de onde furtei uns olhares para asjanelas de nossos vizinhos e fiqueiimaginando se os rostos dasmeninas Dawson estavampressionados contra o vidro, ou osde Tom e seus irmãos. Esperava quesim. Esperava que pudessem me veragora. Ver a todos nós e pensar: “Lávai a família Kenway, saindo ànoite, como qualquer família

normal.”

iv

A área em volta da ChesterfieldStreet estava movimentada.Conseguimos parar bem em frente àWhite’s e, uma vez ali, abriramnossa porta e nos ajudaram aatravessar rapidamente a ruaapinhada e entrar.

Mesmo assim, durante a curtacaminhada entre a carruagem e osantuário da casa de chocolate, olhei

para os dois lados e vi um pouco darealidade nua e crua de Londres: ocorpo de um cachorro caído nasarjeta, um desabrigado vomitandoem uma grade, vendedoras deflores, mendigos, bêbados,moleques chafurdando em um rio delama que parecia ferver na rua.

Então entramos, saudados por umdenso cheiro de fumaça, cerveja,perfume e, claro, chocolate, além deuma barulheira de piano e vozesaltas. Pessoas debruçadas sobremesas de jogos, todas gritando.Homens bêbados devido a enormes

canecas de cerveja; mulherestambém. Vi alguns com chocolatequente e bolo. Todos,aparentemente, estavam em umestado de alta exaltação.

Olhei para meu pai, que haviaparado de repente, e senti seuincômodo. Por um momento fiqueipreocupado que ele simplesmente sevirasse e fosse embora, antes de umcavalheiro segurando no alto suabengala atrair minha atenção. Maisjovem do que meu pai, com osorriso solto e um piscar de olhosque era visível mesmo do outro lado

do salão, ele agitava a bengala paranós. Até que, com um acenoagradecido, meu pai o reconheceu ecomeçou a nos conduzir pelo salão,espremendo-se entre as mesas,passando por cima de cachorros eaté mesmo de uma ou duas crianças,que se arrastavam aos pés dosfarristas, presumivelmente atrás doque quer que pudesse cair das mesasde jogos: pedaços de bolo e talvezmoedas.

Chegamos ao cavalheiro com abengala. Diferente do meu pai, cujocabelo estava desgrenhado e mais

ou menos amarrado para trás comum laço, ele usava peruca brancacheio de pó, com a parte de trássustentada por uma fita de sedapreta, e sobrecasaca de uma intensae viva cor vermelha. Com um gestode cabeça, ele cumprimentou meupai, depois voltou sua atenção paramim e fez uma exageradareverência.

— Boa noite, Sr. Haytham, queesta data se repita muitas vezes.Lembre-me, por favor, qual é a suaidade, senhor? Posso ver, pelo modocomo se comporta, que é uma

criança muito madura. Onze? Doze,talvez?

Ao dizer isso, olhou por cima domeu ombro, com um sorriso e umapiscadela, e minha mãe e meu paideram uma risadinha deagradecimento.

— Eu tenho 8, senhor — falei, eme enchi de orgulho, enquanto meupai completava as apresentações.

O cavalheiro era Reginald Birch,um dos administradores antigos desuas propriedades, e o Sr. Birchdisse que era um prazer meconhecer e depois cumprimentou

minha mãe com uma demoradareverência, beijando as costas desua mão.

Sua atenção, em seguida, foi paraJenny. Ele segurou sua mão, curvoua cabeça e pressionou os lábios nela.Eu sabia o bastante para perceberque o que ele estava fazendo era umgalanteio, por isso logo olhei parameu pai, esperando que eleinterviesse.

Em vez disso, o que vi foi ele eminha mãe aparentando estaremocionados, embora Jennypermanecesse com a cara

inexpressiva, e assim ficouenquanto éramos conduzidos a umasala privativa nos fundos doestabelecimento e nos sentamos, elae o Sr. Birch lado a lado, enquantoos funcionários começavam a seagitar à nossa volta.

Poderia ter ficado ali a noite toda,me abastecendo de chocolate quentee bolo, que eram trazidos à mesa emfartas quantidades. Tanto meu paiquanto o Sr. Birch pareceram tergostado da cerveja. Mas, no fim dascontas, foi minha mãe quem insistiupara que fôssemos embora — antes

que me sentisse mal, ou eles —, esaímos para a noite, que, nomínimo, se tornara ainda maismovimentada do que horas maiscedo.

Por um ou dois momentos, mesenti desorientado pelo ruído e pelofedor da rua. Jenny torceu o nariz, epercebi uma centelha depreocupação pelo rosto da minhamãe. Por instinto, meu pai chegoumais para perto de nós, como setentasse nos proteger da barulheira.

Uma mão suja enfiou-se diantedo meu rosto, e ergui a vista para

ver um mendigo silenciosamentepedindo dinheiro com olhosarregalados e suplicantes, de umbranco brilhante em contraste com osujo de seu rosto e cabelo. Umavendedora de flores tentou seapressar em passar pelo meu pai e iraté Jenny e soltou um indignado“Ei!” quando o Sr. Birch usou abengala para bloquear seu caminho.Senti um empurrão e vi doismoleques tentando nos alcançarcom as palmas estendidas.

Então, de repente, minha mãesoltou um grito, quando um homem

irrompeu da multidão, sujo e com asroupas esfarrapadas, os dentesexpostos e a mão esticada, prestes aarrancar seu colar. E, no segundoseguinte, descobri por que a bengalado meu pai tinha aquele barulhocurioso ao ver uma lâmina surgir deseu interior quando ele girou paraproteger minha mãe. Ele percorreu adistância até ela em um piscar deolhos, mas antes de retirá-la dabainha, mudou de ideia, talvez pornotar que o ladrão estavadesarmado, e a colocou de volta,empurrando-a para o lugar com um

golpe surdo e transformando-anovamente em uma bengala, nomesmo movimento em que giroupara afastar a mão do baderneirocom uma pancada.

O ladrão guinchou de dor esurpresa e recuou direto para o Sr.Birch, que o derrubou na rua e selançou sobre ele, com os joelhos emcima do peito do homem e umaadaga em sua garganta. Prendi arespiração.

Vi os olhos da minha mãe searregalarem acima do ombro domeu pai.

— Reginald! — gritou meu pai.— Pare!

— Ele tentou roubar você,Edward — disse o Sr. Birch, sem sevirar. O ladrão fungou. Os tendõesdas mãos do Sr. Birch sesobressaíam e as juntas dos dedosda mão no cabo da adaga estavambrancas.

— Não, Reginald, não é dessejeito — disse meu pai.

Ele estava parado com os braçosem volta da minha mãe, queenterrara a cara em seu peito echoramingava baixinho. Jenny

estava junto, de um lado, e eu, dooutro. Em volta de nós, umaaglomeração havia se formado, osmesmos vagabundos e mendigosque tinham nos perturbado agoramantinham uma distânciarespeitosa. Uma respeitosa eamedrontada distância.

— Falo sério, Reginald — dissemeu pai. — Guarde a adaga, deixe-oir.

— Não me deixe passar umridículo desse jeito, Edward —alegou Birch. — Não assim, diantede todo mundo, por favor. Nós dois

sabemos que este homem merecepagar, se não com sua vida, pelomenos com um ou dois dedos.

Prendi a respiração.— Não! — ordenou meu pai. —

Não haverá derramamento desangue, Reginald. Qualquer ligaçãoentre nós acabará se não fizerimediatamente o que eu digo.

Um silêncio pareceu cair sobretodos à nossa volta. Podia ouvir oladrão balbuciando, repetindo,várias e várias vezes: — Por favor,senhor, por favor, senhor, por favor,senhor...

Seus braços estavamimobilizados, as pernas se agitavame se arrastavam inutilmente naspedras imundas do pavimento, ondepermanecia preso.

Até que, finalmente, o Sr. Birchpareceu se decidir, e a adaga foiafastada, deixando para trás umpequeno corte sangrando. Quando selevantou, deu um chute no ladrão,que não precisou de outro incentivopara, com dificuldade, apoiar asmãos e os pés no chão e partir pelaChesterfield Street, agradecido porescapar com vida.

O condutor de nossa carruagemhavia recuperado o ânimo e agoraestava na porta, insistindo para quenos apressássemos para a segurançado veículo.

E meu pai e o Sr. Birchpermaneceram parados, encarandoum ao outro, com os olhos imóveis.Quando minha mãe me apressoupara que eu passasse, vi os olhos doSr. Birch brilhando comintensidade. Vi o olhar do meu paiencontrando o dele do mesmomodo, depois estendeu a mão paraum aperto, dizendo: — Obrigado,

Reginald. Em nome de todos nós,obrigado por seu pensamentorápido.

Senti a mão da minha mãe naparte de baixo das minhas costas,quando ela tentou me empurrar paradentro da carruagem, e estiquei acabeça para trás para ver meu paicom a mão estendida para o Sr.Birch, que olhava para ele,recusando-se a aceitar a oferta deconciliação.

Então, assim que me ajeitei nacarruagem, vi o Sr. Birch estender amão para apertar a do meu pai e o

olhar fixo dele se desfazer em umsorriso — um sorriso acanhado,ligeiramente constrangido, como setivesse acabado de se lembrar devoltar a si. Os dois apertaram asmãos e meu pai presenteou o Sr.Birch com um breve movimento decabeça que eu conhecia tão bem.Significava que tudo fora resolvido.Significava que não era precisodizer mais nada.

v

Finalmente voltamos para casa, naQueen Anne’s Square, ondetrancamos a porta e expulsamos ocheiro de fumaça e estrume ecavalo. E eu disse a minha mãe emeu pai o quanto havia gostado daminha noite, agradeci muito aosdois e garanti a eles que a confusãona rua não tinha estragado em nadaa minha noite, enquanto pensavacomigo que achava que aquilo tinhasido o ponto alto.

Mas acontece que a noite aindanão havia terminado, porque quandosubi a escada meu pai fez um sinal

com a cabeça para que, em vezdisso, eu o acompanhasse e seguiucaminho para a sala de jogos, e láacendeu uma vela de parafina.

— Quer dizer que gostou da suanoite, Haytham — declarou ele.

— Gostei muito, senhor — falei.— Que impressão você teve do

Sr. Birch?— Gostei muito dele, senhor.Meu pai deu uma risadinha.— Reginald é um homem que dá

muito valor à aparência, à conduta eà etiqueta e à ordem. Não é comoalguns, que têm a etiqueta e o

protocolo como característicaapenas quando lhes convêm. Ele éum homem honrado.

— Sim, senhor — falei, mas devoter parecido tão inseguro quanto mesenti, pois ele me olhoubruscamente.

— Ah — disse ele —, você estápensando no que aconteceu depois?

— Estou, senhor.— Bem... o que achou?Gesticulou para uma das estantes.

Parecia me querer perto da luz eseus olhos fixados no meu rosto. Aluz do lampião brincou em suas

feições e o cabelo negro brilhou.Seus olhos eram sempre amáveis,mas também podiam ser intensos,como agora. Notei uma de suascicatrizes, que parecia cintilar maisbrilhantemente sob a luz.

— Bem, foi tudo emocionante,senhor — respondi; acrescentandorapidamente: — Embora eu tenhaficado muito preocupado comminha mãe. Sua rapidez em salvá-la... Nunca tinha visto alguém semovimentar tão depressa.

Ele riu.— O amor faz isso com um

homem. Um dia, você descobrirá omesmo por si só. Mas e o Sr. Birch?A reação dele? O que achou,Haytham?

— Senhor?— O Sr. Birch parecia prestes a

dar um severo castigo ao patife,Haytham. Você acha que eramerecido?

Meditei, antes de responder.Podia perceber, pela expressão dorosto do meu pai, aguçada e atenta,que minha resposta era importante.

E, no calor do momento, suponhoque eu tenha pensado que o ladrão

merecia uma reação mais dura.Houve um instante, por mais breveque tivesse sido, em que uma iraprimitiva desejou o mal dele peloataque à minha mãe. Agora, porém,sob o suave brilho do lampião, commeu pai me olhando amavelmente,me senti diferente.

— Diga honestamente para mim,Haytham — induziu meu pai, comose tivesse lido meus pensamentos.— Reginald tem um aguçado sensode justiça, ou o que ele descrevecomo justiça. E é de certo modo...bíblico. Mas o que acha?

— A princípio, senti uma imensavontade de... vingança, senhor. Maslogo passou, e fiquei satisfeito emver o homem dar clemência aooutro — respondi.

Meu pai sorriu e assentiu, então,abruptamente, virou-se para aestante, onde, com um rápidomovimento do pulso, movimentouuma alavanca, fazendo com queuma parte dos livros deslizasse parao lado, revelando umcompartimento secreto. Meucoração acelerou quando ele retirouuma coisa dali: uma caixa, que me

entregou, e, assentindo com acabeça, mandou que eu a abrisse.

— Um presente de aniversário,Haytham — declarou.

Ajoelhei-me, apoiei a caixa nochão e a abri, encontrando um cintode couro, que arranquei e coloqueirápido de lado, sabendo que,debaixo dele, haveria uma espada. Enão uma espada de brinquedo demadeira, mas uma espada de açoreluzente com uma empunhaduraadornada. Tirei-a da caixa e segurei-a nas mãos. Era uma espada curta e,embora, vergonhosamente, sentisse

uma pontada de decepção comaquilo, soube logo que era uma belaespada curta, e era a minha espada.Decidi, na hora, que ela jamaisdeixaria o meu lado, e já estavaalcançando o cinturão quando meupai me deteve.

— Não, Haytham — alertou. —Ela fica aqui e não deve serremovida ou mesmo usada semminha permissão. Está claro? — Elehavia tirado a espada de mim e jáestava colocando-a na caixa,deitando o cinturão por cima efechando-a.

— Em breve, começará a treinarcom essa espada — continuou. —Há muita coisa que precisaaprender, Haytham, não apenassobre o aço que tem nas mãos, mastambém o que está em seu coração.

— Sim, pai — falei, tentando nãoparecer tão confuso e decepcionadoquanto me sentia.

Eu o observei se virar e recolocara caixa no compartimento secreto e,se tentou se certificar para que eunão visse o livro que acionava omecanismo, bem, então fracassou.Era a Bíblia do rei Jaime.

8 de dezembro de 1735

i

Houve mais dois funerais hoje, dosdois soldados que estavam baseadosno terreno de casa. Pelo que sei, omordomo do meu pai, o Sr.Digweed, estava a serviço docapitão, cujo nome eu nunca soube,mas ninguém de nossa casa foi aofuneral do segundo homem. Há, nomomento, muita perda e lamentaçãoà nossa volta, é como sesimplesmente não houvesse espaço

para mais, por mais insensível queisso pareça.

ii

Após o meu oitavo aniversário, o Sr.Birch tornou-se um visitantehabitual da casa e, quando nãoestava acompanhando Jenny empasseios pela propriedade oulevando-a para a cidade em suacarruagem, ou sentado na sala deestar tomando chá e xerez edistraindo as mulheres com

histórias da vida militar, ele sereunia com meu pai. Era evidentepara todos que pretendia se casarcom Jenny e que a união tinha abênção do nosso pai, mas soube queo Sr. Birch havia pedido para adiaras núpcias; que ele queria se tornaro mais próspero possível a fim deque Jenny tivesse o marido quemerecia, e que estava de olho emuma mansão em Southwark, paraque ela mantivesse a vida a queestava acostumada.

Minha mãe e meu pai estavamempolgados com isso, é claro, Jenny

bem menos. De vez em quando a viacom os olhos vermelhos, e ela criarao hábito de sair rapidamente dosaposentos ou de ficar à beira de umacesso de raiva, ou então com a mãosobre a boca, contendo as lágrimas.Mais de uma vez, ouvi meu paidizer “Ela vai superar”, e, em umaocasião, ele me deu um olhar delado e revirou os olhos.

Do mesmo modo que ela pareciamurchar sob o peso de seu futuro,comigo acontecia o contrário com aantecipação do meu. O amor quesentia pelo meu pai constantemente

ameaçava me tragar com suacompleta magnitude; eusimplesmente não o amava, oidolatrava. Às vezes era como secompartilhássemos umconhecimento que era secreto para oresto do mundo. Por exemplo, elecostumava me perguntar o que osmeus tutores estavam meensinando, ouvia atentamente eentão indagava “Por quê?”. Sempreque me perguntava algo, fosse sobrereligião, ética ou moral, sabia se eudava a resposta pelo conhecimentoadquirido ou se repetia como um

papagaio e dizia: “Bem, você acabade me dizer o que o Velho Sr.Fayling pensa”, ou: “Nós sabemos oque um autor com cem anos pensa.Mas o que diz isto aqui, Haytham?”,e colocava a mão no meu peito.

Percebo agora o que ele fazia. OVelho Sr. Fayling me ensinava fatose realidades; meu pai me pedia paraque os questionasse. Oconhecimento que eu adquiria peloVelho Sr. Fayling — onde ele seoriginou? Quem escrevera assim epor que eu deveria confiar nessehomem?

Meu pai costumava dizer: “Paraver de maneira diferente, primeirodevemos pensar diferente.” E issoparece estúpido, e você poderia rir,ou então eu olhar para trás, anosdepois, e também rir, mas às vezesachava que podia realmente sentir omeu cérebro se expandir para ver omundo à maneira do meu pai. Eletinha uma maneira de ver o mundoque ninguém mais tinha, assimparecia; um modo de ver o mundoque desafiava a própria ideia deverdade.

Claro que eu questionava o Velho

Sr. Fayling. Um dia o desafiei eganhei um golpe de sua bengala nosnós dos dedos, com a promessa deque informaria ao meu pai, o queele fez. Depois, meu pai me levouao gabinete e, após fechar a porta,sorriu e deu um tapinha na lateraldo nariz. “Geralmente, Haytham, émelhor guardar seus pensamentospara si mesmo. Escondê-los emplena vista.”

E foi o que fiz. E me descobriolhando as pessoas à minha volta,tentando enxergar dentro delascomo se, de algum jeito, fosse capaz

de adivinhar como viam o mundo,do modo do Velho Sr. Fayling ou domodo do meu pai.

Escrevendo isto agora, é claro,posso perceber que estava ficandogrande demais para minhas botas;sentia-me mais adulto do que aidade que tinha, o que não era nadaatraente agora, aos 10 anos, comotinha sido aos 8 e depois aos 9.Provavelmente, eu erainsuportavelmente arrogante.Provavelmente, me achava ohomenzinho da casa. Quando fiz 9anos, meu pai me deu um arco e

flecha como presente deaniversário, e, praticando com eleno terreno de casa, torcia para queas meninas Dawson ou as criançasdos Barrett pudessem me ver dasjanelas.

Já se passara mais de um anodesde que falei com Tom no portão,mas às vezes eu ficava vadiando porali, na esperança de voltar aencontrá-lo. Meu pai era acessívelem relação a todos os assuntos,exceto sobre seu passado. Nuncafalava sobre a vida antes deLondres, nem sobre a mãe de Jenny,

por isso tinha a esperança de que oque quer que Tom soubesse poderiase revelar esclarecedor. E, fora isso,é claro, queria um amigo. Não umparente ou babá ou tutor ou mentor— isso tudo eu tinha muito. Apenasum amigo. E torcia para que fosseTom.

Isso agora, é claro, nãoacontecerá.

Eles o enterraram ontem.

9 de dezembro de 1735

i

O Sr. Digweed veio me ver estamanhã. Bateu na porta, esperouminha resposta e então teve debaixar a cabeça para entrar, pois ele,além de ser calvo e ter os olhosligeiramente esbugalhados epálpebras cheias de veias, é alto emagro, e os vãos das portas de nossaresidência de emergência são muitomais baixos do que aqueles quetínhamos em casa. O modo como se

curvava enquanto se movimentavapelo local aumentava o seu ar dedesconforto, a sensação de ser umpeixe fora d’água. Ele era omordomo do meu pai desde antes deeu nascer, pelo menos desde que osKenway se estabeleceram emLondres, e, como todos nós, talvezaté mais do que o restante dafamília, ele pertencia à QueenAnne’s Square. O que tornava suador ainda mais pungente era a culpa— sua culpa de que na noite doataque estava longe, cuidando deassuntos familiares em

Herefordshire; ele e o nossomotorista haviam retornado namanhã após o ataque.

— Espero que consiga encontrarem seu coração um perdão paramim, Sr. Haytham — dissera-meele em dias posteriores, com o rostopálido e retorcido.

— Claro, Digweed — respondi, enão soube o que dizer em seguida.Nunca me senti à vontade em medirigir a ele pelo sobrenome. Issonunca parecera direito na minhaboca. Por isso, tudo que conseguiacrescentar foi: — Obrigado.

Naquela manhã, seu rostocadavérico exibia a mesmaexpressão solene, e eu podiaadivinhar que, fosse qual fosse anotícia que trazia, era ruim.

— Sr. Haytham — disse ele,parando diante de mim.

— Sim... Digweed?— Eu sinto terrivelmente, Sr.

Haytham, mas chegou um recado daQueen Anne’s Square, dos Barrett.Eles desejam deixar claro queninguém da residência Kenway ébem-vindo ao serviço funerário dojovem Thomas. Solicitam

respeitosamente que, de modoalgum, nenhum contato seja feito.

— Obrigado, Digweed — falei, eobservei-o fazer uma curta e sentidareverência e, em seguida, abaixar acabeça para evitar bater na vigasuperior do vão da porta ao sair.

Fiquei parado ali, por algumtempo, olhando inexpressivamentepara o espaço onde ele estivera, atéBetty retornar para me ajudar a tirarminha roupa de enterro e colocaruma das que uso no dia a dia.

ii

Certa tarde, poucas semanas atrás,estava debaixo da escada, brincandono curto corredor que ia do salãodos criados para a pesada porta combarras da sala da prataria. Era nesseaposento que ficavam armazenadosos bens valiosos da família: aprataria, que só via a luz do dia emraras ocasiões em que minha mãe emeu pai recebiam convidados;peças de herança, as joias da minhamãe e alguns dos livros que meu paiconsiderava de grande valor —

livros insubstituíveis. Ele mantinhao tempo todo consigo a chave doquarto, em uma argola presa aocinturão, e só o vi confiá-la ao Sr.Digweed e, mesmo assim, porcurtos períodos.

Eu gostava de brincar no corredorali perto porque o quarto erararamente visitado, então eu nuncaera incomodado pelas amas, asquais, invariavelmente, me diriampara levantar do chão sujo antes querasgasse minhas calças; ou poroutro criado bem-intencionado, quepuxaria uma educada conversa

comigo e me forçaria a responderperguntas sobre minha educação oumeus amigos não existentes; outalvez até por minha mãe ou meupai, que me mandariam levantar dochão sujo antes que rasgasse minhascalças e então me forçariam aresponder perguntas sobre minhaeducação ou amigos não existentes.Ou, pior do qualquer um deles, porJenny, que zombaria de qualquerjogo que eu estivesse jogando e, sefossem soldadinhos de brinquedo,faria um mal-intencionado esforçopara derrubar cada um dos

homenzinhos de lata.Não, a passagem entre o salão dos

criados e a sala da prataria era umdos poucos lugares da QueenAnne’s Square onde eu podiaesperar evitar de verdade essascoisas, e, portanto, era para lá queeu ia quando não queria serperturbado.

Exceto nessa ocasião, quando umnovo rosto surgiu na forma do Sr.Birch, que seguiu pela passagemjusto no momento em que eu estavapara alinhar meus soldados. Eutinha uma lanterna comigo, apoiada

no chão de pedra, e o fogo da velatremulou e estalou na corrente devento quando a porta da passagemfoi aberta. De onde eu estava, nochão, vi a bainha da sobrecasaca e aponta da bengala, e, quando meusolhos encontraram os dele olhandode cima para mim, fiqueiimaginando se ele tambémmantinha uma espada escondida nabengala, e se ela fazia barulho,como a do meu pai.

— Sr. Haytham, não esperavaencontrá-lo aqui — disse ele comum sorriso. — Fiquei pensando, está

ocupado?Então me levantei.— Só estou brincando, senhor —

falei rapidamente. — Algumproblema?

— Ah, não — riu. — Aliás, aúltima coisa que quero é perturbaresse seu tempo de brincadeira,embora tenha algo que esperavadiscutir com você.

— Claro — concordei,assentindo, meu coração aflitodiante da ideia de outra sucessão deperguntas a respeito das minhasproezas em aritmética. Sim, eu

gostava dos meus cálculos. Sim, eugostava de escrever. Sim, um dia euesperava ser tão inteligente quantomeu pai. E sim, um dia esperava serseu sucessor nos negócios dafamília.

Mas, com um gesto, o Sr. Birchmandou que eu continuasse minhabrincadeira e até mesmo colocou abengala de lado e arregaçou ascalças para se agachar a meu lado.

— E o que temos aqui? —perguntou, indicando as pequenasestatuetas de lata.

— É apenas um jogo, senhor —

respondi.— Esses são seus soldados, não

é? — indagou. — E qual deles é ocomandante?

— Não tem comandante, senhor— falei.

Ele soltou uma risada seca.— Seus homens precisam de um

líder, Haytham. De que outro modosaberiam a melhor maneira de agir?De que outro modo o senso dedisciplina e objetivo despertarianeles?

— Não sei, senhor — respondi.— Aqui — disse o Sr. Birch. E

esticou-se para retirar um doshomenzinhos de lata do bando,esfregou-o em sua manga ecolocou-o de lado. — Talvezdevamos fazer deste cavalheiro aquio líder... o que acha?

— Se quer assim, senhor.— Sr. Haytham — declarou

sorrindo o Sr. Birch —, esse jogo éseu. Sou um mero intruso, alguémque espera que possa me mostrarcomo é jogado.

— Sim, senhor, então um líderseria ótimo, nessas circunstâncias.

De repente, a porta da passagem

se abriu outra vez, e ergui a vista,dessa vez para ver o Sr. Digweedentrar. Sob a luz bruxuleante,percebi que ele e o Sr. Birchtrocaram um olhar.

— O seu assunto aqui podeesperar, Digweed? — perguntou oSr. Birch.

— Certamente, senhor —respondeu o Sr. Digweed, fazendouma reverência e saindo, a porta sefechando atrás dele.

— Muito bem — continuou o Sr.Birch, a atenção voltando para ojogo. — Vamos então mover este

cavalheiro aqui para ser o líder daunidade, a fim de inspirar seushomens para que realizem grandesfeitos, liderá-los pelo exemplo elhes ensinar as virtudes da ordem,da disciplina e da lealdade. O queacha, Sr. Haytham?

— Sim, senhor — concedi,obedientemente.

— Tem mais uma coisa, Sr.Haytham — prosseguiu o Sr. Birch,estendendo a mão para tirar outrosoldadinho da tropa e depoiscolocando-o ao lado do comandantedefinido. — Um líder precisa de

tenentes de confiança, não émesmo?

— Sim, senhor — concordei.Seguiu-se uma longa pausa,

durante a qual observei o Sr. Birchtomar um excessivo cuidado paracolocar mais dois tenentes ao ladodo líder, uma pausa que se tornoucada vez mais incômoda com opassar do tempo, até eu dizer, maispara romper o constrangido silênciodo que porque quisesse discutir oinevitável.

— Senhor, queria falar comigosobre minha irmã?

— Por quê? Você consegue veratravés de mim, Sr. Haytham —disse o Sr. Birch gargalhando alto.— Seu pai é um excelenteprofessor. Vejo que lhe ensinousobre manha e astúcia... entre outrascoisas, sem dúvida.

Não tive certeza sobre o que elequis dizer, então fiquei calado.

— Como vai seu treinamentocom armas, se é que possoperguntar? — indagou o Sr. Birch.

— Muito bem, senhor. Continuomelhorando a cada dia, segundomeu pai — afirmei orgulhosamente.

— Excelente, excelente. E seu paijá lhe revelou o motivo do seutreinamento? — perguntou.

— Meu pai diz que o meuverdadeiro treinamento começaráno dia do meu décimo aniversário— respondi.

— Bem, imagino o que é que eletem a dizer a você — observou, coma testa enrugada. — Realmente nãofaz ideia? Nem mesmo tem umapista que instiga curiosidade e odeixa curioso?

— Não, senhor, não tenho —confessei. — Só sei que ele vai me

dar um caminho a seguir. Um credo.— Sei. Que interessante. E ele

nunca lhe deu qualquer indicação doque poderia ser esse “credo”?

— Não, senhor.— Que fascinante. Aposto que

você não consegue esperar. E, nessemeio-tempo, seu pai lhe deu umaespada de homem com a qual deveaprender o seu ofício, ou aindausam bastões de madeira paratreinar?

Ajeitei minha postura.—Tenho a minha própria espada,

senhor.

— Eu gostaria muito de vê-la.— Está guardada na sala de

jogos, senhor, em um lugar seguroao qual apenas meu pai e eu temosacesso.

— Apenas seu pai e você? Querdizer que também tem acesso a ela?

Fiquei corado, agradecido à luzfraca na passagem de modo que oSr. Birch não conseguisse ver oconstrangimento em meu rosto.

— O que eu quero dizer é que seionde a espada está guardada,senhor, e não que sei como teracesso a ela — esclareci.

— Sei — sorriu o Sr. Birch. —Um lugar secreto, hein? Um espaçooculto dentro de uma estante?

Meu rosto deve ter dito tudo. Eleriu.

— Não se preocupe, Sr. Haytham,seu segredo está seguro comigo.

Olhei para ele.— Obrigado, senhor.— Tudo bem.Ele se levantou, esticou-se para

alcançar a bengala, limpou algumasujeira, real ou imaginária, dascalças e se virou para a porta.

— E a minha irmã, senhor? —

indaguei. — Não perguntou sobreela.

Ele parou, riu baixinho e estendeua mão para desmanchar meu cabelo.Um gesto de que eu gostava muito.Talvez porque era algo que meu paitambém fazia.

— Ah, não há necessidade. Vocême disse tudo o que eu precisavasaber, jovem Sr. Haytham — disseele. — Sabe tão pouco sobre a belaJennifer quanto eu, e talvez esseprecise ser o melhor jeito emrelação a essas coisas. As mulheresprecisam ser um mistério para nós,

não acha, Sr. Haytham?Não tinha a menor ideia do que

ele estava dizendo, mas mesmoassim sorri e soltei um suspiro dealívio quando, mais uma vez, volteia ter o corredor da sala da pratariasó para mim.

iii

Não muito tempo depois daconversa com o Sr. Birch, eu estavaem outra parte da casa e seguia emdireção ao meu quarto, quando, ao

passar pelo gabinete do meu pai,ouvi vozes alteradas lá dentro: meupai e o Sr. Birch.

O receio de escolher um bomesconderijo significou que fiqueimuito longe para poder ouvir o quediziam. E ainda bem que mantivedistância, pois, no momentoseguinte, a porta do estúdio abriuviolentamente e o Sr. Birch saiuapressado. Estava furioso — suaraiva era evidente pela cor do rostoe dos olhos ardentes —, mas ao mever no corredor ele parourepentinamente, embora continuasse

agitado.— Eu tentei, Sr. Haytham —

disse ele, ao se recompor e começara abotoar o casaco, preparando-separa sair. — Tentei alertar seu pai.

E, com isso, colocou o chapéutricorne na cabeça e foi embora.Meu pai tinha aparecido na porta deseu gabinete e olhado fixo para o Sr.Birch e, apesar de ter sidoclaramente um encontrodesagradável, era um assunto deadultos e não me dizia respeito.

Havia mais coisas a se pensar.Apenas um ou dois dias depois, veio

o ataque.

iv

Aconteceu na noite da véspera domeu aniversário. Isto é, o ataque. Euestava acordado, talvez agitado, porcausa do dia seguinte, mas tambémporque tinha o hábito de levantardepois que Edith deixava o quartopara sentar no peitoril e olhar pelajanela. De onde eu estava, via gatose cachorros ou até mesmo raposaspassando pela grama pintada pelo

luar. Ou, se não estivesseprocurando ver animais, apenasobservava a noite, olhando para alua, a cor de aquarela cinzenta queela dava à grama e às árvores. Aprincípio, pensei que o que via àdistância eram vaga-lumes. Já tinhaouvido tudo sobre vaga-lumes, masnunca os vira. Tudo que sabia eraque se juntavam em nuvens eemitiam um brilho pálido. Mas logome dei conta de que a luz não era,de modo algum, um brilho pálido, eque, na verdade, acendia e depoisapagava. Eu estava vendo um sinal.

Minha respiração ficou presa nagarganta. A luz flamejante pareciavir de perto da antiga porta demadeira no muro, a tal onde eu viraTom naquele dia, e meu primeiropensamento foi que ele tentavaentrar em contato comigo. Agoraparece estranho, mas nem por umsegundo supus que o sinal era paraqualquer pessoa além de mim.Estava ocupado demais vestindocalças, enfiando minha camisolapelo cós e depois colocando ossuspensórios. Nem liguei paracasaco. Tudo em que pensava era

que maravilhosa e terrível aventuraeu estava prestes a ter.

É claro que percebo agora,olhando para trás, que, na mansãoao lado, Tom devia ser outro quegostava de se sentar no peitoril eobservar a vida noturna no terrenode casa. E, assim como eu, devia tervisto o sinal. E talvez Tom atémesmo tivesse tido uma ideia deimagem idêntica à minha: que eraeu sinalizando para ele. E, emresposta, fez o mesmo que eu:saltou de onde estava e enfioualgumas roupas para ir investigar...

Dois novos rostos tinhamaparecido na casa da Queen Anne’sSquare, uma dupla de ex-soldadoscarrancudos contratados pelo meupai. Sua explicação foi a de queprecisávamos dos dois porque elerecebera uma “informação”.

Apenas isso. “Informação” — foitudo que disse. E fiquei imaginandona ocasião, como imagino agora, oque quis dizer, e se aquilo tinha aver com a acalorada conversa queeu ouvira entre ele e o Sr. Birch. Oque quer que fosse, eu via muitopouco os dois soldados. Tudo o que

realmente sabia era que um delesficava parado na sala de estar, naparte da frente da mansão, enquantoo outro permanecia perto do fogo,no salão dos empregados,supostamente vigiando a sala daprataria. Ambos foram fáceis deevitar quando desci sorrateiramenteos degraus para baixo da escada edeslizei para o interior da cozinhailuminada pela lua e silenciosa, queeu nunca vira tão escura e vazia esem qualquer som.

E fria. Minha respiração ficouinstável e, logo depois, tremi,

desconfortavelmente ciente de oquanto a cozinha era gelada emcomparação ao que eu achava ser oescasso aquecimento do meu quarto.

Perto da porta havia uma vela,que acendi, e, com a mão em conchajunto à chama, ergui-a para iluminaro caminho enquanto saía para opátio do estábulo. E, se eu achavaque estava frio na cozinha, bem... láfora fazia o tipo de frio que pareciaque o mundo à sua volta eraquebradiço e estava prestes aromper: frio suficiente para prendera minha respiração inconstante, para

me fazer pensar novamente,enquanto permanecia parado ali,imaginando se aguentaria ou nãocontinuar.

Um dos cavalos relinchou e bateucom as patas no chão e, por algummotivo, o ruído me fez decidir,encaminhando-me, na ponta dospés, de passagem pelos canis até ummuro lateral e por um grande portãoarqueado que levava ao pomar.Segui caminho pelo meio dasestreitas macieiras desfolhadas,então estava do lado de fora, a céuaberto, dolorosamente ciente da

mansão à minha direita, ondeimaginei rostos em cada janela:Edith, Betty, minha mãe e meu pai,todos olhando para fora, vendo-meausente do quarto e correndoloucamente pelo terreno. Não queestivesse de fato correndoloucamente, é claro, mas era issoque diriam; era isso que Edith diria,ao brigar comigo, e o que meu paidiria, ao me tacar a bengala porcausa das minhas artes.

Mas, se esperava um grito vindoda casa, não veio nenhum. Em vezdisso, segui caminho para o muro

que delimitava o terreno e comeceia correr depressa ao longo dele e emdireção à porta. Ainda estavatremendo, mas, à medida que minhaemoção crescia, ficava imaginandose Tom teria trazido comida parauma festa da meia-noite: presunto,bolo e biscoitos. Ah, e um groguequente também seria mais do quebem-vindo...

Um cachorro começou a latir.Thatch, o cão de caça irlandês domeu pai, lá do canil no pátio doestábulo. O barulho fez com que euparasse imediatamente, e me

agachei sob os baixos galhosdesfolhados de um salgueiro, atéque cessasse tão repentinamentecomo havia começado. Mais tarde, éclaro, entendi por que o latido haviaparado tão abruptamente. Naocasião, porém, não pensei em nada,pois não tinha motivos parasuspeitar que Thatch tivera agarganta cortada por um invasor.Agora achamos que havia cincodeles no total, que avançaramsorrateiramente para nós com facase espadas. Cinco homens seguindopara a mansão, e eu no terreno,

alheio a tudo.Mas como iria saber? Eu era um

menino bobo cuja cabeça fervilhavacom aventuras e atos heroicos, semfalar que pensava em presunto ebolo, e continuei ao longo do muroaté chegar ao portão.

Que estava aberto.Pelo que eu tinha esperado? Acho

que pensei que o portão estariafechado e que Tom estaria do outrolado dele. Talvez um de nós tivessede escalar o muro. Talvezplanejássemos falar sobre osúltimos acontecimentos. Tudo o que

eu sabia era que o portão estavaaberto, e comecei a ter a sensaçãode que alguma coisa estava errada,e, finalmente, me ocorreu que ossinais que tinha visto da janela domeu quarto não eram para mim.

— Tom? — sussurrei.Não houve qualquer som. A noite

estava totalmente silenciosa: nadade pássaros, animais, nada. Agoranervoso, estava para dar meia-voltae ir embora, voltar para casa e paraa segurança da minha cama quente,quando vi uma coisa. Um pé.Margeei o muro um pouco mais

para o portão, onde a passagem erabanhada por um luar branco-sujoque dava a tudo um brilho suave,imundo — inclusive à pele domenino caído no chão.

Estava meio deitado, meiosentado, apoiado contra o outro ladodo muro, vestido quase exatamentecomo eu, com calças e camisola, sóque não havia se preocupado emenfiar a sua para dentro, e ela estavatorcida em volta das pernas, queformavam estranhos ângulosanormais sobre o duro barro sulcadoda passagem.

Era Tom, é claro. Tom, cujosolhos mortos me fitavam cegamentepor baixo da aba do chapéu, meiotorto na cabeça; Tom, com o luarbrilhando no sangue que escorrerado talho em sua garganta.

Meus dentes começaram a bater.Ouvi uma choradeira e me dei contade que era eu chorando. Umacentena de pensamentos de pânicoencheu minha cabeça.

Então as coisas começaram aacontecer depressa demais paramim, até mesmo para me lembrarda ordem exata em que

aconteceram, mas acho quecomeçaram com o som de vidroquebrado e um grito que veio dacasa.

Corra.Sinto vergonha em admitir que as

vozes, os pensamentos que seacotovelavam na minha cabeça,todos gritavam juntos aquelapalavra.

Corra.E obedeci. Corri. Só que não na

direção que eles queriam. Estariafazendo o que meu pai me haviainstruído e ouvindo meus instintos,

ou ignorando-os? Tudo que sabiaera que, embora cada fibra do meucorpo parecesse querer que eufugisse do que eu sabia ser o perigomais terrível, de fato eu corria emdireção a ele.

Corri pelo pátio do estábulo eirrompi na cozinha, mal fazendouma pausa para admitir o fato deque a porta estava escancarada. Dealgum lugar ao longo do corredor,ouvi mais gritos, vi sangue no chãoda cozinha e atravessei a porta emdireção à escada, e vi outro corpo.Era um dos soldados. Estava no

corredor, apertando a barriga, comas pálpebras tremulando loucamentee um fio de sangue escorrendo pelaboca, enquanto escorregava mortopara o chão.

Ao passar por cima dele e correrpara a escada, meu únicopensamento era chegar até meuspais. O saguão de entrada estavaescuro, mas cheio de gritos e péscorrendo, e os primeiros anéis defumaça. Tentei me orientar. Decima, veio outro grito, e ergui avista para ver sombras dançantes nasacada, e, brevemente, o brilho de

aço nas mãos de um dos nossosagressores. Enfrentando-o nopatamar da escada estava um doscriados do meu pai, mas a luztremulante evitou que eu visse odestino do pobre rapaz. Em vezdisso ouvi e, com os pés, senti obaque surdo do seu corpo ao serjogado da sacada para o chão demadeira não muito longe de mim.Seu assassino soltou um uivo detriunfo, e pude ouvir pés correndoenquanto ele seguia para mais alémdo patamar — em direção aosquartos.

— Mãe! — gritei, e corri para aescada ao mesmo tempo que via aporta do quarto dos meus pais seabrir totalmente e ele surgir paraenfrentar o intruso. Ele usava calça,e os suspensórios estavam puxadospara cima dos ombros nus, o cabeloestava solto e caía livre. Em umadas mãos, segurava uma lanterna, naoutra, sua espada.

— Haytham — chamou, quandocheguei ao topo da escada.

O intruso estava entre nós dois nopatamar. Parou, virou-se para olharpara mim e, sob a luz da lanterna do

meu pai, eu o vi completamentepela primeira vez. Ele vestia calça,colete-armadura preto de couro euma pequena máscara cobrindometade do rosto, do tipo usado embailes de máscaras. E estavamudando de direção. Em vez de ircontra meu pai, vinha de volta pelopatamar, atrás de mim, sorrindo.

— Haytham! — gritou meu paioutra vez, que se afastou da minhamãe e correu para o patamar atrásdo intruso. Instantaneamente, oespaço entre eles diminuiu, mas nãoseria suficiente, e virei para fugir,

então vi um segundo homem ao péda escada, com espada na mão,bloqueando o caminho. Estavavestido do mesmo modo que oprimeiro, embora notasse umadiferença: suas orelhas. Erampontudas e, com a máscara, isso lhedava uma medonha e deformadaaparência do Mr. Punch. Por ummomento, gelei, depois girei ocorpo e vi que o homem sorridenteatrás de mim tinha se virado paraenfrentar meu pai, e as espadas sechocaram. Meu pai havia deixado alanterna para trás e lutavam na

semiescuridão. Uma curta e brutalbatalha pontilhada por grunhidos e orepicar de espadas de aço. Mesmono calor e perigo do momento,desejei que houvesse luz suficientepara vê-los lutar direito.

Então acabou, e o assassinosorridente não sorria mais, largou aespada, tombou sobre o parapeitocom um grito, atingindo o chão láembaixo. O intruso de orelhapontuda estivera a meio caminho daescada, mas havia pensado melhor edado meia-volta para fugir para osaguão de entrada.

Houve um grito vindo de baixo.Por cima do parapeito, avistei umterceiro homem, também usandomáscara, que acenou para o homemde orelhas pontudas antes de ambosdesaparecerem de vista debaixo daplataforma. Ergui a vista de relancee, na luz fraca, vi uma expressãodominar o rosto do meu pai.

— A sala de jogos — disse ele.E, no instante seguinte, antes que

minha mãe conseguisse detê-lo,saltou por cima do parapeito para osaguão de entrada abaixo. Quandosaltou, minha mãe gritou

“Edward!”, e a aflição em sua vozecoou meus próprios pensamentos.Não. Meu único, solitáriopensamento: ele está nosabandonando.

Por que está nos abandonando?A camisola da minha mãe estava

toda desalinhada quando correu pelaplataforma em direção ao lugaronde eu estava, no topo da escada;seu rosto refletia terror. Atrás delavinha outro agressor, que surgiu naescada do lado mais distante daplataforma e alcançou minha mãeao mesmo tempo que ela me

alcançou. Ele a agarrou por trás,com uma das mãos, enquanto outra,com a espada, investiu adiante,prestes a passar a lâmina pelagarganta exposta.

Não parei para pensar. Nempensei sobre isso até muito tempodepois. Mas, com um movimento,avancei, estiquei-me, apanhei naescada a espada do atacante morto,ergui-a acima da cabeça e, com asduas mãos, enfiei-a no rosto deleantes que conseguisse cortar agarganta da minha mãe.

Minha pontaria foi certeira e a

ponta da espada enfiou-se peloburaco do olho da máscara e atravésda órbita. Seu grito abriu um buracoirregular na noite, enquanto,girando, ele se afastava da minhamãe, com a espadamomentaneamente enfiada no olho.Então ela foi arrancada, quando elecaiu sobre o parapeito,desequilibrou-se por um momento,mergulhou de joelhos e searremessou para a frente, mortoantes de a cabeça bater no chão.

Minha mãe correu para os meusbraços e apoiou com força a cabeça

no meu ombro, mesmo quandoapanhei a espada e segurei sua mãopara descermos de volta pelaescada. Quantas vezes meu pai tinhame dito, ao sair diariamente para otrabalho, “Você hoje é oencarregado, Haytham; cuide da suamãe por mim”. Agora, eu realmentecuidava.

Chegamos ao pé da escada, ondeuma estranha quietude parecia terbaixado sobre a casa. O saguão deentrada agora estava vazio e aindaescuro, apesar de iluminado por umagourento brilho laranja

bruxuleante. O ar começava a ficarmais denso de fumaça, mas, atravésda neblina, vi corpos: o assassino, ocriado que fora morto mais cedo... EEdith, que jazia caída com agarganta aberta sobre uma poça desangue.

Minha mãe também viu Edith,choramingou, e tentou me puxar nadireção da porta da frente, mas aporta da sala de jogos estavasemiaberta e, vindo do interior,consegui ouvir o som de luta deespadas. Três homens, um delesmeu pai.

— O pai precisa de mim — falei,tentando me soltar da minha mãe,que percebeu o que eu estava parafazer e me puxou com maisintensidade, até eu arrancar minhamão com tanta força que ela caiu nochão.

Por um estranho momento, eu mevi dividido entre ajudar minha mãea se levantar e me desculpar; a visãodela caída no chão — no chão porminha causa — era apavorante. Masentão ouvi um grito alto vindo dasala de jogos e isso foi o suficientepara me impulsionar pela porta.

A primeira coisa que vi foi que ocompartimento da estante estavaaberto, e pude ver a caixa quecontinha a minha espada. Aforaisso, a sala estava como sempre,deixada exatamente como depois doúltimo treinamento, com a mesa debilhar coberta e afastada para medar espaço para treinar; onde, maiscedo, naquele dia, eu tinha sidoorientado e repreendido pelo meupai.

Onde agora ele estava ajoelhado,morrendo.

De pé diante dele, estava um

homem com sua espada enfiada atéo punho no peito do meu pai, alâmina saindo pelas suas costas,pingando sangue no chão demadeira. Não muito distante, estavao homem de orelhas pontudas, quetinha uma ferida profunda de cima abaixo do rosto. Tinham sidonecessários dois deles para derrotarmeu pai, e só conseguiram depoisdesse tempo todo.

Voei para cima do criminoso, queficou em total surpresa e não tevetempo de puxar a espada do peito domeu pai. Em vez disso, girou para

evitar minha lâmina, largando aespada ao mesmo tempo que meupai caía no chão.

Como um idiota, fui atrás doassassino, me esquecendo deproteger o flanco, e o que vi emseguida foi um movimento súbitocom o canto do olho, quando oOrelhas Pontudas avançou. Sepretendia fazer aquilo e calculoumal o golpe, não tenho certeza, mas,em vez de me atacar com a lâmina,ele me golpeou com o botão dopunho da espada, e minha visãoescureceu; minha cabeça bateu em

algo que levei um segundo paraperceber que era uma das pernas damesa de bilhar, e eu estava no chão,tonto, estatelado do lado oposto ameu pai, que estava caído de ladocom o punho da espada projetando-se do peito. Ainda havia vida emseus olhos, apenas uma centelha, eas pálpebras tremerammomentaneamente, como seestivesse focando em mim, mecaptando. Por uns dois momentos,ficamos caídos de frente um para ooutro, dois homens feridos. Seuslábios estavam se movendo. Em

meio à escura nuvem de dor e pesar,vi sua mão se estender para mim.

— Pai — falei.Então, no instante seguinte, o

criminoso se aproximou e, semparar, se abaixou e puxou a espadado corpo do meu pai. Ele secontraiu, o corpo arqueou com umúltimo espasmo de dor enquanto oslábios se afastavam dos dentes sujosde sangue, e morreu.

Senti uma bota do lado do corpo,que me empurrou para que eudeitasse de costas, então olhei paracima e vi os olhos do assassino do

meu pai, e agora meu assassino, oqual, com um sorriso, ergueu alâmina com as duas mãos, prontopara enfiá-la em mim.

Se me envergonho em dizer que,apenas momentos antes, minhasvozes interiores haviam meordenado que fugisse, então meorgulho em contar que nestemomento estavam caladas; queenfrentei minha morte comdignidade e sabendo que fizera omelhor possível pela minha família;com gratidão porque, em poucotempo, me juntaria a meu pai.

Mas é claro que não era para ser.Não é um fantasma que escreveestas palavras. Alguma coisa atraiumeu olhar, e foi a ponta de umaespada que apareceu entre as pernasdo criminoso, que, logo então, foienfiada de baixo para cima, abrindoseu tronco a partir da virilha.Percebi que a direção do golpe tinhamenos a ver com a selvageria emais com a necessidade de puxarmeu assassino para longe de mim, enão empurrá-lo para a frente. Masfoi selvagem, e ele berrou, com osangue esguichando enquanto era

cortado. As entranhas caíam pelotalho no chão e sua carcaça semvida seguia no mesmo caminho.

Atrás dele estava o Sr. Birch.— Você está bem, Haytham? —

perguntou.— Estou, senhor — arfei.— Um bom espetáculo —

comentou, então girou com a espadapara interceptar o homem de orelhaspontudas que vinha na direção delecom a espada brilhando.

Fiquei de joelhos, apanhei umaespada caída e me levantei, prontopara me juntar ao Sr. Birch, que

expulsara o homem de orelhaspontudas de volta para a porta dasala de jogos, quando, de repente, oagressor viu alguma coisa —alguma coisa fora de vista atrás daporta — e saltou para o lado. Noinstante seguinte, o Sr. Birch recuoue estendeu a mão para evitar que euavançasse, ao mesmo tempo que, novão da porta, o homem de orelhaspontudas reaparecera. Só que, dessavez, tinha uma refém. Não eraminha mãe, como temi a princípio.Era Jenny.

— Para trás — vociferou Orelhas

Pontudas. Jenny choramingava, eseus olhos pareciam tão grandesquanto a lâmina pressionada contraseu pescoço.

Posso admitir... posso admitirque, naquele momento, estava maisinteressado em vingar o meu pai doque proteger Jenny?

— Fique aí — repetiu OrelhasPontudas, puxando Jenny para trás.

A bainha da camisola prendeu emvolta dos tornozelos e oscalcanhares foram arrastados pelochão. De repente, a eles se juntououtro mascarado, que brandia uma

tocha flamejante. O saguão deentrada agora estava quase repletode fumaça. Eu podia ver chamasvindo de outra parte da casa,lambendo as portas para a sala deestar. O homem com a tocha correupara as cortinas, ateou fogo nelas, emais partes de nossa casacomeçaram a queimar à nossa volta,o Sr. Birch e eu impotentes paradeter aquilo.

Avistei minha mãe com o cantodo olho e agradeci a Deus ela estarbem. Jenny, porém, era outraquestão. Enquanto era arrastada em

direção à porta da mansão, os olhosestavam fixos em mim e no Sr.Birch, como se fôssemos suasúltimas esperanças. O agressor quecarregava a tocha se juntou a seucolega, abriu a porta com um puxãoe disparou para fora em direção auma carruagem que consegui ver láfora, na rua.

Por um momento, pensei quesoltariam Jenny, mas não. Elacomeçou a gritar ao ser arrastadapara a carruagem e jogada lá dentro,e ainda gritava quando um terceiromascarado, no assento do condutor,

sacudiu as rédeas, manejou ochicote de montaria e a carruagemsaiu matraqueando na noite,deixando a gente para escapar denossa casa incendiada e arrastarnossos mortos para longe das garrasdas chamas.

10 de dezembro de 1735

i

Embora fôssemos enterrar meu paihoje, a primeira coisa em que penseiquando acordei esta manhã nãotinha nada a ver com ele ou ofuneral, mas com a sala da pratariana casa da Queen Anne’s Square.

Não tinham tentado arrombá-la.Meu pai contratara os dois soldadosporque estava preocupado com umassalto, mas nossos agressorestinham ido para o andar superior

sem mesmo se importar em tentarassaltar a sala da prataria.

Porque estavam atrás de Jenny,eis o motivo. E matar meu pai? Eraparte do plano?

Foi nisso que pensei, ao acordarem um quarto gelado — o que nãoera incomum ele estar gelado. Aliás,uma ocorrência diária. Só queaquele quarto de hoje estavaespecialmente frio. O tipo de frioque deixa os dentes trincados, queatinge até os ossos. Olhei para alareira, imaginando por que nãovinha mais calor do fogo, só para

descobrir que ele estava apagado e agrelha estava plúmbea e repleta decinzas.

Desci da cama e fui até ondehavia uma grossa camada de gelo dolado de dentro da janela, evitandoque enxergasse lá fora. Arquejandode frio, me vesti, saí do quarto efiquei totalmente surpreso pelomodo como a casa pareciasilenciosa. Indo sorrateiramentepara o andar de baixo, localizei oquarto de Betty, bati levemente,depois com mais força. Como nãorespondeu, fiquei parado ali

pensando no que fazer, e umaligeira preocupação por elapercorreu minha barriga. E comocontinuava sem resposta, meajoelhei para olhar pelo buraco dafechadura, rezando para não veralgo que não devia.

Estava deitada, dormindo, emuma das duas camas do quarto. Aoutra estava vazia e perfeitamentearrumada, embora houvesse um pardo que pareciam ser botas dehomem a seu pé, com uma tira deprata no calcanhar. Meu olharvoltou para Betty e, por um

momento, percebi que o cobertorque a cobria subia e descia, e entãodecidi deixá-la dormir e melevantei.

Caminhei devagar até a cozinha,onde a Sra. Searle sobressaltou-seum pouco quando entrei, meobservou de cima a baixo com umolhar levemente desaprovador eentão voltou ao trabalho na tábua depicar. Não que houvesse qualquerdesavença entre mim e a Sra.Searle, ela apenas olhava comdesconfiança para todo mundo, ecom muito mais desde o ataque.

— Ela não é uma das pessoasmais generosas deste mundo —dissera-me Betty uma tarde.

Essa era outra coisa que haviamudado desde o ataque: Betty setornara muito mais sincera e, de vezem quando, soltava insinuações decomo realmente se sentia sobre ascoisas. Não tinha me dado conta deque ela e a Sra. Searle nuncaestavam de acordo, por exemplo,nem fazia qualquer ideia de queBetty julgava o Sr. Birch comdesconfiança. Mas julgava: — Nãosei por que ele anda tomando

decisões em nome dos Kenway —resmungara sombriamente ontem.— Ele não é da família. E duvidoque algum dia será.

De qualquer modo, saber queBetty não gostava muito da Sra.Searle tornava a governanta menosameaçadora aos meus olhos, e seantes pensaria duas vezes ao entrarna cozinha sem me anunciar parapedir comida, agora não tinha essesreceios.

— Bom dia, Sra. Searle — falei.Ela me deu um leve

cumprimento. A cozinha era fria,

exatamente como ela. Em QueenAnne’s Square, a Sra. Searle tinhapelo menos três ajudantes, sem falardos muitos empregados quepassavam para lá e para cá pelasgrandes portas duplas da cozinha.Isso, porém, foi antes do ataque,quando tínhamos a equipe completa,e não há nada como uma invasão dehomens mascarados armados comespadas para afugentar os criados.Muitos nem mesmo voltaram no diaseguinte.

Agora eram apenas a Sra. Searle,Betty, o Sr. Digweed, uma

camareira chamada Emily e a Srta.Davy, que era a criada pessoal daminha mãe. Esses eram osfuncionários que sobraram paracuidar dos Kenway. Ou, devo dizer,dos Kenway restantes. Sobraramapenas minha mãe e eu.

Quando saí da cozinha, foi comum pedaço de bolo embrulhado emum pano que me foi dado com umolhar azedo da Sra. Searle, que, semdúvida, desaprovava o fato de euandar pela casa de manhã tão cedo,indo atrás de comida antes da horado café, do qual ela se encontrava

no processo de preparação. Gosto daSra. Searle e, tendo em vista que elaé uma das poucas funcionárias quepermaneceram conosco após aquelaterrível noite, mesmo assim, gostodela ainda mais. Há outras coisasagora para me preocupar. O funeraldo meu pai. E minha mãe, é claro.

Então me peguei parado nosaguão de entrada, olhando para olado de dentro da porta da frente e,antes que eu percebesse, estavaabrindo a porta e, sem pensar —sem pensar muito, de qualquermodo —, me deixei levar degraus

abaixo, para o lado de fora, para ummundo com névoas e geada.

ii

— O que, em sã consciência,planeja fazer em uma manhã tãofria como esta, Sr. Haytham?

Uma carruagem acabara de parardo lado de fora da casa, e na janelaestava o Sr. Birch. Usava um chapéumais pesado do que o habitual e umcachecol puxado até o nariz, demodo que, à primeira vista, parecia

um assaltante de estrada.— Apenas olhando, senhor —

respondi dos degraus.Ele puxou o cachecol para baixo,

tentando sorrir. Antes, quandosorria, isso fazia com que seus olhoscintilassem, agora, eram como ascinzas frias e minguantes dafogueira, tentando, mas nãoconseguindo, gerar qualquer calor,tão tenso e cansado quanto sua vozquando falava.

— Acho que talvez eu saiba o queprocura, Sr. Haytham.

— E o que é, senhor?

— O caminho de casa?Pensei a respeito e concluí que

ele estava certo. O problema era, euvivi os primeiros dez anos da minhavida sendo cuidado pelos meus paise pelas amas. Embora soubesse quea Queen Anne’s Square estavaperto, e mesmo à distância de umacaminhada, não fazia ideia de comochegar lá.

— E está planejando uma visita?— perguntou ele.

Dei de ombros, mas a verdade eraque, sim, tinha me imaginado naconcha do meu velho lar. Na sala de

jogos. E me imaginei pegando...— Sua espada?Fiz que sim com a cabeça.— Receio que seja muito

perigoso entrar na casa. De qualquermaneira, quer fazer uma viagem atélá? Pelo menos poderá vê-la. Entre,aí fora está mais gelado do que ofocinho de um galgo.

Não vi nenhum motivo pararecusar, principalmente depois queele apanhou um chapéu e uma capanos fundos da carruagem.

Quando paramos diante da casa,momentos depois, ela não parecia

como a imaginara. Não, estavamuito, muito pior. Era como se umgigantesco punho, como o de Deus,a tivesse golpeado de cima,rompendo o telhado e os assoalhos,abrindo um imenso buraco irregulardentro dela. Já não era tanto umacasa, mas o recorte de uma.

Através de vidraças quebradasconseguimos ver o saguão deentrada e acima — por entreassoalhos destruídos até o corredortrês andares a partir do térreo, tudoenegrecido com fuligem. Pude ver amobília que reconheci, enegrecida e

chamuscada, quadros queimadospendendo tortos nas paredes.

— Sinto muito... é mesmoperigoso demais entrar, Sr.Haytham — observou o Sr. Birch.

Depois de um momento, meconduziu de volta à carruagem,bateu duas vezes no teto com abengala e partimos.

— No entanto — informou o Sr.Birch —, tomei a liberdade derecuperar sua espada ontem — ealcançou debaixo do assento eretirou a caixa. Também estava sujade fuligem, mas, quando ele a

colocou no colo e abriu a tampa, aespada estava dentro, tão reluzentequanto estivera no dia em que meupai me dera de presente.

— Obrigado, Sr. Birch. — Foitudo que consegui dizer quando elefechou a caixa e a colocou entrenós.

— É uma bela espada, Haytham.Não tenho dúvidas de que você irávalorizá-la.

— Vou, senhor.— E quando, me pergunto, ela

sentirá o primeiro gosto de sangue?— Não sei, senhor.

Houve uma pausa. O Sr. Birchprendeu a bengala entre os joelhos.

— Na noite do ataque, vocêmatou um homem — declarou,virando a cabeça para olhar pelajanela. Passamos por casas queestavam apenas visíveis, flutuandono meio de uma bruma de fumaça ear gelado. Ainda era cedo. As ruasestavam silenciosas. — Comosentiu aquilo, Haytham?

— Eu estava protegendo minhamãe — afirmei.

— Aquela era a única opçãopossível, Haytham — concordou,

assentindo —, e você agiucorretamente. Nunca pense ocontrário um só momento. Mas,mesmo tendo sido a única opção,não muda o fato de que não é semimportância matar um homem. Paraninguém. Não é sem importânciapara seu pai. Não é para mim. Masprincipalmente para um menino detão tenra idade.

— Não senti tristeza pelo que fiz.Apenas agi.

— E, desde então, tem pensadonisso?

— Não, senhor. Tenho pensado

apenas no meu pai, e na minha mãe.— E em Jenny...? — perguntou o

Sr. Birch.— Ah. Sim, senhor.Houve uma pausa e, quando ele

falou a seguir, sua voz eramonótona e solene.

— Precisamos encontrá-la,Haytham — disse ele.

Fiquei calado.— Pretendo partir para a Europa,

onde acredito que está sendomantida.

— Como sabe que ela está naEuropa, senhor?

— Haytham, sou membro de umaimportante e influente organização.Uma espécie de clube ou sociedade.Uma das muitas vantagens de sersócio é que temos olhos e ouvidosem toda parte.

— Como ela é chamada, senhor?— quis saber.

— Templários, Sr. Haytham. Eusou um Cavaleiro Templário.

— Um cavaleiro? — surpreendi-me, olhando-o de modo penetrante.

Ele deu uma curta gargalhada.— Talvez não exatamente do tipo

de cavaleiro em que você está

pensando, Haytham, uma relíquia daIdade Média, mas nossos ideaispermanecem os mesmos. Do mesmomodo como os nossos antepassados,séculos atrás, partiram para espalhara paz pela Terra Santa, tambémsomos um poder invisível que ajudaa manter a paz e a ordem em nossaépoca. — Abanou a mão para alémda janela, onde agora as ruasestavam movimentadas. — Tudoisso, Haytham, exige estrutura edisciplina, e estrutura e disciplinaexigem um exemplo a seguir. OsCavaleiros Templários são esse

exemplo.Minha cabeça girou.— E onde vocês se encontram? O

que fazem? Você tem umaarmadura?

— Depois, Haytham. Depoisconto mais.

— Meu pai era membro? Ele eraum cavaleiro? — Meu coraçãodisparou. — Ele estava metreinando para eu me tornar um?

— Não, Sr. Haytham, ele não era,e receio que, pelo que eu estavaciente, seu pai só treinava espadacom você para... bem, o fato de sua

mãe estar viva prova o valor do seuaprendizado. Não, minha relaçãocom seu pai não foi construídasobre minha qualidade de membroda Ordem. Alegro-me em dizer quefui empregado por ele pelas minhashabilidades em gerenciarpropriedades e não por causa dequaisquer ligações secretas. Dequalquer modo, ele sabia que eu eraum cavaleiro. Afinal, os Templáriostêm poderosas e abastadasconexões, e elas, às vezes, podemser úteis aos nossos negócios. Seupai podia não ser um membro, mas

era astuto o bastante para perceber ovalor das conexões: uma palavraamigável, o repasse de informaçõesúteis — inspirou fundo —, uma dasquais foi a indicação sobre o ataqueà Queen Anne’s Square. Eu contei aele, é claro. Perguntei a ele por queseria um alvo, mas ele ridicularizoua própria ideia, falsamente, talvez.Brigamos por causa disso, Haytham.Vozes foram erguidas, mas sódesejo agora que eu tivesse sidoainda mais insistente.

— Foi essa a discussão que ouvi?— perguntei.

Ele me olhou de lado.— Você ouviu, não foi? Não

estava bisbilhotando, espero.O tom de sua voz me deixou

agradecido como nunca me sentira.— Não, Sr. Birch. Ouvi vozes

altas, só isso.Ele me encarou com dureza.

Satisfeito por eu estar dizendo averdade, olhou para a frente.

— Seu pai era tão teimoso quantoimpenetrável.

— Mas ele não ignorou o alerta,senhor. Afinal, colocou os soldados.

O Sr. Birch soltou um suspiro.

— Seu pai não levou a ameaça asério, e não teria feito nada. Comoele não me escutou, tomei aprovidência de informar à sua mãe.Foi por causa da insistência delaque ele colocou os soldados. Agoragostaria que eu tivesse substituídoos soldados por homens de nossasfileiras. Eles não teriam sido tãofacilmente superados. Tudo queposso fazer por ele no momento étentar encontrar sua filha e castigaros responsáveis. Para isso, precisosaber por quê... qual foi o motivo doataque? Diga, o que sabe sobre seu

pai, antes de ele ter se estabelecidoem Londres, Sr. Haytham?

— Nada, senhor — respondi.Ele deu uma risadinha seca.— Bem, então somos dois. Aliás,

mais do que dois. Sua mãe tambémnão sabe de nada.

— E Jenny, senhor?— Ah, a igualmente impenetrável

Jenny. Tão frustrante quanto erabela, tão impenetrável quanto eraadorável.

— “Era”, senhor?— Modo de falar, Sr. Haytham...

Pelo menos espero, de todo o meu

coração. Continuo esperançoso deque Jenny esteja segura nas mãos dequem a sequestrou, que só tenhautilidade para eles viva.

— Acredita que tenha sido levadapara pedirem um resgate?

— Seu pai era muito rico. Éprovável que sua família tenhavirado alvo por causa da riqueza eque a morte de seu pai não estivessenos planos. É com certeza possível.No momento, temos homensverificando essa possibilidade.Igualmente, a missão pode ter sidoassassinar seu pai, e temos homens

verificando isso também... Bom, euestou porque, é claro, o conheciabem e saberia se ele tivesseinimigos: inimigos com recursospara montar tal ataque, em vez dearrendatários descontentes... E nãocheguei sequer a uma únicapossibilidade, o que me leva aacreditar que pode ter sido pararesolver uma rixa. Nesse caso, trata-se de uma rixa antiga, algorelacionado com o passado deleantes de Londres. Jenny, por ser aúnica que o conheceu antes deLondres, talvez tenha respostas, mas

o que quer que possa saber, ela estánas mãos de quem a levou. Dequalquer modo, Haytham, nósprecisamos localizá-la.

Houve alguma coisa no modocomo ele pronunciou “nós”.

— Como disse, acredita-se queJenny foi levada para algum lugarda Europa, portanto, é na Europaque faremos uma busca por ela. E,por nós, Haytham, refiro-me a vocêe a mim.

Dei um sobressalto.— Senhor? — falei, mal

conseguindo acreditar no que tinha

ouvido.— Isso mesmo — confirmou. —

Você irá comigo.— Minha mãe precisa de mim,

senhor. Não posso deixá-la aqui.O Sr. Birch me olhou de novo, em

seus olhos não havia bondade nemmaldade.

— Haytham — disse ele. —Receio que não seja você quemtoma essa decisão.

— É minha mãe quem toma —insisti.

— Sim, exatamente.— O que quer dizer, senhor?

Ele suspirou.— Quero dizer, você falou com

sua mãe desde a noite do ataque?— Ela estava muito abalada para

receber qualquer um, a não ser aSrta. Davy ou Emily. Minha mãepermanece no quarto, e a Srta. Davydisse que eu seria chamado quandoela quisesse me ver.

— Quando for falar com sua mãe,você a achará mudada.

— Senhor?— Na noite do ataque, Tessa viu

o marido dela morrer e seumenininho matar um homem. Essas

coisas teriam tido um profundoefeito nela, Haytham. Pode não ser apessoa de quem você se recorda.

— Mais um motivo para elaprecisar de mim.

— Talvez o que ela precise sejaficar bem, Haytham...Possivelmente com menoslembranças daquela noite terrível.

— Entendo, senhor — disse.— Lamento que isso tenha vindo

acompanhado de um choque,Haytham. — Ele franziu a testa. —E posso estar completamenteerrado, é claro, mas tenho cuidado

dos negócios do seu pai desde amorte dele, e, ao tomar providênciascom sua mãe, tive a oportunidade deestar pessoalmente com ela, e nãocreio que eu esteja errado. Nãodesta vez.

iii

Minha mãe me chamou pouco antesdo funeral.

Quando Betty, que havia estadocheia de desculpas enrubescidas porcausa do que chamou de seu

“pequeno cochilo”, me falou, meuprimeiro pensamento foi que minhamãe mudara de ideia quanto a eu irpara a Europa com o Sr. Birch, maseu estava enganado. Disparandopara o quarto dela, bati na porta eapenas ouvi-a mandar que euentrasse — sua voz agora tão fraca efina, nem um pouco comocostumava ser, quando era suavemas imponente. Estava sentadajunto à janela, e a Srta. Davy seocupava com as cortinas; emborafosse dia, mal havia algum brilho láfora, e, mesmo assim, minha mãe

agitava a mão diante do rosto comose estivesse sendo importunada porum pássaro zangado e não poralguns raios mortiços do sol deinverno. Finalmente, a Srta. Davyacabou, para satisfação da minhamãe, e, com um sorriso cansado, elame indicou um lugar para sentar.

Minha mãe virou o rosto paramim muito lentamente, me olhou eforçou um sorriso. O ataque cobraradela um preço terrível. Era como setoda a vida lhe tivesse sido sugada;como se tivesse perdido a luz quesempre tivera, estivesse sorrindo ou

de cara fechada, ou, como dizia meupai, deixando sempre as emoções àsclaras. Agora, o sorriso lentamentedeslizou dos lábios e se instalou devolta em um estupefato franzido desobrancelhas, como se tivessetentado, mas já não tivesse a forçapara manter qualquer aspiração.

— Você sabe que não irei aofuneral, Haytham — disse elainexpressivamente.

— Sim, mãe.— Sinto muito. Sinto muito,

Haytham, muito mesmo, mas nãotenho forças suficientes.

Não costumava me chamar deHaytham. Ela me chamava de“querido”.

— Sim, mãe — concordei,sabendo que ela era... ela era forte osuficiente.

“Sua mãe tem mais coragem doque qualquer homem que jáconheci, Haytham”, meu paicostumava dizer.

Eles se conheceram pouco depoisde ele se mudar para Londres, e elao havia perseguido — “como umaleoa persegue sua presa”, brincavameu pai, “uma visão tão arrepiante

que inspirava reverência e respeito”,e ganhava um tapa na cabeça poressa piada em particular, o tipo degracejo que você acha que podeconter um fundo de verdade.

Ela não gostava de falar sobre afamília. “Próspera” era tudo que eusabia. E Jenny, certa vez, deu aentender que a família de nossa mãea havia deserdado por causa de sualigação com nosso pai. Por querazão, é claro, nunca descobri. Nasraras ocasiões em que importuneiminha mãe sobre a vida de meu paiantes de Londres, ela havia sorrido

misteriosamente. Ele me contaria,quando eu estivesse pronto. Sentadono quarto dela, percebi que pelomenos uma minúscula parcela dopesar que eu sentia era a dor desaber que jamais ouviria o que querque fosse que meu pai estivesseplanejando me contar no meuaniversário. Embora fosse apenasuma minúscula parte do pesar, devodeixar claro — era insignificantecomparada ao pesar de ter perdidomeu pai e à dor de ver minha mãedaquele jeito. Tão... desconsolada.Tão sem aquela coragem de que

meu pai falava.Talvez tivesse se revelado que a

fonte da força dela era ele. Talvez omassacre daquela terrível noitetivesse sido demais para elaaguentar. Dizem que acontece comsoldados. Pegam a doença “coraçãodo soldado” e se tornam sombras desi mesmos. De algum modo, oderramamento de sangue ostransforma. Teria sido esse o casodela?, fiquei imaginando.

— Sinto muito, Haytham —acrescentou ela.

— Tudo bem, mãe.

— Não... estou dizendo sobrevocê ir para a Europa com o Sr.Birch.

— Mas sou necessário aqui, comvocê. Para cuidar de você.

Ela deu uma risada delicada: —O soldadinho da mamãe, é? — efixou em mim um olhar estranho,penetrante.

Sabia exatamente para ondeestava indo seu pensamento. Devolta ao que acontecera na escada.Estava me vendo enfiar uma lâminana órbita do olho do agressormascarado.

Então, desviou os olhos paralonge, deixando-me quase semfôlego com a crua emoção de seuolhar.

— Eu tenho a Srta. Davy e Emilypara cuidar de mim, Haytham.Quando forem feitos os consertosem Queen Anne’s Square,poderemos no mudar de volta econtratar mais funcionários. Não,sou eu quem deveria estar cuidandode você e nomeei o Sr. Birchresponsável pela família e seuguardião, para que você possa sercuidado de maneira apropriada. Isso

é o que seu pai iria querer.Ela olhou de modo estranho para

a cortina, como se tentasse lembrarpor que estava fechada.

— Sei que o Sr. Birch vai falarimediatamente com você sobrepartir para a Europa.

— Ele já falou, mas...— Ótimo. — Ela olhou para

mim. Novamente, houve algoincômodo no olhar; percebi que elanão era mais a mãe que conheci. Oueu não era mais o filho que elaconheceu?

— É o melhor, Haytham.

— Mas, mãe...Ela me olhou, então voltou a

desviar rapidamente o olhar.— Você vai, e pronto — disse ela

com firmeza, o olhar retornandopara as cortinas.

Meus olhos foram para a Srta.Davy como se procurassem ajuda,mas não encontrei nenhuma; emtroca, ela me dirigiu um sorrisocompreensivo, um erguer desobrancelhas, uma expressão quedizia “Sinto muito, Haytham, não hánada que eu possa fazer, ela jádecidiu”, e o silêncio baixou no

quarto, não havia nenhum som, anão ser o clop-clop de cascos decavalos vindo lá de fora, de ummundo que ignorava o fato de que omeu estava se despedaçando.

— Está dispensado, Haytham —avisou minha mãe com um gesto.

Antes, isto é, antes do ataque, elanunca costumava me “convocar”.Nem me “dispensar”. Antes, jamaispermitiria que eu deixasse suapresença sem pelo menos um beijono rosto, e dizia que me amava, pelomenos uma vez por dia.

Ao me levantar, me ocorreu que

não tinha dito nada sobre o queaconteceu na escada naquela noite.Ela não me agradeceu por eu tersalvado sua vida. Na porta, parei eme virei para olhá-la, e fiqueiimaginando se ela desejava que oresultado tivesse sido diferente.

iv

O Sr. Birch me acompanhou nofuneral, uma pequena cerimôniainformal na mesma capela quehavíamos usado para Edith, com

quase o mesmo número departicipantes: o pessoal quetrabalhava na minha casa, o VelhoSr. Fayling e algumas pessoas daequipe de funcionários do trabalhodo meu pai, com quem o Sr. Birchfoi conversar depois. Ele meapresentou a uma pessoa do grupo,o Sr. Simpkin, um homem quejulguei estar no meio da casa dostrinta anos, e que me disseram quecuidaria dos assuntos da família.Ele se curvou um pouco e me deuum olhar que vim a reconhecercomo um misto de falta de jeito e

solidariedade, cada qual lutandopara encontrar uma expressãoadequada.

— Vou estar em contato com suamãe, Sr. Haytham, enquanto estiverna Europa — assegurou-me.

Compreendi então que eu iarealmente; que não tinha escolha,que não podia dar qualquer opiniãoque fosse sobre o assunto. Bem, eude fato tinha uma escolha, suponho— poderia fugir. Não que fugirpareça algum tipo de escolha.

Tomamos a carruagem para casa.Entrando na casa, vi Betty, que me

olhou e deu um leve sorriso.Aparentemente, as notícias sobremim tinham se espalhado. Quandoperguntei o que planejava fazer, elame disse que o Sr. Digweed tinhaarrumado outro emprego. Quandoela olhou para mim, seus olhosbrilharam com lágrimas e, quandodeixou o aposento, sentei-me naescrivaninha para escrever no diáriocom o coração pesado.

11 de dezembro de 1735

i

Vamos para a Europa amanhã demanhã. Fico surpreso com quãopoucos preparativos sãonecessários. É como se o incêndio játivesse cortado todos os laços com aminha antiga vida. As poucas coisasque me restaram foram suficientespara encher apenas dois baús, queforam levados embora esta manhã.Hoje, vou escrever cartas, e tambémverei o Sr. Birch para contar sobre

algo que aconteceu na noitepassada, depois que me deitei.

Estava quase dormindo quandoouvi uma leve batida na porta,sentei na cama e falei “Entre”,esperando plenamente que fosseBetty.

Não era. Vi a figura de umagarota, que entrou rapidamente noquarto e fechou a porta atrás de si.Ergueu a vela para que eu pudessever seu rosto e o dedo que levou aoslábios. Era Emily, a loura Emily, acamareira.

— Sr. Haytham — falou —,

tenho algo a dizer que andaperturbando a minha mente, senhor.

— Claro — disse, esperando queminha voz não traísse o fato de que,de repente, me senti muito jovem evulnerável.

— Eu conheço a criada dosBarrett — começouapressadamente. — Violet, que foiuma das que saíram da casa delesnaquela noite. Ela estava perto dacarruagem em que colocaram suairmã, senhor. Ao passarem com aSrta. Jenny por ela até a carruagem,a Srta. Jenny fez contato visual com

Violet, e lhe disse alguma coisarapidamente, que Violet me contou.

— O que foi? — perguntei.— Foi muito depressa, senhor, e

havia muito barulho e, antes que elapudesse dizer mais, a jogaram nacarruagem, mas o que Violet pensater ouvido foi “traidor”. No diaseguinte, um homem foi visitarViolet, um homem com sotaque daregião sudoeste do país, ou assimachou ela, que queria saber o queela tinha ouvido, mas Violet disseque não tinha ouvido nada, mesmoquando o cavalheiro a ameaçou. Ele

mostrou para ela uma facahorrorosa, senhor, que tirou docinturão, só que ela não disse nada.

— Mas ela contou para você?— Violet é minha irmã, senhor.

Ela se preocupa comigo.— Você contou isso para mais

alguém?— Não, senhor.— Eu contarei ao Sr. Birch, pela

manhã — prometi.— Mas, senhor...— Sim?— E se o traidor for o Sr. Birch?Dei uma curta risada e balancei a

cabeça.— Não é possível. Ele salvou a

minha vida. Estava lá, combatendoos... — Algo me ocorreu. — Mas háalguém que não estava lá.

ii

Claro que mandei avisar ao Sr.Birch esta manhã, na primeiraoportunidade, e ele chegou à mesmaconclusão que eu.

Uma hora depois, chegou outrohomem, que foi conduzido ao

gabinete. Ele tinha mais ou menos amesma idade que meu pai, o rostoáspero, cicatrizes, e o olhar fixo efrio de algumas espécies marinhas.Era mais alto do que o Sr. Birch, emais largo, e parecia encher todo oaposento com sua presença. Umapresença sombria. E olhou paramim. Do alto de seu nariz paramim. Do alto de seu desdenhosonariz enrugado para mim.

— Este é o Sr. Braddock —anunciou o Sr. Birch, enquantopermanecia parado no mesmo lugarpelo olhar fixo do recém-chegado.

— Também é um Templário. Eletem minha total e máximaconfiança, Haytham. — Pigarreou edisse bem alto: — E modos às vezesem desacordo com o que eu sei quehá em seu coração.

O Sr. Braddock bufou e deu-lheum olhar devastador.

— Basta, Edward — ralhouBirch. — Haytham, o Sr. Braddockse encarregará de descobrir otraidor.

— Obrigado, senhor — falei.O Sr. Braddock me olhou e então

se dirigiu ao Sr. Birch.

— Esse tal de Digweed — disseele —, talvez você possa memostrar o quarto dele.

Quando fiz menção de ir comeles, o Sr. Braddock olhou para o Sr.Birch, que assentiu quase queimperceptivelmente e então se viroupara mim, sorrindo, com umaexpressão no olhar que imploravaminha indulgência.

— Haytham — pediu ele —,talvez você deva cuidar de outrosassuntos. Seus preparativos para aviagem, talvez.

E fui forçado a voltar para o meu

quarto, onde vistoriei minhabagagem já arrumada e entãoretornei ao meu diário, no qualanotei os acontecimentos do dia.Momentos antes, o Sr. Birch chegoucom a notícia: me contou queDigweed tinha fugido; seu rostoestava sério. No entanto, megarantiu que o encontrariam. OsTemplários sempre encontramquem procuram e, enquanto isso,nada muda. Ainda vamos para aEuropa.

Eu me dou conta de que esta vaiser a última vez que escrevo aqui

em casa, em Londres. Estas são asúltimas palavras da minha antigavida, antes de a nova começar.

P A R T E D O I S

1747, doze anos depois

10 de junho de 1747

i

Hoje observei o traidor, enquantoandava pelo bazar. Usando umchapéu emplumado, fivelas e ligascoloridas, ele se pavoneava debarraca em barraca e cintilava sob obrilhante sol branco espanhol.Brincou e riu com algunsbarraqueiros; com outros, trocoupalavras irritadiças. Aparentemente,não era amigo nem déspota e, defato, a impressão que criei dele,

ainda que à distância, foi a de umhomem honesto, até mesmobenevolente. Mas, por outro lado,não eram aquelas pessoas que eleestava traindo. Era sua Ordem.Éramos nós.

Seus guardas permaneceram comele, durante as rondas, e pudeperceber que eram homensdiligentes. Seus olhos nuncaparavam de se mexer em volta domercado e, quando um dosbarraqueiros lhe dava um tapinhaamigável nas costas e lheempurrava como presente um pão

de sua barraca, ele acenava para omais alto dos dois guardas, que opegava com a mão esquerda,mantendo livre a mão da espada.Excelente. Excelente homem.Templário-treinado.

Momentos depois, um garotinhodisparou do meio dos aglomeradose, de imediato, meus olhos forampara os guardas, e os vi tensos,avaliando o perigo e então...

Relaxaram?Riram de si mesmos por serem

nervosos?Não. Permaneceram tensos.

Permaneceram vigilantes, pois nãoeram idiotas e sabiam que o meninopoderia ser um despiste.

Eram bons homens. Fiqueiimaginando se haviam sidocorrompidos pelos ensinamentos deseu empregador, um homem quepregava aliança a uma causa,enquanto promovia os ideais deoutra. Esperava que não, porque jádecidira deixá-los viver. E, se dealgum modo parece conveniente euter decidido que vivessem, e quetalvez a verdade tivesse mais a vercom minha apreensão de ter de

enfrentar dois homens tãocompetentes, então a impressão éfalsa. Eles podem ser cautelosos;indubitavelmente, deviam serexímios espadachins; deviam serhabilidosos no ofício de matar.

Mas, por outro lado, soucauteloso. Sou um exímioespadachim. E sou habilidoso noofício de matar. Tenho uma aptidãonatural para isso. No entanto, aocontrário de teologia, filosofia, osclássicos e minhas línguas,particularmente o espanhol, no qualsou tão bom que sou capaz de passar

por espanhol aqui em Altea, se bemque de certa maneira reticente, nãosinto qualquer prazer na minhahabilidade para matar.Simplesmente sou bom nisso.

Talvez, se meu alvo fosseDigweed — talvez então eu pudesseter certa gratificação em matá-locom minhas mãos. Mas não é.

ii

Por cinco anos, após deixarmosLondres, Reginald e eu percorremos

a Europa, indo de país a país,viajando em uma caravana defuncionários e colegas cavaleirosque mudavam à nossa volta,entrando e saindo de nossas vidas.Éramos os únicos constantes, àmedida que passávamos de um paíspara o outro, às vezes seguindo apista de um grupo de traficantes deescravos turcos que se acreditavaque estaria mantendo Jenny, e,ocasionalmente, agindo de acordocom informação a respeito deDigweed, a qual ficava a cargo deBraddock, que se afastava durante

meses sem fim e sempre voltava demãos vazias.

Reginald era meu tutor e, nessesentido, tinha semelhanças commeu pai. A primeira delas era quetendia a desdenhar de quase tudoreferente a livros, sempre afirmandoque existia um aprendizadosuperior, mais avançado do queaquele encontrado em velhos eempoeirados livros escolares, o quedepois vim a conhecer comoaprendizado Templário; e asegunda, insistia para que eupensasse por mim mesmo.

Eles diferiam no fato de que meupai pedia que eu tomasse minhasdecisões. Reginald, eu soube depois,via o mundo em termos maisabsolutos. Com meu pai, às vezes eusentia que o pensamento erasuficiente — que o pensamento eraum meio em si mesmo e aconclusão a que eu chegava dealgum modo era menos importantedo que o percurso. Com meu pai,fatos, e, revendo diários passados,percebo que mesmo o puro conceitod e verdade, podiam ser sentidoscomo características inconstantes,

mutáveis.Com Reginald, porém, não havia

tal ambiguidade e, nos primeirosanos, quando eu poderia dizer aocontrário, ele sorria para mim edizia que era capaz de ouvir meu paiem mim. Dizia o quanto o meu paifora um grande homem e, de muitosmodos, sábio, e certamente omelhor espadachim que ele jáconhecera, mas sua atitude emrelação ao aprendizado não era tãosábia quanto poderia ter sido.

Envergonha-me admitir que, como tempo, passei a preferir o modo de

Reginald, o mais rigoroso modoTemplário? Embora fosse semprebem-humorado, rápido em entenderuma piada e sorrir, carecia daalegria natural, até mesmobrincalhona, do meu pai. Porexemplo, vivia sempre abotoado earrumado e era neurótico compontualidade; insistia que as coisasestivessem ordenadas o tempo todo.Ainda assim, quase a despeito demim mesmo, havia algo seguro emReginald, uma certeza, tanto internaquanto externa, que me atraía cadavez mais com o passar dos anos.

Um dia compreendi por quê. Eraa ausência de dúvida — e, com isso,de confusão, indecisão e incerteza.Essa sensação — essa sensação do“conhecimento” que Reginaldimpregnava em mim — foi meuguia da juventude para a idadeadulta. Nunca esqueci osensinamentos do meu pai; pelocontrário, ele teria ficado orgulhosode mim, porque questionei seusideais. Fazendo isso, adotei novos.

Nunca encontramos Jenny. Com opassar dos anos, despreocupei-mecom a lembrança dela. Lendo meus

diários antigos, o jovem eu nuncaligou a mínima para ela, algo de quede certa forma me envergonho,porque agora sou adulto e vejo ascoisas de um modo diferente. Nãoque minha antipatia juvenil porJenny tivesse feito alguma coisapara impedir a caçada por ela, éclaro. Nessa missão, o Sr. Birchtinha mais do que suficiente zelopor nós dois. Mas não era obastante. A verba que recebíamos deLondres do Sr. Simpkin eragenerosa, mas não era infindável.Encontramos um castelo na França,

escondido perto de Troyes, Landesde Champagne, no qual montamosnossa base, onde o Sr. Birchcontinuou o meu aprendizado,apadrinhando minha admissão comoAdepto e depois, três anos atrás,como membro pleno da Ordem.

Semanas se passaram semqualquer menção a Jenny ouDigweed; depois, meses. Estávamosenvolvidos em outras atividadestemplárias. A Guerra de Sucessãoaustríaca parecera devorar toda aEuropa em sua boca gananciosa, eéramos necessários para proteger os

interesses templários. Minha“aptidão”, minha habilidade emmatar, tornou-se aparente, eReginald foi rápido em notar osbenefícios. O primeiro a morrer —não o meu primeiro “abate”, é claro;meu primeiro assassinato, deveriadizer — foi um comercianteganancioso em Liverpool. Meusegundo, um príncipe austríaco.

Após o extermínio docomerciante, dois anos atrás, volteipara Londres, somente paradescobrir que o trabalho dereconstrução continuava em Queen

Anne’s Square, e minha mãe...minha mãe estava cansada demaisnaquele dia para me receber, comotambém estaria no dia seguinte.“Ela também está cansada demaispara responder minhas cartas?”,perguntei à Sra. Davy, que sedesculpou e desviou os olhos.Depois cavalguei até Herefordshire,na esperança de localizar a famíliade Digweed, mas sem sucesso.Aparentemente, o traidor que haviaem nosso lar não era para serencontrado nunca — ou, deveriadizer, não é para ser encontrado

nunca.Mas, por outro lado, o fogo da

vingança dentro de mim queimamenos intensamente nestes dias,talvez simplesmente porque cresci;talvez pelo que Reginald meensinou sobre controlar a si mesmo,o domínio das próprias emoções.

Ainda assim, por mais fraco queseja, o fogo continua a queimardentro de mim.

iii

A mulher do dono da hostale acaboude me visitar, lançando um olharescada abaixo antes de fechar aporta. Chegou um mensageiroquando eu estava fora, disse ela, eme entregou a carta que eletrouxera, me dando um olharlascivo, que talvez eu tivesse sidotentado a aproveitar, se minhamente não estivesse ocupada comoutras coisas. Os acontecimentos deontem à noite, por exemplo.

Portanto, em vez disso, aacompanhei para fora do meuquarto e me sentei para decifrar a

mensagem. Dizia que, assim queterminasse em Altea, eu deveriaviajar, não para casa, na França,mas para Praga, onde meencontraria com Reginald nosaposentos do porão da casa emCeletna Lane, o quartel-general dosTemplários. Ele tem um assuntourgente para discutir comigo.

Enquanto isso, tenho queijo paraum rato. Esta noite o traidor veráseu fim.

11 de junho de 1747

i

Está feito. Quero dizer, oassassinato. E, embora não tivessesido sem complicações, a execuçãofoi limpa, uma vez que ele estámorto e permaneço sem serdescoberto, e, por causa disso, possome permitir certa satisfação por tercompletado minha missão.

Seu nome era Juan Vedomir e seutrabalho era, supostamente, protegernossos interesses em Altea. Que ele

tivesse usado a oportunidade paraconstruir um império para si, issofoi tolerado; a informação quetivemos foi que ele controlava oporto e o mercado com mãobondosa, e, certamente, com osindícios obtidos naquele dia maiscedo, parecia gozar de algum apoio,ainda que a presença constante deseus guardas provasse que não eraesse sempre o caso.

Seria ele, porém, bondosodemais? Reginald achava que sim,mandou investigá-lo e, finalmente,descobriu que o abandono da

ideologia templária por parte deVedomir era tão completo quebeirava a traição. Na Ordem,éramos intolerantes com traidores.Fui despachado para Altea. Vigiei-o. E, na noite passada, peguei oqueijo e deixei minha hostale pelaúltima vez, seguindo pelas ruas comcalçamento de pedras até sua vila.

— Sim? — disse o guarda queabriu sua porta.

— Tenho queijo — falei.— Consigo sentir o cheiro daqui

— retrucou ele.— Espero convencer o Señor

Vedomir a me dar permissão denegociar no bazar.

O nariz dele torceu um poucomais.

— O Señor Vedomir estáinteressado em atrair clientes para omercado, e não afugentá-los.

— Talvez aqueles com umpaladar mais refinado discordem,señor.

O guarda olhou-me de lado.— Seu sotaque. De onde você é?Era o primeiro que questionava

minha cidadania espanhola.— Originalmente, da República

de Gênova — respondi, sorrindo —,onde o queijo é um de nossosmelhores produtos de exportação.

— Seu queijo terá de percorrermuito caminho para superar o deVarela.

Continuei sorrindo.— Tenho confiança de que sim.

Tenho confiança de que o SeñorVedomir pensará isso.

Ele pareceu incerto, mas seafastou e me deixou entrar para oamplo saguão, o qual, apesar danoite quente, era fresco, quase frio,como também escasso, com apenas

duas cadeiras e uma mesa, sobre aqual havia algumas cartas debaralho. Olhei-as de relance. Umjogo de piquet, fiquei contente emperceber, pois era jogado por apenasduas pessoas, o que significava quenão havia mais guardas escondidosno madeiramento.

O primeiro guarda me indicouque deixasse o queijo embrulhadoem cima da mesa de cartas, e fiz oque me mandou. O segundo homemrecuou, com uma das mãos nopunho da espada, enquanto o colegame revistava atrás de armas,

batendo inteiramente nas minhasroupas e, em seguida, vasculhando abolsa que eu trazia a tiracolo, naqual havia algumas moedas, meudiário e nada mais. Eu não tinhalâmina.

— Ele não está armado —informou o primeiro guarda, e osegundo homem assentiu. Oprimeiro guarda apontou para oqueijo.

— Você quer que o SeñorVedomir prove isso, imagino?

Assenti com entusiasmo.— Talvez eu deva provar

primeiro — disse o primeiroguarda, olhando para mimatentamente.

— Eu esperava que fosse todopara o Señor Vedomir — rebati comum sorriso obsequioso.

O guarda bufou.— Aí tem mais do que o

suficiente. Talvez você deva prová-lo.

Comecei a protestar.— Mas eu esperava que fosse

todo para...Ele pôs a mão no punho da

espada.

— Prove — insistiu.Concordei com a cabeça.— Claro, señor — falei, e

desembrulhei uma parte, tirei umpedaço e comi. A seguir, ele indicouque eu deveria experimentar outrobocado, o que fiz, fazendo umaexpressão para mostrar o quanto seusabor era celestial. — E agora queestá aberto — sugeri, oferecendo oembrulho —, vocês tambémpoderiam provar.

Os dois guardas se entreolharam,então, finalmente, o primeiro sorriu.Então foram até uma grossa porta

de madeira ao final do corredor,bateram e entraram. Apareceramnovamente e sinalizaram para queeu fosse adiante e entrasse nosaposentos de Vedomir.

Lá dentro, estava escuro eintensamente perfumado. Sedasondulavam delicadamente no tetobaixo quando entramos. Vedomirestava sentado de costas para nós,seu longo cabelo negro solto,usando camisola e escrevendo à luzde uma vela em sua escrivaninha.

— Quer que eu fique, SeñorVedomir? — perguntou o guarda.

Vedomir não se virou.— Creio que nosso convidado

não está armado.— Não, senhor — disse o guarda

—, embora o cheiro do queijo deleseja suficiente para abater umexército.

— Para mim, Cristian, essecheiro é perfume — riu Vedomir.— Por favor, peça ao nossoconvidado que se sente, e estareicom ele em um momento.

Sentei em um banquinho baixojunto a uma lareira vazia, enquantoele rabiscava no livro, depois se

aproximou, parando no caminhopara apanhar uma pequena faca emuma mesinha.

— Queijo, hein? — Seu sorrisodividiu um fino bigode, enquantoele erguia a camisola para se sentarem outro banquinho baixo do ladooposto.

— Sim, señor — confirmei.Ele olhou para mim.— Ah! Disseram que você era da

República de Gênova, mas possoperceber, pela sua voz, que é inglês.

Sobressaltei-me, chocado, mas olargo sorriso que ele exibiu me

disse que eu não tinha nada com oque me preocupar. Pelo menos, nãopor enquanto.

— E eu, esse tempo todo,pensando que era muito esperto,escondendo a minha nacionalidade— observei, impressionado —, masme descobriu, señor.

— E, evidentemente, o primeiro afazer isso, e é por esse motivo quesua cabeça continua sobre osombros. Nossos dois países estãoem guerra, não é mesmo?

— A Europa toda está em guerra,señor. Às vezes fico imaginando se

alguém sabe quem está combatendoquem.

Vedomir deu uma risadinha eseus olhos dançaram.

— Está sendo malicioso, meuamigo. Creio que todos nósconhecemos as alianças do seu reiJorge, assim como suas ambições.Sua marinha britânica, dizem, seacha a melhor do mundo. Osfranceses, os espanhóis... semmencionar os suecos... discordam.Um inglês na Espanha tem sua vidanas próprias mãos.

— Devo agora me preocupar com

minha segurança, señor?— Comigo? — Ele abriu os

braços e deu um sorriso torto,irônico. — Gosto de pensar queestou acima das preocupaçõesmesquinhas dos reis, meu amigo.

— Então a quem serve, señor?— Ora, à população da cidade, é

claro.— E a quem penhora aliança, se

não ao rei Fernando?— A um poder mais alto, señor

— sorriu Vedomir, encerrandofirmemente o assunto e voltando aatenção ao embrulho de queijo que

eu havia colocado junto à lareira. —Agora — prosseguiu —, terá deperdoar minha confusão. Essequeijo é da República de Gênova oué queijo inglês?

— É meu queijo, señor. Meusqueijos são os melhores onde querque alguém plante sua bandeira.

— Bom o suficiente para usurparo Varela?

— Talvez você possacomercializá-lo ao lado dele.

— Mas e aí? Então eu terei umVarela infeliz.

— Sim, señor.

— Essas questões de negóciosnão são de sua conta, señor, mas sãoassuntos que me atormentamdiariamente. Bem, deixe-me provaresse queijo antes que ele derreta,certo?

Fingindo sentir calor, afrouxeimeu lenço de pescoço, depois oretirei.

Sorrateiramente, alcancei a bolsapendurada no ombro e retirei umdobrão. Quando ele voltou a atençãopara o queijo, larguei o dobrãodentro do lenço.

A faca cintilou sob a luz da vela,

quando Vedomir cortou um naco doprimeiro queijo, apoiou o pedaço nopolegar e o cheirou — quasedesnecessariamente; conseguiasenti-lo de onde estava sentado —então jogou-o boca adentro.Mastigou-o pensativamente, olhoupara mim, e em seguida cortou umsegundo naco.

— Hum — fez ele, após algummomento. — Está enganado, señor,este não é superior ao queijo deVarela. Aliás, é exatamente igual aoqueijo de Varela. — Seu sorrisohavia sumido e o rosto se tornara

sombrio. Dei-me conta de que haviasido descoberto. — Aliás, este é oqueijo de Varela.

Sua boca estava aberta para gritarpor ajuda, quando larguei o dobrãono lenço, com um movimento dopunho, girei a seda e a transformeiem um garrote, saltei adiante, comos braços cruzados, passeio porcima de sua cabeça e em volta dopescoço.

Sua mão com a faca fez um arcopara cima, mas era lento demais efora apanhado de surpresa, e alâmina rasgou descontroladamente a

seda acima de nossas cabeças,enquanto eu segurava o meu rumāl,a moeda pressionando sua traqueia,eliminando qualquer ruído.Segurando o garrote com uma dasmãos, desarmei-o, joguei a facanuma almofada, então usei as duasmãos para apertar o rumāl.

— Meu nome é Haytham Kenway— falei com indiferença,inclinando-me adiante para olhardentro de seus olhos bem abertos,arregalados. — Você traiu a Ordemdos Templários. Por causa disso, foicondenado à morte.

Seu braço se ergueu, em uma vãtentativa de arranhar meus olhos,mas desviei a cabeça e observei aseda esvoaçar levemente enquanto avida o deixava.

Quando acabou, levei seu corpopara a cama, depois fui àescrivaninha para apanhar o diáriodele, conforme eu fora instruído.Estava aberto e meu olhar caiusobre o que estava escrito: Para verde manera diferente, primerodebemos pensar diferente.

Li a frase novamente, traduzi-acom cuidado, como se estivesse

aprendendo uma nova língua: “Paraver de modo diferente, primeirodevemos pensar diferente.”

Olhei para isso por algunsmomentos, mergulhado empensamentos, depois fechei o livrocom um estalido e o enfiei na bolsa,voltando a atenção para o meutrabalho. A morte de Vedomir sóseria descoberta pela manhã,ocasião em que eu estaria longe, acaminho de Praga, onde agora eutinha algo para perguntar aReginald.

18 de junho de 1747

i

— É sobre sua mãe, Haytham.Ele estava diante de mim, no

porão do quartel-general em CeletnaLane. Não fizera qualquer esforçopara se vestir para ir a Praga. Usavasua origem inglesa como umainsígnia de honra: meias brancaslimpas e bem-ajustadas, calçõespretos e, é claro, sua peruca, que erabranca e já havia espalhado a maiorparte do talco nos ombros da

sobrecasaca. Estava iluminado pelaschamas de tochas altas de ferrosobre postes, em ambos os lados,enquanto, montadas em paredes depedras tão escuras que estavamquase pretas, havia tochas quebrilhavam com halos de luz pálida.Normalmente, Reginald se portavade forma descontraída, com as mãospara trás e apoiado na bengala, mashoje havia nele um ar formal.

— Minha mãe?— Sim, Haytham.Está doente, foi meu primeiro

pensamento e senti de imediato uma

quente onda de culpa tão intensaque quase me deixou tonto. Haviasemanas que eu não escrevia paraela; mal havia pensado nela.

— Ela está morta, Haytham —disse Reginald, baixando a vista. —Uma semana atrás, ela caiu. Suascostas se machucaram seriamente, ereceio que tenha sucumbido aosferimentos.

Olhei para ele. Aquele intensofluxo de culpa foi-se rapidamentedo mesmo modo que havia chegadoe, no seu lugar, ficou uma sensaçãovazia, um lugar oco onde as

emoções deveriam estar.— Sinto muito, Haytham. — Seu

rosto descorado enrugou-se emcompaixão e seus olhos erambondosos. — Sua mãe era umaexcelente mulher.

— Está tudo bem — falei.— Temos de partir

imediatamente para a Inglaterra.Haverá uma cerimônia fúnebre.

— Sei.— Se você precisar... de qualquer

coisa, por favor, não hesite empedir.

— Obrigado.

— Sua família agora, Haytham, éa Ordem. Pode recorrer a nós paraqualquer coisa.

— Obrigado.Ele limpou a garganta,

constrangido.— E, se precisar... você sabe,

conversar, estou aqui.Tentei não sorrir diante da ideia.— Obrigado, Reginald, mas não

será preciso.— Tudo bem.Houve uma longa pausa.Ele desviou o olhar.— Está feito?

— Juan Vedomir está morto, se éisso que quer saber.

— E está com o diário dele?— Receio que não.Por um momento, seu rosto se

abateu, depois ficou sério. Muitosério. Eu vira seu rosto fazer issoantes, em um momento irrefletido.

— Por quê? — perguntousimplesmente.

— Eu o matei pela sua traição ànossa causa, não foi? — frisei.

— De fato... — disse Reginaldcautelosamente.

— Então, por que eu precisava do

diário?— Contém as anotações dele.

Elas são de nosso interesse.— Por quê? — perguntei.— Haytham, tenho motivo para

acreditar que a traição de JuanVedomir foi além da questão de suafidelidade à doutrina. Creio quepossa ter avançado e trabalhadocom os Assassinos. Agora, porfavor, me diga a verdade, você estácom o diário dele?

Tirei-o da bolsa e o entreguei, eele foi até um dos candelabros,abriu-o, folheou-o rapidamente e

logo fechou-o com um estalido.— Você leu? — perguntou.— Está em código — retruquei.— Mas nem todo ele — rebateu

serenamente.Assenti.— Sim... sim, você tem razão,

houve trechos que consegui ler.Seus... pensamentos sobre a vida.Uma leitura interessante. Aliás,fiquei particularmente intrigado,Reginald, com o quanto da filosofiade Vedomir era consistente com oque meu pai certa vez me ensinou.

— É bem possível.

— Ainda assim mandou que eu omatasse?

— Mandei que você matasse umtraidor da Ordem. O que é algocompletamente diferente. Claro, eusabia que seu pai pensava diferentede mim com relação a muitos...talvez a maioria... dos princípios daOrdem, mas isso porque ele nãoconcordava com eles. O fato de elenão ser um Templário não faziacom que eu o respeitasse menos.

Olhei-o. Fiquei imaginando setinha errado em duvidar dele.

— Ora, então é um livro que

interessa?— Não pelas reflexões de

Vedomir sobre a vida, isso é certo— sorriu Reginald, e me deu umsorriso de lado. — Como você diz,eram semelhantes às do seu pai, enós dois sabemos o que sentimos aesse respeito. Não, são as passagensem código que me interessam, asquais, se estiver certo, contémdetalhes do guardião de uma chave.

— Uma chave para quê?— Tudo a seu tempo.Fiz um ruído de frustração.— Assim que eu decodificar o

diário, Haytham — pressionou. —Quando, se eu estiver certo, formoscapazes de iniciar a fase seguinte daoperação.

— E quando poderá ser isso?Abriu a boca para falar, mas

pronunciei as palavras por ele: —“Tudo a seu tempo, Haytham”, nãoé isso? Mais segredos, Reginald?

Ele mostrou indignação.— “Segredos”? É mesmo? É isso

o que você pensa? O que eu fizexatamente para merecer suadesconfiança, Haytham, além de tê-lo colocado sob minha proteção,

apadrinhado seu ingresso na Ordem,ter dado uma vida a você? Sabe,mereço ser perdoado por às vezesachar você um tanto ingrato, senhor.

— Mas nunca conseguimosencontrar Digweed, não é? —lembrei, recusando-me a serintimidado. — Nunca houve umpedido de resgate por Jenny,portanto, o motivo principal doataque tem de ser a morte do meupai.

— Tivemos esperança deencontrar Digweed, Haytham. Isso étudo o que sempre pudemos fazer.

Ti v e m o s esperança de fazê-lopagar. Essa esperança não foisatisfeita, mas isso não significaque abandonamos nosso objetivo.Além do mais, eu tinha o dever decuidar de você, Haytham, e isso foicumprido. Você está diante de mimcomo um homem, um respeitadocavaleiro da Ordem. Acredito quenão se dá conta disso. E não seesqueça de que esperava me casarcom Jenny. Talvez, no calor dodesejo de vingar seu pai, você veja aperda de Digweed como a nossaúnica falha significativa, mas não é,

porque nunca encontramos Jenny,não é verdade? Mas, claro, você nãopensa nem um pouco no sofrimentoda sua irmã.

— Você me acusa deinsensibilidade? Crueldade?

Ele balançou a cabeça.— Eu só peço que você dirija o

olhar para suas próprias falhas antesde começar a lançar luz sobre asminhas.

Olhei atentamente para ele.— Você nunca confiou em mim

em relação à busca.— Braddock foi enviado para

encontrá-lo. Ele me atualizavaregularmente.

— Mas você não me passavaessas atualizações.

— Você era um menino.— Que cresceu.Ele curvou a cabeça.— Então peço desculpas por não

ter levado em conta esse fato,Haytham. No futuro, o tratarei comosemelhante.

— Então comece agora... comecepor me falar sobre o diário — pedi.

Ele riu, como se tivesse entradoem xeque no xadrez.

— Você venceu, Haytham. Estábem, ele representa o primeiropasso na direção da localização deum templo... um templo da primeiracivilização, que se imagina ter sidoconstruído por Aqueles Que VieramAntes.

Houve um momento de pausa, noqual pensei “É isso?” e então deiuma gargalhada.

A princípio, ele pareceu chocado,talvez se lembrando da primeira vezem que me falou sobre Aqueles QueVieram Antes, quando tivedificuldade de me conter.

— Aqueles que vieram antes dequê...? — zombei.

— Antes de nós — retrucou demodo firme. — Antes do homem.Uma civilização anterior.

Ele agora franziu a testa paramim.

— Ainda acha isso engraçado,Haytham?

Balancei a cabeça.— Não, não tão engraçado.

Mais... — pelejei para encontrar aspalavras —... difícil de entender,Reginald. Uma raça de seres queexistiram antes do homem.

Deuses...— Deuses não, Haytham, a

primeira civilização de humanosque controlou a humanidade. Elesnos deixaram artefatos, Haytham,de imenso poder, de tal modo quepodemos apenas imaginar. Acreditoque quem conseguir possuir essesartefatos poderá,fundamentalmente, controlar odestino de toda a humanidade.

Minha gargalhada perdeu a força,quando percebi o quanto ele setornara sério.

— É uma pretensão grande

demais, Reginald.— De fato. Se fosse uma

pretensão modesta, não estaríamostão interessados, não é mesmo? OsAssassinos não estariaminteressados. — Seus olhoscintilaram. As chamas das tochasbrilhavam e dançavam neles. Eu játinha visto esse seu olhar, masapenas em raras ocasiões. Nãoquando me instruía em línguas,filosofia, ou mesmo nos clássicosou nos princípios do combate. Nemmesmo quando me ensinava adoutrina da Ordem.

Não, apenas quando falava sobreAqueles Que Vieram Antes.

Às vezes, Reginald gostava de rirdaquilo que via como um excessode paixão. Considerava isso umafraqueza. Quando, porém, discorriasobre os seres da primeiracivilização, falava como umfanático.

ii

Estamos passando a noite noquartel-general dos Templários em

Praga. Agora, ao me sentar aqui emum pobre quarto com paredes depedras cinzentas, consigo sentirsobre mim o peso de milhares deanos de história templária.

Meus pensamentos vão paraQueen Anne’s Square, para onde osempregados retornaram depois quea obra ficou pronta. O Sr. Simpkinnos manteve a par dos avanços;Reginald inspecionara a construção,mesmo enquanto íamos de país empaís à procura de Digweed e Jenny.(E, sim, Reginald tinha razão.Termos fracassado na busca por

Digweed: esse fato me corrói; masquase nunca penso em Jenny.) Umdia, o Sr. Simpkin nos enviou anotícia de que o domicílio haviasaído de Bloomsbury e voltado paraQueen Anne’s Square, que a famíliaestava novamente na residência, devolta ao lugar a que pertencia.Naquele dia minha mente seguiupara as paredes cobertas de madeirada casa onde cresci, e descobri queera capaz de imaginar distintamenteas pessoas em seu interior —principalmente minha mãe. Mas, éclaro, estava imaginando a mãe que

conheci enquanto crescia, quebrilhava como o sol e duas vezesmais cálida, em cujo colo conheci afelicidade perfeita. O amor quesentia pelo meu pai era muito forte,talvez até mais do que pela minhamãe, mas meu amor por ela eramais puro. Com meu pai, tinha umasensação de reverência, deadmiração tão grande que às vezesme sentia minúsculo perto dele e,com isso, vinha uma sensaçãoimplícita que só consigo descrevercomo aflição, que, de algum modo,eu tinha de viver à sua altura,

crescer na imensa sombra projetadapor ele.

Com minha mãe, porém, nãohavia tal insegurança, apenas aquase esmagadora sensação deconforto, amor e proteção. E ela eralinda. Eu adorava quando as pessoasme comparavam com o meu pai,porque ele era notável, mas, sediziam que eu parecia com a minhamãe, sabia que queriam dizerbonito. De Jenny, as pessoasdiziam: “Ela vai despedaçar algunscorações”; “Ela terá homensbrigando por ela”. Usavam a

linguagem de luta e conflito. Masnão com minha mãe. Sua beleza erauma coisa suave, maternal,provedora, para ser comentada nãocom a prudência que a aparência deJenny inspirava, mas comcordialidade e admiração.

Claro que não conheci a mãe deJenny, Caroline Scott, mas haviaformado uma opinião a seu respeito:que ela era uma “Jenny”, e que meupai fora cativado pela sua aparência,assim como os pretendentes deJenny eram cativados pela dela.

Minha mãe, porém, eu imaginava

que fosse, de modo geral, umaespécie de pessoa inteiramentediferente. Ela era a velha e simplesTessa Stephenson-Oakley, quandoconheceu meu pai. Era isso que, emtodo caso, ela sempre disse: “avelha e simples Tessa Stephenson-Oakley”, o que não parecia nadasimples para mim, mas não importa.Meu pai havia se mudado paraLondres, chegando sozinho, semcriadagem, mas com uma bolsagrande o bastante para compraruma. Depois que ele alugara umacasa em Londres de um rico

proprietário de terras, a filha dele seofereceu para ajudar meu pai aencontrar uma acomodaçãopermanente, como tambémempregar uma criadagem paraadministrá-la. A filha, é claro, era“a velha e simples TessaStephenson-Oakley”.

Ela fizera tudo, menos insinuarque a família não estava feliz com aligação; aliás, nunca vimos o ladodela da família. Dedicava asenergias a nós e, até aquela noiteterrível, a pessoa que havia tido suaindivisível atenção, seu infinito

afeto, seu amor incondicional, tinhasido eu.

Mas, na última vez em que a vi,não havia sinal dessa pessoa.Quando me lembro agora do últimoencontro com minha mãe, melembro da desconfiança em seusolhos e me dou conta de que eradesprezo. Quando matei o homemque estava prestes a matá-la, mudeisob os olhos dela. Não era mais omenino que se sentara em seu colo.

Eu era um assassino.

20 de junho de 1747

A caminho de Londres, reli umantigo diário. Por quê? Alguminstinto, talvez. Algumaborrecimento subconsciente... umadúvida, suponho.

O que quer que fosse, quando relia anotação de 10 de dezembro de1735, de repente eu soubeexatamente o que deveria fazerquando chegasse à Inglaterra.

2 e 3 de julho de 1747

Hoje foi a cerimônia religiosa, etambém... Bom, deixe eu explicar.

Após a cerimônia, deixeiReginald conversando com o Sr.Simpkin nos degraus da capela. Amim, o Sr. Simpkin disse que tinhaalguns papéis para eu assinar. Tendoem vista a morte da minha mãe, asfinanças eram de minharesponsabilidade. Com um sorrisoobsequioso, disse que esperava que

eu o considerasse mais do quesatisfatório por ter cuidado dosnegócios até então. Assenti, sorri,não revelei qualquercomprometimento, disse aos doisque precisava de um tempo paramim mesmo e saí, aparentementepara estar sozinho com meuspensamentos.

Esperava que a direção da minhaandança parecesse aleatória, aoseguir caminho ao longo da via,mantendo-me distante das rodas decarruagens que espirravam lama eesterco na estrada, costurando entre

as pessoas que apinhavam as ruas:comerciantes com aventais de courosujos de sangue, putas e lavadeiras.Mas não era aleatória. Não era demodo algum aleatória.

Uma mulher em particular estavamais adiante, assim como eu,seguindo caminho por meio dasmultidões, sozinha e,provavelmente, perdida empensamentos. Eu a vira nacerimônia, claro. Estava sentadacom outras criadas — Emily e duasou três outras que não reconheci —do outro lado da capela, com um

lenço sobre o nariz. Tinha erguidoos olhos e me visto — deve ter feitoisso —, mas não fez sinal. Fiqueiimaginando, será que Betty, minhaantiga babá, ao menos mereconheceu?

E agora eu a seguia, mantendouma distância discreta, mais atrás,para que não me visse se, por acaso,olhasse para trás. Estavaescurecendo quando ela chegou emcasa, não em sua casa, mas ondeagora trabalhava, uma mansãoimponente que assomava no céu decarvão, não muito diferente daquela

na Queen Anne’s Square. Fiqueiimaginando se ainda trabalhavacomo babá ou se subira na vida.Usava uniforme de governantadebaixo do casaco? A rua estavamenos apinhada do que antes, e medeixei ficar fora de vista, do outrolado da rua, observando-a, enquantoela descia um curto lance dedegraus em direção aos aposentosdebaixo da escada e entrava.

Quando ela estava fora de vista,atravessei a estrada e saí como sepasseasse em direção à casa, cienteda necessidade de não chamar

atenção caso houvesse olhos meobservando de janelas. Houve umaépoca, quando menino, que euespiava das janelas da casa naQueen Anne’s Square, vigiava ostranseuntes irem e virem e ficavaimaginando quais eram suasocupações. Haveria um meninonaquela casa me olhando agora,imaginando quem era aquelehomem? De onde tinha vindo?Aonde estava indo?

Por isso, caminhei ao longo dogradeado diante da mansão e olheiabaixo para ver as janelas acesas do

que eu supunha que eram osaposentos dos criados,simplesmente para serrecompensado com a inconfundívelsilhueta de Betty surgindo no vidroe puxando uma cortina. Eu tinhaobtido a informação que vierabuscar.

Voltei, após a meia-noite, quandoas cortinas das janelas da mansãoestavam fechadas, a rua estavaescura e as únicas luzes eramaquelas presas nas ocasionaiscarruagens que passavam.

Mais uma vez, segui para a frente

da casa e, com um rápido olhar paraa esquerda e a direita, escalei ogradeado e caí silenciosamente nasarjeta do outro lado. Percorriarapidamente e então encontrei ajanela de Betty, onde parei e, muitocuidadosamente, colei o ouvido novidro, escutando por algunsmomentos, até ficar satisfeito pornão haver movimento no interior.

Logo, com paciência infinita,pressionei as pontas dos dedos naparte de baixo da janela corrediça ea ergui, rezando para que nãorangesse, e, quando minhas preces

foram atendidas, entrei e fechei ajanela em seguida.

Na cama, ela se agitouligeiramente — talvez por causa dovento que vinha da janela aberta;uma sensação inconsciente daminha presença? Como uma estátua,fiquei imóvel e esperei que suarespiração se normalizasse, e senti oar à minha volta se acomodar,minha incursão absorvida peloquarto, de modo que, após algunsmomentos, era como se eu fizesseparte dele — como se sempretivesse sido parte dele, como um

fantasma.Então puxei a espada.Era apropriado — irônico, talvez

— que se tratasse da espada que mefora dada pelo meu pai. Naquelaépoca, raramente ia a qualquer lugarsem ela. Anos atrás, Reginald meperguntou quando eu esperava queela provasse sangue, e provara, éclaro, várias vezes. E, se euestivesse certo sobre Betty, entãoprovaria novamente.

Sentei-me na cama e coloquei alâmina da espada perto de suagarganta, em seguida, tapei sua boca

com a mão.Betty acordou. Imediatamente,

seus olhos se arregalaram de terror.Sua boca se mexeu e minha palmasentiu cócegas e vibrou quando elatentou gritar.

Contive a agitação de seu corpo enão disse nada, apenas permiti queseus olhos se ajustassem até quepudessem me enxergar, e ela deveter me reconhecido. Como nãopoderia se cuidou de mim por dezanos, se foi uma mãe para mim?Como não poderia não terreconhecido o Sr. Haytham?

Quando ela parou de se contorcer,com a mão ainda sobre sua boca,sussurrei: — Olá, Betty. Tenho umacoisa que preciso lhe perguntar.Para responder, você terá de falar.Para falar, terei de tirar a mão desua boca, e você pode ficar tentada agritar, mas, se gritar... — pressioneia ponta da espada em sua gargantapara frisar o que eu dizia. Então,bem devagar, levantei a mão de suaboca.

Seus olhos estavam frios, comogranito. Por um momento, me sentivoltar à infância e quase fiquei

intimidado pelo fogo e fúria quehavia ali, como se a visão delesdesencadeasse uma lembrança delevar uma repreensão à qual nãopude evitar ser suscetível.

— Eu deveria lhe dar umaspalmadas, Sr. Haytham — sibilou.— Como ousa entrarsorrateiramente no quarto de umasenhora adormecida? Eu não lheensinei nada? Edith não lhe ensinounada? Sua mãe? — Sua vozaumentava. — Seu pai não lheensinou nada?

Aquela sensação infantil

permanecia comigo, e tive de buscardentro de mim mesmo umadeterminação, lutando contra umimpulso, simplesmente afastando aespada e dizendo: — Desculpe, babáBetty, prometo nunca mais fazerisso, e que, de agora em diante,serei um bom menino.

O pensamento em meu pai medeu a tal determinação.

— É verdade que um dia você foiuma mãe para mim, Betty. Éverdade que o que estou fazendo éuma coisa terrível, imperdoável.Acredite, não me sinto contente por

estar aqui. Mas o que você feztambém é terrível e imperdoável.

Seus olhos se estreitaram.— O que quer dizer?Com a outra mão, alcancei o

interior da sobrecasaca e tirei umpedaço de papel dobrado, queestendi para que ela o visse na quaseescuridão do quarto.

— Lembra-se de Laura, aajudante de cozinha?

Cautelosamente, ela fez que sim.— Ela me enviou uma carta —

prossegui. — Uma carta em que mecontou toda a sua relação com

Digweed. Por quanto tempo omordomo do meu pai foi seuamante, Betty?

Não havia tal carta; o pedaço depapel que eu segurava continha nadamais revelador do que meualojamento para a noite e contavacom a luz fraca para enganá-la. Averdade era que, quando reli meusvelhos diários, fui levado de voltaàquele momento, muitos e muitosanos atrás, quando eu tinha idoprocurar Betty. Ela tinha dado seupequeno “cochilo até mais tarde”naquela manhã fria e, quando olhei

pelo buraco da fechadura, eu viraum par de botas em seu quarto. Naocasião, não me dera conta porqueera jovem demais. Eu os vira comos olhos de um menino de 9 anos enão pensei nada sobre eles. Não naocasião. Nem desde então.

Não até a releitura, quando, comouma piada que de repente faziasentido, eu entendi: as botas eramdo seu amante. Claro que eram. Doque eu menos tinha certeza era se oamante dela era Digweed. Lembro-me de que costumava falar dele comgrande afeição, mas, por outro lado,

todos costumavam; ele haviaenganado a todos nós. Mas, quandoparti para a Europa, aos cuidados deReginald, Digweed conseguira outroemprego para Betty.

Mesmo assim, o fato de seremamantes era um palpite — umpalpite bem pensado, cultivado masarriscado, com terríveisconsequências, se eu estivesseerrado.

— Lembra-se daquele dia em quedormiu até mais tarde, Betty? —perguntei. — Um pequeno “cochiloaté mais tarde”, você se lembra?

Ela assentiu cautelosamente.— Eu fui à sua procura —

prossegui. — Eu estava com frio,sabe. E, no corredor do lado de forado seu quarto... Bem, não gosto deadmitir isso, mas me ajoelhei eolhei pelo buraco da fechadura.

Sentime corar ligeiramente,apesar de tudo. Ela esteve meencarando malignamente, mas agoraseus olhos estavam firmes e oslábios torcidos de forma rabugenta,quase como se aquela antigaintromissão fosse tão ruim quanto aatual.

— Eu não vi nada — esclarecirapidamente. — Nada, além devocê, dormindo na cama, e tambémum par de botas de homem, quereconheci como as de Digweed.Você estava tendo um caso com ele,não?

— Ah, Sr. Haytham — sussurrou,balançando a cabeça e com os olhosentristecidos —, o que você setornou? Em que espécie de homemaquele tal de Birch transformouvocê? Colocar uma faca na gargantade uma senhora com idade avançadacomo eu já é ruim demais... Ora,

isso é péssimo. Mas olhe para vocêagora, distribuindo dor e mais dor,acusando-me de ter tido um caso, deser destruidora de lar. Não foi umcaso. O Sr. Digweed tinha filhos, éverdade, que eram cuidados pela suairmã em Herefordshire, mas amulher dele morreu muitos anosantes mesmo de ele ir trabalhar nacasa. O nosso não foi um caso comoestá pensando com sua mente suja.Estávamos apaixonados, eenvergonhe-se, se está pensando ocontrário. Envergonhe-se. —Balançou a cabeça novamente.

Sentindo minha mão a apertar ocabo da espada, fechei bem osolhos.

— Não, não, não sou eu quemdeve se sentir culpado de algumacoisa aqui. Pode tentar serpresunçosa comigo o quanto quiser,mas o fato era que tinha algum tipode relacionamento, qualquer queseja o tipo... não importa de quetipo, com Digweed, e ele nos traiu.Sem essa traição, meu pai estariavivo. Minha mãe estaria viva, e eunão estaria sentado aqui com umafaca na sua garganta, portanto não

me culpe por sua situação nomomento, Betty. Culpe a ele.

Ela inspirou fundo e se recompôs.— Ele não teve escolha — disse

ela, finalmente. — Jack não teve.Ah, a propósito, era esse o nomedele: Jack. Você sabia disso?

— Eu vou ler o nome do traidorna sepultura dele — sibilei —, esaber disso não faz a mínimadiferença porque ele teve, sim, umaescolha, Betty. Se era uma escolhaentre a cruz e a espada, não meimporta. Ele teve uma escolha.

— Não... o homem ameaçou os

filhos de Jack.— “Homem”? Que homem?— Não sei. Um homem que falou

primeiro com Jack na cidade.— Você o viu?— Não.— O que Digweed disse dele? Era

da região sudoeste do país?— Sim, Jack disse que ele tinha

sotaque. Por quê?— Quando os homens

sequestraram Jenny, ela deu umgrito de traidor. Violet, da casavizinha, ouviu-a, mas no diaseguinte um homem com sotaque da

região sudoeste veio falar com ela...para alertá-la para não contar aninguém o que tinha ouvido.

Região sudoeste. Bettyempalidecera, eu vi.

— O que foi? — vociferei. — Oque foi que eu disse?

— Foi Violet, senhor — arfou. —Não muito tempo após sua partidapara a Europa... pode ter sido até nodia seguinte... ela foi morta em umassalto de rua.

— Eles cumpriram sua palavra —comentei. — Olhei para ela. —Fale-me sobre o homem que deu

ordens a Digweed — pedi.— Não sei de nada. Jack nunca

falou sobre ele. Só que falava sério;se Jack não fizesse o quemandassem, iriam atrás dos filhosdele e os matariam. Disseram que,se contasse ao patrão, eles iriamatrás dos seus meninos, oscortariam e matariam lentamente,tudo isso. Contaram para ele o quepretendiam fazer com a casa, masjuro pela minha vida, Sr. Haytham,que disseram que ninguém iria seferir; que aconteceria tarde da noite.

Algo me ocorreu.

— Por que precisaram dele?Ela pareceu perplexa.— Ele nem estava lá na noite do

ataque — continuei. — Não eraporque precisassem de ajuda paraentrar. Eles pegaram Jenny,mataram meu pai. Por queprecisaram de Digweed para isso?

— Não sei, Sr. Haytham — disseela. — Realmente não sei.

Quando olhei abaixo para ela, foicom uma espécie de dormência.Antes, quando estava esperando quea escuridão caísse, a raiva estiverafervilhando, borbulhando dentro de

mim, a ideia da traição de Digweedacendendo uma fogueira debaixo daminha fúria, a ideia de que Bettyhavia conspirado, ou mesmosoubesse, acrescentandocombustível a ela.

Eu queria que ela fosse inocente.Mais do que tudo, queria que seunamoro fosse com outro membro dacriadagem. Mas, se fosse comDigweed, então eu queria que elanada soubesse de sua traição. Queriaque ela fosse inocente, pois, se fosseculpada, teria de matá-la, pois, sepodia ter feito alguma coisa para

deter a matança daquela noite e nãoo fez, então teria de morrer. Issoera... isso era justiça. Tratava-se decausa e efeito. Débito e saldo. Olhopor olho. E algo no qual euacreditava. Aquela era minhaideologia. Um meio de negociaruma passagem pela vida que fazsentido mesmo quando a própriavida raramente faz. Um meio deimpor ordem no caos.

Mas a última coisa que eu queriaera matá-la.

— Onde ele está agora? —perguntei suavemente.

— Não sei, Sr. Haytham. — Suavoz tremeu de medo. — A últimavez que ouvi falar nele foi na manhãem que desapareceu.

— Quem mais sabia que vocêseram amantes?

— Ninguém — retrucou. —Sempre fomos muito cuidadosos.

— Sem contar com deixar botas àvista.

— Elas eram tiradasbruscamente. — Seu olharendureceu. — E a maioria daspessoas não tem o hábito debisbilhotar pelo buraco da

fechadura.Seguiu-se uma pausa.— O que acontece agora, Sr.

Haytham — perguntou com umahesitação na voz.

— Deveria matá-la, Betty — faleisimplesmente, e, olhando em seusolhos, vi surgir nela a compreensãode que poderia fazê-lo, se quisesse;que era capaz de fazê-lo.

Ela choramingou.Levantei-me.— Mas não vou matá-la. Já houve

muitas mortes como resultadodaquela noite. Não voltaremos a nos

encontrar. Pelos seus anos deserviço e de criação, eu lhe dou suavida como recompensa e lhe deixocom sua vergonha. Adeus.

14 de julho de 1747

i

Após negligenciar meu diário porquase duas semanas, tenho muitopara contar e preciso recapitular,voltando direto para a noite em quevisitei Betty.

Após deixá-la, voltei para oalojamento, dormi por algumashoras intermitentes, então acordei,me vesti e peguei uma carruagem devolta até sua casa. Ali, pedi aocondutor que parasse a certa

distância, perto o bastante para queeu visse, mas não perto o bastantepara levantar suspeitas, e, enquantoele tirava uma soneca, agradecidopelo descanso, fiquei sentadoolhando pela janela e esperando.

O quê? Não sabia ao certo. Mas,outra vez, ouvia meus instintos.

E, outra vez, ele se reveloucorreto, pois, não muito após raiar odia, Betty apareceu.

Dispensei o condutor, a segui a pée, realmente, ela seguiu para o postodos Correios em Lombard Street,entrou, reapareceu alguns minutos

depois, então voltou ao longo da ruaaté ser engolida pela multidão.

Observei-a ir embora, sem nadasentir, nem a ânsia de segui-la ecortar sua garganta pela traição nemmesmo os vestígios do afeto que umdia tivemos. Simplesmente... nada.

Em vez disso, me posicionei emum vão de porta e observei o mundopassar, afastando mendigos evendedores de rua com leves golpesda minha bengala, enquanto espereipor talvez uma hora, até...

Sim, lá estava ele — o carteiro,carregando seu sino e a bolsa

repleta de cartas. Saí da porta e,girando a bengala, fui atrás,chegando cada vez mais perto, atéele entrar em uma via lateral ondehavia menos pedestres, e percebique era a minha chance...

Momentos depois, eu estavaajoelhado ao lado de seu corposangrando e inconsciente, em umbeco, vasculhando o interior de suabolsa de cartas, e o encontrei — umenvelope endereçado a “JackDigweed”. Li o que ela escreveu —dizia que ela o amava e que eu haviadescoberto o relacionamento deles;

nada ali que eu já não soubesse —,mas não era o conteúdo da carta queme interessava, e sim o seu destino,e ali estava ele, na frente doenvelope, indicando que ficava naFloresta Negra, em uma cidadezinhachamada St. Peter, não muito longede Freiburg.

Quase duas semanas de viagemdepois, Reginald e eu vimos St.Peter à distância, um agrupamentode edificações aninhadas no fundode um vale normalmente viçoso,com campos verdejantes e áreascom floresta. Isso foi esta manhã.

ii

Chegamos lá por volta do meio-dia,sujos e cansados da viagem.Trotando lentamente pelas ruasestreitas, labirínticas, vi os rostosvirados dos habitantes, olhando derelance dos caminhos, ou afastando-se rapidamente das janelas,fechando portas e puxando cortinas.Tínhamos morte em nossas mentese, na ocasião, achei que eles dealguma forma sabiam disso, outalvez se apavorassem facilmente. Oque não sabia era que não éramos os

primeiros estranhos a entrarcavalgando na cidade naquelamanhã. Os habitantes já estavamapavorados.

A carta fora endereçada aoscuidados do armazém geral de St.Peter. Chegamos a uma pracinha,com uma fonte sombreada porcastanheiras, e pedimosinformações para uma nervosahabitante. Outros conservaram-se àdistância, enquanto ela apontava ocaminho e depois saía furtivamente,olhando para os sapatos. Momentosdepois, estávamos amarrando

nossos cavalos do lado de fora doarmazém e, ao entrarmos, o únicofreguês olhou-nos e decidiu fazer ascompras em outra ocasião. Reginalde eu trocamos um olhar confuso,então observei a loja. Altas estantesde madeira revestiam três lados,carregadas com jarras e pacotesamarrados com barbante, enquanto,ao fundo, havia um balcão atrás doqual estava o lojista, usandoavental, um largo bigode e umsorriso que havia se apagado comouma vela gasta, ao dar uma boaolhada em nós.

À minha esquerda, havia umconjunto de degraus usados para sealcançar as prateleiras mais altas.Sobre eles estava sentado ummenino, com cerca de 10 anos, pelaaparência, filho do lojista. Ele quaseperdeu o equilíbrio, na afobaçãopara sair apressadamente dosdegraus, e parou no meio dopavimento, com as mãos soltas,esperando suas ordens.

— Boa tarde, cavalheiros — disseo lojista em alemão. — Parece queandaram cavalgando por um longotempo. Precisam de suprimentos

para continuar a viagem? — Indicouum recipiente com torneira sobre obalcão diante dele. — Talvezprecisem se refrescar. Uma bebida?

Em seguida, acenou para omenino.

— Christophe, esqueceu os bonsmodos? Tire os casacos doscavalheiros...

Havia três banquinhos diante dobalcão e o lojista gesticulou emdireção a eles, pedindo: — Porfavor, por favor, sentem-se.

Olhei novamente para Reginald,percebi que estava para se adiantar e

aceitar a oferta de hospitalidade, e odetive.

— Não, obrigado — falei para olojista. — Meu amigo e eu nãopretendemos ficar. — Com o cantodo olho, vi os ombros de Reginaldarquearem, mas ele nada disse. —Só precisamos de uma informaçãosua — acrescentei.

Uma expressão cautelosa caiusobre o rosto do lojista como umacortina escura.

— Sim? — perguntou ele,desconfiado.

— Precisamos encontrar um

homem. Seu nome é Digweed. JackDigweed. Você o conhece?

Ele balançou a cabeça.— Não o conhece mesmo? —

pressionei.Novamente, a cabeça balançando.— Haytham... — disse Reginald,

como se pudesse ler minha mentepor causa do meu tom de voz.

Ignorei-o.— Tem toda a certeza disso? —

insisti.— Tenho, sim, senhor —

respondeu o lojista. Seu bigodetremeu nervosamente. Ele engoliu

em seco.Senti meu maxilar endurecer;

então, antes que alguém tivessechance de reagir, saquei a espada e,estendendo o braço, encaixei alâmina debaixo do queixo deChristophe. O menino arfou,ergueu-se na ponta dos pés, e seusolhos se agitaram quando a lâminapressionou sua garganta. Eu nãohavia tirado os olhos do lojista.

— Haytham... — dissenovamente Reginald.

— Deixe-me cuidar disso, porfavor, Reginald — pedi, e me dirigi

ao lojista: — As cartas de Digweedsão enviadas aos cuidados desteendereço — afirmei. — Deixe-meperguntar novamente. Onde estáele?

— Senhor — implorou o lojista.Seus olhos dispararam de mim paraChristophe, que fazia uma série deruídos baixinhos, como se estivessetendo dificuldade de engolir. — Porfavor, não machuque meu filho.

Seu apelo passou despercebido.— Onde está ele? — repeti.— Senhor — pediu o dono. Suas

mãos imploravam. — Não posso

dizer.Com um leve movimento do

punho, aumentei a pressão dalâmina sobre a garganta deChristophe e fui recompensado comuma lamúria. Com o canto do olho,vi o menino se erguer ainda mais naponta dos pés e senti, mas não vi, odesconforto de Reginald do meuoutro lado. O tempo todo, meusolhos não deixaram os do lojista.

— Por favor, por favor, senhor —disse ele rapidamente, as mãossuplicantes se agitando no ar comose ele tentasse fazer malabarismo

com um vidro invisível — Nãoposso dizer. Fui alertado a não fazê-lo.

— Ahá — reagi. — Quem alertouvocê? Foi ele? Foi Digweed?

— Não, senhor — insistiu olojista —, não vejo o Sr. Digweedhá semanas. Houve... alguém mais,mas não posso dizer... não possodizer quem. Esses homens, elesfalaram sério.

— Mas acho que nós sabemosque eu também falo sério —afirmei, com um sorriso —, e adiferença entre nós é que estou aqui

e eles não. Agora, diga-me. Quantoshomens eram, quem eram e o quequeriam saber?

Seus olhos foram de mim paraChristophe, o qual, apesar de bravoe estoico e demonstrando um tipode firmeza sob pressão que euesperaria do meu próprio filho,mesmo assim, choramingounovamente, o que deve ter feito olojista mudar de ideia, pois seubigode tremeu um pouco mais,então ele falou, rapidamente, aspalavras saindo aos trambolhões.

— Eles estiveram aqui, senhor —

revelou. — Mais ou menos umahora atrás. Dois homens comcasacos compridos pretos sobretúnicas vermelhas do exércitobritânico, que entraram na lojaexatamente como os senhores eperguntaram sobre o paradeiro doSr. Digweed. Quando disse, semmesmo me preocupar, eles setornaram ameaçadores, senhor, e medisseram que mais alguns homenstalvez viessem à procura do Sr.Digweed, e, se viessem, eu deverianegar que o conhecia, sob pena demorrer, e não revelar que estiveram

aqui.— Onde está ele?— Em uma cabana, uns 25

quilômetros ao norte daqui, nomato.

Nem Reginald nem eu dissemosuma palavra. Ambos sabíamos quenão tínhamos um minuto a perder e,sem parar para fazer mais ameaças,ou para nos despedir, ou talvez atémesmo para nos desculpar comChristophe por deixá-lo morrer demedo, partimos porta afora,desamarramos e montamos emnossos corcéis, e os esporeamos aos

gritos.Cavalgamos o mais

energicamente que ousamos porcerca de meia hora, até termospercorrido cerca de 12 quilômetrosde pasto, o tempo todo morroacima, os nossos cavaloscomeçando a ficar cansados.Chegamos a uma fileira de árvores,e descobrimos que se tratava de umestreito segmento de pinheiros e, aochegar do outro lado, vimos umafaixa de árvores se estendendo emvolta do cume de um morro deambos os lados. Enquanto isso, à

nossa frente, o solo se inclinavapara mais mata, à distância,ondulando como um imensocobertor verde, manchado de maisplantações, prados e campos.

Descemos dos cavalos e peguei aluneta. Nossos cavalosresfolegaram, e vasculhei a área ànossa frente, deslizando a luneta daesquerda para a direita, loucamentea princípio, com a urgência levandoa melhor sobre mim, o pânicotornando-me indiscriminado. Nofinal das contas, precisei me forçara ficar calmo, inspirando fundo

várias vezes e controlandofortemente os olhos, e começandonovamente, dessa vezmovimentando a luneta lenta emetodicamente pela paisagem. Naminha cabeça, dividi o território emuma grade e fui de um quadrado aoutro, voltando a ser sistemático eeficiente, voltando a deixar a lógicase encarregar e não a emoção.

O silêncio de uma brisa leve ecantos de pássaros foi quebrado porReginald.

— Você teria feito?— Feito o quê, Reginald?

Ele se referia a matar umacriança.

— Matar o menino. Você teriafeito isso?

— Há pouco sentido em se fazeruma ameaça, se não vai cumpri-la.O lojista saberia, se eu estivessefingindo. Teria visto em meusolhos. Teria descoberto.

Reginald mudoudesconfortavelmente de posição emsua sela.

— Quer dizer, então, que sim?Sim, você o teria matado?

— Exatamente, Reginald, eu o

teria matado.Houve uma pausa. Completei o

quadrado seguinte de terra, então opróximo.

— Quando a morte de inocentesfez parte de seus ensinamentos,Haytham? — indagou ele.

Bufei.— Só porque me ensinou a matar,

Reginald, isso não lhe dá a palavrafinal sobre quem mato e com quefinalidade.

— Eu lhe ensinei honra. Eu lheensinei um código.

— Lembro a você, Reginald, a

distribuição de sua própria justiçafora da White, todos esses anos.Aquilo foi honrado?

Ele corou ligeiramente?Certamente mexeu-sedesconfortavelmente sobre o cavalo.

— O homem era um ladrão —justificou-se.

— Os homens que procuro sãoassassinos, Reginald.

— Ainda assim — rebateu, comum toque de irritação —, talvez oseu zelo esteja obscurecendo seujuízo.

Novamente, bufei com desdém.

— Isso vindo logo de você. Seufascínio por Aqueles Que VieramAntes está rigorosamente dentro dapolítica templária?

— Claro.— É mesmo? Tem certeza de que

não andou negligenciando seusoutros deveres em favor disso? Temescrito cartas e redigido um diário elido ultimamente, Reginald?

— Muito — disse ele, indignado.— Que não estivessem

relacionados Àqueles Que VieramAntes — acrescentei.

Por um momento, ele vociferou,

parecendo um homem gordo de caravermelha a quem tivessem dado acarne errada em um jantar.

— Eu estou aqui agora, nãoestou?

— Com certeza, Reginald —concordei, justamente quandoavistei uma nuvem de fumaça sairdo meio da mata. — Vejo fumaçasobre as árvores, possivelmente deuma cabana. Devemos seguir paralá.

Ao mesmo tempo, houve ummovimento não muito distante, emuma plantação de abetos, e vi um

cavaleiro subindo à distância omorro mais adiante do nosso.

— Olhe, Reginald, ali. Estávendo?

Ajustei o foco. O cavaleiro estavade costas para nós, é claro, e longe,mas uma coisa que achei queconsegui ver foram suas orelhas.Tinha certeza de que eram orelhaspontudas.

— Vejo um homem, Haytham,mas onde está o outro? —perguntou Reginald.

Já puxando as rédeas da minhamontaria, falei: — Ainda está na

cabana, Reginald. Vamos.

iii

Passaram-se talvez mais vinteminutos até chegarmos. Vinteminutos durante os quais forceiminha égua ao limite, arriscando-apor entre as árvores e por cima degalhos derrubados pelo vento,deixando Reginald para trásenquanto corria para onde tinhavisto a fumaça — para a cabanaonde, tinha certeza, encontraria

Digweed.Vivo? Morto? Não sabia. Mas o

lojista dissera que foram doishomens que estiveram à suaprocura, e avistamos somente umdeles, portanto estava ansioso parasaber do outro. Teria ido na frente?

Ou ainda estava na cabana?Ali estava ela, localizada no meio

de uma clareira. Uma atarracadaedificação de madeira, um cavaloamarrado do lado de fora, umaúnica janela na frente e colunas defumaça saindo pela chaminé. Aporta da frente estava aberta.

Escancarada. Ao mesmo tempo queeu penetrava rapidamente naclareira, ouvi um grito, esporeei amontaria para a porta e saquei aespada. Com grande alarido,chegamos às tábuas na frente dacasa e, da minha sela, estiquei opescoço para ver a cena lá dentro.

Digweed estava amarrado a umacadeira, com os ombros caídos, acabeça pendendo. O rosto era umamáscara de sangue, mas podia verque seus lábios se mexiam. Estavavivo e, à sua frente, estava osegundo homem, segurando uma

faca suja de sangue — uma facacom lâmina curva e serrilhada — eprestes a terminar o serviço. Prestesa cortar a garganta de Digweed.

Eu nunca tinha usado minhaespada como lança e, acredite emmim, esse está longe do uso idealpara uma delas, mas, naquele exatomomento, minha prioridade eramanter Digweed vivo. Eu precisavafalar com ele e, além do mais,ninguém o mataria a não ser eu.Então a lancei. Era tudo que tinhatempo para fazer. E, embora meulançamento tivesse tão pouca força

quanto pontaria, ela atingiu o braçodo esfaqueador no momento exatoem que a lâmina baixou, e foi obastante — o bastante para enviá-locambaleando para trás com um uivode dor, enquanto eu me jogava parafora da montaria e pousava noassoalho interno da cabana, rolavaadiante e, ao mesmo tempo,arrancava a minha espada curta.

E isso fora o suficiente parasalvar Digweed.

Fiquei bem ao lado dele. Umacorda manchada de sanguemantinha seus braços e pernas

amarrados à cadeira. As roupasestavam rasgadas e pretas desangue; o rosto, inchado esangrando. Os lábios continuavamse mexendo. Os olhos deslizarampreguiçosamente acima para mever, e fiquei imaginando o que elepensou naquele breve momento emque me viu. Teria me reconhecido?Teria sentido uma pontada de culpaou um lampejo de esperança?

Então meus olhos foram para ajanela dos fundos, apenas para veras pernas do esfaqueadordesaparecerem por ela, ao se

espremer para fora e cair com umbaque surdo no chão. Segui-loatravés da janela me deixaria emuma posição vulnerável — nãoestava disposto a ficar preso naarmação, enquanto o esfaqueadorteria todo o tempo do mundo paraenfiar sua lâmina em mim.Portanto, em vez disso, corri para aporta da frente, dei a volta naclareira e comecei a perseguição.Reginald estava chegando. Eleavistara o esfaqueador, tinha umavisão dele melhor do que eu, e jáfazia mira com seu arco.

— Não o mate — berrei,justamente quando ele disparou, egemeu de desagrado quando aflecha se afastou do alvo.

— Maldito seja, eu o tinha namira — gritou. — Ele agora está nomato.

Dei a volta para a frente dacabana a tempo, os pés chutando umtapete de agulhas de pinheiro seco,bem a tempo de ver o esfaqueadordesaparecer no limite das árvores.

— Preciso dele vivo, Reginald —gritei de volta para ele. — Digweedestá na cabana. Mantenha-o em

segurança até eu voltar.E, com isso, corri para as árvores,

com as folhas e os galhoschicoteando meu rosto, enquanto euestrondeava adiante, a espada curtana mão. À minha frente, avistei umaforma escura na folhagem,avançando ruidosamente e com tãopouca graça quanto eu.

Ou, talvez, menos graça, pois eu oestava alcançando.

— Você estava lá? — gritei paraele. — Estava na noite em quemataram meu pai?

— Não tive esse prazer, garoto —

gritou ele de volta sobre o ombro.— Como eu gostaria de ter estado.Mas fiz a minha parte. Fui eu quearranjei tudo.

Claro. Ele tinha sotaque da regiãosudoeste. Agora, quem tinha sidodescrito como tendo sotaque daregião sudoeste? O homem quehavia chantageado Digweed. Ohomem que ameaçara Violet e lhemostrara uma faca medonha.

— Pare e me enfrente — berrei.— Você, que gosta tanto do sangueKenway, vejamos se consegue tiraro meu!

Eu era mais ágil do que ele. Maisveloz, e, agora, estava mais perto.Ouvira o chiado em sua voz, quandogritou para mim, e era apenas umaquestão de tempo até eu pegá-lo.Ele sabia disso, e, em vez de secansar ainda mais, decidiu virar elutar, saltando um último galhoderrubado pelo vento, o que o levoua uma pequena clareira, com ummovimento giratório, a faca curvana mão. A faca curva, serrilhada, deaparência “medonha”. Seu rosto eracinzento e terrivelmenteesburacado, como se marcado por

uma doença infantil. E respiravapesadamente, ao passar as costas damão pela boca. Ele perdera o chapéudurante a perseguição, revelandoum cabelo que se tornava grisalhocortado bem curto, e o casaco —preto, exatamente como o lojistadescrevera — estava rasgado, semovendo aberto, revelando a túnicavermelha da farda.

— Você é um soldado britânico— observei.

— Essa é a farda que visto —escarneceu —, mas minhas aliançasestão em outra parte.

— É mesmo? Então a quem vocêjura lealdade? — indaguei. — Vocêé um Assassino?

Ele balançou a cabeça.— Eu sou livre, garoto. Coisa que

você só consegue sonhar em ser.— Já faz muito tempo que

alguém me chamou de garoto —falei.

— Você pensa que fez seu nome,Haytham Kenway. O matador. Oespadachim Templário. Só porquematou alguns comerciantes gordos?Mas, para mim, você é um garoto. Éum garoto, porque um homem

enfrenta seus alvos, de homem parahomem, não sai furtivo atrás dele nacalada da noite, como uma cobra. —Fez uma pausa. — Como umAssassino.

Começou a jogar a faca de umamão para a outra. O efeito era quasehipnótico — ou, pelo menos, eranisso que eu o deixava acreditar.

— Você acha que não sei lutar?— perguntei.

— Ainda precisa provar.— Aqui é um lugar tão bom

quanto qualquer outro.Ele cuspiu e gesticulou com uma

das mãos para eu avançar e rolou alâmina na outra.

— Venha, Assassino — incitou.— Venha ser um guerreiro pelaprimeira vez. Venha ver como é.Venha, garoto. Seja um homem.

Isso supostamente era para meirritar, mas, em vez disso, me fezme concentrar. Precisava dele vivo.Precisava que confessasse.

Saltei sobre o galho para ointerior da clareira, balançando umpouco desordenadamente paraempurrá-lo para trás, masrecuperando rapidamente a postura,

antes que ele conseguisse pressionarà frente com seu contra-ataque. Poralguns momentos circundamos umao outro, cada um esperando que ooutro lançasse seu próximo ataque.Rompi o impasse investindoadiante, golpeando, em seguidarecuando instantaneamente paraminha guarda.

Por um segundo, ele pensou queeu tivesse errado. Então sentiu osangue começar a escorrer faceabaixo, e levou a mão ao rosto, osolhos se arregalando de surpresa. Oprimeiro sangue foi tirado por mim.

— Você me subestimou —observei.

Seu sorriso dessa vez foi umpouco mais tenso.

— Não haverá uma segunda vez.— Haverá — retruquei e avancei

novamente, fintando em direção àesquerda, em seguida indo para adireita, quando seu corpo já havia secomprometido com a linha dedefesa errada.

Um talho foi aberto no seu braçolivre. O sangue manchou a mangaem farrapos e começou a pingar nochão da floresta, vermelho brilhante

sobre agulhas verdes e marrons.— Sou melhor do que você

imagina — falei. — Tudo o quevocê pode esperar mais adiante émorte... a não ser que confesse. Anão ser que me conte tudo que sabe.Para quem você trabalha?

Dancei adiante e dei um golpe,enquanto sua faca falhavadescontroladamente. Sua outra faceabriu-se. Havia agora duas listrasvermelhas no couro marrom de seurosto.

— Por que meu pai foi morto?Avancei novamente e, dessa vez,

cortei as costas da mão quesegurava a faca. Se esperava quelargasse a faca, então fiqueidecepcionado. Se esperava lhe daruma demonstração de minhashabilidades, foi exatamente o quefiz, e isso se revelou no seu rosto.Seu rosto agora ensanguentado. Elejá não sorria.

Mas ainda havia nele disposiçãopara luta e, quando avançou, foicom velocidade e facilidade, jogoua faca de uma das mãos para aoutra, a fim de me desorientar, equase fez contato. Quase. Talvez até

tivesse conseguido — se já nãotivesse me mostrado aquele truqueem particular; se não tivessediminuído a velocidade por causados ferimentos que eu havia lheinfligido.

Por isso, abaixei-me facilmentesob sua lâmina e golpeei acima,enfiando a minha na lateral de seucorpo. Ele me xingou na hora. Eu oatingira forte demais, e no rim. Eleestava morto. A hemorragia internao mataria em trinta minutos; masele poderia desmaiar no mesmoinstante. Se sabia ou não disso, eu

não sei, pois estava vindonovamente para cima de mim comos dentes à mostra. Estes, notei,agora estavam cobertos de sangue, eme esquivei facilmente, agarrei seubraço, torci-o para o corpo equebrei-o no cotovelo.

O som que ele fez não foi tantoum grito, mas uma aflita inalação e,enquanto eu esmagava os ossos deseu braço, mais por efeito do quepor qualquer objetivo útil, sua facacaiu no chão da floresta com umbaque suave, e ele foi junto,mergulhando de joelhos.

Larguei o braço, que desabou demodo frouxo, um saco de ossosquebrados e pele. Olhando parabaixo, pude ver que o sangue já seesvaíra de seu rosto e, em volta deseu diafragma, espalhava-se umamancha negra. Seu casaco formavauma poça no chão em volta dele.Debilmente, com a mão boa,apalpou o braço solto e mole, e,quando ergueu a vista para mim,havia algo de quase queixoso emseus olhos, algo patético.

— Por que você o matou? —perguntei tranquilamente.

Como água escapando de umcantil rachado, ele se encolheu atéficar deitado de lado. Tudo o quelhe dizia respeito agora era queestava morrendo.

— Diga-me — pressionei, e mecurvei para perto de onde ele agorajazia, com as agulhas de pinheirosgrudando-se ao sangue em seurosto. Ele já dava seus últimossuspiros na palha do chão dafloresta.

— Seu pai... — começou, entãotossiu uma pequena porção desangue, antes de prosseguir. — Seu

pai não era um Templário.— Eu sei — falei asperamente.

— Ele foi morto por isso? — Sentiminha testa franzir. — Ele foimorto por se recusar a entrar para aOrdem?

— Ele era um... um Assassino.— E os Templários o mataram?

Eles o mataram por isso?— Não. Ele foi morto pelo que

possuía.— O quê? — Inclinei-me ainda

mais à frente, desesperado paraescutar suas palavras. — O que elepossuía?

Não houve resposta.— Quem? — perguntei, quase

berrando. — Quem o matou?Mas ele estava ausente. A boca se

abriu, os olhos tremularam e sefecharam, e, por mais que eu oesbofeteasse, ele se recusou arecuperar a consciência.

Um Assassino. Meu pai era umAssassino. Rolei o corpo doesfaqueador, fechei os olhosarregalados e passei a esvaziar seusbolsos para o chão. Saíram ahabitual coleção de moedas, comotambém alguns pedaços

esfarrapados de papel, um dos quaisdesdobrei para descobrir que era umconjunto de documentos dealistamento. Eram de um regimento,da Coldstream Guards, para serexato, um guinéu e meio para sealistar, e mais um xelim por dia. Onome do tesoureiro estava napapelada. Era o tenente-coronelEdward Braddock.

E Braddock estava com seuexército na República Holandesa,lutando contra os franceses.Lembrei-me do homem de orelhaspontudas que, mais cedo, eu vira

partir a cavalo. De repente, soubeaonde ele estava indo.

iv

Virei-me e voltei ruidosamente pelafloresta para a cabana, demorandoapenas momentos. Do lado fora,havia três cavalos pastandopacientemente debaixo da reluzenteluz do sol; dentro, estava escuro efrio, e Reginald se encontravadiante de Digweed, cuja cabeçapendia, enquanto ele continuava

sentado, amarrado à cadeira, epercebi, no momento em que bati osolhos nele...

— Está morto — faleisimplesmente, e olhei paraReginald.

— Tentei salvá-lo Haytham, masa pobre alma já tinha ido embora.

— Como? — pergunteibruscamente.

— De seus ferimentos — rebateuReginald. — Olhe para ele, homem.

O rosto de Digweed era umamáscara de sangue coagulado. Suasroupas estavam endurecidas com

isso. O esfaqueador o fizera sofrer,isso era mais do que certo.

— Ele estava vivo, quando saí.— E estava vivo quando eu

cheguei, maldito seja — esbravejouReginald.

— Pelo menos me diga queconseguiu algo dele.

Sua vista baixou.— Antes de morrer, ele disse que

sentia muito.Com um frustrado golpe da

minha lâmina, atingi um copo sobrea lareira.

— Isso foi tudo? Nada sobre a

noite do ataque? Nenhum motivo?Nenhum nome?

— Malditos sejam seus olhos,Haytham. Malditos sejam seusolhos, você acha que eu o matei?Você acha que percorri todo essecaminho, negligenciei meus outrosdeveres, só para ver Digweedmorto? Eu queria encontrá-lo tantoquanto você. Eu o queria vivo tantoquanto você.

Foi como se eu conseguisse sentirmeu crânio inteiro endurecer.

— Duvido muito disso —vociferei.

— Bem, o que aconteceu com ooutro? — perguntou Reginald devolta.

— Morreu.Reginald adotou um olhar

irônico.— Ah, entendo. E a culpa foi de

quem, exatamente?Ignorei-o.— O assassino, ele conhecia

Braddock.Reginald recuou.— É mesmo?Na clareira, eu tinha enfiado os

papéis no bolso, e agora mostrava-

os em um punhado, como a cabeçade uma couve-flor.

— Aqui... seus documentos dealistamento. Era da ColdstreamGuards, sob o comando deBraddock.

— Não é a mesma coisa,Haytham. Edward tem uma força de1.500 homens, muitos delesalistados no campo. Tenho certezade que cada homem desses tem umpassado condenável e tenho certezade que Edward sabe muito pouco arespeito disso.

— Mesmo assim, uma

coincidência, não acha? O lojistadisse que ambos usavam o uniformedo exército britânico, e meu palpiteé de que o cavaleiro que vimos estáa caminho dele agora. Ele tem... oquê? Uma hora à nossa frente? Nãoficarei muito atrás. Braddock estána República Holandesa, não é? Épara onde está seguindo. De volta aseu general.

— Tome cuidado, Haytham —disse Reginald. O aço insinuou-seem seus olhos e em sua voz. —Edward é meu amigo.

— Jamais gostei dele —

confessei, com um toque depetulância infantil.

— Ora, puxa! — explodiuReginald. — Uma opinião formadapor você, quando menino, porqueEdward não lhe mostrou adeferência à qual estavaacostumado... porque, devoacrescentar, ele estava fazendo omáximo possível para levar osassassinos de seu pai à justiça.Deixe-me lhe dizer uma coisa,Haytham, Edward serve à Ordem, éum criado bom e fiel e sempre temsido.

Virei-me para ele, e esteve naponta da língua, para lhe dizer:“Mas meu pai não era umAssassino?”, quando me detive.Algum... pressentimento ouinstinto... difícil dizer o quê... fezcom que decidisse guardar essainformação para mim mesmo.

Reginald me viu fazer isso... Viuas palavras se acumularem atrás dosmeus dentes e viu até mesmo amentira em meus olhos.

— O criminoso — pressionou —disse mais alguma coisa? Vocêconseguiu arrancar mais alguma

informação dele antes quemorresse?

— Apenas tanto quanto vocêconseguiria arrancar de Digweed —retruquei. Havia um pequeno fogãoem uma extremidade da cabana e,perto dele, um cepo, onde encontreiparte de um pão, que enfiei nobolso.

— O que está fazendo? —perguntou Reginald.

— Conseguindo o máximo deprovisões para a minha cavalgada,Reginald.

Havia também uma tigela com

maçãs. Precisava delas para minhamontaria.

— Pão mofado? Algumas maçãs?Não é o suficiente, Haytham. Pelomenos volte à cidade para pegarsuprimentos.

— Não há tempo, Reginald —aleguei. — E, de qualquer modo, acaçada será curta. Ele está apenasum pouco à frente e não sabe queestá sendo perseguido. Com sorte,poderei alcançá-lo antes de precisarde suprimentos.

— Podemos arranjar comida pelocaminho. Posso ajudá-lo.

Mas o impedi. Eu ia sozinho,disse, e antes que ele pudesseargumentar montei na minha égua ea coloquei na direção em que tinhavisto o homem de orelhas pontudasseguir, com uma grande esperançade conseguir alcançá-lo em breve.

Ela, porém, foi frustrada.Cavalguei arduamente, mas, nofinal, a escuridão baixou; tornara-semuito perigoso continuar e euarriscava machucar minha montaria.Em todo o caso, ela estava exaustae, com relutância, decidi parar edeixar que descansasse por algumas

horas.E, ao me sentar aqui, para

escrever, me pergunto por quemotivo, após todos esses anos emque Reginald foi como um pai paramim, mentor, tutor e guia, decidicavalgar sozinho? E por que oculteidele o que havia descoberto sobremeu pai?

Eu mudei? Ele mudou? Ou aquelevínculo que antes nos uniu mudou?

A temperatura caiu. Minha égua— e me parece apenas correto queeu lhe desse um nome e, assim, emhomenagem à maneira como

começava a esfregar o focinho emmim quando queria uma maçã, dei-lhe o nome de Scratch — estava aliperto, com os olhos fechados, eparecia contente, e eu escrevia meudiário.

Pensei sobre o que Reginald e eufalamos. Fiquei imaginando se eletinha razão em questionar o homemque eu me tornara.

15 de julho de 1747

Acordei de manhã cedo, assim queclareou, apaguei as brasas fracas daminha fogueira e montei emScratch.

A caçada continuou. Enquantocavalgava, meditava sobre aspossibilidades. Por que OrelhasPontudas e o esfaqueador sesepararam? Teriam a intenção deviajar à República Holandesa e sejuntar a Braddock? Orelhas

Pontudas estaria esperando que ocolega o alcançasse?

Não tinha como saber. Podiaapenas esperar que, qualquer quefosse o plano deles, o homem que iaà minha frente não fazia ideia deque eu o perseguia.

Mas, se não sabia — e comopoderia saber? —, por que eu não oalcançava?

E eu cavalgava depressa masconstantemente, ciente de quechegar a ele depressa demais seriatão desastroso quanto não alcançá-lo.

Após uns 45 minutos, cheguei aum lugar onde ele havia descansado.Se tivesse forçado Scratch umpouco mais, eu o teria perturbado, oapanhado de surpresa? Ajoelhei-mepara sentir o esmaecido calor de suafogueira. À esquerda, Scratchfarejou algo no chão, um pedaço desalsicha jogado fora, e meuestômago roncou. Reginald estavacerto. Minha presa estava muitomais equipada para a viagem do queeu, com minha metade de um pão emaçãs. Amaldiçoei a mim mesmopor não ter vasculhado os alforjes

de seu companheiro.— Vamos, Scratch — chamei. —

Vamos lá, menina.Cavalguei o restante do dia, e a

única vez que diminuí a velocidadefoi quando tirei a luneta do bolso eobservei o horizonte à procura desinais da caça. Ele continuava àminha frente. Frustrantemente àminha frente. O dia todo. Até que,quando a luz começou a esmorecer,passei a me preocupar que o tivesseperdido completamente. Minhaúnica esperança era estar certoquanto ao seu destino.

No fim, não tive escolha, a nãoser descansar de novo e encerrar odia, montar acampamento, fazeruma fogueira, deixar que Scratchdescansasse e rezar para que nãotivesse perdido o rastro.

E, ao me sentar ali, fiqueiimaginando, por que não conseguialcançá-lo?

16 de julho de 1747

i

Quando acordei esta manhã, tive umlampejo de inspiração. Claro.Orelhas Pontudas era do exército deBraddock, que tinha se juntado àsforças comandadas pelo príncipe deOrange, na República Holandesa,onde Orelhas Pontudas deveriaestar. O motivo de sua pressa eraporque...

Porque ele se ausentara e estavacorrendo para voltar, provavelmente

antes que sua ausência fossedescoberta.

O que significava que suapresença na Floresta Negra não forasancionada oficialmente. O quesignificava que Braddock, como seutenente-coronel, não sabia disso. Ouprovavelmente não sabia.

Sinto muito, Scratch. Mais umavez, fiz com que ela cavalgassearduamente — seria seu terceiro diasucessivo — e notei o cansaço nela,a fadiga que diminuía a velocidade.Mesmo assim, passou-se apenascerca de meia hora até chegarmos

ao resto do acampamento deOrelhas Pontudas e, dessa vez, emvez de parar para examinar ascinzas, incitei Scratch, e só deixeique descansasse no topo do morroseguinte, onde paramos. Apanhei aluneta e observei a área à nossafrente, quadro a quadro, centímetroa centímetro — até avistá-lo. Aliestava ele, uma pequenina manchacavalgando acima o morro diante denós, engolido por um ajuntamentode árvores enquanto eu observava.

Onde estávamos? Não sabia se játínhamos ou não passado a fronteira

e entrado na República Holandesa.Havia dois dias que eu não via outrapessoa, só ouvira o som de Scratch eo da minha própria respiração.

Isso logo mudaria. EsporeeiScratch e, vinte minutos depois,entrava no mesmo arvoredo no qualminha caça havia desaparecido. Aprimeira coisa que vi foi umacarroça abandonada. Perto, commoscas rastejando sobre olhos semvida, estava o corpo de um cavalo,uma visão que fez Scratch recuarligeiramente, sobressaltada. Assimcomo eu, estava acostumada à

solidão: apenas nós, as árvores, ospássaros. Ali, de repente, pairava afeia lembrança de que, na Europa,ninguém nunca está longe deconflitos, de guerra.

Cavalgamos um pouco maisdevagar agora, com cuidado porentre as árvores e quaisquer outrosobstáculos que pudéssemosencontrar. Seguindo em frente, tinhacada vez mais folhagem enegrecida,quebrada ou pisoteada. Houvealguma ação ali, isso era certo:comecei a avistar corpos dehomens, membros espalhados e

olhos esbugalhados, mortos, sanguepreto e lama tornando anônimos oscadáveres, apesar dos vistososuniformes — o branco do Exércitofrancês, o azul do holandês. Vimosquetes quebrados, baionetas eespadas rachadas, qualquer coisaainda útil já tendo sido recuperada.Quando surgi da fileira de árvores,estávamos em um campo, o campode batalha, onde jaziam ainda maiscorpos. Evidentemente, tinha sidoapenas um pequeno combate, pelospadrões de guerra, mas, mesmoassim, era como se a morte

estivesse por toda parte.Há quanto tempo isso ocorrera,

não podia dizer com certeza: temposuficiente para o campo de batalhater sido saqueado, mas não obastante para os corpos terem sidoremovidos. Calculo que aconteceuno dia anterior, a julgar pelo estadodos cadáveres e o cobertor defumaça que ainda pendia sobre opasto — uma espécie de mortalha,como a neblina da manhã, mas como pesado e ainda pronunciado cheirode pólvora.

Ali a lama era mais grossa, e se

movimentava com os cascos decavalos e pés, e, quando Scratchcomeçou a se esforçar para passar,puxei as rédeas, desviando-a para olado, na tentativa de nos levar paradar a volta pelo limite do campo.Então, quando ela tropeçou na lamae quase me jogou no chão por cimade seu pescoço, avistei o OrelhasPontudas adiante. A distância entrenós era a do comprimento docampo, talvez uns oitocentosmetros, um borrão, uma figuraquase indistinta que tambémbatalhava no terreno grudento. Seu

cavalo devia estar tão exaustoquanto o meu, porque eledesmontou e tentava puxá-lo pelasrédeas, e suas reclamaçõespercorriam o campo em vão.

Peguei a luneta para ter umamelhor visão dele. A última vez queo vira de perto tinha sido doze anosatrás, e ele usava máscara, então mepeguei imaginando — até mesmoesperando — que na primeira vezque o olhasse adequadamentepudesse ter algum tipo de revelação.Será que o reconheceria?

Não. Ele era apenas um homem

envelhecido e grisalho, como foraseu parceiro, sujo e exausto dacavalgada. Olhando-o agora não tivenenhuma sensação dereconhecimento imediato. Nadacombinava com nada. Era apenasum homem, um soldado britânico,igual àquele que eu matara naFloresta Negra.

Eu o vi esticar o pescoço ao olharatravés da névoa para mim. Docasaco, tirou a própria luneta e, porum momento, nós nos observamospor meio de nossos telescópios,então observei-o correr até o

focinho de seu cavalo e, com vigorrenovado, dar puxões nas rédeas, aomesmo tempo que dava olhares derelance para trás pelo campo, naminha direção.

Ele me reconheceu. Ótimo.Scratch havia recuperado o apoio epuxei-a para onde o solo era umpouco mais firme. Finalmente,conseguimos fazer algum progresso.À minha frente, Orelhas Pontudas setornava mais visível, e eu conseguianotar o esforço em seu rosto,enquanto puxava o próprio cavalo,depois vi que ele se dava conta de

que estava atolado, e eu meaproximava cada vez mais e poderiacair sobre ele em questão deminutos.

Então ele fez a única coisa quepodia. Largou as rédeas e começoua correr. Ao mesmo tempo, abeirada à nossa volta terminoubruscamente e, mais uma vez,Scratch sentiu dificuldade para seapoiar. Com um rápido e sussurrado“obrigado”, saltei de cima dela parapersegui-lo a pé.

O esforço dos últimos dias meatingiu em uma velocidade que

ameaçou me subjugar. A lamatomava minhas botas, tornando cadapasso não como o passo dado emuma corrida, mas como seatravessasse um brejo, e arespiração arranhava o pulmão,como se eu estivesse inalandosaibro. Cada músculo gritavacomigo em protesto e dor,implorando para que eu nãoprosseguisse. Conseguia apenasesperar que meu amigo à frenteestivesse tendo a mesmadificuldade, talvez até maior,porque a única coisa que me

impulsionava, a única coisa quemantinha minhas pernas bombeandoe o peito puxando respiraçõesirregulares era saber que euconseguia diminuir a distância entrenós.

Ele olhou para trás e eu estavaperto o suficiente para ver seusolhos arregalados de medo. Eleagora não usava máscara. Nada parase esconder. Apesar da dor eexaustão, sorri para ele, morrendode sede, sentindo os lábios secos,recuando sobre os dentes.

Ele continuou avançando,

grunhindo com o esforço. Tinhacomeçado a chover, uma garoa quedava ao dia uma camada extra denévoa, embora estivéssemos presosdentro de uma paisagem colorida acarvão.

Novamente, ele arriscou umaolhada para trás e viu que agora euestava ainda mais perto; dessa vez,parou e desembainhou a espada, quesegurou com as mãos, e os ombroscaíam e ele respirava pesadamente.Parecia exausto. Parecia um homemque passara dia após dia cavalgandointensamente e dormindo pouco.

Parecia um homem esperando paraser derrotado.

Mas eu estava errado: ele meatraía adiante e, como um idiota, caídireitinho, e, no instante seguinte,cambaleava à frente, caindoliteralmente, quando o chão cedeu eeu me arrastei direto para umaenorme poça de lama grossa epegajosa que me deteve deimediato.

— Oh, Deus — exclamei.Meus pés desapareceram, depois

os tornozelos e, quando menosesperava, estava atolado até os

joelhos, balançandodesesperadamente as pernas,tentando puxá-las e libertá-las,enquanto, ao mesmo tempo,apoiava-me com uma das mãos nosolo mais firme ao redor, tentandomanter a espada erguida com aoutra.

Meus olhos foram para o OrelhasPontudas, e agora era a sua vez derir, ao avançar e descer a espadacom as mãos em um golpe cortante,com bastante força, masdesajeitado. Com um bramido deesforço e um girar do aço, enfrentei

e aparei o golpe, enviando-o algunspassos para trás. Então, enquantoele perdia o equilíbrio, livrei umdos pés da lama e a bota, e vi minhameia branca, suja como estava,parecendo brilhante em comparaçãocom a imundície em volta.

Percebendo sua vantagem sendodesperdiçada, Orelhas Pontudasavançou de novo, agora golpeandoadiante com a espada, e me defendiuma, depois duas vezes. Por umsegundo, houve apenas o som de açocolidindo, de grunhidos e a chuva,então mais forte, correndo para

dentro da lama, e eu,silenciosamente, agradecendo aDeus pela disposição do homem queeu caçava ter se exaurido.

Ou não? Finalmente, ele se deuconta de que eu seria derrotado maisfacilmente se fosse para trás demim, mas percebi o que passavapela sua cabeça e ataquei com aespada, acertando-o no joelho, logoacima da bota, e fazendo-o cairestatelando-se para trás, uivando deagonia. Com um grito de dor eindignidade, ele se levantou,motivado talvez pela afronta de que

a vitória não estava lhe sendooferecida com mais facilidade, e medeu um chute com o pé da pernaboa.

Peguei-o com a outra mão e otorci com o máximo de forçapossível, o bastante para jogá-logirando e se esparramando de carana lama.

Ele tentou rolar o corpo, masestava lento demais, ou tontodemais, e o furei com a espada decima para baixo, enfiando-a atravésde sua coxa, direto até o chão,deixando-o espetado ali. Ao mesmo

tempo, usei o cabo como apoio e,em um impulso, me livrei da lama,deixando a outra bota para trás.

Orelhas Pontudas berrou e secontorceu, mas estava preso ao chãopela espada que saía da perna. Meupeso sobre ele, ao usar a espadacomo alavanca para me arrastarpara fora da lama, devia estar sendoinsuportável, e ele guinchou de dore seus olhos se reviraram.

Mesmo assim, ele agitouloucamente a espada, e eu estavadesarmado, de modo que, aoescorregar sobre ele como um peixe

perversamente jogado em terra, alâmina me atingiu do lado dopescoço, abrindo um corte edeixando escorrer o sangue queprovocou uma sensação de calor naminha pele.

Minhas mãos foram para a sua e,de repente, estávamos brigando pelaespada. Grunhindo e praguejando,lutamos, quando ouvi alguma coisavindo de trás — algo que eracertamente o som de pés seaproximando. Em seguida, vozes.Alguém falando holandês.Amaldiçoei.

— Não — disse uma voz, e medei conta de que era eu.

Ele também deve ter ouvido.— Você chegou tarde demais,

Kenway — rosnou ele.O ruído de pés atrás de mim. A

chuva. Meus próprios gritos aoberrar “Não, não, não” quando umavoz atrás de mim disse, em inglês:— Você aí. Pare imediatamente.

E me desvencilhei de OrelhasPontudas, socando a lama molhadacom frustração, enquanto meajeitava, ignorando o som de suagargalhada áspera e recortada, ao

me levantar para enfrentar ossoldados que surgiram do meio danévoa e da chuva, tentando parecero mais alto possível, quandodeclarei: — Meu nome é HaythamKenway, e sou aliado do tenente-coronel Edward Braddock. Exijoque esse homem seja colocado sobminha custódia.

A gargalhada seguinte que ouvi,não tenho certeza se partiu deOrelhas Pontudas, que continuavaimóvel, preso ao chão, ou talvez dealguém do pequeno grupo desoldados que se materializou diante

de mim, como aparições vindas docampo. Do comandante, vi umbigode, uma imunda jaquetamolhada com duas fileiras de botõese enfeitada com galões encharcadosque um dia tinham sido dourados.Eu o vi erguer algo — que pareceulampejar pela minha linha de visão— e me dei conta de que ele meagredia com o cabo da espada, uminstante antes de fazer contato, eperdi a consciência.

ii

Não fazem com que um homem quevai morrer perca a consciência. Nãoseria nobre. Nem mesmo em umexército comandado pelo tenente-coronel Edward Braddock.

Então a coisa seguinte que sentifoi água fria estapeando meu rosto— ou foi a palma de uma mão nomeu rosto? De qualquer modo, meacordaram rudemente e, quandomeus sentidos voltaram, levei uminstante imaginando quem eu era,onde estava...

E por que havia um laço de forcano meu pescoço.

E por que meus braços estavamamarrados para trás.

Estava na extremidade de umaplataforma. À esquerda, haviaquatro homens, também, como eu,com laços nos pescoços. Enquantoeu observava, o homem maisdistante à esquerda teve umacontração e se sacudiu, os péschutando o ar.

Um ofegar surgiu diante de mime me dei conta de que tínhamos umaplateia. Não estávamos mais nocampo de batalha, mas em algumapastagem menor onde os homens

haviam se reunido. Usavam as coresdo Exército britânico e os chapéusde pele de urso da ColdstreamGuards, e seus rostos estavampálidos. Estavam ali por resignação,era claro, forçados a observar,enquanto o pobre infeliz do fim dalinha dava os últimos chutes, com aboca aberta e a ponta da línguasangrando por ter sido mordida,saliente, e o queixo agitando-se natentativa de engolir ar.

Ele continuou a se contorcer echutar, o corpo sacudindo ocadafalso, que tinha a mesma

extensão da plataforma sobre nossascabeças. Olhei acima e vi meu nóatado a ela, baixei os olhos para obanquinho de madeira no qual meencontrava, e vi meus pés, commeias.

Houve silêncio. Apenas o som dohomem sendo enforcado morrendo,o ranger da corda e a queixa docadafalso.

— É isso que acontece com quemé ladrão — berrou o carrasco,apontando para ele, em seguidacaminhando pela plataforma emdireção ao segundo homem,

bradando para a multidão imóvel:— Você vai encontrar o seu criadorna ponta de uma corda, ordens dotenente-coronel Braddock.

— Eu conheço Braddock — griteide repente. — Onde está ele?Tragam-no aqui!

— Cale essa boca, você! —vociferou o carrasco, o dedoapontando, enquanto ao mesmotempo seu assistente, o homem quetinha jogado água no meu rosto,aproximou-se pela minha direita eme estapeou novamente, só que,dessa vez, não foi para eu recuperar

meus sentidos, mas para mesilenciar.

Rosnei e me debati, com a cordaprendendo minhas mãos, mas nãomuito vigorosamente, não osuficiente para perder o equilíbrio ecair do banquinho sobre o qualestava perigosamente colocado.

— Meu nome é Haytham Kenway— berrei, a corda afundando nopescoço.

— Eu disse “Cale essa boca!” —rugiu o carrasco uma segunda vez e,novamente, seu assistente me bateu,com tanta força que quase me

derrubou do banquinho. Pelaprimeira vez prestei atenção nosoldado imediatamente à minhaesquerda e percebi quem era.Orelhas Pontudas. Ele tinha emvolta da coxa uma bandagem queestava negra de sangue. Olhou-mecom olhos turvos, sombrios, comum sorriso lento, piegas, no rosto.

Agora o carrasco tinha chegadoao segundo homem da fila.

— Este homem é um desertor —bradou. — Deixou seuscompanheiros para morrer. Homenscomo vocês. Ele deixou vocês para

morrer. Digam-me, qual deve ser ocastigo dele?

Sem muito entusiasmo, oshomens gritaram de volta: —Enforque-o.

— Vocês é que mandam — sorriuo carrasco, e deu um passo para trás,plantou o pé na parte baixa dascostas do condenado e empurrou,saboreando a reação de revolta doshomens que observavam.

Tentei não pensar na dor dapancada do assistente na minhacabeça e continuei a me contorcerno exato momento em que o

carrasco alcançou o homemseguinte, fazendo a mesma perguntaà multidão, recebendo a mesmaresposta, submissa, em seguidaempurrando o pobre infeliz para amorte. A plataforma estremeceu ebalançou quando os três homens sesacudiram nas extremidades de suascordas. Acima da minha cabeça, ocadafalso rangeu e gemeu e,olhando para cima, vi juntasbrevemente se separarem antes devoltarem a se juntar.

Em seguida, o carrasco chegou aOrelhas Pontudas.

— Este homem... este homemdesfrutou uma pequena estadia naFloresta Negra e pensou queconseguiria voltar sorrateiramente,sem ser notado, mas se enganou.Digam-me, de que modo deve sercastigado?

— Enforque-o — murmurou amultidão sem qualquer entusiasmo.

— Acham que ele deve morrer?— berrou o carrasco.

— Sim — respondeu a multidão.Mas vi alguns homens

balançarem discretamente a cabeça,e havia outros, bebendo de cantis de

couro, que pareciam bem felizescom tudo aquilo, da maneira comoalguém pareceria se estivesse sendosubornado com cerveja. Aliás, seriaessa a razão da aparente letargia deOrelhas Pontudas? Ele continuavasorrindo, mesmo quando o carrascofoi para trás e plantou o pé na partede baixo de suas costas.

— Está na hora de enforcar umdesertor! — gritou, e empurrou, aomesmo tempo que eu gritava“Não!” e movimentava minhasamarras, tentandodesesperadamente me soltar.

— Não, ele deve permanecervivo! Onde está Braddock? Ondeestá o tenente-coronel EdwardBraddock?

O assistente do carrasco surgiudiante dos meus olhos, sorrindo portrás de uma barba tosca e comapenas um dente na boca.

— Não ouviu o homem? Ele disse“Cale essa boca” — e recuou opunho para me socar.

Ele não teve essa chance. Minhaspernas saltaram para fora,derrubaram o banquinho e, noinstante seguinte, estavam presas

em volta do pescoço do assistente,cruzadas — e apertando-o.

O homem gritou. Apertei commais força. O grito dele setransformou em uma asfixiaestrangulada e seu rosto começou aenrubescer, enquanto as mãos iampara minhas panturrilhas, tentandoafastar minhas pernas. Movimentei-me de um lado para o outro,sacudindo-o como um cachorro comuma presa na mandíbula, quasederrubando-o, forçando os músculosda minha coxa, ao mesmo tempoque tentava livrar o peso do laço no

pescoço. Entretanto, a meu lado,Orelhas Pontudas agitava-se naponta de sua corda. A língua saiupor entre os lábios e seus olhosleitosos se arregalaram, como seestivessem prestes a saltar dacabeça.

O carrasco tinha ido para a outraponta da plataforma, onde puxava aspernas dos enforcados para secertificar de que estavam mortos,mas a confusão na outra pontachamou sua atenção e ele ergueu avista para ver o assistente preso naperversa chave de perna e veio

disparado pela plataforma na nossadireção, praguejando, ao mesmotempo que alcançava sua espadapara desembainhá-la.

Com uma concentração deesforço, torci o corpo e puxei aspernas com força, carregando oassistente comigo e, por algummilagre de timing, o corpo sechocou com o do carrasco quandoeste chegou. Com um grito, ele caiudesordenadamente da plataforma.Na nossa frente, os homens estavamparados, boquiabertos com ochoque, nenhum deles se mexendo

para se envolver.Pressionei ainda mais as pernas e

fui recompensado com um som deestalido e trituração que veio dopescoço do assistente. Começou asair sangue de seu nariz. A forçaque fazia sobre meus braçoscomeçou a relaxar. Novamente,girei. Novamente me esforcei, emeus músculos protestaram, e dei-lhe um puxão, dessa vez para ooutro lado, onde o bati com força nocadafalso.

O cadafalso oscilando, rangendoe quebrando.

Ele rangeu e reclamou aindamais. Com um esforço final — nãome restava mais força e, se aquilonão funcionasse, então era ali queeu morreria —, golpeei outra vez ocadafalso com o homem e, dessavez, finalmente, ele cedeu. Aomesmo tempo que comecei a mesentir apagar, como se um véunegro fosse estendido na minhamente, senti a pressão em meupescoço relaxar de repente, quandoo suporte desabou ruidosamentediante da plataforma, a travetombou, e então a própria

plataforma cedeu com o repentinopeso de homens e madeira, caindosobre si mesma com o lascar edespedaçar de madeira sedesintegrando.

Meu último pensamento, antes deperder a consciência, foi, Por favor,deixem-no viver, e minhas primeiraspalavras, ao recobrar os sentidos nointerior da tenda onde agora euestava deitado, foram: — Ele estávivo?

iii

— Ele quem? — perguntou omédico, que tinha um bigode deaparência distinta e um sotaque quesugeria que tinha tido umnascimento mais eminente do que oda maioria.

— O homem de orelhas pontudas— respondi, e tentei me levantar, sópara descobrir sua mão em meupeito forçando-me a ficar deitado.

— Receio não fazer a menor ideiado que está falando — disse ele, nãode modo indelicado. — Soube quevocê é conhecido do tenente-coronel. Talvez ele seja capaz de lhe

explicar tudo quando chegar pelamanhã.

Deste modo, estou agora aquisentado, escrevendo sobre osacontecimentos do dia e esperandominha audiência com Braddock...

17 de julho de 1747

Ele parecia uma versão maior emais vistosa de seus homens, comtodo o significado que sua posiçãoimplicava. As brilhantes botaspretas iam até o joelho. Usava umasobrecasaca com enfeites brancossobre uma túnica escura todaabotoada, um lenço branco nopescoço, e, em um grosso cinturãode couro marrom na cintura, pendiasua espada.

O cabelo estava puxado para tráse amarrado com uma fita preta. Elejogou o chapéu sobre uma mesinhaao lado da cama onde eu estavadeitado, pôs as mãos nos quadris efitou-me com aquele intenso olharfrio que eu conhecia bem.

— Kenway — disse elesimplesmente —, Reginald nãomandou me avisar que você vinhase juntar a mim.

— Foi uma decisão de momento,Edward — aleguei, me sentindojovem de repente em sua presença,quase intimidado.

— Entendo — rebateu. — Pensouque podia simplesmente aparecer,não é mesmo?

— Há quanto tempo estou aqui?— perguntei. — Quantos dias sepassaram?

— Três — respondeu Braddock.— O Dr. Tennant estava preocupadoque você pudesse ficar com febre.De acordo com ele, um homemdebilitado talvez não tenhacondições de combatê-la. Tem sortepor estar vivo, Kenway. Não é todohomem que consegue escapar docadafalso e da febre. Felizmente

para você, também, fui informadode que um dos homens que seriamenforcados chamava por mimpessoalmente; caso contrário, meushomens talvez tivessem terminado otrabalho. Você viu como castigamosos malfeitores.

Coloquei a mão no pescoço, queestava enfaixado por causa da lutacom Orelhas Pontudas, e ainda doíada queimadura provocada pelacorda.

— Sim, Edward, tive umaexperiência em primeira mão decomo trata seus homens.

Braddock suspirou, com um gestodispensou o Dr. Tennant, que seretirou, fechando as abas da tendaao sair; em seguida, sentou-sepesadamente, colocando uma dasbotas sobre a cama como se fixassesua alegação sobre ela.

— Não são meus homens,Kenway. Mas criminosos. Você nosfoi entregue pelos holandeses nacompanhia de um desertor, umhomem que havia se ausentado comum companheiro. Naturalmente,acharam que você era o talcompanheiro dele.

— E que fim levou ele, Edward?O que aconteceu com o homem queestava comigo?

— É o homem por quem esteveperguntando, não é? O tal sobre oqual o Dr. Tennant me falou quevocê estava especialmenteinteressado, um... como foi quedisse? “Um homem com orelhaspontudas”? — Ele não conteve umtom de escárnio na voz, ao dizerisso.

— Esse homem, Edward... eleestava na noite do ataque à minhacasa. É um dos homens que

estivemos procurando nos últimosdoze anos. — Olhei-o fixamente. —E descobri que ele estava alistadono seu exército.

— De fato... no meu exército. Edaí?

— Uma coincidência, não acha?Braddock sempre teve uma

expressão séria, mas então ela ficoumais carregada.

— Por que não esquece asinsinuações, rapaz, e me diz o querealmente passa pela sua cabeça? Apropósito, onde está Reginald?

— Deixei-o na Floresta Negra.

Sem dúvida, agora deve estar ameio caminho de casa.

— Para continuar sua pesquisasobre mitos e contos folclóricos? —comentou Braddock com ummovimento desdenhoso dos olhos.Esse seu gesto me fez sentirestranhamente fiel a Reginald e suaspesquisas, apesar das minhaspróprias apreensões.

— Reginald acredita que, seconseguirmos desvendar ossegredos do depósito, a Ordem seráa mais poderosa desde as GuerrasSantas, talvez para sempre.

Teríamos o equilíbrio para governarcompletamente.

Ele deu um olhar ligeiramentecansado, desgostoso.

— Se você acredita mesmo nisso,então é igualmente insensato eidealista. Não precisamos de mágicae truques para convencer as pessoasde nossa causa, precisamos de aço.

— Por que não usar ambos? —argumentei.

Ele inclinou-se à frente.— Porque um deles é uma

perfeita perda de tempo, eis oporquê.

Olhei em seus olhos.— Talvez. De qualquer modo,

não creio que a melhor maneira dese conquistar corações e mentes doshomens seja executando pessoas,não acha?

— Novamente. Escória.— E ele teve de ser morto?— O seu amigo com... desculpe,

como é mesmo? ... “orelhaspontudas”?

— Sua zombaria não significanada para mim, Edward. Suazombaria significa para mim omesmo que seu respeito, que é nulo.

Pode achar que me tolera apenas porcausa de Reginald... Pois bem,posso lhe assegurar que osentimento é inteiramente mútuo.Agora, diga-me, o homem deorelhas pontudas, ele está morto?

— Ele morreu no cadafalso,Kenway. Teve a morte que merecia.

Fechei os olhos e, por umsegundo, fiquei ali, alheio a quasetudo, exceto ao meu próprio... oquê? Uma espécie de misturamiserável e fervente de dor, raiva efrustração; de desconfiança edúvida. Atento também ao pé de

Braddock na minha cama edesejando que pudesse atacá-lo comuma espada e retirá-lo da minhavida para sempre.

Aquele era seu modo de pensar,não era mesmo? Mas não era o meu.

— Então ele esteve lá naquelanoite, não? — indagou Braddock, eteria havido um ligeiro tom dezombaria em sua voz? — Ele foi umdos responsáveis pela morte de seupai, e todo esse tempo ele esteveentre nós e nunca soubemos. Umaamarga ironia, não é o que vocêdiria, Haytham?

— Realmente. Uma ironia ouuma coincidência?

— Cuidado, rapaz, saiba queReginald não está aqui agora paralivrá-lo de encrenca.

— Como era o nome dele?— Assim como milhares de

homens em meu exército, o nomedele era Tom Smith... Tom Smith,do interior; não sabemos muitomais do que isso sobre eles. Emfuga, talvez dos magistrados, outalvez tenha matado o filho de seusenhorio em um duelo, ou defloradouma filha do proprietário de terras,

ou talvez farreado com a mulherdele. Quem sabe? Não fazemosperguntas. Se você me perguntassese me surpreende o fato de que umdos homens que caçávamos estava otempo todo no meu exército, minharesposta seria não.

— Ele tinha colegas no exército?Alguém com quem eu pudessefalar?

Lentamente, Braddock tirou o pédo meu catre.

— Como companheiro cavaleiro,você é livre para desfrutar minhahospitalidade aqui, e pode, é claro,

conduzir as próprias investigações.Espero que, em retribuição, eupossa também recorrer à sua ajudapara nossos empreendimentos.

— E quais seriam? — perguntei.— Os franceses montaram cerco

na fortaleza de Bergen op Zoom.Dentro, estão nossos aliados:holandeses, austríacos,hanoverianos e hessianos, e, é claro,os ingleses. Os franceses já abriramas trincheiras e estão cavando umasegunda série de trincheirasparalelas. Em pouco tempocomeçará o bombardeio da

fortaleza. Vão tentar tomá-la antesda temporada de chuvas. Acreditamque isso lhes dará uma passagempara os Países Baixos, e os Aliadosacham que a fortaleza deve serdefendida a todo custo. Precisamosde cada homem com que pudermoscontar. Deve entender agora por quenão toleramos desertores. Você temum coração voltado para a batalha,Kenway, ou está tão concentrado emvingança que não consegue maisnos ajudar?

P A R T E T R Ê S

1753, seis anos depois

7 de junho de 1753

i

— Tenho um trabalho para você —anunciou Reginald.

Assenti, já esperando aquilo.Fazia muito tempo desde que o virapela última vez, e havia tido asensação de que o pedido para nosencontrarmos não era apenas umadesculpa para conversar, mesmoque o local do encontro fosse aWhite’s, onde estávamos sentadosdando goles em cerveja, com uma

atenta e — não deixara de notar —voluptuosa garçonete ansiosa pornos trazer mais.

Em uma mesa à nossa esquerda,cavalheiros — os infames jogadoresda White’s — se dedicavam a umturbulento jogo de dados, mas, foraisso, a casa estava vazia.

Eu não o via desde aquele dia naFloresta Negra, seis anos atrás, emuita coisa tinha acontecido desdeentão. Juntando-me a Braddock naRepública Holandesa, servi com aColdstreams no Cerco de Bergen opZoom, depois até o Tratado de Aix-

la-Chapelle no ano seguinte, quemarcou o fim daquela guerra. Apósisso, permaneci com eles durantevárias campanhas para manter apaz, o que me deixou distante deReginald, cuja correspondênciachegava, ou de Londres, ou docastelo na Floresta de Landes.Ciente de que minhas cartas podiamser lidas antes de serem enviadas,mantinha minha correspondênciaobscura, enquanto particularmenteansiava pelo momento em quepoderia, enfim, me sentar comReginald e falar sobre meus

temores.No entanto, ao retornar a Londres

e, outra vez, voltar a morar naQueen Anne’s Square, descobri queele não estava disponível. Foi istoque me disseram: ele forasequestrado com seus livros — ele eJohn Harrison, outro cavaleiro daOrdem, o qual, aparentemente, eratão obcecado quanto ele comtemplos, depósitos antigos e seresfantasmagóricos do passado.

— Lembra-se de que viemos aquino meu aniversário de 8 anos? —perguntei, querendo de algum modo

adiar o momento em que eudescobriria a identidade da pessoaque deveria matar. — Lembra-se doque aconteceu lá fora, o pretendenteimpulsivo prestes a distribuir comrapidez sua justiça na rua?

Ele fez que sim.— As pessoas mudam, Haytham.— De fato... você mudou. Tem se

preocupado principalmente comsuas pesquisas sobre a primeiracivilização — observei.

— Estou muito perto agora,Haytham — afirmou, como se, comessa ideia, tivesse se livrado de uma

pesada mortalha que estava usando.— Conseguiu decifrar o diário de

Vedomir?Ele enrugou a testa.— Não, dei azar, e não por falta

de tentativa, garanto. Ou deveriadizer “ainda não”, porque existeuma decodificadora de códigos,uma italiana aliada dos Assassinos— uma mulher, dá para acreditar?Nós a mantemos no castelo francês,no interior da floresta, mas ela dizque precisa do filho para ajudá-la adecifrar o livro, e o filho dela andasumido esses últimos anos.

Pessoalmente, duvido sobre o queela diz, e acho que, se quisesse,poderia muito bem decodificar odiário sozinha. Creio que está nosusando para ajudá-la a se juntar aofilho. Mas concordou em trabalharno diário, se conseguíssemoslocalizá-lo e, finalmente,conseguimos.

— Onde?— Aonde você irá em breve, para

buscá-lo: Córsega.Então eu estava enganado. Não

era um assassinato, mas um serviçode babá.

— O que foi? — perguntou, aonotar a expressão do meu rosto. —Acha que é indigno de você? Muitopelo contrário, Haytham. Essa é atarefa mais importante que já lhedei.

— Não, Reginald — suspirei —,não é não; simplesmente parece queé, no seu modo de pensar.

— Ah? O que está dizendo?— Que talvez seu interesse nisso

signifique que tenha negligenciadooutras partes de suas obrigações.Talvez tenha deixado certasquestões ficarem fora de controle...

Perplexo, ele perguntou: — Que“questões”?

— Edward Braddock.Ele pareceu surpreso.— Entendo. Bem, existe alguma

coisa que queira me dizer sobre ele?Algo que tenha ocultado de mim?

Pedi mais cervejas e a nossagarçonete as trouxe, pousou-as namesa com um sorriso e então seafastou com os quadris balançando.

— O que Braddock tem lhefalado sobre suas ações nos últimosanos? — perguntei a Reginald.

— Tenho tido pouca notícia dele,

e o visto muito menos —respondeu. — Nos últimos seisanos, só nos encontramos uma vez,pelo que lembro, e suacorrespondência tem se tornadocada vez mais esporádica. Eledesaprova meu interesse emAqueles Que Vieram Antes e, aocontrário de você, não tem guardadosuas objeções para si mesmo.Parece que discordamoscompletamente sobre a melhormaneira de divulgar a mensagemdos Templários. Como resultado,não, ando sabendo pouco sobre ele;

aliás, se quisesse saber sobreEdward, arrisco dizer queperguntaria a alguém que tivesseestado com ele durante suascampanhas... — Deu-me um olharirônico. — Onde você acha que eupoderia encontrar tal pessoa?

— Você seria um idiota se meperguntasse — caí na gargalhada.— Você sabe muito bem que, noque diz respeito a Braddock, nãosou um observador especialmenteimparcial. Nunca gostei dessehomem, e agora gosto ainda menos,mas, na ausência de alguma outra

observação mais objetiva, eis aminha: ele se tornou um tirano.

— Como assim?— Crueldade, principalmente.

Com os homens sob seu comando,mas também com inocentes. Vi,com meus próprios olhos, pelaprimeira vez, na RepúblicaHolandesa.

— O modo como Edward trataseus soldados é assunto dele —comentou Reginald, dando deombros. — Soldados reagem àdisciplina, Haytham, você sabedisso.

Balancei a cabeça.— Houve um incidente em

particular, Reginald, no último diado cerco.

Reginald recostou-se para ouvir:— Prossiga...

E continuei:— Estávamos de retirada.

Soldados holandeses agitavam ospunhos para nós, maldizendo o reiJorge por não ter enviado mais deseus soldados para ajudar a liberar afortaleza. Por que não tinhamchegado mais homens, eu não sei.Teriam feito alguma diferença? De

novo, não sei. Não tenho certeza sealgum de nós, que estávamosestacionados no interior daquelasmuralhas pentagonais, sabia comolidar com um ataque furiosofrancês, perpetrado da mesma formabrutal e impiedosa quanto foimantido.

“Braddock estava certo: osfranceses tinham construído suaslinhas paralelas de trincheiras ecomeçaram o bombardeio dacidade, forçando uma aproximaçãodas muralhas da fortaleza, e alichegaram em setembro, quando

enterraram minas abaixo dasfortificações e as destruíram.

“Atacamos do lado de fora dasmuralhas para tentar romper ocerco, mas sempre inutilmente, atéque, em 18 de setembro, osfranceses abriram caminho — àsquatro horas da madrugada, se nãome falha a memória. Pegaram asforças dos Aliados quase quedormindo, e fomos aniquiladosantes que percebêssemos. Osfranceses estavam massacrando aguarnição inteira. Sabemos, é claro,que finalmente se libertaram de seu

comando e infligiram ainda maisdanos aos pobres habitantes daquelacidade, mas a carnificina já haviacomeçado. Edward providenciou umesquife no porto, e há muito tempodecidira que, se chegasse o dia emque os franceses abrissem caminho,ele o usaria para evacuar seushomens. Esse dia chegou.

“Um grupo nosso seguiu para oporto, onde começou a inspecionaro carregamento de homens esuprimentos para o esquife.Mantivemos uma pequena força namuralha do porto, para manter

afastado qualquer soldado francêssaqueador, enquanto Edward, eu eoutros permanecíamos na prancha,supervisionando o embarque dehomens e suprimentos no esquife.Tínhamos levado uns 1.400 homenspara a fortaleza de Bergen op Zoom,mas os meses de batalha haviamreduzido o número para cerca dametade. Havia espaço no esquife.Não muito... não era como sepudéssemos levar um grandenúmero de passageiros; certamentenão o número que precisava serevacuado da fortaleza... mas havia

espaço. — Olhei firme paraReginald. — Nós poderíamos tê-loslevado, é o que estou dizendo.”

— Poderiam ter levado quem,Haytham?

Dei um demorado gole na minhacerveja.

— Houve uma família que nosprocurou no porto. Inclusive, haviaum velho que mal conseguia andar,e também crianças. Dentre eles,surgiu um jovem, que chegou pertode nós e me perguntou se havialugar no barco. Eu confirmei com acabeça, não vi por que não, e

apontei para Braddock, mas, em vezde sinalizar para que as pessoassubissem a bordo, como euesperava, ele ergueu a mão emandou que saíssem do porto,acenando para que seus homensembarcassem mais depressa. Ojovem ficou tão surpreso quanto eu,e abri minha boca para protestar,mas ele chegou lá antes de mim; seurosto obscureceu e ele disse algo aBraddock, que não escutei, mas,obviamente, foi algum tipo deinsulto.

“Braddock me disse depois que o

insulto foi ‘covarde’. Dificilmente aafronta mais insultante, ecertamente não merecia o queaconteceu a seguir, que foiBraddock sacar a espada e enfiá-lano jovem ali mesmo onde eleestava.

“Na maior parte do tempo,Braddock mantinha perto de si umpequeno grupo de soldados. Seusdois companheiros constantes eramo carrasco, Slater, e seu assistente...quer dizer, seu novo assistente, eudiria. O antigo eu matei. Esseshomens, ele quase pode chamá-los

de guarda-costas. Certamente, erammais próximos dele do que eu. Seexerciam alguma influência sobreele, não saberia dizer, mas eramferozmente leais e protetores ecorreram adiante no mesmomomento em que o corpo do jovemcaiu. Eles partiram para cima dafamília, Reginald, Braddock e essesdois de seus homens, e os abateram,cada um deles: os dois homens, umamulher idosa, uma mais jovem e, éclaro, as crianças, uma delas bempequena, a outra, um bebê de colo...— Senti o queixo apertar. — Foi um

banho de sangue, Reginald, a pioratrocidade de guerra que já vi... ereceio ter visto muitas.

— Entendo. Naturalmente, issoendureceu seu coração em relação aEdward — assentiu comintensidade.

— Claro... claro que sim. Somostodos homens de guerra, Reginald,mas não somos bárbaros — ironizei.

— Entendo, entendo.— Entende? Finalmente? Que

Braddock está fora de controle?— Vamos com calma, Haytham.

“Fora de controle”? A ira

temporária é uma coisa. “Fora decontrole” é outra completamentediferente.

— Ele trata seus soldados comoescravos, Reginald.

Ele deu de ombros.— E daí? São soldados

britânicos... Esperam ser tratadoscomo escravos.

— Creio que ele está se afastandode nós. Aqueles homens queserviam a ele, não eram Templários,eram agentes livres.

Reginald assentiu.— Os dois homens na Floresta

Negra. Esses homens faziam partedo círculo interno de Braddock?

Olhei para ele. Observei-o comtodo o cuidado ao mentir: — Nãosei.

Seguiu-se uma longa pausa e,para evitar fazer contato visual, deium demorado gole na minha cervejae fingi admirar a garçonete, gratopela mudança de assunto, quandoReginald se inclinou para dar maisdetalhes de minha futura viagem àCórsega.

ii

Reginald e eu nos separamos dolado de fora da White’s e seguimospara nossas carruagens. Quando aminha havia se afastado certadistância, bati no teto para parar emeu condutor desceu, olhou para osdois lados, a fim de verificar seninguém estava olhando, entãoabriu a porta e se juntou a mim nointerior. Sentou-se à minha frente etirou o chapéu, colocando-o noassento a seu lado, fitando-me comolhos brilhantes, curiosos.

— Bem, Sr. Haytham — disseele.

Olhei para ele, inspirei fundo edirigi a vista para fora da janela.

— Devo partir por mar esta noite.Voltaremos à Queen Anne’s Square,onde farei as malas, depoisseguiremos direto para o cais, sepuder.

Ele tirou um chapéu imaginário.— A seu dispor, Sr. Kenway, já

estou me acostumando a essa coisade ficar conduzindo por aí. É muitotempo parado, esperando, que eunão gostaria ficar, mas, por outro

lado, bem, pelo menos não tem umfrancês atirando em você, ou seuspróprios oficiais atirando em você.Aliás, eu diria que a falta de sujeitosatirando em você é um verdadeirobenefício a mais deste trabalho.

Ele às vezes conseguia ser bemcansativo.

— Está bem, Holden — falei,franzindo a testa com a intenção defazê-lo calar a boca, embora apossibilidade fosse ótima.

— Bem, de qualquer modo,senhor, descobriu alguma coisa?

— Receio que nada de concreto.

Olhei pela janela, lutando contrasentimentos de dúvida, culpa edeslealdade, imaginando se haviaalguém em quem eu realmenteconfiasse — alguém a quem eupermanecesse verdadeiramente lealagora.

Ironicamente, a pessoa em quemeu mais confiava era Holden.

Eu o conhecera enquanto estavana República Holandesa. Braddockcumprira sua palavra e permitiraque eu entrasse em contato comseus homens, para lhes perguntar seconheciam alguma coisa do “Tom

Smith” que encontrara seu fim nocadafalso, mas não me surpreendiquando minhas investigações semostraram infrutíferas. Nenhumhomem que interroguei sequeradmitiu conhecer Smith, se é queseu nome era mesmo esse — atéque certa noite ouvi um movimentoperto da entrada da minha tenda esentei-me na beira do catre a tempode ver uma figura aparecer.

Era jovem, em seus vinte e tantosanos, cabelo ruivo cortado bemrente e um sorriso fácil e travesso.A figura, depois foi revelado, era o

soldado raso Jim Holden, umlondrino, um bom homem quequeria ver a justiça ser feita. Seuirmão tinha sido um dos enforcadosno mesmo dia em que quaseencontrei o meu próprio fim. Eletinha sido executado pelo crime deroubo de guisado — isso fora tudo oque ele havia feito, roubado umatigela de guisado porque estavafaminto; uma transgressão quecustaria, no máximo, açoitamento,mas o enforcaram. Seu grande erro,aparentemente, tinha sido roubar oguisado de um dos homens de

Braddock, um membro de sua forçamercenária particular.

Foi isso que Holden me contou:que sua força de 1.500 robustoshomens da Coldstreams Guards eraformada principalmente de soldadosdo Exército britânico, como elemesmo, mas que, internamente,havia um pequeno núcleo dehomens selecionados pessoalmentepor Braddock: mercenários. Estesincluíam Slater e seu assistente —e, mais preocupante, os dois homensque haviam cavalgado até a FlorestaNegra.

Nenhum desses homens usava oanel da Ordem. Eram criminosos,capangas. Eu me perguntava por quê— por que Braddock escolheuhomens dessa estirpe para seucírculo interno, e não cavaleirostemplários? Quanto mais tempopassava com ele, mais pensava ter aminha resposta: estava se afastandoda Ordem.

Penso agora em Holden. Eu haviaprotestado naquela noite, mas eleera um homem que vislumbrara acorrupção no âmago da organizaçãode Braddock. Era um homem que

queria justiça para o irmão e, comoresultado, nenhuma quantidade demeus protestos fez a menordiferença. Ele me ajudaria, quisesseeu ou não.

Concordei, mas com o trato deque sua ajuda seria o tempo todomantida em segredo. Na esperançade enganar aqueles que pareciamsempre estar um passo à minhafrente, precisava fazer parecer quedesistira da ideia de encontrar osmatadores do meu pai — para quenão ficassem mais um passo adiantede mim.

Assim, quando deixamos aRepública Holandesa, Holdenadotou as funções de meu criadoparticular e cocheiro e, para todosos propósitos, pelo que diziarespeito ao mundo exterior, eraexatamente isso que ele era.Ninguém sabia que, de fato, elerealizava investigações a meu favor.Nem mesmo Reginald sabia disso.

T a l v e z principalmente nemReginald.

Holden viu a culpa escrita no meurosto.

— Senhor, não são mentiras que

está dizendo para o Sr. Birch. Tudoque está fazendo é o que ele estáfazendo, que é omitir certasinformações, isso até o senhor ficarsatisfeito de que o nome dele estálimpo... E tenho certeza de queestará, senhor. Tenho certeza de quesim, pois ele é o seu amigo maisantigo, senhor.

— Gostaria que pudessecompartilhar seu otimismo nessaquestão, Holden. Realmentegostaria. Vamos em frente. Minhamissão aguarda.

— Com certeza, senhor, e, se me

permite perguntar, aonde essamissão o leva?

— À Córsega — falei. — Voupara a Córsega.

— Ah, e no meio de umarevolução, segundo eu soube...

— Exatamente, Holden. Um lugarde conflito é perfeito para seesconder.

— O que vai fazer lá, senhor?— Receio que não possa lhe

contar. Basta dizer que não temnada a ver com a procura dosmatadores do meu pai e, portanto, é,para mim, apenas um interesse

paralelo. É um serviço, um dever,nada mais. Espero que, enquanto euestiver longe, você continue suasinvestigações.

— Ah, certamente, senhor.— Excelente. E cuide para que

isso permaneça em segredo.— Não se preocupe quanto a isso,

senhor. No que diz respeito aosoutros, posso dizer que o Sr.Kenway abandonou há muito temposua busca por justiça. Sejam elesquem forem, senhor, acabarão porbaixar a guarda.

25 de junho de 1753

i

Fazia calor na Córsega durante odia, mas à noite a temperatura caía.Não muito — não ficava gelado —,mas era o suficiente para tornar umaexperiência incômoda dormir semum cobertor em uma encostarochosa.

Além do frio, porém, haviaassuntos ainda mais urgentes paraserem cuidados, tais como o pelotãode soldados genoveses que seguia

morro acima, sobre o qual gostariade dizer que se movimentavafurtivamente.

Gostaria de dizer isso, mas nãopodia.

No topo do morro, em um platô,ficava a casa de fazenda. Eu estiveravigiando o local nos dois últimosdias, com minha luneta apontadapara as portas e janelas de umagrande edificação e uma série deceleiros e prédios anexos menores,anotando entradas e saídas: rebeldeschegando com suprimentos etambém partindo com eles. Durante

o primeiro dia, uma pequena tropadeles — contei oito — deixou oconjunto e, quando retornou, me deiconta de que houvera uma espéciede ataque: os rebeldes corsosgolpeando os seus senhoresgenoveses. Havia apenas seisquando retornaram, e esses seispareciam exaustos e sangrando,mas, ainda assim, sem palavras ougestos, ostentavam uma aura detriunfo.

Chegaram mulheres comsuprimentos não muito tempodepois, e as comemorações foram

até tarde da noite. Esta manhãchegaram mais rebeldes, commosquetes envoltos em cobertores.Estavam bem equipados e,aparentemente, tinham apoio; nãoadmirava que os genovesesquisessem varrer essa fortaleza domapa.

Passei os dois dias memovimentando ao redor do morropara evitar ser visto. O terreno erarochoso, e eu mantinha umadistância segura das edificações. Namanhã do segundo dia, contudo,percebi que tinha companhia. Havia

outro homem no morro, outroobservador. Diferente de mim, elepermanecera na mesma posição,enfiado em um afloramento derochas, oculto pelo arbusto e pelasárvores esqueléticas que de algummodo sobreviveram na encostaárida.

ii

Lucio era o nome do meu alvo, e osrebeldes o escondiam. Se tambémtinham ligações com os Assassinos,

eu não fazia ideia, e, de qualquermodo, não importava. Era ele quemeu queria: um rapaz de 21 anos, queera a chave para solucionar oenigma que atormentava Reginaldhavia seis anos. Um rapaz deaparência pouco graciosa, comcabelos até os ombros, que, pelo quepude perceber observando a casa defazenda, ajudava a carregar baldesde água, alimentar o gado e, ontem,torcer o pescoço de uma galinha.

Então lá estava ele: isso eu jáverificara. O que era bom. Mashavia problemas. Primeiro, ele tinha

um guarda-costas. Um homem queusava as roupas e o capuz de umAssassino nunca se distanciava dele.Seu olhar costumava vasculhar aencosta enquanto Lucio apanhavaágua ou espalhava a comida dasgalinhas. Em sua cintura, havia umaespada, e os dedos da mão direitaeram arqueados. Usaria a famosalâmina oculta dos Assassinos?Fiquei imaginando. Sem dúvida quesim. Teria de ter cuidado com ele,isso era mais do que certo; semfalar nos rebeldes que estavambaseados na casa. O complexo

parecia estar cheio deles.Outra coisa a levar em conta:

estavam claramente planejandopartir em breve. Talvez estivessemusando a casa de fazenda como umabase temporária para o ataque;talvez soubessem que os genovesesnão demorariam a buscar vingança eviriam à procura deles. De qualquermodo, levavam suprimentos para osceleiros, sem dúvida empilhando-osbem alto nas carroças. Meu palpiteera de que partiriam no dia seguinte.

Uma incursão noturna, então,parecia ser a solução. E teria de ser

hoje à noite. Esta manhã conseguilocalizar os aposentos onde Luciodormia: ele dividia um anexo detamanho médio com o Assassino epelo menos outros seis rebeldes.Eles tinham uma senha, que usavamao entrar nos aposentos, e fiz umaleitura labial através da luneta:Agimos no escuro para servir à luz.

Portanto, uma operação queexigia alguma antecipação, mas, nomesmo instante em que estava mepreparando para me retirar daencosta, para providenciar meuplano, vi o segundo homem.

E meus planos mudaram.Aproximando-me o máximo dele,consegui identificá-lo como umsoldado genovês. Se estivesse certo,aquilo significava que ele faziaparte do grupo avançado quetentaria tomar aquela fortaleza; oresto viria a seguir — quando?

Mais cedo do que tarde, pensei.Eles queriam cobrar uma rápidavingança pelo ataque do diaanterior. Não apenas isso, masqueriam ser vistos reagindorapidamente aos rebeldes. Estanoite, então.

Então eu o deixei. Deixei quecontinuasse sua vigilância e, em vezde me retirar, permaneci na encostaimaginando um plano diferente.Meu novo plano envolvia soldadosgenoveses.

O observador era bom. Ficarafora de vista e, quando escureceu,retirou-se sorrateira esilenciosamente de volta morroabaixo. Onde, fiquei imaginando,estaria o resto da força?

Não muito distante; e, mais oumenos uma hora depois, comecei anotar movimento ao pé do morro e,

até mesmo, em determinadomomento, ouvi um xingamentoabafado em italiano. Àquela alturaeu estava a meio caminho do topo e,percebendo que logo começariam aavançar, fui para ainda mais pertodo platô e da cerca do curral dosanimais. Talvez a uns cinquentametros de distância, conseguia verum dos sentinelas. Ontem à noite,havia cinco no total, em volta doperímetro da fazenda. Hoje à noite,sem dúvida, aumentariam avigilância.

Peguei a luneta e apontei para o

guarda mais próximo. Dava para versua silhueta, iluminada pela lua àssuas costas. Estava diligentementevasculhando a encosta abaixo dele.Ele não me veria, eu seria apenasoutra forma irregular na paisagemde formas irregulares. Nãoadmirava que tivessem decidido semudar tão depressa após aemboscada que fizeram. Aquele nãoera o esconderijo mais seguro queeu já vira. Aliás, teriam sido umalvo fácil, se não fosse o fato de aaproximação dos soldadosgenoveses ser terrivelmente

desastrada. A conduta doobservador deles mostrava todo onível da operação. Aqueles eramhomens para quem uma ação furtivaera claramente uma ideia estranha edesconhecida, e eu começava aouvir cada vez mais ruídos vindosdo pé do morro. Os rebeldes, quasecertamente, seriam os próximos aouvi-los. E, se os rebeldes osouvissem, teriam mais do queoportunidade suficiente paraescapar. E, se os rebeldesescapassem, levariam Lucio comeles.

Então resolvi dar uma mão. Cadaguarda era responsável por umtrecho da área da fazenda. Dessemodo, o mais próximo a mim teriade se movimentar lentamente de umlado para o outro através de umadistância com cerca de 25 metros.Ele era bom; cuidava para que,enquanto estivesse observando umaparte de sua área, o resto nuncaficasse totalmente fora de vista.Mas também se movimentava e,quando o fazia, eu tinha poucos epreciosos segundos para meaproximar.

Foi o que fiz. Pouco a pouco. Atéestar perto o bastante para enxergaro guarda: sua cerrada barbagrisalha, o chapéu com a abacobrindo os olhos com sombrasescuras, e o mosquete pendurado noombro. E, embora não conseguissever ou ouvir os pilhadores soldadosgenoveses ainda, estava ciente delese, em pouco tempo, ele tambémestaria.

Só podia supor que a mesma cenaestivesse sendo desempenhada dooutro lado do morro, o quesignificava que precisava agir

depressa. Saquei minha espada curtae me preparei. Lamentei peloguarda e lhe dediquei um silenciosopedido de desculpas. Ele nada fizerapara mim, era um bom e diligentesentinela, e não merecia morrer.

Então, ali, no declive rochoso,parei. Pela primeira vez na vida,duvidei de minha habilidade deseguir adiante com aquilo. Pensei nafamília no porto, morta porBraddock e seus homens. Setemortes sem sentido. E de repente fuidominado pela certeza de que nãoestava mais preparado para

aumentar o tributo da morte. Nãopodia passar na lâmina da espadaaquele guarda, que não era meuinimigo. Não podia fazer isso.

A hesitação quase me custa caro,pois, no mesmo instante, osdesajeitados soldados genovesesfinalmente fizeram sentir suapresença, e houve sons de pedras sechocando e um praguejar mais parabaixo do morro, que foi carregadopelo ar da noite, primeiro até meusouvidos, depois para os dosentinela.

Sua cabeça deu um tranco e ele

imediatamente alcançou omosquete, esticando o pescoço eforçando a vista, olhando morroabaixo. Ele me viu. Por umsegundo, nossos olhos fizeramcontato. Meu momento de hesitaçãoterminou e eu pulei, cobrindo adistância entre nós dois com umúnico salto.

Estendida como uma garra, leveia mão direita vazia, e a espada naoutra. Ao alcançá-lo, agarrei suanuca com a mão direita e enfiei aespada na garganta. Ele estavaprestes a alertar os companheiros,

mas o grito morreu e virou umgorgolejar, enquanto o sangueescorria sobre minha mão e abaixopela frente de seu corpo. Mantendoa cabeça bem segura com a mãodireita, abracei-o e, delicada esilenciosamente, baixei-o para aterra seca da fazenda.

Agachei-me. Cerca de sessentametros adiante estava o segundosentinela. Era uma figura embaçadano escuro, mas podia ver que estavapara se virar e, quando o fizesse,provavelmente me avistaria. Corri— tão depressa que, por um

momento, pude ouvir o precipitar danoite, e o agarrei exatamentequando se virou. Outra vez, segureia nuca do homem com a mão direitae enfiei-lhe a espada. Outra vez, ohomem estava morto antes de cairno chão.

Vindo de bem mais baixo domorro, ouvi mais barulho da tropade assalto genovesa, felizmente semsaber que eu evitara que seu avançofosse ouvido. Com certeza, porém,seus companheiros do outro ladoeram igualmente ineptos e, sem oanjo da guarda Kenway, teriam sido

ouvidos pelos sentinelas desse lado.Imediatamente, o grito se ergueu e,em momentos, foram acesas luzesna casa de fazenda e fluíramrebeldes carregando tochas acesas,calçando botas sobre os calções,arrastando jaquetas às costas epassando espadas e mosquetes unspara os outros. Ao me agachar,observando, vi as portas de um dosceleiros se abrirem e dois homenspuxarem para fora, com as mãos,uma carroça, já repleta desuprimentos, enquanto outrochegava correndo com um cavalo.

O momento da ação clandestinatinha passado, e os soldadosgenoveses em todos os ladossouberam disso, abandonando atentativa de atacar a fazendasilenciosamente, e correndo morroacima, aos gritos, em direção à casade fazenda.

Eu tinha uma vantagem — jáestava na área da fazenda, alémdisso não usava uniforme desoldado genovês e, na confusão,consegui me movimentar entre osrebeldes apressados, sem levantarsuspeitas.

Fui para o anexo onde Lucioestava alojado e quase trombamosquando ele disparou para fora. Seucabelo estava solto, mas ele estavavestido, e chamava outro homem,incitando-o a seguir para o celeiro.Não muito distante, estava oAssassino, que corria, puxando atúnica pelo peito e, ao mesmotempo, desembainhando a espada.Dois invasores genoveses surgiramdo lado do anexo e imediatamente oAssassino incumbiu-se deles,gritando por cima do ombro: —Lucio, corra para o celeiro.

Excelente. Exatamente o que euqueria: a atenção do Assassinodesviada.

Nesse momento, vi outro soldadochegar correndo ao platô, seagachar, erguer o mosquete e fazermira. Lucio, segurando a tocha, eraseu alvo, mas o sujeito não teve achance de atirar, pois eu me lanceipara cima e estava sobre ele antesmesmo que tivesse me visto. Soltouum único clamor abafado quandoenfiei minha espada até o punho emsua nuca.

— Lucio — gritei.

E ao mesmo tempo empurrei odedo do morto que estava nogatilho, para descarregar omosquete, mas inofensivamente,para o ar. Lucio parou, protegeu avista para olhar através da área,onde dei um show ao me livrar docadáver flácido do soldado. Ocompanheiro de Lucio saiucorrendo, que era exatamente o queeu queria. A certa distância, oAssassino ainda lutava e, por umsegundo, admirei sua habilidade emrechaçar os golpes de dois homensao mesmo tempo.

— Obrigado — berrou Lucio.— Espere — retruquei. — Temos

de sair daqui antes que a fazendaseja invadida.

Ele balançou a cabeça.— Preciso ir para a carroça —

berrou. — Obrigado novamente,amigo. — Então virou e saiu emdisparada.

Maldição. Praguejei e parti nadireção do celeiro, correndoparalelamente a ele, mas fora devista, pelas sombras. À direita,avistei um invasor genovês prestes adeixar a encosta e penetrar na área

da fazenda, e estava perto o bastantepara eu ver seus olhos searregalarem quando fizemos contatovisual. Antes que pudesse reagir,agarrei seu braço, torci-o e enfiei aespada em sua axila, logo acima dopeito, e deixei-o cair gritando, decostas nas pedras, ao mesmo tempoque apanhava sua tocha. Continueiavançando, mantendo-me paralelo aLucio, cuidando para que ficassefora de perigo. Alcancei o celeiroantes dele. Ao passar, ainda nassombras, pude ver o interior pelasportas da frente até então abertas,

onde dois rebeldes prendiam umcavalo à carroça, enquanto outrosdois mantinham guarda, um delesdisparando o mosquete, enquanto ooutro recarregava e depois seajoelhava para atirar. Continueicorrendo, então disparei junto àparede do celeiro, onde encontreium soldado genovês prestes a entrarpor uma porta lateral. Enfiei alâmina da espada para cima pelabase de sua espinha. Por umsegundo, ele se contorceu emagonia, empalado na lâmina, eempurrei seu corpo pela porta

diante de mim, joguei a tocha natraseira da carroça e fiquei nassombras.

— Peguem-nos — bradei, no queesperava ser algo aproximado davoz e do sotaque de um soldadogenovês. — Peguem a escóriarebelde.

E depois:— A carroça está em chamas! —

gritei, dessa vez no que esperava seralgo aproximado da voz e dosotaque de um rebelde corso, aomesmo tempo que saía das sombras,enganchando meu cadáver genovês

e deixando-o cair como se tivesseacabado de matá-lo.

— A carroça está em chamas —repeti, e agora voltei minha atençãopara Lucio, que acabara de chegarao celeiro.

— Precisamos sair daqui. Lucio,venha comigo.

Vi dois dos rebeldes trocarem umolhar confuso, cada qualimaginando quem eu era e o quequeria com Lucio. Houve um somde disparo de mosquete, e madeiraestilhaçou à nossa volta. Um dosrebeldes caiu, uma bala de

mosquete encaixada em seu olho, eeu mergulhei para cima do outro,fingindo protegê-lo dos disparos demosquete, mas, ao mesmo tempo,enfiando a lâmina da faca em seucoração. Era o companheiro deLucio, deduzi, quando ele morreu.

— Ele se foi — falei para Lucio,me levantando.

— Não! — gritou ele, já choroso.Não admirava que só o

considerassem apto para alimentar ogado, pensei, tendo em vista que sedebulhou em lágrimas na primeiravez que um companheiro foi morto

em ação.Agora o celeiro estava em

chamas à nossa volta. Os outrosdois rebeldes, vendo que não havianada que pudessem recuperar,fugiram e correram de formadesordenada pelo terreno emdireção à encosta, misturando-se àescuridão. Outros rebeldes estavamem fuga, e, pela área da fazenda, vique os soldados genoveses haviamincendiado também outros prédios.

— Preciso esperar por Miko —berrou Lucio.

Imaginei que Miko era seu

guarda-costas Assassino.— Ele está ocupado. E pediu a

mim, um colega membro daIrmandade, que cuidasse de você.

— Tem certeza?— Um bom Assassino questiona

tudo — observei. — Miko o ensinoumuito bem. Mas agora não é omomento para lições sobre osprincípios do nosso credo.Precisamos ir.

Ele balançou a cabeça.— Diga-me a senha — pediu com

firmeza.— Liberdade para escolher.

Finalmente, pareci terestabelecido confiança suficientepara convencer Lucio a vir comigo,e começamos a descer a encosta; eu,feliz, agradecendo a Deus por,enfim, estar com ele; ele, não estoucerto. De repente, ele parou.

— Não — recusou-se ele,balançando a cabeça. — Não possofazer isso... Não posso deixar Miko.

Genial, pensei.— Ele disse para você ir —

retruquei — e encontrá-lo no fundoda ravina, onde nossos cavalos estãoamarrados.

Atrás de nós, na área da fazenda,os incêndios estavam mais violentose eu conseguia ouvir o restante dabatalha. Os soldados genovesesestavam eliminando os últimosrebeldes. De não muito distante,ouviram-se pedras ressoando, eavistei outras figuras na escuridão:uma dupla de rebeldes fugindo.Lucio também os viu e ia chamá-los, mas coloquei a mão sobre suaboca.

— Não, Lucio — sussurrei. — Ossoldados devem estar atrás deles.

Seus olhos se arregalaram.

— Eles são meus companheiros.São meus amigos. Preciso estar comeles. Precisamos nos certificar deque Miko está seguro.

De bem alto acima de nós veio osom de súplicas e gritos, e os olhosde Lucio dispararam para lá, comose tentasse lidar com o conflito emsua cabeça: ajudar os amigos acimaou se juntar aos que fugiam? Dequalquer modo, pude ver que eledecidira que não queria ficarcomigo.

— Estranho — começou, e eupensei, agora sou “estranho”, hein?

— Eu lhe agradeço por tudo quefez para me ajudar e espero quepossamos nos encontrar novamenteem circunstâncias mais felizes...Talvez quando eu puder expressarminha gratidão de uma maneiraainda mais completa... Mas, nomomento, preciso estar com meupovo.

Levantou-se para ir. Com umadas mãos sobre seu ombro, fiz comque ele descesse novamente ao meunível. Ele se desvencilhou, com oqueixo apertado.

— Agora, Lucio — pedi —,

escute. Fui enviado pela sua mãepara levá-lo para ela.

Diante disso, ele recuou.— Oh, não — lamentou-se. —

Não, não, não.O que não era a reação que eu

esperava.Tive de andar com dificuldade

pelas pedras para alcançá-lo. Masele começou a me rechaçar.

— Não, não — exclamou. — Nãosei quem você é, apenas me deixesozinho.

— Ah, pelo amor de Deus —falei e, silenciosamente, o derrotei,

ao lhe dar o golpe mata-leão,ignorando seus esforços e aplicandopressão, restringindo o fluxo de suaartéria carótida; não o suficientepara lhe causar dano permanente,mas o bastante para deixá-loinconsciente.

Ao jogá-lo para cima do ombro— uma coisinha pequena como ele— e carregá-lo morro abaixo, comcuidado para evitar os últimosbolsões de rebeldes fugindo doataque genovês, fiquei imaginandopor que simplesmente não oderrubei logo de início.

iii

Parei à beira da ravina e baixeiLucio para o chão, depois encontreiminha corda, amarrei-a e joguei-apara a escuridão abaixo. A seguir,usei o cinto de Lucio para prendersuas mãos, passei a outra ponta porbaixo de suas coxas e amarrei-as demodo que seu corpo inerte ficasseatravessado pelas minhas costas.Então comecei a lenta descida.

Cerca da metade do caminho, opeso tornou-se insuportável, mas euestava preparado para isso e

consegui aguentar até que atingiuma abertura na face do rochedoque levava a uma caverna escura.Entrei com alguma dificuldade etirei Lucio das costas, sentindo osmúsculos relaxarem agradecidos.

Da minha frente, na caverna, veioum ruído. Um movimento aprincípio, como um som semovendo, depois um clique.

O som que faz a lâmina oculta deum Assassino quando se engata.

— Eu sabia que você viria aqui— disse uma voz, uma voz quepertencia a Miko, o Assassino. —

Sabia que viria aqui, porque era oque eu faria.

Então ele atacou, disparou àfrente, vindo do interior da caverna,usando meu choque e minhasurpresa contra mim. Eu já sacavaminha espada curta, e ela estavaestendida quando nos chocamos, alâmina dele cortando na minhadireção como uma garra eencontrando minha espada com talforça que esta foi arrancada daminha mão, enviada deslizando paraa boca da caverna e para a escuridãolá embaixo.

Minha espada. A espada do meupai.

Mas não havia tempo paralamentar, pois o Assassino estavavindo na minha direção umasegunda vez, e ele era bom, muitobom. Em um espaço confinado,desarmado, eu não tinha chance.Tudo que eu tinha, aliás, era...

Sorte.E foi uma questão de sorte eu ter

pressionado o corpo contra a parededa caverna, e ele ter calculadoligeiramente mal, o bastante para sedesequilibrar um pouquinho. Em

quaisquer outras circunstâncias,contra qualquer outro oponente, eleteria se recuperado imediatamente eterminado sua matança, mas nãoeram quaisquer outrascircunstâncias e eu não era qualqueroutro oponente, e o fiz pagar pelominúsculo erro. Inclinei-me paraele, agarrei seu braço, torci-o eajudei-o em seu impulso, a fim deque também partisse para aescuridão. Ele, porém, aguentoufirme, puxou-me junto, arrastando-me para a boca da caverna, de modoque eu gritava de dor, enquanto

tentava evitar ser arrastado para oespaço aberto. Deitado de barriga,procurei-o com os olhos e o vi, umbraço segurando o meu e o outrotentando alcançar a corda. Senti abraçadeira de sua lâmina oculta,estendi minha outra mão adiante ecomecei a apalpar suas presilhas.Ele percebeu tarde demais o que euestava fazendo e desistiu de pegar acorda, em vez disso, concentrou osesforços na tentativa de que eusoltasse a braçadeira. Por ummomento, nossas mãos lutaram umacontra a outra pela lâmina, que,

quando abri a primeira lingueta,deslizou repentinamente mais acimade seu pulso e o fez guinar para umlado, sua posição ainda maisprecária do que antes, o outro braçocomo um cata-vento. Era tudo deque eu precisava e, com um gritofinal de esforço, soltei a últimalingueta, arranquei a braçadeira e,ao mesmo tempo, mordi a mão quesegurava meu punho. Umacombinação de dor e falta de traçãofoi o bastante para, finalmente,empurrá-lo.

Vi-o ser engolido pela escuridão

e rezei para que, quandoaterrissasse, não atingisse meucavalo lá embaixo. Mas não veionada. Nenhum som de queda, nada.A coisa seguinte que vi foi a corda,retesada e tremendo, e estiquei opescoço e forcei a vista paraprocurar pelo escuro e fuirecompensado com a visão de Miko,a alguma distância abaixo, muitovivo, e começando a subir de voltana minha direção.

Segurei sua lâmina e a coloqueisobre a corda.

— Se subir mais ainda, a queda o

matará quando eu cortar a corda —berrei. Ele já estava perto obastante, de modo que pude olharem seus olhos, quando me encaroude baixo para cima, e vi a hesitaçãoneles. — Você não merece sofreruma morte dessas, amigo —acrescentei. — Comece a descida eviva para lutar outro dia.

Passei lentamente a cortar acorda, e ele parou e olhou para oescuro abaixo, onde o fundo daravina não era visível.

— Você está com a minha lâmina— lembrou ele.

— Ao vencedor, os espólios —rebati, com indiferença.

— Talvez nos encontremosnovamente — disse ele —, e euconsiga recuperá-la.

— Sinto que apenas um de nóssobreviverá em um segundoencontro — previ.

Ele assentiu.— Talvez — concordou, e em

pouco tempo desapareceu na noite.O fato de que eu agora teria de

escalar de volta e de ter sidoforçado a ceder meu cavalo, eraembaraçoso. Mas antes isso do que

enfrentar o Assassino novamente.E, por enquanto, estamos

descansando. Bem, eu estoudescansando; o pobre Luciocontinua inconsciente. Mais tarde,eu o entregarei aos parceiros deReginald, que o levarão em umacarroça coberta, farão a passagematravés do Mediterrâneo para o sulda França e, então, para o castelo,onde Lucio se reunirá com a mãe, adecodificadora.

Então alugarei um navio para aItália, me certificarei de ser vistofazendo isso, referindo-me uma ou

duas vezes ao meu “jovemcompanheiro”. Se e quando osAssassinos vierem procurar Lucio,será onde concentrarão seusesforços.

Reginald diz que, depois disso,não serei mais necessário. Devosumir na Itália, sem deixarvestígios, sem trilha para seguir.

12 de agosto de 1753

i

Comecei o dia na França, tendovoltado da Itália. Não é uma tarefafácil; está tudo muito bem claro,mas não dá simplesmente para“voltar” da Itália para a França. Omotivo para eu ir à Itália foidespistar os Assassinos quandoviessem à procura de Lucio. Porisso, ao voltar à França, que era overdadeiro lugar onde escondíamosLucio e sua mãe, eu colocava em

risco não apenas minha missãorecém-concluída, mas tudo aquiloem que Reginald andou trabalhandonos últimos anos. Era arriscado. Tãoarriscado, aliás, que, se eu pensassea respeito, o risco me tiraria ofôlego. Isso me fez perguntar: euseria estúpido? Que tipo de idiotacorreria tal risco?

E a resposta foi: um idiota comdúvida em seu coração.

ii

Mais ou menos a cem metros doportão, encontrei com umpatrulheiro solitário, um guardavestido de camponês, com ummosquete atravessado nas costas,que parecia sonolento, mas estavaalerta e vigilante. Ao nosaproximarmos dele, nossos olhos seencontraram por um momento. Osseus pestanejaram brevemente, aome reconhecer, e ele balançouligeiramente a cabeça para me dizerque eu estava livre para passar.Haveria outro patrulheiro, eu sabia,do outro lado do castelo. Saímos da

floresta e contornamos a altamuralha que a delimitava atéchegarmos a um grande portãoarqueado de madeira no qual haviauma portinhola, onde estava umguarda, um homem que reconhecidos anos que eu havia passado nocastelo.

— Ora, ora — disse ele —, se nãoé o Sr. Haytham, já crescido.

Ele sorriu e segurou as rédeas domeu cavalo enquanto eudesmontava, antes de abrir aportinhola pela qual entrei, piscandodiante da súbita luz solar após o

sombrio comparativo da floresta.Diante de mim, estendia-se o

gramado do castelo, e, caminhandopor ele, tive uma estranha sensação,percorrendo minha barriga, que eusabia ser nostalgia pelo tempo quepassara ali na minha juventude,quando Reginald havia...

...continuado os ensinamentos domeu pai? Ele dissera que sim. Mas,é claro, eu agora sabia que ele haviame enganado a respeito disso. Naparte de combate e ação furtiva,talvez ele tivesse feito isso, masReginald me criara nos moldes da

Ordem dos Templários, e meensinara que esse era o único modo;e que aqueles que acreditavam emoutro eram, na melhor dashipóteses, mal orientados e, na pior,nocivos.

Mas aprendi posteriormente quemeu pai era uma dessas pessoas malorientadas, nocivas, e quem diria oque ele teria me ensinado à medidaque eu crescia. Quem diria?

A grama estava irregular e altademais, apesar da presença de doisjardineiros, ambos usando espadacurta na cintura, as mãos segurando

o cabo, enquanto eu seguia para aporta da frente do castelo. Chegueiperto de um deles, que, ao ver quemeu era, assentiu com a cabeça.

— É uma honra finalmenteconhecê-lo, Sr. Kenway — disseele. — Creio que sua missão foibem-sucedida.

— Foi sim, obrigado — respondiao guarda, ou jardineiro ou seja lá oque fosse.

Para ele, eu era um cavaleiro, umdos mais festejados da Ordem. Euconseguiria realmente odiarReginald por sua orientação ter me

dado tal aclamação? E, afinal decontas, teria eu alguma vezduvidado de seus ensinamentos? Aresposta era não. Eu fora forçado asegui-los? Novamente, não. Sempretive a opção de escolher meupróprio caminho, mas ficara com aOrdem porque acreditava no código.

Ainda assim, ele mentira paramim.

Não, não mentiu para mim. ComoHolden dissera? “Omitiu averdade.”

Por quê?E, mais ainda, por que Lucio

reagiu daquele modo, quando lhedisse que ia encontrar sua mãe?

À menção do meu nome, osegundo jardineiro olhou-me de ummodo mais penetrante, então eletambém fez uma reverência quandopassei, o cumprimentei com umgesto de cabeça, sentindo-me derepente mais alto, e estufando opeito ao me aproximar da porta queeu conhecia tão bem. Virei-me paratrás, antes de bater, a fim de olharpara o gramado, de onde os doisguardas ainda me observavam. Euhavia treinado naquele gramado,

passara horas incontáveisaprimorando minhas habilidadescom a espada.

Bati, e a porta foi aberta por outrohomem vestido de formasemelhante e que também usavauma espada curta na cintura. Ocastelo nunca estava tão cheio defuncionários quando morei nele,mas, pensando bem, quando vivi ali,nunca tivemos um hóspede tãoimportante quanto a decodificadora.

O primeiro rosto familiar que vipertencia a John Harrison, queolhou para mim, desviou os olhos e

então me olhou novamente.— Haytham — alardeou —, que

droga está fazendo aqui?— Olá, John — respondi do

mesmo modo. — Reginald está?— Ora, sim, Haytham, mas

espera-se que Reginald esteja aqui.O que você está fazendo aqui?

— Vim ver Lucio.— Você o quê? — Harrison

estava ficando com o rosto um tantovermelho. — Você veio “verLucio”? — Ele agora estava tendoproblema em encontrar palavras. —O quê? Por quê? O que você pensa

que está fazendo?— John — falei delicadamente

—, por favor, acalme-se. Não fuiseguido da Itália. Ninguém sabe queestou aqui.

— Bem, tenho muita esperançaque não.

— Onde está Reginald?— Embaixo da escada, com os

prisioneiros.— Ah? Prisioneiros?— Monica e Lucio.— Sei. Não fazia ideia de que

eram considerados prisioneiros.Mas uma porta havia se aberto

embaixo da escada e Reginaldapareceu. Eu conhecia aquela porta;ela levava à adega, a qual, quandoeu vivia ali, era um aposento de tetobaixo, úmido, principalmente comestantes vazias de vinho sedesfazendo de um lado e umaparede negra e úmida do outro.

— Olá, Haytham —cumprimentou Reginald, taciturno.— Você não era esperado.

Não muito distante dali, um dosguardas apareceu, e logo teve acompanhia de outro. Olhei para elese de volta para Reginald e John, que

continuavam como uma dupla declérigos preocupados. Nenhum dosdois estava armado, mas, ainda queestivessem, acho que conseguiriadominar os quatro. Se isso fossepreciso.

— De fato — observei. — Johnestava mesmo me dizendo o quantoficou surpreso com a minha visita.

— Sim, realmente. Foi muitodescuidado, Haytham...

— Talvez, mas eu queria ver seLucio estava sendo bem-cuidado.Agora que me disseram que é umprisioneiro, talvez eu tenha a

resposta.Reginald deu uma risada.— Ora, o que você esperava?— O que me foi dito. Que a

missão era reunir mãe e filho; queela concordara em trabalhar nodiário de Vedomir, se fôssemoscapazes de resgatar seu filho dosrebeldes.

— Eu não menti para você,Haytham. Realmente, Monica temtrabalhado no diário desde queencontrou Lucio.

— Mas não do modo queimaginei.

— Se a técnica da cenoura navara não funciona, usamos só a vara— comentou Reginald, os olhosfrios. — Lamento, se você ficoucom a impressão de que havia maiscenouras do que varas.

— Quero vê-la — pedi e, com umcurto gesto da cabeça, Reginaldconcordou. Virou-se e nos conduziupela porta, que abria para um lancede degraus de pedra que levavamabaixo. A luz dançava nas paredes.

— Com relação ao diário, agoraestamos perto, Haytham —informou ele, enquanto descíamos.

— Até agora, conseguimosestabelecer a existência de umamuleto. De algum modo, isso seencaixa com o depósito. Seconseguirmos o amuleto...

No pé da escada, fogaréus deferro sobre estacas tinham sidoinstalados para iluminar o caminhoaté a porta, onde havia um guarda.Este se afastou para o lado e abriu aporta para entrarmos. Lá dentro, aadega era como eu me lembravadela, iluminada pela luz tremulantede tochas. Em uma extremidade,havia uma escrivaninha. Estava

presa ao chão, e Lucio, algemado aela, e, a seu lado, estava a mãe, queera uma visão incongruente. Estavasentada em uma cadeira que pareciater sido trazida lá de cima para aadega especialmente para isso. Elausava saia comprida e blusaabotoada até em cima, e pareceriauma carola se não fossem osgrilhões de ferro enferrujados emvolta dos seus punhos e dos braçosda cadeira e, especialmente, umamáscara da infâmia em volta dacabeça.

Lucio girou em seu assento, viu-

me e seus olhos queimaram de ódio,e depois voltou ao trabalho.

Eu havia parado no meio doaposento, entre a porta e osdecodificadores.

— Reginald, o que significa isso?— indaguei, apontando para a mãede Lucio, que me olhoumalignamente do interior damáscara da infâmia.

— A máscara é temporária,Haytham. Monica não teve papas nalíngua esta manhã para condenarnossas táticas. Portanto, ostrouxemos para cá para passarem o

dia de hoje. — Ele ergueu a vozpara se dirigir aos decodificadores.— Tenho certeza de que, amanhã,após terem recuperado as boasmaneiras, poderão voltar à suaresidência habitual.

— Isso não está direito, Reginald.— Os alojamentos habituais deles

são muito mais agradáveis,Haytham — assegurou-meimpacientemente.

— Mesmo assim, não deveriamser tratados desse modo.

— Nem o pobre menino, naFloresta Negra, deveria ter morrido

de medo com sua lâmina nagarganta dele — vociferouReginald.

Comecei a falar, minha bocatrabalhando, mas as palavras mefaltaram.

— Aquilo foi... Aquilo foi...— Diferente? Por que envolvia a

missão de encontrar os assassinosdo seu pai? Haytham... — Elesegurou meu cotovelo e meconduziu para fora da adega e devolta ao corredor, e, novamente,subimos os degraus. — Isto é maisimportante do que aquilo. Você

pode não achar, mas é. Envolve ofuturo inteiro da Ordem.

Eu não tinha mais certeza. Nãotinha certeza do que era maisimportante, porém nada disse.

— E o que acontecerá quando ocódigo for decifrado? — perguntei,quando chegamos novamente aohall de entrada.

Ele olhou para mim.— Ah, não — falei, ao entender.

— Não deve acontecer nada comeles.

— Haytham, não ligo para o fatode você me dar ordens...

— Então não encare isso comouma ordem — sussurrei. — Encarecomo uma ameaça. Mantenha-osaqui, após o trabalho deles terterminado, se for preciso, mas, selhes acontecer alguma coisa, vocêterá de se ver comigo.

Ele olhou-me intensa elongamente. Dei-me conta de quemeu coração martelava e roguei aDeus para que não fosse de algummodo visível. Alguma vez eu tinhaido contra ele daquele modo? Comtal força? Achava que não.

— Está bem — disse ele, após

um momento —, eles não serãoafetados.

Passamos o jantar quase emsilêncio, e a oferta de um leito paraeu passar a noite foi feita comrelutância. Parti pela manhã;Reginald prometeu manter contato,com notícias sobre o diário. Acordialidade entre nós, porém,acabou. Em mim, ele vêinsubordinação; nele, vejo mentiras.

18 de abril de 1754

i

Mais cedo, esta noite, encontrei-mena Royal Opera House, ocupandoum assento ao lado de Reginald, quese acomodava para assistir à Óperados mendigos com evidente alegria.Claro que, da última vez que nosencontramos, eu o ameaçara, o quenão era algo que eu houvesseesquecido, mas, evidentemente, elehavia. Esquecido ou perdoado, umdos dois. De qualquer modo, era

como se o confronto não tivesseexistido, o quadro-negro apagado,ou pela sua antecipação da próximadiversão da noite ou pelo fato deque ele acreditava que o amuletoestava perto.

Estava no interior do teatro, aliás,em volta do pescoço de umAssassino que fora citado no diáriode Vedomir, e depois localizadopelos agentes dos Templários.

Um Assassino. Ele era meu alvoseguinte. Meu primeiro trabalhodesde o resgate de Lucio naCórsega, e o primeiro a sentir a

ferroada da minha nova arma:minha lâmina oculta. Ao pegar osbinóculos de ópera e olhar para ohomem do outro lado do salão —meu alvo —, fui atingidosubitamente pela ironia.

Meu alvo era Miko.Deixei Reginald em seu lugar e

segui ao longo dos corredores doteatro, por trás dos assentos, passeipelos patronos da ópera, até medescobrir nos camarotes. Noreservado onde Miko estavasentado, entrei em silêncio e batidelicadamente em seu ombro.

Eu estava pronto para ele setentasse alguma coisa, mas, emboraseu corpo ficasse tenso e o ouvisseinspirar fundo, não fez qualquermovimento para se defender. Foiquase como se ele esperasse,quando estendi a mão e tirei oamuleto de seu pescoço — e percebiuma sensação de... alívio? Como seestivesse agradecido por renunciar àresponsabilidade, feliz por não sermais seu guardião?

— Você deveria ter me procurado— suspirou. — Nós teríamosencontrado outro meio...

— Sim. Mas, aí, você ficariasabendo — retruquei.

Houve um clique, quando soltei alâmina, e o vi sorrir, percebendoque era aquela que eu lhe tomara naCórsega.

— Sei que não importa, mas sintomuito — disse-lhe.

— Eu também — falou, e eu omatei.

ii

Algumas horas depois, participei da

reunião na casa na Fleet and Bride,em volta de uma mesa com outros,nossa atenção concentrada emReginald, assim como no livro ànossa frente sobre a mesa. Estavaaberto, e vi o símbolo dosAssassinos na página.

— Cavalheiros — disse Reginald.Seus olhos brilhavam, como seestivesse prestes a chorar. — Tenhoem minha mão uma chave. E, se oque este livro diz é verdade, elaabrirá as portas de um depósitoconstruído por Aqueles Que VieramAntes.

Eu me contive.— Ah, nossos queridos amigos

que governaram, decaíram e entãosumiram do mundo — lembrei. —Você sabe o que encontraremos ládentro?

Se Reginald captou meusarcasmo, não deu qualquer sinal.Em vez disso, apanhou o amuleto,ergueu-o e exibiu-o diante dosilêncio das pessoas reunidas,enquanto a coisa começou a brilharem sua mão. Foi impressionante, atémesmo eu tive de admitir, eReginald olhou direto para mim.

— Isto pode conter conhecimento— rebateu. — Talvez uma arma, oualgo ainda desconhecido, insondávelem sua construção e seu propósito.Pode ser uma dessas coisas. Ounenhuma delas. Ainda são umenigma, aqueles antecessores. Masde uma coisa estou certo... O quequer que nos espera atrás daquelasportas será de grande benefício paranós.

— Ou para nossos inimigos —contrapus —, se encontraremprimeiro.

Ele sorriu. Eu estaria, finalmente,

começando a acreditar?— Eles não encontrarão. Você

providenciou isso.Miko morrera querendo encontrar

outro meio. O que ele quis dizer?Um acordo entre Assassinos eTemplários? Meus pensamentos sedirigiram a meu pai.

— Suponho que você saiba ondefica esse depósito? — indaguei,após uma pausa.

— Sr. Harrison? — chamouReginald, e John adiantou-se comum mapa, desdobrando-o.

— Qual é a precisão de seus

cálculos? — perguntou Reginald,enquanto John circulava uma áreado mapa, a qual, inclinando-memais para perto, vi que continhaNova York e Massachusetts.

— Acredito que o local esteja emalguma parte dentro desta região —disse ele.

— É muito chão para percorrer.— Franzi a testa.

— Peço desculpas. Queria poderser mais exato...

— Tudo bem — conciliouReginald. — É o bastante paracomeçar. E foi por isso que o

chamamos aqui, Sr. Kenway.Gostaríamos que viajasse para aAmérica, localizasse o depósito etomasse seu conteúdo.

— Estou às suas ordens — falei.Internamente, eu o amaldiçoei pelasua insensatez, e desejei que medeixassem em paz para continuarminhas investigações, entãoacrescentei: — Embora um trabalhode tal magnitude requeira mais doque apenas eu.

— Claro — concordou Reginald,e me passou um pedaço de papel. —Aqui estão os nomes de cinco

homens solidários à nossa causa.Cada qual está tambémperfeitamente de acordo em ajudá-lo no seu empreendimento. Comeles a seu lado, não lhe faltará nada.

— Bem, então é melhor eu seguirmeu caminho — declarei.

— Eu sabia que nossa confiançaem você não foi mal empregada. Járeservamos sua passagem paraBoston. Seu navio parte aoamanhecer. Parta, Haytham... etraga honra para todos nós.

8 de julho de 1754

i

Boston cintilava ao sol, enquantogaivotas grasnavam e circulavamacima, com a água batendoruidosamente na parede do porto e aprancha martelando como umtambor, ao desembarcarmos doProvidence, cansados edesorientados por termos passadomais de um mês no mar, mas fracosde felicidade por finalmentealcançar a terra. Parei de repente,

quando marinheiros de uma fragatavizinha rolaram barris, através domeu caminho, com o som de umatrovoada distante, e meu olhar saiudo reluzente mar esmeralda, onde osmastros dos navios de guerra daMarinha Real, iates e fragatasbalançavam lentamente de lado alado, indo para a doca, os largosdegraus de pedra que levavam depíeres e quebra-mares ao portoapinhado de casacos vermelhos,comerciantes e marujos, depoisacima, passando do porto para acidade de Boston propriamente dita,

os pináculos das igrejas e oscaracterísticos prédios de tijolosvermelhos aparentemente resistindoa qualquer tentativa de arrumação,como se tivessem sido jogados dolado da colina por uma mão divina.E, por toda a parte, bandeiras doReino Unido balançandodelicadamente ao vento, só paralembrar aos visitantes — para ocaso de terem quaisquer dúvidas —que os britânicos estavam aqui.

A passagem da Inglaterra para aAmérica fora agitada, para dizer omínimo. Fizera amigos e descobrira

inimigos, sobrevivendo a umatentado à minha vida — semdúvida, pelos Assassinos, quequeriam se vingar pela morte noteatro e recuperar o amuleto.

Para os demais passageiros etripulantes do navio, eu era ummistério. Alguns achavam que euera um erudito. Eu disse a meu novoconhecido, James Fairweather, queeu “solucionava problemas”, e queviajava para a América para vercomo era a vida por lá; o que forapreservado do império e o que forarejeitado; que mudanças o domínio

britânico havia feito.Que eram falsidades, é claro. Mas

não inteiramente mentiras. Emboraeu tivesse vindo por causa de umassunto templário específico,também estava curioso para veraquela terra de que tanto ouvirafalar, a qual era aparentemente tãovasta e seu povo estimulado por umindomável espírito pioneiro.

Havia aqueles que diziam queesse espírito talvez um dia pudesseser usado contra nós, e que nossossúditos, se trabalhassem essadeterminação, seriam um inimigo

formidável. E havia outros quediziam que a América erasimplesmente grande demais paraser governada por nós; que era umbarril de pólvora, prestes a explodir;que seu povo se cansaria das taxasque lhe eram impostas para que umpaís distante milhares dequilômetros pudesse guerrear comoutros países também distantesmilhares de quilômetros; e que,quando ele explodisse, talvez nãotivéssemos recursos para protegernossos interesses. Tudo isso euesperava julgar por mim mesmo.

Mas apenas como algo além daminha missão principal, que era...bem, creio que é justo dizer que,para mim, a missão havia mudadono caminho. Eu entrara noProvidence mantendo uma sérieparticular de crenças e saíra,primeiramente, desafiando-as,depois abalando-as e, finalmente,mudando-as, e tudo por causa dolivro.

O livro que Reginald me dera: eupassara a maior parte do tempo abordo do navio estudando-oatentamente; devo tê-lo lido não

menos do que duas dúzias de vezes,e ainda não tenho certeza se oentendi.

Uma coisa, porém, eu sei. Seantes via Aqueles Que VieramAntes com dúvida, como o faria umcético, um incrédulo, e consideravaa obsessão de Reginald com eles, namelhor das hipóteses, irritante, e, napior, uma preocupação queameaçava arruinar o própriotrabalho de nossa Ordem, eu agoranão pensava mais assim. Euacreditava.

O livro parecia ter sido escrito —

ou deveria dizer escrito, ilustrado,decorado, rabiscado — por umhomem, ou talvez vários deles:vários lunáticos que tinham enchidopágina após página com o que aprincípio tomei por alegaçõesmalucas e bizarras, próprias paraserem ridicularizadas e entãoignoradas.

De algum modo, porém, quantomais eu lia, mais enxergava averdade. Ao longo dos anos,Reginald havia me contado (eucostumava dizer “me entediadocom”) suas teorias sobre uma raça

de seres que antecederam a nossa.Ele sempre afirmara que nascemosde seus esforços e, portanto,obrigados a servi-los; que nossosancestrais haviam lutado paragarantir a própria liberdade em umalonga e sangrenta guerra.

O que descobri, durante minhatravessia, foi que tudo isso seoriginava do livro, que, enquanto eulia, estava tendo o que possodescrever como um profundo efeitosobre mim. De repente, entendi porque Reginald se tornou tãoobcecado com aquela raça. Eu havia

zombado dele, lembra? Mas, lendoo livro, não tive mais vontade dezombar, apenas sentir assombro,uma sensação de leveza dentro demim que às vezes me fazia sentirquase tonto de emoção e um sensodo que posso descrever como“insignificância”, de perceber meupróprio lugar no mundo. Foi comose olhasse por um buraco defechadura, esperando ver outroaposento no outro lado, mas em vezdisso enxergando todo um mundonovo.

E o que aconteceu com Aqueles

Que Vieram Antes? O que tinhamdeixado para trás e como issopoderia nos beneficiar? Isso eu nãosabia. Era um mistério que haviaconfundido a minha Ordem porséculos, um mistério que mepediram que solucionasse, ummistério que me trouxe aqui, aBoston.

— Sr. Kenway! Sr. Kenway!Estava sendo saudado por um

jovem cavalheiro que surgiu domeio da multidão. Indo até ele, faleicom todo o cuidado: — Sim? Emque posso ajudá-lo?

Ele estendeu a mão para umcumprimento.

— Charles Lee, senhor. É umprazer conhecê-lo. Fui solicitado alhe mostrar a cidade. Ajudá-lo a seinstalar.

Eu havia sido informado sobreCharles Lee. Ele não fazia parte daOrdem, mas estava ansioso para sejuntar a nós e, de acordo comReginald, desejaria fazer amizadecomigo na esperança de garantirmeu apadrinhamento. Vendo-o,lembrei-me: Eu agora era o Grão-Mestre do Ritual Colonial.

Charles tinha longo cabelo negro,grossas costeletas e um proeminentenariz e, embora tivesse gostado delede imediato, notei que, enquantosorria ao falar comigo, mantinha umolhar de desdém para todos osdemais no porto.

Sinalizou para eu deixar minhasmalas, e começamos a seguircaminho pelas aglomerações docomprido píer. Passamos porpassageiros em estado de confusão etripulantes que ainda levavam seuspertences para terra firme; poroperários das docas, comerciantes e

casacos vermelhos, crianças ecachorros agitados correndo anossos pés.

Bati no chapéu para uma dupla demulheres que davam risadinhas eentão perguntei a ele: — Você gostadaqui, Charles?

— Suponho que haja certocharme em Boston — respondeu porcima do ombro. — Aliás, todas ascolônias. De fato, suas cidades nãotêm a sofisticação ou o esplendor deLondres, mas o povo é determinadoe trabalhador. Tem um espíritopioneiro que acho cativante.

Olhei em volta.— É muito bom, realmente... ver

um lugar que está finalmentecaminhando com os próprios pés.

— Pés manchados com o sanguede outros, receio.

— Ah, isso é uma história tãovelha quanto o próprio tempo, euma daquelas que provavelmentenão vão mudar. Nós somos criaturascruéis e desesperadas, obstinadasem nossos modos de conquista. Ossaxões e os francos. Os otomanos eos safávidas. Eu poderia prosseguirpor horas. A história humana inteira

não passa de uma série desubjugações.

— Rezo para que um dia noselevemos acima disso — retrucouCharles com sinceridade.

— Enquanto você reza, eu agirei.Veremos quem terá sucessoprimeiro, hum?

— Foi uma expressão — alegou,com um pouco de mágoa na voz.

— Sim. E uma expressãoperigosa. As palavras têm poder.Maneje-as sabiamente.

Ficamos em silêncio.— Você está a serviço de Edward

Braddock, não? — indaguei, aopassarmos por uma carroçacarregada com frutas.

— Sim, mas ele ainda vai chegarà América, e pensei que talvez eupudesse... bem... pelo menos até elechegar... pensei que...

Dei um passo agilmente para olado, para evitar uma menininhacom rabo de cavalo.

— Diga — pedi.— Perdoe-me, senhor. Eu

esperava... Esperava que talvezpudesse servir ao senhor. Se vouservir à Ordem, não consigo

imaginar um mentor melhor do queo senhor.

Senti uma leve pontada desatisfação.

— Bondade sua dizer isso, mascreio que me superestima.

— Impossível, senhor.Não longe dali, um jornaleiro

com o rosto vermelho e usandoboné apregoava a notícia da batalhano Forte Necessity: “Forçasfrancesas declaram vitória emseguida à retirada de Washington”,berrava. “Em reação, o duque deNewcastle promete mais soldados

para conter a ameaça estrangeira!”A ameaça estrangeira, pensei. Em

outras palavras, os franceses. Esseconflito, que chamavam de GuerraFranco-Indígena, estava prestes a seagravar, se os boatos fossemverdadeiros.

Não havia um inglês vivo que nãodetestasse os franceses, mas euconhecia um inglês em particularque os odiava com uma paixão deinchar as veias, que era EdwardBraddock. Quando chegasse àAmérica, era para lá que eleseguiria, deixando-me cuidar de

meus próprios assuntos — ou assimesperava.

Acenei para o jornaleiro irembora quando tentou me extorquiruma moeda de seis pence pela folha.Eu não tinha vontade de ler sobremais vitórias francesas.

Enquanto isso, ao chegarmos aosnossos cavalos e Charles me dizerque cavalgaríamos até a TavernaGreen Dragon, fiquei imaginandoquem seriam os outros homens.

— Você foi informado do motivopor que vim para Boston? —perguntei.

— Não. O Sr. Birch disse que eudeveria saber apenas o que vocêachasse necessário. Ele me enviouuma lista de nomes e me fezgarantir que você encontrasse essaspessoas.

— E você teve alguma sorte comisso?

— Sim. William Johnson nosespera na Green Dragon.

— Você o conhece bem?— Não muito. Mas ele viu a

marca da Ordem e não hesitou emvir.

— Prove que é leal à nossa causa

e poderá saber de nossos planos —prometi.

Ele ficou radiante.— Eu não gostaria de nada mais,

senhor.

ii

A Green Dragon era uma amplaconstrução de tijolos com umtelhado de duas águas inclinado euma placa na porta da frente queostentava o epônimo dragão. Deacordo com Charles, era o mais

famoso café da cidade, onde todomundo, de patriotas a casacosvermelhos e governadores, seencontrava para conversar, tramar,fofocar e negociar. Tudo queacontecia em Boston, as chances seoriginavam aqui, na Union Street.

Não que a Union Street por si sófosse cativante. Pouco mais do queum rio de lama, diminuiu nossoritmo ao nos aproximarmos dataverna, para evitar que elaespirrasse em algum dos grupos decavalheiros que se encontravam dolado de fora, apoiados em bengalas

e tagarelando intensamente.Evitando carroças e fazendo rápidoscumprimentos para soldadosmontados, chegamos a um baixoestábulo de madeira, onde deixamosnossos cavalos, depois atravessamoscom todo o cuidado os riachos delama até a taverna. Lá dentro, fomosimediatamente apresentados aosproprietários: Catherine Kerr, queestava (sem querer ser descortês)mais para o lado volumoso; eCornelius Douglass, cujas primeiraspalavras que ouvi ao entrar foram:— Vá se danar, vadia!

Felizmente, ele não estavafalando nem comigo nem comCharles, mas com Catherine.Quando os dois nos viram, seucomportamento mudouinstantaneamente de hostil paraservil, e cuidaram para que minhasmalas fossem levadas para meuquarto no andar de cima.

Charles estava certo: WilliamJohnson já estava lá, e fomosapresentados em um quarto lá emcima. Um homem mais velho,vestido de modo semelhante aCharles, mas mostrando certo

enfado com este, uma experiênciaque estava gravada nas linhas de seurosto, levantou-se de onde estavaestudando mapas para apertar minhamão.

— Prazer — disse ele e, então,quando Charles saiu para ficar deguarda, inclinou-se para a frente ecomentou: — Um bom rapaz, sefosse um pouquinho mais sério.

Guardei para mim mesmo o queachava de Charles, indicando comos olhos que ele deveria continuar.

— Soube que você está montandouma expedição — falou.

— Acreditamos que há um sítioprecursor nesta região — expliquei,escolhendo cuidadosamente aspalavras, depois acrescentando: —Preciso do seu conhecimento daregião e das pessoas para encontrá-lo.

Ele fez um careta.— Infelizmente, um baú que

continha minha pesquisa foiroubado. Sem ela, não tenhoutilidade para você.

Eu sabia, por experiência própria,que nada nunca era fácil.

— Então vamos procurá-lo —

suspirei. — Tem alguma pista?— Meu colega, Thomas Hickey,

andou fazendo as rondas. Ele émuito bom em soltar línguas.

— Diga-me onde posso encontrá-lo e cuidarei para acelerar as coisas.

— Ouvimos boatos sobrebandidos agindo a partir de umcomplexo a sudoeste daqui —informou William. — Certamente,vai encontrá-lo lá.

iii

Fora da cidade, o milho em umaplantação ondulava sob uma suavebrisa noturna. Não muito distante,estava a alta cerca de um complexoque pertencia aos bandidos e, dointerior, vinha o som rouco de umafesta. Por que não?, pensei. Todosos dias evitando a morte pelo laçodo carrasco ou na ponta da baionetade um casaco vermelho é motivo defesta para quem leva a vida comobandido.

Havia vários guardas e parasitasperambulando ao redor dos portões,alguns bebendo, outros tentando

montar guarda, todos em umconstante estado de altercação. Àesquerda do complexo, o milharalse erguia até o alto de um pequenopico de morro e, nele, estavasentado um vigia curvado sobreuma pequena fogueira. Sentadocurvado sobre uma fogueira não ébem a posição desejada para umvigia, mas, por outro lado, era umdos poucos deste lado do complexoque parecia estar levando o trabalhoa sério. Certamente, não tinhamcolocado nenhum grupo debatedores. Ou, se tinham, os grupos

de batedores deviam estar seespreguiçando em algum lugardebaixo de uma árvore, totalmentebêbados, porque não havia ninguémpara nos ver, Charles e eu, quandonos aproximamos sorrateiramente, efomos para perto de um homem queestava agachado junto a um muro depedra em ruína, vigiando ocomplexo.

Era ele: Thomas Hickey. Umhomem de rosto redondo, um poucomaltrapilho e provavelmente elepróprio muito afeiçoado ao grogue,se meu palpite estava correto.

Aquele era o homem que, segundoWilliam, era bom em soltarlínguas? Parecia ter problemas emsoltar as próprias ceroulas.

Talvez, de modo arrogante,minha aversão por ele tenha sidoalimentada pelo fato de que era oprimeiro contato que encontravadesde que havia chegado a Bostonpara quem meu nome nãosignificava nada. Mas, se aquilo meirritou, não foi nada comparado aoefeito que teve em Charles, quesacou a espada.

— Mostre algum respeito, rapaz

— rosnou.Contive-o com a mão.— Paz, Charles — pedi, então me

dirigi a Thomas: — WilliamJohnson nos mandou, na esperançade que pudéssemos... apressar suabusca.

— Não preciso apressar nada —disse ele com a fala arrastada. —Também não preciso de nenhum devocês de fala elegante de Londres.Já encontrei os homens querealizaram o roubo.

A meu lado, Charles indignou-se.— O que faz, então, vadiando

aqui?— Imaginando como lidar com

aqueles patifes — respondeuThomas, apontando para ocomplexo, então virou-se para nóscom um olhar esperançoso e umsorriso descarado.

Suspirei. Era hora de agir.— Certo, vou matar o vigia e

tomar posição atrás dos guardas.Vocês dois se aproximam pelafrente. Quando eu abrir fogo sobreum grupo, ataquem. Teremos oelemento surpresa do nosso lado.Metade cairá antes de ao menos

perceber o que aconteceu.Peguei o mosquete, deixei meus

dois companheiros e me esquiveiaté a beira do milharal, onde meagachei e mirei no vigia. Ele estavaaquecendo as mãos, o rifle entre aspernas, e provavelmente não meveria nem me ouviria se eu meaproximasse montado em umcamelo. Parecia quase covardiaapertar o gatilho, mas o apertei.

Praguejei, quando se arremessouà frente, enviando acima uma chuvade faíscas. Ele logo começaria aqueimar e, se não fosse qualquer

outra coisa, o cheiro alertaria seuscompatriotas. Agora correndo,voltei para Charles e Thomas, quese aproximaram do complexo dosbandidos enquanto eu tomavaposição não muito distante, apoiei acoronha do meu rifle no ombro emantive na mira um dos bandidos,que estava — embora “oscilava”talvez fosse o termo mais correto —logo do lado de fora do portão.Enquanto eu observava, elecomeçou a se movimentar nadireção do milharal, talvez parasubstituir o sentinela que eu já havia

abatido e que agora assava em suaprópria fogueira. Esperei até eleestar à beira do milharal, pausandoquando houve uma súbita calmariana diversão do interior do complexoe, então, quando o barulhoaumentou, apertei o gatilho.

Ele caiu de joelhos, depoistombou para o lado, parte de seucrânio sumido, e meu olhar foidireto para a entrada do complexo,para ver se o tiro tinha sido ouvido.

Não, foi a resposta. Em vez disso,o povo diante do portão haviadirigido sua atenção para Charles e

Thomas, sacara suas espadas epistolas e começara a gritar paraeles: “Deem o fora!”

Charles e Thomas demoraram-se,como eu havia mandado. Podia versuas mãos coçando para sacar aspróprias armas, mas aguardavamsua vez. Bons homens. Esperandoque eu desse o primeiro tiro.

O momento era agora. Sorteei umdos homens, aquele que eu achavaque era o cabeça. Puxei o gatilho evi jorrar sangue da parte posteriorde sua cabeça, e ele cambaleou paratrás.

Dessa vez, meu tiro foi ouvido,mas não importava, porque aomesmo tempo Charles e Thomasdesembainharam as espadas eatingiram mais dois guardas, quetombaram com sangue jorrando deferimentos no pescoço. O portãovirou uma confusão, e a batalhacomeçou de verdade.

Consegui acertar mais dois dosbandidos antes de abandonar meumosquete, saquei a espada e corriadiante, saltando para o meio docombate e ficando lado a lado comCharles e Thomas. Pela primeira

vez, gostei de lutar comcompanheiros e derrubei três dospatifes, que morreram gritando,enquanto os colegas corriam para oportão e se entrincheiravam ládentro.

Em pouco tempo, os únicoshomens que restaram fomos nós, eu,Charles e Thomas, os trêsrespirando pesadamente e sacudindoo sangue de nosso aço. Olhei paraThomas com respeito renovado: eledesempenhou bem sua tarefa, comvelocidade e habilidade quedesmentiam sua aparência. Charles

também olhava para ele, emboracom um pouco mais de desagrado,como se a proficiência de Thomasna batalha o tivesse irritado.

Agora, porém, tínhamos um novoproblema: tomamos o lado de forado complexo, mas a porta forabloqueada por aqueles querecuaram. Foi Thomas que sugeriuque atirássemos no barril de pólvora— outra boa ideia do homem queanteriormente havia repudiadocomo bêbado —, e foi o que fiz,explodindo um buraco na parede,através do qual nos precipitamos,

pisando nos corpos rotos edilacerados que atulhavam apassagem para o outro lado.

Corremos. Havia grossos tapetese mantas no chão, enquantorequintadas tapeçarias estavampenduradas nas janelas. O lugarinteiro estava na semiescuridão.Havia gritos, de homens e mulheres,e sons de pés correndo, enquantoavançávamos rapidamente, eu coma espada em uma das mãos e apistola na outra, usando ambas,matando qualquer homem em meucaminho.

Thomas havia surrupiado umcastiçal, e usou-o para enfiar nacabeça de um bandido, limpandomiolos e sangue do rosto, quandoCharles nos lembrou por queestávamos ali: para encontrar o baúde William. Ele o descreveu,enquanto corríamos por maiscorredores sombrios, encontrandoagora menos resistência. Ou osbandidos estavam fugindo de nós ouestavam se reunindo em uma forçamais coesa. Não que interessasse oque estavam fazendo: precisávamosachar o baú.

E o achamos, aninhado nosfundos de um budoar que fedia acerveja e sexo e, aparentemente,estava cheio de gente: mulheresseminuas, que pegaram roupas esaíram gritando, e vários ladrõescarregando suas armas. Uma balaatingiu o caixilho da porta a meulado, e procuramos abrigo quandooutro homem, nu, ergueu a pistolapara atirar.

Nas proximidades do caixilho daporta, Charles retribuiu o disparo, eo homem nu desabou no tapete comum grosseiro buraco vermelho no

peito, agarrando um punhado deroupa de cama ao cair. Outra balaarranhou o caixilho, e nosabaixamos. Thomas sacou a espadaquando mais dois bandidos searremessaram pelo corredor emnossa direção, Charlesacompanhando-o.

— Larguem suas armas —bradou do budoar um dos bandidosremanescentes —, e pensarei emdeixá-los com vida.

— Eu lhe faço a mesma oferta —falei de trás da porta. — Não temosnenhuma rixa com vocês. Quero

apenas devolver o baú ao legítimodono.

Houve escárnio em sua voz.— Não há nada legítimo em

relação ao Sr. Johnson.— Não vou pedir novamente.— De acordo.Ouvi um movimento ali perto e

atravessei rapidamente o vão daporta. O outro homem havia tentadose aproximar sorrateiramente denós, mas coloquei uma bala entreseus olhos e ele caiu pesadamenteno chão, sua pistola deslizando paralonge. O bandido remanescente

atirou de novo e mergulhou emdireção à arma do companheiro,mas eu já havia recarregado eantecipado seu movimento e enfieiuma bala em seu flanco quando seesticou para pegá-la. Como umanimal ferido, dobrou-se como umcanivete, voltando para a cama epousando em uma úmida confusãode sangue e lençóis, e ergueu a vistapara mim, quando entreicautelosamente, a pistola estendidaà minha frente.

Ele me deu um olhar sinistro.Não foi daquele jeito que planejou

terminar sua noite.— Gente da sua laia não precisa

de livros nem de mapas — observei,apontando para o baú de William.— Quem o levou a isso?

— Nunca vejo a pessoa —sibilou, balançando a cabeça. — Sãosempre mensagens deixadas emesconderijos e cartas. Mas elessempre pagam, portanto nósfazemos os serviços.

Aonde quer que eu fosseencontrava homens, como obandido, que aparentemente fariamqualquer coisa, qualquer coisa, por

algumas moedas. Foram homenscomo ele que invadiram o lar daminha infância e mataram meu pai.Homens como ele que mecolocaram no caminho em que meencontro atualmente.

Eles sempre pagam. Nós fazemosos serviços.

De algum modo, através do véuda repugnância, resisti à vontade dematá-lo.

— Bem, esses dias acabaram.Conte para seus amos que eu disseisso.

Ele se ergueu ligeiramente, talvez

percebendo que o deixaria viver.— Quem eu digo que você é?— Não precisa. Eles saberão —

afirmei. E o deixei ir.Thomas começou a recolher mais

saques, enquanto Charles e eupegamos o baú e deixamos ocomplexo. Sair foi mais fácil, pois amaioria dos bandidos, tendodecidido que a discrição era amelhor parte da bravura, ficou forado nosso caminho, e seguimos aténossos cavalos e fomos emboragalopando.

iv

Na Green Dragon, William Johnsonestava novamente estudando osmapas. Imediatamente vasculhou obaú, quando o devolvemos para ele,verificando se seus mapas epergaminhos estavam lá.

— Meus agradecimentos, Sr.Kenway — disse ele, recostando-sediante de sua escrivaninha,satisfeito por tudo estar em ordem.— Agora, me diga o que precisa.

O amuleto estava pendurado nomeu pescoço. Descobri-me

admirando-o, após pegá-lo. Teriasido minha imaginação, ou elepareceu brilhar? Não tinha brilhado— não na noite em que o tirei deMiko, no teatro. A primeira vez queo vi brilhar foi quando Reginaldsegurou-o na Fleet and Bride.Agora, porém, pareceu fazer emminha mão o que havia feito nadele, como se estivesse energizado— por mais ridículo que parecesse— pela crença.

Olhei para ele, depois levei asmãos até o pescoço, retirei oamuleto por cima da cabeça e

atravessei-o por cima daescrivaninha. Ele me encarou,enquanto o apanhava, percebendosua importância, então olhou-oforçando a vista, estudando-ocuidadosamente, enquanto euindagava: — As imagens noamuleto... elas lhe são familiares?Pode ser que uma das tribos tenhalhe mostrado algo semelhante?

— Parece de origemKanien’kehá:ka — disse William.

Os mohawk. Minha pulsaçãoacelerou.

— É capaz de determinar uma

localização específica? —perguntei. — Preciso saber de ondeveio isso.

— Com a retomada da minhapesquisa, talvez. Deixe-me ver oque consigo fazer.

Assenti com a cabeça emagradecimento.

— Antes, porém, gostaria desaber mais sobre você, William.Fale-me sobre você.

— Falar o quê? Nasci na Irlanda,de pais católicos... o que, aprendibem cedo na vida, limitouseveramente minhas oportunidades.

Por isso me converti aoprotestantismo e viajei para cá amando do meu tio. Mas receio quemeu tio Peter não tivesse uma dasmentes mais brilhantes. Procuroufazer comércio com os mohawk...mas optou por construir seuestabelecimento distante das rotasde comércio, em vez de bem pertodelas. Tentei argumentar com osujeito, mas... — suspirou — ...como disse, não era brilhante. Entãopeguei o pouco dinheiro que tinhaganhado e comprei meu próprio lotede terra. Construí uma casa, uma

fazenda, um armazém e um moinho.Um começo humilde... mas bemsituado, o que fez toda a diferença.

— Foi assim então que veio aconhecer os mohawk?

— Sim. E se mostrou um valiosorelacionamento.

— Mas você não ouviu falar nadasobre o lugar dos precursores? Denenhum templo escondido ouconstruções antigas?

— Sim e não. O que quer dizerque eles têm seus lugares sagrados,mas nenhum combina com o quevocê descreve. São montes feitos de

barro, clareiras na floresta, cavernasescondidas... Mas tudo natural.Nenhum metal estranho. Nenhum...brilho esquisito.

— Humm. Está bem escondido— observei.

— Mesmo para eles, é o queparece. — Deu um sorriso. — Masanime-se, meu amigo. Você terá seutesouro. Prometo.

Ergui minha taça.— Ao nosso sucesso então.— E muito em breve.Sorri. Agora éramos quatro.

Éramos uma equipe.

10 de julho de 1754

i

Tínhamos agora nosso quarto naTaverna Green Dragon — uma base,se preferirem —, e foi ali que entreipara encontrar Thomas, Charles eWilliam: Thomas bebendo, Charlescom aparência perturbada e Williamestudando seus gráficos e mapas.Cumprimentei-os e fuirecompensado com um arroto deThomas.

— Encantador — despejou

Charles.Sorri.— Anime-se, Charles. Ele vai

acabar subindo no seu conceito —falei e me sentei ao lado de Thomas,que me deu um olhar agradecido.

— Alguma novidade? —perguntei.

Ele balançou a cabeça.— Apenas murmúrios. Nada

definitivo, no momento. Sei queprocura por notícia de algo fora docomum... Relacionado a templos eespíritos e tempos antigos e não seio que mais. Mas... até agora, não

posso dizer que meu pessoal tenhaouvido alguma coisa.

— Nenhuma bugiganga ouartefato que tenha passado peloseu... mercado clandestino?

— Nada de novo. Duas armasadquiridas desonestamente...algumas joias provavelmentealiviadas de algum ser vivo. Masvocê pediu para prestarmos atençãoem histórias sobre brilhos e zunidose ficar de olho em visões estranhas,certo? Pois eu não soube de nadadisso.

— Continue de olho — pedi.

— Ah, pode deixar. Você meprestou um grande serviço, senhor...e pretendo pagar por completo aminha dívida... O triplo, se quiser.

— Obrigado, Thomas.— Lugar para morar e comida da

qual se alimentar é umagradecimento suficiente. Não sepreocupe. Em breve, lhe serei útil.

Ele ergueu a caneca, masdescobriu que estava vazia, e eu ri,dei-lhe um tapinha nas costas eobservei, quando se levantou e saiubalançando à procura de cerveja emoutro lugar. Então voltei minha

atenção para William, indo até suamesa, um apoio para livros, epuxando uma cadeira para me sentarperto dele.

— Como anda sua pesquisa?Ele me olhou com a testa

franzida.— Os mapas e os cálculos não

estão combinando.Nada nunca é simples, lamentei.— E os seus contatos locais? —

perguntei-lhe, sentando-me à suafrente.

Thomas havia entrado de voltaruidosamente, com uma caneca de

cerveja espumante na mão e umamarca vermelha no rosto, onde foramuito recentemente estapeado, bema tempo de ouvir William sugerir:— Precisamos ganhar suaconfiança, antes de elescompartilharem o que sabemconosco.

— Tive uma ideia de como fazerisso — anunciou Thomas com a falaarrastada, e nos viramos paraencará-lo, variando os graus deinteresse, Charles do modo comonormalmente o olhava, com aexpressão de quem tivesse acabado

de pisar em cocô de cachorro,William com um ar divertido, e eucom genuíno interesse. Thomas,bêbado ou sóbrio, era um indivíduomais inteligente do que Charles ouWilliam o consideravam. Eprosseguiu: — Existe um homemque resolveu escravizar nativos.Liberte-os e eles serão nossosdevedores.

Nativos, pensei. Os mohawk. Erauma boa ideia.

— Você sabe onde são mantidos?Thomas balançou a cabeça. Mas

Charles se inclinou.

— Benjamin Church deve saber.Ele se dedica a procurar e a ajeitar...e também está na sua lista.

Sorri para ele. Bom trabalho,pensei.

E lá estava eu, imaginando aquem apelaríamos a seguir.

ii

Benjamin Church era médico, eencontramos facilmente sua casa.Quando não houve resposta apósbatermos em sua porta, Charles não

perdeu tempo em arrombá-la,entramos correndo e descobrimosque o lugar tinha sido revistado.Não apenas os móveis estavam decabeça para baixo e os documentosespalhados por todo o assoalho,arrebentado durante uma procuradesordenada, mas havia tambémvestígios de sangue no chão.

Olhamos um para o outro.— Parece que não somos os

únicos à procura do Sr. Church —comentei, com a espadadesembainhada.

— Maldição! — explodiu

Charles. — Ele pode estar emqualquer lugar. O que vamos fazer?

Apontei para um retrato do bomdoutor pendurado acima da lareira.Este mostrava um homem no iníciodos 20 anos, o qual, não obstante,tinha uma aparência distinta.

— Nós o encontraremos.Venham, eu mostrarei como.

E comecei a expor para Charles aarte da vigilância, de se misturarcom o que o cerca, desaparecendo,observando rotinas e hábitos,estudando movimentos em volta ese adaptando a eles, tornando-se um

só com o ambiente, tornando-separte do cenário.

Percebi o quanto estava gostandodo meu novo papel como tutor.Quando menino, aprendi com meupai, depois com Reginald, e sempreaguardei ansioso minhas sessõescom eles, sempre adorando atransmissão e a comunicação denovos conhecimentos —conhecimentos proibidos, do tipoque não se encontra em livros.

Ensinando a Charles, fiqueiimaginando se meu pai e Reginaldtinham se sentido do mesmo modo

como me sinto agora: sereno, sábioe experiente. Mostrei-lhe comofazer perguntas, como espreitar,como se movimentar pela cidadecomo um fantasma, reunindo eprocessando informações. E, depoisdisso, nos separamos, realizamosnossas investigaçõesindividualmente, e então, mais oumenos uma hora depois, voltamosjuntos, com a expressão sombria.

O que ficamos sabendo foi queBenjamin Church fora visto nacompanhia de outros homens — trêsou quatro —, que o tinham levado

embora de sua casa. Algumas dastestemunhas haviam suposto queBenjamin estava bêbado; outrasnotaram o quanto estava machucadoe ensaguentado. Um homem que foiem sua ajuda recebeu uma facadanas tripas como agradecimento.Aonde quer que tivessem ido, ficouclaro que Benjamin estavaencrencado, mas aonde tinham ido?A resposta veio de um arauto, quebradava as notícias do dia.

— Você viu esse homem? —perguntei-lhe.

— É difícil dizer... — Balançou a

cabeça. — Tanta gente passa pelapraça, que é difícil...

Enfiei algumas moedas em suamão, e seu comportamento mudouimediatamente. Inclinou-se com umar conspirador: — Ele foi levadopara os armazéns da orla, logo aleste daqui.

— Obrigado gentilmente pela suaajuda — disse-lhe.

— Mas se apresse — aconselhou.— Ele estava com homens de Silas.Tais encontros costumam acabarmuito mal.

Silas, fiquei pensando, enquanto

costurávamos nosso caminho pelasruas em direção à região dosarmazéns. Quem era Silas?

As aglomerações tinhamdiminuído consideravelmente porocasião de nossa chegada aodestino, bem distante das viasprincipais, onde um leve cheiro depeixe parecia pairar sobre o dia. Oarmazém ficava em uma fileira deedificações semelhantes, todasenormes e transpirando um senso deerosão e mau estado, e eu teriapassado direto por ele se não fossepor um guarda que se espreguiçava

do lado de fora da porta principal.Estava sentado sobre um barril, comos pés em cima um do outro,mastigando, não tão alerta quantodeveria estar, de modo que foibastante fácil deter Charles eempurrá-lo para o lado do prédioantes que fôssemos vistos.

Havia uma entrada na paredemais próxima de nós, e verifiqueique não estava vigiada antes deexperimentar a porta. Trancada. Dointerior, ouvimos sons de luta edepois um grito de agonia. Não souhomem de jogar, mas teria apostado

de quem tinha sido o grito deagonia: Benjamin Church. Charles eeu nos entreolhamos. Tínhamos deentrar ali, e depressa. Esticando opescoço para o outro lado doarmazém, dei outra olhada noguarda, avistei o denunciador brilhode chaves em sua cintura e soube oque devia fazer.

Esperei até que um homem queempurrava um carrinho tivessepassado; então, com o dedo noslábios, disse a Charles queesperasse, e saí do abrigo,cambaleando um pouco ao dar a

volta para a frente do prédio,parecendo, para os devidos fins, queeu tinha bebido além da conta.

Sentado em seu barril, o sentinelaolhou de banda para mim, com olábio retorcido. Começou a tirar afaca da bainha, exibindo parte desua lâmina brilhante. Cambaleante,endireitei-me, ergui a mão parareconhecer o aviso e fiz menção deir embora, antes de tropeçar eesbarrar nele.

— Epa! — protestou o guarda, eme empurrou com tanta força queperdi o equilíbrio e caí na rua.

Levantei-me e, com outro aceno dedesculpas, segui meu caminho.

O que ele não sabia era que fuiembora de posse da argola com aschaves, que eu havia retirado de suacintura. De volta à lateral doarmazém, tentamos algumas chavesantes de, para nosso grande alívio,descobrir aquela que abria a porta.Tremendo a cada rangido e guinchoimaginário, abrimos a porta eentramos sorrateiramente noarmazém escuro e cheirando aumidade.

Dentro, nos agachamos perto da

porta, nos adaptando lentamente aonovo ambiente: um vasto espaço, amaior parte na escuridão. Um vazionegro e ecoante parecia se estenderao infinito, a única luz vinha de trêsbraseiros que haviam sidocolocados no meio do aposento.Vimos, finalmente, o homem queestávamos procurando, o homem doretrato: Dr. Benjamin Church.Estava sentado, amarrado a umacadeira, com um guarda de cadalado, com um de seus olhos roxo emachucado, a cabeça pendente esangue pingando constantemente do

corte de um lábio para o lençobranco sujo que ele usava.

Diante dele, estava um homembem-vestido — Silas, sem dúvida— e um companheiro, que amolavauma faca. O suave som de fricçãoque isso fazia tornava-o quasebrando, hipnótico, e, por ummomento, foi o único som no local.

— Por que sempre tem de tornaras coisas difíceis, Benjamin? —perguntou Silas, com um ar teatralde tristeza. Percebi que ele tinhasotaque inglês e parecia bem-nascido. Continuou: —

Simplesmente me dê umarecompensa e tudo será perdoado.

Benjamin encarou-o com umolhar ofendido mas desafiador.

— Não vou pagar por proteção deque não preciso — rebateu,destemidamente.

Silas sorriu e abanou a mão parao abafado, úmido e sujo armazém.

— É um fato que você precisa deproteção ou não estaríamos aqui.

Benjamin virou a cabeça e cuspiuum bocado de sangue, que seesparramou no chão de pedra, entãodirigiu os olhos de volta para Silas,

que exibia um olhar como seBenjamin tivesse soltado gasesdurante um jantar.

— Que falta de jeito —comentou. — Agora, o que faremosem relação ao nosso convidado?

O homem que amolava as facasergueu a vista. Era a sua deixa.

— Talvez eu corte as mãos dele— estridulou. — Coloque um fim àscirurgias que realiza? Talvez alíngua. Para acabar com suatagarelice? Ou talvez corte seu pau.Para ele parar de foder com a gente.

Um tremor pareceu percorrer os

homens, por asco, medo e diversão.Silas reagiu: — São tantas opções,não consigo decidir. — Olhou parao homem da faca e fingiu estarperdido na indecisão, entãoacrescentou: — Faça as três.

— Espere um momento — pediuBenjamin rapidamente. — Talvezeu tivesse me precipitado em merecusar antes.

— Sinto muito, Benjamin, masessa porta já se fechou — disseSilas tristemente.

— Seja razoável... — começouBenjamin, com um traço de súplica

na voz.Silas pendeu a cabeça para o lado

e suas sobrancelhas se uniram emuma falsa preocupação.

— Eu preferiria achar que fuirazoável. Mas você se aproveitou daminha generosidade. Não serei feitode tolo uma segunda vez.

Cutter, o Talhador, avançou,colocou a ponta da faca sobre seupróprio globo ocular, esbugalhandoos olhos e sorrindo loucamente.

— Receio carecer de estruturapara suportar ser testemunha de talbarbarismo — observou Silas, com

o ar de uma velha que se ofendefacilmente. — Vá me procurar, apóster terminado, Cutter.

Silas foi saindo e BenjaminChurch berrou: — Você vai searrepender disso, Silas! Está meouvindo? Eu vou ter a sua cabeça!

Na porta, Silas parou, virou-se eolhou para ele.

— Não — protestou, com o iníciode uma risada. — Não, prefiropensar que não vai ter.

Então os gritos de Benjamincomeçaram, quando Cutter começouseu trabalho, com uma risadinha

silenciosa, ao manejar a faca igual aum pintor dando suas primeiraspinceladas, como se estivesse noinício de um projeto muito maior. Ocoitado do velho Dr. Church era atela e Cutter pintava sua obra-prima.

Sussurrei para Charles o queprecisava ser feito, e ele foi emfrente, percorrendo com passosrápidos a parte escura dos fundos doarmazém, onde o vi colocar a mãona boca e chamar: — Aqui, seusidiotas — e se afastarimediatamente, rápido e silencioso.

A cabeça de Cutter deu umtranco, e ele acenou para os doisguardas, olhando preocupado emvolta do armazém, ao mesmo tempoque seus homens sacavam asespadas e se movimentavamcautelosamente em direção à partede trás, de onde tinha vindo obarulho — embora houvesse outrochamado, dessa vez de um diferenteponto na escuridão, quasecochichado, “Aqui”.

Os dois guardas engoliram emseco, trocaram uma olhadelanervosa, enquanto o olhar de Cutter

vagava pelas sombras do prédio, oqueixo pressionado, metade demedo, metade de frustração. Eu eracapaz de ver sua mentefuncionando: seriam seus próprioshomens pregando uma peça?Garotos bagunceiros?

Não. Era uma ação inimiga.— O que está havendo? — rugiu

um dos vilões. Ambos esticaram opescoço para olhar nos espaçosescuros do armazém.

— Pegue uma tocha — vociferouo primeiro para o companheiro, e osegundo homem disparou de volta

para o meio do aposento, ergueucuidadosamente um dos braseiros,então curvou o corpo, por causa dopeso, ao tentar carregá-lo.

De repente, um grito de dentrodas sombras, e Cutter berrava: — Oque foi? Que merda estáacontecendo?

O homem com o braseiro pousou-o no chão e, em seguida, checoudentro da escuridão.

— É Greg — berrou de volta. —Ele não está mais aqui, chefe.

Cutter se controlou.— Como assim “ele não está

mais aqui”? Ele estava antes.— Greg! — chamou o segundo

homem. — Greg?Não houve resposta.— Estou dizendo, chefe, ele não

está mais aqui. — E, nessemomento, como se para enfatizar aquestão, uma espada surgiu voandodo meio do escuro recôndito,deslizou pelo chão de pedra e parouaos pés de Cutter.

A lâmina estava suja de sangue.— É a espada de Greg — disse o

primeiro homem, nervosamente. —Pegaram Greg.

— Quem pegou Greg? —vociferou Cutter.

— Não sei, mas pegaram.— Seja você quem for, é melhor

mostrar a cara — berrou Cutter.Seus olhos dardejaram para

Benjamin e eu podia ver seu cérebrofuncionando, a conclusão a quechegou: que estavam sendo atacadospor amigos do médico; que aquelaera uma operação de resgate. Oprimeiro bandido permaneceu ondeestava, perto da segurança dobraseiro, a ponta de sua espadacintilando à luz do fogo enquanto

ele tremia. Charles continuava nassombras, uma ameaça silenciosa. Eusabia que era apenas Charles, mas,para Cutter e seu companheiro, eraum demônio vingador, tãosilencioso e implacável quanto aprópria morte.

— É melhor vocês darem o foradaqui, antes que eu acabe com seuamigo — estridulou Cutter. Foi paramais perto de Benjamin, prestes acolocar a lâmina em seu pescoço, e,de costas para mim, vi minhachance, então saí sorrateiramente domeu esconderijo, aproximando-me

dele furtivamente. Nesse momento,seu companheiro se virou, me viu, egritou: — Chefe, atrás de você! —E Cutter girou o corpo.

Saltei, ao mesmo tempo queacionava a lâmina oculta. Cutterentrou em pânico e vi a mão quesegurava a faca tensionar, prestes aacabar com Benjamin. Esticado aolimite, consegui afastar sua mão efazê-lo recuar, mas eu também medesequilibrei e ele teve a chance dedesembainhar a espada e meenfrentar de igual para igual, espadaem uma das mãos, faca de torturar

na outra.Por cima do ombro dele vi que

Charles não tinha perdido aoportunidade e foi voando paracima do guarda, e seguiu-se orepique de aço, quando suas lâminasse encontraram. Em segundos,Cutter e eu também estávamoslutando, mas rapidamente ficouclaro que ele estava fora do seumeio. Podia ser bom com uma faca,mas não estava acostumado aoponentes que reagiam; era ummestre torturador, não um guerreiro.E, enquanto suas mãos se moviam

rapidamente e suas lâminasriscavam diante de minha vista,tudo que ele me mostrava eramtruques, ilusionismos, movimentosque podiam aterrorizar um homemamarrado a uma cadeira, mas não amim. O que eu via era um sádico —um sádico amedrontado. E, se háuma coisa mais repugnante epatética do que um sádico, é umsádico amedrontado.

Ele não tinha antecipação. Nemqualquer trabalho de pés ouhabilidade defensiva. Atrás dele, aluta estava acabada: o segundo

bandido caiu ajoelhado com umgemido, e Charles plantou o pé nopeito dele e retirou a espada,deixando que ele caísse sobre apedra.

Cutter também viu isso, e deixeique ele assistisse, recuei e permitique visse seu companheiro, suaúltima proteção, morrer. Houve umgolpe surdo na porta — o guarda dolado de fora finalmente descobrira oroubo de suas chaves e tentava efracassava em entrar. Os olhos deCutter viraram para aquela direção,em busca de salvação. Não

encontrou nenhuma. Aqueles olhosamedrontados voltaram para mim,eu sorri e então avancei e comeceimeus próprios cortes. Não sentiprazer nisso. Simplesmente dei-lheo tratamento que merecia. Equando, finalmente, ele se dobrouno chão com um talho vermelho-brilhante na garganta e o sangueescorrendo pela frente do corpo,nada percebi além de uma distantesensação de gratificação, de justiçasendo feita. Ninguém mais sofreriapela sua lâmina.

Esqueci as batidas na porta até

elas pararem e, no repentinosilêncio, olhei para Charles, quechegou à mesma conclusão que eu:o guarda tinha ido buscar ajuda.Benjamin gemeu e fui até ele, corteias amarras com dois golpes daminha lâmina, e em seguida osegurei quando caiu da cadeira paraa frente.

De imediato, minhas mãosficaram grudentas com seu sangue,mas sua respiração parecia normale, embora ocasionalmente seapertassem quando se encolhia dedor, seus olhos estavam abertos. Ele

estava vivo. Seus ferimentos eramdolorosos, mas não eram profundos.

Ele olhou para mim...— Quem... Quem é você? —

conseguiu dizer.Bati no chapéu.— Haytham Kenway, a seu

dispor.Houve um princípio de sorriso

em seu rosto, quando falou: —Obrigado. Obrigado. Mas... nãoentendo... por que está aqui?

— Você é um CavaleiroTemplário, não é mesmo? — disse-lhe.

Ele confirmou com a cabeça.— Eu também sou, e não temos o

hábito de deixar colegas cavaleirosà mercê de loucos manipulando umafaca. Isso, além do fato de eunecessitar de sua ajuda.

— E a terá — concordou. —Apenas me diga do que precisa...

Eu o ajudei a se pôr de pé echamei Charles. Juntos, o levamosaté a porta lateral do armazém esaímos todos, saboreando o ar frio erefrescante após o cheiro abafado desangue e morte lá de dentro.

E, ao seguirmos de volta para a

Union Street e para o santuário daGreen Dragon, contei ao Dr.Benjamin Church sobre a lista.

13 de julho de 1754

i

Estávamos reunidos na GreenDragon, sob as baixas e escurasvigas da sala dos fundos que agoraconsiderávamos nossa, e a qualestávamos ocupandoexpansivamente e com rapidez paracaber, nos amontoando até osempoeirados beirais: Thomas, quegostava de passar o tempo deitadosempre que não estava empunhandouma caneca de cerveja ou

importunando quem nos hospedavapedindo mais; William, cujas linhasfranzidas da testa se aprofundavamcada vez mais, enquanto sedebruçava sobre cartas e mapasespalhados sobre uma mesa, indodali para seu apoio para livros eocasionalmente soltando um arfarde frustração, gesticulando paraThomas e sua caneca transbordanteirem embora sempre que estecambaleava perto demais; Charles,meu braço direito, que se sentava ameu lado sempre que eu estava nasala, e cuja dedicação às vezes eu

sentia como um fardo, em outrasocasiões como uma grande fonte deenergia; e agora, é claro, o Dr.Church, que passara os dois últimosdias se recuperando dos ferimentosem uma cama que fora fornecidacom relutância por Cornelius.Tínhamos deixado Benjamindeitado lá; ele fizera curativos nospróprios ferimentos e, quandofinalmente se levantou, nos garantiuque provavelmente nenhum danocausado a seu rosto seriapermanente.

Eu havia falado com ele dois dias

antes, quando o interrompi durantea aplicação do curativo no pior deseus ferimentos, certamente o maisdoloroso de se olhar: uma área depele que o tal Cutter removera.

— Bem, uma pergunta para você— anunciei, ainda sentindo que nãoconseguira entender completamentequal era a daquele homem: — Porque medicina?

Ele deu um sorriso sombrio.— Eu deveria responder que me

preocupo com meu semelhante,certo? Que escolhi esse caminhoporque me permite realizar um bem

maior?— Isso não é verdade?— Talvez. Mas não foi o que me

guiou. Não... Para mim foi umacoisa menos abstrata: eu gosto dedinheiro.

— Há outros caminhos para ariqueza — aleguei.

— Sim. Mas que melhor produtopara se mascatear do que a vida?Nada mais é tão precioso... nem tãodesesperadamente almejado. Enenhum preço é alto demais para ohomem ou a mulher que teme umfim abrupto e permanente.

Encolhi-me.— Suas palavras são cruéis,

Benjamin.— Mas igualmente verdadeiras.Confuso, perguntei:— Você fez um juramento para

ajudar as pessoas, não fez?— Eu continuo seguindo o

juramento, que não menciona preço.Simplesmente exijo compensação...justa compensação... pelos meusserviços.

— E se a pessoa não tiver osfundos necessários?

— Então há outros que lhe serão

úteis. Um padeiro dá pão de graça aum mendigo? Um alfaiate ofereceum vestido a uma mulher que nãotem condições de pagar? Não. Porque eu deveria?

— Você mesmo disse. —Lembrei: — Nada é mais preciosodo que a vida.

— Realmente. Mais um motivopara que uma pessoa garanta osmeios de preservá-la.

Olhei-o com desconfiança. Eleera novo — mais do que eu. E fiqueiimaginando, será que já fui algumdia como ele?

ii

Mais tarde, meus pensamentosretornaram para assuntos maisurgentes. Silas iria querer vingançapelo que acontecera no armazém,todos nós sabíamos disso; e eraapenas uma questão de tempo antesque nos atacasse. Estávamos naGreen Dragon, talvez o lugar maisvisível da cidade, portanto, ele sabiaonde nos encontrar quando quisessedesencadear o ataque. Mas eu tinhaespadachins bastante experientespara fazer com que ele parasse para

pensar e eu não tinha a intenção defugir ou ir para um esconderijo.

William havia contado aBenjamin o que tínhamos planejado— bajular os mohawk ao ir contraos traficantes de escravos — e eleentão se inclinou à frente.

— Johnson me contou o quevocês pretendem — disse ele. —Acontece que o homem que mesequestrou é o mesmo que procura.Seu nome é Silas Thatcher.

Interiormente, praguejei contramim mesmo por não ter feito aligação. Claro. Além de mim, a

ficha também tinha caído paraCharles.

— Aquele sujeito elegante é umtraficante de escravos? —exclamou, sem querer acreditar.

— Não se deixe enganar pela sualíngua de veludo — disse Benjamin,assentindo. — É a criatura maiscruel e mais corrupta que jáconheci.

— O que pode me dizer sobrecomo ele age? — perguntei.

— Ele emprega pelo menos cemhomens, mais da metade é decasacos vermelhos.

— Tudo isso por algunsescravos?

Com isso, Benjamin soltou umagargalhada.

— Dificilmente. O homem é umcomandante da Tropa de Elite doRei, encarregado do ForteSouthgate.

Perplexo, ponderei:— Mas, se a Inglaterra quiser ter

alguma chance de expulsar osfranceses, ela deve se aliar aosnativos... não escravizá-los.

— Silas é leal somente ao seubolso — observou William, de seu

apoio para livros. — Se seus atosprejudicam a Coroa, isso éirrelevante. Enquanto houvercompradores para seu produto, elecontinuará a produzi-lo.

— Então é mais um motivo paradetê-lo — falei duramente.

— Meus dias são passados emreuniões com os habitantes locais...na tentativa de convencê-los de quesomos nós em quem devem confiar— acrescentou William —, que osfranceses estão apenas os usandocomo instrumentos, que serãoabandonados assim que vencerem.

— Suas palavras devem perder aforça que têm, quando colocadasdiante da realidade dos atos de Silas— suspirei.

— Tenho tentado explicar que elenão nos representa — disse ele comum olhar magoado. — Mas ele usao casaco vermelho. Ele comanda umforte. Para eles, devo parecer ummentiroso ou idiota...Provavelmente os dois.

— Ânimo, irmão — encorajei-o.— Quando entregarmos a cabeça deSilas a eles, verão que suas palavraseram verdadeiras. Primeiro

precisamos descobrir um meio deentrar no forte. Deixem que eupenso nisso. Nesse meio-tempo,cuidarei do nosso último recruta.

Com isso, Charles se endireitou.— John Pitcairn é o nosso

homem. Eu o levarei até ele.

iii

Nós nos encontrávamos em umacampamento militar fora dacidade, onde os casacos vermelhosverificavam diligentemente quem

entrava e saía. Eram homens deBraddock, e fiquei imaginando sereconheceria algum, de minhascampanhas de todos esses anospassados.

Duvidava. Seu regime era brutaldemais, seus soldados erammercenários, ex-prisioneiros,homens em fuga que nunca ficavammuito tempo em um mesmo lugar.Um deles agora avançou, a barbapor fazer e o cabelo desgrenhado,apesar do uniforme vermelho.

— Informem o seu assunto —ordenou, enquanto seus olhos nos

exploravam, não gostando muito doque via.

Eu estava para responder, quandoCharles se adiantou, apontou paramim e disse ao guarda: — Novorecruta.

O sentinela afastou-se para olado.

— Mais gravetos para a pira,hein? — arreganhou os dentes. —Podem ir então.

Atravessamos o portão eentramos no acampamento.

— Como você consegue isso? —perguntei a Charles.

— Já esqueceu, senhor? Trabalhopara o general Braddock... quandonão estou servindo, é claro.

Uma carroça de saída doacampamento passou sem pressapor nós, conduzida por um homemcom chapéu de aba larga, e fomospara o lado para dar passagem a umgrupo de lavadeiras que atravessavanosso caminho. O local estavamarcado por tendas, sobre as quaispairava uma nuvem baixa defumaça de fogueiras por toda a áreado acampamento, e que eramcuidadas por civis e crianças,

seguidores do exército cujo trabalhoera preparar café e fazer comidapara seus amos imperiais. Roupaslavadas pendiam de cordasestendidas de coberturas diante dastendas; civis embarcavam caixotescom suprimentos em carroças demadeira, vigiados por oficiaismontados a cavalo. Vimos umgrupo de soldados lutando contraum canhão atolado na lama e maishomens empilhando caixotes,enquanto, na praça principal, haviauma tropa de vinte ou trinta casacosvermelhos tendo suas habilidades

testadas por um oficial que davagritos quase inteligíveis.

Olhando em volta, ocorreu-meque o acampamento erainequivocamente obra do Braddockque eu conhecia: movimentado eordenado, uma colmeia deatividade, uma tentativa severa dedisciplina. Qualquer visitante teriacreditado isso ao exército britânicoe a seu comandante, mas, seobservasse bem, ou conhecesseBraddock de longa data, como eu,conseguiria sentir o ressentimentoque impregnava o local: os homens

deixavam transparecer má vontadeem suas atividades. Agiam não porum senso de orgulho que tinham dafarda, mas por estarem sob o jugoda brutalidade.

Falando nisso... Estávamos nosaproximando de uma tenda e, aochegarmos mais perto dela, ouvi,com um formigamento e umaprofundamente desagradávelsensação na boca do estômago, quea voz que eu escutava berrar era ade Braddock.

Quando tinha sido a última vezque o tinha visto? Vários anos antes,

quando havia deixado aColdstreams, e nunca tive tantoprazer em dar as costas a umhomem quanto havia tido comBraddock naquele dia. Eu deixara acompanhia jurando que faria omáximo para vê-lo pagar peloscrimes que testemunhei durantemeu período com ele — crimes decrueldade e brutalidade. Mas eu nãolevava em conta os laços que uniama Ordem; não levava em conta ainabalável lealdade de Reginald aele; e, no final, tive de aceitar queBraddock continuaria como sempre

foi. Não gostei. Mas tive de aceitar.A resposta foi simplesmente meafastar dele.

Neste momento, porém, nãopodia evitá-lo.

Estava no interior da tenda,quando entramos, em meio àrepreensão a um homem com cercada minha idade, vestido com roupascivis, mas que era obviamente ummilitar. Aquele era John Pitcairn.Estava parado ali, recebendo a cargatotal da ira de Braddock — uma iraque eu conhecia muito bem —,enquanto o general bradava: —

Estava planejando se apresentar? Ouesperava que meus homens nãonotassem sua chegada?

Gostei dele imediatamente.Gostei do modo como reagiu, sempestanejar, seu sotaque escocêsmedido e calmo, sem se intimidarpor Braddock, quando respondeu:— Senhor, se me permitir explicar...

O tempo, porém, não tinha sidobondoso com Braddock. Seu rostoestava mais avermelhado do quenunca, a calvície aparecendo. Orosto tornou-se agora muito maisvermelho, ao rebater: — Ah, sem

dúvida, gostaria muito de ouvir isso.— Eu não desertei, senhor —

protestou Pitcairn. — Estou aquisob as ordens do comandanteAmherst.

Entretanto, Braddock não estavacom ânimo para se deixarimpressionar pelo nome docomandante Jeffrey Amherst; e, nomínimo, seu ânimo diminuiu.

— Mostre-me uma cartacontendo o selo dele e talvez eulivre você do cadafalso — rosnou.

— Não tenho tal coisa — reagiuPitcairn, engolindo em seco... O

único sinal de nervosismo quemostrou; talvez pensando no laçoapertando em volta do pescoço. —A natureza do meu trabalho, senhor,é... é...

Braddock recuou, como seestivesse farto de toda aquelaencenação — e talvez estivesseprestes a ordenar a execuçãosumária de Pitcairn —, quandoaproveitei a oportunidade para meadiantar.

— Não é o tipo de coisa maisdesejável para se pôr em um papel— comentei.

Braddock virou-se para olhar paramim, com um movimento brusco,vendo a mim e Charles ali pelaprimeira vez, e nos acolhendo comvariados graus de irritação. ParaCharles, ele não ligava muito. Eu?Coloquemos deste modo: a antipatiaera mútua.

— Haytham — disse elesimplesmente, meu nome soandocomo um palavrão em seus lábios.

— General Braddock — devolvi,sem me importar em esconder meudesagrado pela sua nova patente.

Olhou de mim para Pitcairn e

talvez, finalmente, tenha feito aligação.

— Suponho que não deveria mesurpreender. Lobos geralmenteandam em alcateias.

— O Sr. Pitcairn ficará foraalgumas semanas — informei-lhe—, e o devolverei a seu postoapropriado assim que nosso trabalhoestiver terminado.

Braddock balançou a cabeça. Fizo possível para esconder meusorriso e consegui, principalmentepor manter minha alegria interna.Ele estava furioso, não apenas por

sua autoridade ter sidoenfraquecida, mas, pior, por ter sidoenfraquecida por mim.

— Obra do diabo, sem dúvida —disse ele. — Já é ruim o bastantemeus superiores terem insistido queeu lhe permitisse o uso de Charles.Mas nada disseram sobre essetraidor. Você não o terá.

Soltei um suspiro.— Edward... — comecei.Braddock, porém, estava

sinalizando para seus homens.— Já terminamos aqui. Mostrem

a saída para esses cavalheiros —

ordenou.

iv

— Bem, não saiu como eu esperava— suspirou Charles.

Estávamos novamente do lado defora dos muros, com oacampamento às nossas costas eBoston diante de nós, estendendo-seao longe para um mar reluzente nohorizonte, os mastros e as velas debarcos no porto. Em uma bomba deágua, à sombra de uma cerejeira,

paramos e nos encostamos à parede,de onde podíamos observar aschegadas e as saídas doacampamento sem atrair atenção.

— E pensar que eu costumavachamar Edward de irmão... —lembrei-me arrependido.

Já fazia muito tempo, e era difícilde recordar, mas era verdade. Houveum tempo em que respeitavaBraddock, que o via, e via Reginald,como meus amigos e aliados.Agora, desprezava Braddock comtoda a energia. E Reginald?

Ainda não estava certo a seu

respeito.— E agora? — perguntou

Charles. — Eles nos expulsarão setentarmos voltar.

Olhando para o acampamento,consegui ver Braddock sair a passoslargos de sua tenda, gritando comode costume, gesticulando para umoficial — sem dúvida, um dos seusmercenários escolhidos a dedo —,que se aproximou rapidamente.Atrás de Braddock veio John. Elepelo menos ainda estava vivo; omau humor de Braddock tinha sidoaplacado ou desviado para outro.

Para mim, provavelmente.Enquanto observávamos, o oficial

reuniu os soldados que tínhamosvisto treinando na praça do quartel eos organizou em uma patrulha.Então, com Braddock na liderança,começaram a sair do acampamento.Outros soldados e seguidores civissaíram apressados do caminho, e oportão, que anteriormente estiveraapinhado de gente, foi logodesobstruído para permitir atravessia dos marchadores.Passaram por nós, a mais ou menoscem metros de distância, e os

observamos, por entre os galhosbaixos da cerejeira, enquantodesciam o morro e iam na direçãodos arredores da cidade, ostentandoorgulhosamente a bandeira do ReinoUnido.

Uma estranha espécie de pazbaixou em seu rastro, e me empurreipara fora da parede e disse aCharles: “Vamos.”

Permanecemos mais de duzentosmetros atrás e, ainda assim,podíamos ouvir o som da voz deBraddock, que, no mínimo,começou a aumentar de volume

enquanto seguíamos caminho para acidade. Mesmo em movimento,tinha o ar de alguém que atraía aatenção das pessoas. Mas o querapidamente ficou claro foi queaquela era uma missão derecrutamento. Braddock começou seaproximando de um ferreiro,ordenando ao pelotão queobservasse e aprendesse. Todos osvestígios de sua fúria anteriorhaviam desaparecido e ele ostentavaum cálido sorriso, ao se dirigir aohomem, mais como um tiopreocupado do que como o tirano

desalmado que realmente era.— Você parece desanimado, meu

amigo — comentou, amavelmente.— O que há de errado?

Charles e eu ficamos a certadistância. Charles, em particular,mantinha a cabeça baixa epermanecia fora de vista, com medode ser reconhecido. Forcei a audiçãopara ouvir a resposta do ferreiro.

— Os negócios andam ruinsultimamente — disse ele. — Perdiminha barraca e também minhasmercadorias.

Braddock jogou as mãos para o

alto, como se aquele fosse umproblema fácil de resolver, porque...

— E se eu lhe dissesse quepoderia acabar com seusproblemas? — perguntou.

— Eu ficaria, no mínimo,desconfiado...

— Muito justo! Mas ouça. Osfranceses e seus companheirosselvagens estão devastando a zonarural. O rei tem nomeado homenscomo eu para montar um exércitocapaz de forçá-los a recuar. Junte-seà minha expedição e será ricamentecompensado. Apenas algumas

semanas de seu tempo e voltarácarregado de moedas, então poderáabrir uma nova loja... maior emelhor!

Enquanto conversavam, noteioficiais ordenando a membros dapatrulha que se aproximassem deoutros cidadãos e começassem amesma ladainha. Enquanto isso, oferreiro dizia: — Verdade?

Braddock já lhe entregavadocumentos do serviço militar, quehavia pescado do interior do casaco.

— Veja por si mesmo —declarou orgulhosamente, como se

estivesse entregando ouro aohomem, e não papéis para ele sealistar no exército mais brutal edesumano de que já tiveconhecimento.

— Aceito — disse o pobrecrédulo ferreiro. — Só preciso saberonde assino!

Braddock seguiu adiante,conduzindo-nos a uma praçapública, onde parou para pronunciarum curto discurso, e mais de seushomens passaram a perambular porali.

— Ouça-me, boa gente de Boston

— anunciou, no tom de um tio,cavalheiro, prestes a transmitirexcelentes notícias. — O exércitodo rei precisa de homens fortes eleais. Forças sombrias se agrupamno norte e cobiçam nossa terra e suagrande generosidade. Venho hojediante de vocês com um pedido: sedão valor às suas posses, suasfamílias, suas próprias vidas... entãojuntem-se a nós. Peguem em armasa serviço de Deus e do país, paraque possamos defender tudo quecriamos aqui.

Alguns habitantes encolheram os

ombros e foram embora; outrosconversaram com os amigos. Outrosainda se aproximaram dos casacosvermelhos, presumivelmenteinteressados em emprestar seusserviços — e ganhar algumdinheiro. Não pude deixar de notaruma definitiva correlação entre oquanto pareciam pobres com oquanto provavelmente erampersuadidos pelo discurso deBraddock.

Sem dúvida, ouvi-o perguntar aoseu oficial: — Aonde deveremos irdepois?

— Talvez até Marlborough? —respondeu o fiel tenente, que,embora estivesse longe demais paraeu vê-lo direito, tinha uma voz quesoava familiar.

— Não — retrucou Braddock —,os residentes de lá estão contentes.Suas casas são boas; seus dias,tranquilos.

— Que tal a Lyn ou a ShipStreet?

— Sim. Esses recém-chegadosgeralmente logo se veem emgrandes dificuldades. Eles têm maisprobabilidades de agarrar uma

oportunidade para encher a bolsa ealimentar os filhos.

Não muito distante, estava JohnPitcairn. Queria me aproximar dele.Olhando para os casacos vermelhosem volta, percebi que era de umuniforme que eu precisava.

Coitada da pobre alma que sedesgarrou do grupo para se aliviar.Era o tenente de Braddock. Ele seafastou dos demais, abriu caminhoempurrando com os ombros, passoupor duas mulheres bem-vestidas,usando gorros, e rosnou quandopassaram fazendo um ruído de

desaprovação com a língua nosdentes — fazendo um excelentetrabalho de conquistar corações ementes dos habitantes locais emnome de sua majestade.

Eu o segui a distância até elechegar ao final da rua, onde haviaum atarracado prédio de madeira,uma espécie de depósito, e, com umolhar para ver se não estava sendoobservado, apoiou o mosquete emuma viga, depois abriu as calçaspara mijar.

Claro, ele estava sendo vigiado.Por mim. Checando para ver se não

havia outro casaco vermelho porperto, aproximei-me, torcendo onariz por causa do acre fedor;aparentemente, mais de um casacovermelho tinha se aliviado naquelelocal em particular. Então solteiminha lâmina com um suave tik,que ele ouviu, tensionando o corpoligeiramente enquanto urinava, massem se virar.

— Seja quem for, é melhor terum bom motivo para estar atrás demim enquanto estou mijando —ameaçou, balançando e em seguidacolocando o pau de volta para

dentro das calças. E reconheci suavoz. Era o carrasco. Era...

— Slater — falei.— Esse é meu nome: não vá

gastá-lo. E quem é você?Ele fingia estar com problemas

com os botões, mas eu podiaperceber a mão direita se afastar nadireção do cabo de sua espada.

— Talvez se lembre de mim.Meu nome é Haytham Kenway.

Novamente, ele ficou tenso, e suacabeça se endireitou.

— Haytham Kenway —estridulou. — Realmente... eis um

nome de grande influência, pois é.Eu esperava ter visto você pelaúltima vez.

— E eu a você. Vire-se, porfavor.

Um cavalo e uma carroçapassaram pela lama, enquanto,lentamente, Slater virava o rostopara mim, seus olhos indodiretamente para a lâmina em meupunho.

— Você agora é um Assassino, é?— zombou.

— Um Templário, Slater, comoseu chefe.

Ele sorriu com desdém.— Seu pessoal não tem mais nada

que atraia o general Braddock.Justamente o que eu suspeitava.

Era por isso que ele tentara sabotarmeus esforços para recrutar umaequipe para a missão de Reginald.Braddock se voltou contra nós.

— Puxe sua espada — falei paraSlater.

Seus olhos piscaram.— Você vai me atacar, se eu fizer

isso.Concordei com a cabeça.— Não posso matá-lo a sangue-

frio. Não sou o seu general.— Não — disse ele —, você é

uma fração do homem que ele é.E puxou a espada...Um segundo depois, o homem

que antes havia tentado meenforcar, e a quem eu tinha vistoajudar a chacinar uma famíliainteira, no cerco a Bergen op Zoom,jazia morto a meus pés, e olheiabaixo para seu corpo ainda secontorcendo, pensando apenas queprecisava tirar seu uniforme antesque ele o ensanguentasse todo.

Tirei-o e voltei para junto de

Charles, que me olhou com assobrancelhas erguidas.

— Bem, você certamente parececom o papel que está representando.

Dei-lhe um sorriso irônico.— Agora, vamos alertar Pitcairn

sobre nossos planos. Quando eu lheder o sinal, você provoca umtumulto. Usaremos a distração parapassarmos despercebidos.

Enquanto isso, Braddock davaordens.

— Muito bem, vamos em frente— ordenou, e aproveitei aoportunidade para me enfiar nas

fileiras da patrulha, mantendo acabeça baixa.

Braddock, eu sabia, estariaconcentrado no recrutamento, e nãoem seus soldados. Do mesmo modo,confiei no fato de que os homens dapatrulha ficariam tão aterrorizadosem atrair sua ira que tambémestariam muito preocupados com oalistamento de novos soldados paranotar um rosto novo em suasfileiras. Fui para junto de Pitcairn e,em voz baixa, disse: — Olánovamente, Jonathan.

A meu lado, ele teve um leve

sobressalto, olhou para mim eexclamou: — Sr. Kenway?

Fiz sinal de silêncio com a mão eolhei de relance para me certificarde que não tínhamos atraídoqualquer atenção indesejável, antesde continuar: — Não foi fácil daressa escapulida... mas aqui estou eu,para resgatá-lo.

Dessa vez, ele manteve a vozbaixa.

— Você acha honestamente queconseguiremos escapar disto aqui?

Sorri.— Não tem fé em mim?

— Eu mal o conheço...— Conhece o suficiente.— Olhe — cochichou —, gostaria

muito de ajudá-lo. Mas você ouviuBraddock. Se ele farejar isso,estamos perdidos.

— Eu cuidarei de Braddock —tranquilizei-o.

Ele olhou para mim.— Como? — perguntou.Dei-lhe um olhar que dizia que eu

sabia exatamente o que estavafazendo, enfiei os dedos na boca eassobiei bem alto.

Era o sinal que Charles esperava,

e saiu correndo do meio de doisprédios para a rua. Ele havia tiradoa camisa e a usava para esconder orosto; o resto de suas roupastambém estava em desalinho; usaralama em si mesmo para que nãoparecesse em nada um oficial doexército que de fato era. Parecia,aliás, um louco, e prontamente secomportou como um deles, ficandodiante da patrulha, que foi levada auma desorganizada parada, surpresaou confusa demais até mesmo paraerguer as armas, quando Charlescomeçou a gritar: — Ei! Vocês são

ladrões e patifes, cada um de vocês!Vocês juram que o império vai... vainos recompensar e nos honrar! Mas,no final das contas, só causam amorte! E por quê? Por pedras e gelo,árvores e riachos? Alguns francesesmortos? Pois bem, não queremosisso! Não precisamos disso!Portanto, peguem suas promessasfalsas, suas bolsas tentadoras, suasfardas e suas armas... peguem todasessas coisas de que gostam tanto eas enfiem na bunda!

Os casacos vermelhos seentreolharam, boquiabertos de

descrença, tão perplexos que, porum momento, fiquei preocupadoque não fossem reagir. Até mesmoBraddock, que se encontrava a certadistância, simplesmente ficouparado, com o queixo caído, semsaber se ficaria zangado ou sedeveria se divertir com aquelainesperada explosão de purodesvario.

Eles simplesmente desviariam eseguiriam seu caminho? TalvezCharles tivesse a mesmapreocupação, porque,repentinamente, acrescentou: —

Fora vocês e sua guerra falsa — eadicionou seu toque magistral.Esticou a mão, juntou um pouco decocô de cavalo e jogou na direçãogeral do grupo, e a maioria,inteligentemente, se desviou. Querdizer, apenas os sortudos: o generalEdward Braddock não estavaincluído neles.

Ele parou, com cocô de cavalo nafarda, não mais indeciso se devia sedivertir ou se ficava furioso. Agoraestava furioso, e seu rugir pareceusacudir as folhas das árvores: —Atrás dele!

Alguns dos homens sedestacaram do grupo e foramagarrar Charles, que já tinha sevirado e agora estava correndo,passou por uma venda, em seguidavirou à esquerda entre a venda euma taverna.

Essa era a nossa chance. Mas, emvez de aproveitá-la, John disseapenas: — Droga!

— O que foi? — indaguei. — É anossa chance de escapar.

— Acho que não. Seu homemacaba de entrar em um beco semsaída. Precisamos salvá-lo.

Gemi internamente. Aquela eramesmo uma missão de salvamento— mas não do homem que eu haviapretendido salvar. E eu também saícorrendo na direção do beco; só quenão tinha a intenção de satisfazer ahonra do nosso nobre general;simplesmente tinha de evitar quemachucassem Charles.

Tarde demais. Quando cheguei lá,ele já tinha sido preso, e recuei,rezando silenciosamente enquantoele era arrastado de volta para a viaprincipal e levado diante de umgeneral Braddock fervilhando de

raiva, o qual já alcançava suaespada, quando decidi que as coisastinham ido longe demais.

— Solte-o, Edward.Ele se virou para mim. Se era

possível seu rosto ficar maissombrio do que já estava, entãoficou. À nossa volta, ofegantescasacos vermelhos trocavam olharesconfusos, enquanto Charles, seguropor um soldado de cada lado e aindasem camisa, me lançava um olharagradecido.

— Você novamente! — ladrouBraddock, furioso.

— Achou que eu não voltaria? —rebati igualmente.

— Estou mais surpreso com oquanto facilmente você foidesmascarado — tripudiou. — Estáficando fraco.

Eu não estava disposto a trocarinsultos com ele.

— Deixe-nos ir... e John Pitcairnconosco — falei.

— Eu não terei minha autoridadedesafiada — exclamou Braddock.

— Nem eu.Seus olhos se inflamaram. Nós o

tínhamos perdido realmente? Por

um momento imaginei-me sentadoa seu lado, mostrando-lhe o livro eobservando a transformação ocorrercom ele, do mesmo modo comoocorrera comigo. Conseguiria eleter a mesma sensação de súbitacompreensão que eu tive?Conseguiria ele voltar para nós?

— Coloquem todos em correntes— vociferou.

Não, decidi que ele nãoconseguiria.

E novamente desejei a presençade Reginald, porque ele teriacortado essa discussão pela raiz:

teria evitado o que aconteceu aseguir.

Que foi eu ter decidido queconseguiria enfrentá-los; e entreiem ação. Em um abrir e fechar deolhos, minha lâmina estava do ladode fora e o casaco vermelho maispróximo morreu com um ar desurpresa no rosto quando o ataquei.Com o canto do olho, vi Braddockdisparar para o lado, sacar a espadae gritar para outro soldado, quepegou uma arma, já carregada. Johno alcançou antes de mim, suaespada brilhando abaixo e cortando

o pulso do homem, não separando amão, mas cortando através do osso,de modo que, por um momento, amão sacudiu na extremidade dobraço e a arma caiuinofensivamente no chão.

Outro soldado veio na minhadireção pela esquerda e trocamosgolpes — um, dois, três. Pressionei-o adiante até suas costas ficaremcontra a parede, e minha estocadafinal foi entre as correias queatravessavam sua túnica, direto nocoração. Girei o corpo e enfrenteium terceiro homem, aparei seu

golpe e varri minha espada pelo seudiafragma, mandando-o para o chão.Com as costas da mão, limpei osangue do rosto a tempo de ver Johnfurar outro homem, e Charles, quehavia tomado a espada de um deseus captores, liquidar o outro comalgumas estocadas seguras.

Então a luta acabou e eu encarei oúltimo homem que estava de pé — eo último homem que estava de péera o general Edward Braddock.

Teria sido tão fácil. Tão fácilacabar aqui. Seus olhos medisseram que ele sabia — sabia que,

em meu coração, eu tinha de matá-lo. Talvez, pela primeira vez, eletenha percebido que quaisquer laçosque tivessem nos unido, dosTemplários, ou do respeito mútuopor Reginald, já não existia.

Deixei o momento se ajustar,então larguei a espada.

— Eu contive hoje minha mão,porque você foi outrora meu irmão— disse-lhe —, e um homemmelhor do que isso. Mas, se nossoscaminhos voltarem a se cruzar,todas as dívidas serão esquecidas.

Virei-me para John.

— Você agora está livre, John.Nós três, eu, Charles e John,

começamos a nos afastar.— Traidor! — gritou Braddock.

— Vá então. Junte-se a eles em suamissão insensata. E, quando se virsubjugado e morrendo no fundo dealgum buraco escuro, rezo para queas minhas palavras hoje sejam asúltimas de que se lembrará.

E, com isso, ele saiu andando,passando por cima dos cadáveres deseus homens e abrindo caminhocom os ombros por entre oscuriosos que assistiam. Nunca se

estava muito longe de uma patrulhade casacos vermelhos pelas ruas deBoston e, com Braddock capaz dechamar reforços, decidimos nosafastar. Enquanto ele partia, lanceium olhar para os corpos de casacosvermelhos mortos, caídos na lama, erefleti que, com relação aorecrutamento, não tinha sido a tardemais bem-sucedida.

Não foi de admirar que oshabitantes nos evitassem enquantonos apressávamos pelas ruas emdireção à Green Dragon. Estávamoscheios de pingos de lama e sujos de

sangue, e Charles lutava para vestirnovamente suas roupas. John,enquanto isso, estava curioso parasaber sobre meu sentimento emrelação à Braddock, e lhe conteisobre o massacre no esquife,terminando por dizer: — As coisasnunca foram as mesmas, depoisdisso. Combatemos juntos maisalgumas vezes, porém cada saídaera mais perturbadora do que aanterior. Ele matava e matava:inimigo ou aliado, civil ou militar,culpado ou inocente... nãoimportava. Se achasse que uma

pessoa era um obstáculo, ela morria.Ele afirmava que a violência era asolução mais eficiente. Tornou-seseu mantra. E isso despedaçou meucoração.

— Devíamos tê-lo detido — disseJohn, olhando para trás, como sepudéssemos tentar imediatamente.

— Suponho que tenha razão...Mas mantenho uma tola esperançade que ele ainda pudesse ser salvo etrazido de volta à razão. Eu sei, eusei... é uma bobagem acreditar queuma pessoa tão envolvida commorte possa mudar subitamente.

Seria mesmo uma bobagem?Fiquei imaginando, enquantocaminhávamos. Afinal, eu não haviamudado?

14 de julho de 1754

i

Ao ficar na Green Dragon,estávamos no lugar certo para ouvirqualquer ruído contra nós, e meuajudante Thomas mantinha o ouvidoaguçado. Não que isso fosse umatarefa árdua para ele, é claro:prestar atenção em qualquer sinal deuma trama contra nós significavabebericar cerveja, enquantobisbilhotava conversas e estimulavaoutros a contarem rumores. Ele era

muito bom nisso. Precisava ser.Tínhamos feito inimigos: Silas, éclaro; porém mais preocupante, ogeneral Edward Braddock.

Na noite anterior, eu me sentei àescrivaninha do meu quarto paraescrever no meu diário. Minhalâmina oculta estava sobre a mesa, ameu lado, a espada ao alcance damão, no caso de Braddock lançar deimediato seu inevitável ataque paradar o troco, e eu sabia que seriaassim dali em diante: dormir comum olho aberto, com as armas nuncalonge da mão, sempre olhando por

cima do ombro, cada rosto estranhopertencendo a um inimigo empotencial. Só de pensar nisso eracansativo, mas que outra opçãohavia? De acordo com Slater,Braddock havia renunciado à Ordemdos Templários. Ele agora era umapessoa imprevisível, e a única coisapior do que uma pessoaimprevisível é uma pessoaimprevisível com um exército àdisposição.

Eu podia pelo menos me consolarem saber que agora eu tinha umaequipe escolhida a dedo e, mais uma

vez, estávamos reunidos na sala dosfundos, fortalecidos com oacréscimo de John Pitcairn, umproblema mais temível paraqualquer um dos nossos doisoponentes.

Quando entrei na sala, eles selevantaram para me cumprimentar— até mesmo Thomas, que pareciamais sóbrio do que de costume.Lancei um olhar sobre eles: osferimentos de Benjamin tinhamsarado satisfatoriamente; Johnparecia ter se livrado dos grilhõesdo posto junto a Braddock, seu ar

angustiado substituído por umanova leveza de espírito; Charlesainda era um oficial do exércitobritânico e estava ansioso para queBraddock pudesse reconvocá-lo e,consequentemente, quando nãoolhava com desprezo para Thomas,ostentava um ar preocupado;enquanto isso, William continuavadiante de sua mesa, com pena namão, ainda trabalhando arduamente,comparando as marcas no amuletocom o livro e seus próprios mapas egráficos, ainda perplexo, os detalhesreveladores mantinham-se esquivos.

Tive uma ideia a esse respeito.Gesticulei para se sentarem, e me

sentei entre eles.— Cavalheiros, creio que

encontrei a solução para nossoproblema. Ou melhor, Ulissesencontrou.

A menção do nome do heróigrego teve de algum modo umefeito variado sobre meuscompanheiros e, enquanto William,Charles e Benjamin assentiamsabiamente, John e Thomaspareciam de certo modo confusos;Thomas o menos constrangido.

— Ulisses? É um novo membro?— arrotou.

— O herói grego, seu burro —disse Charles, desgostoso.

— Permitam-me que explique —falei. — Entraremos no forte deSilas sob o pretexto de parentesco.Uma vez lá dentro, revelamos nossaarmadilha. Libertar os presos ematar o traficante de escravos.

Fiquei observando enquantoabsorviam meu plano. Thomas foi oprimeiro a falar.

— Astucioso, astucioso — sorriu.— Gostei.

— Então vamos começar —continuei. — Primeiro, precisamosconseguir um comboio...

ii

Charles e eu estávamos em umtelhado contemplando do alto umadas praças públicas de Boston,ambos vestidos como casacosvermelhos.

Olhei abaixo para minha farda.Ainda havia um pouco de sangue deSlater no cinto de couro marrom e

uma mancha nas meias brancas,mas, fora isso, eu parecia com opersonagem. Charles também,embora implicasse com o uniforme.

— Eu tinha esquecido o quantoessas fardas são desconfortáveis.

— Receio que sejam necessárias— observei —, para melhor efeitode nossa trapaça.

Olhei para ele. Pelo menos nãoteria de sofrer por muito tempo.

— O comboio deverá chegar embreve — disse-lhe. — Atacaremosao meu sinal.

— Entendido, senhor — retrucou

Charles.Na praça abaixo de nós, uma

carroça virada bloqueava a saídamais distante, e dois homenssopravam e bufavam na tentativa deendireitá-la.

Ou, diria eu, fingiam soprar ebufar para desvirar a carroça, poisos dois homens eram Thomas eBenjamin e a carroça tinha sidovirada de propósito por nós quatropoucos momentos antes, colocadaestrategicamente para bloquear asaída. Não muito distante delaestavam John e William, que

esperavam à sombra da barraca deum ferreiro das proximidades,sentados em baldes virados deponta-cabeça, os chapéus puxadosbem para baixo sobre os olhos,como dois ferreiros descansando,preguiçosamente, durante o dia,vendo o mundo passar.

A armadilha estava armada.Coloquei a luneta sobre o olho eobservei a paisagem mais além dapraça, e, dessa vez, eu o avistei — ocomboio, um pelotão de novecasacos vermelhos vindo em nossadireção. Um deles dirigia uma

carroça de feno, e, a seu lado, naboleia, estava...

Ajustei o foco. Era uma mohawk— uma linda mohawk, que, apesarde estar acorrentada ao lugar,ostentava uma expressão orgulhosa,desafiadora e sentava-seempertigada, em nítido contrastecom o casaco vermelho a seu lado,na condução, cujos ombros eramcurvados e tinha um cachimbo coma haste comprida na boca. Notei queela tinha um machucado no rosto, efiquei surpreso em sentir uma ondade raiva ao ver isso. Fiquei

imaginando quanto tempo sepassara desde que a haviamcapturado e como, de fato, tinhamconseguido isso. Evidentemente, elareagira.

— Senhor — falou Charles a meulado, alertando-me —, não é melhordar o sinal?

Pigarreei.— Claro, Charles — respondi,

enfiei os dedos na boca e dei umassobio baixo, observando meuscompanheiros abaixo trocandosinais “Pronto”, e Thomas eBenjamin continuando o fingimento

de tentarem desvirar a carroça.Esperamos — esperamos até os

casacos vermelhos marcharem paraa praça e se depararem com acarroça bloqueando o caminhodeles.

— Que droga é essa? —exclamou um dos guardas da frente.

— Mil perdões, senhores... pareceque tivemos um pequeno e infelizacidente — desculpou-se Thomas,com as mãos abertas e um sorrisoinsinuante.

O líder dos casacos vermelhosnotou o sotaque de Thomas e

imediatamente adotou um ar dedesdém. Seu rosto era um tom depúrpura, a irritação não chegava aser tão grande para competir com acor de sua túnica, mas era bastanteviva.

— Tirem isso daí... e depressa —vociferou, e Thomas tocou uma mãoservil no cacho de cabelo sobre atesta antes de se virar para ajudarBenjamin com a carroça.

— Claro, milorde, imediatamente— disse ele.

Charles e eu, agora deitados debruços, observávamos. John e

William continuavam sentados comos rostos escondidos, mas tambémobservavam a cena, enquanto oscasacos vermelhos, em vez desimplesmente marcharemcontornando a carroça, ou mesmo— Deus me livre — ajudaremThomas e Benjamin a colocar acarroça de pé, continuavam parados,e o guarda líder parecia se tornarcada vez mais e mais furioso, atéfinalmente sua calma se esgotar.

— Olhem... ou vocês tiram acarroça do caminho ou passaremospor cima dela.

— Por favor, não façam isso. —Vi os olhos de Thomas sedirecionarem acima para o telhadoonde nos encontrávamos, então parao lado, onde William e Johnestavam prontos, a mão no cabo daespada, e ele pronunciou a frasepara entrarmos em ação, que era: —Estamos quase acabando.

Em um só movimento, Benjaminhavia sacado a espada e a enfiara nosoldado mais próximo, enquanto,antes que o guarda líder tivesse umachance de reagir, Thomas fizera amesma coisa, uma adaga surgindo

do interior de sua manga, a qual, domesmo modo rápido, penetrou noolho do casaco vermelho.

Ao mesmo tempo, William eJohn irromperam do esconderijo, etrês soldados caíram diante de suaslâminas, enquanto Charles e eusaltamos de cima, pegando os maispróximos de surpresa: quatrohomens morreram. Sequer lhesconcedemos a honra de dar seuúltimo suspiro com dignidade.Preocupados em manchar suasroupas com sangue, já estávamosdespindo as fardas dos mortos. Em

questão de momentos, havíamospuxado os corpos para um estábulo,fechado e trancado a porta e, emseguida, fomos para a praça, seiscasacos vermelhos tinham tomadoos lugares de nove. Um novocomboio.

Olhei em volta. A praça nãoestivera movimentada antes, masagora estava deserta. Não fazíamosideia de quem poderia ter assistido àemboscada — os coloniais queodiavam os ingleses e ficaramcontentes em vê-los morrer?Simpatizantes do exército britânico

que, naquele exato momento,estavam a caminho do ForteSouthgate para alertar Silas sobre oque aconteceu? Não tínhamostempo a perder.

Saltei para o lugar do condutor, ea mohawk logo se afastou — pelomenos o máximo que suas amarraspermitiram — e me deu um olharcauteloso, mas rebelde.

— Estamos aqui para ajudar você— tentei tranquilizá-la. —Juntamente com os que sãomantidos no Forte Southgate.

— Então me solte — disse ela.

Pesarosamente, eu lhe disse: —Não até estarmos lá dentro. Nãoposso arriscar que uma inspeção noportão dê errado. — E fuirecompensado com um olhardesgostoso, como se tivesse ditoexatamente o que ela esperava.

— Cuidarei para que fique segura— insisti —, tem minha palavra. —Balancei as rédeas e os cavaloscomeçaram a se mover, enquantomeus homens caminhavam de cadalado da carroça.

— Você sabe alguma coisa sobrea operação de Silas? — perguntei à

mohawk. — Quantos homenspoderemos esperar? Qual a naturezade suas defesas?

Ela, porém, não disse nada.— Você deve ser muito

importante para Silas, para ele terlhe dado seu próprio comboio —forcei, mas ela continuou meignorando. — Gostaria queconfiasse em nós... embora suponhaque seja natural você ser cautelosa.Portanto, seja. — Como não houveresposta, concluí que minhaspalavras tivessem sido em vão, edecidi me calar.

Quando, finalmente, chegamos aoportão, um guarda se adiantou.

— Alto — ordenou.Puxei as rédeas e paramos, eu e

meus casacos vermelhos. Olhandomais além da prisioneira, bati naponta do chapéu para os guardas.

— Boa noite, cavalheiros.Pude perceber que o sentinela não

estava com disposição paraconversa-fiada.

— Informe seu assunto — disseele inexpressivamente, encarando amohawk com olhos interessados,luxuriosos. Ela lhe retribuiu com

seu próprio olhar venenoso.Por um momento, refleti que,

quando cheguei a Boston, quisverificar que mudanças o mandobritânico fizera naquele país, queefeito nossa governança causara emseu povo. Para a nativa mohawk,estava claro que qualquer quetivesse sido o efeito não fora para obem. Falávamos piamente em salvaraquela terra; em vez disso, nós aestávamos corrompendo.

Agora apontei para a mulher.— Entrega para Silas — falei, e o

guarda assentiu, umedeceu os lábios

e a seguir bateu na porta para queela se abrisse e nós seguíssemoslentamente em frente.

Dentro, o forte estava tranquilo.Descobrimo-nos perto das ameias,paredes baixas de pedra escura ondecanhões se enfileiravam,direcionados para Boston, emdireção ao mar, e casacos vermelhoscom mosquetes a tiracolopatrulhavam de um lado para ooutro. O foco de sua atenção eravigiar os muros externos; temiamum ataque dos franceses e, olhandodas ameias para baixo, mal nos

olharam uma segunda vez, enquantoavançávamos com a carroça e,tentando parecer o mais normalpossível, seguíamos nosso caminhopara uma área afastada, onde aprimeira coisa que fiz foi cortar asamarras da mulher.

— Viu? Estou libertando você,exatamente como disse que faria.Agora, se me permitir explicar...

Mas sua resposta foi não. Comum último olhar para mim, elasaltara da carroça e desaparecera naescuridão, deixando-me com aevidente sensação de assunto não

resolvido: querendo me explicarpara ela; querendo passar maistempo com ela.

Thomas fez menção de ir atrásdela, mas o detive.

— Deixe-a ir — falei.— Mas ela vai nos denunciar —

protestou.Olhei para onde ela tinha ido —

pois já era uma lembrança, umfantasma.

— Não, não vai — garanti, edesci, olhando em volta para mecertificar de que estávamossozinhos no pátio, em seguida me

juntei aos outros para lhes dar asordens: libertar os presos e evitarserem descobertos. Eles assentiramgravemente, cada qual entregue àmissão.

— E Silas? — perguntouBenjamin.

Pensei no homem das risadinhasque eu vira no armazém, quedeixara Benjamin à mercê deCutter. Lembrei-me da promessafeita a Benjamin que ele teria suacabeça, e olhei agora para o meuamigo.

— Ele morre — falei.

Observei os homens semisturarem com a noite e decidificar de olho em Charles, meupupilo. E o vi se aproximar de umgrupo de casacos vermelhos e seapresentar. Olhei através do pátiopara ver que Thomas havia seenvolvido com outra das patrulhas.William e John, enquanto isso,caminhavam despreocupadamentena direção de um prédio que penseiser provavelmente a estacada, ondeos prisioneiros eram mantidos, emque um guarda, agora mesmo,mudava de posição e se

movimentava para bloquear ocaminho deles. Olhei para checar seos outros guardas eram mantidosocupados por Charles e Thomas e,quando fiquei satisfeito, acenei paraJohn um discreto polegar para cima,então o vi trocar uma rápida palavracom William, ao se aproximaremdo guarda.

— Posso ajudá-lo? — ouvi oguarda dizer, sua voz sendo levadapelo pátio, justamente quando Johnlhe deu uma joelhada nos testículos.

Com um gemido baixo, igual aode um animal em uma armadilha,

largou seu pique e caiu de joelhos.Imediatamente, John apalpou suacintura, apanhou uma argola comchaves e, com as costas para o pátio,abriu a porta, apanhou uma tocha deum suporte e desapareceu lá dentro.

Observei ao redor. Nenhum dosguardas tinha visto o que estavaacontecendo no interior da estacada.Os que estavam nas ameias olhavamdiligentemente para o mar; os dedentro tinham a atenção desviadapor Charles e Thomas.

Olhando de volta para a porta daestacada, vi John reaparecer e

depois conduzir para fora oprimeiro dos prisioneiros.

E, de repente, um dos soldadosnas ameias viu o que estavaacontecendo.

— Ei, você aí, o que estáfazendo? — berrou, já apontando omosquete, e o grito ascendeu.

Imediatamente, corri para asameias, onde o primeiro casacovermelho estava para apertar ogatilho, subi saltando os degraus depedra e já estava sobre ele enfiandominha lâmina embaixo de seuqueixo com um único movimento

perfeito. Agachei-me e deixei seucorpo cair sobre mim, pulando sobele para espetar o guarda seguinteno coração. Um terceiro homemestava de costas para mim, mirandoem William, mas bati minha lâminaatrás dele e depois dei o coup degrâce em sua nuca, quando caiu.Não muito distante, William ergueua mão em agradecimento, depoisvirou-se para enfrentar outroguarda. Sua espada agitou-se e umcasaco vermelho caiu diante dalâmina e, quando William se viroupara enfrentar um segundo homem,

seu rosto estava sujo de sangue.Em alguns momentos, todos os

guardas estavam mortos, mas aporta para um dos prédios anexosfora aberta e Silas aparecera, jáirritado.

— Uma hora de silêncio foi tudoque pedi — rugiu. — Em vez disso,sou acordado menos de dez minutosdepois por essa cacofonia maluca.Espero uma explicação... e é melhorque seja boa.

Ele parou de repente, a explosãomorrendo em seus lábios e a cordrenada de seu rosto. Em volta do

pátio estavam os corpos de seushomens, e balançou a cabeçaquando olhou para a estacada, ondea porta estava escancarada, nativosse precipitavam para fora e Johninsistia para que fossem maisrápidos.

Silas desembainhou a espada,enquanto mais soldados surgiamatrás dele.

— Como? — esganiçou. —Como isso aconteceu? Minhapreciosa mercadoria foi solta. Éinaceitável. Podem estar certos,terei as cabeças dos responsáveis.

Mas, antes... antes vamos limparesta bagunça.

Seus guardas vestiam as túnicas,prendendo espadas na cintura,municiando mosquetes. O pátio,vazio, a não ser por cadáveres, ummomento atrás, de repente encheu-se de mais soldados, ansiosos porrevanche. Silas estava fora de si,gritando com eles, gesticulandofreneticamente para que os soldadospegassem as armas e, acalmando-seum pouco, continuou: — Fechem oforte. Matem quem tentar escapar.Não me importa se for um dos

nossos ou um... deles. Quem seaproximar do portão deve virarcadáver! Estão me entendendo?

A luta continuou. Charles,Thomas, William, John e Benjaminmovimentaram-se por entre ossoldados e tiraram partido de seudisfarce. Os homens que atacavameram levados a lutar entre si, poisnão tinham certeza de qual homemvestido com farda do exército eraamigo e qual era inimigo. Osnativos, desarmados, se abrigarampara esperar a luta terminar, mesmoquando um grupo de casacos

vermelhos de Silas formou umalinha na entrada do forte. Vi minhachance — Silas havia seposicionado em um lado de seussoldados e os estimulava a seremimpiedosos. Estava claro que não seimportava com quem morresse,desde que sua preciosa“mercadoria” não tivesse permissãode escapar e seu orgulho não fosseafetado no processo.

Gesticulei para Benjamin, nosaproximamos de Silas e soubemosque ele nos avistara com o canto doolho. Por um momento, pude ver a

confusão percorrer seu rosto atécompreender que, primeiro, éramosdois dos intrusos e, segundo, que elenão tinha como escapar, poisestávamos impedindo quealcançasse o resto de seus homens.Em todo caso, parecíamos umadupla de leais guarda-costasprotegendo-o do mal.

— Você não me conhece —disse-lhe —, mas creio que vocêsdois já são bem conhecidos... —falei, e Benjamin Church seadiantou.

— Eu lhe fiz uma promessa, Silas

— disse Benjamin —, e pretendocumpri-la...

Acabou-se em segundos.Benjamin foi muito mais piedosocom Silas do que Cutter tinha sidocom ele. Com seu líder morto, adefesa do forte se desfez, o portãose abriu, e permitimos que o restodos casacos vermelhos saísse. Atrásdeles vieram os prisioneirosmohawk, e avistei a mulher deantes. Em vez de fugir, ficou paraajudar seu povo: era tão corajosaquanto bonita e determinada.Enquanto ajudava membros de sua

tribo a fugirem do maldito forte,nossos olhos se encontraram, e medescobri arrebatado por ela. Entãoela sumiu.

15 de novembro de 1754

i

Estava congelando, e a neve cobriatodo o solo à nossa volta quandopartimos bem cedo naquela manhã,na direção de Lexington, emperseguição a...

Talvez “obsessão” seja umapalavra muito forte. Então“preocupação”: minha preocupaçãocom a mulher mohawk da carroça.Especificamente, em encontrá-la.

Por quê?

Se Charles tivesse meperguntado, eu teria dito que queriaencontrá-la porque sabia que seuinglês era bom e eu achava quepoderia ser um contato útil com osmohawk para ajudar a localizar osítio precursor.

Era o que teria dito, se Charlestivesse me perguntado por que euqueria encontrá-la, e teria sido parteverdade. Parte.

De qualquer modo, Charles e euiniciamos uma de minhasexpedições, dessa vez paraLexington, quando ele avisou: —

Receio ter más notícias, senhor.— O que foi, Charles?— Braddock insiste que eu volte

a servir sob seu comando. Tentei melivrar, implorando, mas nãoadiantou — disse ele tristemente.

— Sem dúvida, ainda estázangado por ter perdido John... Semfalar na humilhação que lhecausamos — observei de modopensativo, imaginando se nãodeveria ter acabado com ele naocasião, quando tive a chance. —Faça o que ele quer. Enquanto isso,trabalharei para que você seja

liberado.Como? Eu não tinha certeza.

Afinal, houve um tempo em que eupoderia ter confiado em uma cartaformal de Reginald para fazerBraddock mudar de ideia, mas setornou claro que Braddock não tinhamais afinidade com nossos modos.

— Lamento perturbá-lo —desculpou-se Charles.

— A culpa não é sua — retruquei.Eu sentiria falta dele. Afinal,

Charles já tinha feito muito paralocalizar minha mulher misteriosa,que, segundo ele, seria encontrada

fora de Boston, em Lexington, ondeaparentemente estava incitandoconfusão contra os britânicos, queeram liderados por Braddock. Quempoderia culpá-la, após ter visto seupovo aprisionado por Silas?Portanto, Lexington era ondeestávamos — em um acampamentode caça recentemente desocupado.

— Ela não está muito longe —avisou-me Charles.

E eu imaginei, ou senti minhapulsação se apressar um pouco?Havia muito tempo desde que umamulher me fizera sentir desse jeito.

Passei minha vida estudando ou memovimentando por aí, e, quanto amulheres em minha cama, nuncatinha havido nenhuma séria: aslavadeiras ocasionais durante meuperíodo na Coldstreams, garçonetes,filhas de estalajadeiros — mulheresque haviam fornecido consolo econforto, físico e de outrasmaneiras, mas ninguém que eupudesse de modo algum descrevercomo especial.

Essa mulher, porém: eu vira algoem seus olhos, como se fosse umaespécie de espírito semelhante —

outra solitária, outra guerreira, outraalma machucada que via o mundocom olhos exaustos.

Estudei o acampamento.— A fogueira acaba de ser

apagada, e a neve, mexidarecentemente. — Ergui a vista. —Ela está perto.

Desmontei, mas, quando vi queCharles estava para fazer o mesmo,o detive.

— É melhor você voltar paraBraddock, Charles, antes que elecomece a desconfiar. Posso cuidardas coisas por aqui.

Ele concordou, deu meia-voltacom o cavalo, e o observei partir,depois voltei minha atenção ao solocoberto de neve à minha volta,imaginando qual tinha sido o meuverdadeiro motivo para mandá-loembora. E eu sabia exatamente qualera.

ii

Avancei de mansinho por entre asárvores. Tinha voltado a nevar, e afloresta estava estranhamente

silenciosa, a não ser pelo som daminha própria respiração, queformava vagalhões de vapor diantede mim. Movimentava-me rápidamas cautelosamente, e não demoroumuito para que eu a avistasse, oupelo menos suas costas. Estavaajoelhada na neve, um mosqueteapoiado em uma árvore, enquantoverificava uma armadilha.Aproximei-me, o maissilenciosamente possível, e a vificar tensa.

Ela tinha me ouvido. Meu Deus,ela era boa.

E, no instante seguinte, ela tinharolado para o lado, apanhado omosquete, olhado rapidamente paratrás e disparado pela mata.

Corri atrás dela.— Por favor, pare de correr —

gritei, enquanto nos lançávamospelo cobertor de neve da floresta. —Quero apenas conversar. Não souseu inimigo.

Ela, porém, continuava. Euarremetia agilmente pela neve, memovimentando depressa efacilmente transpondo o terreno,mas ela era mais rápida e, em

seguida, subiu em uma árvore,elevando-se para transpor umterreno mais difícil, indo de galhoem galho, sempre que podia.

No final, afastou-se cada vezmais na floresta e teria meescapado, se não fosse por um golpedo azar. Ela tropeçou na raiz de umaárvore, cambaleou, caiu, e,imediatamente, eu estava em cimadela, não para atacar, mas paraajudá-la, e estendi a mão, ofegando,enquanto conseguia dizer: — Eu.Haytham. Eu. Venho. Em. Paz.

Ela me olhou como se não tivesse

entendido nenhuma palavra que eudisse. Senti o começo do pânico.Talvez tivesse me enganado sobreela na carroça. Talvez ela nãofalasse mesmo minha língua.

Até que, subitamente, respondeucom: — Você é ruim da cabeça?

Perfeito no meu idioma.— Ah... desculpe.Ela deu uma tediosa balançada de

cabeça.— O que você quer?— Bem, para começar, seu nome.

— Meus ombros se erguiam àmedida que recuperava o fôlego,

que estava fumegante no friocongelante.

Então, após um período deindecisão — pude notar issopercorrendo seu rosto —, ela disse:— Sou Kaniehtí:io. — Entãoquando tentei e fracassei em repetirseu nome, ela disse: — Pode mechamar de Ziio.

— Mas agora me diz por quevocê está aqui.

Alcancei o amuleto no pescoço eo tirei para mostrar a ela.

— Sabe o que é isto?Inesperadamente, agarrou meu

braço.— Você tem uma? — perguntou.Por um segundo, fiquei confuso,

até perceber que ela não olhava parao amuleto, mas para minha lâminaoculta. Examinei-a por ummomento, sentindo o que só possodescrever como uma estranhamistura de emoções: orgulho,admiração, então tremor, quando,acidentalmente, ela ejetou a lâmina.A seu favor posso dizer, porém, queela não se encolheu, apenas olhouacima, para mim, com grandesolhos castanhos, e me senti afundar

mais um pouco quando elacomentou: — Eu vi seu pequenosegredo.

Retribuí o sorriso, tentandoparecer mais confiante do que mesentia, e ergui o amuleto,começando novamente.

— Isto. — E balancei o objeto. —Você sabe o que é?

Tomando-o na mão, ela o olhoubem.

— Onde o conseguiu?— Com um velho amigo — falei,

pensando em Miko e lhe dedicandouma reza silenciosa. Fiquei

imaginando, era ele quem deveriaestar aqui em vez de mim, umAssassino em vez de umTemplário?

— Eu só vi essas marcas emapenas um único lugar — disse ela,e senti uma emoção instantânea.

— Onde?— É... É proibido para mim falar

disso.Inclinei-me em sua direção.

Olhei-a nos olhos, esperandoconvencê-la com a força da minhaconvicção.

— Eu salvei seu povo. Isso não

significa nada para você?Ela nada disse.— Olhe — pressionei. — Não

sou eu o inimigo.E talvez ela tenha pensado nos

riscos que corremos no forte, quehavíamos salvado muitos de seupovo de Silas. E talvez — talvez —tenha visto algo em mim de quegostou.

De qualquer modo, ela assentiu eentão respondeu: — Perto daqui,existe um morro. No topo, cresceuma árvore poderosa. Venha,veremos se você fala a verdade.

iii

Ela me conduziu até lá, e apontoupara baixo de nós, onde havia umacidade que disse se chamarConcord.

— A cidade abriga soldados queprocuram expulsar meu povo destasterras. São liderados por um homemconhecido por Bulldog — explicou.

Então entendi.— Edward Braddock...Ela se virou para mim.— Você o conhece?— Ele não é meu amigo —

garanti, e nunca havia sido tãosincero.

— Todos os dias, mais pessoas domeu povo são mortas por homenscomo ele — disse ela ferozmente.

— E sugiro que coloquemos umfim nisso. Juntos.

E me olhou intensamente. Haviadúvida em seus olhos, mas tambémpude ver esperança.

— O que propõe?De repente, eu soube. Eu soube

exatamente o que tinha de ser feito.— Temos de matar Edward

Braddock.

Deixei que pensasse nainformação. Então acrescentei: —Mas, antes, precisamos encontrá-lo.

Começamos a seguir morroabaixo em direção a Concord.

— Não confio em você — disseela francamente.

— Eu sei.— Ainda assim continua.— Talvez eu prove que está

enganada.— Isso não acontecerá.Seu queixo estava endurecido.

Ela acreditava naquilo. Eu tinha umlongo caminho a percorrer com

aquela mulher misteriosa, cativante.Na cidade, nos aproximamos da

taberna, onde a detive.— Espere aqui — pedi. — Uma

mohawk pode atrair desconfiança...se não mosquetes.

Ela balançou a cabeça e, em vezde ficar, colocou seu capuz.

— Esta não é a primeira vez quetenho estado entre seu povo —explicou. — Posso me cuidar.

Eu esperava que sim.Entramos e encontramos grupos

de soldados de Braddock bebendocom uma ferocidade que teria

impressionado Thomas Hickey, enos movimentamos entre eles,bisbilhotando as conversas.Descobrimos que Braddock estavaem viagem. Os ingleses planejavamalistar os mohawk para marcharmais para o norte e combater osfranceses. Percebi que até ossoldados pareciam atemorizados porBraddock. Todas as conversas eramsobre o quanto ele podia serimpiedoso, e como até seus oficiaistinham pavor dele. Um nome queouvi foi George Washington. Eleera o único com coragem suficiente

para questionar o general, de acordocom uma dupla de casacosvermelhos falantes que espreitei.Quando fui para o fundo da taberna,encontrei o próprio GeorgeWashington sentado com outrooficial em uma mesa afastada, eficou um tempo ali, para escutar aconversa dos dois.

— Diga-me que tem boas notícias— disse um deles.

— O general Braddock recusou aoferta. Não haverá trégua —retrucou o outro.

— Maldição.

— Por quê, George? Que motivoele deu?

O homem que ele chamava deGeorge — que eu supus ser GeorgeWashington — respondeu: — Eledisse que uma solução diplomáticanão era de modo algum umasolução. Que permitir uma retiradados franceses somente retardaria uminevitável conflito... um conflitoque eles agora controlam.

— Há algum mérito nessaspalavras, por mais que detesteadmitir. Ainda assim... não percebeque isso é imprudente?

— Isso também não me agrada.Estamos longe de casa, com forçasdivididas. Pior, receio que uma sedede sangue pessoal torne Braddockdescuidado. Isso coloca os soldadosem risco. Não gostaria de dar másnotícias a mães e viúvas só porque oBulldog quis provar uma questão.

— Onde o general está agora?— Reagrupando os soldados.— Então presumo que deve estar

no Forte Duquesne.— Possivelmente. A marcha para

o norte certamente tomará tempo.— Pelo menos isso acabará em

breve...— Eu tentei, John.— Eu sei, meu amigo. Eu sei...Braddock tinha partido para

reagrupar seus soldados, contei paraZiio, do lado de fora da taberna.

— E eles estão marchando contrao Forte Duquesne. Vai demorar atéestarem prontos, o que nos darátempo de formar um plano.

— Não será preciso — disse ela.— Nós o emboscaremos perto dorio. Vá e reúna seus aliados. Eufarei o mesmo. Mandarei avisar,quando for o momento de atacar.

8 de julho de 1755

Já haviam se passado oito mesesdesde que Ziio pedira que euesperasse o aviso dela, masfinalmente ele veio, e viajamos paraOhio Country, um vale onde osingleses estavam para iniciar umaimportante campanha contra osfortes franceses. A expedição deBraddock tinha como propósitodestruir o Forte Duquesne.

Todos nós tínhamos estado

ocupados durante aquele tempo,mas ninguém ficou mais ocupada doque Ziio, descobri, quandofinalmente nos encontramos e vique ela trouxera consigo umagrande quantidade de soldados, amaioria nativos.

— Todos esses homens são demuitas tribos diferentes... unidospelo desejo de verem Braddock sermandado para o quinto dos infernos— explicou. — Os abenaki, oslenape, os shawnee.

— E você? — perguntei-lhe, apósserem feitas as apresentações. —

Quem você representa?Um leve sorriso.— Eu mesma.— O que quer que eu faça? —

perguntei finalmente.— Você ajudará os outros a

preparar...Ela não estava brincando.

Coloquei meus homens paratrabalhar e juntei-me a eles naconstrução de bloqueios, enchendouma carroça com pólvora para fazeruma armadilha, até tudo estar emseus lugares, então me descobrisorrindo, dizendo a Ziio: — Mal

posso esperar para ver a expressãono rosto de Braddock, quando aarmadilha finalmente for acionada.

Ela me deu um olhar de desprezo.— Você sente prazer nisso?— Foi você quem me pediu para

ajudá-la a matar um homem.— Não me agrada fazer isso. Ele

é sacrificado para que a terra e opovo que vive nela possam sersalvos. O que motiva você? Algumainjustiça passada? Uma traição? Ousimplesmente a emoção da caçada?

Mais sereno, falei: — Você meinterpretou mal.

Ela apontou para as árvores, nadireção do rio Monongahela.

— Os homens de Braddockestarão aqui em breve — lembrou.— Devemos nos preparar para suachegada.

9 de julho de 1755

i

Um batedor mohawk a cavalo falou-me rapidamente algumas palavrasque não entendi, mas, ao gesticularpara trás, em direção ao vale doMonongahela, pude adivinhar o quedizia: os homens de Braddockhaviam atravessado o rio e logoestariam diante de nós. Ele saiu parainformar ao resto dos participantesda emboscada, e Ziio, parando ameu lado, confirmou o que eu já

sabia.— Estão vindo — disse

simplesmente.Eu tinha adorado ficar junto a ela

em nosso esconderijo, aproximidade. Portanto, foi commuito pesar que olhei para fora, soba franja de uma vegetação rasteira, evi o regimento surgir do limite dasárvores ao pé do morro. Ao mesmotempo eu o ouvira: um rumordistante que ficava mais alto, o qualanunciava a chegada não de umapatrulha, não de um grupo dereconhecimento, mas de um

regimento inteiro de soldados deBraddock. Primeiro, vinham osoficiais montados a cavalo, emseguida os tocadores de tambor e osporta-bandeiras, depois os soldadosmarchando, então os carregadores eos seguidores civis vigiando ocomboio com a bagagem. A colunatoda se estendia para trás, quase atéonde a vista alcançava.

E à frente do regimento vinha ogeneral em pessoa, balançandosuavemente ao ritmo do cavalo, arespiração congelada enevoando oar adiante, e George Washington a

seu lado.Atrás dos oficiais, os tocadores

de tambor mantinham uma batidafirme, pela qual éramoseternamente gratos, pois, nasárvores, havia franco-atiradoresfranceses e indígenas. Em terrenoalto havia um grande número dehomens deitados de bruços, avegetação rasteira puxada para cimadeles, esperando o sinal de atacar:uma centena ou mais de homens àespera de acionar a armadilha; umacentena de homens com a respiraçãopresa, quando, de repente, o general

Braddock ergueu a mão, um oficiala seu lado ladrou uma ordem, o somdos tambores cessou e o regimentoparou, cavalos relincharam eespirraram, pateando o solo duro,coberto de neve, a colunagradualmente ficando em silêncio.

Uma calma sinistra instalou-seem volta dos homens na coluna. Naemboscada, prendemos a respiração,e tenho certeza de que cada homeme mulher, assim como eu, perguntoua si mesmo se tínhamos sidodescobertos.

George Washington olhou para

Braddock, depois para trás, onde oresto da coluna, oficiais, soldados eseguidores civis estavam parados,na expectativa. Em seguida, olhounovamente para Braddock.

Ele pigarreou.— Está tudo bem, senhor? —

perguntou.Braddock inspirou fundo.— Estou apenas saboreando o

momento — respondeu, entãoinspirou fundo novamente eacrescentou: — Sem dúvida, muitosdevem imaginar por que forçamostanto nosso avanço para oeste. Estas

são terras selvagens, aindaindomadas e não povoadas. Mas nãoserá sempre assim. No devidotempo, nossas propriedades nãoserão mais suficientes, e esse diaestá mais perto do que você pensa.Precisamos garantir que nosso povotenha amplo espaço para crescer eprosperar ainda mais. O quesignifica que precisamos de maisterra. Os franceses entendem isso...e se empenham para evitar talcrescimento. Eles margeiam nossoterritório... levantando fortes eformando alianças... esperando o dia

em que talvez possam nosestrangular com o laço queconstruíram. Isso não podeacontecer. Temos de cortar a cordae mandá-los de volta. É por isso quecavalgamos. Para lhes oferecer umaúltima chance: os franceses irãoembora ou morrerão.

A meu lado, Ziio lançou-me umolhar, e pude perceber que não havianada de que ela gostaria mais doque interromper de imediato apomposidade do homem.

Dito e feito.— Está na hora de atacar —

sussurrou.— Espere — falei. Quando virei a

cabeça, vi que ela me olhava, enossos rostos estavam a poucoscentímetros de distância. —Dispersar a expedição não é obastante. Precisamos garantir queBraddock fracasse. Caso contrárioele com certeza tentará novamente.

Matá-lo, foi o que eu quis dizer, ejamais haveria um momento melhorpara uma investida. Penseirapidamente, então, apontando paraum pequeno comboio dereconhecimento que se afastou do

regimento principal, expliquei: —Vou me disfarçar como um deles eseguir avançando até ficar a seulado. A emboscada me fornecerá aproteção perfeita para desferir ogolpe mortal.

Segui meu caminho abaixo emdireção ao solo e fui de mansinho nadireção dos batedores.Silenciosamente, soltei a lâmina,enfiei-a no pescoço do soldado maispróximo e já estava desabotoandosua jaqueta antes mesmo de ele cairno chão.

O regimento, agora a uns

trezentos metros de distância,começou a se movimentar com umruído igual ao de um trovão seaproximando, os tamboresrecomeçaram e os índios usaram orepentino ruído como proteção paracomeçar a se movimentar pelasárvores, ajustando suas posições,preparando a armadilha.

Montei no cavalo do batedor epassei um ou dois momentosacalmando o animal, deixando que aégua se acostumasse a mim, antesde conduzi-la abaixo por umapequena descida em direção à

coluna. Um oficial, tambémmontado, avistou-me e ordenou quevoltasse para minha posição, entãoacenei uma desculpa e comecei atrotar na direção da coluna, passeipelo comboio de bagagem e pelosseguidores civis, passei pelossoldados a pé, que me lançaramolhares ressentidos e falaram mal demim pelas minhas costas, e passeipelo bando, até chegar quase aonível da frente da coluna. Agoraperto, mas também mais vulnerável.Perto o suficiente para ouvirBraddock falar com um de seus

homens — um do seu círculointerno, seus mercenários.

— Os franceses reconhecem quesão fracos em todas as coisas —dizia ele —, por isso se aliaram aosselvagens que habitam estas matas.Um pouco mais do que animais,eles dormem em árvores,colecionam escalpos e até mesmocomem seus próprios mortos.Piedade é complacência demais emrelação a eles. Não poupemnenhum.

Não sei se deveria ou não daruma risadinha. Comem seus

próprios mortos. Ninguém aindaacreditava nisso, não é mesmo?

O oficial parecia pensar a mesmacoisa.

— Mas, senhor — protestou —,são apenas histórias. Os nativos nãofazem nada desse tipo.

Na sela, Braddock se virou paraele.

— Está me chamando dementiroso? — rosnou.

— Eu me expressei mal, senhor— disse o mercenário, tremendo. —Peço desculpas. Sinceramente, sougrato em servir.

— Em ter servido, você quisdizer — vociferou Braddock.

— Senhor? — reagiu o homem,apavorado.

— Você é grato em “ter servido”— repetiu Braddock, sacou a pistolae disparou contra o homem. Ooficial caiu do cavalo para trás, umburaco vermelho onde estivera seurosto, o corpo fazendo um ruídosurdo sobre o chão extremamenteseco da floresta. Enquanto isso, otiro assustara os pássaros dasárvores e a coluna, de repente,parou, os soldados tirando os

mosquetes dos ombros, sacandoarmas, acreditando que estavam sobataque.

Por alguns momentos,permaneceram em alerta total, atévir a ordem para descansar, e anotícia seguiu de volta para eles,uma mensagem entregue em tonssussurrados: o general acabara dematar um oficial.

Eu estava perto o bastante dafrente da coluna para ver a reaçãochocada de George Washington, eapenas ele teve a coragem de ircontra Braddock.

— General!Braddock girou o cavalo para ele,

e talvez tenha havido um momentoem que Washington achou quereceberia o mesmo tratamento. AtéBraddock estrondear: — Nãotolerarei dúvida entre aqueles sobmeu comando. Nem compaixão peloinimigo. Não tenho tempo parainsubordinação.

Corajosamente, GeorgeWashington contrapôs: — Ninguémnega que ele errou, senhor, só que...

— Ele pagou pela traição, comodevem pagar todos os traidores. Se

vencermos esta guerra contra osfranceses... Não, quando vencermosesta guerra... será porque homenscomo você obedeceram a homenscomo eu... e o fizeram semhesitação. Precisamos ter ordem emnossas fileiras, e uma clara cadeiade comando. Líderes e seguidores.Sem tal estrutura, não haverávitória. Está me entendendo?

Washington fez que sim com acabeça, mas rapidamente desviou osolhos, guardando para si seuspróprios sentimentos, então, quandoa coluna se movimentou uma vez

mais, ele se afastou da frente,fingindo que cuidaria de um assuntoem outra parte. Percebi minhachance e conduzi meu cavalo para aretaguarda de Braddock, ficando aseu lado, mas ligeiramente atráspara que não pudesse me ver. Aindanão.

Esperei, aguardando o momentopropício, até, de repente, surgir umaagitação atrás de nós, e o oficial queestava do outro lado de Braddockafastou-se para investigar, deixandosomente nós dois na frente. Eu e ogeneral Braddock.

Saquei a pistola.— Edward — falei, e desfrutei o

momento, quando ele girou na selae seus olhos foram de mim para ocano da minha pistola e entãonovamente para mim. Sua bocaabriu-se, para quê, eu não tinhacerteza, provavelmente para pedirajuda, mas eu não lhe daria essachance. Agora não havia escapatóriapara ele.

— Não é tão divertido do outrolado do cano, não é mesmo? —falei, e apertei o gatilho...

Exatamente no mesmo momento

em que o regimento foi atacado —maldição, a armadilha fora acionadacedo demais — minha montariasobressaltou-se e o tiro se perdeu.Os olhos de Braddock brilharamcom esperança e triunfo, quando, derepente, havia franceses por toda anossa volta e começou a choverflechas das árvores acima de nós.Braddock puxou as rédeas de seucavalo, com um grito, e, nomomento seguinte, levava seucavalo na direção do limite dasárvores, enquanto eu permaneciaali, a pistola disparada na mão,

aturdido pela abrupta reviravoltanos acontecimentos.

A hesitação quase me custou avida. Encontrei-me no caminho deum francês — jaqueta azul, calçasvermelhas — sua espadabalançando e seguindo direto paramim. Era tarde demais para acionarminha lâmina. Tarde demais paradesembainhar a espada.

Então, com a mesma velocidade,o francês estava voando para fora desua sela, como se puxado por umacorda, a lateral de sua cabeçaexplodindo em um jato vermelho.

No mesmo momento, ouvi o tiro evi, em um cavalo atrás dele, meuamigo Charles Lee.

Agradeci com um gesto dacabeça, mas teria de demonstrar aele posteriormente minha efusivagratidão, quando avistei Braddocksumir no meio das árvores,chutando os flancos de seu corcel edando uma rápida olhada para trás,para ver se eu o estava perseguindo.

ii

Gritando incentivos para minhamontaria, segui Braddock florestaadentro, passando por índios efranceses que corriam morro abaixoem direção à coluna. Diante demim, choveram flechas sobreBraddock, mas nenhuma atingiu oalvo. Agora também as armadilhasque tínhamos montado foramacionadas. Vi a carroça, carregadade pólvora, rolar do meio dasárvores e dispersar um grupo deatiradores antes de explodir emandar cavalos sem cavaleiros paralonge da coluna, enquanto, acima de

mim, franco-atiradores nativosabatiam soldados apavorados edesorientados.

Braddock continuavafrustrantemente adiante de mim, atéque, afinal, o terreno passou a serdemais para seu cavalo, queempinou e o jogou no chão.

Uivando de dor, Braddock rolouna terra e brevemente tateou àprocura da pistola, antes deabandonar essa ideia, pôs-se de pé ecomeçou a correr. Para mim, erauma simples questão de alcançá-lo,e esporeei minha montaria para

avançar.— Nunca pensei que fosse

covarde, Edward — falei, aoalcançá-lo, e apontei minha pistola.

Ele parou onde estava, girou eolhou nos meus olhos. Ali — alihavia arrogância. O desdém que euconhecia tão bem.

— Venha, então — escarneceu.Trotei para mais perto, arma em

punho, quando, subitamente, houveo som de um tiro, minha égua caiumorta abaixo de mim e desabei nochão da floresta.

— Quanta arrogância — ouvi

Braddock bradar. — Sempre soubeque ela seria seu fim.

Agora, a seu lado, estava GeorgeWashington, que ergueu o mosquetepara mirar em mim.Instantaneamente, tive uma fortesensação, misturada a pânico esatisfação, de consolo de que pelomenos seria Washington, queclaramente tinha consciência e nãoera em nada parecido com ogeneral, que tiraria a minha vida, efechei os olhos, pronto para aceitara morte. Lamentei por não ter vistoos assassinos de meu pai serem

levados à justiça, e por ter estadoangustiantemente perto de descobriros segredos de Aqueles Que VieramAntes, mas não ter entrado nodepósito; e desejei que tivesse sidocapaz de ver os ideais de minhaOrdem espalhados para mundo. Nofinal, não fui capaz de mudar omundo, mas, pelo menos, mudei amim mesmo. Não tinha sido sempreum homem bom, mas tentei ser umhomem melhor.

O tiro, porém, não veio. E,quando abri os olhos, foi para verWashington derrubado de seu

cavalo, e Braddock girar o corpopara ver seu oficial no chão, lutandocom uma figura que reconheci deimediato como Ziio, que não sótinha pegado Washington desurpresa como o desarmara e tinhasua faca na garganta dele. Braddockaproveitou a oportunidade parafugir, e eu me pus de pé e corri paraa clareira onde Ziio seguravaWashington firmemente.

— Depressa — gritou ela paramim. — Antes que ele escape.

Hesitei, sem querer deixá-lasozinha com Washington, e, sem

dúvida, mais soldados a caminho,mas ela o atingiu com o cabo dafaca, fazendo com que os olhos delerevirassem, tonto, e soube que elapodia cuidar de si mesma. Então fui,uma vez mais, atrás de Braddock,dessa vez, ambos a pé. Ele aindatinha sua pistola, e correu para trásde um enorme tronco de árvore,girando e erguendo a mão com aarma. Parei e rolei para um abrigo,ao mesmo tempo que ele atirava,ouvi a bala se chocarinofensivamente contra uma árvoreà minha esquerda e, sem parar,

saltei para fora do abrigo paracontinuar a perseguição. Ele jáestava de pé, na esperança de corrermais do que eu, mas eu era trintaanos mais jovem do que ele; nãohavia passado as duas últimasdécadas encarregado de umexército, engordando, e ainda nemcomeçara a suar quando elecomeçou a diminuir a velocidade.Olhou para trás e seu chapéu caiu,quando ele pisou em falso e quasecaiu sobre as raízes descobertas deuma árvore.

Fui mais devagar, deixando-o

recuperar o equilíbrio e continuarcorrendo, então voltei a persegui-lo,agora em marcha lenta. Atrás denós, os sons de tiros, de gritos, dehomens e animais sofrendo,tornaram-se mais fracos. A florestaparecia afogar o ruído da batalha,deixando apenas o som darespiração desigual de Braddock e ode seus passos sobre o macio chãoda floresta. Novamente, olhou paratrás e me viu — viu que agora euquase não estava correndo e,finalmente, caiu, exausto, dejoelhos.

Movi o dedo, soltei a lâmina e meaproximei dele. Com os ombros seerguendo, enquanto pelejava pararespirar, ele perguntou: — Por quê,Haytham?

— Sua morte abre uma porta; nãoé nada pessoal — respondi.

Enfiei a lâmina nele e observei osangue borbulhar em volta do aço, eo corpo dele ficou tenso e sacudiu-se na agonia da empalação.

— Bem, talvez seja umpouquinho pessoal — comentei, aobaixar seu corpo moribundo para ochão. — Afinal de contas, você

encheu o meu saco.— Mas somos irmãos em armas

— alegou. Suas pálpebras tremiamenquanto a morte lhe acenava.

— Um dia, talvez. Mas não mais.Você acha que esqueci o que fez?Todos aqueles inocentesmassacrados sem pestanejar. E paraquê? Isso não gera paz para impedirseu caminho para uma decisão.

Seus olhos focaram, e ele olhoupara mim.

— Errado — disse ele, com umasurpreendente e súbita energiainterna. — Se usássemos a espada

com mais liberalidade e com maisfrequência, o mundo seria dotado demuito menos problemas do quehoje.

Pensei.— Nesse caso, concordo —

retruquei.Peguei sua mão e tirei o anel que

ele usava com o penacho dosTemplários.

— Adeus, Edward — falei, efiquei esperando que morresse.

Nesse momento, porém, ouvi osom de um grupo de soldados seaproximando e percebi que não teria

tempo de escapar. Em vez disso,deitei de bruços e me arrastei parabaixo de um tronco de árvore caído,onde fiquei diretamente no níveldos olhos de Braddock. Sua cabeçaestava virada para mim, os olhosbrilhavam, e percebi que ele medenunciaria se pudesse. Lentamente,sua mão se estendeu, um dedo tortotentando apontar na minha direção,quando os homens chegaram.

Maldição, eu deveria ter dado ogolpe mortal.

Vi as botas dos homens quechegavam à clareira, imaginando

qual teria sido o resultado dabatalha, e vi George Washingtonabrir caminho por entre um pequenogrupo de soldados, correr adiante ese ajoelhar ao lado de seumoribundo general.

Os olhos de Braddock ainda semoviam. A boca se movimentavacomo se quisesse formar palavras— palavras para me denunciar.Fiquei imóvel, contando os pés: seisou sete homens pelo menos.Conseguiria derrotá-los?

Mas, percebi, as tentativas deBraddock de alertar seus homens

sobre minha presença estavamsendo ignoradas. Em vez disso,George Washington tinha colocadoa cabeça sobre seu peito, ouviu eexclamou: — Está vivo.

Debaixo do tronco de árvore,fechei os olhos e praguejei,enquanto os homens erguiamBraddock e o levavam embora.

Mais tarde, reuni-me com Ziio.— Está feito — disse-lhe. Ela

assentiu.— Agora que já fiz minha parte

do acordo, espero que você faça asua — acrescentei.

Ela assentiu novamente e fez umsinal para que eu a seguisse, esaímos cavalgando.

10 de julho de 1755

Cavalgamos a noite toda e,finalmente, ela parou e indicou ummonte de terra diante de nós. Eracomo se tivesse surgido da própriafloresta. Fiquei imaginando se euteria visto aquilo por mim mesmo.Meu coração acelerou e engoli emseco. Teria imaginado, ou foi comose o amuleto tivesse repentinamenteacordado em meu pescoço, setornado mais pesado, mais quente?

Olhei para ela, antes de caminharaté a abertura e escorregar paradentro, onde me encontrei em umpequeno aposento que havia sidorevestido com cerâmica simples.Havia um círculo de pictogramasenvolvendo-o, levando a umadepressão na parede. Uma depressãodo tamanho do amuleto.

Fui até ela e tirei o amuleto dopescoço, contente por vê-lo brilharligeiramente na minha palma.Olhando para Ziio, que retribuiumeu olhar, seus próprios olhosarregalados de medo, aproximei-me

do entalhe e, quando meus olhos seajustaram à escuridão, vi que duasfiguras, pintadas na paredeajoelhadas diante dele, lheestendiam as mãos como em umaoferenda.

O amuleto agora parecia estarmais brilhante, como se o próprioartefato estivesse antecipando suareunião com a estrutura da câmara.Quanto tempo tinha aquilo?Imaginei. Quantos milhões de anosaté o amuleto ter sido desbastadodaquela própria rocha?

Percebi que estive prendendo a

respiração, e agora a soltei de umavez, ao estender a mão e pressionaro amuleto para o interior daconcavidade.

Nada aconteceu.Olhei para Ziio. Então, dela para

o amuleto, onde seu antigo brilhocomeçava a se apagar, quase comose espelhando minhas própriasexpectativas frustradas. Meus lábiosse mexeram, tentando encontrarpalavras.

— Não...Tirei o amuleto, tentei

novamente, mas nada ainda.

— Você parece decepcionado —comentou ela ao meu lado.

— Pensei que tivesse a chave —falei, e foi com desânimo que ouvi otom de minha própria voz, a derrotae a decepção — que abriria algumacoisa aqui...

Ela encolheu os ombros.— O lugar é este, isto é tudo.— Eu esperava... — O que eu

esperava? — ...mais.— Essas imagens, o que

significam? — perguntei, merecuperando.

Ziio foi até a parede para

observá-las. Uma em particularpareceu atrair o olhar dela. Era umdeus ou uma deusa usando umantigo e intricado adorno de cabeça.

— Isso conta a história deIottsitíson — explicou elaatentamente —, que veio ao nossomundo e o moldou, para que a vidapudesse vir. Foi uma árdua viagema dela, repleta de perdas e degrandes perigos. Mas ela acreditavano potencial de seus filhos e no quepoderiam realizar. Embora tenhaido há muito tempo do mundofísico, seus olhos ainda zelam por

nós. Seus ouvidos ainda escutamnossas palavras. Suas mãos aindanos guiam. Seu amor ainda nos dáforça.

— Você me prestou uma grandegentileza, Ziio. Obrigado.

Quando ela olhou novamente paramim, seu rosto estava suave.

— Sinto muito por você não terencontrado o que procura.

Segurei sua mão.— Preciso ir — falei, sem querer

ir, de modo algum, e então ela medeteve: se inclinou e me beijou.

13 de julho de 1755

— Sr. Kenway, encontrou,afinal?

Essas foram as primeiras palavrasque Charles Lee me dirigiu, quandoentrei na nossa sala na tavernaGreen Dragon. Meus homensestavam todos reunidos, e meolharam com um ar de expectativa,em seguida seus rostosdemonstraram frustração quandobalancei a cabeça.

— Não era o lugar certo —confirmei. — Creio que o templonada mais era do que uma cavernapintada. Ainda assim, continhaimagens e escritas precursoras, oque significa que estamos perto.Precisamos redobrar nossosesforços, expandir nossa Ordem eestabelecer aqui uma basepermanente — continuei. —Embora o local nos escape, estouconfiante de que o encontraremos.

— Verdade! — declarou JohnPitcairn.

— Viva, viva! — concordou

Benjamin Church.— Além do mais, creio que está

na hora de darmos as boas-vindas aCharles à congregação. Eledemonstrou ser um discípulo leal...e tem servido infalivelmente desdeo dia em que veio a nós. Vocêpoderá compartilhar todo o nossoconhecimento e colher todos osbenefícios que implica tal dádiva,Charles. Alguém se opõe?

Os homens permaneceram emsilêncio, lançando olhares deaprovação para Charles.

— Muito bem. — Prossegui: —

Charles, venha cá. — Quando ele seaproximou de mim, perguntei: —Jura defender os princípios de nossaOrdem e tudo que defendemos?

— Juro.— Nunca compartilhar segredos

nem divulgar a verdadeira naturezado nosso trabalho?

— Juro.— E fazer isso a partir de agora

até a morte... custe o que custar?— Juro.Os homens se levantaram.— Então, bem-vindo à nossa

congregação, irmão. Juntos,

prenunciaremos o alvorecer de umnovo mundo, um mundo marcadopor objetivo e ordem. Dê-me suamão.

Peguei o anel que havia tirado dodedo de Braddock e o enfiei no deCharles. Olhei para ele.

— Você agora é um Templário.Com isso, ele sorriu.— Que o pai do conhecimento

nos guie — pedi, e os homens sejuntaram a mim. Nossa equipeestava completa.

1 de agosto de 1755

Eu a amo?

Era uma pergunta que achavadifícil de responder. Tudo que eusabia era que gostava de estar comela e passei a estimar o tempo quepassávamos juntos.

Ela era... diferente. Havia algonela que eu nunca tinha sentido emoutra mulher. Aquele “espírito” deque falei antes parecia surgir emcada palavra e em cada gesto seu.Eu me descobria olhando para ela,

fascinado pela luz que pareciapermanentemente iluminar seusolhos, e ficava imaginando, sempreimaginando, o que se passava pordentro? No que ela estavapensando?

Eu achava que ela me amava. Oudevo dizer, acho que ela me ama,mas ela é assim como eu. Há muitacoisa sobre si mesma que mantémescondida. E, assim como eu, achoque sabe que o amor não podeprogredir, que não podemos vivernossas vidas juntos, nem nestafloresta nem na Inglaterra, que há

muitas barreiras entre nós e nossasvidas juntos: sua tribo, paracomeçar. Ela não deseja deixar suavida para trás. Vê seu lugar com seupovo, protegendo sua terra — terraque eles acreditam estar sob ameaçade gente como eu.

E eu também tenho umaresponsabilidade perante meu povo.Os princípios de minha Ordemestarão alinhados com os ideais desua tribo? Não tenho certeza de queestão. Se me pedissem queescolhesse entre Ziio e os ideais quefui educado para acreditar, o que eu

escolheria?Estes são os pensamentos que

têm me incomodado nas últimassemanas, mesmo quando medeleitei com aquelas doces horasroubadas com Ziio. Tenho pensadono que fazer.

4 de agosto de 1755

Minha decisão foi tomada em meulugar, pois, esta manhã, tivemosuma visita.

Estávamos no acampamento,cerca de oito quilômetros deLexington, onde não tínhamos vistoninguém — nenhum outro serhumano — durante várias semanas.Eu o ouvi, é claro, antes de vê-lo.Ou melhor, deveria dizer que ouvi odistúrbio que ele causou: um

esvoaçar a distância, quando as avesdeixaram as árvores. Nenhummohawk teria feito com que elas secomportassem daquela maneira, eusabia, o que significava que eraoutra coisa: um colono, um patriota,um soldado inglês, talvez atémesmo um batedor francês, muitodistante de seu caminho.

Ziio deixara o acampamentoquase uma hora atrás, para caçar.Mesmo assim, eu a conhecia muitobem para saber que ela teria visto asaves perturbadas; ela também teriaalcançado seu mosquete.

Subi rapidamente na árvore devigia e fiz uma varredura da áreaem volta de nós. Lá, a distância —lá estava ele, um cavaleiro solitáriotrotando lentamente pela floresta.Seu mosquete vinha pendurado noombro. Usava chapéu tricorne e umcasaco escuro abotoado até emcima; não era um uniforme militar.Freando o cavalo, ele parou e o vimeter a mão em uma mochila, tiraruma luneta e colocá-la sobre o olho.Observei-o dirigir a luneta acima,para o alto do dossel das árvores.

Por que para cima? Rapaz

esperto. Ele procurava asdenunciadoras colunas de fumaça, ocinza contra o céu azul brilhante doinício de manhã. Olhei abaixo paraa nossa fogueira, vi a fumaça queserpeava acima seu caminho para océu, então olhei de volta para ocavaleiro, observando-omovimentar a luneta pelo horizonte,quase como se...

Sim. Quase como se tivessedividido a área em uma grade e semovimentasse metodicamente porela de quadrado a quadrado,exatamente do mesmo modo que...

Eu fazia. Ou um dos meuspupilos fazia.

Permiti-me relaxar ligeiramente.Era um dos meus homens —provavelmente Charles, a julgarpela sua constituição e pelas roupas.Observei-o ver as colunas defumaça da fogueira, recolocar aluneta na mochila e começar a trotarem direção ao acampamento. Agoraque estava perto, vi que era Charles,e desci da árvore e fui para oacampamento, pensando em Ziio.

De volta ao chão, olhei em volta,e vi o acampamento através dos

olhos de Charles: a fogueira, os doispratos de estanho, uma lonaamarrada entre árvores, debaixo daqual estavam as peles com que Ziioe eu nos cobríamos para nos aquecerà noite. Baixei a lona para ocultar aspeles e depois me ajoelhei junto àfogueira e recolhi os pratos deestanho. Momentos depois, seucavalo chegou à clareira.

— Olá, Charles — falei, semolhar para ele.

— Você sabia que era eu?— Vi que estava usando seu

treinamento: fiquei muito

impressionado.— Fui treinado pelo melhor —

retrucou. E ouvi o sorriso em suavoz, ergui a vista, para, afinal, vê-loolhar abaixo para mim.

— Sentimos sua falta, Sr.Kenway — disse ele.

Assenti.— E eu de vocês.Suas sobrancelhas se ergueram.— É mesmo? Você sabe onde nós

estamos.Enfiei uma vara no fogo e

observei sua ponta incandescer.— Eu queria saber se vocês eram

capazes de agir na minha ausência.Ele apertou os lábios e assentiu.— Creio que você sabe que

somos. Qual o verdadeiro motivo desua ausência, Haytham?

Olhei abruptamente acima, dafogueira para ele.

— Qual poderia ser, Charles?— Talvez você esteja gostando da

vida aqui com a sua índia, suspensoentre dois mundos, semresponsabilidades com nenhumdeles. Deve ser bom ter umas fériascomo essas...

— Cuidado, Charles — alertei-o.

Subitamente ciente de que eleolhava abaixo para mim, levantei-me e o encarei, para ficarmos emigualdade de condições.

— Talvez, em vez de sepreocupar com minhas atividades,você deveria se concentrar nas suas.Diga-me, como estão as coisas emBoston?

— Temos cuidado das coisas quevocê mandou que cuidássemos.Com relação à terra.

Assenti, pensando em Ziio,imaginando se haveria outramaneira.

— Algo mais? — perguntei.— Continuamos procurando

sinais do sítio precursor... — disseele, e ergueu o queixo.

— Sei...— William planeja liderar uma

expedição à câmara.Sobressaltei-me.— Ninguém me perguntou sobre

isso.— Você não estava lá para que se

perguntasse — justificou Charles.— William pensou que... Bem, sequisermos encontrar o local, entãoeste é o melhor lugar para se

começar.— Vamos enfurecer os nativos se

começarmos a montaracampamento em suas terras.

Charles me deu um olhar como seeu tivesse perdido o bom-senso.Claro. Por que nós, os Templários,deveríamos nos preocupar emperturbar alguns nativos?

— Estive pensando no local —falei rapidamente. — De algummodo, ele agora parece menosimportante... — Desviei a vista paralonge.

— Você planeja omitir mais

alguma coisa? — perguntou de ummodo impertinente.

— Estou lhe avisando... — falei everguei os dedos.

Ele olhou em volta doacampamento.

— Onde está ela, afinal? Suaamante... índia?

— Em nenhum lugar que possalhe interessar, Charles, e euagradeceria que eliminasse esse tomda sua voz, quando, no futuro, sereferir a ela, ou serei obrigado aeliminá-lo à força.

Seus olhos estavam frios quando

olhou para mim.— Chegou uma carta —

informou, enfiou a mão na mochilae retirou-a, de modo que caísse ameus pés.

Olhei abaixo e vi meu nome nafrente do envelope e,imediatamente, reconheci acaligrafia. A carta era de Holden, emeu coração se apressou só de veraquilo: uma ligação com minhaantiga vida, minha outra vida naInglaterra e as preocupações que eutinha ali: encontrar os assassinos domeu pai.

Eu nada fiz ou disse que traísseminhas emoções ao ver a carta,acrescentando: — Mais algumacoisa?

— Sim — disse Charles —, umaboa notícia. O general Braddocksucumbiu aos ferimentos.Finalmente morreu.

— Quando foi isso?— Ele morreu logo após ser

ferido, mas a notícia só agorachegou a nós.

Assenti.— Então esse assunto está

encerrado — falei.

— Excelente — disse Charles. —Então devo retornar, não? Dizer aoshomens que está desfrutando a vidaaqui na floresta? Podemos esperarapenas que nos agracie com suapresença em alguma ocasião nofuturo.

Pensei na carta de Holden.— Talvez mais cedo do que

imagina, Charles. Tenho umpressentimento de que logo terei deme afastar para cuidar de umassunto. Vocês têm se mostradomais do que capazes de cuidar dascoisas. — Dei-lhe um fraco e

melancólico sorriso. — Talvezcontinuem a fazer isso.

Charles puxou as rédeas do seucavalo.

— Como queira, Sr. Kenway.Direi aos homens que o esperem.Enquanto isso, por favor, transmitanossos cumprimentos à senhora suaamiga.

E, com isso, ele se foi. Fiquei umpouco mais agachado diante dafogueira, a floresta silenciosa àminha volta, então disse: — Podesair agora, Ziio, ele já se foi. — Eela pulou de cima de uma árvore e

veio caminhando a passos largospara a clareira, o rosto parecendotrovejar.

Levantei-me para encontrá-la. Ocolar que ela sempre usava reluziaao sol da manhã e seus olhosflamejavam raivosamente.

— Ele estava vivo — disse ela.— Você mentiu para mim.

Engoli em seco.— Mas, Ziio, eu...— Você me disse que ele estava

morto — continuou, a vozaumentando. — Você me disse queele estava morto, para eu lhe

mostrar o templo.— Sim — admiti. — Eu fiz isso,

e sinto muito por ter feito isso.— E que história é essa de terra

— interrompeu-me. — O queaquele homem disse sobre estaterra? Estão tentando tomá-la, éisso?

— Não — neguei.— Mentiroso — gritou.— Espere. Posso explicar...Mas ela já tinha desembainhado a

espada.— Eu deveria matá-lo pelo que

fez.

— Você tem todo o direito deestar zangada, amaldiçoar meunome e querer que eu vá embora.Mas a verdade não é a que acreditaque seja — comecei.

— Vá! — disse ela. — Váembora daqui e não volte nuncamais. Pois, se voltar, arrancarei seucoração com minhas próprias mãose o darei para que os lobos comam.

— Apenas me escute, eu...— Eu juro — gritou.Baixei a cabeça.— Como queira.— Nesse caso, terminamos —

disse ela, então se virou e deixouque eu empacotasse minhas coisas evoltasse para Boston.

17 de setembro de 1757(dois anos depois) i

Quando o sol se pôs, pintandoDamasco de uma cor marrom-dourado, eu caminhava com meuamigo e companheiro Jim Holden àsombra das muralhas de Qasr al-Azm.

E pensava nas três palavras quehaviam me trazido aqui.

“Eu a encontrei.”Eram as únicas palavras na carta,

mas me disseram tudo que

precisava saber e foram o suficientepara me transportar da Américapara a Inglaterra, onde, antes quequalquer outra coisa pudesseacontecer, encontrei-me comReginald na White’s para colocá-loa par dos acontecimentos emBoston. Ele sabia bastante do quehavia acontecido, é claro, através decartas, mas, mesmo assim, esperaraque ele mostrasse interesse notrabalho da Ordem, particularmenteno que dizia respeito a seu velhoamigo Edward Braddock.

Eu estava enganado. Tudo que lhe

importava era o sítio precursor e,quando lhe contei que tinha novosdetalhes a respeito da localização dotemplo e que deveriam ser achadosno interior do Império Otomano, elesuspirou e deu um sorriso de êxtase,como um viciado em láudanosaboreando seu xarope.

Momentos depois, eleperguntava: — Onde está o livro?— com um tom impaciente na voz.

— William Johnson fez umacópia — avisei, e peguei minhabolsa para devolver o original, oqual deslizei pela mesa em sua

direção. Estava envolto em pano,amarrado com barbante, e ele meolhou agradecidamente antes dealcançá-lo, desfazer o laço e retirara cobertura para contemplar seuadorado volume: a envelhecida capade couro marrom, o timbre dosAssassinos em sua frente.

— Estão fazendo uma buscaminuciosa na câmara? —perguntou, ao embrulhar novamenteo livro, refazer o laço e depoisafastá-lo avidamente. — Eu gostariamuito de ver pessoalmente essacâmara.

— Certamente — menti. — Oshomens estão montando umacampamento ali, mas enfrentamataques diários dos nativos. Seriamuito arriscado para você,Reginald. Você é o Grão-Mestre doRitual Britânico. Seu tempo émelhor aplicado aqui.

— Entendo — concordou. —Entendo.

Observei-o cuidadosamente. Paraele, haver insistido em visitar acâmara teria sido admitir quenegligenciaria seus deveres comoGrão-Mestre e, obcecado como era,

Reginald ainda não estava prontopara fazer isso.

— E o amuleto? — perguntou.— Está comigo — respondi.Conversamos um pouco mais,

porém houve pouca cordialidade e,quando nos separamos, partiimaginando o que havia em seucoração e o que havia no meu. Ecomecei a me ver não muito comoum Templário, mas como umhomem com raízes Assassinas ecrenças Templárias, cujo coraçãofora perdido brevemente para umamohawk. Em outras palavras, um

homem com uma perspectivasingular.

Consequentemente, estive menospreocupado em descobrir o templo eusar seu conteúdo para estabeleceruma supremacia dos Templários, emais com a junção das duasdisciplinas, a Assassina e aTemplária. Refleti de que modo osensinamentos de meu paifrequentemente haviam seencaixado com os de Reginald, ecomecei a ver as semelhanças entreas duas facções, em vez dasdiferenças.

Mas antes — antes havia oassunto inacabado que tinhaocupado minha mente por tantosanos. Encontrar os matadores domeu pai ou encontrar Jenny era omais importante agora? De qualquermodo, queria me libertar dessalonga sombra escura que pairousobre mim por tanto tempo.

ii

E foi assim, com estas palavras —“Eu a encontrei” — que Holden

começou outra odisseia, que noslevou ao coração do ImpérioOtomano, onde, durante os quatroanos anteriores, ele e eu seguimos orastro de Jenny.

Ela estava viva — foi essa a suadescoberta. Viva e nas mãos detraficantes de escravos. Enquanto omundo lutava a Guerra dos SeteAnos, chegamos perto de descobrirsua localização exata, mas ostraficantes mudaram de lugar antesque fôssemos capazes de nosmobilizar. Depois disso, passamosvários meses tentando encontrá-la,

então descobrimos que fora levadapara a Corte otomana, comoconcubina no palácio de Topkapi, eseguimos para lá. Novamente,chegamos tarde demais; ela foralevada para Damasco, para o grandepalácio construído pelo governadorotomano em exercício As’ad, Pashaal-Azm.

E, portanto, viemos paraDamasco, onde eu vestia roupas deum rico mercador, caftã e turbante,como também volumosas calçassalwar, sentindo-me nem um poucoconstrangido para falar a verdade,

enquanto, a meu lado, Holden usavamantos simples. Ao entrarmos peloportão da cidade e seguir pelas ruasestreitas e sinuosas em direção aopalácio, notamos que havia maisguardas do que o normal, e Holden,tendo feito seu dever de casa, mepassou as informações, enquantoandávamos a passos lentos na poeirae no calor.

— O governador está nervoso,senhor — explicou. — Parece que ogrão-vizir Raghib Pasha de Istambultem uma rixa com ele.

— Entendo. E ele está certo? O

grão-vizir tem uma rixa com ele?— O grão-vizir o chamou de

“camponês, filho de um camponês”.— Então parece que tem mesmo

uma rixa.Holden deu uma risadinha.— Exatamente. E o governador

teme ser deposto e, como resultado,está aumentando a segurança portoda a cidade e, especialmente, nopalácio. Está vendo todas essaspessoas? — Indicou uma agitaçãode cidadãos não muito distante,atravessando nosso caminho.

— Estou.

— Estão indo para uma execução.Aparentemente, um espião nopalácio. As’ad Pasha al-Azm estávendo-os em toda a parte.

Em uma pequena praça apinhadade gente, vimos um homem serdecapitado. Morreu com dignidade,e a multidão rugiu sua aprovação,quando a cabeça cortada rolou paraas tábuas enegrecidas de sangue dopatíbulo. Acima da praça, opalanque do governador estavavazio. Ele permanecia no palácio,segundo os rumores, e não ousavamostrar a cara.

Quando acabou, Holden e eudemos meia-volta e nos afastamos,seguindo em direção ao palácio,percorremos seus muros e notamosquatro sentinelas no portãoprincipal e outros posicionados emportões laterais arcados.

— Como é lá dentro? —perguntei.

— Duas alas principais: aharamlik e a salamlik. Na salamlik éonde ficam os salões, as áreas derecepção e os pátios deentretenimento, mas é na haramlikonde encontraremos a Srta. Jenny.

— Se ela estiver lá.— Ah, ela está lá sim, senhor.— Tem certeza?— Tanto quanto Deus é minha

testemunha.— Por que ela foi transferida do

palácio de Topkapi? Você sabe?Ele me olhou e pareceu sem jeito.— Bem, a idade, senhor. No

início, quando era jovem, ela foialtamente apreciada; é contra a leiislâmica aprisionar outrosmuçulmanos, sabe, portanto, amaioria das concubinas são cristãs...Muitas delas capturadas nos

Bálcãs... E, se a Srta. Jenny era tãograciosa como diz, bem, tenhocerteza de que deve ter atraídomuita atenção. O problema é quenão há falta delas, e a Srta.Kenway... Bem, ela está na casa dos40 anos, senhor. Já faz muito tempoque não tem deveres de concubina.Ela é pouco mais do que umacriada. Suponho que se possa dizerque ela foi rebaixada, senhor.

Pensei naquilo, achando difícilacreditar que a Jenny que um diaconheci — a linda, imperiosa Jenny— estivesse em uma posição tão

baixa. De algum modo, eu aimaginei perfeitamente preservada edesempenhando uma função deautoridade na Corte otomana, talvezjá alçada à posição de Rainha Mãe.Em vez disso, ela estava aqui, emDamasco, na casa de um governadorimpopular prestes a ser deposto. Oque faziam com criadas econcubinas de um governadordeposto? Fiquei imaginando.Possivelmente, tinham o mesmodestino da pobre alma que vimos serdecapitada mais cedo.

— E os guardas lá dentro? —

indaguei. — Não creio quepermitam homens no harém.

Ele balançou a cabeça.— Todos os guardas do harém

são eunucos. A operação para torná-los eunucos... puta merda, senhor,não vai querer ouvir isso.

— Mas vai me contar assimmesmo?

— Bem, sim, não vejo por que eudeva carregar sozinho esse fardo.Eles cortam a genitália do pobresujeito, depois enterram o sujeito naareia até o pescoço por dez dias.Apenas dez por cento dos pobres

ferrados sobrevivem ao processo, eesses sujeitos são os mais durõesdos durões.

— Certo — falei.— Outra coisa: a haramlik, onde

as concubinas vivem, os banhosficam lá.

— Os banhos ficam lá?— Sim.— E por que está me dizendo

isso?Ele parou. Olhou de um lado a

outro, semicerrando os olhos porcausa do sol. Satisfeito por ver queera seguro, inclinou-se à frente,

agarrou uma argola de ferro que eunão tinha visto, de tão bem cobertapela areia sob nossos pés, e deu umpuxão para cima, abrindo umalçapão e revelando alguns degrausque desciam para a escuridão.

— Depressa, senhor — sorriu —,antes que apareça o sentinela.

iii

Uma vez na parte de baixo dosdegraus, tomamos conhecimento doambiente. Estava escuro, quase

escuro demais para se enxergar, masda esquerda vinha o filete de umcórrego, enquanto adiante seestendia o que parecia umapassarela usada para entregas oumanutenção dos canais de águacorrente; provavelmente, umamistura de ambos.

Não dissemos nada. Holdensondou o interior de uma mochilade couro para tirar uma vela e umacaixa de iscas para fogo. Acendeu avela, prendeu-a na boca e tirou damochila uma pequena tocha, queacendeu e prendeu acima da cabeça,

projetando um suave brilhoalaranjado por toda a nossa volta.De fato, à nossa esquerda estava umaqueduto, enquanto o caminhoirregular sumia no meio daescuridão.

— Vou nos conduzir até bemdebaixo do palácio e sob os banhos— disse Holden sussurrando. — Seeu estiver certo, sairemos em umasala com um tanque de água doce,bem debaixo dos banhos.

Impressionado, comentei: —Você manteve isso em segredo.

— Gosto de ter um velho truque

na manga, senhor. — E ficouradiante. — Mostrarei o caminho,posso?

E, com isso, ele foi em frente,mergulhando no silêncio, enquantoseguíamos ao longo do caminho.Quando as tochas se consumiram,foram jogadas fora e acendemosduas novas na vela presa na boca deHolden, depois caminhamos maisum pouco. Finalmente, a área diantede nós alargou-se para formar umacâmara mal iluminada, onde aprimeira coisa que vimos foi umtanque, suas paredes revestidas com

placas de mármore, a água tão claraque parecia reluzir à escassa luzfornecida por um alçapão abertoacima de alguns degraus próximos.

A segunda coisa que vimos foium eunuco, que estava ajoelhado decostas para nós, enchendo umcântaro de barro no tanque. Usavana cabeça um alto kalpak branco emantos ondulantes. Holden olhoupara mim com o dedo nos lábios,então começou a avançarsorrateiramente, uma adaga já namão, mas o detive segurando seuombro. Queríamos as roupas do

eunuco, e isso significava evitarmanchas de sangue. Aquele era umhomem que servia às concubinas emum palácio otomano, e não umcasaco vermelho comum emBoston, e eu pressentia que sangueem suas vestes não seria fácil deexplicar. Portanto, passei à frente deHolden na passarela,inconscientemente flexionando osdedos e, em minha mente,localizando a artéria carótida noeunuco, aproximando-me quandoele terminou de encher o cântaro ese levantou para ir embora.

Mas então minha sandáliaarrastou na passarela. O ruído foimínimo, mas, mesmo assim, noespaço confinado, soou como aerupção de um vulcão, e o eunuco seencolheu.

Congelei e, internamente,praguejei contra minhas sandálias,quando sua cabeça balançou paraolhar acima para o alçapão, natentativa de localizar a fonte doruído. Como não viu nada, pareceuficar completamente imóvel, comose tivesse percebido que, se o somnão tinha vindo de cima, então

devia ter vindo de...Ele girou o corpo.Houve algo em suas roupas, sua

conduta, o modo como se ajoelhoupara encher o cântaro: nada dissohavia me preparado para avelocidade de sua reação. Nem paraa habilidade. Pois, ao girar, ele seagachou e, com o canto do olho, vi ocântaro em sua mão chicotearrapidamente na minha direção, tãodepressa que teria me derrubado seeu não tivesse mostrado velocidadeigual e me esquivado.

Eu tinha escapado dele, mas

apenas por um triz. Quando recueirapidamente para evitar outro golpecom o cântaro, seus olhos semovimentaram acima de meuombro e viram Holden. A seguir, elese virou para dar uma rápidaolhadela nos degraus de pedra, suaúnica saída. Estava avaliando suasopções: fugir ou ficar e lutar. E eledecidiu por ficar e lutar.

O que fez dele, como tinha ditoHolden, um eunuco — muito —durão.

Ele deu alguns passos para trás,enfiou a mão por baixo do manto e

tirou uma espada, batendosimultaneamente o cântaro de barrona parede para lhe fornecer umasegunda arma. Então, com a espadaem uma das mãos e o cântaroquebrado na outra, ele avançou.

A passarela era muito estreita.Apenas um de nós poderia enfrentá-lo de cada vez, e eu era o maispróximo. A ocasião de se preocuparcom sangue nos mantos haviapassado, e soltei minha lâmina, eumesmo recuando um pouco,adotando uma posição pronta paraenfrentá-lo. Ele avançou,

implacavelmente, o tempo todo meolhando fixamente. Havia nele algotemível, algo que eu não conseguiadeterminar, mas então me dei contado que era: ele provocou em mimuma sensação que nenhum oponentejamais havia feito. Como teria ditominha velha babá Edith, ele mecausou arrepios. Era sabido o queele tinha passado, o procedimentoque o tornou um eunuco.Sobrevivendo a isso, nada lhecausaria medo, muito menos eu, umparvo desajeitado incapaz atémesmo de ser bem-sucedido em se

esgueirar por trás dele.Ele também sabia disso. Sabia

que me causava arrepios e usavaisso. Estava tudo ali, em seus olhos,que não registravam qualqueremoção enquanto a espada em suamão direita golpeava na minhadireção. Fui forçado a fazer umbloqueio com a lâmina e quase girarpara evitar o golpe subsequente, queveio de sua esquerda, ao tentar equase conseguir enfiar o cântaroquebrado no meu rosto.

O eunuco não me deu tempo paradescansar, talvez percebendo que o

único modo de derrotar a mim eHolden era nos fazer recuar aolongo da estreita passarela.Novamente, a espada brilhou, dessavez com um movimento deantebraço, e, mais uma vez, apareicom a lâmina, fazendo uma caretade dor, ao usar o antebraço paradeter um golpe secundário com ocântaro, então retribuindo com umgolpe ofensivo, afastando-meligeiramente para o lado direito emandando a espada em direção aoseu esterno. Ele usou o cântarocomo escudo, e minha espada o

destruiu, salpicando barro na pedraabaixo de nós, e chapinhando notanque. Minha espada precisaria seramolada depois desta.

Se eu saísse desta.E maldito seja aquele homem.

Era o primeiro eunuco que euconhecia e já estávamos lutando.Fiz sinal para Holden ir para trás epara não ficar debaixo dos meus pésquando eu recuasse, na tentativa deme dar mais algum espaço e, aomesmo tempo, me organizarinternamente.

O eunuco estava me derrotando

— não apenas por causa de suahabilidade, mas porque eu o temia.E o temor é o que o guerreiro maisteme.

Abaixei-me, trazendo as lâminaspara me apoiar, e olhei em seusolhos. Por um momento, ficamosimóveis, envolvidos em umasilenciosa mas feroz batalha devontade. Uma batalha que venci. Dealgum modo, seu domínio sobremim se rompeu, e tudo que bastoufoi um movimento de seus olhospara me dizer que ele também sabiadisso; que a vitória psicológica não

era mais sua.Avancei, a lâmina lampejando, e

agora foi a hora de ele recuar,defendendo-se bem e firmemente,porém não mais com o controle dasituação. Em determinado instante,ele até mesmo grunhiu, os lábiosrecuando sobre os dentes, e vi oinício de suor brilhar de modo fracoem sua testa. Minha lâminamovimentava-se rapidamente. Eagora que o fazia recuar, comecei apensar de novo em manter suasroupas livres de sangue. A batalhahavia mudado de direção; agora era

minha, e ele sacudia-seviolentamente com a espada, seusataques tornando-se cada vez maisdesorganizados, até que pude verminha chance, caí quase de joelhose dei uma estocada de baixo paracima com a lâmina, perfurando seuqueixo.

Seu corpo se contraiu e os braçosse estenderam como se tivesse sidocrucificado. A espada caiu e,quando os lábios se abriramamplamente em um grito silencioso,vi o prateado da minha lâminaempaladora no interior de sua boca.

Então o corpo dele desabou.Eu o impelira todo o caminho até

a parte inferior dos degraus, e oalçapão estava aberto. A qualquermomento, outro eunuco desceriapara saber que fim tinha levado ocântaro com água. De fato, ouvipassos acima de nós e uma sombrapassou pelo alçapão. Recuei, agarreios calcanhares do morto e arrastei-ocomigo, tirei seu chapéu e o enfieina minha cabeça.

O que vi a seguir foram os pésdescalços de um eunuco descendoos degraus e esticando a cabeça para

observar abaixo a câmara do tanque.Ver-me com o chapéu branco foi obastante para desorientá-lo por umprecioso segundo, e ataquei, agarreiseu manto e puxei-o degraus abaixoem minha direção, chocando minhatesta contra seu nariz antes que elepudesse gritar. Os ossos trituraram equebraram, e ergui sua cabeça paraevitar que o sangue pingasse naroupa, ao mesmo tempo que seusolhos reviravam e o corpo relaxava,tonto, contra a parede. Em questãode momentos, ele recuperaria ossentidos e gritaria pedindo ajuda, e

eu não podia permitir isso. Entãoenfiei com força a mão aberta nonariz amassado, enfiando lascas deossos quebrados em seu cérebro ematando-o instantaneamente.

Segundos depois, subi correndoos degraus e, com muita cautela,bem devagar, fechei o alçapão,dando-nos pelo menos algunsmomentos escondidos antes dechegarem reforços. Em algum lugar,presumivelmente, uma concubinaesperava um cântaro com água serentregue.

Nada dissemos, apenas vestimos

os mantos dos eunucos e enfiamosn o s s o s kalpaks. Como fiqueicontente em me livrar daquelasmalditas sandálias. Então olhamosum para o outro. Holden tinhapingos de sangue em suas roupas,onde eu esmagara o nariz do usuárioanterior do manto. Raspei-os com aunha, mas, em vez de arrancá-los,como esperava, eles ainda estavamum pouco úmidos e a roupa ficouum pouco lambuzada. No final,usando uma complicada série deaflitas expressões faciais e furiosassacudidas de cabeça, decidimos, por

consenso, deixar as manchas desangue e correr o risco. Em seguida,abri cuidadosamente o alçapão e meenfiei no aposento acima, queestava vazio. Era uma sala escura,fria, revestida de um mármore queparecia luminescente, graças a umapiscina que cobria a maior parte doespaço do chão, a superfície lisa,silenciosa, mas de algum modoviva.

Com o caminho livre, virei-me eacenei para Holden, que me seguiudo alçapão para o aposento.Ficamos por ali um momento,

estudando o ambiente, trocandoolhares cautelosamente triunfantesantes de seguir para a porta, abri-lae penetrar no pátio que haviadepois.

iv

Sem saber o que havia do outrolado, fui flexionando os dedos,prestes a soltar a lâmina a qualquermomento, enquanto Holden nãotinha dúvidas de que estava prontopara alcançar sua espada, ambos

bem-aprumados para uma luta, sefôssemos recebidos por um pelotãode eunucos rosnadores, umamontoado de uivantes concubinas.

Em vez disso, o que vimos foiuma cena saída diretamente do céu,uma vida após a morte repleta depaz e serenidade e belas mulheres.Era um pátio amplo pavimentado depedras pretas e brancas, com umafonte em funcionamento no centro ecircundado de pórticos ornados eem colunas, sombreados por árvorese vinhas suspensas. Um lugar dedescanso, dedicado à beleza,

serenidade, tranquilidade emeditação. O fluir e borbulhar dafonte era o único som, apesar detodas as pessoas ali. Concubinas emseda branca esvoaçantes estavamsentadas em bancos de pedra,meditando ou bordando, ouatravessando o pátio, com os pésdescalços percorrendo em silêncio apedra, impossivelmente altivas eaprumadas, amavelmentecumprimentando umas às outrascom gestos de cabeça ao passarem;entre elas movimentavam-secriadas, vestidas de modo

semelhante, mas fáceis de seremidentificadas porque eram maisnovas ou mais velhas, ou não tãobonitas quanto as mulheres a quemserviam.

Havia um número igual dehomens, a maior parte em volta doslimites do pátio, observando eesperando serem chamados paraservir: os eunucos. Fiquei aliviadoem notar que nenhum olhou emnossa direção; as regras sobrecontato visual eram tão complexasquanto os mosaicos. E isso serviaperfeitamente para nós, dois

eunucos de aparência desconhecidatentando achar o caminho em umlugar estranho.

Ficamos perto da porta para osbanhos, que ficava parcialmenteobscurecida pelas colunas e vinhasdo pórtico e, inconscientemente,adotei a mesma pose dos outrosguardas — costas retas, as mãosunidas diante do corpo — enquantomeu olhar varria o pátio à procurade Jenny.

E lá estava ela. Não a reconhecide imediato; meus olhos quasepassaram por ela. Mas, ao olhar

novamente, para onde umaconcubina descansava sentada comas costas para a fonte, tendo os pésmassageados pela mulher que aservia, me dei conta de que amulher que a servia era minha irmã.

O tempo cobrou seu preço naaparência dela e, embora aindahouvesse um vislumbre da beldadeque tinha sido, o cabelo negroestava salpicado de grisalho, o rostoera cansado e enrugado e a pelehavia perdido um pouco a firmeza,revelando escuros vazios debaixodos olhos; olhos cansados. Que

ironia eu ter reconhecido aexpressão no rosto da garota dequem ela cuidava: o modopresunçoso e desdenhoso com queolhava para baixo do nariz. Crescivendo essa expressão no rosto deminha irmã. Não que eu tivesseprazer na ironia, mas não podiaignorá-la.

Enquanto eu a encarava, Jennyolhou através do pátio para mim.Por um segundo, suas sobrancelhasse enrugaram, em confusão, e fiqueiimaginando se, após todos aquelesanos, ela havia me reconhecido.

Mas não. Eu estava muito longe.Estava disfarçado de eunuco. Ocântaro — era para lhe ser entregue.E talvez ela estivesse imaginandopor que dois eunucos tinhamentrado nos banhos e dois outrostinham saído de lá.

Ainda mantendo uma expressãoconfusa, ela se levantou, se ajoelhoudiante da concubina a quem servia ecomeçou a se afastar, serpeando porentre concubinas vestidas de seda,ao atravessar o pátio em nossadireção. Deslizei para trás deHolden, no instante em que ela

baixou a cabeça para evitar asvinhas que pendiam do pórtico eparou cerca de trinta centímetros denós.

Ela nada disse, é claro — eraproibido falar —, mas, por outrolado, não precisava. Espreitando porcima do ombro direito de Holden,arrisquei uma olhada em seu rosto evi quando os olhos dela foram deHolden para a porta da câmara dosbanhos, e o significado era claro dese entender: cadê minha água? Emseu rosto, enquanto ela exerciaaquela pequena autoridade que

possuía, pude ver uma lembrança dagarota que Jenny tinha sido, umfantasma da arrogância que um diame fora tão familiar.

Enquanto isso, reagindo ao olharfurioso que recebia de Jenny,Holden baixou a cabeça e estavapara se virar em direção à câmarade banhos. Rezei para que elehouvesse tido o mesmo lampejo deinspiração que eu e tivessepercebido que, se conseguisse, dealgum modo, atrair Jenny paradentro, então poderíamos efetuar anossa fuga quase sem causar

agitação. De fato, ele estavaestendendo as mãos para indicar quehouve um problema, e entãogesticulou para a porta da câmarados banhos, como se dissesse queprecisava de ajuda. Mas Jenny,longe de estar disposta a fazer isso,por sua vez notara algo na roupa deHolden e, em vez de acompanhá-loà casa de banhos, deteve-o com odedo em riste, o qual primeiroapontou para ele e, em seguida,baixou para indicar algo em seupeito. Uma mancha de sangue.

Os olhos dela voltaram a se

regalar, e novamente eu observei,notando dessa vez sua vista ir damancha de sangue na roupa para orosto de Holden, e o que ela viu alifoi o rosto de um impostor.

Sua boca se abriu. Ela deu umpasso para trás, depois outro, até sechocar com uma das colunas, e oimpacto subitamente sacudiu-a forade si, chocada e aturdida, e, quandoabriu a boca, prestes a infringir aregra sagrada e pedir ajuda, saí detrás de Holden, e cochichei: —Jenny, sou eu. Haytham.

Ao dizer isso, olhei nervosamente

para o pátio, onde todoscontinuavam como antes, abstraídosdo que estava acontecendo debaixodo pórtico, então olhei de volta paraver Jenny me encarando, os olhosainda mais arregalados, já ficandotomados por lágrimas, enquanto osanos ficavam para trás e ela mereconhecia.

— Haytham — sussurrou —,você veio por minha causa.

— Sim, Jenny, sim — respondibaixinho, sentindo uma estranhamistura de emoções, uma delas pelomenos era culpa.

— Eu sabia que viria — disse ela.— Eu sabia que viria.

Sua voz estava aumentando, ecomecei a me preocupar, lançandooutro olhar em pânico para o pátio.Então ela se adiantou, estendeu asmãos, tomou as minhas nas delas epassou roçando por Holden paraolhar, implorando, em meus olhos.

— Diga para mim que ele estámorto. Diga que o matou.

Dividido entre querer que elamantivesse silêncio e querer saber oque ela estava dizendo, sussurrei: —Quem? Dizer que quem está morto?

— Birch — cuspiu e, dessa vez,sua voz saiu alta demais. Para alémde seu ombro, avistei umaconcubina. Deslizando na nossadireção embaixo do pórtico, talvez acaminho dos banhos, ela pareciaperdida em pensamentos, mas, aosom de uma voz, ela ergueu a vista,e a expressão de calma serenidadefoi substituída por outra, de pânico— e ela voltou-se para o pátio egritou a única palavra quetemíamos.

— Guardas!

v

O primeiro guarda a chegarcorrendo não percebeu que euestava armado, e soltei a lâmina e aenfiei no seu abdômen, antes quepercebesse o que estavaacontecendo. Seus olhos seesbugalharam e ele grunhiupartículas de sangue no meu rosto.Com um grito de esforço, prendimeu braço em volta dele e puxei-ocomigo, forçando seu corpo aindaagonizante contra um segundohomem que veio correndo em nossa

direção, e mandei os dois aostrambolhões de volta para osladrilhos preto e branco do pátio.Chegaram mais, e a luta começou.Com o canto do olho, vi o clarão deuma espada e virei-me no momentoexato para evitar que ela fosseenfiada no meu pescoço. Girando,segurei o braço armado do agressor,quebrei-o e enfiei minha lâmina debaixo para cima em seu crânio.Agachei-me, girei o corpo e dei umchute para afastar as pernas de umquarto homem, então me levantei,pisei no seu rosto e ouvi o crânio ser

triturado.Não muito distante, Holden havia

derrubado três eunucos, mas agoraos guardas já sabiam do que éramoscapazes e se aproximavam commais cautela, juntando-se paracombater, enquanto nosprotegíamos atrás das colunas etrocávamos olhares preocupados,cada qual imaginando seconseguiríamos voltar para oalçapão antes que fôssemosaniquilados.

Sujeitos espertos. Dois delesavançaram juntos. Fiquei ao lado de

Holden e os combatemos, enquantooutro par de guardas vinha peladireita. Por um momento, foi lá ecá, enquanto ficávamos costas comcostas e combatíamos os guardas nopórtico até eles recuarem, prontospara lançar o ataque seguinte,chegando cada vez mais perto, seaglomerando.

Atrás de nós, Jenny estava naporta da câmara do banho.

— Haytham! — chamou, umtoque de pânico na voz. —Precisamos ir.

O que fariam com ela, se fosse

capturada agora? Fiqueiimaginando, qual seria o castigodela? Tive medo só em pensar.

— Vão vocês dois — sugeriuHolden por cima de seu ombro.

— De jeito nenhum — devolvi.Novamente veio um ataque e de

novo lutamos. Um eunuco caiumoribundo com um gemido. Mesmona morte, mesmo com o aço de umaespada em suas entranhas, esseshomens não gritavam. Por cima dosombros dos que estavam à nossafrente, avistei mais homensprecipitando-se para o pátio. Eram

como baratas. Para cada um quematávamos, havia dois para tomarseu lugar.

— Vá, senhor — insistiu Holden.— Eu os mantenho aqui atrás,depois sigo vocês.

— Não seja idiota, Holden —bradei, incapaz de evitar o tom dezombaria na voz. — Não tem comomantê-los aqui. Vão acabar comvocê.

— Já estive em encrencas pioresdo que esta, senhor — grunhiuHolden, o braço da espada agitadoenquanto ele trocava golpes. Mas

consegui notar a falsa bravata emsua voz.

— Então não vai se importar seeu ficar — falei, ao mesmo tempoque aparava um dos golpes daespada do eunuco, e respondia, nãocom minha lâmina, mas com umsoco no rosto que o mandou girandopara trás.

— Vá! — berrou ele.— Morreremos. Morreremos nós

dois — retruquei.Holden, porém, tinha decidido

que não era mais hora de cortesias.— Escute, companheiro, ou vocês

dois saem daqui ou nenhum de nósvai sair. O que vai ser?

Ao mesmo tempo, Jenny puxavaminha mão, a porta para a câmarados banhos estava aberta e maishomens chegavam pela esquerda.Ainda assim, hesitei. Até que,finalmente, Holden se virou,gritando: — Com sua licença,senhor — e, antes que eu pudessereagir, empurrou-me porta adentro efechou-a com um estrondo.

Seguiu-se um momento deabalado silêncio na câmara dosbanhos, enquanto eu me estatelava

no chão e tentava absorver o quetinha acontecido. Do outro lado daporta, ouvi os sons da batalha —uma batalha também estranha,silenciosa, muda — e uma batida naporta. A seguir, um grito — umgrito que pertencia a Holden, e melevantei, prestes a dar um puxão naporta para abri-la, mas fui contido,quando Jenny agarrou meu braço.

— Não pode ajudá-lo agora,Haytham — disse ela suavemente,no momento em que veio outrogrito do pátio, era Holden gritando:— Seus desgraçados, seus malditos

desgraçados sem pau!Dei uma última olhada para a

porta, então tranquei-a, enquantoJenny me arrastava para o alçapãono chão.

— Isto é o melhor queconseguem fazer, seus babacas? —ouvi acima de nós, ao descermos osdegraus, a voz de Holden agoraficando cada vez mais indistinta. —Venham, seus capados de merda,vejamos como se saem contra umdos homens de Sua Majestade...

A última coisa que ouvimos,enquanto corríamos de volta pela

passarela, foi o som de um grito.

21 de setembro de 1757

i

Eu esperara nunca mais ter prazerem matar, mas, para o padre coptaque mantinha guarda junto aomosteiro de Abou Gerbe no monteGhebel Eter, abri uma exceção.Devo admitir que gostei de matá-lo.

Ele se curvou caindo para a terrada base de uma cerca quecircundava uma pequena área, opeito arfando e seus últimossuspiros saindo intermitentes

enquanto morria. Acima, umhomem crocitou, e olhei para ondeos arcos e os pináculos do mosteirode arenito apareciam no horizonte.Vi o cálido brilho de vida na janela.

O guarda moribundo gorgolejou ameus pés e, por um segundo,ocorreu-me liquidá-lo rapidamente— mas, pensando melhor, por quelhe mostrar piedade? Por maislentamente que ele morresse, pormais dor que sentisse enquanto issoacontecia, aquilo não era nada —nada — em comparação à agoniaimposta àquelas pobres almas que

haviam sofrido no interior docercado.

E uma em particular, que agoraestava sofrendo lá.

Eu descobrira, no mercado deDamasco, que Holden não tinha sidomorto, como eu pensara, mascapturado e transportado para oEgito e para o mosteiro copta emAbu Gerbe, onde transformavamhomens em eunucos. Portanto foipara onde eu vim, rezando para quenão fosse tarde demais, mas, nofundo do coração, sabendo queseria. E foi.

Examinando a cerca, percebi queera enterrada bem fundo no chãopara evitar que predadores noturnoscavassem por baixo dela. Nointerior do cercado, ficava o lugaronde enterravam os eunucos até opescoço na areia e os mantinham alipor dez dias. Não queriam quehienas roessem os rostos doshomens enterrados durante esseperíodo. Absolutamente não. Não,se aqueles homens morriam, era porcausa da lenta exposição ao sol oudas feridas que lhes eram infligidasdurante o processo de castração.

Com o guarda morto atrás demim, entrei sorrateiramente nocercado. Estava escuro, apenas a luzda lua me guiava, mas podia ver quea areia em volta estava manchada desangue. Quantos homens, fiqueiimaginando, tinham sofrido aqui,mutilados e depois enterrados até opescoço? De não muito longe veioum gemido baixo, forcei a vista,avistei uma forma irregular no chãono centro do cercado, e soube deimediato que pertencia ao soldadoJames Holden.

— Holden! — sussurrei, e um

segundo depois estava agachadoonde sua cabeça emergia da areia,arfando diante do que vi.

A noite estava fria, mas os diaseram quentes, tortuosamentequentes, e o sol o havia queimadotão terrivelmente que era como se aprópria carne de seu rosto tivessesido crestada. Os lábios e aspálpebras eram crostas esangravam, a pele estava vermelha edescascando. Eu tinha à mão umcantil de couro com água,desarrolhei-o e o coloquei sobreseus lábios.

— Holden? — repeti.Ele se mexeu. Seus olhos

pestanejaram e se abriram e sefocaram em mim, turvos e cheios dedor, mas com reconhecimento, emuito lentamente o espectro de umsorriso surgiu em seus lábiosrachados e petrificados.

Então, do mesmo modo rápido, osorriso sumiu e ele passou a secontorcer. Se tentava se livrar daareia ou se foi tomado por umaconvulsão, eu não tinha certeza, masa cabeça batia de um lado para ooutro, a boca ficou escancarada, e

me inclinei à frente, segurei seurosto com as mãos para evitar queele se machucasse.

— Holden — falei, mantendo avoz baixa. — Holden, pare. Porfavor...

— Tire-me daqui, senhor — disseroucamente, e seus olhos brilharamúmidos ao luar. — Tire-me.

— Holden...— Tire-me daqui — implorou. —

Tire-me daqui, senhor, por favor,senhor, agora, senhor...

Outra vez sua cabeça começou asacudir dolorosamente da esquerda

para a direita. Estendi de novo asmãos para segurá-lo antes queficasse histérico. Quanto tempo euteria até enviarem outro guarda?Coloquei o cantil em seus lábios edeixei que bebesse mais água,depois tirei das costas uma pá quehavia trazido e comecei a retirarareia ensopada de sangue da área aoredor de sua cabeça, conversandocom ele, ao mesmo tempo que iaexpondo seus ombros e o peito nu.

— Sinto muito, Holden, sintomuito. Eu nunca deveria tê-lodeixado.

— Eu mandei que fizesse isso —conseguiu dizer. — Eu lhe dei umempurrão, lembra-se...?

Enquanto eu cavava, a terraficava cada vez mais preta desangue.

— Oh, meu Deus, o que fizeramcom você?

Mas eu já sabia e, de qualquermodo, tive minha prova, momentosdepois, quando cheguei à suacintura para encontrá-la envolta embandagens — também espessas,pretas e com sangue coagulado.

— Cuidado aí embaixo, senhor,

por favor — pediu ele, muito, muitobaixinho, e percebi que ele seencolhia, contendo a dor. A qual, nofinal, foi demais para ele, queperdeu a consciência, uma bênçãoque me permitiu desenterrá-lo elevá-lo daquele lugar maldito paranossos dois cavalos, que estavamamarrados em árvores ao pé domorro.

ii

Deixei Holden em uma posição

confortável, então me levantei eolhei morro acima na direção domosteiro. Chequei minha lâmina,prendi a espada na cintura, coloqueimunição nas duas pistolas e asenfiei no cinturão, depois fiz omesmo com dois mosquetes. Aseguir, acendi uma vela e umatocha, peguei os mosquetes, subinovamente o morro, onde acendiuma segunda e uma terceira tochas.Afugentei os cavalos e então jogueia primeira tocha no estábulo, o fenopegando fogo com um agradávelvuuump; a segunda tocha, joguei-a

no vestíbulo da capela, e quandoesta e o estábulo estavam seincendiando lindamente, corri parao dormitório, acendendo mais duastochas no caminho, quebrei asjanelas dos fundos e joguei astochas lá dentro. Então voltei para aporta da frente, onde havia apoiadoos mosquetes em uma árvore. Eesperei.

Não por muito tempo. Emmomentos, apareceu o primeiropadre. Abati-o, joguei o primeiromosquete para o lado, apanhei osegundo e usei-o no segundo padre.

Outros mais começaram a aparecer,e descarreguei as pistolas e depoiscorri para o vão da porta e iniciei oataque com a lâmina e a espada.Corpos caíam à minha volta — dez,onze ou mais — enquanto o prédioqueimava, até eu ficar ensebadocom sangue de padres, minhas mãoscobertas com ele, rastros deleescorrendo pelo meu rosto. Deixeique os feridos gritassem em agonia,enquanto os padres restantes nointerior se escondiam — sem quererse queimar, aterrorizados demaispara correr para fora e enfrentar a

morte. Alguns arriscaram, é claro, evieram atacando, brandindoespadas, só para serem abatidos.Outros, escutei-os queimar. Talvezalgum tenha escapado, mas eu nãoestava com disposição para serminucioso. Providenciei para que amaioria morresse; ouvi os gritos esenti o cheiro de carne queimadadaqueles que se esconderam nointerior, então passei por cima doscorpos dos mortos e moribundos efui embora, enquanto o mosteiro seincendiava atrás de mim.

25 de setembro de 1757

Estávamos em uma cabana, a umamesa, com as sobras de umarefeição e uma única vela entre nós.Não muito distante, Holden dormia,febrilmente, e, de vez em quando,eu me levantava para trocar o trapode sua testa por um mais fresco.Precisávamos deixar a febre seguirseu curso e somente então, quandoestivesse melhor, continuaríamosnossa viagem.

— Nosso pai era um Assassino —disse Jenny, quando me sentei. Era aprimeira vez, desde o resgate, quefalávamos sobre esses assuntos.Estivemos preocupados em cuidarde Holden, fugir do Egito, eencontrar abrigo a cada noite.

— Eu sei — falei.— Você sabe?— Sim. Descobri. Deduzi que era

isso que você queria dizer durantetodos aqueles anos. Lembra-se?Você me chamava de “FedelhoEspertinho”...

Ela apertou os lábios e mexeu-se

desconfortavelmente.— ...e o que disse sobre eu ser o

herdeiro varão. Como, mais cedo oumais tarde, eu descobriria o queestava reservado para mim?

— Eu me lembro...— Pois bem, aconteceu que, mais

tarde do que cedo, descobri o queestava reservado para mim.

— Mas, se você sabia, então porque Birch está vivo?

— Por que ele estaria morto?— Ele é um Templário.— Assim como eu.Ela recuou, a fúria anuviando seu

rosto.— Você... você é um Templário?

Mas isso vai contra tudo em quenosso pai...

— Sim — rebati, no mesmo tom.— Sim, sou um Templário, e não,isso não vai contra tudo em quenosso pai acreditava. Desde quedescobri sua filiação, passei a vermuitas semelhanças entre as duasfacções. Comecei a imaginar se,tendo em vista minhas raízes eminha atual posição na Ordem, nãoestou na posição perfeita para, dealgum modo, unir Assassinos e

Templários...Parei. Percebi que ela estava

ligeiramente bêbada; de repente,suas feições se contorceram e elafez um ruído de repugnância.

— E ele? Meu ex-noivo, dono domeu coração, o vistoso e encantadorReginald Birch? Que fim levou ele,diga-me, por favor!

— Reginald é meu mentor, meuGrão-Mestre. Foi ele quem cuidoude mim nos anos após o ataque.

Seu rosto se contorceu no ar deescárnio mais horrível, mais amargoque eu já tinha visto.

— Ora, não é que você foi osortudo? Enquanto você estavasendo cuidado, eu também estava...por traficantes turcos de escravos.

Eu me sentia como se ela pudessever através de mim, como sepudesse ver exatamente quaistinham sido minhas prioridades emtodos aqueles anos, e baixei a vistae então olhei para o lado da cabanaonde Holden se encontrava. Umaposento repleto de meus fracassos.

— Lamento — falei. Como separa os dois. — Lamento mesmo.

— Não lamente. Eu fui uma das

sortudas. Eles me mantiveram purapara vender à Corte otomana e,depois disso, fui bem-cuidada nopalácio de Topkapi. — Ela desviouo olhar. — Poderia ter sido pior.Afinal, eu estava acostumadaàquilo.

— A quê?— Presumo que você idolatrava

nosso pai, não é mesmo, Haytham?Possivelmente ainda idolatra. Seusol e sua lua? “Meu pai, meu rei”?Pois eu não: eu o odiava. Todaaquela sua conversa de liberdade...liberdade espiritual e intelectual...

não se estendia a mim, sua própriafilha. Não havia armas detreinamento para mim, lembra-se?Não. Nada de “Pense diferente” paraJenny. Era apenas “Seja uma boagarota e se case com ReginaldBirch”. Que belo casamento seria.Arrisco dizer que fui mais bem-tratada pelo sultão do que teria sidopor ele. Certa vez, eu lhe disse quenossas vidas já tinham sidoplanejadas, lembra-se? Bem, em umsentido eu estava errada, é claro,porque não creio que nenhum de nóspoderia ter previsto como as coisas

sairiam, mas e em um outrosentido? Em um outro, não poderiaestar mais certa, Haytham, porquevocê nasceu para matar, e matar é oque tem feito, e eu nasci para serviraos homens, e servir aos homens é oque tenho feito. Mas meus dias deservir aos homens acabaram. Equanto a você?

Ao terminar, ela levou aos lábiosa caneca de vinho e gorgolejou.Fiquei imaginando que lembrançasterríveis a bebida a ajudava aesquecer.

— Foram os seus amigos

Templários que atacaram a nossacasa — disse ela, quando a canecaficou vazia. — Tenho certeza disso.

— Mas você não viu nenhumanel.

— Não, mas e daí? O que issosignifica? Eles os tiraram, é claro.

— Não. Não eram Templários,Jenny. Desde então tenho deparadocom eles. Eram homens de aluguel.Mercenários.

Sim, mercenários, pensei,mercenários que trabalhavam paraEdward Braddock, que era próximode Reginald...

Inclinei-me adiante.— Eu soube que nosso pai tinha

alguma coisa... alguma coisa queeles queriam. Você sabe o que era?

— Ah, sim. Eles levaram nacarruagem, naquela noite.

— E...?— Era um livro.Novamente tive uma sensação de

frigidez, de dormência.— Que tipo de livro?— Marrom, encadernação de

couro, ostentando o brasão dosAssassinos.

Assenti.

— Você acha que o reconheceria,se o visse novamente?

Ela deu de ombros.— Provavelmente — arriscou.Olhei para onde estava Holden, o

suor reluzindo em seu tronco.— Quando a febre ceder, nós

iremos.— Para onde?— Para a França.

8 de outubro de 1757

i

Embora fizesse frio, o sol brilhavanaquela manhã, um dia que seriamais bem descrito como “matizadopelo sol”, com uma luz brilhantedespejando-se através das copas dasárvores para pintar o chão dafloresta com retalhos dourados.

Cavalgávamos em fila de três, euna liderança. Atrás de mim estavaJenny, que havia muito tempo sedesfizera das roupas de criada e

vestia um manto que pendia pelosflancos de seu cavalo. Um grandecapuz escuro estava puxado sobresua cabeça, e o rosto pareciaassomar de dentro dele como seestivesse olhando do interior deuma caverna: sério, intenso eemoldurado por um cabelosalpicado de grisalho que caía pelosombros.

Atrás dela vinha Holden, que,assim como eu, usava umasobrecasaca toda fechada, lenço depescoço e chapéu tricorne, porém,na sela, pendia um pouco para a

frente, o rosto pálido, doentio e...assombrado.

Ele havia falado muito pouco,desde que se recuperara da febre.Houve momentos de minúsculosvislumbres do antigo Holden — umsorriso passageiro, um vestígio desua sabedoria londrina —, mas erampassageiros, e ele logo voltava a sefechar. Durante nossa travessia doMediterrâneo, ele se mantiveraretraído, sentado sozinho,matutando. Na França, tínhamosvestido disfarces, comprado cavalose começado nossa viagem para o

castelo, e ele cavalgara em silêncio.Parecia pálido e, tendo-o vistoandar, achei que ainda sentia dores.Mesmo na sela, eu o via se encolherde vez em quando, principalmenteem terreno acidentado. Eu malaguentava pensar na dor que elesuportava — física e mental.

A uma hora de distância docastelo, paramos e prendi minhaespada na cintura, coloquei muniçãona pistola e a enfiei no cinturão.Holden fez o mesmo, e lheperguntei: — Tem certeza de queestá bem para lutar, Holden?

Ele me lançou um olharrecriminador, e notei as bolsas e osanéis escuros embaixo de seusolhos.

— Desculpe-me, senhor, masforam meu pau e meus colhões quetiraram, e não a minha energia.

— Desculpe, Holden, não quissugerir nada. Sei a resposta e issopara mim é o bastante.

— Acredita que haverá luta,senhor? — perguntou e, novamente,eu o vi se encolher ao puxar aespada para mais perto da mão.

— Não sei, Holden. Realmente

não sei.Ao nos aproximarmos do castelo,

vi o primeiro dos patrulheiros. Oguarda parou diante do meu cavaloe olhou-me por debaixo da aba largado seu chapéu: o mesmo homem,percebi, que estivera aqui na minhaúltima visita, quase quatro anosatrás.

— É você, Sr. Kenway? —perguntou.

— Sim, sou, e tenho doisacompanhantes — respondi.

Observei-o cuidadosamente,enquanto seu olhar ia de mim para

Jenny, depois para Holden e,embora tentasse ocultar, seus olhosdisseram-me tudo o que euprecisava saber.

Ele fez menção de levar os dedosà boca, mas eu já havia saltado docavalo, agarrado sua cabeça eenfiado minha lâmina através doolho e para o interior do cérebro erasgado sua garganta, antes queconseguisse emitir outro som.

ii

Ajoelhei-me apoiando uma dasmãos no peito do sentinela,enquanto o sangue jorrava rápida edensamente do talho aberto em suagarganta, como se fosse umasegunda boca sorridente, e olheipara trás, por cima do ombro, paraonde Jenny me fitava com umfranzido da testa e Holden estavaempertigado em sua sela, a espadadesembainhada.

— Você se importaria de nosdizer o que foi isso? — pediu Jenny.

— Ele estava para assobiar —expliquei, analisando a floresta à

nossa volta. — Da última vez, elenão assobiou.

— E daí? Talvez eles tenhammudado os procedimentos para oingresso.

Balancei a cabeça.— Não. Eles sabem que estamos

vindo. Estão nos esperando. Oassobio teria alertado os outros. Nãoteríamos conseguido atravessar ogramado antes de caírem sobre nós.

— Como sabe? — perguntou ela.— Eu não sei — retruquei.

Embaixo da minha mão, o peito doguarda subiu e desceu uma última

vez. Olhei abaixo para ver seusolhos revirarem e o corpo dar oúltimo espasmo antes de morrer. —Eu desconfio — continuei,limpando as mãos sujas de sangueno chão e me levantando. — Passeianos desconfiando, ignorando oóbvio. O livro que você viu nacarruagem naquela noite... ele estácom Reginald. Se não estou muitoenganado, ele o pegou naquela casa.Foi ele quem organizou o ataque ànossa casa. Ele é o responsável pelamorte do nosso pai.

— Ah, agora você sabe disso, não

é? — escarneceu.— Antes, eu me recusava a

acreditar. Mas agora, sim, eu sei. Ascoisas começaram a fazer sentidopara mim. Por exemplo, certa tarde,quando eu era criança, encontreiReginald perto da sala da prataria.Aposto como, na ocasião, eleprocurava pelo livro. O motivo porter se tornado íntimo da família,Jenny... o motivo por ter pedido suamão em casamento... era porque elequeria o livro.

— Não precisa me dizer isso —rebateu ela. — Naquela noite, tentei

alertá-lo de que ele era o traidor.— Eu sei — admiti, então pensei

por um momento. — Nosso paisabia que ele era Templário?

— Não a princípio, mas eudescobri e contei para ele.

— Foi quando discutiram —falei, agora entendendo.

— Eles discutiram?— Eu os ouvi, um dia. E, depois

disso, nosso pai contratou osguardas... Assassinos, sem dúvida.Reginald me disse que estavaalertando nosso pai...

— Mais mentiras, Haytham...

Ergui a vista para ela, tremendoligeiramente. Sim. Mais mentiras.Tudo que eu sabia... minha infânciainteira, tudo foi construído baseadonelas.

— Ele estava usando Digweed —contei. — Foi Digweed quem dissea ele onde o livro estava guardado...

Encolhi-me diante da súbitarecordação.

— O que foi? — perguntou ela.— Naquele dia, na sala da

prataria, Reginald me perguntouonde ficava guardada a minhaespada. Eu lhe disse que era em um

lugar secreto.— Na sala de bilhar?Assenti.— Eles foram diretamente para

lá, não foram? — lembrou ela.Assenti novamente.— Eles sabiam que não estava na

sala da prataria, porque Digweedlhes dissera que tinha sido mudadode lugar, e foi por isso que seguiramdireto para a sala de bilhar.

— Mas eles não eramTemplários? — frisou ela.

— Como assim?— Na Síria, você me disse que os

homens que nos atacaram não eramTemplários — observou ela com umtom zombeteiro. — Não podiam serseus amados Templários.

Balancei a cabeça.— Não, não eram. Eu lhe disse,

eu os enfrentei desde então, e eramhomens de Braddock. Reginald deveter planejado me instruir naOrdem... — pensei novamente, ealgo me ocorreu — ...por causa,provavelmente, da herança dafamília. Usar Templários teria sidoarriscado demais. Eu poderia terdescoberto. Poderia ter vindo aqui

mais cedo. Eu quase pegueiDigweed. Quase os peguei naFloresta Negra, mas então... —lembrei-me da cabana na FlorestaNegra. — Reginald matou Digweed.Era por isso que sempre estavamum passo à nossa frente... e aindaestão. — Apontei na direção docastelo.

— E o que vamos fazer, senhor?— perguntou Holden.

— Vamos fazer o que elesfizeram na noite em que nosatacaram na Queen Anne’s Square.Vamos esperar até o cair da noite.

Então entraremos lá e mataremosgente.

9 de outubro de 1757

i

A data acima diz 9 de outubro, aqual anotei ali, de forma um tantootimista, ao final da anotaçãoanterior, com a intenção de que essepudesse ser um relatocontemporâneo de nossa tentativade invasão do castelo. Na verdade,estou escrevendo isto vários mesesdepois, e, para detalhar o queaconteceu naquela noite, precisoprojetar o passado.

ii

Quantos haveria lá? Seis, na últimaocasião em que fui. Reginald teriareforçado a defesa, nesse meio-tempo, sabendo que eu poderia vir?Pensei que sim. Talvez dobrado.

Doze, então, mais John Harrison,se ainda residisse lá. E, é claro,Reginald. Ele estava com 52 anos, esuas habilidades teriam diminuído,mas, mesmo assim, eu sabia quenunca devia subestimá-lo.

Portanto, esperamos, e desejamosque, finalmente, fizessem o que de

fato fizeram, que foi enviar umgrupo de busca pelo patrulheirodesaparecido, três homens, quevieram portando tochas e as espadasdesembainhadas, marchando atravésdo gramado às escuras, as luzes dastochas dançando nos rostosausteros.

Observamos enquanto sematerializavam da escuridão esumiam no meio das árvores. Noportão, passaram a chamar o nomedo guarda, depois se apressaram aolongo do perímetro externo emdireção aonde supostamente estaria

o patrulheiro.Seu corpo estava onde eu o

deixara, e, nas árvores próximas,Holden, Jenny e eu tomamosposição. Jenny ficou recuada,armada com uma faca, mas fora daação; Holden e eu estávamos bemmais adiante, onde subimos emárvores — Holden com algumadificuldade — para observar eesperar, tensos, quando o grupo debusca descobriu o corpo.

— Ele está morto, senhor.O líder do grupo esticou o

pescoço para o corpo.

— Algumas horas atrás.Dei um piado de pássaro para

Jenny, que fez o que havíamoscombinado. Seu grito por socorrofoi emitido das profundezas dafloresta e rasgou a noite.

Com um gesto nervoso da cabeça,o líder do grupo conduziu oshomens para o meio das árvores, evieram ruidosamente na nossadireção, onde estávamosposicionados, esperando por eles.Olhei pelo meio das árvores e vi aforma de Holden alguns metrosdistante e fiquei imaginando se ele

estava suficientemente bem, e pedia Deus que estivesse, porque, nomomento seguinte, a patrulha corriapor entre as árvores abaixo de nós, esaltei do galho.

Peguei primeiro o líder, minhalâmina penetrando em seu olho e nocérebro, matando-oinstantaneamente. De minhaposição agachada, cortei acima epara trás, abrindo a barriga dosegundo homem, que caiu dejoelhos com as entranhas brilhandoatravés de um enorme buraco emsua túnica, e então caiu de cara no

macio chão da floresta. Olhando emvolta, vi o terceiro homem cairdiante da ponta da espada deHolden, que olhou em volta, otriunfo escrito por todo o rosto,mesmo no escuro.

— Belo grito — comentei comJenny, momentos depois.

— Foi um prazer ajudar. — Elafranziu a testa. — Mas, escute,Haytham, não ficarei nas sombras,quando chegarmos lá. — Ergueu afaca. — Quero lidar pessoalmentecom Birch. Ele roubou minha vida.Pela misericórdia que demonstrou

por não mandar me matar, euretribuirei deixando-o com seu paue...

Ela parou e olhou para Holden,que estava ajoelhado ali perto,olhando para longe.

— Eu vou... — começou ela.— Isso mesmo, senhorita —

disse Holden. Ergueu a cabeça e,com uma expressão que nunca viraantes em seu rosto, sugeriu: — Mascuide para tirar o pau e os colhõesantes de matá-lo. Faça aqueledesgraçado sofrer.

iii

Contornamos o perímetro de voltaao portão, onde um solitáriosentinela parecia agitado, talvezimaginando aonde teria ido o grupode busca; talvez sentindo que haviaalgo errado, seu instinto de soldadoem ação.

Mas, fosse qual fosse seuinstinto, não foi o suficiente paramantê-lo vivo, e, momentos depois,estávamos nos agachando parapassar pela portinhola e nosmantendo abaixados para seguir

através do gramado. Paramos e nosajoelhamos junto à fonte, prendendoa respiração por causa do somcausado por três homens que saíampela porta da frente do castelo,botas martelando o pavimento,gritando nomes. Um grupo de buscaenviado para descobrir o primeirogrupo de busca. O castelo agoraestava em alerta máximo. Queinvasão silenciosa que nada. Pelomenos tínhamos reduzido o númerodeles em...

Oito. Ao meu sinal, Holden e euirrompemos de trás da cobertura da

fonte e caímos sobre eles, cortandotodos os três antes mesmo quetivessem a chance de sacar a espada.Tínhamos sido vistos. Do castelo,veio um grito e, no instanteseguinte, o cortante estampido dodisparo de um mosquete, e balasestalaram na fonte atrás de nós.Corremos dali. Na direção da portada frente, onde outro guarda nos viuchegando e, enquanto eu subiaestrondeando os poucos degraus emsua direção, ele tentou se virar efugir.

Era muito lento. Enfiei a espada

através da porta que se fechava epela lateral de seu rosto, usandomeu impulso para a frente paraforçar a abertura da porta e irromperpor entre ela, rolando pelo hall deentrada, enquanto ele caía paralonge com sangue fluindo do queixodestroçado. Do patamar acima veioo estalido do disparo de ummosquete, mas o atirador haviamirado alto demais e a bala estalouinofensivamente na madeira. Emum instante, eu estava de pé einvestindo na direção da escada,subindo para o patamar, onde o

atirador abandonou seu mosquetecom um berro de frustração, puxoua espada da bainha e veio meencontrar.

Havia terror em seus olhos; meusangue fervia. Eu me sentia maisanimal do que homem, agindo porpuro instinto, como se tivesselevitado do meu próprio corpo eobservasse a mim mesmo lutar. Emmomentos, eu tinha cortado oatirador e jogado seu corpo porcima do corrimão para o hall deentrada abaixo, aonde chegara outroguarda, bem a tempo de encontrar

Holden, que irrompera pela porta dafrente com Jenny atrás dele. Salteido patamar com um grito,aterrissando suavemente sobre ocorpo do homem que havia acabadode jogar lá de cima, forçando orecém-chegado a girar para protegersua retaguarda. Foi toda aoportunidade que Holden precisavapara atropelá-lo.

Com um sinal da cabeça, virei ecorri de volta escada acima, a tempode ver uma figura surgir nopatamar, e me abaixei, ao ouvir oestalido de um disparo enquanto

uma bala se chocava contra a paredede pedra atrás de mim. Era JohnHarrison, e eu estava em cima deleantes que tivesse a chance de sacar aadaga, então agarrei uma parte desua camisola e o forcei a seajoelhar, recuando minha lâminapara desferir um ataque.

— Você sabia? — rosnei. — Queajudou a matar meu pai e acorromper minha vida?

Ele baixou a cabeça em admissãoe enfiei a lâmina em sua nuca,secionando a vértebra, matando-oinstantaneamente.

Desembainhei a espada. Dianteda porta de Reginald, parei, olhei deum lado a outro do patamar, entãorecuei e estava para arrombá-la comum chute quando percebi que estavaentreaberta. Agachando-me,empurrei-a e ela girou para dentrocom um rangido.

Reginald estava parado, vestido,no centro de seu quarto. Ele eraexatamente assim, sempre umadepto fútil da etiqueta — ele sevestira para encontrar seusassassinos. De repente, surgiu umasombra na parede, projetada por

uma figura escondida atrás da portae, em vez de esperar que aarmadilha funcionasse, enfiei aespada através da madeira, ouvi umgrito de dor do outro lado, entãoentrei e deixei que a porta sefechasse com o corpo do últimoguarda preso a ela, olhando para aespada atravessada em seu peitocom descrentes olhos arregalados,ao mesmo tempo que seus pésraspavam o chão de madeira.

— Haytham — disse Reginaldfriamente.

iv

— Foi o último dos guardas? —perguntei, os ombros agitadosenquanto recuperava o fôlego. Atrásde mim, os pés do moribundo aindaraspavam a madeira, e podia ouvirJenny e Holden do outro lado daporta, lutando para abri-la comaquele corpo se debatendo nocaminho. Finalmente, com umaderradeira tosse, ele morreu, ocorpo soltou-se da lâmina, e Jenny eHolden entraram subitamente.

— Sim — respondeu Reginald.

— Apenas eu agora.— Monica e Lucio... estão

seguros?— Sim, em seus quartos, no

corredor.— Holden, você me faria um

favor? — pedi por cima do ombro.— Poderia ir ver se Monica e Lucioestão ilesos? A condição delestalvez ajude a determinar aquantidade de dor a que vamossubmeter o Sr. Birch.

Holden empurrou o corpo doguarda para longe da porta, disse“Sim, senhor” e saiu, fechando a

porta atrás de si, fazendo isso comcerta determinação que não escapoua Reginald.

Reginald deu um sorriso. Umlongo, lento, triste sorriso.

— Fiz o que fiz pelo bem daOrdem, Haytham. Pelo bem de todaa humanidade.

— Às custas da vida do meu pai.Você destruiu a nossa família .Pensou que eu nunca fossedescobrir?

Ele balançou a cabeçatristemente.

— Meu caro rapaz, como Grão-

Mestre, é preciso tomar decisõesdifíceis. Eu não lhe ensinei isso? Euo promovi a Grão-Mestre do RitualColonial, sabendo que você tambémteria de tomar decisões semelhantese tendo fé em sua habilidade paratomá-las, Haytham. Decisõestomadas na busca de um bem maior.Na busca de um ideal que vocêcompartilhava, lembra-se? Vocêpergunta se eu pensei que vocênunca fosse descobrir? E é claro quea resposta é sim. Você é engenhosoe tenaz. Eu o treinei para ser assim.Tive de considerar a possibilidade

de que, um dia, você descobrisse averdade, mas esperava que, quandoesse dia chegasse, você tivesse umaconcepção mais filosófica. — Seusorriso era forçado. — Em vista dacontagem de corpos, devo supor queestou decepcionado a esse respeito,não?

Dei uma risada seca.— Sim, Reginald. Está mesmo. O

que você fez é uma corrupção detudo em que acredito, e sabe porquê? Você fez isso não com aaplicação de nossos ideais, mas comfraude. Como podemos inspirar

crença, quando o que temos emnossos corações são mentiras?

Ele balançou a cabeça, comrepugnância.

— Ora, vamos, isso é asneiraingênua. Eu havia esperado isso devocê, como um jovem adepto, masagora? Durante uma guerra, vocêfaz o possível para garantir avitória. O que você faz com essavitória é o que conta.

—Não. Temos de praticar o quepregamos. Caso contrário nossaspalavras são vazias.

— Falou o Assassino que existe

em você — observou ele, assobrancelhas arqueadas.

Dei de ombros.— Não me envergonho de minhas

raízes. Tive anos para reconciliarmeu sangue Assassino com minhacrença de Templário, e fiz isso.

Eu podia ouvir Jenny respirando ameu lado, respiros alterados,ásperos, que se tornavam maisapressados.

— Ah, então é isso — zombouReginald. — Você se considera ummoderado, não é mesmo?

Eu nada disse.

— E pensa que pode mudar ascoisas? — perguntou, com o lábiotorcido.

Mas a pessoa seguinte a falar foiJenny.

— Não, Reginald — declarou ela.— Matar você é se vingar do quefez conosco.

Ele voltou a atenção para ela,notando pela primeira vez suapresença.

— E como você está, Jenny? —perguntou, erguendo ligeiramente oqueixo e depois acrescentandohipocritamente: — Vejo que o

tempo foi bondoso com você.Ela agora produzia sons baixos de

rugidos. Com o canto do olho, vi amão que segurava a faca avançarameaçadoramente. Ele também viu.

— E sua vida como concubina —continuou — foi gratificante paravocê? Devo imaginar que deve tervisto tanto do mundo, tantas pessoasdiferentes e culturas variadas...

Ele estava tentando instigá-la, efuncionou. Com um uivo de raivanascido de anos de subjugação, elaarremeteu para ele, como se paramatá-lo com a faca.

— Não, Jenny...! — gritei, masera tarde demais, porque, é claro,ele estava preparado para ela. Jennyestava fazendo exatamente o que eleesperava que fizesse, e, quando elachegou à distância de um ataque,Reginald sacou a própria adaga —devia estar enfiada atrás do cinto —e evitou facilmente o golpe da faca.Em seguida, Jenny uivou de dor e deindignação, quando Reginaldagarrou e torceu seu pulso, a facacaiu no chão, e o braço dele seprendeu em volta do pescoço dela,com a lâmina junto à sua garganta.

Por cima do ombro dela, eleolhou para mim, e seus olhoscintilaram. Eu estava na ponta dospés, prestes a saltar para a frente,mas ele pressionou a lâmina nagarganta de Jenny e elachoramingou, os braços noantebraço dele tentando soltar oaperto.

— Oh-oh — alertou Reginald, ejá fazia a volta, mantendo a faca nagarganta dela, empurrando-a devolta para a porta, a expressão norosto dele mudando, mas de triunfopara irritação, quando ela começou

a se debater.— Fique parada — disse-lhe por

entre dentes.— Faça o que ele manda, Jenny

— recomendei, mas ela agitava-seviolentamente para se livrar doaperto, cabelos molhados de suorgrudados em seu rosto, como seestivesse tão revoltada por estarsendo agarrada por ele que preferiaser cortada a passar mais umsegundo em tal estreitaproximidade. E ela foi cortada, poisescorria sangue de seu pescoço.

— Quer parar quieta, mulher? —

vociferou ele, começando a perder acompostura. — Pelo amor de Deus,você quer morrer aqui?

— É melhor isso, e meu irmãomatar você, do que permitir suafuga — sibilou ela, e continuou aretesar-se contra ele.

Vi os olhos dela seguirem para ochão. Não muito longe de ondelutavam, estava o corpo do guarda, edei-me conta do que ela estavafazendo um segundo antes deacontecer: Reginald tropeçou naperna estendida do cadáver e pisouem falso. Apenas um pouquinho.

Mas o bastante. O bastante para que,quando Jenny, com um grito deesforço, arremessou o corpo paratrás, ele tropeçou no corpo e perdeuo equilíbrio, chocando-sepesadamente com um som surdocontra a porta — onde minha espadaainda estava bem presa atravessadana madeira.

Sua boca abriu-se em um gritosilencioso de choque e dor. Aindasegurava Jenny, mas sua forçacedeu e ela caiu para a frente,deixando Reginald preso à porta eolhando de mim para seu peito, de

onde se salientava a ponta daespada. Quando ele fez uma caretade dor, havia sangue em seusdentes. Então, lentamente, eleescorregou da espada e se juntou aoprimeiro guarda no chão, as mãosno buraco do peito, o sangueencharcando suas roupas e jácomeçando a se empoçar no chão.

Virando ligeiramente a cabeça,ele conseguiu olhar para mim.

— Tentei fazer o que era certo,Haytham — disse ele. Suassobrancelhas se uniram. —Vocêcom certeza entende isso.

Olhei abaixo para ele e tive pena,não dele, mas da infância que eleme tirara.

— Não — respondi, e, enquanto aluz se apagava de seus olhos, quisque ele levasse junto minhaindiferença para o outro lado.

— Filho da puta! — berrou Jennyatrás de mim. Ela se colocara dequatro, e rosnara como um animal.— Você está com sorte por eu nãoter cortado suas bolas — mas nãocreio que Reginald a estivesseescutando. Aquelas palavras teriamde permanecer no mundo corpóreo.

Ele estava morto.

v

Veio um ruído do lado de fora,passei por cima do corpo e abri aporta, pronto para enfrentar maisguardas, se necessário. Em vezdisso, fui saudado pela visão deMonica e Lucio passando pelopatamar, ambos carregando trouxase sendo conduzidos em direção àescada por Holden. Tinham o rostopálido e esquelético por causa do

longo tempo de encarceramento e,quando olharam por cima docorrimão para o hall de entradaabaixo, a visão dos cadáveres fezMonica arfar e pressionar emchoque a mão fechada sobre a boca.

— Sinto muito — falei, semsaber direito pelo que estava medesculpando. Por surpreendê-los?Pelos cadáveres? Pelo fato de teremsido mantidos reféns por quatroanos?

Lucio lançou-me um olhar depuro ódio e então desviou a vista.

— Obrigada, senhor, mas não

queremos suas desculpas —retrucou Monica num inglês malfalado. — Agradecemos porfinalmente ter nos libertado.

— Se esperarem por nós,partiremos pela manhã — sugeri. —Se é que está bem para você,Holden.

— Sim, senhor.— Acho melhor partirmos tão

logo juntarmos as provisõesnecessárias para voltarmos paracasa — alegou Monica.

— Por favor, esperem — pedi, epude ouvir a fadiga em minha voz.

— Monica. Lucio. Por favor,esperem, e viajaremos juntos pelamanhã, para garantir sua passagemsegura.

— Não, obrigada, senhor. — Elestinham chegado ao pé da escada, eMonica virou o rosto para olharacima para mim. — Acho que já fezo bastante. Sabemos onde fica oestábulo. Se pudermos nos servir dealimentos da cozinha e pegar unscavalos...

— Claro. Claro. Vocês têm...alguma coisa com que se defender,para o caso de toparem com

bandidos? — Desci rapidamente osdegraus e abaixei-me para pegar aespada de um dos guardas mortos.Entreguei-a a Lucio, oferecendo-lheo cabo.

— Pegue isto, Lucio — falei.Você precisará proteger sua mãedurante a viagem para casa.

Ele agarrou a espada, olhou paramim, e pensei ter visto umasuavidade em seus olhos.

Então ele a enfiou em mim.

27 de janeiro de 1758

Morte. Houvera muita, ehaveria mais.

Anos atrás, quando matei oesfaqueador na Floresta Negra, erreiao esfaqueá-lo no rim e apressar suamorte. Quando Lucio me enfiou aespada no hall de entrada do castelo,por acaso errou um órgão vital. Seugolpe foi desferido com ferocidade.Do mesmo modo que a de Jenny,sua ira foi gerada durante anos de

raiva e sonhos de vingançareprimidos. E, como eu próprio, eraum homem que passara a vidainteira procurando vingança, malpoderia censurá-lo por isso. Mas elenão me matou, obviamente, poisestou escrevendo isto.

Foi o suficiente, porém, para mecausar um sério ferimento e, peloresto do ano, fiquei de cama nocastelo. Estive em um precipíciosobre o grande infinito da morte,entrando e saindo do estadoinconsciente, ferido, infeccionado efebril, mas lutando cansativamente,

algumas fracas e bruxuleanteschamas de espírito dentro de mimse recusando a apagar.

Os papéis foram invertidos e,agora, foi a vez Holden cuidar demim. Toda vez que recobrava aconsciência e acordava agitado emmeio aos lençóis molhados de suor,ele estava lá, ajeitando a roupa decama, aplicando flanelas frescascom água fria em minha testaardente, me acalmando.

— Está tudo bem, senhor, estátudo bem. Apenas relaxe. Já passoupelo pior.

Já mesmo? Já passara pelo pior?Um dia — quanto tempo, durante

minha febre, não faço ideia —acordei, agarrei o braço de Holden,puxei o corpo para ficar sentado,olhei intensamente em seus olhos,para perguntar: — Lucio. Monica.Onde estão?

Eu tivera aquela imagem — umaimagem de um furioso, vingativoHolden abatendo ambos com alâmina.

— A última coisa que disse, antesde apagar, senhor, foi para poupá-los — disse ele, com uma expressão

que sugeria não estar muito felizcom aquilo —, e poupá-los foi o queeu fiz. Nós os mandamos embora,com cavalos e suprimentos.

— Ótimo, ótimo... — ofeguei esenti a escuridão aumentar para mereivindicar novamente. — Não podeculpar...

— Covardia, isso é que foi... —Estava ele dizendo pesarosamente,quando voltei a perder aconsciência. — Não há outrapalavra para isso, senhor. Covardia.Agora, feche os olhos e descanse...

Eu vi Jenny, também, e, mesmo

no meu estado febril e ferido, nãopude deixar de notar a mudançanela. Era como se tivesseconquistado uma paz interior. Umaou duas vezes, estive ciente dapresença dela sentada ao lado daminha cama, e a ouvi falar sobre avida na Queen Anne’s Square, deque modo ela pretendia voltar e,como dizia, “cuidar dos negócios”.

Eu temia pensar. Mesmosemiconsciente, encontrava lugarem meu coração para ter pena daspobres almas encarregadas dosnegócios dos Kenway, quando

minha irmã Jenny retornasse para olocal.

Sobre uma mesa ao lado da camaestava o anel Templário deReginald, mas não o coloquei, oapanhei ou mesmo toquei nele. Poisagora, afinal, eu não me sentia nemTemplário nem Assassino, e nãoqueria ter nada com nenhuma dasduas ordens.

Então, cerca de três meses apósLucio ter me esfaqueado, saí dacama.

Inspirando fundo, com Holdensegurando meu antebraço esquerdo

com ambas as mãos, tirei os pés debaixo dos lençóis, coloquei-os sobreo frio chão de madeira e senti acamisola deslizar até os tornozelos,ao ficar de pé pela primeira vezdurante o que pareceu umaexistência. De imediato, senti umapontada de dor no ferimento nalateral do corpo e botei a mão ali.

— Estava muito infeccionado,senhor — explicou Holden. —Tivemos que cortar fora um pedaçode pele apodrecida.

Fiz uma careta.— Aonde quer ir, senhor? —

perguntou Holden, após termoscaminhado lentamente da cama atéa porta. Isso me fez sentir uminválido, mas, na ocasião, fiqueifeliz em ser tratado como tal. Minhaforça retornaria em breve. Então euestaria...

De volta ao meu velho eu? Fiqueiimaginando...

— Acho que quero olhar pelajanela, Holden, por favor — pedi, eele concordou, conduzindo-me atéela para que eu pudesse olhar oslugares onde passara a maior parteda minha infância.

Ao ficar parado ali, me dei contade que, durante grande parte daminha vida adulta, quando pensavaem “lar”, eu me imaginava olhandopor uma janela, ou para o jardim dacasa da Queen Anne’s Square oupara os terrenos do castelo. Euchamara ambos de lar e aindachamava, e agora — agora que sabiatoda a verdade sobre meu pai eReginald — eles passaram a ter umsignificado ainda maior, quase umadualidade: duas metades da minhajuventude, duas partes do homem noqual me tornei.

— Já basta, Holden, obrigado —falei, e deixei que me conduzisse devolta à cama. Deitei-me,subitamente sentindo-me... detestoadmitir, mas “debilitado”, apósminha longa jornada de ida e volta àjanela.

Mesmo assim, minha cura estavaquase completa e a ideia era obastante para trazer um sorriso aomeu rosto, enquanto Holden seocupava em juntar uma canecad’água e uma flanela usada, tendono rosto uma estranha, sombria eindecifrável expressão.

— Que bom vê-lo novamente depé, senhor — comentou, quandopercebeu que eu estava olhando paraele.

— Devo agradecer isso a você,Holden — falei.

— E à Srta. Jenny, senhor —lembrou-me.

— Claro.— Nós dois ficamos algum

tempo preocupados, senhor. Foiuma recuperação delicada.

— Que terrível teria sido,sobreviver a guerras, a Assassinos eeunucos criminosos, só para morrer

nas mãos de um rapaz imaturo —comentei com uma risadinha.

Ele assentiu e gargalhousecamente.

— Isso mesmo, senhor —concordou. — Seria mesmo umaamarga ironia.

— Bem, sobrevivi para lutar maisum dia — falei — e, em breve,talvez em mais ou menos umasemana, nós partiremos, viajaremosde volta às Américas, e alicontinuarei meu trabalho.

Ele olhou para mim e assentiu.— Como quiser, senhor —

concordou. — Isso será tudo porenquanto, senhor?

— Sim... sim, é claro. Desculpe,Holden, por ter sido um estorvodurante os últimos meses.

— Meu único desejo era vê-lorecuperado, senhor — disse ele, esaiu.

28 de janeiro de 1758

A primeira coisa que ouvi estamanhã foi um grito. Um grito deJenny. Ela havia entrado na cozinhae encontrado Holden pendendo deum varal de roupas.

Eu sabia, antes mesmo de elaentrar correndo no meu quarto —sabia o que acontecera. Ele deixouum bilhete, mas não teria sidopreciso. Holden se matou por causado que os padres coptas haviam

feito com ele. Era simples assim, esem surpresa, não mesmo.

Sabia, desde a morte de meu pai,que um estado de surpresa é umbom indicador da mágoa que virá.Quanto mais paralisado, pasmado eentorpecido alguém se sente, maisdemorado e mais intenso é operíodo de lamentação.

P A R T E QU A T R O

1774, dezesseis anosdepois

12 de janeiro de 1774

i

Ao escrever isto, ao final de umatarde agitada, há apenas umapergunta em minha mente. Épossível que...

Que eu tenha um filho?A resposta é: Não sei ao certo,

mas há pistas, e, talvez maispersistentemente, uma sensação —uma sensação que constantementeme importuna, puxando a barra domeu casaco como um mendigo

insistente.Não é o único peso que carrego, é

claro. Há dias me sinto subjugadopela memória, pela dúvida, peloarrependimento e pelo pesar. Diasnos quais sinto como se fantasmasnão me deixarão em paz.

Após enterrarmos Holden, partipara as Américas, e Jenny retornoupara viver na Inglaterra, de volta àQueen Anne’s Square, onde, desdeentão, permanece em gloriosoestado de solteirona. Sem dúvida,tem sido o assunto de incontáveisfofocas e especulações sobre os

anos que passou fora, e, sem dúvida,isso lhe convém perfeitamente. Nósnos correspondemos, mas, emborapreferisse dizer que as experiênciasque compartilhamos nos uniram, ofato que não se pode disfarçar é queelas não fizeram isso. Nós noscorrespondíamos porque tínhamos omesmo nome Kenway e achávamosque devíamos nos manter emcontato. Jenny não me insultavamais, portanto, nesse sentido, achoque nosso relacionamentomelhorou, mas nossas cartas eramentediadas e superficiais. Éramos

duas pessoas que passaram pormuito sofrimento e muita perdapara durar uma dúzia de existências.O que poderíamos discutir em umacarta? Nada. Portanto, nada era oque discutíamos.

Nesse meio-tempo — eu estavacerto — chorei pela morte deHolden. Jamais conheci um homemmelhor do que ele, e jamaisconhecerei. Para ele, porém, a forçae o caráter, que ele tinha emabundância, simplesmente não eramsuficientes. Sua masculinidade lhetinha sido tirada. Não conseguiu

viver com essa condição, não estavapreparado para isso, e, assim,esperara até eu estar recuperadopara tirar a própria vida.

Lamentei por ele eprovavelmente sempre lamentarei, elamentei também a traição deReginald — o relacionamento quetivemos um dia e as mentiras e astraições nas quais minha vida foibaseada. E lamentei o homem queeu tinha sido. A dor na lateral docorpo nunca passou realmente — devez em quando, ela latejaria — e,apesar do fato de eu não ter dado

permissão para o meu corpoenvelhecer, ele estava determinadoa fazer isso de qualquer maneira.Pelos pequenos e grossos saíram dasminhas orelhas e do meu nariz. Deuma hora para outra, eu já não eratão ágil como antes. Embora minhaposição na Ordem fosse maisimportante do que nunca,fisicamente, eu não era o homemque fui. Em meu retorno àsAméricas, encontrei umapropriedade rural na Virgínia, ondeplantei tabaco e trigo, e cavalgavaem volta dela, ciente de que meus

poderes minguavam lentamentecom o passar dos anos. Montar edesmontar do meu cavalo era maisdifícil do que antes. E não querodizer difícil, só mais difícil, porqueeu continuava mais forte e maisrápido e mais ágil do que umhomem com a metade da minhaidade, e não havia um trabalhadorna minha propriedade capaz de mesuperar fisicamente. Mas, mesmoassim... não era tão rápido, tão forteou tão ágil quanto antes. A idadenão se esquecera de me cobrar seupreço.

Em 1773, Charles também voltoupara as Américas, e se tornou umvizinho, um colega dono de umapropriedade na Virgínia, distanteapenas metade de um dia a cavalo.E havíamos nos correspondido,concordando que precisávamos nosencontrar para conversar sobreassuntos Templários e planejar paraaumentar os interesses do RitualColonial. Discutimosprincipalmente o crescente ânimode rebelião, as sementes derevolução flutuando na brisa e comomelhor capitalizar esse ânimo,

porque nossos colonizadoresestavam cada vez mais cansados denovas regras impostas peloParlamento britânico: a Lei do Selo;a Lei da Receita; a Lei deIndenização; a Lei de Comissáriosda Alfândega. Eles estavam sendopressionados com tantos impostos ese ressentiam do fato de que nãohavia ninguém para representar seuspontos de vista, para registrar seudescontentamento.

Certo George Washington estavaentre os descontentes. Esse jovemoficial, que um dia cavalgara com

Braddock, havia renunciado àpatente e aceitado uma recompensaem terras para ajudar os inglesesdurante a guerra contra franceses eíndios. Suas simpatias, porém,haviam mudado nos anosintermediários. O oficial cheio deenergia e entusiasmo, a quem euhavia admirado por ter umaperspectiva compassiva — pelomenos mais do que seu comandante—, era agora uma das vozes maisimportantes do movimentoantibritânico. Isso, sem dúvida,porque os interesses do governo de

Sua Majestade conflitavam comsuas próprias ambições comerciais.Ele expusera fatos na Assembleia daVirgínia para tentar introduzir umalegislação que banisse a importaçãode produtos da Grã-Bretanha. O fatoque fosse uma legislação condenadasó fez aumentar o crescentesentimento de insatisfação nacional.

A Festa do Chá de Boston,quando aconteceu em dezembro de1773 — apenas mês passado, aliás—, foi o auge de anos — não,décadas — de descontentamento.Ao transformar o porto na maior

xícara de chá do mundo, oscolonizadores estavam dizendo àGrã-Bretanha e ao mundo que nãoestavam mais dispostos a viver sobum sistema injusto. Uma rebeliãototal estava certamente apenas auma questão de meses à frente. Porisso, com a mesma medida deentusiasmo com que cuidava dasminhas plantações, ou escrevia paraJenny, ou saltava da cama — emoutras palavras, bem devagar —,decidi que estava na hora de aOrdem fazer os preparativos para avindoura revolução, e convoquei

uma reunião.

ii

Reunimos, todos juntos pelaprimeira vez em mais de 15 anos, oshomens do Ritual Colonial comquem eu compartilhei tantasaventuras vinte anos atrás.

Ficamos agrupados sob as vigasbaixas de uma taberna desertachamada The Restless Ghost, nosarredores de Boston. Não estavadeserta quando chegamos, mas

Thomas havia providenciado paraque logo tivéssemos o lugar só paranós, expulsando os poucosbebedores que se amontoavam sobreas mesas de madeira. Aqueles denós que habitualmente usavamfardas, agora vestiam roupas civis,com casacos abotoados até opescoço e chapéus puxados paracima dos olhos, e nos sentamos emvolta de uma mesa com canecas àmão: eu, Charles Lee, BenjaminChurch, Thomas Hickey, WilliamJohnson e John Pitcairn.

E foi aqui que soube pela

primeira vez do garoto.Foi Benjamin quem primeiro

tocou no assunto. Ele era o nossohomem dentro dos Filhos daLiberdade de Boston, um grupo depatriotas, colonizadoresantibritânicos que tinham ajudado aorganizar a Festa do Chá, e, doisanos atrás, em Martha’s Vineyard,ele teve um encontro.

— Um garoto nativo — informouele. — Não era alguém que eu játivesse visto antes...

— Não era alguém de quem selembrava ter visto antes, Benjamin

— corrigi.Ele fez uma careta.— Não era alguém de quem me

lembrava ter visto antes, então —corrigiu. — Um garoto que veio naminha direção e, com ousadia,exigiu saber onde estava Charles.

Dirigi-me a Charles.— Ele estava à sua procura. Você

sabe quem é?— Não. — Mas houve algo

evasivo no modo como falou.— Vou tentar outra vez, Charles.

Você desconfia quem pode ser essegaroto?

Ele se recostou no assento eolhou à distância, para o outro ladoda taberna.

— Acho que não — disse ele.— Mas não tem certeza?— Havia um garoto em...Um incômodo silêncio pareceu

baixar sobre a mesa. Os homens oupegaram suas canecas ouencurvaram os ombros ouencontraram alguma coisa parainspecionar na fogueira ali perto.Nenhum fez contato visual comigo.

— Que tal alguém me dizer o queestá havendo? — pedi.

Aqueles homens — nenhum delesera um décimo do homem queHolden tinha sido. Eu estava fartodeles, completamente farto deles. Emeus sentimentos estavam prestes ase intensificar.

Foi Charles... Charles quemprimeiro olhou por sobre a mesa,olhou nos meus olhos e disse: —Sua mulher mohawk.

— O que tem ela?— Sinto muito, Haytham — disse

ele. — Sinto mesmo.— Ela está morta?— Sim.

Claro, pensei. Houve tantasmortes.

— Quando? Como?— Durante a guerra. Em 1760.

Quatorze anos atrás. A aldeia delafoi atacada e incendiada.

Senti a boca apertar.— Foi Washington — declarou

rapidamente, olhando para mim. —George Washington e seus homens.Queimaram a aldeia e a sua... elamorreu lá.

— Você estava presente?Ele ruborizou.— Sim, tínhamos esperanças de

falar com os anciãos da aldeia sobreo sítio precursor. Mas não houvenada que eu pudesse fazer,Haytham, posso garantir a você.Washington e seus homensbaixaram com toda a força sobre olugar. Estavam com ânsia de sanguenaquele dia.

— E havia um garoto? —perguntei.

Seus olhos afastaram-sepiscando.

— Sim, havia um garoto...novinho, com cerca de 5 anos.

Cerca de cinco anos, pensei. Tive

uma visão de Ziio, do rosto que umdia amei, quando era capaz de talcoisa, e senti uma melancólicacontracorrente de dor por ela erepugnância por Washington, oqual, obviamente, tinha aprendidouma ou duas coisas por ter servidocom o general Braddock — liçõesde brutalidade e crueldade. Penseina última vez em que estivemosjuntos e a imaginei no nossopequeno acampamento, fitandoalém das árvores com umaexpressão pensativa no olhar, e asmãos, quase inconscientemente,

indo para a barriga.Mas não. Afastei a ideia.

Fantástica demais. Forçada demais.— Ele me ameaçou, esse garoto

— dizia Charles.Em circunstâncias diferentes,

talvez tivesse achado graça daimagem de Charles, com seu 1,80metro sendo ameaçado por umgaroto nativo de 5 anos — isto é, seainda não estivesse tentandoabsorver a morte de Ziio —, e quaseimperceptivelmente inspirei fundo,sentindo o ar em meu peito, eafastei a imagem dela.

— Eu não era o único dos nossoslá — citou Charles defensivamente,e olhei em volta da mesa,interrogativamente.

— Prossiga. Quem mais?William, Thomas e Benjamin,

todos assentiram, os olhos fixos naescura madeira nodosa do tampo damesa.

— Não pode ter sido ele —exclamou William, contrariado. —Certamente não pode ter sido omesmo garoto.

— Ora, vamos lá, quais são aschances? — concordou Thomas

Hickey.— E você não o reconheceu em

Martha’s Vineyard? — pergunteientão a Benjamin.

Ele balançou a cabeça, deu deombros.

— Era apenas um garoto, índio.Todos são parecidos, não é?

— E o que você estava fazendoem Martha’s Vineyard?

O tom de sua voz foi impaciente.— Descansando.Ou fazendo planos para forrar

seus bolsos, pensei, e disse: — Émesmo?

Ele enrugou os lábios.— Se as coisas saírem como

pensamos, e os rebeldes seorganizarem em um exército, entãoestou na fila para me tornar médico-chefe, Sr. Kenway — disse ele —,uma das posições mais altas doExército. Penso que, em vez dequestionar por que eu estava emMartha’s Vineyard naquele dia,talvez me devesse algumas palavraspara me parabenizar.

Olhou em volta da mesa, atrás deapoio, e foi recebido porassentimentos hesitantes de Thomas

e William, os dois me dando aomesmo tempo olhares de lado.

Admiti.— Esqueci completamente as

boas maneiras, Benjamin. De fato,será um grande reforço para aOrdem o dia em que obtiver essapatente.

Charles pigarreou alto.— Enquanto também esperamos

que, se tal exército vier a serformado, o nosso querido Charlesseja indicado comandante-chefe.

Não enxerguei exatamente, pois aluz da taberna era muito fraca, mas

pude sentir Charles enrubescer.— Nós fazemos mais do que

meramente esperar por isso —protestou ele. — Sou o candidatoóbvio. Minha experiência militarsupera em muito a de GeorgeWashington.

— Sim, mas você é inglês,Charles — suspirei.

— Nascido na Inglaterra —cortou ele —, mas um colonizadorde coração.

— O que tem no seu coraçãopode não ser suficiente — afirmei.

— Veremos — rebateu ele,

indignado.Veremos realmente, pensei,

cansado, então voltei minha atençãopara William, que, até então, semantivera cauteloso, embora fosseóbvio o porquê, considerando queseria o mais afetado pelosacontecimentos da Festa do Chá.

— E qual a sua atribuição,William? Como estão os planospara a compra da terra nativa?

Todos nós sabíamos, é claro, masprecisava ser dito, e ser dito porWilliam, gostasse ele ou não.

— A Confederação deu sua

bênção à negociação... — começou.— Mas...?Ele inspirou fundo.— É claro que você conhece, Sr.

Kenway, nossos planos paralevantar fundos...

— Folhas de chá?— E conhece, é claro, tudo sobre

a Festa do Chá de Boston?Ergui as mãos.— A repercussão tem sido

sentida em todo o mundo. Primeiroa Lei do Selo, agora isso. Nossoscolonos estão se revoltando, nãoestão?

William me disparou um olharrepreensivo.

— Alegro-me por ser umasituação que o diverte, Sr. Kenway.

Dei de ombros.— A beleza de nossa abordagem

é que temos todos os ânguloscobertos. Aqui, em volta da mesa,temos representantes doscolonizadores — apontei paraBenjamin —, do exército britânico— indiquei John — e, é claro, onosso próprio homem de aluguel,Thomas Hickey. Por fora, nossosafiliados não poderiam ser mais

diferentes. O que vocês têm nocoração são os ideais da Ordem.Portanto, você tem que medesculpar, William, se permaneçode bom humor apesar da suacontrariedade. É somente porqueacredito que é exatamente isso, umacontrariedade, e bem pequena.

— Bem, espero que tenha razão,Sr. Kenway, porque o fato queimporta é que essa avenida dearrecadação de fundos está agorafechada para nós.

— Por causa da ação derebeldes...

— Exatamente. E tem outracoisa...

— O quê? — perguntei, sentindotodos os olhos sobre mim.

— O garoto estava lá. Ele é umdos líderes. Lançou caixotes de cháno porto. Todos nós vimos. Eu,John, Charles...

— O mesmo garoto?— Com quase toda a certeza —

disse William —, seu colar éexatamente como o que Benjamindescreveu para mim.

— Colar? — perguntei. — Quetipo de colar? — E mantive o rosto

impassível, tentando não engolir emseco, mesmo quando Benjaminpassou a descrever o colar de Ziio.

Isso não significa nada, disse amim mesmo, quando terminaram.Ziio estava morta, portanto, é claroque o colar teria sido passadoadiante — se é que era o mesmo.

— Há mais alguma coisa, não há?— suspirei, olhando para seusrostos.

Eles assentiram em uníssono,mas foi Charles quem falou.

— Quando Benjamin o encontrouem Martha’s Vineyard, era um

garoto de aparência normal. Durantea Festa do Chá, já não era mais.Usava o manto, Haytham — disseCharles.

— O manto?— De um Assassino.

27 de junho de 1776(dois anos depois) i

Foi nessa época, ano passado, queprovei que estava certo e queCharles estava errado, quandoGeorge Washington foi de fatonomeado comandante-chefe dorecém-formado ExércitoContinental, e Charles foi feitomajor-general.

Enquanto fiquei mais do que felizem saber da notícia, Charles ficouirado e, desde então, não parou de se

enfurecer. Ele gostava de dizer queGeorge Washington não tinhacondições de comandar uma tropade sargentos. O que, é claro, comogeralmente é o caso, não se tratavade algo verdadeiro nem detotalmente falso. Enquanto, por umlado, Washington revelavacomponentes de ingenuidade em sualiderança, por outro, obtiveraalgumas vitórias notáveis, muitoespecialmente a libertação deBoston em março. Também haviaconquistado a confiança e aesperança de seu povo. Não havia

dúvida a respeito, tinha algumasboas qualidades.

Mas não era Templário, equeríamos a revolução liderada porum dos nossos. Não apenasplanejávamos controlar o ladovencedor como pensávamos quetínhamos mais chances de vencertendo Charles como encarregado. E,assim, maquinamos um complôpara matar Washington.Simplesmente isso. Um complô quepoderia ter funcionado muito bem,se não fosse por uma coisa: aquelejovem Assassino. Aquele Assassino

— que poderia ou não ser meu filho— que continuava sendo umincômodo no nosso lado.

ii

Primeiro foi William. Falecido.Morto no ano passado, pouco antesdo começo da Guerra daIndependência. Após a Festa doChá, William começou aintermediar um negócio paracompra de terra indígena. Houve,porém, muita resistência, pelo

menos entre a Confederação dosIroqueses, que se encontrou comWilliam em sua propriedade. Peloque sabia, as negociações tinhamcomeçado muito bem, mas, no meiodo caminho, algo foi dito e as coisastomaram uma direção errada.

— Irmãos, por favor — suplicaraWilliam. — Tenho confiança de queencontraremos uma solução.

Os iroqueses, porém, não estavamouvindo. A terra era deles,argumentaram. Taparam os ouvidosà lógica apresentada por William,que era a de que, se a terra passasse

para as mãos dos Templários, entãopoderíamos mantê-las longe dasgarras de qualquer que fosse a forçaque emergisse vitoriosa do conflitoprestes a acontecer.

A dissidência efervesceu entre osmembros da confederação nativa. Adúvida ficou à espreita entre eles.Alguns argumentaram que nuncapoderiam competir com todo opoderio do exército britânico oucolonizador; outros achavam queentrar em um acordo com Williamnão era uma solução melhor. Elestinham esquecido de como os

Templários haviam libertado seupovo da escravidão de Silas duasdécadas antes; em vez disso,lembravam das expedições queWilliam organizara para o interiorda floresta a fim de tentar localizaro sítio precursor; as escavações nacâmara que havíamos encontrado.Essas afrontas estavam frescas emsuas mentes, impossíveis de seremomitidas.

— Paz, paz — argumentouWilliam. — Eu não fui sempre umdefensor? Eu não procurei sempreprotegê-los do mal?

— Se quer nos proteger, entãonos dê armas. Mosquetes e cavalospara que possamos nos defender —discorreu em resposta um membroda Confederação.

— Guerra não é a solução —pressionou William.

— Nós lembramos que vocêsavançaram as fronteiras. Aindahoje, seus homens cavam a terra...sem mostrar qualquer respeito pelosque vivem nela. Suas palavras sãodoces como o mel, mas falsas. Nãoestamos aqui para negociar. Nempara vender. Estamos aqui para

dizer a você e aos seus que deixemestas terras.

Lamentavelmente, Williamrecorreu à força para fazer valer seuponto vista, e um nativo foi baleado,com a ameaça de mais mortes nofuturo, a menos que a Confederaçãoassinasse o contrato.

Para seu crédito, os homensdisseram não; recusaram-se a securvar diante da demonstração deforça por parte de William. Queamarga vindicação deve ter sido,quando seus homens começaram acair com balas de mosquetes em

seus crânios.Então o garoto apareceu. Fiz o

homem de William descrevê-lo paramim em detalhes, e o que ele dissecombinou exatamente com o queBenjamin dissera sobre o encontroem Martha’s Vineyard, e o queCharles, William e John tinhamvisto no porto de Boston. Ele usavao mesmo colar, o mesmo manto deAssassino. Era o mesmo garoto.

— Esse garoto, o que ele disse aWilliam? — perguntei ao soldadoque estava diante de mim.

— Ele disse que planejava

garantir um fim aos planos do Sr.Johnson, impedir que elereivindique essas terras para osTemplários.

— William respondeu?— Sim, senhor, ele disse ao seu

matador que os Templários haviamtentado reivindicar a terra paraproteger os índios. Disse ao garotoque nem o rei Jorge nem oscolonizadores se importavam osuficiente para proteger osinteresses do iroqueses.

Revirei os olhos.— Não era um argumento

especialmente convincente, tendoem vista que ele estava no processode massacrar os nativos quando ogaroto atacou.

O soldado baixou a cabeça.— Possivelmente não, senhor.

iii

Se fui um pouco filosófico demaisquando se tratou da morte deWilliam, bem, houve fatoresextenuantes. William, ainda quededicado e diligente em seu

trabalho, nunca foi a pessoa maisbem-humorada e, diante de umasituação que exigia diplomacia comforça, cometeu um erro crasso nasnegociações. Embora me doa dizerisso, ele arquitetou sua própriaqueda, e receio que eu nunca tenhasido alguém que tolerasse aincompetência: nem quando jovem,quando supunha que era algo queherdara de Reginald; e agora, tendopassado meu aniversário de 50 anos,muito menos ainda. William foraum maldito de um idiota e pagoupor isso com a vida. Igualmente, o

projeto para garantir a terra nativa,se bem que importante para nós, nãoera mais nossa principal prioridade;não o era desde o eclodir da guerra.Nossa principal tarefa agora eraassumir o controle do exército e,tendo fracassado pelos meioslimpos, recorreríamos aos sujos —assassinando Washington.

Contudo, aquele plano sofreu umgolpe, quando o Assassino, a seguir,escolheu como alvo John, o nossooficial do exército britânico,atacando-o por causa de seutrabalho de eliminar os rebeldes.

Novamente, embora fosse irritanteperder um homem tão valioso, issotalvez não tivesse afetado nossosplanos se não fosse pelo fato de queno bolso de John havia uma carta —infelizmente, a que detalhava osplanos para matar Washington,mencionando o nosso ThomasHickey como o homem escolhidopara realizar o feito. Sem demora, ojovem Assassino apressou-se paraNova York, tendo Thomas como opróximo de sua lista.

Thomas estava falsificandodinheiro lá, ajudando a levantar

fundos e também se preparandopara o assassinato de Washington.Charles já estava lá, com o ExércitoContinental, portanto eu mesmo fuide modo despercebido para a cidadee aluguei uma residênciatemporária. Mal havia chegado erecebi a notícia: o garoto tinhaalcançado Thomas, mas a duplahavia sido presa e jogada na Prisãode Bridewell.

— Não pode haver mais erros,Thomas, está entendendo? — disse-lhe, quando o visitei, tremendo defrio e revoltado por causa do cheiro,

da gritaria e dos ruídos da cadeia,quando, de repente, na cela ao lado,eu o vi: o Assassino.

E reconheci. Ele tinha os olhos damãe, o mesmo cabelo preto, apostura orgulhosa do queixo. Era aimagem dela. Sem dúvida, era meufilho.

iv

— É ele — disse Charles, aodeixarmos juntos a prisão. Dei umsobressalto, mas ele não notou:

Nova York estava congelando,nossos bafos pendendo em nuvens, eele estava preocupado demais em semanter aquecido.

— Quem?— O garoto.Sabia exatamente o que ele queria

dizer, é claro.— Que droga que você está

falando, Charles? — pergunteiirritado, e soprei as mãos.

— Lembra que eu falei para vocêde um garoto que encontrei em1760, quando os homens deWashington atacaram a aldeia

indígena?— Sim, lembro. E esse é o nosso

Assassino, não? O mesmo do portode Boston? O mesmo que matouWilliam e John? Esse é o garoto queestá lá agora?

— Sim, Haytham, parece quesim.

Fiz a volta em torno dele.— Percebe o que significa isso,

Charles? Nós criamos aqueleAssassino. Dentro dele queima oódio por todos os Templários. Eleviu você o dia em que a aldeia delequeimou, não foi?

— Sim... sim, eu já tinha dito avocê...

— Espero que ele também tenhavisto o seu anel. Espero que ele usea impressão do seu anel na própriapele durante algumas semanas apóso seu encontro. Estou certo,Charles?

— Sua preocupação com o garotoé comovente, Haytham. Vocêsempre foi um grande protetor dosnativos...

As palavras congelaram em seuslábios porque, no instante seguinte,agarrei parte de sua capa e o

empurrei contra a parede de pedrada prisão. Elevei-me sobre ele, emeus olhos queimaram no interiordos seus.

— Minha preocupação é com aOrdem — falei. — Minha únicapreocupação é com a Ordem.Corrija-me se eu estiver errado,Charles, mas a Ordem não prega omassacre insensato de nativos, oincêndio de suas aldeias. Isso, devolembrar, esteve visivelmenteausente de meus ensinamentos.Sabe por quê? Porque é o tipo decomportamento que cria... como

vou descrever isso?... “má vontade”entre aqueles que esperamosconvencer sobre o nosso modo depensar. Isso causa uma apreensãoindefinida no lado inimigo.Exatamente como o fez aqui.Homens estão mortos e nossosplanos ameaçados por causa de seucomportamento dezesseis anosatrás.

— Meu comportamento, não...Washington é...

Larguei-o, dei um passo para tráse cruzei minhas mãos nas costas.

— Washington vai pagar pelo que

fez. Cuidaremos disso. Ele é brutal,isso está claro, e não está apto aliderar.

— Concordo, Haytham, e já deium passo para garantir que não hajamais interrupções, para matar doiscoelhos com uma cajadada, porassim dizer.

Olhei-o de modo penetrante.— Prossiga.— O garoto nativo vai ser

enforcado por tramar a morte deGeorge Washington e peloassassinato do diretor da prisão.Washington estará presente, é

claro... planejo garantir isso... epoderemos usar a oportunidade paramatá-lo. Thomas, é claro, ficarámais do que feliz em aceitar amissão. Só falta você, o Grã-Mestredo Ritual Colonial, dar sua bênção àmissão.

— Está em cima da hora —aleguei, e pude perceber a dúvidaem minha própria voz. Mas porquê? Por que eu ainda me importavamais com quem vivesse oumorresse?

Charles abriu os braços.— Está em cima da hora, mas às

vezes são esses os melhores planos.— Realmente — concordei. —

Realmente.— E então?Pensei. Com uma palavra,

confirmaria a execução do meupróprio filho. Que espécie demonstro seria capaz de tal coisa?

— Faça — ordenei.— Muito bem — retrucou ele,

com uma súbita satisfação deencher o peito. — Então não vamosperder mais um só momento. Estanoite, faremos correr por Nova Yorka notícia de que um traidor da

revolução encontrará seu fim.

v

Para mim, é tarde demais para terum sentimento paternal agora. Oque quer que houvesse dentro demim antes que fosse capaz de criarmeu filho tinha sido corrompido ouconsumido havia muito tempo.Anos de traição e massacres haviamcuidado disso.

28 de junho de 1776

i

Esta manhã acordei nos meusalojamentos com um sobressalto,sentei-me com postura na cama eolhei em volta do quarto estranho.Do lado de fora da janela, as ruas deNova York estavam agitadas. Eraimaginação minha, ou tinha umpeso no ar, um nervosismo nasconversas que se erguiam até minhajanela? E, se havia, isso teriaalguma coisa a ver com o fato de

que, hoje, haveria uma execução nacidade? Hoje, eles enforcariam...

Connor, era esse seu nome. Onome que Ziio lhe dera. Fiqueiimaginando como as coisaspoderiam ter sido diferentes se nósdois o tivéssemos trazido juntos aomundo.

Connor ainda seria seu nome?Ele ainda teria escolhido o

caminho dos Assassinos?E, se a resposta a essa pergunta

fosse não, ele não teria escolhido ocaminho dos Assassinos porque seupai era Templário, então no que isso

me tornaria, a não ser umaabominação, um acidente, umhíbrido? Um homem com lealdadesdivididas.

Mas um homem que decidiu quenão podia permitir que seu filhomorresse. Não hoje.

Eu me vesti, não com minhasroupas normais, mas com um mantoescuro com capuz que puxei para acabeça. Depois corri para oestábulo, localizei meu cavalo e oapressei na direção da praça daexecução, passando por apinhadasruas enlameadas, cidadãos

assustados saindo correndo do meucaminho e sacudindo os punhos paramim ou observando-me com osolhos arregalados por baixo dasabas dos chapéus. Estrondeei emfrente, para onde as aglomeraçõestornavam-se mais compactas àmedida que os espectadores sereuniam para assistir aoenforcamento.

E, enquanto cavalgava, pensei noque estava fazendo e me dei contade que não sabia. Tudo que sabia eracomo me sentia, que era como seestivesse dormindo, mas fosse

acordado de repente.

ii

Ali, em uma plataforma, a forcaesperava a próxima vítima,enquanto uma multidão de tamanhorazoável antecipava a diversão dodia. Nas laterais da praça, haviacavalos e carroças, sobre os quais asfamílias subiam para ver melhor:homens de aparência covarde,mulheres baixas com rostosapreensivos, preocupados, e

crianças imundas. Visitantesestavam sentados na praça,enquanto outros andavam semdestino: mulheres formando grupospara fofocar, homens bebendocerveja ou vinho de frascos decouro. Todos estavam ali para vermeu filho ser executado.

Por um dos lados, chegou umacarroça flanqueada por soldados e vide relance Connor lá dentro, antesde saltar dela um sorridente ThomasHickey, que em seguida também opuxou da carroça, ao mesmo tempoque zombava dele.

— Não pensou que eu perderiasua festa de despedida, pensou?Soube que Washington em pessoaestará presente. Espero que nada demal aconteça com ele...

Connor, com as mãos amarradasà frente, disparou um olharcarregado de ódio para Thomas e,mais uma vez, admirei-me com oquanto de sua mãe encontrava-seem suas feições. Mas, com o desafioe a bravura, hoje também havia...medo.

— Você disse que teria umjulgamento — vociferou ele,

enquanto Thomas o arrastava.— Receio que traidores não

tenham julgamento. Lee e Haythamacertaram isso. Para você, serádireto para a forca.

Gelei. Connor estava para sermorto pensando que eu assinara suasentença de morte.

— Eu não morrerei hoje —afirmou Connor com orgulho. — Omesmo não pode ser dito de você.

Mas ele estava dizendo isso porcima do ombro, enquanto osguardas que tinham escoltado acarroça até a praça usavam hastes

de pique para espetá-lo, forçando-ona direção do cadafalso. O ruídoaumentou, enquanto a multidão sedividia ao meio e se esticava paratentar agarrá-lo, socá-lo, derrubá-lono chão. Vi um homem, com ódionos olhos, prestes a lhe dar um soco,mas eu estava perto o suficientepara conter o soco ao ser desferido,torcer o braço do sujeitodolorosamente para suas costas edepois jogá-lo no chão. Com olhosflamejantes, ele ergueu a vista paramim, mas, ao me ver olhando-o domeu capuz, isso o deteve, e ele se

levantou e, no momento seguinte,foi engolido pela multidão agitada,rebelde.

Enquanto isso, Connor tinha sidoempurrado mais ainda ao longo docorredor de maus-tratos vingativos,e eu já estava longe demais paradeter outro homem que subitamentearremeteu à frente e o agarrou —mas perto o bastante para ver orosto do homem debaixo do capuz;perto o bastante para ler seus lábios.

— Você não está sozinho. Bastadar um grito quando precisar.

Era Achilles.

Ele estava ali — ali para salvarConnor, que respondeu: — Esqueça-me... Você precisa deter Hickey. Eleestá...

Mas, então, foi arrastado dali, eterminei a frase na minha cabeça:...planejando matar GeorgeWashington.

Por falar no diabo. Ocomandante-chefe tinha chegadocom uma pequena escolta. Depoisque Connor foi empurrado para aplataforma e um carrasco colocou olaço em seu pescoço, a atenção damultidão voltou-se para o lado

oposto da praça, onde Washingtonestava sendo conduzido para umaplataforma alta na parte de trás, daqual, ainda agora, os guardasexpulsavam um grandeajuntamento. Charles, como major-general, também estava com ele, eisso me deu uma oportunidade decomparar os dois: Charles era bemmais alto do que Washington,embora com certa indiferença emcomparação ao charme natural deWashington. Olhando-os juntos,percebi de imediato por que oCongresso Continental havia

escolhido Washington em vez dele.Charles parecia tão britânico.

Em seguida, Charles deixaraWashington e, com dois guardas,atravessou a praça, abrindo a golpescaminho pela multidão, então subiuos degraus do cadafalso, de onde sedirigiu à multidão, que pressionavaadiante. Eu me descobri pressionadoentre corpos, fedendo a cerveja esuor, usando os cotovelos paratentar e conseguir espaço no meioda multidão.

— Irmãos, irmãs, companheirospatriotas — começou Charles, e um

silêncio impaciente baixou sobre amultidão. — Vários dias atrás,descobrimos uma trama tão vil, tãocovarde que só de repeti-la agoraperturba meu ser. O homem diantede vocês planejou matar nossomuito amado general.

A multidão arfou.— Exatamente — rugiu Charles,

aquecendo o assunto. — Queperversidade ou loucura o motivou,ninguém sabe. E ele mesmo nãoapresenta defesa. Não mostraremorso. E, embora tenhamospedido e suplicado que

compartilhasse o que sabe, ele semantém em silêncio mortal.

Nisso, o carrasco adiantou-se ecolocou um saco de estopa nacabeça de Connor.

— Se o homem não se explicar...se não confessar e expiar... queoutra opção existe a não ser esta?Ele tentou nos enviar para os braçosdo inimigo. Desse modo, somosforçados pela justiça a enviá-lo paralonge deste mundo. Que Deus tenhapiedade de sua alma.

Agora que ele tinha acabado,olhei em volta, tentando localizar

mais homens de Achilles. Se aquilose tratava de uma missão desalvamento, então estava na hora,não? Mas onde estavam eles? Quedroga estavam planejando?

Um arqueiro. Deviam estarusando um arqueiro. Não era oideal: uma flecha não conseguiriacortar a corda completamente, omelhor que os salvadores poderiamesperar era que ela cortasse fibrassuficientes para que o peso deConnor a rompesse. Mas teria de serprecisa. Teria de ser disparada de...

Longe. Girei para checar os

prédios atrás de mim. De fato, nolocal que eu teria escolhido, haviaum arqueiro, parado no batente deuma janela alta. Enquanto euobservava, ele puxou a corda doarco e mirou ao longo da linha daflecha. Então, no momento em queo alçapão se abriu com um estalo eo corpo de Connor caiu, eledisparou.

A flecha riscou acima de nós,embora eu fosse o único ciente dela,e disparei meu olhar para aplataforma a tempo de vê-la talhar acorda e enfraquecê-la — é claro —,

mas não o bastante para cortá-la.Corri o risco de ser visto e

descoberto, mas fiz o que fiz dequalquer maneira, por impulso, porinstinto. Puxei a adaga de dentro domanto e joguei-a, observei-a viajarpelo ar e agradeci a Deus quando elacortou a corda e completou oserviço.

Quando o corpo estremecido e —graças a Deus — ainda muito vivode Connor caiu pelo alçapão,ergueu-se um arfar à minha volta.Por um momento, me vi em umespaço cerca de um braço de

distância por toda a minha volta,enquanto a multidão se afastava, emchoque, de mim. Ao mesmo tempo,avistei Achilles mergulhando porbaixo do cadafalso onde o corpo deConnor havia caído. Em seguida, euestava lutando para escapar, quandoa calmaria então em choque foisubstituída por um urro vingativo,chutes e socos foram mirados emmim e guardas começaram a abrircaminho à força pela multidão naminha direção. Soltei a lâmina ecortei um ou dois espectadores — osuficiente para tirar sangue e fazer

com que outros agressores parassempara pensar. Mais tímidos, agora,eles finalmente abriram espaço àminha volta. Corri para fora dapraça e voltei para o meu cavalo,com as vaias da multidão enfurecidaressoando nos meus ouvidos.

iii

— Ele pegou Thomas antes queconseguisse alcançar Washington— informou desanimadamenteCharles mais tarde, quando

estávamos sentados nas sombras databerna Restless Ghost, paracomentar os acontecimentos do dia.

Estava agitado e olhavaconstantemente por cima do ombro.Ele parecia como eu me sentia, equase invejei sua liberdade deexpressar seus sentimentos. Quantoa mim, tinha de manter minhaconfusão escondida. E queconfusão: Eu tinha salvado a vidado meu filho, mas efetivamentesabotara o trabalho de minhaprópria Ordem — uma operação queeu mesmo decretei. Eu era um

traidor. Tinha traído meu povo.— O que aconteceu? —

perguntei.Connor havia alcançado Thomas

e, antes de matá-lo, exigirarespostas para algumas perguntas.Por que William tentara comprar aterra de seu povo? Por queestávamos tentando matarWashington?

Assenti. Dei um gole na minhacerveja.

— O que Thomas respondeu?— Ele disse que, aquilo que

Connor procurava, ele jamais

encontraria.Charles olhou-me, os olhos

arregalados e fatigados.— E agora, Haytham? E agora?

7 de janeiro de 1778(quase dois anos depois) i

Charles começara a ficar ressentidocom Washington, e o fato de nossatentativa de assassinato terfracassado somente aumentou suaira. Ele tomou como uma afrontapessoal que Washington tivessesobrevivido — como ousa? —,portanto, nunca o perdoou por isso.Logo depois, Nova York caiu sob opoder dos ingleses, e Washington,que quase foi capturado, levou a

culpa, não somente por parte deCharles, que ficouexcepcionalmente decepcionadopela subsequente incursão dogeneral através do rio Delaware,apesar de o fato de sua vitória naBatalha de Trenton ter renovado aconfiança na revolução. ParaCharles, era mais vantajoso queWashington continuasse perdendo aBatalha de Brandywine e,consequentemente, a Filadélfia. Oataque de Washington aos inglesesem Germantown tinha sido umacatástrofe. E agora era o Vale Forge.

Após vencer a batalha de WhiteMarsh, Washington havia levadosuas tropas para o que ele esperavaque fosse um local mais seguro parao novo ano. O Vale Forge, naPensilvânia, foi o terreno alto queele escolheu: vinte milcolonizadores, tão pessimamenteequipados e exaustos que os homensdescalços deixaram uma trilha depegadas sangrentas quandomarcharam para montaracampamento e se preparar para oinverno que chegava.

Estavam em um matadouro. O

fornecimento de comida e roupa eradolorosamente insuficiente,enquanto cavalos eram dominadospela fome ou morriam a seus pés.Tifo, icterícia, disenteria epneumonia se espalhavamincontrolavelmente peloacampamento e matavam milhares.O moral e a disciplina eram tãobaixos que praticamente nãoexistiam.

Ainda assim, a despeito da perdade Nova York e da Filadélfia e dalonga, lenta, congelante morte deseu exército em Vale Forge,

Washington tinha seu anjo daguarda: Connor. E este, com aconvicção da juventude, acreditavaem Washington. Nenhuma palavraminha teria possibilidade deconvencê-lo do contrário, isso eracerto; nada que eu pudesse dizer oconvenceria de que Washington erade fato responsável pela morte desua mãe. Na mente dele, osTemplários eram os responsáveis —e quem poderia censurá-lo por terchegado a essa conclusão? Afinal,ele viu Charles lá, naquele dia. Enão apenas Charles, mas William,

Thomas e Benjamin.Ah, Benjamin. Meu outro

problema. Ele tinha sido, naquelesúltimos anos, uma desgraça para aOrdem, para dizer o mínimo. Apóstentar vender informações aosingleses, fora levado diante de umacorte de averiguações em 1775,chefiada por ninguém menosimportante do que o próprio GeorgeWashington. Na ocasião, Benjaminera, como havia previsto todosaqueles anos atrás, o médico-chefe ediretor geral do serviço médico doExército Continental. Ele foi

condenado por se “comunicar com oinimigo” e preso, e, para todos osefeitos e propósitos, permaneceuassim até o início deste ano quandofoi solto — e imediatamentedesapareceu.

Se ele havia desistido dos ideaisda Ordem, exatamente como fizeraBraddock anos antes, eu não sabia.O que sabia era que provavelmenteele era a pessoa por trás do roubo desuprimentos com destino a ValeForge, o que, é claro, estavapiorando a situação para as pobresalmas acampadas lá; que ele

abandonou os objetivos da Ordemem favor de lucro pessoal; e queprecisava ser detido — uma missãoque abracei, começando nosarredores de Vale Forge ecavalgando através do geladoagreste da Filadélfia coberto deneve até chegar à igreja ondeBenjamin havia montadoacampamento.

ii

Uma igreja abandonada. Não apenas

por sua antiga congregação, maspelos homens de Benjamin. Diasatrás, eles tinham estado ali, masagora — nada. Nada desuprimentos, nada de homens,apenas restos de fogueiras, já frios,e áreas irregulares de lama e solosem neve onde tendas haviam sidoarmadas. Amarrei meu cavalo nosfundos da igreja e fui para seuinterior, onde tinha, assim como láfora, apenas um frio entorpecente ede congelar os ossos. Ao longo doscorredores, havia restos de maisfogueiras e, perto da porta, uma

pilha de madeira, a qual, aoinspecionar mais de perto, notei queeram bancos da igreja que tinhamsido cortados. A reverência é aprimeira vítima do frio. Os bancosrestantes estavam em duas filas deambos os lados da igreja, diante deum púlpito imponente, mas hámuito sem uso, e o pó flutuava edançava em largos feixes de luzprojetados através de vidraçasencardidas no alto das grandiosasparedes de pedra. Espalhados peloáspero chão de pedra, havia várioscaixotes de cabeça para baixo e

restos de fardos, e, por algunsmomentos, caminhei por ali,parando ocasionalmente paradesvirar um caixote na esperança deque pudesse encontrar alguma pistade onde Benjamin tinha ido.

Então, um ruído — passos vindosda entrada —, e gelei antes dedisparar para trás do púlpito, nomomento em que as enormes portasde carvalho rangeram lentamente e,de modo assustador, se abriram, euma figura entrou: uma que poderiater seguido exatamente meuspassos, pelo modo como percorreu o

chão da igreja, como eu o fizera,desvirando e investigando caixotese até mesmo xingando baixinho,como eu.

Era Connor.Olhei-o do meio das sombras

atrás do púlpito. Ele usava seumanto de Assassino e tinha umolhar intenso, e observei-o por ummomento. Era como se eu estivesseolhando para mim mesmo — umaversão mais jovem minha, como umAssassino, o caminho que eu teriaseguido, o caminho para o qualestava sendo preparado para tomar,

e o teria tomado, se não tivesse sidopela traição de Reginald Birch.Observando Connor, o que senti foiuma violenta mistura de emoções;entre elas, arrependimento,amargura, até mesmo inveja.

Aproximei-me. Vejamos o quantoele é realmente um bom Assassino.

Ou, colocando em outros termos,vejamos se eu ainda tinha essetalento.

iii

E eu ainda tinha.— Pai — disse ele, depois que o

derrubei e coloquei a lâmina em seupescoço.

— Connor — faleisarcasticamente. — Suas últimaspalavras?

— Espere.— Péssima escolha.Ele se debateu e seus olhos se

incendiaram.— Veio checar Church, não é

mesmo? Ver se ele roubou osuficiente para os seus irmãosingleses?

— Benjamin Church não é meuirmão — rebati com impaciência.— Não mais do que os casacosvermelhos e o rei idiota deles. Euesperava algo ingênuo. Mas isso...Os Templários não lutam pelaCoroa. Buscamos o mesmo quevocê, rapaz. Liberdade. Justiça.Independência.

— Mas...— Mas o quê? — perguntei.— Johnson. Pitcairn. Hickey.

Eles tentaram roubar terras. Saquearcidades. Assassinar GeorgeWashington.

Suspirei.— Johnson quis possuir a terra

para que pudéssemos mantê-lasegura. Pitcairn visava incentivar adiplomacia... que você estragou detal forma que foi o suficiente parainiciar uma maldita guerra. EHickey? George Washington é umcoitado de um líder. Ele perdeuquase todas as batalhas de quetomou parte. O homem estáarruinado pela incerteza e pelainsegurança. Dê uma olhada no ValeForge e verá que minhas palavrassão verdadeiras. Estaríamos muito

melhor sem ele.Pude perceber que o que eu dizia

causava um efeito nele.— Olhe... Por mais que adorasse

me bater com você, a língua deBenjamin Church é tão grandequanto seu ego. Você, claramente,quer as mercadorias que ele roubou;eu quero que ele seja castigado.Nossos interesses são parecidos.

— O que você propõe? —perguntou cautelosamente.

O que eu propunha?, pensei. Viseus olhos irem para o amuleto nomeu pescoço, e os meus, por sua

vez, foram para o colar que eleusava. Sem dúvida, sua mãe havialhe falado sobre o amuleto; semdúvida iria querer tirá-lo de mim.Por outro lado, os emblemas queusávamos em nossos pescoços,ambos eram lembranças dela.

— Uma trégua — falei. —Talvez... talvez algum tempo juntosnos faça bem. Afinal de contas,você é meu filho, e talvez aindapossa ser salvo de sua ignorância.

Houve uma pausa.— Ou posso matar você agora, se

preferir — sugeri com uma

gargalhada.— Sabe aonde Church foi? —

indagou ele.— Receio que não. Esperava

emboscá-lo, quando ele ou um deseus homens voltasse aqui. Masparece que cheguei tarde demais. Jávieram e limparam o local.

— Talvez eu consiga rastreá-lo— disse ele, com um estranho tomarrogante na voz.

Recuei e fiquei observando,enquanto ele me fazia umaostensiva demonstração dotreinamento de Achilles, apontando

marcas no chão da igreja onde oscaixotes haviam sido arrastados.

— A carga era pesada —anunciou. — Provavelmente foicolocada em uma carroça paratransporte... Havia rações dentro doscaixotes... e também suprimentosmédicos e roupas.

Do lado de fora da igreja, Connorgesticulou para uma parte da neveremexida.

— Havia uma carroça aqui...levada lentamente sob o peso, ao sercarregada com os suprimentos. Aneve ocultou os rastros, mas restou

o suficiente para que aindapossamos seguir. Vamos...

Peguei meu cavalo, juntei-me aele e, juntos, cavalgamos, Connorindicando a linha dos rastros,enquanto tentava evitar que minhaadmiração transparecesse. Não era aprimeira vez que me viaimpressionado pelas semelhançasem nosso conhecimento, e notei queele fazia exatamente o que eu teriafeito na mesma situação. Cerca de25 quilômetros após oacampamento, ele girou na sela eme deu um olhar triunfante, ao

mesmo tempo que indicava a trilhaadiante. Havia uma carroçaavariada, seu condutor tentavaconsertar a roda e murmurava,enquanto nos aproximávamos: —Que azar... Vou morrer congelado senão consertar isso...

Surpreso, ele ergueu a vista, ànossa chegada, e seus olhosarregalaram-se de medo. Seumosquete não se encontrava muitodistante, mas estava longe demaispara que ele o alcançasse.Instantaneamente, eu soube —exatamente quando Connor

perguntou com arrogância “Você éhomem de Benjamin Church?”—que ele ia fugir e, de fato, fugiu.Apavorado, se levantou e partiupara o meio das árvores, seguindocom dificuldade pela neve, comuma marcante corrida penosa, tãodesajeitada quanto a de um elefanteferido.

— Muito bem — sorri, e Connorlançou-me um olhar irritado, saltouda sela e mergulhou pelo limite dasárvores atrás do condutor dacarroça.

Deixei-o ir, em seguida suspirei e

desci do meu cavalo, chequei minhalâmina e ouvi a agitação no meio domato, enquanto Connor capturava ohomem. Então entrei na florestapara me juntar a eles.

— Não foi inteligente saircorrendo — dizia Connor. Ele tinhao condutor preso contra uma árvore.

— O q-que você quer? —conseguiu indagar o infeliz.

— Onde está Benjamin Church?— Não sei. Estávamos seguindo

para um acampamento ao nortedaqui. É onde normalmentedescarregamos. Talvez o encontre

por...Seus olhos dispararam para mim,

como se procurasse ajuda, entãosaquei a pistola e atirei nele.

— Já chega — falei. — É melhorseguirmos caminho.

— Não precisava tê-lo matado —alegou Connor, limpando do rosto osangue do homem.

— Nós sabemos onde fica oacampamento — rebati. — Ele tevesua serventia.

Ao retornarmos aos nossoscavalos, fiquei imaginando comopareceria para ele. O que estava

tentando lhe ensinar? Queria que elefosse tão frágil e cansado quantoeu? Estaria tentando lhe mostraraonde o caminho levava?

Perdido em pensamentos,cavalgamos na direção do local doacampamento e, assim queavistamos a denunciadora fumaçapairando sobre as árvores,desmontamos, amarramos oscavalos e continuamos a pé,passando sorrateira esilenciosamente por entre asárvores. Ficamos nas árvores,rastejando e usando minha luneta

para olhar entre troncos e galhosdesfolhados para homens distantesque andavam pelo acampamento ese reuniam em torno de fogueiras,tentando se manter aquecidos.Connor partiu, para seguir caminhoaté o acampamento, enquanto eu mepunha à vontade, fora de vista.

Ou pelo menos achava isso —achava que estava fora de vista —até sentir a cócega de um mosqueteno meu pescoço e as palavras: —Ora, ora, ora, o que temos aqui?

Praguejando, fui colocado de pé.Havia três deles, todos parecendo

muito felizes consigo mesmos porterem me capturado — e com razão,porque não era fácil alguém seaproximar sorrateiramente de mim.Dez anos antes, os teria ouvido e meesgueirado silenciosamente paralonge. Dez anos antes disso, os teriaouvido se aproximar, teria meescondido e apanhado todos desurpresa.

Dois mantiveram os mosquetesapontados para mim, enquanto umdeles avançava, lambendo os lábiosnervosamente. Fazendo um ruído,como se estivesse impressionado,

ele soltou minha lâmina oculta,depois tomou a espada, a adaga e apistola. E somente quando eu estavadesarmado, ele ousou relaxar,sorrindo para revelar um pequenohorizonte de dentes enegrecidos epodres. Eu tinha uma armaescondida, é claro: Connor. Mas emque merda de lugar ele tinha semetido?

Dente Podre deu um passo àfrente. Graças a Deus, ele era tãoruim em esconder suas intençõesque consegui torcer o corpo edesviar o joelho que ele impelia

contra a minha virilha, apenas osuficiente para evitar uma dor forte,mas para fazê-lo pensar o contrário,e urrei, fingindo que doía e caísobre o chão congelado, ondepermaneci temporariamente,parecendo mais aturdido do que mesentia e ganhando tempo.

— Deve ser um espião ianque —arriscou um dos outros homens.Inclinou o mosquete para se curvare olhar para mim.

— Não. É algo mais — disse oprimeiro, e ele também se curvoupara mim, enquanto me levantava e

ficava de quatro. — É algo especial.Não é mesmo... Haytham? Churchme contou tudo sobre você —informou o capataz.

— Então não deveriam ter feitoisso — alertei.

— Você não está em posição defazer ameaças — rugiu DentePodre.

— Ainda não — faleicalmamente.

— É mesmo? — rebateu DentePodre. — E se provarmos ocontrário? Já levou uma coronhadade mosquete nos dentes?

— Não, mas parece que vocêpode me dizer como é.

— O quê? Está querendo bancar oengraçadinho?

Meus olhos viajaram acima —para os galhos de uma árvore atrásdeles, onde avistei Connoragachado, sua lâmina ocultaestendida e o dedo sobre os lábios.Claro que era um especialista comárvores, o que, sem dúvida,aprendeu com a mãe. Ela tambémhavia me mostrado os melhorespontos de subida. Ninguém eracapaz de se movimentar pelas

árvores como ela.Ergui a vista para Dente Podre,

sabendo que ele tinha merossegundos de vida para viver. Issoamenizou a ferroada de sua bota, aose chocar com meu queixo, e fuierguido e enviado voando para trás,caindo sobre um amontoado emuma moita.

Talvez agora seja um bommomento, Connor, pensei. Atravésdo olhar vitrificado pela dor, fuirecompensado vendo Connor saltarde sua posição, a mão com a lâminadisparar adiante e em seguida seu

aço prateado surgir do interior daboca do primeiro guardadesafortunado. Os outros doisestavam mortos no instante em queme levantei.

— Nova York — disse Connor.— Como assim?— É onde Benjamin está.— Então é onde precisamos estar.

26 de janeiro de 1778

i

Nova York havia mudado desdeminha última visita, para dizer omínimo: tinha pegado fogo. Ogrande incêndio de setembro de1776 começou na taberna FightingCocks, destruíra mais de quinhentascasas e deixara um quarto da cidadequeimado e inabitável. Comoresultado, os ingleses haviamcolocado a cidade sob lei marcial.As casas das pessoas tinham sido

tomadas e entregues a oficiais doExército britânico; as igrejashaviam sido transformadas emprisões, casernas ou enfermarias; eera como se o próprio espírito dacidade tivesse de alguma formaobscurecido. Agora era a bandeirada União que pendia flácida dosmastros nos cumes dos prédios detijolos cor de laranja. E onde, antes,a cidade tinha uma energia e seagitava em torno disso — vidaembaixo de suas abóbadas e seuspórticos e atrás de suas janelas —,agora aquelas mesmas abóbadas

estavam sujas e despedaçadas, e asjanelas, enegrecidas pela fuligem. Avida prosseguia, mas os habitantesmal erguiam a vista da rua. Seusombros estavam caídos, seusmovimentos desanimados.

Em um clima desses, encontrar oparadeiro de Benjamin não foradifícil. Revelou-se que estava emuma cervejaria abandonada na zonaportuária.

— Ao amanhecer, já deveremoster terminado isso — previ, umtanto quanto temerariamente.

— Ótimo — reagiu Connor. —

Gostaria de ter a devoluçãodaqueles suprimentos o quantoantes.

— Claro. Não gostaria de mantê-lo muito tempo longe de sua causaperdida. Venha então, siga-me.

Fomos pelos telhados e,momentos depois, olhávamos asilhueta de Nova York,momentaneamente pasmados comaquela vista, em toda a suadespedaçada glória ferida pelaguerra.

— Diga-me uma coisa — pediuConnor, após alguns momentos. —

Você poderia ter me matado, naprimeira vez em que nosencontramos... O que deteve suamão?

Eu poderia tê-lo deixado morrerna forca, pensei. Poderia termandado Thomas matá-lo na Prisãode Bridwell. O que também conteveminha mão nessas duas ocasiões?Qual era a resposta? Estava ficandovelho? Sentimental? Talvez tivessenostalgia de uma vida que nuncative realmente.

Eu não me importavaespecialmente em compartilhar

nada disso com Connor, contudo e,finalmente, após uma pausa,descartei a pergunta com: —Curiosidade. Alguma outrapergunta?

— O que os Templários buscam?— Ordem — respondi. —

Propósito. Direção. Nada mais doque isso. É o seu pessoal quepretende nos confundir com todaessa conversa sem sentido sobreliberdade. Era uma vez, osAssassinos professavam umobjetivo mais sensato... o da paz.

— Liberdade é paz — insistiu

ele.— Não. É um convite ao caos.

Olhe apenas essa pequena revoluçãoque seus amigos iniciaram. Estivediante do Congresso Continental. Euos ouvi bater os pés e berrar. Tudoem nome da liberdade. Mas éapenas um ruído.

— É por isso que é a favor deCharles Lee?

— Ele entende as necessidadesdesta pretensa nação muito melhordo que os idiotas que afirmamrepresentá-la.

— A mim parece que sua língua

provou uvas azedas — observou ele.— As pessoas fizeram sua escolha...e ela foi Washington.

Lá estava novamente. Eu quase oinvejava, o modo como ele via omundo de uma maneira tãoinequívoca. O mundo dele, ao queparecia, era livre de dúvida.Quando, finalmente, soubesse averdade sobre Washington, o que, semeu plano funcionasse, seria embreve, seu mundo — e não apenasseu mundo, mas sua inteira visão demundo — se despedaçaria. Se euagora lhe invejava a certeza, não

invejava aquilo.— As pessoas não escolheram

nada — suspirei. — Isso foi feitopor um grupo de covardesprivilegiados buscando apenas seenriquecer. Eles se reuniramsecretamente e tomaram umadecisão que os beneficiaria. Podemter embrulhado tudo com belaspalavras, mas isso não faz com queseja verdade. A única diferença,Connor... a única diferença entremim e aqueles que você ajuda... éque não finjo simpatia.

Ele me olhou. Não muito tempo

atrás, disse a mim mesmo queminhas palavras nunca teriam efeitosobre ele, mas, mesmo assim, euestava tentando. E talvez estivesseenganado — talvez o que disseestivesse sendo absorvido.

ii

Na cervejaria, ficou evidente queprecisávamos de um disfarce paraConnor, pois seu manto deAssassino estava um pouco, é,chamativo. Ter um disfarce deu a

ele uma chance de exibir seustalentos novamente e, mais umavez, fui comedido com meu elogio.Quando estávamos com roupasadequadas, saímos em direção aocomplexo, as paredes de tijolosvermelhos assomando sobre nós, asjanelas escuras olhando-nosimplacavelmente. Pelo portão, pudever os barris e as carroças doempreendimento cervejeiro, comotambém homens caminhando de umlado para o outro. Benjamin haviasubstituído a maioria dosTemplários por mercenários sob seu

controle; era a história se repetindo,pensei, minha mente recuando paraEdward Braddock. De algum modo,duvidava disso. Eu tinha pouca féno caráter do meu inimigo naquelesdias.

Tinha pouca fé em qualquer coisanaqueles dias.

— Parem, estranhos! — Umguarda saiu das sombras, agitando aneblina que girava em volta denossos calcanhares. — Estãopisando em propriedade privada. Oque os traz aqui?

Bati na aba do chapéu, para

mostrar meu rosto.— O Pai da Compreensão nos

guia — falei, e o homem pareceudescontrair, embora olhassecautelosamente para Connor.

— Você eu identifico — disse ele—, mas não o selvagem.

— Ele é meu filho — expliquei, efoi... estranho ouvir isso nos meuspróprios lábios.

O guarda, enquanto isso, estudavaConnor cuidadosamente, e, com umolhar de lado, me disse: — Andouprovando os frutos da floresta, hein?

Deixei-o viver. Por enquanto. Em

vez disso, apenas sorri.— Vão então — disse ele, e

passamos por baixo do portãoarqueado e adentramos no complexoda Smith & Company.

Ali, entramos rapidamente emum setor coberto, com uma série deportas que levavam a depósitos eárea de escritórios. Logo comecei atentar arrombar a fechadura daprimeira porta a que chegamos,enquanto Connor vigiava e falava aomesmo tempo.

— Deve ser estranho para vocêdescobrir que eu existia da maneira

como descobriu — comentou.— Na verdade, estou curioso para

saber o que sua mãe disse de mim— retruquei, trabalhando para abrira fechadura. — Com frequênciaimaginei como a vida teria sido seela e eu tivéssemos ficado juntos.— Agindo por instinto, perguntei-lhe: — Como está ela, afinal?

— Morta — disse ele. —Assassinada.

Por Washington, pensei, masnada disse, exceto: — Sinto muitoem ouvir isso.

— É mesmo? Foi feito pelos seus

homens.Agora já tinha aberto a porta,

mas, em vez de entrar, fechei-a evirei o rosto para Connor.

— O quê?— Eu era apenas uma criança,

quando eles foram à procura dosanciãos. Mesmo naquela época,sabia que eram perigosos, por isso,fiquei calado. Charles Lee meagrediu por causa disso, até que euficasse inconsciente.

Então eu estava certo. Charlestinha de fato deixado a marca físicacomo também metafórica do seu

anel Templário em Connor.Não foi difícil deixar o horror

transparecer em meu rosto, emboraeu fingisse estar chocado, quandoele continuou: — Quando acordei,encontrei minha aldeia em chamas.Seus homens já tinham sumido,como também qualquer esperançade que minha mãe tivessesobrevivido.

Agora — agora era o momento detentar convencê-lo da verdade.

— Impossível — exclamei. — Eunão dei tal ordem. Aliás, falei ocontrário... disse a eles que

desistissem de procurar o sítioprecursor. Deveríamos nosconcentrar em atividades maispráticas...

Connor pareceu duvidoso, masdeu de ombros.

— Não importa. Já faz muitotempo.

Ah, mas importava, importavasim.

— Mas você cresceu e passoutoda a vida acreditando que eu... seupróprio pai... fui responsável poressa atrocidade. Eu não tive nada aver com isso.

— Talvez você fale a verdade.Talvez não. Como vou saber?

iii

Silenciosamente, entramos nosdepósitos, onde barris empilhadospareciam expulsar qualquer luz e,não muito distante, havia umafigura de costas para nós. O únicosom era o suave arranhar que elefazia ao escrever em um livro-caixaque segurava. Eu o reconheciimediatamente, é claro, e inspirei

bem fundo, antes de chamá-lo.— Benjamin Church — anunciei

—, você é acusado de trair a Ordemdos Templários e abandonar nossosprincípios na procura de ganhopessoal. Por causa de seus crimes,eu o sentencio à morte.

Benjamin se virou. Só que nãoera Benjamin. Era uma isca — quesubitamente gritou “Agora, agora!”,e o local se encheu de homens quesurgiram correndo de esconderijosem nossa direção, portando pistolase espadas.

— Chegaram tarde demais —

disse a isca. — Church e a carga jáestão longe. E receio que vocês nãoficarão em condições de segui-los.

Ficamos parados, os homensreunidos à nossa frente, e agradeci aDeus por Achilles e seutreinamento, porque nós doisestávamos pensando a mesma coisa.Que era: quando enfrentar umaforça superior, arranque dela oelemento surpresa. E ainda:transforme a defesa em ataque.

E foi o que fizemos. Atacamos.Com um rápido olhar de relance deum para o outro, liberamos nossas

lâminas, ambas saltaram à frente,ambas se enfiaram no guarda maispróximo, cujos gritos ecoaram emvolta das paredes de tijolos dodepósito. Dei um chute e mandeium dos pistoleiros escorregando devolta e batendo a cabeça contra umcaixote. Em seguida estava em cimadele, meus joelhos sobre seu peito,enfiando a lâmina através do rosto epara dentro do cérebro.

Virei a tempo de ver Connorgirar, mantendo-se abaixado e, aomesmo tempo, circundar a mão coma lâmina e abrir as barrigas de dois

guardas desafortunados, que caíram,segurando as barrigas abertas,ambos já mortos embora ainda nãosoubessem. Um mosquete foidisparado, ouvi o canto no ar, epercebi que a bala acabara de meerrar, mas fiz o atirador pagar com avida. Dois homens vieram na minhadireção, balançando-se loucamentee, ao derrubá-los, agradeci às nossasestrelas da sorte por Benjamin usarmercenários em vez de Templários,os quais não teriam sido tãorapidamente derrotados.

E assim foi, uma luta breve e

brutal até sobrar apenas a isca, eConnor assomar sobre ele, quetremia como uma criança medrosasobre o chão de tijolos agoraescorregadio com o sangue.

Liquidei uns moribundos e depoisfui na direção de Connor, queexigia: — Onde está Church?

— Eu digo — choramingou a isca—, digo o que quiser. Apenasprometa me deixar vivo.

Connor olhou para mim, para verse concordávamos ou não, e ajudou-o a ficar de pé. Com um olharnervoso de um para outro de nós, a

isca continuou: — Ele partiu ontempara a Martinica. Comproupassagem em uma chalupa mercantechamada Welcome. Metade de seuporão está carregado comsuprimentos que ele roubou dospatriotas. É tudo que eu sei. Juro.

Indo para trás dele, enfiei minhalâmina em sua medula espinhal eele olhou com pálido espanto aponta suja de sangue emergir de seupeito.

— Você prometeu... — disse ele.— E ele cumpriu com sua palavra

— falei friamente, e olhei para

Connor, quase desafiando-o a mecontradizer. — Vamos —acrescentei, no momento em queum trio de atiradores correram nobalcão acima de nós com umressoar de botas sobre a madeira,apoiaram a coronha do mosquete noombro e abriram fogo. Não contranós, mas para barris próximos, osquais, tarde demais, percebi queestavam cheios de pólvora.

Tive tempo apenas de empurrarConnor para trás de alguns tonéis decerveja, quando o primeiro dosbarris voou, seguido pelos que

estavam à sua volta, cada qualexplodindo com um trovejarensurdecedor que parecia dobrar oar e parar o tempo — umadetonação tão violenta que, quandoabri os olhos e tirei as mãos dosouvidos, descobri, para minhasurpresa, que o depósito continuavade pé em volta de nós. Cada homemno local havia se lançado no chão oufora jogado ali pela força daexplosão. Mas os guardas estavamse erguendo, alcançando seusmosquetes e, ainda surdos, gritandouns para os outros, enquanto

espremiam os olhos à nossa procuraatravés da poeira. Chamas lambiamos barris; caixotes pegavam fogo.Não muito distante, um guardacorria pelo térreo do depósito, comas roupas e o cabelo incendiados,berrando, o rosto se desfazendo,então caiu de joelhos e morreu coma cara no chão de pedra. O fogovoraz encontrou ali perto algumenchimento de caixote, que seincendiou em um instante. Por todaa nossa volta, um inferno.

Balas de mosquetes começaram azunir em volta de nós. Derrubamos

dois espadachins em nosso caminhopara a escada que levava ao pórtico,em seguida golpeamos nossocaminho por entre um pelotão dequatro mosqueteiros. O fogo erguia-se rapidamente — agora até mesmoos guardas começavam a fugir —,então corremos para o nívelseguinte, subindo, subindo, até,finalmente, chegarmos ao sótão dodepósito da cervejaria.

Nossos agressores estavam atrásde nós, mas não as chamas.Encontrando uma janela, pudemosver água abaixo de nós, e olhei em

volta por uma saída. Connor meagarrou e me impulsionou nadireção da janela. Estraçalhamos ovidro e caímos na água lá embaixoantes mesmo que eu tivesse umachance de protestar.

7 de março de 1778

i

Não havia hipótese de que eudeixasse Benjamin escapar. Mesmotendo de tolerar a vida no Aquilapor quase um mês, preso comRobert Faulkner, capitão do navio eamigo de Connor, entre outros,caçando a chalupa de Benjamin, quepermanecera fora de nosso alcance,desviando-se de ataques com

canhão, captando vislumbres deleno convés do navio, seu rostoescarnecedor... De modo algum iadeixá-lo escapar. Principalmente aochegarmos tão perto, nas águaspróximas ao Golfo do México, oAquila finalmente correndo lado alado da escuna.

E foi por isso que tomei o lemede Connor, desloquei-oviolentamente para estibordo ejoguei o navio velozmente nadireção da chalupa. Ninguémesperava que isso acontecesse. Nemmesmo a tripulação do navio dele.

Nem os homens do Aquila, nemConnor ou Robert — apenas eu; enão tinha certeza se faria aquilo atéfazer, e qualquer membro datripulação que não estava sesegurando em alguma coisa foijogado violentamente para o lado, ea proa do Aquila enfiou-se em umângulo do lado bombordo dachalupa, arrombando e lascando ocasco. Talvez tivesse sidoirrefletido da minha parte. Talvezeu devesse a Connor — ecertamente a Faulkner — umadesculpa pelo dano causado ao

navio deles.Mas não podia deixá-lo escapar.

ii

Por um momento, houve umsilêncio atordoado, apenas o somdos destroços do navio batendocontra o mar em volta, e o gemido eo rangido de madeira quebrada edestruída. As velas balançavamacima de nós em uma brisa suave,mas nenhum dos dois navios semexia, como se ambos estivessem

imobilizados pelo choque doimpacto.

Então, do mesmo modorepentino, um grito surgiu quando atripulação de ambos os naviosrecuperou os sentidos. Eu estavadiante de Connor e já disparava paraa proa do Aquila, tomando impulsopara o convés da escuna deBenjamin, onde caí sobre o chão demadeira do convés, com a lâminaestendida, e matei o primeirotripulante que levantou uma armana minha direção, perfurando-o esacudindo seu corpo contorcido

borda fora.Avistando a escotilha, corri para

lá, arrastei para fora um marinheiroque tentava escapar e enfiei alâmina em seu peito antes de desceros degraus e, com um último olharpara a devastação que eu causara,enquanto os dois grandes navios seprendiam e começavam lentamentea girar no mar, fechei com força aescotilha atrás de mim.

De cima, vinha o ribombar de péssobre o convés, os gritosemudecidos e as detonações dabatalha e baque surdo de corpos

atingindo a madeira. Abaixo doconvés, havia um estranho,depressivo e quase sinistro silêncio.Entretanto, de mais adiante, percebi,vinha o chapinhar e o gotejar queme disseram que estava entrandoágua na escuna. Agarrei um suportede madeira, quando ela se inclinourapidamente e, em algum lugar, ogotejar tornou-se um fluxoconstante. Por quanto tempo o barcopermaneceria flutuando? Fiqueiimaginando.

Nesse meio-tempo, vi o queConnor logo descobriria: os

suprimentos pelos quais perdemostanto tempo perseguindo nãoexistiam — ou pelo menos nãonaquele barco.

Enquanto absorvia isso, ouvi umruído e virei-me para ver BenjaminChurch segurando com as duasmãos uma pistola na minha direção,o olho meio fechado ao longo damira.

— Alô, Haytham — rosnou, eapertou o gatilho.

Ele era bom. Eu sabia. Foi porisso que pressionou imediatamenteo gatilho, para me abater enquanto

tinha o elemento surpresa; e por queele não mirou diretamente em cimade mim, mas para um pontoligeiramente à minha direita?Porque sou um guerreiro destro enaturalmente mergulharia para omeu lado mais forte.

Mas é claro que eu sabia disso,porque o treinara. E seu tiro atingiuinofensivamente o casco, quandomergulhei, não para a direita, maspara a esquerda, rolei e me levanteie lancei-me sobre ele antes queconseguisse desembainhar a espada.Com um punhado de sua camisa em

minha mão, agarrei a pistola ejoguei-a para longe.

— Nós tínhamos um sonho,Benjamin — gritei em seu rosto —,um sonho que você procuroudestruir. E, por causa disso, meuamigo caído, você pagará.

Dei-lhe uma joelhada na virilha.Quando ele dobrou o corpo, arfandode dor, investi o punho em seuabdômen, então dei em seguida umsoco em seu queixo, forte o bastantepara mandar dois dentesensanguentados deslizando ao longodo convés.

Larguei-o, e ele caiu onde amadeira já estava úmida, seu rostosalpicado por um jorro de águasalgada que chegava. Novamente, onavio balançou, mas, no momento,não me importei. Quando Benjamintentou ficar de quatro para selevantar, acionei minha bota,chutando para fora qualquer fôlegoque ainda lhe restava. Em seguida,peguei um pedaço de corda e opuxei para colocá-lo de pé,empurrei-o contra um barril e entãoo amarrei em volta dele, apertandobem. Sua cabeça caiu para a frente,

fileiras de sangue, saliva e muconasal caindo lentamente no chãoabaixo. Recuei, agarrei seu cabelo eolhei-o nos olhos, desferi um socoem seu rosto e ouvi o triturar de seunariz quebrando, depois recueinovamente, sacudindo o sangue dosnós dos dedos.

— Chega! — berrou Connor atrásde mim, e virei-me para vê-lo meolhando, depois para Benjamin, umaexpressão de repugnância no rosto.

— Nós viemos aqui por ummotivo... — disse ele.

Balancei a cabeça.

— Diferentes motivos, meparece.

Mas Connor me empurrou ecaminhou pela água, agora na alturado tornozelo, até Benjamin, quefitou-o desafiadoramente com osolhos machucados e vermelhos.

— Onde estão os suprimentos quevocê roubou? — exigiu Connor.

Benjamin cuspiu.— Vá para o inferno. — Então,

incrivelmente, começou a cantaruma música patriótica inglesa,“Rule Britannia”.

Fui à frente.

— Cale sua boca, Church.Isso não o deteve. Continuou

cantando.— Connor — falei —, tire dele o

que precisa, e vamos acabar comisso.

Finalmente, Connor seaproximou, a lâmina encaixada, ecolocou-a na garganta de Benjamin.

— Vou perguntar outra vez —disse Connor: — Onde está suacarga?

Benjamin olhou para ele epestanejou. Por um momento,pensei que seu ato seguinte seria

cuspir em Connor ou xingá-lo, mas,em vez disso, começou a falar.

— Em uma ilha distante,esperando o recolhimento. Mas nãotem direito a ela. Não é sua.

— Não, não é minha —concordou Connor. — Aquelessuprimentos são para homens emulheres que acreditam em algomaior do que eles mesmos, quelutam e morrem para que um diapossam viver livres de tiraniascomo a sua.

Benjamin sorriu tristemente.— Esses são os mesmos homens

e mulheres que lutam commosquetes forjados com aço inglês?Que envolvem seus ferimentos combandagens semeadas por mãosinglesas? Que conveniente para elesque façamos todo o trabalho. Elescolhem as recompensas.

— Você inventa uma históriapara desculpar seus crimes. Comose você fosse o inocente e eles osladrões — argumentou Connor.

— É tudo uma questão deperspectiva. Não há um únicocaminho pela vida que seja certo ejusto e não cause dano. Você

acredita realmente que a Coroa nãotem um motivo? Nenhum direito dese sentir traída? Você deveria saberdisso, dedicado como é emcombater os Templários... quetambém veem seu trabalho comojusto. Pense nisso, na próxima vezque insistir que somente o seutrabalho beneficia o bem maior. Seuinimigo vai pedir para discordar... enão sem motivo.

— Suas palavras podem sersinceras — sussurrou Connor —,mas isso não as torna verdadeiras.

E liquidou-o.

— Fez muito bem — observei,enquanto o queixo de Benjamin caíasobre o peito e seu sangue seesparramava na água quecontinuava a subir. — A morte deleé uma bênção para nós dois. Vamos.Suponho que queira minha ajudapara recuperar tudo da ilha...

16 de junho de 1778

i

Passaram-se meses desde que eu ovira pela última vez, mas não possonegar que penso nele comfrequência. Quando o faço, penso:que esperança existe para nós? Eu,Templário — um Templário forjadono cadinho da traição, mas, aindasim, Templário —, e ele, umAssassino, criado pela carnificinados Templários.

Uma vez, muitos anos atrás,

sonhei um dia unir Assassinos eTemplários, porém, na ocasião, euera um homem mais jovem e maisidealista. O mundo já havia memostrado sua verdadeira face. E elaera implacável, cruel e impiedosa,bárbara e brutal. Não havia lugarpara sonhos.

Contudo, ele veio a mimnovamente e, embora nada dissesse— pelo menos não até aqui —,fiquei imaginando se ainda havia oidealismo que antes eu espreitaraatrás daqueles olhos, e foi o que otrouxe mais uma vez à minha porta

em Nova York, talvez à procura derespostas, ou querendo pôr um fimem alguma dúvida que o perturbava.

Talvez eu estivesse errado.Talvez houvesse uma incerteza que,afinal de contas, habitava o interiordaquela jovem alma.

Nova York continuava controladapelos casacos vermelhos, pelotõesdeles nas ruas. Anos tinham sepassado, e ninguém ainda havia sidopreso como responsável peloincêndio que fizera a cidademergulhar em uma depressãoencardida, suja de fuligem. Partes

dela continuavam inabitáveis. A leimarcial seguia vigorando, ocontrole dos casacos vermelhos erasevero, e as pessoas estavam maisressentidas do que nunca. Comoestrangeiro, estudei os dois gruposde pessoas, os habitantes tiranizadoslançando olhares raivosos para ossoldados embrutecidos,indisciplinados. Eu os observavacom olhos preconceituosos. E,zelosamente, continuei. Agia paratentar ajudar a vencer aquela guerra,acabar com a ocupação, encontrarpaz.

Estava interrogando um de meusinformantes, um infeliz chamadoTwitch, o Abelhudo — por causa dealgo que havia fuçado —, quandoavistei Connor com o canto do olho.Ergui a mão para detê-lo, enquantocontinuava ouvindo Twitch, eimaginava o que Connor poderiaquerer comigo. Que assunto poderiater com o homem que ele acreditavater dado a ordem para matar suamãe?

— Se quisermos pôr um fimnisso, precisamos saber o que oslegalistas estão planejando — disse

ao meu contato. Connor continuavapor ali, ouvindo, não que issoimportasse.

— Eu tenho tentado — respondeuTwitch, enquanto suas narinasflamejavam e os olhos estavamdirecionados para Connor —, masagora os próprios soldados nãoestão falando nada: esperam apenasordens de cima.

— Então continue indagando.Venha me ver quando tiver algo quevalha a pena compartilhar.

Twitch concordou com a cabeça,retirou-se furtivamente e eu inspirei

fundo para enfrentar Connor. Porum momento, nos observamos, eolhei-o de cima a baixo, seu mantode Assassino de algum modo emdesacordo com o jovem índiodebaixo dele, o comprido cabelonegro, aqueles olhos penetrantes —os olhos de Ziio. Fiquei imaginandoo que haveria por trás deles.

Acima de nós, um bando depássaros se acomodava na beiradade um prédio, crocitandoruidosamente. Nas proximidades,uma patrulha de casacos vermelhosvadiava junto a uma carroça para

admirar lavadeiras que passavam,fazendo sugestões lascivas ereagindo com gestos ameaçadores aqualquer olhar e som desaprovador.

— Estamos tão perto da vitória— falei para Connor, segurando seubraço e conduzindo-o para maisadiante na rua, longe dos casacosvermelhos. — Mais alguns ataquesbem localizados, e poderemosencerrar a guerra civil e nos livrarda Coroa.

Um quase sorriso nos cantos desua boca denunciaram certasatisfação.

— O que você pretende?— No momento, nada... já que

estamos completamente no escuro.— Pensei que os Templários

tinham olhos e ouvidos por toda aparte — comentou ele, com apenasuma pitada de humor mordaz.Exatamente como sua mãe.

— Nós tínhamos. Até vocêscomeçarem a liquidá-los.

Ele sorriu.— Seu contato disse que eram

ordens de cima. Elas nos dizemexatamente o que precisamos saber:ir no encalço dos outros

comandantes legalistas.— Os soldados respondem aos

artilheiros — falei. — Os artilheirosaos comandantes, o que significa...que avançamos cadeia acima.

Ergui a vista. Não muito longe, oscasacos vermelhos continuavamluxuriosos, decepcionando seuuniforme, sua bandeira e o rei Jorge.Os artilheiros eram o elo entre opessoal de destaque do exército e ainfantaria, e deveriam manter oscasacos vermelhos em xeque, evitarque importunassem uma populaçãojá hostil, mas raramente mostravam

a cara, apenas quando haviaproblema de verdade nas ruas.Como, digamos, se alguém matasseum casaco vermelho. Ou dois.

De dentro do manto, saqueiminha pistola e a apontei para ooutro lado da rua. Com o canto doolho, vi Connor ficar boquiabertoquando mirei o grupo insubordinadode casacos vermelhos junto àcarroça. Escolhi aquele que, nomesmo instante, fazia uma sugestãoimprópria a uma mulher quepassava com a saia zunindo e acabeça abaixada, enrubescendo

debaixo da touca. E apertei ogatilho.

O estampido da minha armarompeu o dia, e o casaco vermelhocambaleou para trás, com umburaco do tamanho de uma moedaentre os olhos já começando a vazarsangue vermelho-escuro, enquantoseu mosquete caía e ele desabavapesadamente de costas dentro dacarroça e lá permanecia imóvel.

Por um momento, os outroscasacos vermelhos ficaramchocados demais para esboçarqualquer reação, as cabeças girando

na minha direção, ao tentaremlocalizar a origem do disparo,enquanto puxavam seus rifles doombro.

Comecei a atravessar a rua.— O que está fazendo? — gritou

Connor atrás de mim.— Mate bastante, e os atiradores

vão aparecer — falei. — Eles vãonos levar até aqueles que são osencarregados...

E um dos casacos vermelhos sevirou para mim e veio me golpearcom sua baioneta, varri a lâminapela sua frente, cortando através de

seus cinturões brancos cruzados suatúnica e sua barriga. Golpeeiimediatamente o segundo, enquantooutro, que tentou recuar e encontrarespaço para erguer sua arma eatirar, recuou direto para Connor e,no instante seguinte, estavaescorregando para fora de sualâmina.

A batalha tinha acabado, e a rua,antes movimentada, estava vazia deuma hora para outra. No mesmoinstante, ouvi sinos e pisquei.

— Os atiradores saíram,exatamente como eu disse que

fariam.Era uma questão de pegar um

deles, uma tarefa que fiquei felizem deixar para Connor, e ele nãome decepcionou. Em menos de umahora, tínhamos uma carta, e,enquanto grupos de atiradores ecasacos vermelhos corriam de umlado a outro das ruas, furiosamenteprocurando os dois Assassinos —Assassinos, estou lhes dizendo. Elesusaram a lâmina dos Hashashin —que haviam, tão impiedosamente,eliminado uma das patrulhas deles,subimos para os telhados, onde nos

sentamos e a lemos.— A carta está codificada —

observou Connor.— Não se preocupe — avisei. —

Conheço o código. Afinal, é umainvenção dos Templários.

Eu a li e depois expliquei.— O comando britânico está em

desordem. Os irmãos Howe sedemitiram e Cornwallis e Clintondeixaram a cidade. A liderança queresta convocou uma reunião nasruínas da Igreja da Trindade. É paralá que devemos ir.

ii

A Igreja da Trindade ficava nocruzamento da Wall Street com aBroadway. Ou, deveria dizer, o querestou da igreja no cruzamento daWall Street com a Broadway. Elahavia queimado bastante durante ogrande incêndio de setembro de1776; queimara tanto, aliás, que osingleses não se preocuparam emtentar reformá-la para usá-la comocaserna, ou para aprisionarpatriotas. Em vez disso, construíramuma cerca e a usaram para ocasiões

como aquelas — a reunião decomandantes na qual Connor e eupretendíamos entrar como penetras.

A Wall Street e a Broadwayestavam às escuras. Os acendedoresde lampiões não iam ali porque nãohavia lampiões para acender, pelomenos nenhum funcionando direito.Como tudo em um raio de umquilômetro e meio a partir da igreja,eles estavam enegrecidos e cobertosde fuligem, os vidros quebrados. E oque iluminariam, afinal? As janelasincineradas e quebradas dos prédiosdas redondezas? Ruínas vazias de

pedra e madeira adequadas apenaspara habitação de cães vadios eanimais daninhos.

Acima de tudo assomava opináculo da Trindade, e foi para láque seguimos, escalando uma dasparedes remanescentes da igrejapara ocupar uma posição. Aoescalarmos, percebi que aqueleprédio me lembrava uma versãoampliada de minha casa em QueenAnne’s Square, como ela ficaradepois do incêndio. E, enquanto nosmantínhamos agachados nassacadas, esperando a chegada dos

casacos vermelhos, lembrei-me dodia em que retornei à casa comReginald e como ela aparentava.Assim como a igreja, seu telhadofora consumido pelo fogo. Assimcomo a igreja, era uma casca, umasombra de seu eu anterior. Acima denós, as estrelas cintilavam no céu, eolhei-as por um momento atravésdo teto aberto, até um cotovelo domeu lado me tirar do devaneio eConnor apontar abaixo para ondetrês oficiais e casacos vermelhosseguiam ao longo do entulhodeserto da Wall Street em direção à

igreja. Ao se aproximarem, doishomens adiante do pelotão puxavamuma carroça e penduravamlanternas nos galhos pretos equebradiços das árvores,iluminando o caminho. Chegaram àigreja e ficamos olhando para baixo,enquanto penduravam maislanternas. Eles se movimentavamrapidamente entre as colunastruncadas da igreja, onde ervasdaninhas, musgo e capim tinhamcomeçado a crescer, a naturezareivindicando para si as ruínas, ecolocaram lanternas na pia batismal

e no púlpito, depois se afastarampara o lado quando os delegadosentraram a passos largos: trêscomandantes e um pelotão desoldados.

A seguir, forçamos os ouvidospara ouvir a conversa e não tivemossorte. Em vez disso, contei osguardas, havia doze, mas não acheique eram muitos.

— Eles não estão chegando alugar algum — sussurrei paraConnor. — Não vamos descobrirnada, observando daqui.

— O que sugere? — retrucou ele.

— Que desçamos para exigirrespostas?

Olhei para ele. Sorri.— Isso mesmo — falei.E, no instante seguinte, estava

descendo até chegar bem perto esaltei para o chão, surpreendendo osdois guardas da retaguarda, quemorreram com a boca aberta naforma de um O.

— Emboscada! — surgiu o grito,quando cravei mais dois casacosvermelhos. De cima, ouvi Connorpraguejar, ao mesmo tempo quesaltava de onde estava para se juntar

a mim.Eu tinha razão. Não eram muitos.

Os casacos vermelhos, comosempre, confiavam demais emmosquetes e baionetas. Eficientesno campo de batalhas, talvez, masinúteis no combate em contatodireto, que era onde Connor e eu nosdistinguíamos. Àquela altura,lutávamos muito bem juntos, quaseformando uma parceria. Nãodemorou muito para as estatuetascobertas de musgo da igrejaincendiada cintilarem com o sanguefresco dos casacos vermelhos, os

doze guardas mortos, e restandoapenas os três oficiais aterrorizados,encolhidos, com os lábios semovendo em uma prece, enquantose preparavam para morrer.

Eu tinha algo mais em mente —uma viagem ao Forte George, paraser exato.

iii

O Forte George ficava no lado maismeridional de Manhattan. Commais de 150 anos, ele oferecia,

vendo-se do mar, uma vasta silhuetade pináculos, torres de vigia ecompridos prédios de casernas quepareciam percorrer todo ocomprimento do promontório. Pordentro, as altas muralhas eramextensões de praças de treinamentocercando os altos dormitórios eprédios administrativos, tudopesadamente defendido efortificado. Um lugar perfeito paraos Templários montarem sua base.Um lugar perfeito para levarmos ostrês comandantes.

— O que os ingleses estão

planejando? — perguntei aoprimeiro, após amarrá-lo a umacadeira na sala de interrogatóriosnas profundezas das entranhas doprédio do North End, onde o cheirode umidade era penetrante e onde,se você ouvisse atentamente,poderia escutar o arranhar e o roerdos ratos.

— Por que eu deveria dizer? —desdenhou ele.

— Porque vou matar você se nãodisser.

Seus braços estavam amarrados,mas indicou a sala de

interrogatórios com o queixo.— Você me matará, se eu disser.Sorri.— Muitos anos atrás, conheci um

homem chamado Cutter, oTalhador, um especialista emtortura e em aplicação de dor, queera capaz de manter sua vítima vivapor dias sem fim, mas sofrendomuita dor, com apenas... — Acioneio mecanismo da lâmina, e elaapareceu, brilhando cruelmente soba luz bruxuleante da tocha.

Ele olhou para a lâmina.— Você me promete uma morte

rápida se eu disser?— Tem minha palavra.E ele disse, e mantive minha

palavra. Quando tudo acabou, saípara a passagem do lado de fora,onde ignorei o olhar inquisitivo deConnor e peguei o segundoprisioneiro. De volta à cela,amarrei-o à cadeira e observei seusolhos irem para o corpo do primeirohomem.

— Seu amigo recusou-se a medizer o que eu queria saber —expliquei —, e foi por isso quecortei sua garganta. Você está

preparado para me dizer o que euquero saber?

Com os olhos arregalados, eleengoliu em seco.

— Olhe, seja o que for, não possodizer... nem eu mesmo sei. Talvez ocomandante...

— Ah, você não é o homemencarregado? — falei alegremente,e acionei minha lâmina.

— Espere um minuto... — pediu,enquanto eu ia para trás dele. —Tem algo que eu sei...

Parei.— Prossiga...

Ele me disse e, quando acabou,agradeci-lhe e enfiei a lâmina emsua garganta. Quando ele morreu,percebi que minha sensação não foia de um fogo justo de alguém queexecuta atos repulsivos em nome deum bem maior, e sim de umaexausta inevitabilidade. Muitosanos atrás, meu pai me ensinarasobre piedade, sobre clemência.Agora eu abatia prisioneiros comogado. Assim foi quão corrupto eume tornara.

— O que está havendo lá? —perguntou Connor, desconfiado,

quando voltei à passagem onde elevigiava o terceiro prisioneiro.

— Esse aí é o comandante.Traga-o.

Momentos depois, a porta da salade interrogatório fechou-se com umbaque surdo atrás de nós, e, por ummomento, o único som no local erao de sangue pingando. Ao ver oscorpos jogados em um canto dacela, o comandante se debateu, mas,com a mão em seu ombro,empurrei-o para a cadeira, agoragrudenta de sangue, amarrei-o a ela,depois fui para sua frente e

movimentei o dedo para liberar alâmina oculta. Ela ressoou com umleve estalido na cela.

Os olhos do oficial foram para elae depois para mim. Ele tentavamostrar uma expressão corajosa,mas não dava para disfarçar otremor do lábio inferior.

— O que os ingleses estãoplanejando? — perguntei.

Os olhos de Connor estavam emmim. Os olhos do prisioneiroestavam em mim. Como elepermaneceu em silêncio, erguiligeiramente a lâmina para que

refletisse o bruxulear da luz datocha. Novamente, seus olhos sefixaram nela e, então, cedeu...

— Sair... sair da Filadélfia.Aquela cidade está acabada. NovaYork é a chave. Eles vão dobrarnosso número... expulsar osrebeldes.

— Quando começam? —indaguei.

— Daqui a dois dias.— Dezoito de junho — disse

Connor a meu lado. — Precisoalertar Washington.

— Viu? — falei para o

comandante. — Não foi tão difícilassim, foi?

— Eu lhe disse tudo. Agora,deixe-me ir — pediu, mas eu nãoestava disposto a ser clemente. Fuipara trás dele e, enquanto Connorobservava, abri sua garganta.

Diante do olhar horrorizado dorapaz, falei: — E os outros doisdisseram a mesma coisa. Deve serverdade.

Quando Connor olhou para mimfoi com repugnância.

— Você o matou... Matou todosos três. Por quê?

— Eles teriam alertado oslegalistas — respondisimplesmente.

— Você poderia tê-los mantidopresos até a luta terminar.

— Não muito longe daqui, fica aBaía de Wallabout — expliquei —,onde o navio-prisão HMS Jerseyestá ancorado, um navio apodrecidono qual prisioneiros de guerrapatriotas estão morrendo aosmilhares, enterrados em covas rasasnas margens ou simplesmentejogados ao mar. É assim que osingleses tratam os prisioneiros

deles, Connor.Ele reconheceu a questão, mas

contrapôs: — E é por isso queprecisamos nos livrar da tiraniadeles.

— Ah, tirania. Não esqueça queseu líder George Washingtonpoderia salvar esses homens nosnavios-prisão, se estivesse dispostoa isso. Mas não quer trocar soldadosingleses capturados por presosamericanos, e, por causa disso, osprisioneiros de guerra americanossão sentenciados a apodrecer emnavios-prisão da Baía de Wallabout.

É assim que age seu herói GeorgeWashington. Do modo como querque termine a revolução, Connor,pode ter certeza de que são oshomens com riquezas e terras queserão beneficiados. Os escravos, ospobres, os soldados do exército...esses continuarão sendo largadospara apodrecer.

— George é diferente — alegou,mas, sim, agora havia um tom dedúvida em sua voz.

— Em breve, verá sua verdadeiraface, Connor. Ela vai se revelar e,quando isso acontecer, poderá tomar

sua decisão. Você poderá julgá-lo.

17 de junho de 1778

i

Embora tivesse ouvido falar muitodele, nunca tinha visto o Vale Forgecom meus próprios olhos, e foi ali,esta manhã, onde me encontrei.

As coisas haviam melhoradovisivelmente, isso era certo. A nevese fora; o sol saiu. Enquantocaminhávamos, avistei um pelotãocom a marcha sendo comandada porum homem com sotaque prussiano,o qual, se não estava muito

enganado, era o famoso barãoFriedrich von Steuben, chefe doEstado-Maior de Washington, quedesempenhou seu papel em forçarseu exército a entrar em forma. E,de fato, conseguira. Onde antes oshomens tinham carecido de moral edisciplina, tinham sofrido dedoenças e de má nutrição, agora oacampamento estava repleto desoldados saudáveis e bem-alimentados, que marchavam comum vigoroso tinir de armas epolvorinhos, uma pressa e umamotivação em seu passo. Em meio a

eles estavam os seguidores civis quecarregavam cestos com suprimentose roupa lavada, ou bules e chaleirasfumegantes para as fogueiras. Atémesmo os cachorros que iam atrás ebrincavam às margens doacampamento pareciam fazer issocom energia e vigor renovados. Ali,me dei conta, era onde aindependência poderia nascer: comespírito, cooperação e firmeza.

Contudo, enquanto Connor e eucaminhávamos pelo acampamento,ocorreu-me que fora em grandeparte devido aos esforços de

Assassinos e Templários que oespírito do acampamento haviamelhorado. Tínhamos garantido ossuprimentos e evitado mais roubos,e fui informado de que Connor derauma mão em garantir a segurançade Friedrich von Steuben. O quefizera seu glorioso chefe GeorgeWashington, exceto conduzi-los, deprimeira, àquela confusão?

Mesmo assim, porém,continuavam a acreditar nele.

Mais motivo para que fosseexposta sua falsidade. Mais motivopara que Connor visse sua

verdadeira face.— Deveríamos compartilhar o

que sabemos com Lee, e não comWashington... — sugeri de maneirairritada, enquanto caminhávamos.

— Você parece pensar que eu ofavoreço — retrucou Connor. Suaguarda estava baixa e o cabelonegro reluzia ao sol. Ali, longe dacidade, era como se seu lado nativotivesse aflorado. — Mas meuinimigo é uma noção, e não umanação. É errado forçar obediência...seja à Coroa britânica ou à CruzTemplária. E espero que, com o

tempo, os legalistas também vejamisso, pois são igualmente vítimas.

Balancei a cabeça.— Você se opõe à tirania. À

injustiça. Mas esses são sintomas,filho. A verdadeira causa é afraqueza humana. Por que vocêpensa que insisto em tentar lhemostrar o erro dos seus modos?

— Sim, você tem falado muito.Mas não tem me mostrado nada.

Não, pensei, porque você nãoescuta a verdade quando ela sai daminha boca, escuta? Você precisaouvi-la do próprio homem que

idolatra. Precisa ouvi-la deWashington.

ii

Em uma cabana de madeira,encontramos o líder, que estavacuidando da correspondência, e,passando pela guarda da entrada,fechamos a porta contra o alarido doacampamento, abafando as ordensdo sargento instrutor, o constanteretinir de utensílios da cozinha, orodar das carroças.

Ele ergueu a vista, sorrindo eassentindo para Connor, sentindo-setão completamente seguro em suapresença que parecia feliz pelosguardas permanecerem do lado defora, e me lançando um olhar maisfrio, avaliador, antes de erguer amão e voltar à sua papelada.Molhou a pena no tinteiro e,enquanto esperávamospacientemente pela nossa audiência,assinou algo com um floreio.Devolveu a pena ao tinteiro,enxugou o documento com o mata-borrão, então se levantou, deu a

volta na escrivaninha e veio noscumprimentar, com maiscordialidade para Connor do quepara mim.

— O que o traz aqui —perguntou.

E, enquanto os dois amigos seabraçavam, descobri-me junto àescrivaninha de Washington.Mantendo os olhos nos dois, recueium pouco e lancei o olhar sobre otampo da mesa, procurando algumacoisa, qualquer coisa, que pudesseusar como prova em meutestemunho contra ele.

— Os ingleses chamaram seushomens de volta da Filadélfia —dizia Connor. — Vão marchar paraNova York.

Washington assentiu gravemente.Embora os ingleses dominassemNova York, os rebeldes aindacontrolavam partes da cidade, quepermanecia essencial à guerra. E, seconseguissem obter seu controle deuma vez por todas, os inglesesganhariam uma vantagemsignificativa.

— Muito bem — disseWashington, cuja incursão através

do rio Delaware para retomar terrasem Nova Jersey já havia sido umdos grandes pontos decisivos daguerra —, vou transferir forças paraMonmouth. Se conseguirmosaniquilá-los, teremos finalmentevirado a maré.

Enquanto eles conversavam, eutentava ler o documento queWashington acabara de assinar.Alcancei-o para movimentá-lo deleve com a ponta dos dedos, demodo a enxergar o papel com maisclareza. Então, com uma vibraçãosilenciosa, triunfante, apanhei-o e o

ergui para que ambos vissem.— E o que é isto?Interrompido, Washington virou-

se e viu o que eu tinha na mão.— Correspondência particular —

indignou-se e avançou para pegá-lade volta, antes que eu a colocasse delado e saísse de trás daescrivaninha.

— Tenho certeza que é. Gostariade saber o que diz, Connor?

Confusão e lealdades dilaceradasnublaram suas feições. A boca semovimentou, mas não disse nada, eos olhos dispararam de mim para

Washington, enquanto euprosseguia: — Parece que seuquerido amigo acaba de ordenar umataque à sua aldeia. Embora“ataque” deva ser um termoamenizado. Diga a Connor,comandante.

Indignado, Washingtonrespondeu: — Tivemos relatos daexistência de nativos aliados agindocom os ingleses. Pedi aos meushomens para colocarem um fimnisso.

— Queimando suas aldeias esalgando as terras. Causando seu

extermínio, de acordo com estaordem.

Agora era a minha chance decontar a verdade a Connor.

— E essa também não é aprimeira vez. — Olhei paraWashington. — Diga o que você fez14 anos atrás.

Por um momento, nada aconteceualém de um silêncio tenso nacabana. De fora, o plim-plom dascozinhas, o suave matraquear dascarroças entrando e saindo doacampamento, o bramidoretumbante do sargento instrutor, o

triturar ritmado de botasmarchando. Enquanto, dentro, asmaçãs do rosto de Washingtonruborizaram quando olhou paraConnor, e talvez fizesse algumasrelações em sua cabeça, e se desseconta exatamente do que fizeradurante todos aqueles 14 anos. Suaboca se abriu e fechou, como seestivesse tendo dificuldade deencontrar palavras.

— Era outra época — exprimiu-se finalmente. Charles sempregostava de se referir a Washingtoncomo um idiota indeciso,

gaguejante, e, ali, pela primeira vez,percebi exatamente o que ele queriadizer. — A Guerra dos Sete Anos —citou Washington, como se apenasaquele fato explicasse tudo.

Olhei para Connor, que haviacongelado, parecendo exatamentecomo se estivesse apenas distraído,pensando em outra coisa em vez deprestar atenção ao que acontecia nasala, então me dirigi a ele.

— Agora veja, meu filho... no quese transforma esse “grande homem”sob coerção. Encontra desculpas.Transfere a culpa. Ele de fato faz

muitas coisas grandes... excetoassumir responsabilidade.

O sangue havia desaparecido dorosto de Washington. Seus olhosbaixaram, e ele os direcionou para ochão, com a culpa evidente paratodos verem.

Olhei suplicante para Connor, quecomeçou a respirar com dificuldadee então explodiu de raiva.

— Chega! Quem fez o quê e porque motivo deve esperar. Meu povodeve vir em primeiro lugar.

Aproximei-me dele.— Não! — Recuou. — Você e eu

acabamos.— Filho... — comecei.Mas ele me rodeou.— Você acha que sou tão

maleável que me chamando de filhofaria com que eu pudesse mudar deideia? Há quanto tempo guarda essainformação? Ou devo acreditar quesó a descobriu agora? O sangue daminha mãe pode ter manchadooutras mãos, mas Charles Lee não émenos do que um monstro, e tudo oque ele faz, faz por ordem sua. — Ese virou para Washington, que derepente recuou com medo da ira de

Connor.— Um aviso para vocês dois —

vociferou Connor. — Se resolveremvir atrás de mim ou se opor a mim,eu os matarei.

E foi embora.

16 de setembro de 1781(três anos depois) i

Na Batalha de Monmouth, em 1778,apesar de ter sido ordenado porWashington que atacasse osingleses em retirada, Charlesrecuou.

O que se passou em sua cabeçapara fazer isso, não sei dizer. Talvezestivesse em desvantagemnumérica, que foi a razão que eledeu, ou talvez esperasse que, aorecuar, isso refletiria muito em

Washington e no Congresso, e ele,finalmente, seria substituído nocomando. Por um ou outro motivo,no mínimo porque isso nãoimportava mais, eu nunca lheperguntei.

O que sei é que Washington haviaordenado que ele atacasse; em vezdisso, fizera o oposto, e a situaçãorapidamente se tornou umadebandada. Soube que Connor deuuma mão na batalha que se seguiu,ajudou os rebeldes a evitarem aderrota, enquanto Charles, emretirada, havia corrido direto para

Washington, com quem trocoualgumas palavras, e Charles emparticular tinha usado umalinguagem apurada.

Eu podia bem imaginar. Lembrei-me do jovem que encontrei pelaprimeira vez, muitos anos atrás, noporto de Boston, o modo como meolhou de baixo para cima, comrespeito, embora olhasse de cimapara baixo, com desdém, para todomundo. Desde que foradesconsiderado como comandante-chefe do Exército Continental, seuressentimento em relação a

Washington, como uma feridaaberta, havia ulcerado, piorado, nãohavia sarado. Ele não apenas falavamal de Washington em qualquerocasião possível, denegrindo cadaaspecto de sua personalidade e desua liderança, mas também haviaembarcado em uma campanha deredação de cartas, na tentativa deconquistar membros do Congressopara seu lado. É verdade que seufervor era em parte inspirado pelasua lealdade à Ordem, mas eratambém abastecida pela raivapessoal por ter sido negligenciado.

Charles poderia muito bem terrenunciado ao seu posto no Exércitobritânico e, para os devidos efeitos,se tornado cidadão americano. Mashavia nele um sentimento deelitismo muito inglês e achavafirmemente que o cargo decomandante-chefe era seu pordireito. Eu não podia censurá-lo porenvolver nisso seus sentimentospessoais. Quem, dentre aquelescavaleiros que primeiro haviam sereunido na Green Dragon, erainocente com relação a isso? Eucom certeza não. Eu odiei

Washington pelo que havia feito naaldeia de Ziio, mas sua liderança narevolução, embora às vezescruelmente realista, não foramanchada pela brutalidade, pelo queeu sabia até então. Washingtonassinalara sua parte satisfatória desucesso, e agora que certamenteestávamos nos estágios finais daguerra, com a Independência aapenas uma declaração de distância,de que modo ele poderia ser vistocomo outra coisa a não ser um heróimilitar?

A última vez que vi Connor foi

três anos atrás, quando ele deixouWashington e a mim sozinhos.Sozinhos. Completamente sozinhos.E, embora mais velho e mais lento equase com uma dor constante porcausa do ferimento na lateral docorpo, tive a oportunidade de,finalmente, poder me vingar do queele havia feito a Ziio; de “destituí-lodo comando” para sempre, mas eu opoupara, pois, na ocasião, jácomeçava a me perguntar se estavaenganado a respeito dele. Talvezseja a ocasião de admitir que estava.É uma falha humana ver mudanças

em si mesmo e supor que todos osoutros continuam os mesmos.Talvez eu fosse culpado disso comWashington. Talvez ele tivessemudado. Fiquei imaginando, estariaConnor certo a respeito dele?

Charles, enquanto isso, foi presopor insubordinação em decorrênciado incidente durante o qual xingouWashington, depois enfrentou umacorte marcial e, finalmente, foiexonerado do serviço. Então buscourefúgio no Forte George, onde tempermanecido desde então.

ii

— O garoto está a caminho daqui —informou Charles.

Eu estava sentado à escrivaninhaem meu quarto na Torre Oeste doForte George, diante da janela quedava vista para o mar. Com minhaluneta, avistei navios no horizonte.Estariam vindo para cá? Connorestaria em um deles? Seuscompanheiros?

Virando-me no assento, gesticuleipara que Charles se sentasse. Eleparecia largado na roupa; o rosto

estava enrugado e o cabelo ficandogrisalho pendia sobre o rosto.Estava aflito e, então, se Connorestivesse vindo, teria todo o direitode estar.

— Ele é meu filho, Charles —falei.

Ele assentiu, desviou a vista efranziu os lábios.

— Já imaginava — disse ele. —Há uma semelhança familiar. A mãedele é a mohawk com quem você seescondeu, não é mesmo?

— Ah, eu me escondi com ela,foi?

Ele deu de ombros.— Não me fale sobre

negligenciar a Ordem, Charles.Você fez sua parte.

Houve um longo silêncio e,quando ele olhou de volta para mim,seus olhos tinham despertado.

— Uma vez você me acusou deter criado o Assassino — lembroucom amargura. — Isso não lheocorre como irônico... não,hipócrita... tendo em vista que ele éseu rebento?

— Talvez — respondi. — Nãotenho mais certeza.

Ele soltou uma gargalhada seca.— Você parou de se importar

anos atrás, Haytham. Não melembro da última vez que vi outracoisa em seus olhos que não fossefraqueza.

— Fraqueza não, Charles.Dúvida.

— Dúvida, então — concedeu. —A dúvida não beneficia muito umGrão-Mestre Templário, não acha?

— Talvez — concordei. — Outalvez eu tenha aprendido quesomente idiotas e crianças carecemde dúvida.

Virei-me para olhar pela janela.Anteriormente, a olho nu, os naviostinham parecido marcas dealfinetes, agora, porém, estavammais próximos.

— Conversa-fiada — comentouCharles. — Conversa de Assassino.Convicção é falta de dúvida. Pelomenos, isso é tudo que pedimos denossos líderes: convicção.

— Lembro-me da época em queprecisava do meu apadrinhamentopara se juntar a nós. Agora, vocêteria a minha posição. Você teriasido um bom Grão-Mestre, não

acha?— Você foi?Houve uma longa pausa.— Isso machuca, Charles.Ele se levantou.— Vou embora. Não desejo estar

aqui quando o Assassino... seufilho... começar o ataque. — Olhoupara mim. — E você deveria meacompanhar. Pelo menos,estaríamos à frente.

Balancei a cabeça.— Acredito que não, Charles.

Acredito que devo ficar e fazerminha resistência final. Talvez você

tenha razão... Talvez não tenha sidoo mais eficiente Grão-Mestre.Talvez agora seja o momento deajeitar isso.

— Você pretende enfrentá-lo?Combatê-lo?

Fiz que sim.— O quê? Você pensa que pode

convencê-lo? Trazê-lo para o nossolado?

— Não — falei tristemente. —Receio que não há volta paraConnor. Mesmo revelando averdade sobre Washington, nãoconsegui mudar seu apoio. Você

gostaria de Connor, Charles, ele tem“convicção”.

— Sim, e depois?— Não vou permitir que ele mate

você, Charles — assegurei, e levei amão ao meu pescoço para tirar oamuleto. — Tome isto, por favor.Não quero que fique com ele, se mederrotar na batalha. Trabalhamosarduamente para tirá-lo dosAssassinos. Não quero devolvê-lo.

Ele, porém, afastou a mão.— Não ficarei com isso.— Precisa mantê-lo em

segurança.

— Você é capaz de fazer issosozinho.

— Sou quase um velho, Charles.Vamos errar por excesso deprecaução, sim?

Passei o amuleto para suas mãos.— Vou dar ordens para que uns

guardas protejam você — avisou.— Como queira. — Olhei

novamente pela janela. — Mas émelhor se apressar. Tenho umasensação de que o momento doajuste de contas esteja próximo.

Ele assentiu e seguiu para a porta,de onde se virou.

— Você foi um bom Grão-Mestre, Haytham — disse ele —, elamento se você alguma vez pensouque achei o contrário.

Sorri.— E lamento se lhe dei um

motivo.Ele abriu a boca para falar, mas

preferiu não fazê-lo, então se viroue saiu.

iii

Ocorreu-me, quando se iniciou o

bombardeio e comecei a rezar paraque Charles tivesse fugido, que estepoderia ser o registro final em meudiário; estas palavras, minhasúltimas. Espero que Connor, meupróprio filho, leia este diário e,talvez, quando souber um poucosobre minha jornada pela vida, mecompreenda, talvez até me perdoe.Meu próprio caminho foipavimentado com mentiras, minhadesconfiança forjada por traição.Mas meu pai nunca mentiu paramim e, com este diário, preservoesse hábito.

Eu lhe apresento a verdade,Connor, para que possa fazer o quequiser com ela.

E P Í L O G O

16 de setembro de 1781

— Pai! — chamei.

O bombardeio era ensurdecedor,mas eu abri caminho através deleaté a Torre Oeste, onde ficavamseus aposentos, e, ali, em umpassadiço que levava ao quarto doGrão-Mestre, o encontrei.

— Connor — respondeu ele.Seus olhos eram insensíveis,

ilegíveis. Ele estendeu o braço eengatou a lâmina oculta. Fiz omesmo. De fora, vinham o estrondo

e o estampido de disparos decanhão, o despedaçar de pedra e osgritos de homens moribundos.Lentamente, caminhamos um emdireção ao outro. Havíamos lutadolado a lado, mas nunca um contra ooutro. Fiquei imaginando se ele,assim como eu, estava curioso.

Com uma das mãos nas costas,ele mostrou sua lâmina. Fiz omesmo.

— No próximo disparo de canhão— disse ele.

Quando aconteceu, isso pareceusacudir as paredes, mas nenhum de

nós se importou. A batalha haviacomeçado e o som do repique donosso aço era penetrante napassagem, nossos grunhidos deesforço, claros e presentes. Tudo omais — a destruição do forte ànossa volta — era ruído de fundo.

— Vamos lá — zombou —, nãopode esperar que vá me superar,Connor. Apesar de suas habilidades,você ainda é um menino... commuito a aprender.

Ele não mostrava piedade.Nenhuma compaixão. Independentedo que houvesse em seu coração e

sua cabeça, a lâmina dele lampejavacom a habitual precisão eferocidade. Se agora era umguerreiro em seus anos outonais,carregado de poderes deficientes,então eu teria odiado ter deenfrentá-lo durante seu apogeu. Seera um teste que queria fazercomigo, então era o que eu estavarecebendo.

— Dê-me Lee — exigi.Mas Lee já tinha ido havia muito

tempo. Agora só havia o pai, e eleatacava, tão veloz quanto umacobra, com a lâmina chegando à

distância de um fio de cabelo deabrir meu rosto. Transforme adefesa em ataque, pensei, e respondicom semelhante variação develocidade, girando e atingindo seuantebraço, perfurando-o com minhalâmina e destruindo a fixação dasua.

Com um rugido de dor, ele saltoupara trás e pude ver a preocupaçãonublar seus olhos, mas deixei que serecuperasse e observei-o cortar umatira do manto com a qual enfaixou oferimento.

— Mas temos uma chance aqui

— argumentei. — Juntos, podemosromper o ciclo e acabar com essaantiga guerra. Eu sei disso.

Vi algo em seus olhos. Seriaalguma centelha de um desejo haviamuito tempo abandonado, algumsonho insatisfeito sendo lembrado?

— Eu sei disso — repeti.Com a bandagem ensanguentada

entre os dentes, ele balançou acabeça. Estaria realmente tãodesiludido assim? Teria seu coraçãoendurecido tanto?

Terminou o curativo.— Não. Você quer saber disso.

Você quer que seja verdade. — Suaspalavras tinham um tom de tristeza.— Parte de mim, certa vez, tambémquis. Mas é um sonho impossível.

— Temos o mesmo sangue, vocêe eu — insisti. — Por favor...

Por um momento, pensei que otinha alcançado.

— Não, filho. Somos inimigos. Eum de nós deve morrer.

De fora, veio outra salva decanhão. As tochas tremularam emseus suportes, a luz dançou na pedrae partículas de pó choveram dasparedes.

Que assim seja.Lutamos. Uma longa e dura

batalha. Não uma batalha quesempre fosse especialmentehabilidosa. Ele vinha para mim,com a lâmina da espada, compunhos e às vezes até mesmo com acabeça. Seu estilo de luta eradiferente do meu, algo de formaçãomais tosca. Carecia da sutileza domeu estilo, mas, ainda assim, eficaze, logo descobri, igualmentedoloroso.

Nós nos separamos, ambosresfolegando. Ele passou as costas

da mão na boca, depois se agachou,flexionando os dedos do antebraçoferido.

— Você age como se tivessealgum direito de julgar — observouele. — Declarar, para o mundo, amim e ao que fiz como errados.Entretanto, tudo que lhe mostrei...tudo que lhe disse e fiz... deveriaclaramente demonstrar o contrário.Mas não fizemos mal a seu povo.Não apoiamos a Coroa.Trabalhamos para ver esta terraunida e em paz. Sob nosso poder,tudo seria igual. Os patriotas

prometem o mesmo?— Eles oferecem liberdade —

retruquei, observando-ocautelosamente, lembrando-me dealgo que Achilles me ensinara certavez: que cada palavra, cada gesto, écombate.

— Liberdade? — escarneceu. —Eu lhe disse... repetidas vezes... issoé perigoso. Nunca haverá umconsenso, filho, entre aqueles quevocê ajudou a ascender. Eles vãodiferir em seus pontos de vistasobre o que significa ser livre. Apaz que você procura tão

desesperadamente não existe.Balancei a cabeça.— Não. Juntos, eles formarão

uma coisa nova... melhor do queaquilo que veio antes.

— Esses homens estão unidosagora por uma causa comum —continuou ele, abanando em volta obraço ferido para indicar... nós,suponho. A revolução. — Mas,quando essa batalha terminar, elesvão brigar entre si para saber qual éo melhor modo de assegurar ocontrole. Em pouco tempo, issolevará à guerra. Você verá.

Então ele deu um salto à frente,atacando com a espada, visando nãomeu corpo, mas o braço com alâmina. Desviei o golpe, mas ele foirápido, virou e me atacou com ascostas da mão, atingindo-me com ocabo da espada acima do olho.Minha visão nublou e cambaleeipara trás, defendendo-meloucamente, enquanto ele tentavapressionar adiante para aproveitarsua vantagem. Por pura sorte, atingiseu braço ferido, conseguindo umuivo de agonia e uma pausatemporária, enquanto nos

recuperávamos.Outro estrondo de canhão. Mais

pó expelido das paredes, e senti ochão sacudir. Escorria sangue doferimento acima do meu olho, e olimpei com as costas da mão.

— Os líderes patriotas nãoprocuram o controle — garanti aele. — Aqui não haverá monarca. Opovo terá o poder... como deveria.

Ele balançou a cabeça lenta etristemente, um gestocondescendente que, se tinha aintenção de me apaziguar, teveexatamente o efeito contrário.

— O povo nunca tem o poder —frisou, fatigado —, apenas a ilusãodele. E eis o verdadeiro segredo: opovo não o quer. A responsabilidadeé grande demais para aguentar. Épor isso que ele rapidamente adere,assim que alguém se encarrega. Opovo quer que lhe diga o que fazer.E l e anseia por isso. Não é de seadmirar, tendo em vista que toda ahumanidade foi formada para servir.

Novamente, trocamos golpes.Nós dois já tínhamos tirado sangue.Olhando-o, será que vi uma imagemespelhada mais velha de mim

mesmo? Tendo lido seu diário,posso agora olhar para trás e saberexatamente como ele me via: comoo homem que ele deveria ter sido.De que modo as coisas teriam sidodiferentes se eu soubesse o que seiagora?

Não sei é a resposta a essapergunta. E continuo sem saber.

— E por causa da nossa tendêncianatural de sermos controlados,quem melhor para isso do que osTemplários? — Balancei a cabeça.— É uma oferta insignificante.

— É verdade — exclamou

Haytham. — Princípio e prática sãodois animais diferentes. Eu vejo omundo como ele é... e não comodesejo que fosse.

Ataquei e ele defendeu, e, poralguns momentos, o passadiçoressoou o aço se chocando. Agoranós dois estávamos cansados; abatalha não tinha mais a urgênciaque tivera. Por um momento, penseise ela simplesmente poderia acabar;se havia qualquer meio de que nósdois simplesmente virássemos, nosafastássemos e fôssemos emdireções diferentes. Mas não.

Aquilo tinha de ter um fim agora.Eu sabia. Podia ver em seus olhosque ele também sabia. Aquilo tinhade ter um fim aqui.

— Não, pai... você desistiria... elevaria todos nós a fazer o mesmo.

Então, houve um baque surdo e oestremecer de uma bala de canhãoatingindo perto, e pedras caíram emcascata das paredes. De repente, umenorme buraco foi aberto napassagem.

ii

Fui jogado para trás pela explosão ecaí em uma dolorosa posição, comoum bêbado deslizando lentamenteabaixo pela parede de uma taverna,e minha cabeça e ombros ficaramem um ângulo estranho em relaçãoao resto do meu corpo. O corredorestava cheio de pó e escombros seassentando, enquanto o estrondo daexplosão diminuía lentamente e setransformava no chocalhar e noestrépito do pedregulho semovendo. Coloquei-medolorosamente de pé e forcei a vistapor entre o pó e o vi caído, assim

como eu estivera, mas do outro ladodo buraco na parede causado pelabala de canhão, e fui coxeando atéele. Parei e olhei pelo buraco, e fuirecebido pela desorientadora visãodos aposentos do Grão-Mestre comsua parede de fundo explodida, aspedras irregulares emoldurandouma vista do mar. Havia quatronavios na água, todos com rastrosde fumaça saindo de seus canhõesno convés e, enquanto eu observava,houve um estrondo quando outro foidisparado.

Avancei e me curvei diante do

meu pai, que olhou para mim emexeu-se um pouco. Sua mãoarrastou-se na direção da espada,que estava fora de alcance, chutei-a,e ela saiu deslizando na pedra paralonge. Fazendo uma careta de dor,inclinei-me na direção dele.

— Renda-se, e eu o pouparei —falei.

Senti o vento na minha pele, apassagem subitamente inundada porluz natural. Ele parecia tão velho, orosto abatido e ferido. Ainda assim,ele sorriu.

— Bravas palavras de um homem

prestes a morrer.— Você não se saiu melhor —

retruquei.— Ah — ele sorriu, mostrando os

dentes ensanguentados —, mas nãoestou sozinho... — E se virou paraver dois dos guardas do forte quevinham apressados pelo corredor,erguendo os mosquetes e parando apouca distância de nós. Meus olhosforam deles para meu pai, que selevantava, erguendo a mão paradeter seus homens, a única coisaque evitou que me matassem.

Apoiando-se na parede, ele tossiu

e cuspiu e então olhou para mim.— Mesmo quando sua raça

parece triunfar... ainda assim, nósnos levantamos. Sabe por quê?

Balancei a cabeça.— Porque a Ordem nasce de uma

compreensão. Não precisamos deum Credo. Nem de doutrinação feitapor velhos desesperados. Tudo deque precisamos é que o mundo sejacomo é. É por isso que osTemplários nunca serão destruídos.

E agora, é claro, fiqueiimaginando: o que ele teria feito?Teria deixado que eles me

matassem?Mas nunca terei essa resposta.

Pois de repente houve um estalidode tiros e os homens giraram ecaíram, mortos por disparos de umfranco-atirador do outro lado daparede. E, no momento seguinte, euhavia corrido adiante e, antes queele pudesse reagir, derrubeiHaytham de volta para o chão efiquei novamente sobre ele, a mãoda minha lâmina recuada.

Então, com grande fluxo de algoque poderia ter sido dispensado, eum som que percebi ser meu

próprio soluço, apunhalei-o em seucoração.

Seu corpo sacudiu como seaceitasse a minha lâmina, emseguida relaxou, e, quando a puxei,ele estava sorrindo.

— Não pense que tive a intençãode acariciar seu rosto e dizer que euestava errado — disse elesuavemente, enquanto eu observavasua vida se esvair. — Não voulastimar nem imaginar o quepoderia ter sido. Tenho certeza deque você entende.

Eu estava ajoelhado, e me

estiquei para agarrá-lo. O que sentifoi... nada. Uma dormência. Umagrande exaustão por tudo terchegado àquilo.

— Ainda assim — disse ele,quando as pálpebras se agitaram e osangue pareceu ser drenado de seurosto. — Sinto orgulho de você poruma coisa. Você mostrouconvicção. Força. Coragem. Essassão características nobres.

Com um sorriso sarcástico,acrescentou: — Eu deveria termatado você muito tempo atrás.

Então morreu.

Procurei o amuleto de que minhamãe me falara, mas havia sumido.Fechei os olhos do meu pai, melevantei e fui embora.

2 de outubro de 1782

Finalmente, em uma noite gelada nafronteira, encontrei-o em umahospedaria, a Conestoga, ondeentrei e o achei sentado nassombras, os ombros curvados para afrente e uma garrafa perto da mão.Mais velho e desleixado, com oscabelos crespos e rebeldes enenhum vestígio do oficial doexército que fora antes, mas eradefinitivamente ele: Charles Lee.

Ao me aproximar da mesa, eleergueu a vista para mim, e logo fuisurpreendido pelos seus olhosinjetados. Qualquer loucura, porém,estava suprimida ou escondida, e elenão revelou nenhuma emoção emme ver, a não ser um olhar quesupus ser de alívio. Por mais de ummês eu o tinha caçado.

Sem falar, ofereceu-me um goleda garrafa, aceitei, tomei um gole elhe devolvi a bebida. E ficamossentados juntos por um longotempo, observando os outrosfregueses da taverna, ouvindo suas

conversas, brincadeiras egargalhadas que aconteciam à nossavolta.

No final, olhou para mim e,embora não dissesse nada, seusolhos o fizeram por ele, e, assim,silenciosamente, ejetei minhalâmina e, quando os fechou, enfiei-aem seu corpo, por baixo dascostelas, direto no coração. Elemorreu sem um som e o deitei sobreo tampo da mesa, como se apenastivesse desmaiado por ter bebidodemais. Então estendi a mão, tirei oamuleto de seu pescoço e o pendurei

no meu.Olhando-o abaixo, ele brilhou

suavemente por um instante.Coloquei-o para dentro da camisa,me levantei e saí.

15 de novembro de 1783

i

Segurando as rédeas do meu cavalo,caminhei pela minha aldeia comuma sensação crescente deincredulidade. Ao chegar, viplantações bem-cuidadas, mas aaldeia em si estava deserta, a casacomunal abandonada, as fogueirasde cozinhar frias, e a única alma àvista era um caçador grisalho — umcaçador branco, não um mohawk —que estava sentado sobre um balde

virado de cabeça para baixo diantede uma fogueira, assando algo emum espeto que cheirava bem.

Olhou-me cuidadosamente, àmedida que me aproximava, e seusolhos foram para o mosquete, queestava perto, mas acenei indicandoque não faria mal.

Ele assentiu.— Se você estiver com fome, eu

tenho mais — avisou cordialmente.Aquilo cheirava bem, mas eu

tinha outras coisas em mente.— Você sabe o que aconteceu

aqui? Onde está todo mundo?

— Foram para o oeste. Já sepassaram algumas semanas desdeque partiram. Parece que a terra foidoada pelo Congresso para algumsujeito de Nova York. Acho quedecidiram que não precisavam daaprovação de quem vivia aqui parase instalar.

— O quê? — surpreendi-me.— É. Cada vez mais estou vendo

isso acontecer. Nativos expulsos pornegociantes e rancheiros queprocuram se expandir. O governodiz que não toma terra que já temdono, mas, ah... Aqui você pode ver

que é o contrário.— Como isso pôde acontecer? —

perguntei, olhando em voltalentamente e vendo apenas vazioonde um dia eu vira os rostosfamiliares do meu povo, o povocom o qual eu crescera.

— Estamos agora por contaprópria — continuou. — Acabou-sea garantia de peças e de serviço dosvelhos e alegres ingleses. O quesignifica que temos nós mesmos defazer isso. Temos também quepagar por isso. Vender terra é rápidoe fácil. E não é tão odioso quanto

impostos. E como alguns dizem queforam impostos que deram início àguerra, não há pressa para trazê-losde volta. — Ele deu uma gargalhadaforte, gutural. — Muito espertosesses seus novos líderes. Eles sabemque ainda não devem forçar. Émuito cedo. É muito... britânico. —Olhou para a fogueira. — Mas elesvirão. Sempre vêm.

Agradeci e o deixei, para ir entãoà casa comunal, pensando, enquantocaminhava: eu fracassei. Meu povose foi — expulso por aqueles quepensei que o protegeriam.

Enquanto caminhava, o amuletono meu pescoço brilhou, tirei-o,coloquei-o sobre a palma e oanalisei. Talvez houvesse umaúltima coisa que eu pudesse fazer,que era salvar aquele lugar de todoseles, patriotas e Templários,igualmente.

ii

Em uma clareira na floresta,agachei-me e olhei o que tinha nasmãos: o colar da minha mãe em

uma, o amuleto do meu pai na outra.Disse a mim mesmo: — Mãe.

Pai. Sinto muito. Falhei com vocêsdois. Fiz uma promessa de protegernosso povo, mãe. Pensei quepoderia deter os Templários, seconseguisse manter a revoluçãolivre de sua influência, então os queeu apoiava fariam o que era certo.Suponho que fizeram o que eracerto... o que era certo para eles.Quanto a você, pai, achei queconseguiria nos unir, quepudéssemos esquecer o passado eformar um futuro melhor.

Acreditava que, no devido tempo,eu poderia fazer você ver o mundocomo eu vejo... entendê-lo. Mas eraapenas um sonho. Este também. Eudeveria ter adivinhado. Então nãoestávamos destinados a viver empaz? É isso? Nascemos paradiscutir? Para brigar? São tantasvozes... cada qual exigindo algomais.

“Foram tempos difíceis, mas nãotão difíceis quanto hoje. Ver tudopelo que trabalhei ser desvirtuado,rejeitado, esquecido. Você diria quedescrevi a história toda, pai. Está

sorrindo então? Esperando que eupossa dizer as palavras que ansiououvir? Validá-lo? Dizer que otempo todo você estava certo? Nãoo farei. Mesmo agora, encarandocomo estou a verdade de suaspalavras frias, eu me recuso. Porqueacredito que as coisas ainda possammudar.

“Posso nunca ter sucesso. OsAssassinos podem pelejar outrosmil anos em vão. Mas não vouparar.”

Comecei a cavar.— Compromisso. Era nisso que

todos insistiam. E, portanto, euaprendi. Mas de um modo diferentedos outros, creio. Percebo agora quelevará tempo, que a estrada adianteé longa e envolta pela escuridão. Eque nem sempre me levará aondedesejo ir... e duvido que viverei paravê-la terminar. Mas, mesmo assim,viajarei por ela.

Cavei e cavei até o buraco ficarbem fundo, mais fundo do que serianecessário para enterrar um corpo, osuficiente para eu entrar nele.

— Pois do meu lado caminha aesperança. Diante de toda a

insistência para eu voltar, continuo:esse, esse é meu compromisso.

Larguei o amuleto no buraco e,quando o sol começou a se pôr,joguei terra em cima dele até ficarescondido, então virei e fui embora.

Cheio de esperança para o futuro,retornei para o meu povo, para osAssassinos.

Era hora de sangue novo.

Lista de Personagens As’adPasha al-Azm: governador otomano

de Damasco, desconhecido-1758Jeffrey Amherst: comandante

britânico, 1717-1797Tom Barrett: garoto que vive na

casa vizinha a Haytham naQueen Anne’s Square ReginaldBirch: administrador daspropriedades de EdwardKenway e Templário EdwardBraddock, o Bulldog: generalbritânico e comandante-chefedas colônias, 1695-1755

Benjamin Church: médico;

Templário Connor: AssassinoCutter, o Talhador: torturador Betty:

uma das criadas na casa dafamília Kenway Srta. Davy:criada pessoal da Sra. KenwaySr. Geoffrey Digweed:mordomo do Sr. Kenway Edith:ama de Haytham Emily:camareira na casa da famíliaKenway James Fairweather:conhecido de Haytham VelhoSr. Fayling: tutor de HaythamJohn Harrison: TemplárioThomas Hickey: Templário JimHolden: soldado no Exército

britânico William Johnson:Templário Kaniehti:io: índiamohawk, também conhecidacomo Ziio; mãe de ConnorEdward Kenway: pai deHaytham Haytham E. Kenway

Jenny Kenway: meia-irmã deHaytham Tessa Kenway,nascida Tessa Stephenson-Oakley: mãe de HaythamCatherine Kerr e CorneliusDouglass: proprietários daGreen Dragon Charles Lee:Templário Grão-vizir RaghibPasha: ministro do Sultão John

Pitcairn: Templário Sra. Searle:governanta na casa da famíliaKenway Sr. Simpkin:funcionário da equipe deEdward Kenway Slater: carrascoe tenente de Braddock SilasThatcher: traficante de escravose comandante da Tropa de Elitedo Rei, responsável pelo ForteSouthgate Twitch, o Abelhudo:informante Juan Vedomir:traidor dos Templários GeorgeWashington: oficial do generalBraddock; comandante-chefe dorecém-formado Exército

Continental; Pai Fundador efuturo Presidente dos EstadosUnidos, 1732-1799

Agradecimentos

Agradecimentos especiaisa:

Yves GuillemotStéphane BlaisJean GuesdonCorey MayDarby McDevitt

E também a:

Alain Corre

Laurent DetocSébastien PuelGeoffroy SardinXavier GuilbertTommy FrançoisCecile RusseilJoshua MeyerDepartamento Jurídico daUbisoftChris MarcusEtienne AllonierAnouk BachmanAlex ClarkeHana OsmanAndrew Holmes

Virginie SergentClémence Deleuze

Este e-book foi desenvolvido em formato ePubpela Distribuidora Record de Serviços de

Imprensa S. A.

Assassin’s Creed vol. 4 -Renegado: Sobre o autor

•http://www.record.com.br/autor_sobre.asp?id_autor=6276

Saiba mais sobre o livro na página do Skoob• http://www.skoob.com.br/

Site do jogo Assassin’s Creed• http://assassinscreed.ubi.com/ac3/en-US/index.aspx

Trailer do jogo Assassin’s Creed III• http://www.youtube.com/watch?v=u9g3O4LQm00&feature=plcp

Canal do You Tube da Franquia Assassin’sCreed

•http://www.youtube.com/user/AssassinsCreed

Twitter do jogo• http://twitter.com/assassinscreed

Página do jogo no Facebook•https://www.facebook.com/assassinscreed

Página na Wikipédia sobre o jogo e suascontinuações

•http://pt.wikipedia.org/wiki/Assassin's_Creed

Resenha do primeiro livro da série Assassin’sCreed Renascença

•http://www.lendonasentrelinhas.com.br/2011/08/

assassinscreed-renascenca-oliver.html

Mais sobre o autor da série• http://en.wikipedia.org/wiki/Anton_Gill

Sumário CapaObras do autor publicadas pelaEditora RecordRostoCréditosPrólogo

PARTE UM | Trechos do diário deHaytham E. Kenway

6 de dezembro de 17357 de dezembro de 17358 de dezembro de 17359 de dezembro de 173510 de dezembro de 173511 de dezembro de 1735

PARTE DOIS | 1747, doze anosdepois

10 de junho de 174711 de junho de 174718 de junho de 174720 de junho de 17472 e 3 de julho de 174714 de julho de 174715 de julho de 174716 de julho de 174717 de julho de 1747

PARTE TRÊS | 1753, seis anosdepois

7 de junho de 1753

25 de junho de 175312 de agosto de 175318 de abril de 17548 de julho de 175410 de julho de 175413 de julho de 175414 de julho de 175415 de novembro de 17548 de julho de 17559 de julho de 175510 de julho de 175513 de julho de 17551 de agosto de 17554 de agosto de 175517 de setembro de 1757 (dois

anos depois)21 de setembro de 175725 de setembro de 17578 de outubro de 17579 de outubro de 175727 de janeiro de 175828 de janeiro de 1758

PARTE QUATRO | 1774,dezesseis anos depois

12 de janeiro de 177427 de junho de 1776 (dois anosdepois)28 de junho de 17767 de janeiro de 1778 (quase

dois anos depois)26 de janeiro de 17787 de março de 177816 de junho de 177817 de junho de 177816 de setembro de 1781 (trêsanos depois)

EPÍLOGO16 de setembro de 17812 de outubro de 178215 de novembro de 1783

Lista de PersonagensAgradecimentos

ColofãoSaiba mais

Table of Contents

CapaObras do autor publicadas pelaEditora RecordRostoCréditosPrólogoPARTE UM | Trechos do diáriode Haytham E. Kenway

6 de dezembro de 17357 de dezembro de 17358 de dezembro de 17359 de dezembro de 173510 de dezembro de 1735

11 de dezembro de 1735PARTE DOIS | 1747, doze anosdepois

10 de junho de 174711 de junho de 174718 de junho de 174720 de junho de 17472 e 3 de julho de 174714 de julho de 174715 de julho de 174716 de julho de 174717 de julho de 1747

PARTE TRÊS | 1753, seis anosdepois

7 de junho de 1753

25 de junho de 175312 de agosto de 175318 de abril de 17548 de julho de 175410 de julho de 175413 de julho de 175414 de julho de 175415 de novembro de 17548 de julho de 17559 de julho de 175510 de julho de 175513 de julho de 17551 de agosto de 17554 de agosto de 175517 de setembro de 1757

(dois anos depois)21 de setembro de 175725 de setembro de 17578 de outubro de 17579 de outubro de 175727 de janeiro de 175828 de janeiro de 1758

PARTE QUATRO | 1774,dezesseis anos depois

12 de janeiro de 177427 de junho de 1776 (doisanos depois)28 de junho de 17767 de janeiro de 1778(quase dois anos depois)

26 de janeiro de 17787 de março de 177816 de junho de 177817 de junho de 177816 de setembro de 1781(três anos depois)

EPÍLOGO16 de setembro de 17812 de outubro de 178215 de novembro de 1783

Lista de PersonagensAgradecimentosColofãoSaiba mais

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