8º encontro da abcp – 1-4 de agosto de 2012, gramado-rio ... · marília emmi (2007, p.394),...
Post on 12-Feb-2019
221 Views
Preview:
TRANSCRIPT
1
8º Encontro da ABCP – 1-4 de Agosto de 2012, Gramado-Rio Grande do Sul
Área Temática: Cultura Política e Democracia
Barbárie na Fronteira da Amazônia: Territórios da violência e cultura política local1.
Profº.Amadeu de Farias Cavalcante Júnior (UFOPA) - Autor
RESUMO: A proposta deste trabalho em se inserir na temática "Cultura Política e Democracia" é a de problematizar de forma crítica estas categorias históricas que, no caso brasileiro, em específico a região amazônica, assume tons e modalidades diversificadas de propostas de análises teóricas e empíricas, uma vez que a história da cultura política e da democracia não se deu de forma homogênea em todo o país. A presente proposta parte de estudos realizados em projeto de pesquisa com base empírica visando mostrar os conflitos pelo território na Amazônia que envolve atores diversos, basicamente resumidos entre agricultores e camponeses com a expansão da grande propriedade de terras e do setor madeireiro. Diante disto, apontaremos os problemas decorrentes destes conflitos, tais como a violência recrudescente, o papel do Estado mediante o aparato jurídico e a cultura política local do mandonismo associados a interesses políticos e privados da coisa pública.
Palavras-Chave: Amazônia, conflitos, violência recrudescente, cultura política local.
1 - Introdução:
É importante iniciarmos o texto esclarecendo nosso objetivo teórico-metodológico.
Enveredamos pela abordagem foucaultiana, para que se justifique uma âncora num modo
de pensar que viabilize a liberação dos discursos dos sujeitos das práticas reprimidas e
encobertas do campo discursivo em torno dos movimentos sociais, - que preferimos chamar
de movimentos de resistências -, formado por indígenas, quilombolas, ribeirinhos, e
trabalhadores do campo. Neste aspecto, a cartografia foucaultiana, na análise dos discursos
provindos das formas de poder, as formas de “governamentalidades” no domínio das forças
políticas, culturais e econômicas, - com seus mecanismos de exclusão, inclusão, vigilância e
punição -, sobre os sujeitos. A cartografia mostra o contexto, os territórios do poder sobre os
sujeitos. A arqueologia, faz análise dos discursos para compreendermos a perspectiva do
poder a partir dos sujeitos que contam sua própria história (PASSOS, 2008).
Neste sentido, será importante compreendermos que o contexto da Amazônia está
marcado pelos antagonismos e contradições do processo de formação urbana e do campo,
marcado por conflitos e violências, e também pelas características da presença “cultural” de
1 Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa “Mapeamento da Violência, Conflitos Sociais e o Sistema Social de Controle das Instituições de Segurança Pública na região Oeste do Estado do Pará”, com financiamento de bolsa PIBIC/UFOPa, coordenado pelo Prof.Dr.Amadeu de Farias Cavalcante Jr, período 2011-2013. E-mail: amadeu_farias@yahoo.com.br.
2
formas de poder como o “caciquismo” (Quem detém o poder público como “cacique”); o
personalismo dos que detêm poder econômico; o autoritarismo das administrações
municipais e públicas; o corporativismo territorial, este último na forma de “pacto” ou aliança
entre setores públicos ou privados, pela via do “consenso”.
Especialmente sobre o “corporativismo territorial”, notamos a presença pragmática
da “barganha” e do conflito local, para defender “privilégios”, criando obstáculos à façanha
do Estado de querer ser uma burocracia-racional-moderna, muitas vezes desafiada pela
resistência cultural e política da formação de oligarquias autoritárias e retrógradas a
democracia e aos direitos dos povos tradicionais (CHAVES, 2001, MARTINS, 1999,
SOUZA, 2006). Para os autores a formação das “oligarquias tradicionais”, detentoras de
patrimônio territorial, político e econômico, resistiram às mudanças sofridas pelos processos
desordenados e incongruentes de modernização das fronteiras do campo e da sociedade
brasileira. Neste aspecto, vale ressaltar que nosso estudo visa compreender também a
formação do território como campo de relações de poder, que envolve relações (i)materiais,
tanto geopolítica como econômica e culturalmente, segundo Saquet (2010). Como a terra
assume valor de mercado, de capital, segundo Henri Lefebvre (2001), ao analisar no
capítulo O Capital e a Propriedade da Terra, nos diz que tudo se vende e se compra, se
avalia em dinheiro. Todas as funções e estruturas, por ele engendradas, entram nesse
mundo e sustentam-no. Nesta lógica, a defesa de interesses econômicos se colidem aos
direitos dos povos que defendem o território como valor sociocultural, e não mero objeto
comercial.
Neste sentido, nossa análise não se restringe a perspectiva dos que elaboram a
cartografia do “desenvolvimento”, mas dos que lutam pelos seus direitos ao território perante
as instituições, os madeireiros, grileiros e latifundiários. Deste campo de poder relacional,
observamos que não há relação, mas a consequente barbárie registrada: os conflitos, e as
mortes violentas, assim como ameaças aos defensores dos direitos humanos e
comunidades tradicionais. A violência que há no campo contra posseiros, lideranças de
direitos humanos e de movimentos pelo território, trabalhadores e camponeses, indígenas e
quilombolas, mostra a face recrudescente da barbárie, aquela que não é noticiada pelas
grandes mídias e que não causam o espanto do poder público e privado.
A barbárie são estas mortes ocorridas ao longo dos anos que, segundo Antônio
Brand, em seu artigo A Violência contra os Povos Indígenas em 2011, “o argumento da
conquista colonial com o qual se buscou justificar a morte de tantos povos indígenas, foi
substituído pelo argumento do desenvolvimento do país, que permite, como ontem, seguir
atropelando direitos e a continuidade das violências” (2012, p.107).
3
É importante ressaltar também que, no caso do Pará, muitos conflitos surgiram em
função da interposição de interesses privados sobre áreas públicas, das áreas de Reservas
Indígenas e Quilombolas. Segundo Enéias Guedes (2012), os conflitos ocorrem porque é
muito comum que a criação de determinadas reservas envolva conflitos pela apropriação e
usos dos recursos nos territórios existentes, seja pela expropriação de recursos da floresta
ou pelo desrespeito as normas legais dos limites de reservas. É neste cenário atual que
devemos analisar a região oeste do Estado como recorte espacial. Tomando o sentido mais
preciso, nossa compreensão se fundamenta na definição da CPT (2012, p.10):
Conflitos por terra são ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso a seringais, babaçuais ou castanhais, quando envolvem posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros, indígenas, pequenos arrendatários, pequenos proprietários, ocupantes, sem terra, seringueiros, camponeses de fundo de pasto, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc.
Precisamos enfatizar que, mesmo sendo expropriados de seus direitos à terra, o
avanço dos grandes projetos na Amazônia e a crescente retórica da necessidade de
“industrialização das cidades” com sua expansão urbana para os territórios dos povos da
floresta, buscando retirar dos recursos naturais a “fonte de renda” amazônica, vem
provocando reações das minorias étnicas indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Segundo
Marília Emmi (2007, p.394), “há uma luta constante objetivando por fim à invisibilidade
social, econômica, cultural e política a que essas minorias foram submetidas ao longo da
história, contribuindo desse modo para um processo de construção de identidade étnica”.
Importante notar que os conflitos terão neste artigo duas características: uma que se dá
historicamente no campo, pela violência de pistolagem e outras formas, envolvendo a posse
pela terra; e outra que se dá pelos conflitos envolvendo o território de indígenas,
quilombolas, ribeirinhos. No entanto, ambos podem se confundir, dependendo da natureza
dos casos a serem estudados.
2 – As revoltas na Amazônia
Na segunda metade do século XIX a repressão ao movimento da Cabanagem
repercutiu na diminuição de povos indígenas e negros, pelo genocídio e pelas retiradas para
as florestas, onde passaram a construir historicamente os seus territórios como espaço de
vida social. Em meados do século XX continuamos a rever novas formas de colonização,
crescendo para a Amazônia com a construção da Belém-Brasília, a Transamazônica e a Br
163, em que povos indígenas e quilombolas e populações locais passaram a serem vistos
como empecilhos ao desenvolvimento.
4
Podemos dizer que existem dois grandes movimentos de modernização histórica na
Amazônia do século XX: 1) Um que se deu historicamente pela presença do regime militar
na região desde final da década de 1960 e se estende até a década de 1990 com a
implantação de formas de “desenvolvimento” até então ideologicamente vistas pela
sociedade local e nacional como padrões de homogeneização do espaço, - entenda-se:
ocupação das terras, abertura de estradas, a exemplo da Transamazônica, imigração dos
“sulistas” com seus modelos de ocupação de pastos, e a idéia fundamental da Amazônia
como “um grande espaço vazio” -, por meio dos antigos projetos de colonização da
transamazônica pela agropecuária (soja, milho, cacau, pecuária). Por último, pelos projetos
minerais, metalúrgicos, hidrelétricos (ferro, bauxita, manganês, caulim e alumínio), e o setor
madeireiro.
A presença dos militares em Santarém, foi justificada pela ideologia da integração
nacional da Amazônia, pela construção da Transamazônica e a Br 163. Por trás de tal
propagando do governo Ernesto Geisel, o que os motivava mesmo era a ocupação das
fronteiras, sob a alegação de proteção contra os “inimigos externos e internos”. Em pleno
processo de resistências à ditadura e a guerrilha do Araguaia, a ditadura se fez presente
para reprimir os movimentos insurgentes locais. O exemplo foi o escritor paraense Benedito
Monteiro, preso pelo exército no município de Alenquer, comunidade de Pacoval.
Para Ariovaldo Umbelino (2005), a partir da presença militar do Programa de
Integração Nacional pela BR-163 é que se pode entender como se desenrolou por aqui o
processo histórico de autoritarismos, mandonismos locais de latifundiárias e grileiros,
madeireiros, e a consequente violência resultante destes processos. Para o autor, a região
amazônica que compreende o Mato Grosso e o Estado do Pará passaram pelo seguinte
processo chamado de geopolítica do território amazônico: 1) a corrida para o monopólio do
solo amazônico que começou com a borracha e se intensificou com grandes projetos como
Jari, Carajás e SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia), como controle social e
territorial; 2) Década de 1970 e a abertura da BR-163 e Transamazônica; 3) Década de
1980, com incentivos a projetos agropecuários e agroindustriais, ocupando novas formas de
latifúndios e desmatamentos; 4) A colonização, os garimpos e a violência; 5) A Eco-92,
Reforma Agrária e Expansão da Soja; 6) Por fim, o mercado mundial e a soja estimulada
pelo agronegócio na região. A cidade de Santarém vai ser o polo populacional mais
importante da região como reflexo do capital2. Neste sentido, entendemos que quando se
2 “Santarém é a capital regional do oeste paraense, a ela se articulam os municípios ribeirinhos de Faro, Óbidos, Juriti, Oriximiná, Terra Santa, Alenquer, Belterra, Curuá, Monte Alegre, Prainha, Almeirim, Porto de Moz e no eixo rodoviário Rurópolis e Placas. Altamira, por sua vez, tem em sua área de influência Anapu, Brasil Novo, Medicilândia, Pacajá, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória do Xingu. A outra região de menor expressão é de Itaituba, que articula Aveiro, Jacareacanga, Trairão e Novo Progresso. Assim, são três os tipos de município que aparecem na região: 1) os ribeirinhos; 2) os que nasceram da colonização promovida pelo Incra na
5
fala de capital na Amazônia nos referimos a todo processo histórico de implantação de
grandes projetos e que interferiram nas condições e relações de trabalho na região
enquanto fornecedora de matéria-prima, terras e mão-de-obra barata.
Desta forma, assim como no passado os missionários e viajantes se deslumbraram
com a beleza da natureza amazônica, tal a imensidão de suas riquezas, e daí passaram a
saqueá-la sob a idéia que seus recursos em madeiras eram inesgotáveis, hoje não é tão
diferente tal visão social da Amazônia, pelo menos no contexto dos governos e da divisão
internacional do capital e do trabalho. Diante do processo de globalização econômica em
que o Brasil se insere na lógica do capital internacional, a Amazônia brasileira, mesmo a
despeito das críticas feitas pelos movimentos sociais ligados a defesa desta, se insere como
mera fonte de recursos primários para justificar o crescimento econômico sustentado pelo
governos do Pará, como se explorar os recursos florestais e naturais fossem vocação
inexorável. A miragem pela Amazônia como terra fértil, já em período colonial, induziu os
colonizadores portugueses a instalarem base econômica apoiada na lavoura de cana-de-
açúcar e a base da lavoura e agricultura como fonte de lucro. No entanto, no que se refere a
presença humana destes atores tradicionais que hoje chamamos antropologicamente de
“populações tradicionais”, durante os anos de 1600 a 1850, negros e índios eram apenas
vistos como “mão-de-obra” a serviço das elites brancas portuguesas que estiveram na
Amazônia fundando núcleos e vilas com nomes das cidades de Portugal em toda área da
Calha Norte (SALLES, 2004).
Segundo Vicente Salles, no Pará, a história da violência contra trabalhadores no
campo, sejam eles ribeirinhos, indígenas e negros, não pode ser desfeita sem a
compreensão do que significou no passado a opressão e estes povos. A história de luta
destes se deu inicialmente pela libertação da opressão do julgo de seus algozes, antes de
se chegar em pleno século XX para lutarem agora pelo território de seus ancestrais, e o
direito a terem seus direitos reconhecidos pelo Estado e as formas de poderes políticos e
econômicos locais. Para o autor, a história destes povos locais pode ser compreendida
como história, em primeiro momento, “da luta, fugas e resistências quilombolas desde
século XVIII”; em segundo lugar, “período de luta e liberdade, bem como cidadania, no
século XIX, incluindo a luta na Cabanagem como movimento de resistência e identidades”; e
em terceiro lugar, o período de controle policial e dos aparelhos jurídicos do Estado às
Transamazônica e na Cuiabá-Santarém (tais como Brasil Novo, Medicilândia, Uruará, Placas, Rurópolis e Trairão, todos com uma história comum de migração de sem-terra de toda parte do país em busca de terra; formaram-se a partir de assentamentos realizados pelo Incra e possuem uma estrutura fundiária baseada na pequena propriedade); e 3) os municípios como Novo Progresso e os distritos como Moraes Almeida e Castelo dos Sonhos, nascidos do garimpo”. Cf. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Br-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização, IN: TORRES, Maurício. Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPq, 2005, p.146.
6
atividades culturais dos quilombolas”, como afrontas à cultura “dos civilizados” (OLIVEIRA,
2005, p.9).
Em fins do século XIX Belém do Pará despontou como centro nacional, junto a
Manaus, da produção e riquezas oportunizadas pela borracha. O desenvolvimento na
Amazônia chegaria a beneficiar as elites locais e a iniciar outro processo de riqueza e
aburguesamento da cidade de Belém, vista como a Paris na América. A história dessa forma
era contada pela visão das elites, mas não daqueles que trabalharam nos seringais para
produzirem as riquezas. Enquanto nas fotos podemos ver as riquezas de Belém sendo
usufruídas pela formação de uma sociedade burguesa local, com seu imaginário da moda e
da arquitetura, por outro lado, as fotos dos trabalhadores mostravam o retrato da Ville
Burguese, ou seja, negros mal vestidos, exercendo tarefas pesadas, em feiras ou em
atividades socialmente discriminadas. A história não foi contada pela visão destes
trabalhadores (SARGES, 2010).
Se dermos um “salto” histórico para a década de 1970, verificamos que o Plano de
Integração Nacional – PIN, do General Emílio Garrastazu Médici criou uma geopolítica
territorial importante para entendermos os conflitos e a violência na Amazônia mediante a
construção das rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, a BR-163, ligando Mato
Grosso à Transamazônica e ao próprio porto de Santarém, no rio Amazonas. Para Ariovaldo
Umbelino Oliveira, a construção destas foi fundamental para entendermos a expansão do
capital na Amazônia pela abertura de fronteiras através da lógica dos monopólios privados
do território.
Desta forma, passa-se a ver a enchurrada de migrantes, políticos, fazendeiros e
madeireiros que encontraram no Estado Militar um forte aporte político, econômico e
ideológico para a ocupação dos territórios considerados como espaço de “terras sem
homens”. Assim, o território não podia ser pensado como posse dos moradores indígenas e
povos quilombolas ou ribeirinhos. Agora os “donos” começam a ter identidades. Como diz o
autor, “o norte mato-grossense é exemplo dessa diferença histórica. Cada parte daquela
imensa região teve ou ainda tem “dono”: Sinop é de Ênio Pipino; Alta Floresta, de Ariosto da
Riva; Matupá, dos Ometto; Juara, de Zé Paraná etc”. A região que antes era domínio
totalmente indígena, passa a ser disputada como monopólio de projeto agropecuários,
colonização, latifúndios, grileiros, sendo palco de violências e conflitos pelo território
(OLIVEIRA, 2005, p.73).
Fonte: Amazônia Revelada, 2005, p. 83.
A inauguração da BR-163 em 1976, conforme fotografia acima, e o discurso de sua
inauguração, demonstram como a ocupação da Amazônia viria a trazer mais tarde,
conforme verificaremos acerca dos dados da violência e conflitos contra trabalhadores no
campo, que a ocupação territorial pelo poder econômico foi uma matriz violenta ao que se
constituirá até os dias atuais nos problemas acerca da violência local. O discurso abaixo, de
“ocupar novos territórios” é sintomático, conforme Oliveira (2005, p.83):
Ao falar em nome do Governo Federal, na cerimônia em que o presidente Geisel inaugurou a rodovia, na localidade de Curuá (km 877), o ministro dos Transportes, Dirceu Nogueira, assinalou que “a estrada passa a se constituir em instrumento valioso de ocupação de novos territórios e de interligação das regiões Amazônica e Centro-Oeste, devendo desempenhar papel de suma relevância no povoamento de áreas extremamente favoráveis e no desenvolvimento de projetos profundamente significativos, tanto na agropecuária quanto na mineração [...]
Os primeiros conflitos pela terra são noticiados na época, em pleno ano de 1976, em
torno da grilagem de terras. Muito atual ainda, é importante mostrar que trabalhadores no
campo, indígenas, nordestinos, quilombolas, ribeirinhos, em pleno final da década de 70 já
conviviam com a presença da indústria da grilagem de terras, marcada pela violência com
vítimas fatais. Ariovaldo Umbelino mostra que as vítimas eram todos os trabalhadores que
desafiavam os “poderes locais” dos madeireiros e grileiros. Em plena década de 1980, o
autor relata o processo de “etnocídios e genocídios das nações Tapayuna, Panará, Kayabi,
Xavante, Tapirapé, Carajá e outras. A maioria dos povos indígenas teve suas terras
tomadas à força pelos especuladores” (OLIVEIRA, 2005, p.84).
Com a chegada dos sulistas subindo pela BR-163 se viam os homens e mulheres
com aparências européias, loiros, distintos da população local, - ainda hoje deixaram
marcas na composição fenotípica local -, mas por trás deste aparente “progresso”, a região
era marcada pela lógica da violência, corrupção, terror, politicagens, pistolagens. Das
empresas às atividades políticas e administrativas, fazendeiros, madeireiros e comerciantes
7
8
viviam de práticas ilegais e criminosas. Dessa forma, a atividade do garimpo e a expansão
da agropecuária na década de 1980 significaram aumento da pressão sobre as terras
indígenas e da violência de toda ordem, principalmente as matanças em função do ouro,
diamante, na região do Tapajós, em Itaituba. Homens e mulheres eram violentados e
coagidos por jagunços e policiais militares, torturas, barbáries de toda ordem, como “colocar
gasolina na vagina e em seguida tocar fogo” nas mulheres (Idem, 2005, p.141).
A história da violência contra os povos tradicionais e os trabalhadores na Amazônia
foi marcada pela história da barbárie de um processo que se deu pela lógica da implantação
do latifúndio, das atividades madeireiras, de empresas e políticos locais aliados a formas de
oligarquias retrógradas às mudanças que viessem trazer o desenvolvimento na perspectiva
de uma cultura democrática. Aliás, o desenvolvimento só pode ser entendido se
compreendermos a história da Amazônia como empreendimento autoritário que não foi
pensado na perspectiva destes povos. Segundo Maurício Torres, a ideologia dos “homens
sem terras para terras sem homens” (nordestinos na Amazônia) serviu para justificar e
relegar os povos locais à condição de não-presentes e não-humanos. A ação governamental
de ocupar as fronteiras seria a afirmação da barbárie:
Muito atual, esse pensar é usado no intuito de negar os direitos de índios, quilombolas, ribeirinhos e abrir caminho ao saque de suas florestas em benefício de grileiros e madeireiros. Em um mundo onde a hierarquia e a submissão dessa gente devem ser entendidas como natural e inexorável, sua reação à dominação e à expropriação é rotulada como anomalia e revolta. Daí, o velho recurso da criminalização e desmoralização de qualquer forma de resistência vinda dos pobres do campo. Contra eles, comumente, as truculentas oligarquias locais (ou não) dispõem de milícias privadas ou têm ao dispor forças policiais militarizadas para fazerem valer, pela truculência, seus interesses econômicos. A violência da polícia brasileira é constitutiva da instituição e norma no controle cotidiano da população. A polícia age de maneira explícita. Protege a pequena elite pondo-se a combater toda uma população oprimida. Assume funções de triagem, isolamento, controle de acesso a terra etc3.
Tal afirmação de Maurício Torres (2007) é corroborada pelo trabalho de Ronaldo
Barata (1995, p.10) para quem “o trabalhador é tratado pelo órgão de segurança pública
como invasor da propriedade alheia”.
A violência no campo contra estes povos foi sistemática, principalmente no campo,
luta pelo território entre posseiros, madeireiros, latifundiários, grileiros, ribeirinhos e outros.
Segundo Ronaldo Barata a violência tem se apresentado no quadro da década de 1980 nas
seguintes formas: 1) como estratégia de defesa e controle da propriedade latifundiária; 2) os
3 Cf. TORRES, Maurício. A Pedra Muiraquitã: O Caso do Rio Uruará no Enfrentamento dos Povos da Flor esta às Madeireiras na Amazônia. Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007, p.90.
9
assassinatos, são crimes de encomendas e expressão final da violência que permeia o
conflito agrário e a luta por território; a escravidão por dívidas, na forma de peonagem; 3) a
violência contra o patrimônio destes povos e do trabalhador rural, seja pela casa, as
plantações, os recursos como meio de vida, os crimes de tocaias e pistolagens em que o
trabalhador se encontra fraco e desprotegido pelo Poder Público. O capitalista diz que as
“propriedades” são suas porque não foram adequadamente questionadas pelo Poder
Público e se multiplicaram sistematicamente pela prática da grilagem (BARATA, 1995, p.10).
As populações locais sempre foram vistas como “entraves” que obstaculizam o
“desenvolvimento”, ou melhor, a riqueza das oligarquias locais ligadas ao setor madeireiro.
Podemos tomar como exemplo o caso do Rio Uruará, margem direita do Amazonas,
município de Prainha, região Oeste do Pará, em 2006. Tal narrativa nos serve para
compreendermos a violência em seu processo na região, segundo Torres (2007, p.91):
O entorno do rio Uruará começou a ser alvo de madeireiras por volta de 2001. Lá, como no resto da Amazônia, a chegada das madeireiras foi precedida por um processo de apropriação e grilagem de terras públicas, de terras ocupadas por populações indígenas, quilombolas ou ribeirinhas. Para pleitearem a licença para exploração florestal de uma área, precisam contar com um documento que, pelo menos em seu mais superficial verniz, se revista de forma legal. A grilagem da terra é, assim, o primeiro passo para a expropriação dos povos da floresta e para a devastação ambiental. E a amazônia tem um macabro histórico de facilidades criadas ao grande capital para que se apropriem de terras.
Como estamos tentando mostrar a visão dos trabalhadores em relação às
resistências aos poderes locais, é importante ressaltarmos que estes não estiveram
passivos mesmo diante da presença dos militares na Amazônia na década de 1970, período
mais duro com o governo Médici. De acordo com Lúcio Flávio Pinto (2012), em ensaio
recente, mesmo durante o regime, trabalhadores que estiveram no projeto Jari, em Amapá
fizeram fortes protestos contra a comida feita para estes; e meio século antes, em 1945,
quando os americanos cortaram do cardápio a farinha dos caboclos da região,
trabalhadores da Fordlandia, iniciaram quebradeiras da fábrica e imóveis, revoltosos que
estavam. Além disto, as novas ocupações e greves na hidrelétrica de Tucuruí e Belo Monte
pelos direitos dos povos indígenas e populações locais são a versão mais atual destas
revoltas.
A exploração de madeireiras na região, no caso acima visto, a do rio Uruará,
demonstra que os conflitos e a violência não pode ser dissociada dos fatores ligados aos
poderes econômicos e políticos privados destes empreendimentos nos territórios ocupados
em áreas públicas de conservação, proteção, demarcação, reservas. A lógica do capital que
se instala é que aquele que investe para gerar recursos seria visto como o provedor da
10
região. Para os ribeirinhos, a madeira tem significado social diante da lógica do poder que
se impôs de forma empresarial (TORRES, 2007, p.93):
Porém, o impacto da atividade das empresas foi, gradativamente, abalando as condições das quais depende a vida daquela gente. Primeiro, sentiram os efeitos da feroz extração de madeira. Para aqueles ribeirinhos a madeira tem um significado ímpar. Dela são feitas as casas, píers, igrejas, escolas, embarcações, mais um sem fim de construções, ferramentas e utensílios. Também as atividades econômicas têm íntima dependência da madeira, além de sua própria comercialização, é fundamental na pecuária, para construção de currais, embarcadouros e cercas. E por fim, na construção de embarcações nos diversos estaleiros espalhados nas comunidades ao longo do rio Uruará.
2 – Poderes públicos e Privados: Uma Relação Local Segundo Torres (2007) o problema que envolve os conflitos pelo território na
Amazônia não podem ser dissociados das questões políticas que envolvem a visão do
Estado e do governo sobre as populações locais, uma vez que a relação entre setores
ligados a economia madeireira e políticas de governo no Estado têm privilegiado a lógica
econômica da exploração dos recursos da floresta, como se a cidadania pudesse ser
medida a partir deste requisito. O território das populações locais estão sendo subtraídos à
uma lógica de mercado marcada pelo poder privado em associação ao público,
privilegiando-se a visão dos primeiro em detrimento das questões públicas legais, conforme
nos coloca Torres (2007, p.113):
Setor produtivo, quando o que se apropria da floresta se destina à soja ou a pecuária; setor florestal, quando madeireiro: assim se autodenominam e tentam se recobrir muitos que tomam de assalto as terras públicas da Amazônia, expulsando e expropriando as populações que as habitam. E o discurso do “desenvolvimento” lhes dá guarida, alinhando as políticas estaduais e federais: “É a economia da floresta que vai salvar a floresta”, diz o diretor do Serviço Florestal Brasileiro, Tasso Azevedo. Já não se trata de questionar a apropriação das florestas por grandes grupos econômicos e de reconhecer o direito ao território aos seus legítimos ocupantes e promover seu fortalecimento político. Importa, agora, potencializar a ação do madeireiro em seu caráter capitalista na exploração das matas em terras públicas4.
Este comportamento entre as esferas públicas e privadas, desprivilegiando a
discussão do território como meio de vida cultural e social dos povos locais demonstram que
Estado e interesses privados locais aparecem invisíveis sobre a condição de uma “decisão
legal”, formalizada sobre a ideologia da burocracia-racional e legal. Conforme diz Torres
(2007, p.113) “isso é bem claro pela criação de Florestas Nacionais e Estaduais sob
4 Cf. Ibidem, 2007, p.113.
11
encomenda de madeireiros, pela concessão de planos de manejo florestal em terras da
União e do Estado e, até, pela Lei de Gestão de Florestas Públicas”.
É importante enfatizarmos que a chegada dos meios de comunicação de massa e da
internet nas regiões mais recônditas da Amazônia não trouxeram interferências que
pudessem abalar as “estruturas” políticas e econômicas locais, principalmente as marcadas
pelas atividades madeireiras e o latifúndio, fontes de concentração patrimonial e de poder
local. De acordo com Bernardo Sorj (2006), este tipo de “comportamento” da cultura local e
nacional no Brasil é comum numa sociedade marcada pela desigualdade, a hierarquia das
relações e estruturas sociais de poder e mando, em que a lógica institucional da sociedade
não se fundamenta na lógica de um “Estado racionalizador”, visto como poder “neutro”. Para
o autor, “o patrimonialismo está presente, em maior ou menor grau, em todas as sociedades
onde a distribuição de riqueza e poder é desigual” (SORJ, 2006, P.13).
A realidade local marcada pela conjuntura das poucas oportunidades de trabalhos, a
não ser nos empregos públicos nas prefeituras, ou através de programas como o Bolsa
Família, do Governo Federal, terminam levando as populações ribeirinhas a terem que, -
mesmo sabendo de suas reclamações junto as empresas madeireiras -, defender estas
madeireiras. Neste sentido, Torres, mostra que funcionários públicos das prefeituras e o
prefeito alinham interesses políticos com os privados, de natureza econômica local. Os
empresários terminam tendo respaldo muitas vezes legal para adentrarem em terras
indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Para os moradores locais, as empresas são espécies
de “provedoras”. Esta forma de “expropriação” do território pelo poder pode ser
compreendido desta forma, segundo Torres (2007, p.96):
Há, então, que se entender a posição vinda de uma gente que sempre viveu em um mundo regido pelas relações de favor e de tutela (aliás, o que está longe de ser uma peculiaridade da região, ou da Amazônia); uma gente a quem qualquer cidadania nunca foi apresentada como direito, mas como concessão e benevolência que, mesmo feitas pelo Estado, provinham dos préstimos pessoais do governante. Uma gente a quem as relações trilham a forma da dependência e do favor, “fazendo da violência simbólica a regra da vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o paternalismo e o clientelismo, considerados naturais e, por vezes, exaltados como qualidades positivas do ‘caráter nacional”.
Semelhante posição pode ser constatada na narrativa abaixo, ocorrida no município de Trairão, Assentamento Areia, em que empresários ligados a grilagem e madeireiras foram investigados pela Polícia Federal, Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBIO) e IBAMA em recente operação conhecida como Operação do Mato 2. Preocupados com o fechamento das madeireiras se relata pelo morador Sr. Zé que as atividades madeireiras são importantes fontes de emprego local. Dessa forma, termina caracterizando as Unidades de proteção ambiental como um “atraso de vida” (PARRACHO, 2012):
...sêo Zé "do couro preto" toca um boteco com a esposa. Ele não diz o nome completo, mas critica: "Eles estão tirando leite da boca das
12
criancinhas. Essa comunidade depende dos madeireiros", diz. "E esses territórios federais (Unidades de Conservação) são um atraso de vida, se não fosse isso, a gente já tinha uma estrada pra Rurópolis aí por dentro e toda essa terra já tinha virado pecuária".
3 – Quando a “Ordem” é o Princípio da Polícia contra os Resistentes e o Território
O território é um espaço social em que se dão os interesses e conflitos. Mas não só,
segundo Alfredo Wagner (2008, P.133), o acesso ao território para as comunidades
tradicionais é fundamental, uma vez que a "territorialidade funciona como fator de
identificação, defesa e força. Laços solidários e de ajuda mútua informam um conjunto de
regras firmadas sobre uma base física considerada comum, essencial e inalienável (...)”.
Para Paul Little (2002, P.3), território é “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar,
usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,
convertendo-a assim em seu ‘território’ ou homeland”. Dessa forma, o território ganha
significado ainda maior. Ele não é mais apenas aquele espaço em que os seus ancestrais e
tradicionais moradores – estigmatizados como posseiros pelos latifundiários, medereiros e
grileiros -, pois estes reivindicam a territorialidade como espaço de histórica social, marcado
pela memória, o trabalho e a cultura.
A reforma agrária está mudando de perfil: não é mais só conquista de mais terra, é,
também, a defesa e a ampliação dos territórios ocupados pelas comunidades tradicionais e,
sobretudo, é a reivindicação e a defesa de direitos sociais e humanos pela titulação e
asseguramento jurídico do patrimônio material e cultural do território, bem como a não
sujeição às exigências da agroindústria, da violência e dos conflitos instaurados em torno
das áreas e territórios indígenas, quilombolas, ribeirinhos e tradicionais.
O caso do Rio Uruará é um exemplo dos muitos existentes acerca do problema da
resistência a exploração madeireira e como forma de geração de conflitos na região.
Conflitos tanto pela terra quanto pela água. O outro aspecto importante que devemos notar,
a partir das observações da pesquisa de Torres (2007, p.98), é o papel exercido pelo Estado
na legalização de atividade ilegais, bem como a falta de transparência democrática com as
populações locais. Um exemplo disto foi a atitude da Secretaria de Executiva de Ciência,
Tecnologia e Meio Ambiente do Pará (Sectam), que, mediante lei artigo 83, da Lei Federal
11.284, de 2 de março de 2006, delegou aos órgãos estaduais a aprovação da exploração
de florestas, os mesmos pedidos de licença negados pelo Ibama foram aprovados pela
referida secretaria.
O trabalho de pesquisa acima serviu também para mostrar as contradições do
Estado e suas relações com as madeireiras e as políticas de ocupação territorial destas,
muitas vezes controversas e ilegais. As comunidades se manifestam, mas o poder público
13
não tem respondido com a mesma urgência as questões reclamadas (TORRES, 2007,
p.99):
Os ribeirinhos denunciam o furto de madeiras desde quando começaram a ser abertas primeiras estradas clandestinas que, hoje, se estendem por mais de mil quilômetros na região. Depois de anos clamando em vão, os comunitários, em outubro de 2006, resolveram interditar a passagem de balsas carregadas de toras cortadas ilegalmente.
Desta forma, as comunidades ribeirinhas passaram a defender seus territórios,
marcados pela exploração do capital pelas madeireiras nesta região e pela anuência e
ausência do Estado em ouvir os direitos daqueles que defendem uma forma sustentável de
manutenção dos bens da floresta. O preço da madeira no mercado justifica uma forma de
produção do capital e sua exploração pelos madeireiros. Jatobá, Cedro, Ipê e
Massaranduba, por exemplo, numa quantidade de 60 mil m³, chegam a custar mais de R$
45 milhões de reais (PARRACHO, 2012). Apesar de causar danos predatórios ao
ecossistema, a atividade das madeireiras gera emprego, cerca de 54,6 mil entre
processamento e transporte, e receita líquida de capital em torno de U$$ 1,026 bilhão,
apenas em 1998 (CASTRO, 2008, p.50). Muitos conflitos com violência tem acontecido
dentro das Unidades de Conservação, como a que ocorreu recentemente com a morte de
João Chupel, na chamada Reserva Extrativista (Resex) Riosinho do Anfrísio e da Floresta
Nacional (Flona) do Trairão, marcando a luta pelo capital, na forma de madeireiras, pela
conquista de territórios, incluindo o apoio de pistoleiros que protegem as áreas
(PARRACHO, 2012). Quando a comunidade prendeu as balsas, em vez de haver
providências do Estado, o que ocorre é a sistemática visão de que eles são os invasores de
“propriedade”, cometendo “crime contra patrimônio”, e não o inverso. A “ordem” parece ser o
crime ambiental pelas oligarquias e a polícia. Completa Torres (2007, p.99)
As primeiras balsas foram retidas no dia 5 de outubro. Porém, na madrugada do dia 6, a Polícia Militar, com violência, obriga os ribeirinhos a liberarem as balsas. Benedita Furtado, uma das manifestantes explica que os policiais “disseram que tinham ido soltar a balsa e cobriram de metralhadora em cima de nós”. Todas as balsas foram escoltadas pela Polícia Militar para que passassem pela manifestação: “eles iam lá, levavam a balsa, vinham buscavam outra, levavam... assim eles ficaram até umas cinco horas da manhã, até que eles passaram as cinco balsas”. Estranha escolta. Estranha atitude. O delito é a pretensão de ordem; a ordem, o crime ambiental. A força policial, com humilhações e violência, abate-se sobre um grupo de ribeirinhos que tentava se opor ao furto de seus recursos e, em enfurecida defesa das empresas que operavam ilegalmente, co-participa do transporte dessa madeira. Um enredo tão triste, quanto pouco original: “As oligarquias sempre foram, e continuam sendo, grupos armados com exércitos privados e, freqüentemente, com grande capacidade de mobilizar força pública, as polícias estaduais
14
militarizadas, para, pela violência, impor sua vontade política e econômica”.
A atuação do poder policial vem para defender a “ordem”, quando o que deveria ser
correto era está a serviço dos direitos das comunidades locais acerca dos usos e abusos de
expropriação ilegal de seus territórios. Na dinâmica local, é comum que o aparelho de
polícia seja usada contra aqueles que são focos de resistências e luta contra formas de
ilegalidades. Ainda assim, a polícia militar, associada aos interesses econômicos e políticos
locais, e longe das instituições de controles externos, estão mais vulneráveis a ser usadas
para exercerem uma função mais privada do que pública, ou melhor, uma função pública,
quando esta está a serviço do poder privado. Neste caso, se a polícia está sendo usada
como instituição pública, ressaltamos que, dentro da teoria de Max Weber, a sua função é
fazer o uso da força legítima para “pacificar” a ordem interna ao Estado burocrático. Tenta-
se pela violência de quem tem poder sobre aqueles que dispõem apenas de seus direitos,
fundar uma forma de sociabilidade e ordem pública, descaracterizando os preceitos
democráticos da cidadania e dos direitos ao território pelas populações locais. A Cidadania,
e suas ausências na região motivada pelas grilagens e madeireiras, mereceram até mesmo
nota pública de manifesto pelo fim dos conflitos em favor das questões territoriais
reivindicadas pelas comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas (MPF, 16/06/2012). O
poder público e privado, mediante a participação de policiais, se confundem numa ação que
claramente mostra as ilegalidades contra a comunidade, segundo a versão apresentada
pela narrativa do pesquisador (TORRES, 2007, p.100):
Um desenrolar de tristes conseqüências se anunciava. Sem
nenhuma providência dos órgãos competentes, em 21 de novembro, os ribeirinhos reuniam-se para tentar deter a passagem de outra balsa que se preparava para partir quando viram chegar, no barco da madeireira, um grupo de homens estranhos. Imaginando tratar-se de pistoleiros contratados pela empresa, alguns poucos ribeirinhos, com velhas espingardas de caça, abordam o barco e descobrem, então, que os homens eram policiais militares à paisana. Assim que esses se identificaram, os ribeirinhos partiram e voltaram a se mobilizar à espera da balsa, em um movimento de orientação pacífica. Porém, a partir daí, eclodiu um conflito envolvendo ribeirinhos, madeireiras e Polícia Militar que culminou, dois dias depois, com a Polícia invadindo casas e barcos para prender lideranças, sem ao menos esclarecer o motivo. Os policiais chegaram ao cúmulo de indagar às pessoas, pela rua, se eram contra ou a favor das madeireiras. Quem respondesse ser contra, era preso ou expulso do centro da comunidade. Assim aconteceu com Manoel Viegas, preso pelo “crime” de não apoiar a atividade ilegal das madeireiras: “a polícia disse: ‘tem que saber se tu és contra ou a favor das madeireiras, porque se tu fores contra, vais preso’.
15
Segundo a narrativa acima, remetendo a um exemplo de conflitos na Amazônia, a
cidadania, como direito a ter direitos de denunciar o território e os crimes cometidos pelas
madeireiras nas florestas públicas, não tem sido respeitada. E isto por si só já é uma
violência. A resistência é vista como ato negativo, e os grupos visam resistir a uma forma de
legitimação dada aos ribeirinhos como “bons, comportados e passivos”. Neste aspecto,
como diz Castells (2002, p.24), a construção de identidades pelos ribeirinhos, indígenas e
quilombolas se dá como resistência a esse modelo de cidadania passiva. Segundo o autor,
“uma identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições e
condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo
trincheiras de resistências...”.
Enquanto isto, a exemplo da resistência local dos trabalhadores pelo seu território, a
luta também está, como diz Bernardo Sorj (2004), no processo de construção em que nas
sociedades democráticas, a esfera pública é o espaço político em que se dá a passagem da
vontade individual à vontade coletiva, o lugar onde os indivíduos negociam seus interesses
pessoais e suas representações do bem comum. Diante da realidade social vislumbrada
aqui, isto contrasta em muito aos poderes privados e interesses econômicos locais pela
exploração das riquezas da floresta e das águas, e revela que há um longo processo
histórico de pouca presença das instituições sociais para defender estes povos, em
contraste com as formas econômicas capitalistas das atividades madeireiras na região na
busca por mais espaço de exploração dos territórios em disputa.
O território não pode ser visto como delimitação cartográfica pelos Poder Público ou
como demarcação limítrofe de propriedades particulares. É necessário ampliar a visão de
que este é um espaço em disputas e contradições. Segundo Enéias Guedes (2012, p.1), a
questão do território,
...não pode ser entendido tão somente como natureza herdada, mas ao contrário, compreender-se-á como recorte espacial construído, inventado, disputado e concebido em meio ao debate politico e luta de diferentes atores sociais no processo de apropriação e uso dos recursos, do território em meio às mudanças sociais e ambientais contemporâneas.
4 – Conflitos na Gleba Nova Olinda: Resistentes, Estado e Madeireira
Semelhantemente ao caso dos ribeirinhos vistos na pesquisa de Maurício Torres
(2007), o período de outubro de 2009 a janeiro de 2010 foi marcado pelas manifestações de
indígenas, ribeirinhos e comunidades locais contra a extração ilegal de madeira por uma
empresa Madeireira, na chamada Gleba Nova Olinda, comunidade São Pedro, Rio Arapiuns
e Maró. Estes exigiam a regularização fundiária para evitar que a região seja ocupada pela
16
atividade da grilagem e madeireira. Uma fonte local da cidade de Santarém descreveu,
naquele momento inicial do conflito, as manifestações de várias comunidades. Se o conflito
se acirrou como consequência de ações não resolvidas na esfera das instituições públicas
responsáveis pelo controle das atividades criminosas. Estiveram presentes vários atores e
movimentos representantes dos interesses pela defesa dos Territórios das populações
indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Conforme Fabienne Simenel (2009), o cenário do
conflito se encontrava fortemente marcado pela presença local de movimentos sociais:
...a praia, decorada com bandeiras brancas, hospeda cerca de 300 pessoas vindas de 27 comunidades da Reserva Extrativista Tapajós/Arapiuns, do PEAEX Lago Grande e da Gleba Nova Olinda. Os ribeirinhos entram no décimo-primeiro dia de manifestação. Vieram de canoa, rabeta e barco comunitário para protestar contra a exploração ilegal de madeira na área e para exigir do Governo Estadual do Pará uma maior fiscalização da madeira e a regularização fundiária da Gleba Nova Olinda. Os manifestantes contam com o apoio de entidades como o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR), a Federação das Associações do Lago Grande (FEAGLE) e a Tapajoara-RESEX. Atrás da ponta de praia, estão duas balsas com madeira e duas balsas vazias, prendidas pelos próprios comunitários. Depois de muitos anos de negociação pelos direitos à terra, e de ver de cinco até dez balsas de madeira saírem da região por semana, chegou o limite para o povo do Arapiuns. Danilson, liderança do povo Borari da Aldeia Novo Lugar, resume o sentido da manifestação: “O governo atual é que nem mocotó. Só vai sob pressão”.
O processo de conflitos na região manifesta também a presença marcante naquele
momento dos sindicatos e comunidades, mostrando que os movimentos sociais que ali se
articularam em torno da causa da demarcação territorial de suas terras são conscientes dos
direitos que possuem na defesa de seus territórios, incluindo o fato político de que, como diz
uma liderança local “O governo atual é que nem mocotó. Só vai sob pressão”, pois se sabe
que o Estado e as Instituições não têm exercido os direitos das populações locais. Segundo
a mesma liderança Danilson, “Não somos bestas não, somos cidadães brasileiros. Sabemos
revindicar os nossos direitos” (SIMENEL, 2009).
Enquanto alguns teóricos dos movimentos sociais decretaram o insulamento da luta
de classes, em geral os chamados pós-modernistas, no caso amazônico o recrudescimento
dos conflitos sociais, bem como a violência, está associado não só as condições de vida e
precarização do trabalho, em que o Estado deixou de cumprir suas funções, mas está
estritamente relacionado ao que Roberto Leher e Mariana Setúbal (2005, p.20) definem
como a insurreição de “confrontos envolvendo trabalhadores precarizados, acesso à terra, à
água, às fontes energéticas, a integridade do território dos povos originários e a autonomia
dos povos sobre os mesmos e, ainda, o acesso às zonas de minérios e às reservas de
hidrocarburos, bem como as disputas das regiões de biodiversidade”.
17
A sanha pela retirada das madeiras de alto valor comercial tem sido feita em áreas
consideradas de proteção ambiental e Resex’s, e conta com a tática dos “empreendedores”
pelas promessas até mesmo de renda, obviamente, pelo sistema de assalariamento das
condições de vida locais. Notamos também que o conflito, que teve seu ápice na “queima
das balsas”, não aconteceu sem antes ter havido o contato com as Instituições, como o
Ministério Público Federal, representação de Santarém, em que os manifestantes
encaminharam denúncias da extração criminosa de madeira na região (MPF-PRPA,
24/06/2012). Agentes ligados a defesa dos manifestantes, vindos principalmente da CPT-
Santrém, denunciaram que (BALETTI, SENA E REGO, 2010):
Apesar das reiteradas solicitações feitas ao governo do Estado do Pará para conversar com os manifestantes, a fim de apurar as denuncias de irregularidades no processo de extração de madeira, o Governo ignorou os apelos dando respostas evasivas aos moradores do Arapiuns. O desrespeito foi tanto que no dia 12 de Novembro, depois de um mês, os manifestantes decidiram dar um recado ao governo queimando a madeira de duas balsas com indícios de irregularidades. A Gleba Nova Olinda faz parte do conjunto de Glebas Estaduais Arapiuns/Mamurú. Possui 172,9 mil hectares e fica localizada entre os Rios Aruã e Rio Maró, afluentes do Rio Arapiuns, município de Santarém.
O evento simbolizado neste conflito vem demonstrando que o Estado é acionado, no
entanto, em vez de olhar para as soluções das comunidades, e oferecer as condições de
necessárias de defesas dos territórios, os manifestantes são criminalizados, culpados pelos
danos causados a empresa, em vez de trabalhar sistematicamente os problemas em torno
da demarcação territorial. A violência instaurada no local se deu à medida em que a
atividade madeireira avança para a região do conflito. Os relatos de moradores e
manifestantes são também reveladores da barbárie, mas não noticiada nos jornais locais.
Pistoleiros e “seguranças” guardam as “terras dos proprietários” das madeireiras, com casos
de ameaças de morte às lideranças sindicais. O relato abaixo é revelador de outra questão,
a subordinação a uma lógica de relação de trabalho que se pretende instaurar.
Desde o inicio das discussões para a criação da Resex Tapajós-Arapiuns, 13 anos atrás, a população das 14 comunidades indígenas e tradicionais da Gleba Nova Olinda tem lutado para o seu reconhecimento legal como populações originárias junto aos governos. O aumento da violência e o processo de expropriação daqueles moradores se dão com a chegada inescrupulosa de empresários do setor da soja e madeireiros dentro da Gleba. Tudo acontece com a omissão e conivência do Estado. A tática dos grileiros (madeireiros) se dá pelo processo de expropriação do nativo para em seguida seduzi-lo ao emprego e torná-lo proletários no desmatamento da floresta. É assim, que alguns moradores da Gleba foram cooptados por empresários e passaram a fazer a defesa de seus projetos de destruição da
18
floresta. Acontece que a grande maioria dos nativos não se sujeita a este modelo de destruição, que elimina a sua única fonte de sustento e vida. Portanto, resistem e lutam em favor da vida e de sua cultura.
De acordo com a narrativa acima, não só os manifestantes das comunidades locais
(indígenas, quilombolas e ribeirinhos) se adiantaram chamando a atenção do Estado, o
próprio MPF-PRPA também tem exercido papel de pressão sobre as instituições
responsáveis pela demarcação territorial e os conflitos fundiários na região sudeste e oeste
do Pará (MPF-PRPA, 25/06/2012). Por fim, a posição do Estado e do Governo Federal foi
de não atender as reivindicações. Os grileiros permaneceram no local, e inclusive se abriu
vias de escoamento de transporte para os madeireiros, desrespeitando os povos indígenas
Borari-Arapiuns em seu território.
Como solução em favor do “mercado” o Estado, através do Instituto de
Desenvolvimento Florestal do Estado – IDEFLOR, criou um mecanismo sistêmico que,
mediante políticas públicas e leis “regulariza” o problema dos conflitos através do chamado
ZEE (Zoneamento Econômico Ecológico). Na prática, é a forma do Estado não travar o
avanço do capital que se instala na região pelo agronegócio e a soja, ambos precisam de
extensas áreas de produção, bem como a pecuária e outras atividades, incluindo o setor
madeireiro. Na lógica do Estado, dar “legalidade” a exploração econômica é uma forma de
“evitar” os conflitos. O ZEE é formado pelos planos de ordenamento e gestão territorial para
a Amazônia criados por iniciativa do Banco Mundial para implementar o “desenvolvimento
sustentável participativo” (MPF-PRPA, 12/06/2012).
O ZEE, de acordo com os trabalhos desenvolvidos por Edna Castro (2008) sobre a
Br 163, é atualmente, responsável pelo reordenamento territorial do Estado na seguinte
forma: re-territorialização que visa o desenvolvimento de grandes projetos de infra-estrutura
e visa abertura de novos espaços para os grandes projetos na Amazônia, incluindo a UHE
Belo Monte, a UHE Madeira-Mamoré, em que podemos chamar de “nova onda dos grandes
projetos na Amazônia”. Os ZEE's pretendem criar “zonas” para expansão comercial do setor
produtivo, separando-os das “zonas” territoriais demarcadas para indígenas, quilombolas,
Resex, áreas públicas de conservação. O mais recente plano de desenvolvimento
econômico do Brasil, PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) reservou, durante
quatro anos, 95 bilhões de reais para a construção de rodovias, rios navegáveis e barragens
na Amazônia. Setores de movimentos sociais diversos têm criticado tal modelo, por
acharem que juridicamente vai permitir legalização de grilagem, comercialização de terras
em commodities: dividindo a região em áreas de “conservação” e de “expansão” do setor
“produtivo” (agroindústria, madeira, soja).
19
5 – Litigação e Justiça: Pistolagem e impunidade contra posseiros...
Segundo Torres (2007, p.102) tanto as revoltas nas formas de manifestações como o
ato de “queimar” ou bloquear balsas, não pode ser visto como ato de vandalismo, mas sim
ato criminoso que inclui, inclusive, cooperação da polícia:
O abuso como se dá o saque da floresta e a cooperação dos policiais militares com o crime ambiental indica como tudo ocorria dentro de um espaço de legalidade débil, se, não, inexistente. Isso torna compreensível que os ribeirinhos não saibam a quem recorrer. Nesse contexto, ações como a queima da balsa não são acidentes e muito menos, atos de vandalismo. São, antes, e na medida das suas possibilidades, um ato político. Frente à inoperância de qualquer poder instituído e regulador, a população resolve agir em defesa de seu território e de seus recursos. O problema é tudo se passar sob o controle precário da passionalidade daqueles que, costumeiramente, são aviltantemente desrespeitados. O caráter explosivo do ato é resposta, não só aos seus saqueadores, mas também à insolência com que os órgãos competentes recebem suas denúncias.
Ainda conforme a pesquisa e análise do autor este processo cultural e político está
buscando se enraizar como estigma social, ou seja, “o entendimento dessa reação popular
foi estigmatizado, criminalizado e sofreu com o apelo à nociva idéia (habilmente explorada
pela mídia controlada pelos madeireiros) de que tal reação não seria autêntica de uma
população ribeirinha” (TORRES, 2007, p.102).
Neste caso, não é só a polícia que tem sido usada para reprimir na região
manifestantes. O judiciário tem contribuído para a impunidade e falta de celeridade nos
processos relativos a demarcação territorial, principalmente no que se refere a conflitos e
violência no campo e aos territórios indígenas e quilombolas. Os crimes de encomendas por
pistolagem também tem sido mais frequente no Pará do que, segundo mostra o próprio
Ministério Público Federal do Para, pegar um táxi (MPF, 2007).
De acordo com Fernando Prioste (2010, p.202) o judiciário é apontado como
elemento impeditivo para a concessão de direitos ao território de comunidades quilombolas
e indígenas. Segundo mostra o autor a questão territorial quilombola é discutida em ao
menos “222 ações judiciais, sendo que destas, 152 estão em andamento atualmente. Das
ações judiciais em trâmite, 89 foram intentadas em desfavor dos direitos territoriais das
comunidades remanescentes de quilombos e 60 em favor das comunidades quilombolas”.
Para este, é necessário discutir e monitorar as ações da justiça, sob a alegação de que as
decisões e sentenças judiciais que envolvem interesses diversos pelas terras e
demarcações territoriais são geralmente sujeitas a interesses e estigmas dos juízes, e a
margens de interpretações legais ou interesses que podem evitar o esclarecimento das
20
contradições que envolvem os direitos humanos. Ao analisar os problemas sociais, o juiz
está sujeito a influências sociais políticas, econômicas e ao modus operandi do campo
jurídico em seu modo positivista de olhar os conflitos sociais.
Neste aspecto, ruralistas, fazendeiros, madeireiros e empresas ligadas ao
agronegócio podem exercer pressão sobre o judiciário de várias formas para obtenção da
propriedade do território reclamada pelas populações tradicionais. A isto chamamos de
litigância, relativa aos direitos humanos. Demonstrar as contradições da justiça nas
litigações que envolvem a questão da definição do território das populações tradicionais é
fundamental para a desmistificação da justiça como ato “científico e neutro”. Para Priostes
(2010, p.203) setores mais conservadores podem atuar junto à Constituição Federal, ou
mediante um Tribunal, para darem uma validade formal a seus argumentos e inviabilizarem
a titulação de territórios. Além do mais, ignoram e extirpam os conflitos e as relações sociais
e culturais da interpretação da lei no atuar processual, enfatizando o viés positivista. Neste
sentido, como diz Rui Portanova (2003, p.147) “identificadas as motivações ideológicas
subjacentes na lei e nas sentenças, cumpre projetar-se a necessidade de conhecê-las de
forma a garantir a revelação do pensamento do juiz no entendimento dos escopos dos
processos”. Este processo pode beneficiar ou não as comunidades no direito ao acesso ao
seu território.
Segundo João Camerini (2010), as leis e decisões no direito estão sujeitas a
interpretações próprias do campo jurídico. Este campo possui modalidades discursivas
próprias de uma sociedade aberta aos interesses políticos, sociais e econômicos que não
podem ser dissociados da discussão da produção dos artigos legais e dos interesses sociais
em voga. Desta forma, o trabalho vem mostrar que história da construção dos direitos
humanos dos quilombolas aos seus territórios não pode ser desvencilhada do campo de
lutas simbólicas e sociais que entram na cena das discussões para definições de direitos
para grupos sociais e os papéis sociais das instituições do Estado. Neste aspecto, o campo
jurídico precisa ser compreendido para além de suas formalidades positivistas dos códigos
escritos, para ser analisado como sujeito a relações de poder e saber que se enunciam para
além dos enunciados escritos.
Se o problema do judiciário não pode ser analisado pela perspectiva
reducionista apenas do viés burocrático-administrativo, o que mostraria parcialidade, então
na perspectiva que estamos analisando dos conflitos resultantes em violências contra os
direitos humanos e contra os que resistem às situações de conflitos e violências no campo,
queremos concluir que os dados têm mostrado que a justiça penal não tem punido os
agressores na mesma proporção que penaliza as vítimas pelas ausências de punições aos
criminosos.
É o que demonstra a pesquisa de Wilson Barp e Ed Carlos (2011). Os autores
mostram que a violência no campo se caracteriza pela extrema brutalidade, o extermínio
21
físico, a mando de fazendeiros, que exercem barbáries que não se restringem apenas ao
ato da eliminação física pela bala, mas pelos atrozes meios de “teçadadas”. Matar pela bala
sim, mas é preciso também “esquartejar” para que os corpos sirvam de “exemplos”. Além
destes atores da pistolagem a serviço de madeireiros e fazendeiros, outros podem entrar em
cena, como políticos, prefeitos e agentes da segurança pública. A finalidade não é o
extermínio de lideranças, resistentes e posseiros, mas a conquista da propriedade
disputada. A lógica que garante a invisibilidade jurídica dos mandantes é marcada pela
impunidade. A justiça é penal para os que não possuem recursos econômicos, os posseiros,
lideranças de direitos humanos, que lutam contra uma lógica de autoritarismo dos poderes
privados e públicos locais. Segundo Wilson Barp e Ed Carlos (2011, p.121):
Por justiça penal compreende-se um conjunto de agências de poder (polícias, Ministério Público e Poder Judiciário) responsável por criminalizar os indivíduos oriundos dos estratos populares, bem como imunizar as condutas criminosas das pessoas mais afluentes da sociedade. A seletividade penal, por seu turno, consiste em um dispositivo de poder próprio das sociedades hierarquizadas e desiguais, o qual estrutura o funcionamento do sistema de justiça criminal, possibilita o exercício do poder arbitrário e seletivo sobre os setores vulneráveis e contribui para delimitar os espaços sociais e disciplinar os indivíduos com comportamentos desviantes.
O sistema de justiça penal termina punindo aqueles que denunciam os “esquemas”
ilegais e os crimes cometidos na região, como se vê noticiado comumente nas mídias locais
mediante o processo de “estigmatização” dos diferentes. Há uma explicação, “a violência
brutal é o meio encontrado para se restaurar a ordem e expurgar, em definitivo, aqueles que
ameaçam a desestruturação de uma vida social já consolidada” (WILSON BARP, ED
CARLOS, 2011, p.123). Estes “desviantes” precisam ser exemplarmente punidos, e soma-
se a isto as opiniões públicas locais que enquadram aqueles que não se ajustam à lógica do
medo e da obediência, sendo vistos como “vadios”, “vândalos”, “arruaceiros”, sobretudo,
“invasores”.
De acordo com Carlos Walter Gonçalves (2012), como veremos a seguir, a menor
ação do poder público tem relação a menor ação dos movimentos sociais, sendo que este
poder tem entrado na cena para tomar posturas de criminalização dos movimentos,
posseiros e defensores de direitos humanos. De forma aparentemente paradoxa, o poder
público faz pouca referência punitiva as ações que são provenientes do poder privado. As
ações de violências do poder privado chegam a 693 em todo país, devido a reação contra
as ações de ocupações de terras pelo agronegócio ligado a setores madeireiros ou aumento
da propriedade de terras por fazendeiros e empresas. Segundo Carlos Gonçalves (2012,
p.7):
Os dados parecem comprovar cientificamente o caráter de classe da justiça no Brasil, haja vista que a ação do poder público se move de acordo com a ação dos movimentos sociais em luta pela
22
terra, mas se mostra indiferente com relação ao poder privado, na medida em que, como se observa, a intervenção do poder público aumenta ou diminui acompanhando o aumento ou queda da ação dos movimentos sociais.
Se a violência instaura pela barbárie o estado de ordem que almeja, seu ritual
também, como dissemos, demarca um estado de uma cultura política local de mandonismo
que marca posições de quem tem poder, numa escala social dos que representam os
poderes locais de latifundiários, madeireiros, e até agentes públicos. Recentemente, foi
noticiado em mídia nacional o caso do assassinato de João Chupel Primo (ELIANE BRUM,
2012). Necessariamente, não se pode dizer que era um trabalhador rural. João foi
brutalmente assassinado na região chamada “Terra do Meio”, distrito Miritituba, em Itaituba.
Um dos acusados, o vice-prefeito de Rurópolis, madeireiro. Chupel denunciou a retirada de
madeira no Projeto de Assentamento Areia, de onde um dos grupos que extraem madeira
no interior da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio e da Floresta Nacional do Trairão
possui uma grande base de atuação. Neste caso, o vice-prefeito de Rurópolis foi
denunciado quando Chupel detalhou o esquema em uma reunião com o procurador Cláudio
Terre do Amaral, que durou 1 hora e 20 minutos, na sede do Ministério Público Federal em
Altamira. Participaram dessa reunião várias pessoas, entre elas uma representante da
Secretaria Geral da Presidência da República.
5.1 – Chupel: Um exemplo a “não ser seguido”
É importante destacar o ritual de tal empreitada para o assassinato de Chupel que,
pelo fato de vir denunciando os problemas da exploração e crimes praticados, pode ser visto
como um defensor dos direitos humanos. Cabe ressaltar a brutalidade, ou melhor, a
capacidade que o poder local dos mandantes tiveram de cometer tal barbárie. Os relatos
mostram que Chupel não foi morto de forma “tradicional” pelos capangas e pistoleiros.
Simplesmente, com recinto de crueldade, resolveram lhe dar uma “lição” e, obviamente, aos
demais que tentarem problematizar a ordem social local destes. Chupel foi torturado, como
forma de estigmatizar a dor “pela culpa da denúncia”.
Antes de João Chupel, outros denunciadores de crimes ambientais forma não só
mortos por pistoleiros, como seus corpos passaram pelo ritual de barbárie, exercitando um
poder de disciplinamento sobre os sujeitos. Dentro do Assentamento Areia, próximo a
Itaituba, oeste do Pará, o mesmo lugar que depois foi denunciado por Chupel, um
trabalhador local denunciou os crimes de madeireiras na área. Depois de ser pego pelo
pistoleiros locais a mando da madeireira, o amarraram a uma espécie de “poste” no centro
de uma praça, e o cortaram a barriga de tal forma que deixaram suas vísceras expostas.
Obviamente, diante de tal estado de medo local, ninguém o poderia ajudar, mas apenas ver
23
sua “dor exemplar”. Depois de ter passado um dia para outro no local, mandaram recolhê-lo
a um hospital. As fotos mostram que em função da exposição dos órgãos, as infecções o
levaram a óbito e seu corpo estava “inchado” pelo estado em que foi submetido ao
sofrimento. O óbito foi registrado como causa, morte por bala, o que remete ao problema do
poder público local não evidenciar as causas do fato nos assassinatos, muitas vezes, por
cumplicidade de agentes públicos.
Os denunciantes, segundo mostrou Eliane Brum (2012), João Chupel Primo e Júnior
José Guerra revelaram esquema criminoso dos madeireiros na região. A morte de Chupel
revela o problema da omissão das instituições públicas com a segurança destes. Mesmo
acionando o Ministério Público Estadual e Federal, o Programa Estadual de Proteção aos
Defensores dos Direitos Humanos, ainda assim os pistoleiros cometeram o assassinato.
Júnior Guerra vive em algum lugar do país protegido contra os criminosos.
Segundo Wilson Barp e Ed Carlos (2011, p.123) “nos conflitos agrários na Amazônia,
há um ritual de passagem da chacina para o genocídio, em função da ação continuada,
frequente e regular nos atos violentos contra os povos indígenas e a população rural em
conflito”. Além do mais “o extermínio físico torna-se cada vez mais a resolução encontrada
para os conflitos sociais. Além disso, o tipo de violência praticado, como torturas e castigos
corporais pós-morte, direciona-se a grupos inteiros. E, ainda, as carnificinas tornam-se
triviais e tidas como naturais”.
6 – Violência e conflitos no campo em perspectiva estatística
A tabela abaixo elabora um quadro geral da situação da violência e dos conflitos no
campo pela questão da posse de terras. Tal quadro nos revela em parte o campo de disputa
pelo território envolvendo atores diversos em suas posições sociais e econômicas. Na
distribuição das categorias sociais e conflitos, observamos a predominância da violência
praticada pelo poder privado sobre os demais atores envolvidos no processo dos conflitos
em 2011.
Tabela 1 - Categorias Sociais Envolvidas em Conflitos 2011
Categorias Número % Categorias Sociais Fazendeiro 255 24,42 Empresário 207 20,06 Grileiro 152 14,73 Mineradora 43 4,17 Madeireiro 36 3,49 Estado 84 8,14 Movimentos Sociais (Ocupações 230 22,29
e Acampamentos) Outros 28 2,70 Total 1035
Fonte: PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter & SANTOS, Luís Henrique Ribeiro, 2012, p.79.
Na análise realizada por Carlos Walter e Luis Santos (2011, p.79):
A Amazônia destaca-se como a região onde é mais intensa a violência do poder privado, com uma participação de 52,2% do total das ações violentas dos Fazendeiros em todo país; 67,7% do total das ações violentas dos Empresários; 86,6% das ações dos Grileiros; 96,8% das ações dos Madeireiros; 65,1% das ações violentas das Mineradoras e 80% das ações dos Pistoleiros. Esses números dão conta da expansão violentíssima sobre a Amazônia do complexo de violência e devastação protagonizado pelo poder privado, onde se destacam não só os tradicionais protagonistas como os Fazendeiros, os Grileiros, os Madeireiros e os Pistoleiros, mas também protagonistas que se apresentam com nova roupagem, como a de Empresários, inclusive de Mineradoras, e que são surpreendidos com as mesmas e tradicionais práticas de violência.
Como vimos acima a partir de dados da tabela 1, as categorias sociais que se
envolveram com conflitos e violência está relacionada com organizações sociais que, no
caso amazônico, principalmente o Estado do Pará, tem relação direta a formação histórica
das oligarquias tradicionais que resistiram ao longo das décadas de 1970 até as recentes ao
processo de “modernização” das relações sociais. Entenda-se “modernização” como um
artifício sociológico, um tipo ideal de categoria de análise, em que metodologicamente
usamos para mostrar a passagem das relações de poder privado, marcadas pelo
mandonismo local, para uma “esfera pública” marcada pelos princípios da transparência e
publicidade da coisa pública. Segundo nos mostra Daniel Brito (2001) a Amazônia, a partir
das décadas marcadas pela presença da ditadura militar na região, não atingiu as
“estruturas” das mudanças sociais prometidas pelo aparato burocrático e racional do Estado.
O processo de modernização do Estado e sociedade foi marcado pela formação do poder
das oligarquias locais, com foco nos empreendimentos sociais para benefícios privados.
As tabelas 1 e 2, e particularmente a tabela 3, tratam das ações estatísticas da ação
do que se chama de poder privado e poder público e os movimentos sociais, mostrando
índices claros que demonstram que a ação do poder privado é, sobretudo, maior do que as
dos movimentos sociais. Uma explicação para isto é a busca da defesa da propriedade
privada e do território pelo poder privado. Esta constatação vem desmistificar em números
atuais, apenas no ano de 2011, que a tradicional forma de tratamento dos movimentos
sociais como “vândalos” e “violentos” não condiz com o que vem sendo apresentado nas
tabelas. As ações mais violentas são numericamente desfavoráveis ao poder público, 24
25
enquanto que os movimentos sociais em conflito, apesar de menor participação, são mais
acionadas como “responsáveis” pela violência que sofrem. É claro que se tomarmos a ótica
conservadora de “danos ao patrimônio”, como comumente se anuncia enquanto mecanismo
jurídico para punir os movimentos sociais, estaremos transferindo a violência aos
movimentos em vez de analisar o seu modus operandi de forma sistêmica.
Tabela 2 - Categorias Sociais que Sofreram Violência 2011
Categorias Número % Sem Terra 176 21,86 Assentados 89 11,06 Pequenos proprietários 22 2,73 Mediadores 16 1,99 Trabalhador Rural 3 0,37 Populações Tradicionais 483 60,00 Sem Informação 16 1,99
Total 805 100 Fonte: PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter & SANTOS, Luís Henrique Ribeiro,
2012, p.79.
De acordo com a pesquisa o poder privado tem agido na forma de assassinatos,
ameaças de morte e expulsões. O poder público tem agido na forma de aumento de prisões,
principalmente na região norte com o Estado do Pará. Tais ações incluem também
reintegração de posse e despejo, além de ações policiais militares. No Pará, a violência
contra ocupação e posse pelo poder público e poder privado teve os seguintes números,
segundo dados da CPT de 2011: foram 125 ocorrências; com a participação de 13.760
famílias; envolvendo área de 112.137 km²; 523 expulsões; 634 despejos; 1.500 ameaças de
despejos; 5.727 tentativas e ameaças de expulsão; 106 casas destruídas; 1.138 roças
destruídas; 74 bens destruídos; e 9.477 casos de pistolagem, o maior da região; 12
assassinatos; 6 tentativas de assassinatos; e 78 ameaças de morte. A hipótese é que o
aumento das atividades do modelo agro-exportador e a ocupação de territórios das
populações tradicionais se intensificaram como causas da violência. Outra hipótese também
colocada na pesquisa é que o governo, através da ação do poder público, tem exercido
poder de desmobilização entre os movimentos sociais sem mexer no problema fundiário, o
que poderia explicar as poucas ocorrências de violências do poder público contra estes.
A geografia política da violência contra trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas,
ribeirinhos, lideranças defensoras dos direitos humanos, ameaças a ambientalistas e
advogados que defendem a proteção e demarcação de territórios, demonstram que a
violência tem sido dirigida a estes para evitar a possibilidade de mobilização,
questionamento da questão fundiária e da ordem social local dos poderes estabelecidos em
26
torno da questão patrimonial das terras concentradas nas mãos do latifúndio, madeireiros e
poder privado, segundo Wilson Barp e Ed Carlos (2011).
A violência tem conseguido seu “espaço” como instrumento de resolução de conflitos
pelas elites locais por conseguir permanecer na condição de invisibilidade atrás da cultura
do paternalismo, personalismo e o clientelismo, vistos muitas vezes como “naturais”, uma
vez que, quando a “modernidade” não deu conta de “absorver e expurgar” esta “cultura
tradicional”, este modus operandi, isto em parte se deveu ao fato cultural e político de que
“as oligarquias políticas no Brasil colocaram a seu serviço as instituições da moderna
dominação política, submetendo a seu controle todo o aparelho de Estado” (MARTINS,
1999, p.20). E ao Estado, como ente público, sobrou apenas as formas parciais de
resolução isoladas dos conflitos, sem tocar nas questões sistêmicas. Abaixo, podemos
verificar a relação entre poder privado e público remete a uma reflexão sobre as teorias
sociológicas e da ciência política acerca do caráter normativo e racional-moderno do Estado,
como pacificador e detentor monopólio do uso instrumental e legítimo da força e da
violência. Para as teorias clássicas, o monopólio da violência legítima seria justificado tendo
como fim teleológico o estabelecimento da “ordem”. Tal análise não pode ser
superficialmente realizada sem a contextualização do papel do Estado e as elites locais na
Amazônia.
Tabela 3 - Relação entre a Violência do Poder Privado e do Poder Público
Região Poder Privado (a)
Poder Público (b)
Relação a/b
Relação b/a
Amazonia 69% 49% 1.4 0,7 Nordeste 19% 33% 0,5 1,7
Centro-Sul 12% 18% 0,6 1,5 Total 100 100 - - Fonte: PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter & SANTOS, Luís Henrique Ribeiro,
2012, p.78
Conforme tabela 3 a influência da violência do poder privado ficou registrada em 69%
das ações, contra 49% do poder público, apenas na Amazônia. Esta demonstração deve ser
projetada em torno de um mapa da violência e dos conflitos que indicam uma sistemática
violência de ambas as formas de violências em torno da questão das terras e do território no
Brasil. No atlas abaixo, nas suas diferentes cores, percebemos a distribuição espacial dos
assassinatos, concentrados sobretudo no Pará, em especial o eixo sudeste do Estado; as
ameaças de mortes, relativas a pistolagem principalmente; e as tentativas de assassinatos.
Daí se inclui o caso do casal José Cláudio e Maria do Espírito, no Pará, de Adelino Ramos,
em Rondônia, e o do cacique indígena Nísio Gomes, no Mato Grosso do Sul. Destes 29
assassinatos, sete já haviam recebido ameaças de morte em todo país.
Fonte: GIRARDI, Eduardo Paulon. Atlas da Questão Agrária Brasileira, 2008.
Considerações Finais
A violência que atinge povos indígenas, quilombolas, trabalhadores do campo,
ribeirinhos na região amazônica e no Brasil é sistemática, como vem mostrando no Brasil as
fontes históricas da CPT. O ano de 2011, marcado pelo Governo Dilma Roussef, seguiu a
mesma lógica política instrumental voltada para o “desenvolvimento” econômico de seu
antecessor Lula que, em declaração pública nas mídias nacionais deixou claro que
movimentos sociais, populações tradicionais e Ministério Público Federal eram “atrasos ao
desenvolvimento” do país. Assim como o atual Governo Federal de Dilma tem seguido a
lógica precipitada pelo “crescimento econômico” a todo custo do PAC – Programa de
Aceleração do Crescimento – seu antecessor também, no que se refere a questão dos
conflitos envolvendo as águas, manteve o posicionamento de construir hidrelétricas na
Amazônia, reorganizando os grandes projetos por aqui, mesmo que isto viesse a contradizer
claramente o art. 169 da OIT referente aos direitos humanos dos povos tradicionais, dos
pareceres técnicos dos especialistas e do MPF do Pará que desmentiram as inverdades
ditas pelo Governo Federal. Este último, desde o regime militar, seguindo através da
implantação de Grandes Projetos como Carajás, Jari, Albrás-Alunorte, Mineração Rio do
Norte, Tucuruí, passando pela colonização e construção da Amazônia, sempre viu a região
27
28
como aporte para fornecimento de energias e riquezas para a parte industrial do Brasil, sem
que estes projetos fossem polos para distribuição local de bens e riquezas.
A lógica do Governo Federal não é mais estranha às do passado. Para construir a
Hidrelétrica de Belo Monte, também fonte de conflitos variados entre indígenas da região,
como os Xikrin, os atingidos por barragens e empresa, passou-se a justificar que o sacrifício
dos “direitos humanos” e dos recursos das águas e da floresta deve ser visto como uma
“exceção” necessária ao PAC. O Conselho indigenista missionário publicou informe Nº 989,
chamado de “Perversidade e Autoritarismo: Governo Dilma edita portarias de restrição e
desconstrução de direitos territoriais indígenas e quilombolas”, entregue à Comissão de
Direitos Humanos do Senado, por 75 organizações indígenas, em 2011. O relatório tem um
tom que mostra o quanto o Governo Federal tem sido autoritário ao desconsiderar direitos
constitucionais e humanos.
Todos estes conflitos podem ser resumidos nos casos vistos aqui das comunidades
tradicionais do rio Uruará e pelos indígenas atingidos pela madeireira Rondonbel no
Tapajós, Gleba Nova Olinda. No que diz respeito ao contexto local dos conflitos,
principalmente em relação ao território, a violência sistematicamente tem sido produzida
contra indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pela questão da posse da terra e de sua
propriedade por latifundiários, grileiros e madeireiros. Esta violência conta muitas vezes com
as formas fachadas de “legalismos” de terras, em que agentes públicos, juntamente com
interesses ligados aos crimes ilegais, conseguem mostrar, juntamente com a faceta
autoritária e persistente das oligarquias locais tradicionais, uma relação entre o público e o
privado, ao qual, em nosso caso, precisa ser pensada pelas ciências sociais e política no
que se refere a sua definição clássica do Estado moderno como agente burocrático e
racional, que detém a posse da legalidade e da violência legítima. A cultura local, seja pela
política, pela legalidade ou pela violência, se esconde no aparato legal, confundindo-se a
ele, mas exercendo o domínio social de inscrição de uma “ordem” marcada pela cultura do
silêncio pela morte e ameaça bárbara, pela eliminação das resistências, para que todo
capital social construído pelas elites não sejam questionados.
Concluímos que tal relação entre público e privado, e vice-versa, tende acirrar a
violência e a barbárie das ações contra os defensores do território dos povos tradicionais se
fizeram presentes. O caso mais recente foi constatado em uma das operações realizadas
pelo Ministério Público Federal, Procuradoria Regional de Santarém, e ação da Justiça
Federal contra funcionários do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária -, madeireiros e fazendeiros ligados a soja na região. Chamada de Operação
Faroeste, em 2009, o ministério público federal tem conseguido mostrar a relação entre
agentes do INCRA, empresários, madeireiros, grileiros e políticos locais, para a falsificação
de titulação de terras que avançam ou tomam de assalto o território indígena, quilombola e
dos ribeirinhos.
29
Se a relação público-privado é desvirtuada por conta das oligarquias locais, a
violência sistemática na Amazônia, e no Estado do Pará, sendo operacionalizado pelo poder
privado, e por vezes, com a participação do poder público, os conflitos tendem a continuar, e
a violência de pistolagem a ser uma constante, dados os números de 2011, em que mais de
9mil casos de ameaças e mortes por pistolagem no Brasil revelam que este tipo de barbárie
e violência é sistemática.
Bibliografia
BARP, Wilson & CARLOS, Ed. Pistolagem no contexto do Judiciário: o caso do Pará. Revista Brasileira de Segurança Pública | São Paulo Ano 5 Edição 9 Ago/Set 2011.
BARREIRA, César (org.). Violência e controle social. Campinas, SP: Pontes Editores, 2010. BARATA, Ronaldo. Inventário da violência: crime e impunidade no campo paraense (1980-1989). Belém: CEJUP, 1995.
BALETTI, Brenda, SENA, Antônio, REGO, Gilson. Em Defesa da Amazônia Moradores enfrentam madeireiros e o Governo em Batalhas Locais, segunda-feira, 11 de janeiro de 2010. Disponível em http:// candidoneto.blogspot.com.br/2010/01/em-defesa-da-amazonia-moradores.html. Acesso em 18/06/2012.
BRITO, Daniel Chaves. A modernização pela superfície: Estado e Desenvolvimento na Amazônia. Belém: UFPA/NAEA, 2001.
BRAND, Antônio. A violência contra os povos indígenas em 2011: um novo governo e velhos problemas, IN: CANUTO, Antônio (et al.). Conflitos no Campo Brasil 2011. Goiânia: CPT Nacional Brasil, 2012. 182p. : fotos., tabelas.
BRUM, Eliane. A Amazônia, segundo um morto e um fugitivo. 30/Janeiro/2012. http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/01/amazonia-segundo-um-morto-e-um-fugitivo.html, Acesso em 28/02/2012.
CAMERINI, João Carlos B. Discursos jurídicos acerca dos direitos territoriais quilombolas: desmascarando os colonialismos da épistémè jurídica. Manaus: Universidade Estadual do Amazonas, 2010. (Dissertação de Mestrado). CASTELLS, M. O Poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
CASTRO, Edna. Sociedade, Território e Conflitos: BR 163 em questão. Belém: NAEA, 2008.
EMMI, Marília Ferreira. Minorias étnicas na Amazônia: Índios e negros no processo de construção de identidade de resistência, IN: CAMPOS, Índio (org.). MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA – ADA, UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ, FUNDAÇÃO DE AMPARO E DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA. Belém: ADA, 2007.
30
GIRARDI, Eduardo Paulon. Atlas da Questão Agrária Brasileira. http://www2.fct.unesp.br/nera/atlas/violencia.htm. Acesso em 12/06/2012.
LEFEBVRE, Henri. A cidade do Capital. 2 ª ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2001. LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília: Universidade Nacional de Brasília, 2002. MARTINS, José de Souza. O Poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. 2ª ed. – São Paulo: Editora Hucitec, 1999. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO PARÁ. Procuradores dos Direitos do Cidadão lançam nota pública sobre conflitos fundiários na região amazônica. Disponível em: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2011/noticias/procuradores-dos-direitos-do-cidadao-lancam-nota-publica-sobre-conflitos-fundiarios-na-regiao-amazonica/?searchterm=conflitos. Acesso em 12/06/2012.
__________________________________. MPF acusa grupo de ajudar grileiros no Pará: É a segunda quadrilha denunciada no caso Faroeste. Processo nº 2003.39.02.001236-5 - Justiça Federal em Santarém, ano 2009. Disponível em http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2009/noticias/mpf-acusa-grupo-de-ajudar-grileiros-no-para/?searchterm=operação faroeste. Acesso em 13/06/2012
_________________________________. Onde contratar um pistoleiro é mais fácil que apanhar um táxi. http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/noticias1/onde-contratar-um-pistoleiro-e-mais-facil-que-apanhar-um-taxi/?searchterm=conflitos. Acesso em 15/06/2012.
________________________________. Procuradores da República na Amazônia pedem vetos de Lula na MP 458: Documento assinado por 37 procuradores que atuam na região alerta para graves consequências jurídicas e sociais da MP. http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2009/noticias/procuradores-da-republica-na-amazonia-pedem-vetos-de-lula-na-mp-458/?searchterm=conflitos. Acesso em 17/06/2012. _________________________________. MPF processa Incra por não combater a venda de lotes de reforma agrária no sudeste do Pará: Mais de 15 mil lotes já foram vendidos ilegalmente na região, o que provoca reconcentração fundiária e graves conflitos agrários. http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2012/mpf-processa-incra-por-nao-combater-a-venda-de-lotes-de-reforma-agraria-no-sudeste-do-para-1/?searchterm=conflitos. Acesso em 19/06/2012. _________________________________. Comunidade que bloqueou balsas de madeireiros faz denúncias ao MPF: Moradores dos rios Maró e Arapiuns foram recebidos na Procuradoria da República em Santarém. Eles mantém balsas carregadas de madeira bloqueadas há 10 dias. http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2009/noticias/comunidade-que-bloqueou-balsas-de-madeireiros-faz-denuncias-ao-mpf/?searchterm=conflitos. Acesso em 24/06/2012.
_________________________________. ICMBio não vai autorizar exploração madeireira em áreas reivindicadas por indígenas. www.prpa.mpf.gov.br/news/2012/icmbio-nao-vai-autorizar-exploracao-madeireira-em-areas-reivindicadas-por-indigenas. Acesso em 12/06/2012.
31
_________________________________. Fazenda palco de conflito no Pará teve parte da área decretada ilegal em 2010. Ação de reintegração de posse proposta pelo Incra, em parceria com o MPF: Processo nº 0007248-37.2010.4.01.3901 2ª Vara Federal em Marabá/PA. Relatório da tramitação processual. http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2012/fazenda-palco-de-conflito-no-para-teve-parte-da-area-decretada-ilegal-em-2010. Acesso em 21/06/2012.
________________________________. Correição do CNJ nos cartórios do Pará pode sanar irregularidades fundiárias: Corregedoria Nacional de Justiça visitará no próximo dia 16 o cartório de registro de imóveis de Altamira. http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2009/noticias/correicao-do-cnj-nos-cartorios-do-para-pode-sanar-irregularidades-fundiarias/?searchterm=conflitos. Acesso em 18/06/2012. _________________________________. Justiça determina que empresa saia da maior área grilada do país: MPF consegue evitar concretização da grilagem de uma área igual aos territórios de Holanda e Bélgica juntos. http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/noticias1/justica-determina-que-empresa-saia-da-maior-area-grilada-do-pais/?searchterm=grilagem. Acesso em 22/06/2012. __________________________________. MPF pede à Justiça que mantenha punição a ex-prefeito no Pará por grilagem: Gerson Salviano Campos recorreu de condenação a pagamento de R$ 500 mil e anulação do título de uma área de 40 mil hectares. http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2010/noticias/mpf-pede-a-justica-que-mantenha-punicao-a-ex-prefeito-no-para-por-grilagem/?searchterm=grilagem. Acesso em 26/06/2012.
PARRACHO, Lunaé. No Pará, assentados sofrem pressões de grileiros e madeireiros. http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5518316-EI6578,00-No+Para+assentados+sofrem+pressoes+de+grileiros+e+madeireiros.html Quarta, 14 de dezembro de 2011. Acesso em 20/06/2012. PASSOS, Izabel C. Friche (org.). Poder, normalização e violência: inclusões foucaultiana para a atualidade. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008.
PINTO, Lúcio Flávio. Grileiros mais juízes: ameaça às terras do Pará. Santarém, Pará: Editora O Estado do Tapajós, 2012.
PINTO, Lúcio Flávio. As revoltas no front amazônico. http://candidoneto.blogspot.com.br/2012/05/as-revoltas-no-front-amazonico.html. Acessado em 20/06/2012.
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 5ª ed. Livraria do Advogado, 2003. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter & SANTOS, Luís Henrique Ribeiro. A violência que se esconde atrás de êxito do modelo agro-exportador: Geografia dos conflitos e da violência no campo brasileiro em 2011, IN: Conflitos no Campo Brasil 2011. Goiânia: CPT Nacional Brasil, 2012. 182p. PRIOSTES, F. A justiciabilidade dos direitos humanos e territorialidade quilombola: experiências e reflexões sobre a assessoria jurídica popular na litigância, IN: JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Experiências de assessoria jurídica popular. Curitiba, PR: Terra de Direitos, 2010. SAQUET, Aurélio Marcos. Abordagens e concepções de território. 2ª ed. – São Paulo: Editora Expressão Popular, 2010.
32
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). 3ª ed. – Belém: Editora Paka-Tatu, 2010.
SIMENEL, Fabienne. Comunitários do Arapiuns manifestam contra a exploração madeireira na Gleba Nova Olinda: Manifestantes prenderam balsas de madeira exigindo maior fiscalização e regularização da terra. 24 de outubro de 2009. Disponível em http://redemocoronga.org.br/2009/10/24/comunitarios-do-arapiuns-manifestam-contra-a-exploracao-madeireira-na-gleba-nova-olinda/. Acessado em 20/06/2012.
SETÚBAL, Mariana & LEHER, Roberto (org.). Pensamento Crítico e movimentos sociais: diálogos para uma nova práxis. São Paulo: Cortez, 2005.
SORJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. SORJ, Bernardo. A nova sociedade brasileira. 3ª ed. – Jorge Zahar Ed., 2006, p.13. SOUZA, Marcelo Lopes. A prisão e a ágora: reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. TORRES, Maurício. A Pedra Muiraquitã: O Caso do Rio Uruará no Enfrentamento dos Povos da Flor esta às Madeireiras na Amazônia. Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007. WAGNER, Alfredo. Terras de quilombo, terras indígenas, babaçuais “Livres Terras”, “Castanhais do Povo”, faxinais e Fundo de Pasto tradicionalmente ocupadas. 2008, p.133. Rede Data Luta UNESP - Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária - NERA UFU - Laboratório de Geografia Agrária - LAGEA UNIOESTE - Laboratório de Geografia das Lutas no Campo e na Cidade - GEOLUTAS UFRGS - Núcleo de Estudos Agrário - NEAG UFPB - Grupo de Estudos sobre Espaço, Trabalho e Campesinato Universidade Federal de Sergipe - UFS Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT UFES - Observatório dos Conflitos no Campo no Espírito Santo
Marabá, Pará: Capangas baleiam 20 militantes do MST (fazenda Cedro).
top related