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Assistência à Infância na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro:
a transformação da Casa dos Expostos (1888-1920)
Letícia Conde Moraes Cosati1
leticiacosati@gmail.com Casa de Oswaldo Cruz
Apresentação
O presente artigo tem por objetivo traçar de maneira preliminar as transformações
ocorridas na Casa dos Expostos, instituição de assistência à infância vinculada à Santa Casa
da Misericórdia do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas republicanas. Fundada no ano de
1738, a Casa dos Expostos era uma instituição de recepção de crianças cujo objetivo principal
era evitar o infanticídio ou o abandono de recém-nascidos em locais que fornecessem riscos a
suas vidas. Buscaremos analisar a assistência levada a cabo por esta instituição levando em
consideração as possíveis influências do contexto do final do século XIX e primeiras décadas
do século XX em suas ações.
A Primeira República foi palco da complexificação dos aparatos assistenciais (com a
fundação de outras instituições de assistência à infância) e de diferentes movimentos que
ocorrem em paralelo: a afirmação da medicina como um campo de saber específico, a
sedimentação da família burguesa e a responsabilização das famílias pelo cuidado com sua
prole, seja por meio de punições legais ou de incentivo à amamentação. Como veremos, a
Casa dos Expostos não permanece alheia a estes processos, buscando se adequar às novas
demandas da sociedade no tocante ao amparo à infância.
1 Este artigo conta com o financiamento da CAPES. Agradeço pela possibilidade de desenvolver esta pesquisa no âmbito da Casa de Oswaldo Cruz bem como à minha orientadora, Gisele Sanglard, pela solicitude de sempre.
A Roda dos Expostos e a institucionalização do abandono
Mecanismo criado na Idade Média, a roda dos expostos foi um instrumento utilizado
de maneira a preservar o anonimato daqueles que abandonavam as crianças. Espécie de
portinhola giratória, a roda afixava-se em muro ou janela e fazia contato entre o exterior e
interior do estabelecimento. Dessa maneira, ao enjeitar2 uma criança, o expositor3 tocava uma
sineta, afastando-se do local sem deixar rastros de sua identidade.
Conhecer o que de fato levava mães, pais, avós e demais parentes a abandonarem as
crianças é objeto de difícil apreensão. Apesar disso, os debates historiográficos sobre as
causas do abandono apresentaram algumas hipóteses na tentativa de fornecer respostas a
questão. Maria Luiza Marcílio4 coaduna-se com Renato Pinto Venâncio no entendimento de
que o abandono de crianças era uma situação limite causada pela pobreza associada à ocasião
de morte de pais ou parentes da criança. Segundo o autor, “a morte lançava os frágeis núcleos
domésticos em uma crise na qual o recurso à instituição de caridade aparecia como única
solução possível.” (VENÂNCIO, 1999, p. 94).
Dessa forma, para os autores, a diminuição da prática estaria associada à expansão da
medicina que incutiria uma nova consciência nos indivíduos. Sem dúvida a pobreza aliada à
morte de parentes próximos à criança figurou dentre os motivos para o abandono. Entretanto,
é difícil supor que tenha havido uma frequencia maior de uma causa em detrimento de outras.
Aliada à pobreza, os estudos pertinentes ao assunto elencam a ilegitimidade das crianças e a
preservação da honra das mulheres como outras possíveis causas para o fenômeno.
Os trabalhos de Isabel dos Guimarães Sá e de Cláudia Fonseca5 trazem um novo olhar
sobre o tema. Ao tratar do caráter estruturante do abandono para as sociedades investigadas as
autoras revelam que a prática era utilizada por todos. Sendo assim, ela começa a entrar em
declínio na medida em que a concepção de família burguesa, nuclear, responsável pela
infância, entra em vigor. Compactuando com as autoras, Renato Franco fala que além de ser
aceito socialmente, o ato de enjeitar uma criança era também praticado pelos diferentes
estratos sociais até o advento da elaboração de leis que criminalizaram a prática.
2 O verbo enjeitar era utilizado como sinônimo de abandonar. Dessa forma, há dois séculos, ao se referirem aquele que é alvo do abandono utilizava-se o termo enjeitado ou exposto. 3 Aquele que abandona a criança. 4 Ver em MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. 5 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: M. Del Priore, História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017, pp. 510-553; FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 2002; SÁ, Isabel dos Guimarães. A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto do século XVIII. Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
Assim, podemos asseverar que o abandono era uma prática disseminada, levada a
cabo com a aquiescência dos poderes vigentes, uma vez que era feito às vistas do Estado e da
Igreja Católica. A institucionalização do abandono foi a saída encontrada no sentido de
compatibilizar a prática com os ideais morais católicos. Surgia, assim, no mundo católico, a
Roda ou Casas dos Expostos cujos objetivos principais eram garantir o batismo das crianças
abandonadas e preservar o anonimato do expositor evitando que deixassem os recém-nascidos
em locais que os levassem à morte ou até mesmo praticassem o infanticídio.
A ausência de um espaço de recolhimento de crianças na cidade do Rio de Janeiro
fazia com que fossem abandonados em locais públicos, como nas portas de igrejas e
conventos ou em casas particulares. Em situações extremas, o abandono na rua sujeitava às
crianças a ferimentos ou até a morte provocada por animais que ali transitavam. Dessa forma,
em 14 de janeiro de 1738, a partir de uma doação em dinheiro feita pelo comerciante
português Romão de Mattos Duarte à Santa Casa de Misericórdia, foi fundada a Roda dos
Expostos do Rio de Janeiro.
Instituída em uma das enfermarias do hospital da Misericórdia, a Roda dos Expostos
lá permaneceu até 1810, quando foi construído um edifício próprio na Rua da Misericórdia.
Seu endereço mudou ao longo dos anos e sua localização foi alvo de discussão de médicos e
administradores da Santa Casa que tratavam dos riscos de uma acomodação inapropriada para
a saúde das crianças. Na provedoria de José Clemente Pereira a casa foi transferida para o
Largo da Lapa, local considerado impróprio para abrigar os expostos tendo em vista que nas
proximidades se fazia despejo de lixo. Ali permaneceu até 1860, quando foi removida para a
Rua dos Borbonos, atual Evaristo da Veiga.
Em tese defendida em 1855 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Francisco de
Paula Gonçalves dá grande atenção ás acomodação da Casa da Roda como uma das possíveis
causas para as altas taxas de mortalidade entre os expostos. Segundo o médico, o prédio no
qual se encontrava a Roda não possuía janelas laterais, e os miasmas e a poeira trazidos pelo
vento seriam causas de moléstias entre as crianças. O médico também alertava para os perigos
da acumulação de crianças em um mesmo ambiente, uma vez que não havia o isolamento das
doentes. Os planos da Santa Casa para acomodar as crianças expostas nos moldes concebidos
pela medicina só seriam concretizados em 1910, quando da transferência para a nova sede na
Rua Marquês de Abrantes. Trataremos um pouco mais a frente da construção desse prédio
dentro das novas resoluções da Misericórdia para a infância.
Em seu funcionamento interno, a Roda dos Expostos possuía algumas amas de leite e
amas de criação para prestarem os primeiros cuidados à criança que adentrava a instituição.
Deste modo, uma vez recolhidas, eram registradas no Caderno de Matrícula dos Expostos que
informava a data de entrada da criança na roda, cor, sexo, eventual doença, vestimenta e
demais pertences que trazia junto de si. As cartas deixadas pela mãe ou por aquele que
abandonava também eram anexadas ao livro de maneira a identificar a criança em caso de
resgate futuro da mesma. Depois de matriculada e batizada – o batismo era o sacramento
necessário à salvação de suas almas -, a criança era encaminhada a uma ama de leite externa à
instituição para serem criadas em troca de remuneração até completarem três anos de idade.
Após esse período, a criança era entregue a uma ama-seca que ficaria responsável por sua
criação até os sete anos.
Apesar das críticas feitas por Francisco de Paula Gonçalves às más condições das
acomodações da Casa dos Expostos este defendia em sua tese que a criação dentro do
estabelecimento seria mais segura à vida dos expostos do que aquela privada, em casas
particulares. Para isso, o médico elencava as medidas que julgava necessárias para que a Casa
dos Expostos pudesse seguir com este intento. São elas: 1) a mudança do estabelecimento
para um local espaçoso nos arrabaldes da cidade, onde as crianças poderiam gozar de ar puro;
2) a adoção de amas de leite fortes e vigorosas que amamentassem, cada uma, apenas duas
crianças; 3) o emprego de regentes de amas; 4) a existência de uma pequena casa na cidade
para receber as crianças entradas no dia, devendo a tarde ser encaminhadas para o
estabelecimento geral; 5) a imposição do médico dos expostos residir no estabelecimento; 6)
o uso do aleitamento artificial na impossibilidade de obter o número suficiente de amas.
Entretanto, a Roda dos Expostos no ano de 1855 estava longe da realidade imaginada
por Francisco de Paula Gonçalves para a instituição. Vemos pelo fluxo de entradas e saídas
que a criação externa era uma necessidade para a Casa dos Expostos que não possuía um
prédio com condições higiênicas apropriadas para acolher as crianças. A tabela a seguir é
demonstrativa do movimento das crianças dentro e fora da instituição:
TABELA 1. Mapa do movimento dos expostos da Santa Casa da Misericórdia durante o ano de 1855.
1855
Homens Mulheres TotalGeral
Brancos
Pardos
Pretos
Total
Brancas
Pardas
Pretas
Total
Existiamnofimde1854 8 8 3 19 7 8 4 19 38
Entraramduranteoanode1855 104 130 46 280 103 126 47 276 556
Voltaramparaoestabelecimentocriados
1 1 2 4 4 4 3 11 15
Voltaramparaoestabelecimentoporcriar
11 6 4 21 10 23 4 37 58
Saíram 89 89 22 200 96 103 25 224 424Faleceram 28 48 29 105 22 46 30 98 203
Ficaramnoestabelecimentonofimdoano
7 8 4 19 6 12 3 21 40
Fonte: ROCHA, José Pacheco da. Mapa do movimento dos expostos da Santa Casa da Misericórdia durante o ano de 1855. Arquivo Nacional, Série Saúde (IS35). Código de Fundo: BD; Seção de Guarda: Codes, Rio de Janeiro, 1857.
Os dados informados pelo escrivão da Casa dos Expostos demonstram que durante o
ano de 1855 entraram 556 crianças que, somadas com as 38 que existiam do ano anterior, e 73
que voltaram da criação externa, totalizava 667 crianças. Destas saíram 424, a saber: 8
reclamadas por seu pais, duas remetidas para o Recolhimento das Órfãs, uma para o Hospital,
por ter voltado tuberculosa, uma para a Companhia das menores do Arsenal de Guerra, e 412
dadas a criar fora do estabelecimento6.
Ou seja, mais de 61% das crianças entradas na Roda foram dadas a criar no ano de
1855. Segundo o escrivão, os motivos para isso estariam nos altos índices de mortalidade
entre as crianças que eram mantidas na Casa da Roda em contraposição aos menores daquelas
dadas a criar: Dos que estão criando fora do estabelecimento faleceram também em poder das amas 70. Releva, porém, observar que neste numero entram expostos dados a criar em anos anteriores; sendo por conseqüência muito diminuta a mortalidade destes, em comparação a dos que são criados dentro do estabelecimento, os quais não têm em seu favor as condições higiênicas de que gozam aqueles. Por esta razão tem a administração deste estabelecimento empregado todos os esforços para distribuir por amas externas o maior número possível de expostos; já elevando o salário dessas amas, já buscando-se não só no Município neutro, como fora dele. (ROCHA, 1857, sem paginação)
6 ROCHA, José Pacheco da. Mapa do movimento dos expostos da Santa Casa da Misericórdia durante o ano de 1855. Arquivo Nacional, Série Saúde (IS35). Código de Fundo: BD; Seção de Guarda: Codes, 1857.
Assim, a ausência de acomodações higiênicas que possibilitassem o abrigo dos
expostos na própria instituição tornava a criação externa uma necessidade para a manutenção
da assistência levada a cabo pela Casa dos Expostos. As amas estavam inseridas dentro do
contexto institucional das Rodas sendo imprescindíveis ao seu funcionamento.
A assistência prestada pela Roda bem como as formas consideradas adequadas à
manutenção dos expostos foi alvo de discussão de diversos segmentos da população que
divergiam entre a criação dentro do estabelecimento e aquela em casas particulares. Desde a
segunda metade do século XIX, o assunto aparece não só em teses médicas como em jornais e
até mesmo na produção literária. É o caso do livro A Luneta Mágica, escrito por Joaquim
Manoel de Macedo, e cuja primeira edição é do ano de 1869.
No livro, o personagem principal, míope, recebera de um armênio uma luneta mágica
para curar a sua cegueira. Advertido pelo mágico que não fixasse o instrumento sobre o
mesmo objeto por mais de três minutos, porque lhe daria a visão do mal, o protagonista
sucumbe á tentação e desobedece suas ordens. Assim, começa a vislumbrar o mal existente
em pessoas, animais e instituições que antes eram objeto de sua admiração e fascínio. Foi o
caso da roda dos enjeitados avistada, em certa ocasião, ao passar pela Rua dos Borbonos.
Desacreditado da possibilidade de encontrar algo de mal naquele local de caridoso
acolhimento de recém-nascidos, Simplício fita a roda com a sua luneta: (...) a roda da piedade bem depressa pareceu-me antes protetora do vício e da desmoralização, do que providência salvadora de inocentes criancinhas condenadas; essa roda afigurou-se-me leito ruim de falsa caridade, porta do abandono, da perdição, talvez algumas vezes do cativeiro dos míseros enjeitados; (...) Que faz a roda? Recebe o enjeitado, e depois enjeita-o por sua vez. A verdadeira caridade não enjeita. A roda que faz? Dá os enjeitados a criar, a quem os vem pedir e os leva a dez, a vinte, a cinquenta e mais léguas de distância, e fica muito contente de si, porque paga a criação do enjeitado por dois terços menos, do que de ordinário custa o aluguel de uma ama. (MACEDO, 2011, p. 54).7
A visão que Simplício tem da roda dos enjeitados nos permite entrever alguns dos
argumentos da época sobre a criação externa. O personagem percebe que, ao figurar dentre as
normativas da Casa dos Expostos, a prática de colocar a criança em casa de terceiros seria
semelhante ao abandono das crianças – o mesmo que aquele praticado pelos que a colocaram
na roda, em primeiro lugar. Da mesma forma, o ato da instituição “distribuir por amas
externas o maior número possível de expostos”- como retratado pelo escrivão da Casa dos
Expostos, José Pacheco da Rocha - buscando não só aquelas moradoras da cidade do Rio de
Janeiro, como dos seus arrabaldes, aparece negativamente na fala do personagem. A prática 7 A edição utilizada é a do ano de 2011.
de a Santa Casa escolher criadeiras cuja residência estivesse “protegida das impurezas da
cidade” fica reduzida à distância de suas moradias e, talvez, à dificuldade da Santa Casa
manter um controle sob a criação dispensada à criança. Assim, para Simplício, a saída
plausível era garantir a permanência da criança na instituição, desembolsando quantias
maiores para o aluguel de amas de leite internas para a amamentação e cuidado dos rebentos.
O artigo 2º do regimento do ano de 1840 da Roda (ou Casa) dos Expostos sintetiza as
ações que a instituição reservava à infância naquele período. Nele, fica visível que as crianças
que adentrassem a instituição ficariam ao seu encargo até completarem sete anos, no caso dos
meninos, e oito, no caso das meninas, uma vez que era nesse período que a casa deixava de
remunerar os responsáveis por sua criação. Sete anos marcaria a “idade da razão” e os
meninos poderiam ser admitidos no Arsenal de Guerra. Além desta opção, também poderiam,
igualmente às meninas, ser criados em casa de terceiros encarregados de sua educação,
sustento e tratamento de enfermidades de maneira gratuita. Os expostos que não encontrassem
colocação ficariam conservados na Casa dos Expostos ou, no caso das meninas, também
poderiam ser entregues ao Recolhimento das Órfãs8.
Herdada da legislação portuguesa, era das Câmaras Municipais a responsabilidade
pela assistência aos expostos no Brasil, arcando com as despesas com vestuário e
alimentação. Os altos custos da obrigação bem como o grande número de enjeitados
acabavam por sobrecarregar os cofres públicos o que gerava reclamações por parte dos
camaristas9. Embora não fosse a responsável oficial pelo segmento, paulatinamente, a tarefa
foi transferida para a Santa Casa da Misericórdia. A Lei dos Municípios de 182810 ratifica a
prática de repasse dos cuidados com os expostos das Câmaras para as Santas Casas,
fornecendo subsídios para o desempenho da função.
No final do século XIX, as exigências da nova sociedade se voltam para as “velhas
instituições coloniais”, como a Roda, no sentido de criticarem seu alto índice de mortalidade
8 O Recolhimento das Órfãs foi fundado em 15 de setembro de 1740 com o objetivo de assistir as órfãs filhas de legítimo matrimônio. Entretanto, em 1851, o provedor e Conselheiro de Estado José Clemente Pereira, recebendo a herança deixada por Luiza Avondano Pereira à Santa Casa, manifesta o seu desejo de fundar uma “casa pia para amparar as meninas desvalidas que não fossem orphãs, ou que por sua idade não pudessem entrar no Recolhimento” (CARVALHO, 1908, p. 136). Assim, a partir do decreto nº 931 de 14 de março de 1852, é fundado o Recolhimento das Órfãs e Desvalidas de Santa Thereza que congrega o novo Asilo das Desvalidas e o antigo Recolhimento das Órfãs. Esta instituição, que ganha a proteção do imperador Pedro II, tem por finalidade, nas palavras de Dom Pedro - conforme nos relata Miguel de Carvalho, provedor da Santa Casa no ano de 1908- formar perfeitas mães de família. (CARVALHO, 1908, p. 138). 9 Renato Franco em seu livro A piedade dos outros. O abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII investiga as ações da Câmara de Vila Rica em oposição ao ônus decorrente da assistência aos expostos. 10 “Art. 76. Não podendo prover a todos os objectos de suas attribuições, preferirão aquelles, que forem mais urgentes; e nas cidades, ou villas, aonde não houverem casas de misericordia, attentarão principalmente na criação dos expostos, sua educação, e dos mais orphãos pobres, e desamparados”.
infantil, imputando, sobretudo, às amas de leite mercenárias11 a causa do problema. A relação
entre a institucionalização da pediatria e a criação de instituições de assistência à infância,
com a intensa participação dos médicos, deu outra roupagem à benemerência em suas
diversas atividades de auxílio e proteção. Nesse contexto de institucionalização da pediatria e
da puericultura, a Santa Casa da Misericórdia sofre modificações nas suas ações assistenciais
voltadas à infância, influenciada também pelos debates que estão sendo travados em âmbito
nacional no sentido de construir um Brasil “civilizado” e moderno. A República traz consigo
a esperança de superação da herança colonial e escravista brasileira tornando-se palco de
disputa de diferentes projetos de modernização. Analisaremos esse contexto buscando
relacioná-lo com as transformações sofridas no interior da Roda dos Expostos do Rio de
Janeiro.
A Primeira República e as mudanças na assistência à infância
“Os primeiros sociólogos e escritores políticos, seguidos por empregadores paternalistas, tentaram educar, normalizar a população que trabalha nas cidades ou nas novas plantas industriais, fazer as famílias respeitarem as regras do casamento, melhorar sua moralidade através de seu comportamento diário e propor instituições de ajuda necessárias para que o número e a qualidade da classe trabalhadora aumentassem. Era também importante para eles a diminuição das taxas de mortalidade infantil e o incentivo ao ensino primário, em primeiro lugar no caso dos rapazes e logo a seguir para as meninas. Esta política foi completada por um livre acesso a assistência médica e hospitalar local, necessariamente 12 (ABREU & BOURDELAIS, 2007, p. 22) (tradução livre).
A premência em organizar a assistência no Brasil da Primeira República esteve
fortemente relacionada à preocupação com o pobre e a pobreza urbana, que levou o nome de
questão social. Vinculada ao processo de abolição da escravidão, bem como aos infortúnios
advindos da industrialização e da vida urbana, a questão social irá fornecer as bases para
intensificar a interferência do Estado nas questões referentes às crianças, mulheres e família
(SANGLARD, 2016, p. 57). A transição ao capitalismo e a constituição do homem livre
11 O aleitamento ‘mercenário’ referia-se aquele feito por mulheres mediante pagamento. O termo faz referência aos soldados mercenários que desempenhavam atividades ‘sem amor à pátria’, em troca apenas de dinheiro, e foi utilizado pelo discurso médico de maneira a fazer um contraponto com a amamentação materna e artificial. 12 “The first sociologists and political writers, followed by paternalist employers, tried to educate, normalize the population working in the cities or in the new industrial plants, make families respect the rules of the marriage, improve their morality through their daily behavior, and propose the necessary aid institutions so that the number and quality of the working class would increase. It was also important for them to decrease the rates of infant and child mortality and to encourage primary school instruction, firstly in the case of the boys and soon afterwards in the case of young girls. This policy was completed by a free access to local medical care and hospitals, in necessary” (ABREU & BOURDELAIS, 2007, p. 22).
perceberá o trabalho como elemento essencial à moralidade individual que, complementada
pela vigilância social, incidirá diretamente sobre os indivíduos estigmatizando-os por meio de
categorias como vagabundo e vadio.
Influenciado pela ideologia higienista que viria sobrepor “classes pobres” e “classes
perigosas” no tocante à transmissão de doenças e à desordem, o ambiente intelectual da virada
do século apresentou os meios para a intervenção de médicos e engenheiros (CHALHOUB,
2004). Com isso, as ações dos agentes públicos se voltam para o saneamento urbano e social
no qual a desapropriação e demolição das habitações populares e pequenas casas de comércio,
em larga escala, acaba por causar um aumento significativo no valor dos aluguéis dos cortiços
e quartos de cômodos restantes nas proximidades do centro. Higienizar o espaço urbano e os
costumes era o caminho necessário para o Brasil alcançar o pretendido grau de civilização.
No que concerne à criança, o “problema da infância” será objeto de debates de
médicos, filantropos, higienistas e poderes públicos, sobretudo, em duas frentes. A primeira -
a cargo dos juristas -, em ações voltadas para minorar as origens e consequencias da
delinquencia. Já a segunda, na qual os médicos estariam envolvidos, traduzia-se em diferentes
projetos de atuação para o combate à mortalidade infantil que além de ser considerada
alarmante para a nação que se queria construir, era um empecilho para a formação de mão-de-
obra para a sociedade.
Dessa forma, a Roda dos Expostos deixa, gradualmente, de ter como um dos
principais objetivos a salvação da alma das crianças para tornar-se o espaço de qualificação
para o trabalho. Tornar as futuras mãos-de-obra aptas ao trabalho estava em conformidade
com o projeto modernizador que via nas crianças forças úteis para a nação. Esta é uma
mudança significativa para a instituição que, já no início do século XX, direciona seus
esforços no sentido de fornecer as bases estruturais para a educação infantil. Para a
concretização deste objetivo, um dos primeiros movimentos idealizados pela irmandade da
Santa Casa foi no sentido de diminuir a quantidade de crianças colocadas na criação externa,
garantindo alojamento para a grande maioria e o ensino de ofícios e instrução básica dentro da
própria instituição.
Em relatório apresentado no ano de 1908, o provedor Miguel Joaquim Ribeiro de
Carvalho revela os projetos da irmandade no sentido de construir uma sede para os expostos
de maneira a cumprir com os novos desígnios para a Casa dos Expostos. A nova sensibilidade
em relação à assistência aos expostos torna visível a mudança de postura em relação à criação
externa que agora aparece – também - caracterizada sob a perspectiva da educação que
promove às crianças:
A criação e educação interna nada deixam a desejar, a externa é tolerável. Afim de reunir sob nossas vistas e zelosamente cuidar de todos esses desprotegidos é que foi sugerida, pela dedicada administração a cujo serviço se acha o inexcedível zelo do prezado Irmão Escrivão dos Expostos, e aceita pela Mesa e Junta, a idéa de ser de vastas proporções o edifício onde se tem de ficar definitivamente, na rua Marquez de Abrantes.13
Conforme o livro organizado por Ataulfo de Paiva14, a construção do novo prédio da
Casa dos Expostos seguia os padrões modernos de edificação: (...) A construção do edifício, com amplas accomodações, cuja planta foi traçada pelo Escrivão do estabelecimento Dr. Americo Firmiano de Moraes, em collaboração com a respeitável superiora Irmã Guillhempery, é solida de ferro, alvenaria de pedra e cimento, architectura severa, sóbria de adornos, installação de luz alectrica bem acabada, canalisação de esgotos e serviço sanitário perfeitos. (PAIVA, 1922, pp. 459)
O processo de transformações na Roda dos Expostos no tocante ao amparo à criança
encontra seu ápice no ano de 1910, quando da transferência para a nova sede na Rua Marquês
de Abrantes. A mudança para a sede definitiva esteve relacionada ao novo contexto no qual os
“serviços de assistência à criança deixam de ser concebidos como manifestação da caridade e
são convertidos em espaços de aplicação prática do utilitarismo e da higiene” (SANGLARD
& FERREIRA, 2018, p. 163). Nesse sentido, o novo prédio foi um passo importante para a
concretização dos objetivos da irmandade no sentido da criação interna dos expostos e de sua
educação. Assim, no regulamento da Casa dos Expostos de 1909 era instituído o ensino,
ministrado no estabelecimento, e que compreendia quatro cursos: o infantil, primário,
secundário e o curso geral.
Percebemos que a instrução voltada às meninas era diferente daquela para os meninos,
reflexos das expectativas sociais para cada segmento. Assim, o ensino das meninas abarcava
não só as matérias de doutrina cristã, leitura, caligrafia, aritmética, história sagrada, história
do Brasil, gramática portuguesa, noções gerais de geografia, desenho e escrituração mercantil,
como os trabalhos próprios de “uma boa mãe de família”: aprendiam a lavar, engomar,
cozinhar, além de outros trabalhos domésticos. Também poderiam ser instruídas nos trabalhos
de agulha, bordados, flores, tapeçaria de lã, piano e canto, conforme a idade, aptidão e
inclinação de cada uma. O regime de trabalho das meninas era rigidamente controlado.
Levantavam às 5 horas da manhã e deitavam às 20 horas da noite15, dedicando quatro horas
13 Relatório Apresentando à Mesa da Santa Casa da Misericórdia para o ano de 1908, p 24. 14 O livro foi encomendado pelo prefeito Bento Ribeiro a Ataulfo de Paiva. A maior parte dos dados estatísticos presente na obra é do ano de 1912-1913. 15 “Art. 44. As Expostas levantar-se-ão às 5 horas da manhã e deitar-se-hão às 8 da noite, de 1 de Outubro até 31 de Março, e às 6 horas da manhã e 8 da noite, de 1 de Abril até 30 de Setembro”. CARVALHO, Miguel Joaquim
ao estudo e várias outras aos trabalhos manuais. O tempo para as refeições e recreios girava
em torno de quatro horas diárias.
Em comparação com as meninas, a instrução voltada aos meninos parecia tímida. Até
os doze anos seriam instruídos em leitura, caligrafia, doutrina cristã, aritmética, gramática
portuguesa, noções de geografia e História do Brasil. Depois disso, deveriam ser admitidos
em qualquer estabelecimento industrial ou de educação, sendo preferíveis os da Santa Casa,
ou confiados a pessoas que os queiram receber, obrigando-se a dar-lhes, sem retribuição,
educação, instrução, vestuários e curativos. Com a criação das oficinas de sapataria e de
alfaiataria, na Casa dos Expostos, em 8 de março de 1911, aos 13 anos os meninos passariam
a aprender os ofícios dentro do estabelecimento.
O período que ficavam sob o amparo da instituição também diferia entre os sexos. As
meninas permaneceriam sob a proteção da Casa dos Expostos até completarem 20 anos de
idade, período no qual caberia à irmã superiora colocá-las em “casas de família” ou qualquer
outro estabelecimento “de confiança”. O objetivo era assegurar a honra e a virtude das
meninas até contraírem matrimônio ou saírem para os cuidados de uma família. Os meninos,
por outro lado, se desligariam da instituição bem antes, aos 13 anos, quando seriam
encaminhados para outros locais de instrução, trabalho ou de cuidado (casas particulares). Na
prática, com a inauguração das oficinas em 1911, os laços com a instituição se mantiveram até
o fim do aprendizado. O que fica claro, entretanto, é que a instrução masculina voltava-se ao
trabalho, de maneira a criar corpos produtivos e incutir uma moralidade que os afastasse da
vadiagem.
Diante das novas atribuições da casa, o quadro institucional da Roda dos Expostos
também passa a contar com novos atores além dos já existentes. O livro Assistência Pública e
Privada no Rio de Janeiro informa os funcionários presente na instituição no ano de 1912 e
1913: dois médicos, sendo um exclusivamente para cuidar dos menores de 2 anos, um
dentista, um capelão, professores de ginástica e música, 12 amas de leite, 20 expostos
trabalhando como auxiliares, recebendo remuneração mensal e a Superiora, escolhida dentre
as irmãs de São Vicente de Paulo para a administração da Casa dos Expostos. Trabalhadores
desenvolvendo atividades diversificadas na Roda: sinal da nova assistência à infância levada a
cabo pela instituição.
Ribeiro de (Org.). Estatutos da Casa dos Expostos da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., Rio de Janeiro, 1909.
Cabe ressaltar que o médico responsável pelas crianças menores de dois anos –
admitido em 1911 -, o doutor Santos Moreira16, havia sido assistente de Fernandes Figueira17
na clínica médica da Policlínica das Crianças da Santa Casa da Misericórdia, em 1909. Esse
dado nos permite pensar nas possíveis influências que os projetos formulados pelo médico
para a saúde infantil tiveram na Roda dos Expostos através de seu pupilo.
Em um momento em que os limites de atuação dos poderes públicos e privados na
assistência à infância ainda não estavam bem delimitados, o médico defendia que à filantropia
caberia a abertura de creches, consultórios de lactantes e associações para a primeira infância.
Todo o restante das atividades ficaria sob a responsabilidade do poder público. Uma das
principais bandeiras de luta de Fernandes Figueira foi contra a mortalidade infantil, causa que
definiu seu projeto de assistência que via o aleitamento materno como elemento essencial
para o combate ao problema. O público-alvo do médico voltava-se às operárias e crianças de
até 1 ano de idade. (SANGLARD, 2016, p. 61).
A segunda metade do século XIX abarca movimentos paralelos que acabam por
fornecer as bases para a perda progressiva do protagonismo das amas em detrimento de outras
formas de cuidar das crianças. Um destes é luta travada por médicos e demais agentes
públicos pelo fortalecimento do vínculo entre mãe e filho. A maternidade será exaltada como
a mais relevante função feminina e, a amamentação, como essencial ao combate à
mortalidade infantil. Segundo Karoline Carula, a luta travada por médicos pelo aleitamento
materno relacionava-se a uma mudança que se pretendia para a própria ordem familiar,
fundamentada em uma sociedade burguesa liberal (CARULA, 2011, p. 212).
Entretanto, Cláudia Fonseca propõe uma reflexão a partir de uma abordagem
historiográfica que toma o modelo da família nuclear “como o corolário inevitável da
modernidade e da industrialização” (FONSECA, 2017, p. 545). Ao contrário da nuclearização
inevitável da família que acompanha a urbanização, a autora defende a possibilidade de
haverem outras configurações possíveis naquele contexto. Desse modo, as uniões consensuais,
16 O doutor A. A. Santos Moreira foi o responsável por apresentar os dados estatísticos relativos à seção “Casa dos Expostos” do livro Assistência Pública e Privada no Rio de Janeiro. O limite dos dados é o ano de 1913. 17 Fernandes Figueira fez parte da primeira geração de pediatras que se formou em torno de Arthur Moncorvo de Figueiredo (1846-1901) e de seu curso livre de Pediatria na Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Juntamente com Arthur Moncorvo Filho e Luiz Barbosa, teve importante papel na formulação de projetos para a assistência à infância que se concretizariam em diferentes instituições voltadas a esse segmento: o Instituto de Proteção e Assistência à Infância (IPAI), idealizado e fundado por Moncorvo Filho em 14 de julho de 1899; a Policlínica de Botafogo, instalada em 10 de junho de 1900, com Luiz Torres Barbosa à frente de suas tarefas; e a Policlínica das Crianças da Santa Casa da Misericórdia, inaugurada em 1909, com Fernandes Figueira enquanto diretor, cargo no qual permaneceu por 14 anos e onde pôde colocar algumas de suas ideias em prática.
os casamentos “precoces”, as altas taxas de bastardia e as crianças em circulação18 (que
tornava as crianças responsabilidade de todo o grupo de parentesco) foram algumas das
tendências relacionadas à organização familiar dos grupos populares. Como demonstra
Cláudia, a difusão da família conjugal moderna é fruto de uma construção histórica que
envolveu tensões e adaptações entre duas culturas.
Assim sendo, diante das configurações familiares possíveis para os grupos populares,
a tentativa de instituições como a Santa Casa foi manter o vínculo entre mães e filhos. Dessa
forma, Gisele Sanglard resgata uma categoria que surge na década de 1870 nos livros de
registro de crianças da Casa dos Expostos: a de criança desamparada. As crianças nomeadas
enquanto “desamparadas” eram aquelas enviadas à Casa dos Expostos por suas mães se
encontrarem internadas no Hospital Geral da Santa Casa. Importante notar que era no
Hospital Geral que, desde 1808, ocorriam as aulas práticas da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro. Tal constatação permite pensar nas prováveis influências da institucionalização
das especialidades médicas na Faculdade de Medicina nas ações assistenciais levadas a cabo
pela Santa Casa. No entanto, o primeiro livro de registro analisado pela autora é anterior a
data de criação da cátedra de pediatria na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, fato
ocorrido em 1883.
A presença das mulheres no Hospital revela a ausência de uma “estrutura familiar ou
laços de solidariedade horizontal” que permitissem que fossem amparadas em sua
enfermidade – bem como os seus filhos (SANGLARD, 2016, p. 345). Por outro lado, a
remessa das crianças para a Casa dos Expostos indica a incapacidade ou a falta de condições
do Hospital Geral para cuidar das crianças filhas das mulheres enfermas. Nesta última
provável causa para o depósito das crianças na Roda parece ecoar o processo de
medicalização do hospital19 - decorrente da transformação do hospital de caridade em local de
ensino - que excluiu dos seus corredores aqueles que não estivessem entre os pacientes com
doenças curáveis. Dessa forma, de maneira a garantir que, depois de curada, mãe e filho
18 A circulação de crianças, ligada diretamente à existência da família extensa, fazia parte de uma estratégia coletiva para garantir a sobrevivência das crianças. Dessa forma, embora o cuidado das crianças coubesse à mulher, este não era necessariamente desempenhado pela mãe biológica. Ao considerar a maternidade em grupos populares a autora chama a atenção para aquela exercida pelas avós, criadeiras e mães de criação. A precariedade da vida conjugal cujos laços podiam ser desfeitos pela migração de um dos integrantes, divórcio e, sobretudo, pela morte explica a estratégia de tornar a criança responsabilidade de todo o grupo de parentesco. (FONSECA, 2017, p. 534). 19 Sobre o processo de medicalização do hospital ver mais em: SANGLARD, Gisele & FERREIRA, Luiz Otávio. Caridade e Filantropia: elites, estado e assistência à saúde no Brasil. In: TEIXEIRA, Luiz Antonio. PIMENTA, Tânia Salgado. HOCHMAN, Gilberto (Orgs.). História da Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Hucitec, 2018. pp.145-181.
permanecessem unidos a Santa Casa passa a remeter seus filhos para a Casa dos Expostos.
Com isso, novas categorias de criança – além das “expostas” – passa a surgir no interior do
estabelecimento, sinal do novo entendimento em relação à criança e à família.
Considerações Finais
A Casa dos Expostos foi uma instituição de acolhimento de crianças que durante a
Primeira República sofreu intensas modificações em suas ações assistenciais. Como visto,
esta passou a adotar o modelo escola, assumindo a função de escolariar as crianças. Em um
contexto de construção de uma nova visão de infância, de estruturação da concepção de
família burguesa e constituição das cátedras de pediatria e puericultura a prática do abandono
de crianças passa a perder terreno dentre as classes mais abastadas da cidade do Rio de
Janeiro. Criava-se a ideia de família nuclear, na qual a mulher teria um importante papel na
salvaguarda de sua prole através do cumprimento dos preceitos médicos e higiênicos. Estes
prescreviam a amamentação materna como dever feminino e primordial à saúde infantil.
Dessa forma, se a causa do abandono infantil para os séculos XVIII e XIX não era,
necessariamente, a pobreza, para o início do século XX, é a pobreza que gera o abandono. A
abolição da escravidão, a imigração maciça, as transformações no meio urbano, as medidas
higienistas que marcam o final do século XIX e as primeiras décado do XX tiveram
consequências profundas na vida da população da cidade do Rio de Janeiro. Não a toa a
presença de mulheres nas enfermarias do Hospital Geral - por não possuírem laços familiares
– e de seus filhos. Esta nova realidade social aliada ao discurso maternalista acaba por
repercutir na Casa dos Expostos que passa a abrigar as crianças cujas mães estivessem
hospitalizadas de maneira a garantir que mãe e filho permanecessem unidos após a
permanência no hospital.
Fontes Primárias
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Referências
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