acp - detran taxa de reexame - dra helen
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EXCELENTISSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DE DIREITOS
DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS DA COMARCA DE CAMPO
GRANDE/MS.
O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, por seus representantes de
Defesa dos Direitos do Consumidor, que esta subscreve, no uso de suas atribuições
legais previstas no artigo 129, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988, e com
fulcro nos elementos fáticos, técnicos e jurídicos colhidos nos autos do Procedimento
de Investigação Preliminar nº 003/2006, que foi instaurado pela Promotoria de Justiça
de Defesa do Consumidor da Comarca de Dourados/MS, doravante referendado como
PIP 003/06, vem respeitosamente, à presença de Vossa Excelência propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM OBRIGAÇÃO DE FAZER E NÃO
FAZER, COM PEDIDO LIMINAR em desfavor de:
DETRAN, Departamento Estadual de Trânsito, autarquia, criada pela
Lei nº 537, de 6 de maio de 1985, com personalidade jurídica de direito público, e com
1
sede na Rodovia MS 80, KM 10, Campo Grande/MS, CEP: 79114-901, fone 3368-0100,
representado pelo Sr. Diretor-Presidente, Gilberto Tadeu Vicente, razão pela qual
expende as subseqüentes considerações de fato e de direito:
I- DOS FATOS
O Departamento Estadual de Trânsito, Detran, é o órgão executivo do
Sistema Estadual de Trânsito, que tem por finalidade implementar as medidas da
Política Nacional de Trânsito e do Programa Nacional de Trânsito no território do
Estado de Mato Grosso do Sul. É de sua responsabilidade a realização das provas
teóricas e práticas que se destinam à obtenção da CNH - Carteira Nacional de
Habilitação.
1.1. COBRANÇA INDEVIDA
A partir da publicação da Portaria Normativa n° 29 de 15 de julho de
2005, o Detran passou a cobrar a denominada “taxa de reexame” dos alunos
reprovados ou ausentes nas avaliações teóricas e práticas.
O valor da taxa é de 2 UFERMS (Unidade Fiscal Estadual de
Referência de Mato Grosso do Sul), o que eqüivale, atualmente, a R$ 22, 60 (vinte e
dois reais e sessenta centavos).
O termo “taxa de reexame”, significa, em poucas palavras, o pagamento
de uma taxa para que o candidato seja examinado novamente, seja porque não
compareceu à data previamente agendada, seja porque reprovou.
Referida taxa deveria ser cobrada somente nos casos acima
mencionados, quais sejam, em se tratando de ausência de candidato ou de reprovação.
2
No entanto, não é isso que ocorre. O requerido está cobrando a “taxa de reexame”
daqueles candidatos que nunca realizaram prova alguma, que ainda irão se submeter
pela primeira vez à prova teórica, já que a taxa da prova prática foi suspensa mediante
a concessão de medida liminar.
Alega o requerido, à fl. 048 do PIP 003/06 que efetua a cobrança da
taxa de reexame na primeira avaliação somente em caso de agendamento do exame
teórico.
Tal argumento por si só enseja a confissão do requerido de que cobra a
“taxa de reexame” de candidatos que ainda não foram examinados, caracterizando
evidente cobrança indevida e enriquecimento ilícito do órgão.
E mais, tendo em vista o grande número de pessoas que fazem
exames teóricos para obter a 1ª (primeira) habilitação no Estado de Mato Grosso do
Sul, não há possibilidade de prestar referido exame sem agendamento prévio, até
porque se o nome do candidato não constar na lista dos examinadores, o mesmo não
pode realizar a prova.
Ademais, o número de cadeiras disponíveis na sala para a realização
das provas é limitado, não havendo, portanto, sob qualquer hipótese, a possibilidade de
um ou vários candidatos comparecerem no local de provas e realizá-la sem ter sido
agendado previamente.
Desse modo, está o requerido coagindo os consumidores do Estado de
Mato Grosso do Sul a efetuarem o pagamento da taxa, vez que não o fazendo, não
podem realizar a prova teórica, e conseqüentemente as demais etapas do processo de
habilitação.
3
A título de exemplo, apenas em uma Auto-Escola da região de
Dourados/MS, 106 (cento e seis) alunos foram compelidos a pagar a taxa de reexame
na primeira prova teórica do Detran (fls. 042/044 do PIP 003/06). O que se dirá de todos
os candidatos do Estado que pagaram a “taxa de reexame” indevidamente.
Ressalte-se que os documentos encartados às fls. 137/802 dos autos
de PIP correspondem às Guias de Serviços de Habilitação, nas quais verifica-se que o
motivo ensejador da cobrança é a primeira habilitação.
Resta evidente que o Detran cobrou de candidatos de primeira
habilitação e que nem sequer fizeram prova teórica o valor de R$ 22,60 referente a
“taxa de reexame”
O Detran, ao ser questionado, aduziu que a cobrança da taxa se
justifica como forma de compelir os Centros de Formação de Condutores (CFC) a
encaminharem para a realização das provas teóricas, somente candidatos que estejam
preparados para tal.
Ocorre que, atualmente, os Centros de Formação de Condutores
devem cumprir uma meta de aprovação de 80% (oitenta por cento) no período de três
meses consecutivos, sendo que em caso de não cumprimento da meta, o mesmo
receberá uma punição do órgão estadual.
Por tal motivo, os Centros de Formação de Condutores realizam
simulados antes da realização do exame teórico, e apenas são encaminhados para a
prova aplicada pelo Detran os candidatos que obtiverem nota igual ou superior a 7
(sete) no simulado, sendo que em caso de nota inferior, o candidato passa por novo
simulado, e assim sucessivamente, até atingir a média mencionada, só então é
encaminhado ao exame.
4
Dessa forma, os candidatos são muito bem preparados antes de serem
encaminhados ao exame teórico, não se justificando tal argumento defendido pelo
requerido.
Portanto, não se justifica a cobrança pelo Detran de “taxa de reexame”
dos candidatos que comparecerem no local de prova pela primeira vez, caracterizando
evidente lesão aos milhares de consumidores sul matogrossenses que precisam obter
sua CNH – Carteira Nacional de Habilitação, ensejando inclusive a devolução dos
valores cobrados indevidamente.
Às fls. 875/876 do PIP, alega o Detran de Mato Grosso do Sul que a
taxa de reexame teórico-técnico é aplicada invariavelmente, tratando de primeiro exame
ou em situação de novo exame.
1.2. LESÃO A DIREITO ADQUIRIDO
Outra questão que merece destaque na presente exordial é atinente a
outra medida tomada pelo Detran/MS, a saber: o requerido pretende cancelar todos os
processos de habilitação de CNH protocolados e pagos a mais de 1 (um) ano, a contar
de 20/06/2005, com espeque na Resolução n.º 168 de 14 de dezembro de 2004, art. 2º,
§3º do CONTRAN e art. 1º da Portaria 15 de 31 de maio de 2005.
Com esta medida, os candidatos deverão dar início a um novo
processo, pagando novamente todas as taxas, independente do motivo da não
obtenção da CNH no prazo inferior a doze meses.
5
Só em Mato Grosso do Sul, 34.850 (trinta e quatro mil, oitocentos e
cinqüenta) candidatos terão seus processos de habilitação cancelados, conforme se
extrai do edital de notificação publicado no Diário Oficial n° 6722 de 08 de maio de 2006
(fls. 61/136 do PIP 003/06).
A ilegalidade da conduta praticada cinge-se ao fato de que, dentre as
38.850 habilitações sujeitas ao cancelamento, várias foram protocoladas antes da
entrada em vigor da Resolução 168/2004 e antes da Portaria 15/2005 (relação fls.
61/136 que consta a data de protocolo das habilitações), num flagrante desrespeito ao
disposto no art. 5º, inciso XXXVI da CF (direito adquirido).
Tal fato é inadmissível e fere frontalmente a segurança jurídica e os
direitos dos consumidores.
Desse modo, no intuito de resolver a questão de maneira amigável,
este Órgão Ministerial convidou o requerido para uma reunião na sede da Procuradoria-
Geral de Justiça, sendo a mesma realizada aos 05 de junho de 2006, na qual ficou
estabelecido que o mesmo teria o prazo de 10 (dez) dias para prestar esclarecimentos
a cerca da taxa de reexame para candidatos que não estão ausentes ou que não foram
reprovados (fls. 860/862). Ademais, o requerido afirmou que não iria cancelar os
procedimentos instaurados entre o período de 21 de junho de 2000 a 20 de junho de
2005.
Todavia, o prazo já expirou e nenhuma providência foi comunicada ao
Ministério Público e nem tampouco na página web do Detran, evidenciando o desejo de
ganhar tempo e não cumprir o que fora entabulado com o parquet.
Assim, é necessária a propositura da presente, vez que somente o
provimento jurisdicional poderá compelir o requerido a abster-se de tal cobrança, bem
como para compelir o mesmo, por meio de obrigação de fazer a publicar nova portaria,
6
normatizando a aplicação do prazo de vencimento dos processos de habilitação
estipulados pela Resolução nº 168 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN).
II- DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A defesa do consumidor adquiriu status constitucional a partir do
advento da Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 5º, inciso XXXII,
estabeleceu tal dever ao Estado.
Desse modo, desde o avento da vigente Carta Magna, o Ministério
Público detém entre as suas funções institucionais a defesa dos direitos
metaindividuais, difusos e coletivos – inclusive os de índole consumerista – através
de instrumentos como o inquérito civil e a ação civil pública (art. 129, inciso III), bem
como a legitimidade para “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que
compatíveis com sua finalidade (...)”.
Imbuído desse espírito e atendendo, portanto, a um mandamento
constitucional, incluiu-se no ordenamento jurídico-positivo brasileiro a Lei n.º 8.078/90,
que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, responsável pela introdução de novos
conceitos jurídicos nos planos material e processual e pela ampliação das atribuições
do Ministério Público, corroborando a legitimidade do Parquet para a defesa dos direitos
difusos e coletivos e incluindo nesse rol de atribuições a defesa dos direitos
individuais homogêneos1.
Dessa forma, estando o Ministério Público incluído entre os legitimados
de que trata o art. 82 do CDC, forçoso concluir pela inexistência de qualquer óbice para
a dedução em juízo desta pretensão Ministerial, qual seja, a de obter sentença
condenatória genérica que imponha ao Detran/MS que se abstenha de efetuar 1 A esse respeito, lê-se dos artigos 81 e 82 do Código de Defesa do Consumidor.
7
cobrança irregular da “taxa de reexame”, bem como para que publique Portaria
retificando o prazo de vencimento dos processos de habilitação estipulados pela
Resolução do Contran n.º 168/2004.
Esta, inclusive, é a pacífica inteligência sedimentada pelos Tribunais
Brasileiros, valendo ressaltar, em especial, o entendimento do Egrégio Superior
Tribunal de Justiça, bem representado pela ementa a seguir transcrita:
“PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO COLETIVA – DIREITOS COLETIVOS,
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E DIFUSOS – MINISTÉRIO PÚBLICO –
LEGITIMIDADE – JURISPRUDÊNCIA – AGRAVO DESPROVIDO – O
Ministério Público é parte legítima para ajuizar ação coletiva de proteção
ao consumidor, inclusive para tutela de interesses e direitos coletivos e
individuais homogêneos”. (STJ. AGA 253686. (199900665600). SP. 4ª
T. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. DJU 05.06.2000. p. 00176).
Segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth2: “A concepção tradicional do
processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era
visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma
controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses
individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um
segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. (...) a proteção de tais
interesses tornou necessária uma transformação do papel do juiz e dos conceitos
básicos como a ‘citação’ e o ‘direito de ser ouvido’. Uma vez que nem todos os titulares
de um direito difuso podem comparecer a juízo – por exemplo, todos os interessados na
manutenção da qualidade do ar, numa determinada região – é preciso que haja um
‘representante adequado’ para agir em benefício da coletividade, mesmo que os
membros dela não sejam ‘citados’ individualmente”.
2 CAPPELLETTI, Mauro et all. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Sérgio Antônio Fabris Editor. 1988. p. 49-50.8
Ademais, assevera o art. 25, IV, alíneas a e b e inciso VIII da Lei
Federal n.º 8.625 de 12/02/93 (Lei Orgânica Nacional do MP) que incumbe, ainda, ao
Ministério Público a promoção do inquérito civil e da ação civil pública, na forma da lei
para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao
consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico, e outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e
homogêneos.”(sem grifo no original).
No caso em tela, o Ministério Público é um dos “representantes
adequados” para o ajuizamento da ação, encontrando-se legitimado pelo Direito vigente
para interpô-la, em defesa dos direitos coletivos e individuais homogêneos de todos os
consumidores que estão utilizando os serviços prestados pelo requerido para o fim de
obter a Carteira Nacional de Habilitação, imprescindível na sociedade moderna.
Vislumbra-se no caso, ainda, o direito individual homogêneo dos
candidatos à primeira habilitação, que são compelidos a pagar individualmente para
realizar a prova teórica, em virtude de procedimento de cobrança aplicado
generalizadamente pelo requerido em desfavor de todos os consumidores (origem
comum). Também é individual homogêneo o direito à restituição dos valores pagos,
nos termos do art. 42, parágrafo único da Lei n.º 8.078/90, vez que tal conduta é tida
como indevida.
No que se refere aos aspectos individuais homogêneos da lide, o
interesse social relevante da medida é patente, posto que a defesa coletiva se afigura
imprescindível à solução rápida e homogênea da lide, através de um único processo,
como ferramenta de economia e celeridade processual, bem como de distribuição
eqüitativa e equilibrada da Justiça, especialmente diante do imenso número de
9
consumidores, dispersos por todo o Estado de Mato Grosso do Sul, que se valem dos
serviços prestados pela parte passiva da presente demanda.
Além disso, considerando-se a dimensão pessoal dos danos causados,
dificilmente poder-se-ia empreender uma defesa eficiente pela via individual,
especialmente por que o custo e o tempo exigidos para o patrocínio de uma demanda
judicial desestimulam as reações particulares dos cidadãos, afigurando-se
indispensável a atuação do Ministério Público para que reste garantido o respeito ao
Direito vigente.
Está demonstrado, portanto, que o Ministério Público é juridicamente
legitimado para o ajuizamento da presente ação, em defesa dos direitos coletivos e
individuais homogêneos de todos os consumidores de serviços prestados pelo Detran,
mormente, os de habilitação para direção veicular.
III- DO DIREITO
A) Regime Jurídico das Relações de Consumo
Não se pode olvidar que toda interpretação sistemática,
necessariamente, deve ser realizada a luz da Constituição.
Neste sentido, a Constituição Federal, ao estabelecer os princípios
gerais que informam as atividades econômicas, primou, dentre outros princípios, pela
defesa do consumidor, ao discipliná-la entre os princípios norteadores da atividade
econômica (art. 170, V).
O Poder Constituinte Originário referiu-se ainda à proteção do direito
dos consumidores ao consignar no inciso XXXII do artigo 5º que “o Estado promoverá,
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na forma da lei, a defesa do consumidor”, conferindo-lhe a condição de direito
fundamental (sem grifo no original).
A interpretação sistemática do direito obriga o intérprete do Código de
Defesa do Consumidor a recorrer sempre aos três princípios pilares do sistema
consumerista: a) o princípio da repressão eficiente a todos os abusos; b) da
harmonização das relações de consumo e o c) princípio da vulnerabilidade (art. 4º, I e
III do CDC), para que se consiga aplicar quaisquer das regras de conduta ou de
organização espalhadas pelo CDC ou em outros diplomas que integram o
microssistema das relações de consumo.
Na aplicação do direito consumerista, o intérprete não deve se
esquecer também dos demais princípios e subprincípios que informam a defesa do
consumidor, como o da boa-fé objetiva, da informação, do não-enriquecimento sem
causa, da proibição da fixação de obrigações iníquas e abusivas, da eqüidade, da
interpretação das cláusulas de forma mais benéfica ao consumidor, da ordem pública,
da livre concorrência, da moralidade, da proporcionalidade, da facilitação da defesa do
consumidor, da transparência, da veracidade das informações e da relatividade do
“pacta sunt servanda”.3
Sobre o princípio da vulnerabilidade, é oportuno trazer aos autos o
pensamento de Antônio Herman Vasconcelos Benjamin, um dos autores do anteprojeto
do CDC, in verbis:
“Todo sistema move-se em torno de alguns princípios essenciais. No
Código o mais importante princípio é o da vulnerabilidade do
consumidor (art. 4º, inciso I). Independentemente de sua condição
social, de sua sofisticação, de seu grau de educação, de sua raça, de
3 Só vigora para o consumidor quando o pactuado não viola ou não contraria a lei, o que demonstra que o princípio da força obrigatória do contrato e o da autonomia da vontade perderam muito de sua força.
11
sua origem ou profissão, o consumidor é considerado pelo Código
como um ser vulnerável no mercado de consumo. É esse princípio
maior – basilar mesmo – que deve orientar a atividade de interpretação
do Código.”4
Diante disso, há se aplicar a Lei 8.078/90, nascida da necessidade de
reconhecer legalmente a vulnerabilidade do consumidor.
Outrossim, o CDC (Código de Defesa do Consumidor) veio a lume para
dar eficácia plena às normas que visam proteger os consumidores, previstas na
Constituição Federal de 1988, já mencionadas (artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso V).
Insta salientar, que se deve entender como sistema de proteção ao
consumidor não apenas o Código de Defesa do Consumidor, mas, também, aqueles
diplomas legais, que, indiretamente, visem à proteção do consumidor, entre os quais
destaca-se a Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), que reputou ao Ministério
Público a legitimidade para a defesa dos direitos dos consumidores (art. 1º, II c/c art. 5º,
caput).
Imperioso trazer à baila, ainda, que entre os direitos básicos do
consumidor encontram-se a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva,
métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas abusivas ou
impostas no fornecimento de produtos e serviços, bem como a efetiva proteção e
reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos (CDC, art. 6°,
IV e VI).
4 Código de Defesa do Consumidor anotado e exemplificado pelo IDEC, São Paulo, Marilena Lazzarini, Josué de Oliveira Rios, Vidal Serrano Nunes Jr, ASV Editora, 1991, p. 9.
12
Por fim, a legislação consumerista, traz conceitos de grande valia sobre
consumidor, fornecedor, produto, serviço, fulcrados nos artigos 2º e 3º do CDC.
Pelo exposto, prescindíveis maiores argumentações para se constatar
haver uma relação de consumo entre os candidatos à primeira habilitação e a parte
requerida.
Com base nesses princípios e ensinamentos é que foram analisadas as
condutas do requerido, afigurando-se violações a vários princípios constitucionais, cujas
correções estão sendo agora solicitadas ao Poder Judiciário, com o escopo de serem
reprimidos esses abusos.
B) Da Cobrança Indevida
Muitas vezes, a cobrança indevida não decorre de erro de cálculo
stricto sensu, mas da adoção, pelo credor, de critérios de cálculo e cláusulas
contratuais financeiras em desconformidade com o sistema legal de proteção do
consumidor.
É o que ocorre no caso em testilha, vez que o Detran/MS, com
fundamento na Portaria Normativa n° 29 de 15 de julho de 2005, vêm reiteradamente
cobrando a chamada “taxa de reexame” dos exames teóricos dos candidatos à primeira
habilitação.
Ocorre Excelência, que segundo dispõe a Portaria, referida taxa apenas
será cobrada nos casos em que o candidato estiver ausente no dia do exame ou se o
mesmo for considerado inapto, ou seja, reprovado.
13
Vejamos, o que aduz os artigos 30 e 31 da mencionada Portaria
Normativa:
“Art. 30. No processo de ensino os dirigentes dos Centros de Formação
de Condutores deverão proceder conforme as seguintes orientações:
I- (...);
II- Exigir do candidato que for considerado inapto no relatório do
instrutor e que, mesmo assim, desejar realizar os exames junto ao
DETRAN-MS, declaração escrita responsabilizando-se pelas
conseqüências, ciente de que, em caso de reprovação, somente poderá
realizar novo exame, a partir do 15° (décimo quinto) dia a contar da
data da divulgação do resultado, devendo recolher, previamente, a
taxa de reexame;
§ 1° Em todos os casos de reexames, por reprovação, os candidatos
deverão recolher previamente ao novo agendamento, taxa de
reexame prevista em tabela de serviços do DETRAN-MS.
Art. 31. A ausência do candidato a exame de habilitação implicará em
prévio pagamento de taxa de exame para agendamento de nova
data, sujeitando-o ainda, à disponibilidade de vaga para o novo
exame.” (sem grifos no original)
Observa-se a Portaria não menciona que a cobrança de taxa de
reexame deverá ser feita aos candidatos que o solicitarem no momento do pedido de
habilitação. Diante disso, a lacuna da norma não pode ser interpretada em prejuízo ao
consumidor. De forma clara que a taxa de reexame refere-se tão somente para os
candidatos ausentes e/ou reprovados no exame.
14
Ao agente público não lhe é facultado fazer o que a norma não proíba,
mas somente o que ela expressamente permita. Não é possível interpretação extensiva
dos dispositivos acima elencados, já que a norma explicitamente prevê a cobrança em
suas situações: candidatos reprovados e ausentes. Não há outra hipótese, motivo pelo
qual a sua cobrança é indevida.
Assim, verifica-se a irregularidade da taxa para os casos em que os
candidatos se submetem pela primeira vez ao exame teórico, haja vista que o mesmo
não havia sido agendado anteriormente, não existindo, portanto, justificativa alguma
para tal cobrança.
Além de configurar prática abusiva, a toda evidência demonstra ser um
ato ilegal, pois em se tratando de concessão de serviço público, a cobrança de uma
remuneração sem permissão legal e justa causa conduz ao ilícito civil, ocorrendo,
inclusive um enriquecimento injusto, e ilícito, o que é vedado pela legislação pátria.
O Código Civil Brasileiro prevê o enriquecimento ilícito em seu art. 884,
caput, in verbis:
“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem,
será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos
valores monetários”.
E complementa em seu parágrafo único que:
“Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a
recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a
restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido”.
Outrossim, o Código de Defesa do Consumidor determina em seu art.
39, inciso V a vedação ao fornecedor de produtos ou serviços (...) exigir do consumidor
15
vantagem manifestamente excessiva”, viabilizando, inclusive a devolução em dobro dos
valores recebidos, como preconiza o art. 42 do mesmo instituto.
Quando se apropria integralmente dos valores pagos pelo candidato
que fará pela primeira vez o exame teórico, o Detran de Mato Grosso do Sul,
experimenta uma vantagem indevida e sem causa, da qual decorre flagrante prejuízo
para os consumidores.
Embora o valor da taxa seja de apenas 2 (dois) UFERMS, o
correspondente a R$ 22, 60 (vinte e dois reais e sessenta centavos), a quantia torna-se
expressiva se considerar-se o valor cobrado de todos os candidatos em todo o Estado
desde o dia 15 de julho de 2005.
Vale lembrar que, em apenas em um Centro de Formação de
Condutores em Dourados/MS, denominado “Auto-Escola Liderança”, 106 (cento e seis)
candidatos foram obrigados a pagar a taxa de reexame na primeira prova teórica do
Detran, sob pena de que se não o fizessem não poderiam dar continuidade no processo
de habilitação à obtenção da CNH (fls. 042/044 do PIP 003/06), num total de R$
2.395,60 (dois mil trezentos e noventa e cinco reais e sessenta centavos) que foram
repassados ao Detran, no período compreendido entre julho de 2005 a março de 2006.
Isso sem mencionar as reprovações e ausências.
Não se olvide que somente em Dourados existem mais de 10 Centro de
Formação de Condutores. Imagine, Excelência, quanto o requerido não lucrou com
essa cobrança ilegal em todo o Estado de Mato Grosso do Sul?
De igual modo auferirá vantagem indevida, e em conseqüência,
enriquecimento ilícito, se a tutela jurisdicional ora pleiteada não compelir o requerido a 16
abster-se de cancelar os processos de habilitação dos candidatos protocolados antes
de 14 de março de 2005 (data da entrada em vigor da Resolução 168/2004),
publicando, para tanto, uma Portaria no Diário Oficial para que todos os candidatos
tomem conhecimento de que poderão dar andamento em seus procedimentos.
Agindo de tal forma, os 34.850 procedimentos de habilitação serão
cancelados e o Detran subtrairá para si uma quantia elevadíssima, já todos os
candidatos terão que iniciar novo processo e, portanto, pagar novamente pela taxa de
reexame, somando-se um total de R$ 787.610,00 somente destes, sem contar que a
cada dia vários pedidos são protocolados.
Adotando essas práticas, o requerido promove enriquecimento próprio
sem causa, em flagrante contrariedade com os dispositivos já citados do Código de
Defesa do Consumidor e do Código Civil, notadamente, os princípios da
vulnerabilidade do consumidor e da boa-fé, este último positivado no art. 51, inciso
IV do CDC.
A Política Nacional das Relações de Consumo tem, como um dos seus
objetivos, assegurar a proteção dos interesses econômicos dos consumidores e o
respeito à sua dignidade, com base na transparência, harmonia e vulnerabilidade do
consumidor, exigindo sempre a boa-fé para preservar os interesses das partes,
conforme expressamente consignado no artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor.
De acordo com o caput e inciso III, do artigo 4º, do Código de Defesa
do Consumidor, as relações de consumo devem ser norteadas por princípios, dentre os
quais se destaca, nesta hipótese, o da boa-fé objetiva que se realiza através da
garantia de harmonização dos interesses das partes.traduzindo-se no interesse social
de segurança nas relações de consumo e na imposição de que as partes ajam com
lealdade e honestidade.
17
É interessante salientar o pensamento de Orlando Gomes, in verbis:
"Ao princípio da boa-fé empresta-se ainda outro significado. Para
traduzir o interesse social de segurança das relações jurídicas, diz-se,
como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir
com lealdade e confiança recíprocas. Numa palavra, devem proceder
com boa-fé.” 5
Ademais, é oportuno trazer à colação que o art. 51, IV, XV e seu §1º do
Código de Defesa do Consumidor, prescreve que “são nulas de pleno direito, entre
outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que
estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
eqüidade; que estejam em desacordo com o sistema de proteção do consumidor. E
mais, presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que ofende os princípios
fundamentais do sistema jurídico a que pertence; restringe direitos ou obrigações
fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o
equilíbrio contratual e se mostra excessivamente onerosa para o consumidor,
considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras
circunstâncias peculiares ao caso."
Por todo o exposto, resta evidenciada a abusividade e ilegalidade da
cobrança da taxa de reexame efetuada pelo Detran no Estado de Mato Grosso do Sul
dos candidatos que comparecem para a prova teórica pela primeira vez.
5 GOMES, Orlando. Contratos, editora Forense, atualizador: Humberto Theodoro Júnior, 18ª edição, 1999, p. 42.
18
De fato, a Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa
do Consumidor), que teve sua gestação iniciada com o mandamento contido no artigo
5°, XXXII, da Constituição Federal, consoante dispõe seu art. 1º, traduz norma de
ordem pública e interesse social. O direito do consumidor é sucedâneo do direito de
cidadania, pois é inadmissível que o cidadão consumidor, em situação de inferioridade
econômica ou técnica perante grupos que dominam o mercado de consumo se
submeta a práticas atentatórias contra sua dignidade, sua saúde e seu patrimônio.
Foi dentro desse espírito que o art. 4°, do CDC, ao estabelecer a
política nacional de atendimento às necessidades dos consumidores elegeu como
metas o respeito à dignidade, à saúde, a segurança e a proteção a seus interesses
econômicos.
C) Da Lesão ao Direito Adquirido dos Consumidores e do Ato
Jurídico Perfeito
Conforme já salientado, foi publicada no Diário Oficial do Estado nº
6722, de 08 de maio de 2006, uma relação de candidatos à primeira habilitação, na
qual o Detran relaciona e informa o cancelamento dos processos que encontram-se
com mais de 12 (doze) meses de protocolo, a partir de 20/06/2005.
São exatamente 34.850 (trinta e quatro mil, oitocentos e cinqüenta)
candidatos em todo o Estado de Mato Grosso do Sul (fls. 61/136 do PIP 003/06) que
protocolaram seus pedidos antes de 14 de março de 2005. Portanto, somente os
procedimentos iniciados a partir de 14/03/05 poderão ser cancelados, sob pena de ferir
frontalmente a segurança jurídica e o direito adquirido.
19
Tal fato é inadmissível, já que o art. 5º, XXXVI da Constituição Federal
de 1988, dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a
coisa julgada.”
No mesmo sentido, o art. 6º da LICC (Lei de Introdução ao Código Civil)
aduz:
“Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato
jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei
vigente ao tempo em que se efetuou.
§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou
alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício
tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio
de outrem.
§ 3º (...).
Da lição de Maria Helena Diniz em sua obra Lei de Introdução ao
Código Civil Brasileiro Interpretada extrai-se que6:
“O ato jurídico perfeito é o já consumado, segundo a norma vigente, ao
tempo em que se efetuou, produzindo seus efeitos jurídicos, uma vez
que o direito gerado foi exercido. È o que já se tornou apto para
produzir os seus efeitos. A segurança do ato jurídico perfeito é um
modo de garantir o direito adquirido pela proteção que se concede ao
seu elemento gerador, pois se a nova norma considerasse como
inexistente, ou inadequado, ato já consumado sob o amparo da norma
precedente, o direito adquirido dele decorrente desapareceria por falta
de fundamento”.6 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
20
Agostinho Alvim define o direito adquirido como a “conseqüência de um
ato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que esse fato foi realizado,
embora a ocasião de o fazer valer não se tivesse apresentado antes da existência de
uma lei nova sobre o mesmo, e que, nos termos da lei sob o império da qual se deu o
fato de que se originou, tenha entrado imediatamente para o patrimônio de quem o
adquiriu”.7
Portanto, o direito adquirido consistiria na possibilidade de se extraírem
efeitos de um ato contrário aos previstos pela lei atualmente vigente, ou seja, é aquele
que continuaria a gozar os efeitos de uma norma pretérita mesmo depois de já ter sido
ela revogada. Implicaria o direito subjetivo de fazer valer um direito, cujo conteúdo
encontra-se revogado pela lei nova. 8
Quando a Constituição menciona que a lei não prejudicará ato jurídico
perfeito e o direito adquirido quer dizer lei em sentido amplo, atingindo também as
normas administrativas, resoluções, portarias, haja vista se a lei que maior não pode,
com mais razão as demais normas também não podem.
A Resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) n° 168 de 14
de dezembro de 2004 prescreve no § 3° do Art. 2° que:
“Art. 2° (...)
§ 3° O processo do candidato à habilitação ficará ativado no órgão ou
entidade executivo de trânsito do Estado ou do distrito Federal, pelo
prazo de 12 (doze) meses, contados da data do requerimento do
candidato.”
7 Apud Vittorio Cassone, Direito Tributário, São Paulo: Atlas, 1985, p. 69.8 BASTOS, Celso. Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo: Saraiva, 1989, v.2.
21
A Resolução entrou em vigor em março de 2005, já que o art. 45 da
Resolução determina a sua entrada em vigor 90 (noventa) dias após a sua publicação,
portanto, 14/03/05. Não há menção expressa de que a norma retroagiria para atingir
procedimentos instaurados antes desta data. E ainda que mencionasse, estaria ferindo
igualmente o ato jurídico perfeito e o direito adquirido.
Portanto, não pode o requerido, a seu livre arbítrio, cancelar os
processos de habilitação dos consumidores hipossuficientes do Estado iniciados antes
da entrada em vigor da norma, com prejuízo aos mesmos dos valores já pagos, vez que
dessa forma estará privando os mesmos do direito adquirido de concluir o procedimento
à Carteira Nacional de Habilitação.
Observa-se, assim, que o ato jurídico perfeito e o direito adquirido estão
intimamente ligados no caso em testilha e dessa forma, está o requerido infringindo a
diversos dispositivos constitucionais.
Ademais, a garantia do ato jurídico perfeito é o modo de assegurar o
direito adquirido e não poderá ser alcançado por lei posterior, sendo inclusive
imunizado contra quaisquer requisitos formais exigidos pela nova norma.
As alterações legislativas não podem simplesmente prejudicar os
direitos dos cidadãos, sob pena de agredir a estabilidade e segurança jurídica das
relações, culminando na incerteza, caos jurídico e onipotência do Estado.
A Corte Maior Brasileira já se manifestou sobre a irretroatividade e o
direito adquirido, por muitas vezes, e em decisão de grande alcance, pontificou que "o
disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, se aplica a toda e qualquer lei
22
infraconstitucional, sem qualquer distinção entre direito público e direito privado, ou
entre lei de ordem pública e lei dispositiva". 9
Pelo exposto, conclui-se que o requerido não deve de forma alguma
cancelar os processos de habilitação dos candidatos cujo protocolo data de antes de 14
de março de 2005, sendo que, embora já tenha informado que não o fará, é de extrema
importância que o mesmo retifique a Portaria 15/2005 do Contran (Conselho Nacional
de Trânsito) a fim de que os consumidores sulmatogrossenses não tenham ferido seu
direito adquirido, nem o ato jurídico perfeito.
D) Do Dano Moral Difuso e da Necessidade de sua Reparação
Uma vez demonstradas as práticas lesivas desenvolvidas pelo Detran e
a absoluta ilegalidade delas, importa trazer à tona que esses fatos ensejam danos a
direito do consumidor, no plano difuso.
Ora, consoante já se asseverou, o condenável procedimento do
requerido, revestido de ousadia e ardilosidade, contrariou a todos os princípios e
valores que o legislador visou prestigiar no Código de Defesa do Consumidor e em
outros diplomas legais que protegem as relações de consumo.
9 Cf. Ação Direta de Inconstitucionalidade 493 – DF, Pleno, Relator Ministro Moreira Alves, in Revista Trimestral de Jurisprudência volume 143, p. 724 e segs. Por maioria de votos, o Tribunal conheceu ação, integralmente, vencido em parte o Ministro Carlos Mário Velloso, que dela conhecia apenas no ponto que impugna os artigos 23 e parágrafos, 24 e parágrafos, da Lei 8177, de 1º de março de 1991, não assim quanto aos artigos 18, caput, §§ 1º e 4º, 20, 21 e parágrafo único. No mérito, por maioria de votos, o Pretório Excelso julgou a ação procedente, in totum, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 18, caput, 21 e parágrafo único, 23 e §§. 24 e §§, da Lei 8177, vencidos em parte os Ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio, que a julgavam procedente também, em parte, para declarar a inconstitucionalidade, apenas, do § 3º do artigo 24; e, ainda, o Ministro Carlos Mário Velloso que a julgava parcialmente procedente para julgar inconstitucional somente os artigos 23 e seus §§, 24 e seus §§. Presidiu a sessão o Ministro Sydney Sanches.
23
Nada pior para o cidadão, enquanto consumidor, que se sentir
enganado; que se aperceber de que fora tratado de forma indigna; que constatar que
contribuiu ou poderá, ainda contribuir caso os processo de habilitação com mais de
doze meses sejam cancelados, para o enriquecimento de uma autarquia estatal. Na
verdade, pior, ainda, seria aquilatar que a prática aviltante contra as relações de
consumo não gerara qualquer conseqüência gravosa para o Detran.
Assim, a agressão difusa a direitos básicos do consumidor causou
intenso dano moral à coletividade. Dano moral, no dizer de Minozzi, citado por José de
Aguiar Dia em sua célebre obra sobre responsabilidade civil “...não é o dinheiro nem
coisa comercialmente reduzida a dinheiro, mas a dor, o espanto, a emoção, a
vergonha, a injúria física ou moral, em geral uma dolorosa sensação experimentada
pela pessoa, atribuída à palavra dor o mais largo significado.” 10
A reparação do dano moral, consagrada definitivamente no direito
brasileiro pelo disposto no art. 5º, X, da Constituição Federal é expressamente admitida
pelo Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 6°, VI que cuida dos direitos
básicos do consumidor.
Nelson Nery Júnior, um dos autores do anteprojeto do Código de
Defesa do Consumidor, abordou o tema: “o Código admite expressamente a cumulação
de danos patrimoniais e morais, pondo termo à antiga discussão que se formou,
principalmente em face da jurisprudência do STF, sobre a não cumulatividade do dano
moral com o patrimonial. Agora a lei permite expressamente.”11
10 DIA, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Vol. 2. 10ª Ed. Editora Forense. pág. 73O.11 NERY JÚNIOR, Nelson. Aspectos Relevantes do Código de Defesa do Consumidor, in JUS TITIA
155/91.
24
O dano moral perpetrado pelo requerido atingiu e ainda atinge esfera
difusa, pois toda a coletividade foi, e está sendo, exposta a pagar a taxa de reexame,
em razão de ter iniciado um processo de habilitação de CNH.
Os interesses difusos foram definidos pelo legislador consumerista no
art. 81, I, do CDC, como os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.
Ao comentar e exemplificar os interesses difusos, Kazuo Watanabe
assevera:
“Nos interesses ou direitos difusos, a sua natureza indivisível e a
inexistência de relação jurídica-base não possibilitam, como já ficou
visto, a determinação dos titulares. É claro que, num plano mais geral
do fenômeno jurídico ou análise, é sempre possível encontrar-se um
vínculo que une as pessoas, como a nacionalidade. Mas, a relação
jurídica-base que nos interessa, na fixação dos conceitos em estudo, é
aquela da qual é derivado o interesse tutelando, portanto interesse que
guarda relação mais imediata e próxima com a lesão ou ameaça de
lesão (...) o bem jurídico tutelado é indivisível, pois uma única ofensa é
suficiente para a lesão de todos os consumidores, e igualmente a
satisfação de um deles, pela retirada do produto no mercado, beneficia
ao mesmo tempo a todos eles” 12
O dano moral difuso se assenta, exatamente, na agressão a bens e
valores jurídicos que são inerentes a toda a coletividade, de forma indivisível. Fatos,
como os que foram praticados pelo requerido, abalam o patrimônio moral da
coletividade, pois todos acabam se sentindo ofendidos e desprestigiados como
12 WATANABE, Kazuo.Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado Pelos Autores do Anteprojeto. 8ª ed. Forense Universitária, 1997. pág. 625/627.
25
cidadãos com a prática lesiva a que se expuseram, ou mesmo, para muitos, que vieram
diretamente a experimentar.
A sensação que a todos atingiu no caso vertente foi a de que o sistema
é injusto, pois não se poderia conceber o mais forte submetendo o mais fraco a
tamanha situação de indignidade, expondo-o a utilização de seu patrimônio para
aquisição de vantagem indevida por lei.
Daí a inquestionável ofensa coletiva, passível de reparação.
Ao dissertar sobre o dano moral coletivo, o professor André de Carvalho
Ramos verberou, com muita propriedade:
“Devemos considerar que tratamento aos chamados interesses difusos
e coletivos origina-se justamente da importância destes interesses e da
necessidade de uma efetiva tutela jurídica. Ora, tal importância somente
reforça a necessidade de aceitação do dano moral coletivo, já que a dor
psíquica que alicerçou a teoria do dano moral individual acaba cedendo
lugar, no caso de dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço e
de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma
coletividade. Imagine-se o dano moral gerado pela propaganda
enganosa ou abusiva, O consumidor potencial sente-se lesionado e vê
aumentar seu sentimento de desconfiança na proteção legal do
consumidor, bem como seu sentimento de cidadania.” 13
Não se pode conceber que numa sociedade democrática, onde se
espera e se luta pelo aperfeiçoamento dos mecanismos que venham garantir ao
cidadão o pleno exercício dos atributos da cidadania, inclusive com a efetiva
13 Revista de Direito do Consumidor nº 25 – Editora RT – pág. 82.26
implementação da legislação consumeirista – onde estão insculpidas garantias básicas
do consumidor, como o respeito à vida, à saúde, à dignidade – tenham lugar condutas
desprovidas de legalidade e que submetam o consumidor a práticas inaceitáveis, como
as que foram narradas nesta inicial. É dentro desse mesmo contexto que não se pode
esconder a grande extensão do dano causado, pois além de agredir a interesses
garantidos por lei ao consumidor, os procedimentos denunciados geraram sentimento
de descrença e desprestígio da sociedade com relação aos poderes constituídos e ao
sistema de um modo geral, mormente num momento de crise que enfrenta o país e o
Estado.
O valor a ser arbitrado a título de danos morais deve situar-se em
patamar que represente inibição à prática de outros atos antijurídicos e imorais por
parte do requerido.
É imperioso que a justiça dê ao infrator resposta eficaz ao ilícito
praticado, sob pena de se chancelar e se estimular o comportamento infringente. A
respeito desse tópico, vale colacionar os apontamentos de Carlos Alberto Bittar:
“Com efeito, a reparação de danos morais exerce função diversa
daquela dos danos materiais. Enquanto estes se voltam para
recomposição do patrimônio ofendido, através da aplicação da fórmula
danos emergentes e lucros cessantes, aqueles procuram oferecer
compensação ao lesado, para atenuação do sofrimento havido. De
outra parte, quanto ao lesante, objetiva a reparação impingir-lhe
sanção, a fim de que não volte a praticar atos lesivos à personalidade
de outrem. É que interessa ao direito e à sociedade que o
relacionamento entre os entes que contracenam no orbe jurídico se
mantenha dentro dos padrões normais de equilíbrio e respeito mútuo.
Assim, em hipóteses de lesionamento, cabe ao agente suportar as
27
conseqüências de sua atuação, desestimulando-se, com a atribuição de
pesadas indenizações, atos ilícitos tendentes a afetar os referidos
aspectos da personalidade humana [...].Nesse sentido é que a
tendência manifestada, a propósito pela jurisprudência pátria, fixação
de valor de desestímulo como fator de inibição a novas práticas lesivas.
Trata-se, portanto, de valor que, sentido no patrimônio do lesante, o
possa conscientizar-se de que não deve persistir na conduta reprimida,
ou então, deve afastar-se da vereda indevida por ele assumida, o outra
parte, deixa-se para a coletividade, exemplo expressivo da reação que
a ordem jurídica reserva para infratores nesse campo, e em elemento
que, em nosso tempo, se tem mostrado muito sensível para as
pessoas, ou seja, o respectivo acervo patrimonial”.14
Nesse caso, a indenização há de ser revertida para o de que trata o
artigo 13, da Lei n° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública): "Fundo Estadual de Defesa
dos Direitos do Consumidor – FEDDC".
Por força do dispositivo inscrito no parágrafo único do artigo 42 do
CDC, vale dizer, os valores cobrados indevidamente hão de ser repetidos por valor
igual ao dobro do que se pagou em excesso. Portanto, caso não trate o requerido de
suspender a cobrança da taxa de reexame no primeiro exame teórico, bem como, caso
cancele os processos de habilitação iniciados antes de 14/03/05, resultarão indevidos
os valores cobrados, de modo que a restituição deverá ser realizada em dobro.
Nesse sentido já se manifestou o STJ, pela voz do Ministro Aldir
Passarinho Junior, a saber:
14 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais: Tendências Atuai. Revista de Direito Civil no 74. RT.pag.15.
28
“Admite-se a repetição do indébito de valores pagos em virtude de
cláusulas ilegais, em razão do princípio que veda o enriquecimento
injustificado do credor” (STJ, 4ª Turma, Resp 453.782/RS- rel. min. Aldir
Passarinho Junior- j. 15.10.2002- v.u) .
E) Da Inversão do Ônus da Prova
Tendo sido tecidas as considerações acerca do direito material do
consumidor, é pertinente tratar também de seu equivalente no plano processual, qual
seja, a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor, cujos
pressupostos, como veremos, se encontram presentes no caso em tela.
Neste ponto, é oportuno citar o disposto no art. 6º, inciso VIII do CDC:
“Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a
inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil,
quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando
for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de
experiência;”
Sendo assim, em Direito do Consumidor admite-se a inversão do
princípio consagrado no art. 333 do CPC, segundo o qual cabe ao autor a prova dos
fatos constitutivos de seu direito, contanto que estejam presentes os pressupostos de
verossimilhança da alegação ou de hipossuficiência do consumidor, cuja
cumulação se dispensa para a concessão do direito, uma vez que ambos os requisitos
encontram-se unidos no texto legal por uma conjunção alternativa (ou) e não aditiva (e).
Embora o Ministério Público tenha produzido vasto contexto probatório,
revela-se possível a aplicação da inversão do ônus da prova em favor dos
29
consumidores, motivo pelo qual, diante dos princípios protetivos do Direito do
Consumidor, é conveniente pugnar pela sua aplicação ao caso.
Ressalta-se que sobre o primeiro pressuposto legal – a verossimilhança
da alegação – observa Eduardo Cambi15:
“Alegação verossímil é aquela que, mesmo não sendo apoiada em
elementos probatórios, tem a aparência de ser verdadeira. Opera-se,
pois, com indícios ou sérias suspeitas de que o fato tenha realmente
ocorrido, embora, para se chegar a essa convicção, não se exija nem
mesmo um início de prova. Com efeito, o juiz, para proceder à inversão
do ônus da prova, contará muito mais com sua intuição e bom senso,
do que com a lógica inerente à aplicação do art. 333 do CPC. Com
isso, o CDC aposta que da mera aparência é possível obter uma
cognição mais consistente, para a tutela dos direitos transidividuais,
que aquela que poderia redundar de um automático prejulgamento,
preconceito ou precompreensão sobre a inexistência da situação fática
juridicamente relevante”.
Na presente ação, conforme exaustivamente demonstrado, a conduta
do requerido está descrita de modo coerente e objetivo. A verossimilhança desses fatos
é inegável, pois se trata de situação cotidianamente enfrentada por todos os usuários
de serviços do requerido. Essa verossimilhança, a coincidência entre os fatos descritos
e a realidade conhecida pelo juízo, autoriza seja invertido o ônus da prova.
Afigura-se igualmente presente neste feito o segundo pressuposto legal
da inversão do ônus da prova – a hipossuficiência do consumidor – conforme pode este
juízo concluir segundo as regras ordinárias de sua experiência.15 “Inversão do Ônus da Prova e Tutela dos Direitos Transidividuais”; in “Revista Jurídica Consulex”, Ano VI, nº 128, 15 de maio de 2002, p.30.
30
Nesse sentido, manifesta-se Antônio Herman Vasconcelos Benjamin de
que “independentemente de sua condição social, de sua sofisticação, de seu grau de
educação, de sua raça, de sua origem ou profissão, o consumidor é considerado pelo
Código como um ser vulnerável no mercado de consumo. E esse princípio maior basilar
mesmo que deve orientar a atividade de interpretação do Código”16.
Coerente com essa orientação, Paulo Valério Moraes afirma que há
seis tipos de vulnerabilidades: a técnica, a jurídica, a psicofisiológica, a ecológica, a
política ou legislativa e a econômica ou social17, sendo certo que uma não exclui a
outra, de modo que aquele que não é vulnerável econômica ou socialmente não o deixa
de ser técnica, jurídica, psicofisiologica ou politicamente.
Por tudo isso, a supremacia do Detran é indiscutível, pois ele detém o
exclusivo controle sobre os candidatos à Carteira Nacional de Habilitação, cobrando
taxas, as quais são submetidos os consumidores que não tem outra alternativa senão
pagá-las se quiserem ter habilitação para dirigir reconhecida pelo ordenamento jurídico.
Não obstante, caso não publique nova Portaria, para segurança dos consumidores,
poderá cancelar todos os processos num absoluto prejuízo àqueles que por situações
diversas não conseguiram se habilitar em 12 (doze) meses.
Oportuno, também, os ensinamentos trazidos por Eduardo Cambi18:
“Por outro lado, das circunstâncias do caso concreto, é possível aferir a
hipossuficiência daquele que busca a tutela dos direitos
transindividuais. Aqui, o legislador pretende promover a igualdade 16 ln Código de Defesa do Consumidor anotado e exemplificado pelo IDEC, São Paulo, Marilena Laizarini. Josué de Oliveira Rios. Vidal Serrano Nunes ir. ASV Editora. 1991. p. 9.17 MORAES, Paulo Valério. Código de Defesa do Consumidor – Princípio da Vulnerabilidade no contraio, na publicidade e nas
demais práticas comerciais – interpretação sistemática do direito, Ed. Síntese, 1999, 1ª edição. p.399.
18 CAMBI, idem, ibidem.31
processual, discriminando a situação jurídica das partes, em favor do
hipossuficiente, com o intuito de facilitar a defesa dos seus direitos em
juízo. Com esse escopo, acaba por reconhecer que, se a parte
contrária tem melhores condições técnicas ou econômicas para
produzir a prova, os fatos constitutivos dos direitos transidividuais
podem ser presumidos até que o contrário seja demonstrado. A
hipossuficiência, em tese, pode atingir quaisquer dos legitimados nas
ações coletivas, inclusive o próprio Estado (...)”
Ainda, o artigo 6º, inciso VIII, do Código De Defesa Do Consumidor não
exige que quem alega a hipossuficiência a demonstre, já que isto decorre das próprias
circunstâncias do caso concreto, a partir da mera utilização das regras ordinárias da
experiência.
Uma vez observados ambos os pressupostos autorizadores da inversão
do ônus da prova, afigura-se oportuno seja deferido tal benefício processual nestes
autos.
Importante mencionar que o fato de a presente ação ter sido ajuizada
pelo órgão Ministerial em nada obsta a aplicação do princípio acima exposto, uma vez
que o vocábulo “consumidor” tem aplicação extensiva.
Nesse sentido preleciona Celso Antonio Pacheco Filho19 que:
“Deve-se ter em vista que o Código, ao aludir ao vocábulo consumidor,
não o faz somente enquanto individualmente concebido, que vai a juízo
pleitear em seu próprio nome a tutela jurisdicional, mas também como
diretamente afetado pela coisa julgada, erga omnes ou ultra partes,
19 in “Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 243.32
titular do direito material, mas não titular do direito da ação, esta
reservada para o legitimado autônomo condutor do processo (...)”.
Assim, evidente que a presente ação, inobstante ajuizada pelo Parquet,
continua a dizer respeito a todos os consumidores enquanto diretamente
afetados pela coisa julgada, de forma que, presentes os pressupostos legais, impõe-
se a decretação pelo juízo da inversão do ônus da prova.
F) Do Dano Regional e dos Efeitos da Coisa Julgada
Quando o produto ou serviço puder acarretar prejuízos de dimensões
mais amplas, atingindo pessoas espalhadas por uma inteira região ou por todo território
nacional, a determinação da competência territorial faz-se pelo foro da capital do
Estado ou do Distrito Federal nos moldes do art. 93, II do CDC.
Agindo de tal forma o Detran/MS afeta a todos os consumidores
hipossuficientes do Estado de Mato Grosso do Sul, configurando dano regional, razão
pela qual aplica-se ao caso o dispositivo ora mencionado.
Da leitura do art. 103, III do Código de Defesa do Consumidor observa-
se que:
“Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará
coisa julgada:
III- erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para
beneficiar as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do
parágrafo único do art. 81”.
33
Já o inciso III do parágrafo único do art. 81 prescreve que a defesa
coletiva será exercida quando se tratar de interesses ou direitos individuais
homogêneos, assim entendidos os de origem comum.
Da mesma forma, o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85)
aduz em seu art. 16 que:
“Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da
competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado
improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer
legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento,
valendo-se de nova prova”.
Portanto, determina o Código de Defesa do Consumidor, assim como a
Lei da Ação Civil Pública que a coisa julgada na hipótese de ações que versem
interesses de “origem comum”, operará efeitos erga omnes.
O aspecto erga omnes, como observa Américo Bedê Freire Júnior20
“refere-se a uma alteração dos limites subjetivos da coisa julgada, uma vez que a
sentença no processo coletivo permite a pessoas que não foram formalmente partes no
processo de conhecimento serem alcançadas pelo efeito da decisão.”
Insta salientar, ainda, que conforme os ensinamentos de Ana Cândida
Menezes Marcato21:
“... a coisa julgada baseia-se na necessidade de estabilidade das
relações jurídicas, consistindo em importante para a garantia da
20 MAZZEI, Rodrigo Reis & NOLASCO, Rita dias. Processo Civil Coletivo- São Paulo: Quartier Latin, 2005. 21 Idem cit. 18
34
segurança jurídica, que seria inexistente se a cada momento fosse
possível repetir as mesmas ações visando à modificação dos efeitos da
sentença já proferida. Em virtude disso, o instituto é considerado como
garantia fundamental pela Constituição Federal, em seu artigo 5°, inciso
XXXVI”.
Assim, sendo a presente ação julgada procedente, deve a mesma ter
efeitos erga omnes, haja vista tratar-se de demanda em que se configura o dano
regional e que tem como meta a defesa em juízo dos direitos individuais homogêneos
de origem comum dos diversos consumidores candidatos efetivos e potenciais.
G) Da Obrigação de Fazer e de Não Fazer
Pothier define obrigação como o “vínculo de direito que nos obriga para
com outrem a dar-lhe, fazer-lhe ou não fazer-lhe alguma coisa”, no que concordam
Lacerda de Almeida e Coelho Rocha 22.
Nas obrigações há evidente existência de ao menos um sujeito passivo
da obrigação, adstrito ao cumprimento de uma prestação positiva ou negativa em favor
de ao menos um sujeito ativo, que está autorizado a exigir daquele o adimplemento da
obrigação.
Assim sendo, é da essência das obrigações o poder de exigir de
outrem a satisfação de um interesse passível de aferição econômica, mesmo que para
isto se deva recorrer ao Poder Judiciário, a fim de buscar no patrimônio do
inadimplente a quantia necessária à satisfação da obrigação descumprida.
22 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações, 2º vol., São Paulo, Saraiva, 1993, p. 29.
35
A obrigação de fazer pode ser definida como o vínculo jurídico que
obriga o devedor a prestar um ato positivo, material ou imaterial, seu ou de terceiro, em
benefício do credor ou terceira pessoa.
Já a obrigação de não fazer consiste em uma obrigação na qual o
devedor assume, em benefício do credor ou terceiro, o compromisso de não praticar
determinado ato, o qual poderia praticar sem embaraço caso não se houvesse obrigado
a dele se abster.
No caso em testilha, é a presente para compelir o requerido as
seguintes obrigações de fazer e não fazer, respectivamente: abster-se da cobrança de
dois UFERMS para os exames teóricos dos candidatos à primeira habilitação, bem
como para que o requerido não cancele os processos protocolados antes de 14/03/05,
publicando imediatamente uma Portaria que normatize a aplicação do prazo de
vencimento dos processos de habilitação estipulados pela Resolução nº 168 do
Conselho Nacional de Trânsito.
Segundo prescreve o art. 3° da Lei 7347/85 a “ação civil poderá ter por
objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não
fazer”.
No mesmo sentido o art. 11 da mencionada Lei dispõe que na “ação
que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz
determinará o cumprimento da prestação da atividade nociva, sob pena de execução
específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível,
independentemente de requerimento do autor”.
Do mesmo modo, o art. 84 do Código de Defesa do Consumidor aduz
que:
36
“Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de
fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou
determinará providências que assegurem o resultado prático
equivalente ao do inadimplemento”.
Assim, impõe-se no presente caso a imposição de multa diária no valor
de 1 (um) UFERMS por consumidor atingido, no caso de descumprimento de quaisquer
das obrigações impostas.
IV- DA MEDIDA LIMINAR
O título III do Código De Defesa Do Consumidor, que trata da defesa
processual do consumidor em juízo, acolheu expressamente a possibilidade da tutela
antecipatória nas ações que regula, ao contemplá-la no art. 84 e seus parágrafos.
Vale notar, ademais, que a tutela antecipada afigurar-se-ia admissível
mesmo que o Código De Defesa Do Consumidor silenciasse a respeito, graças ao
disposto em seu art. 90 que prevê aplicação subsidiária do Código de Processo Civil e
da Lei n.º 7.347/85.
E a Lei n.º 7.347/85, cujas disposições processuais se aplicam à ação
coletiva de consumo, nos termos do artigo supracitado, acolheu expressamente a
possibilidade de tutela antecipatória em sede de ação civil pública, no seu artigo 12,
caput prevendo que o juiz poderá conceder “mandado liminar, com ou sem justificação
prévia, em decisão sujeita a agravo”.
Diga-se, finalmente, que, como observa Rodolfo De Camargo
Mancuso23:
23 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública em Defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Cultural e dos Consumidores. 9 ed, RT, São Paulo, 2004, p. 257.
37
“A aplicação subsidiária do Código de Processo Civil é expressamente
prevista no art. 19 da Lei 7.347/85, de sorte que essa antecipação de
tutela será perfeitamente utilizável no campo da ação civil pública,
suprindo o que se faz, de maneira pouco satisfatória, pelas cautelares
inominadas. No ponto Hugo Nigro Mazzilli: ‘Se for relevante o
fundamento da demanda e justificado o receio de ineficácia do
provimento final, a pedido da parte, o juiz poderá antecipar os efeitos da
tutela de mérito initio litis, mediante expedição de mandado liminar, ou
após justificação prévia, citado o réu. Em ambos os casos, até de ofício,
pode o juiz impor multa diária, desde que suficiente e compatível com a
obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito’.
Para Nery & Nery, trata-se de ‘tutela satisfativa no plano dos fatos, já
que realiza o direito, dando ao requerente o bem da vida por ele
pretendido com a ação de conhecimento’”.
Irrefragável, pois, o cabimento jurídico deste pedido de liminar, ainda
mais porque se trata de instrumento destinado à proteção da cidadania e à garantia da
efetividade do Direito e, uma vez que a presente causa é ajuizada em defesa do
interesse de pessoas hipossuficientes (técnica, jurídica, psicofisiológica, ecológica,
política, legislativa, econômica ou socialmente), não é demais mencionar que a tutela
antecipatória acaba por ter justamente uma função de proteção à parte mais fraca.
Em casos de concessão de medida liminar necessário que estejam
presentes os elementos básicos, ou seja, o fumus boni iuris e o periculum in mora.
Oportuno transcrever o pensamento de Luiz Rodrigues Wambier, in
verbis:
"A expressão 'fumus boni iuris' significa aparência de bom direito, e é
correlata às expressões cognição sumária, não exauriente, incompleta,
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superficial ou perfunctória." ("Curso Avançado de Processo Civil", Vol.
3, 3ª edição. editora RT,2000, p.28)
No caso em testilha, a fumaça do bom direito está amplamente
presente, vez que a Portaria Normativa n° 29 de 15 de julho de 2005 que dispõe sobre
a taxa de reexame, prescreve que referida taxa apenas será cobrada somente nos
casos em que o candidato estiver ausente no dia do exame ou se o mesmo for
considerado inapto, ou seja, reprovado. Sendo, portanto, indevida a cobrança no exame
teórico de candidato que não esteja nestas situações.
Outrossim, a Resolução do Contran n° 168 de 14 de dezembro de 2004
que entrou em vigor em 14 de março de 2005 deve atingir somente os procedimentos
instaurados após a sua vigência, não afetando aqueles iniciados anteriormente a esta
data.
Portanto, os processos protocolados antes de 14 de março de 2005
constituem ato jurídico perfeito e caso sejam cancelados acarretarão enriquecimento
ilícito por parte do requerido que receberá novamente pelo serviço a ser prestado ao
consumidor. Da mesma forma, os consumidores já gozam do direito adquirido, sendo
incontestável que não podem ser impedidos de concluir o processo iniciado.
Ademais, a documentação acostada aos autos faz prova inequívoca
da verossimilhança do alegado, corrobora a narrativa da exordial e distingue a
relevância jurídica dos fundamentos aduzidos perante este juízo. Os fatos descritos
podem ser extraídos, pois, da prova documental acostada, enquanto os argumentos
jurídicos, tecidos sistematicamente ao longo desta petição inicial, acentuam a clareza
do direito ora submetido à tutela jurisdicional.
39
Os argumentos ventilados pelo Ministério Público esgotam a matéria
sob discussão e as provas documentais reunidas são inequívocas, pois demonstram
cada detalhe trazido à seara da Justiça. Ademais, essa verossimilhança já foi
sustentada suficientemente quando do requerimento de inversão do ônus da prova.
Por sua vez, o receio de dano irreparável, consiste no fato de que se
os processos de habilitação forem cancelados, os consumidores terão de custear todo
o procedimento novamente e o ressarcimento será retardado pelo requerido.
Lembra o professor Humberto Theodoro Júnior, in verbis:
"Por outro lado, deve-se ter como 'grave' todo dano que, uma vez
ocorrido, irá importar supressão total, ou inutilização, senão total, pelo
menos de grande monta do interesse que se espera venha a
prevalecer na solução da lide pendente de julgamento ou composição
no processo principal." (g.n.) (in "Curso de Direito Processual Civil", Vol.
II, 19ª edição, editora Forense, 1997, p.373)
No caso em análise, deve-se salientar que a ação tem por objetivo
interromper conduta ilícita praticada pelo requerido, em prejuízo dos consumidores. A
demora na prestação da tutela jurisdicional resultaria na continuidade da cobrança da
taxa de reexame quando o candidato realizar pela primeira vez a prova teórica, além de
infringir o direito adquirido dos consumidores, que caso a tutela não seja concedida,
terão seus processos de habilitação à CNH cancelados.
Sendo inconteste, nos termos expostos, a relevância dos fundamentos
do pedido, constata-se que a demora da tutela jurisdicional permitiria que se
prolongasse a prática abusiva, aumentando o montante dos danos sofridos pelo
40
consumidor hipossuficiente, bem como tornando menos efetiva a tutela jurisdicional, já
que a violação ilegal perdurará até o provimento final.
Cabe ressaltar que a característica do periculum in mora "é significativa
da circunstância de que ou a medida é concedida quando se a pleiteia ou, depois, de
nada mais adiantará a sua concessão. O risco da demora é o risco da ineficácia"24.
Caso não seja deferida a medida liminar, os consumidores continuarão
a ser prejudicados, haja vista o comportamento do requerido de total violação ao
princípio da boa-fé e ao direito adquirido dos consumidores que pagaram o processo de
habilitação e correm o risco de não usufruírem dos serviços prestados pelo Detran,
sendo, assim, obrigados a pagar novamente pelos serviços. Tal fato atingirá os atuais
consumidores e os potenciais se não for cessada in continenti tais práticas.
Mister frisar, que já foi concedida em sede de liminar, nos autos de
Mandado de Segurança Coletivo, n° 001.06.102732-5, impetrado pelo Sindicato dos
Centros de Formação de Condutores de Mato Grosso do Sul em face do Detran, que
tramita nessa Comarca, decisão que impõe ao ora requerido que “abstenha-se de
cobrar taxa de exame prático de todos os candidatos cujos processos foram
cadastrados no Sistema RENACH, com efeitos a partir de 1° de janeiro do fluente ano,
mesmo daqueles candidatos reprovados ou que não compareceram para prestar o
exame no horário designado”.
Assim, também se faz necessária a medida para que a taxa de
reexame seja cobrada somente em caso de ausência ou reprovação do candidato,
cessando a cobrança nas hipóteses de primeira avaliação teórica, do mesmo modo,
para que impeça que o requerido cancele os processos de habilitação iniciados antes
24 "Curso Avançado de Processo Civil", Vol. 3, 3ª edição, editora RT, 2000, p.28.41
de 14/03/05, devendo o mesmo proceder a publicação de uma Portaria retificando a
resolução nº 168 do Contran.
Nesse passo, presentes os requisitos legais, REQUER-SE a concessão
antecipada da tutela pleiteada.
IV – DOS PEDIDOS
Ex positis, o Ministério Público Estadual requer à Vossa Excelência:
a) a concessão de Medida Liminar, independente da oitiva da parte
contrária, com fundamento no artigo 12 da Lei n.° 7.347/85, a fim de se determinar que
o Detran – Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso do Sul se abstenha de
cobrar dos candidatos à habilitação a taxa de reexame para primeira avaliação teórica,
bem como para que publique Portaria no Diário Oficial, normatizando a aplicação do
prazo de vencimento dos processos de habilitação para condução de veículos
automotores estipulados pela Resolução nº 168 do Conselho Nacional de Trânsito-
Contran;
b) seja determinada a citação do requerido, na pessoa de seu
representante legal, a fim de que, apresente, querendo, resposta ao pedido ora
deduzido, no prazo de 15 (quinze) dias, sob a advertência de não o fazendo, ser-lhe
decretada a de revelia e confissão quanto à matéria de fato;
c) seja a presente ação julgada procedente, tornando-se definitiva a
medida liminar, bem como ainda condenando-se o requerido:
c.1. ao cumprimento da obrigação de não fazer consistente em abster-
se da cobrança de 2 UFERMS nos exames teóricos dos candidatos a habilitação para
condução de veículo automotor;.
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c.2. ao cumprimento de obrigação de fazer consistente em cancelar os
processos de habilitação para condução de veículo automotor protocolados após a
publicação da Portaria n.º 15/2005;
d) seja declarada a inversão do ônus da prova, nos termos do artigo 6º,
VIII, do Código de Defesa do Consumidor;
e) seja o requerido condenado ao pagamento de dano moral coletivo,
no valor de 1 UFERMS por consumidor lesado;
f) seja o requerido condenado a restituir em dobro o valor cobrado
indevidamente aos consumidores que pagaram a taxa de reexame ilegalmente, nos
moldes do art. 42, parágrafo único da Lei n.º 8.078/90.
V – DOS REQUERIMENTOS:
Outrossim, o Ministério Público requer:
a) a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros
encargos, desde logo, a teor do artigo 18 da Lei n° 7.347/85 e do artigo 87 da Lei
n°8.078/90;
b) a juntada do Procedimento de Investigação Preliminar n.º 003/2006,
concluído pela Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor de Dourados, como
prova documental em desfavor do requerido;
c) sem prejuízo da responsabilidade penal por possível prática de crime
de desobediência, requer, ainda, que seja fixada, em sentença, nos termos do artigo
84, § 4º da Lei n.º 8078/90, a multa diária no valor correspondente a 1 (um) UFERMS
por consumidor para cada descumprimento judicial que o requerido venha a praticar,
sendo que os valores daí advindos devem ser recolhidos ao Fundo Estadual de Defesa 43
dos Direitos do Consumidor – FEDDC, criado pelo artigo 8º da Lei Estadual n.º 1.627,
de 24 de novembro de 1995;
d) a publicação de edital no órgão oficial, a fim de que os interessados,
querendo, possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla
divulgação por meios de comunicação social por parte deste órgão de defesa do
consumidor, tudo com previsão no artigo 94, da Lei 8.078/90;
e) o julgamento procedente de todos os pedidos.
Requer ainda, provar o alegado por todos os meios de prova admitidos
em direito, especialmente pela juntada de documentos, depoimentos das testemunhas
abaixo arroladas, e por tudo o mais que se fizer necessário à cabal demonstração dos
fatos articulados na presente inicial.
Dá-se à causa o valor de R$ 34.850,00 (trinta e quatro mil, oitocentos e
cinqüenta reais).
Termos em que pede deferimento.
Dourados, 06 de julho de 2006.
Marigô Regina Bittar Bezerra
Procuradora de Justiça
Coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor
Helen Neves Dutra Silva
Promotora de Justiça de Defesa do Consumidor de Campo Grande
Cristiane Amaral Cavalcante
Promotora de Justiça de Defesa do Consumidor de Dourados
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Paulo César Zeni
Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de Ponta Porã
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