3 as espacialidades da cidadela empresarial de santo
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3 AS ESPACIALIDADES DA CIDADELA EMPRESARIAL DE SANTO ANTÔNIO
EM SUAS CONTRADIÇÕES
O objetivo deste capítulo é reencontrar o presente. Trata-se, portanto, da fase final de
nosso método – o histórico-genético –, na qual os eventos históricos identificados no capítulo
anterior são visualizados em expressões materiais que interagem dialeticamente com a
sociedade, alterando o presente e construindo o novo.
Assim, a coexistência de inúmeros tempos e espaços na cidadela empresarial de Santo
Antônio será analisada a partir das relações dialéticas entre os agentes sociais produtores do
espaço urbano.
Como já mencionado, a produção do espaço urbano, pela lógica capitalista,
perspectiva que adotamos nessa pesquisa, leva-nos a uma nova compreensão da espacialidade
como o terceiro elemento em relação aos pares tradicionais – o tempo e a sociedade. Nesse
contexto, emerge uma possibilidade de se entender as transformações da metrópole como
mercadoria que se especializa através das interações espaciais, históricas e sociais. Portanto, é
o pressuposto que adotamos ao longo de nossa investigação: a busca pelo thirdspace de
Edward Soja.
O presente capítulo está estruturado em três partes. Na primeira, abordaremos as
transformações ocorridas nos centros urbanos, destacando o processo de revalorização do
centro e a produção de novas centralidades; na segunda parte, falaremos sobre a expansão do
capital financeiro na reprodução do espaço urbano. Nesse sentido, a predominância do setor
financeiro na construção de novas espacialidades, especialmente na cidadela empresarial de
Santo Antônio, deve ser entendida pela aliança de interesses entre o mercado imobiliário e o
poder público, que através de “ajustes espaciais”, procuram viabilizar a renovação urbana. Na
parte final da tese, buscamos as complexas relações dialéticas entre os agentes sociais
hegemônicos e não hegemônicos, a fim de entendermos as espacialidades em suas
contradições na cidadela empresarial. A contradição entre o processo de produção do espaço e
sua apropriação privada estará na base do entendimento da reprodução espacial, que,
especificamente na cidadela, revela a relação contraditória entre espaço, tempo e sociedade.
Assim sendo, iniciaremos o nosso debate sobre as transformações nos centros urbanos.
Convém destacar que a reprodução da cidadela empresarial de Santo Antônio não ocorre
alheia às transformações sociais, econômicas e políticas ocorridas em diversas escalas
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espaciais, que envolvem desde a dimensão global até a sua periferia imediata. Assim,
analisaremos a reestruturação dos centros das grandes metrópoles e a construção de novas
centralidades, processos associados aos novos interesses de diversos agentes sociais
produtores do espaço em diferentes escalas.
3.1 Do centro à policentralidade
O centro é uma das áreas da metrópole mais desejada e disputada pelos agentes que
produzem o espaço urbano. Assim, individualiza-se pela presença dos poderosos, do
prestígio, da segurança, da comodidade e da localização (SALGUEIRO, 2013).
O nosso objetivo nesta seção é debater as transformações ocorridas nos centros
urbanos das grandes metrópoles à luz das observações empíricas em curso na metrópole
carioca.
Antes de tudo, seria interessante discutirmos as noções de centro e centralidade. Como
afirma Salgueiro (2013), a evolução semântica que se registrou na ciência geográfica de
centro, ou lugar central, para centralidade parece corresponder à necessidade de buscar em
outras dimensões, além da geometria das distâncias ou das acessibilidades, a compreensão das
transformações urbanas.
No centro, concentram-se as principais atividades comerciais e serviços de uma
cidade, a gestão pública e a privada, os terminais de transportes urbanos, além de se destacar
na paisagem da cidade pela sua intensa verticalização (CORRÊA, 2003).
Lefebvre (1999) vê a centralidade como um processo crucial na produção do espaço
urbano, sendo aquilo que define e dá substância à especificidade do urbano, conferindo seu
sentido social e espacial singular.
Assim, o centro de uma metrópole representa a materialização dos processos de
centralização, de convergência de pessoas, de ideias, de bens e serviços. Dessa forma, a
centralidade será considerada em nossa tese como um processo que dialeticamente produz e
reproduz o espaço urbano, que cria e recria novas espacialidades, enfim, que reproduz a
cidade.
Corrêa (2003) frisa que a formação da área central foi resultado do processo de
centralização promovido pelo capitalismo ao longo do século XIX. O autor esclarece: “o seu
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aparecimento se deve assim às demandas espaciais do capitalismo em fase concorrencial,
onde a localização central constituía-se em fator crucial na competição capitalista” (p. 40).
Assim, as últimas décadas do século XIX marcam as profundas transformações dos
antigos centros das cidades. O desenvolvimento do capitalismo, envolvendo mudanças
econômicas, demográficas, políticas e culturais gerou mudanças na espacialidade do centro,
ponto focal da vida da cidade (ibidem).
Nesse processo, surgem as áreas centrais, constituídas como frisa Corrêa (2003), por
dois setores distintos, porém profundamente integrados entre si, a saber: o núcleo central de
negócios – CBD (Central Business District) e a zona periférica do centro (ZPC). O autor
distingue as áreas centrais como pontos focais onde a gestão do território é realizada sob
controle de agentes que produzem o espaço como o Estado, um grupo social ou uma empresa.
A urbanização decorrente da produção capitalista ampliou o espaço urbano e as
transformações na organização empresarial e gerou uma concentração do capital. Salgueiro
(2013) frisa que com o crescimento e com a diversificação das funções, as áreas centrais
verificaram uma tendência para o aumento da densidade de ocupação, com consequente
subida dos preços dos terrenos e dos imóveis, além do incremento da variedade das
atividades.
Contudo, mudanças ocorridas na segunda metade do século XX, transformaram as
áreas centrais. O processo de descentralização faz com que o centro perca sua importância e
significado simbólico (CORRÊA, 2003). Segundo Soja (1993), a crise urbana que se
instaurou em várias partes do mundo na década de 1960 afetou diretamente os centros das
grandes metrópoles.
Sobre essa questão, Lefebvre (1999) afirma:
O centro urbano é preenchido até a saturação; ele apodrece ou explode. Às vezes,
invertendo seu sentido, ele organiza em torno de si o vazio, a raridade. Com mais
frequência, ele supõe e propõe a concentração de tudo o que existe no mundo (...)
Em que ponto? Qualquer ponto pode tornar-se o foco, a convergência, o lugar
privilegiado (p. 44).
O processo de descentralização gerou novas espacialidades: shopping centers, distritos
especializados, distritos administrativos, áreas comerciais e de serviços, identificados como
desdobramentos do núcleo central de negócios.
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Em relação a esse movimento de atração e saturação dos centros, Soja (1993) ressalta
que as forças de desagregação estarão sempre presentes, contudo as forças de agregação
nunca desaparecerão.
É como compararmos o centro de uma metrópole à estrutura de uma estrela, que deve
a sua existência a um equilíbrio entre a atração gravitacional, que teima em concentrar sua
massa, e a enorme pressão gerada em seu interior, que tende a fazer com que ela se expanda
(GLEISER, 2006).
Um ponto interessante nessa comparação são que os estudos recentes realizados pela
NASA mostrando que quando uma estrela explode o normal seria supormos que a expansão
acontecesse uniformemente. No entanto, não é isso que ocorre, pois a explosão gera uma
distorção, onde as regiões interiores da estrela literalmente se chocam antes da expansão.
Mas afinal, qual o propósito dessa comparação? Em nosso entendimento, quando o
centro de uma metrópole “explode”, a expansão de novas centralidades não ocorre de forma
uniforme, mas sim de forma seletiva, gerando um espaço fragmentado e policêntrico.
Dessa maneira, enquanto as cidades pré-industrial e industrial tinham um “centro”, a
metrópole atual é caracterizada pela fragmentação e pela existência de uma rede de
centralidades ou pela justaposição de fragmentos distintos com diversas espacialidades.
Sendo assim, essa comparação nos remete às discussões sobre as transformações nos
centros urbanos, especialmente sobre a cidadela empresarial de Santo Antônio, verificada
empiricamente em nossa pesquisa.
Lefebvre (1990) afirma que vivemos um momento de retomada do centro. Segundo
ele, é um movimento mundial, ocorrendo não somente em Paris, mas também em Nova
Iorque, Chicago e Tóquio. E, no Rio de Janeiro, esse processo não está ausente.
Todavia, o autor enfatiza que é um processo de difícil compreensão, pois ainda não
está claro o que realmente está acontecendo, além da dificuldade de dimensionar os fatores
econômicos, políticos e sociais envolvidos.
Em relação a essas transformações, Corrêa (s/d) elaborou alguns questionamentos
sobre o destino dos centros urbanos das metrópoles, a saber: “qual o futuro da Área Central?
Tornar-se o foco principal para os pobres em uma cidade sócio-espacialmente fragmentada?
Serão as políticas de gentrificação e de revitalização capazes de frear o processo de declínio
da Área Central? Ou esta será, de fato, um produto histórico, cuja função em grande parte já
se esgotou?”.
Claro que seriam necessárias inúmeras pesquisas e teses para chegarmos a essas
respostas. E, obviamente, não temos a pretensão de respondê-las em sua totalidade. No
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entanto, podemos utilizá-las como elementos norteadores da nossa compreensão sobre as
espacialidades contidas em nosso recorte espacial. Afinal, se a história urbanística dessa
cidade perpassa pela cidadela de Santo Antônio, talvez possamos assistir nesse caleidoscópio
urbano, uma possibilidade de debater o futuro das áreas centrais. Assim, gostaríamos de
acrescentar mais um questionamento: a expansão da cidadela empresarial de Santo Antônio
tendo como base os interesses dos agentes hegemônicos como o Estado, o capital financeiro
ou a Igreja, possui alguma resistência? Procuraremos responder na terceira parte deste
capítulo. Por enquanto, vamos nos ater à compreensão sobre a reestruturação do centro.
Segundo Pacheco (2009), o Rio de Janeiro é um nó na rede de cidades inserido aos
processos de mundialização. Nesse sentido, a cidadela empresarial de Santo Antônio deve ser
entendida através de suas conexões com estruturas financeiro-mercantis.
Para Corrêa (s/d), na fase atual do capitalismo, as grandes empresas, corporações
multifuncionais, segmentadas, multilocalizadas e com grande poder econômico e político,
desempenham papel crucial na organização do espaço. Nesse sentido, o BNDES e a Petrobras
exercem um amplo controle sobre o espaço em diversas escalas.
Assim, na próxima seção, continuaremos analisando as transformações das áreas
centrais através do papel exercido pela cidadela empresarial de Santo Antônio como um
centro de produção e organização do espaço.
3.1.1 A cidadela empresarial de Santo Antônio: um centro de gestão do e no espaço
Segundo Salgueiro (2013) e Corrêa (2003 e 2011), os estudos sobre o centro são
envolvidos por duas escalas interligadas, a saber: uma mais ampla, onde as cidades são pontos
inseridos numa rede urbana; outra, na escala intraurbana, na qual a cidade é vista como área.
Corrêa (2013) destaca a importância de estudarmos a produção do espaço urbano
através da interligação entre essas duas dimensões, pois os fenômenos e os processos sociais,
assim como suas representações cartográficas distintas, são interdependentes. Veja o que o
autor diz sobre essa questão: “a operação escalar não introduz essa visão deformada, geradora
de dicotomia, mas, ao contrário, ressalta as ricas possibilidades de se analisar o mundo real, o
urbano no caso, em dois níveis conceituais complementares” (p 136).
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Na escala dos sistemas urbanos, as cidades são centrais porque concentram grande
diversidade de atividades e por isso atraem uma população em busca de trabalho
(SALGUEIRO, 2013); também são centrais devido aos serviços que prestam e que obrigam a
deslocamento de pessoas ou à distribuição de bens pelos espaços circundantes. Essa discussão
foca a crescente integração dos vários sistemas urbanos, pela força da economia globalizada e
pela emergência de cidades globais.
Em relação a nossa pesquisa, a interpretação terá como base a escala intraurbana, ou
seja, o papel exercido por essas importantes instituições na organização do espaço da cidadela
e no processo de expansão de uma nova centralidade na ZPC. Todavia, queremos deixar claro
que não ignoraremos a escala da rede urbana, pois, como sabemos, instituições do porte da
Petrobras e do BNDES possuem o poder de organizar não somente o seu espaço, mas os
impactos de suas ações e como repercutem em inúmeras escalas espaciais.
Sendo assim, o objetivo desta seção é visualizar as transformações ocorridas na escala
do centro da metrópole carioca, especificamente na cidadela empresarial de Santo Antônio e
de sua periferia imediata a partir da ação dessas instituições no processo de gestão do espaço
urbano.
Assim, a presença na metrópole carioca das sedes de empresas de enorme poder
econômico e político como a Petrobras e o BNDES permite considerarmos a cidadela de
Santo Antônio como um importante centro de gestão do e no espaço.
Corrêa (s/d) frisa que a cidade do Rio de Janeiro tem declinado em importância
absoluta após a transferência da capital para Brasília, gerando impactos diretos sobre a
metrópole, principalmente em sua área central66
. Entretanto, por ser o local das sedes de
grandes empresas como a Petrobras e o BNDES, a cidadela de Santo Antônio emprega
milhares de empregados dotados de enorme poder econômico e político. Além disso, as
decisões tomadas ali possuem uma expressão material, afetando, direta ou indiretamente, uma
ampla porção do território brasileiro, como também em escala mundial.
Para ilustrar o poder de produzir novas espacialidades, destacamos duas obras da
Petrobras que estão gerando, mesmo com todos os problemas econômicos e políticos da
empresa, um impacto espacial extraordinário – a construção das refinarias Abreu e Lima no
litoral sul de Pernambuco e do Complexo Petroquímico do estado do Rio de Janeiro
(COMPERJ), no município de Itaboraí no estado do Rio de Janeiro. Em relação ao BNDES,
66 Esse declínio, diz o autor, está relacionado às atividades bancárias e financeiras, muitas das quais se
transferiram para São Paulo, como é o caso da Bolsa de Valores.
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ampliamos a escala, destacando o financiamento para a construção do Porto de Mariel em
Cuba. Poderíamos avançar citando muitas outras obras financiadas por essas empresas, mas
não é o nosso objetivo.
Nesse sentido, a cidadela empresarial de Santo Antônio possui uma nítida
espacialidade impregnada pelos interesses dessas grandes empresas, por meio da produção de
um espaço articulado pelas relações entre diversos agentes.
Corrêa (s/d) adverte:
mas o centro de gestão do território não é apenas a expressão gloriosa das grandes
empresas vitoriosas, dos prédios modernos e serviços sofisticados. O centro de
acumulação capitalista é também um centro de acumulação de pobreza, senão de
miséria, de dramáticos contrastes e conflitos.
Em suma, a produção de um centro de gestão do território, como é o caso da cidadela
de Santo Antônio, remete-nos a ideia da espacialidade não apenas como um reflexo social,
mas também como uma condição para a reprodução capitalista.
A partir de suas sedes sociais, as grandes empresas criam e controlam seus espaços.
Isso é notório na cidadela de Santo Antônio. Petrobras e BNDES usam seus espaços como
parte integrante dos recursos da empresa, ainda que compartilhado com outros agentes
sociais.
É o que Roberto Lobato Corrêa denomina “capital territorial”, não necessariamente no
sentido de uma real apropriação fundiária, mas sim de uma apropriação funcional, associada
ao uso dos meios necessários à produção e à reprodução das condições de produção e à
acumulação capitalista.
Entretanto, a pesquisa irá provar que esse “capital territorial”, no caso da expansão da
cidadela de Santo Antônio, também possui uma apropriação fundiária.
Nesse contexto, a espacialidade se transforma numa condição, objeto de ações visando
garantir, ou mesmo ampliar, aqueles atributos que são julgados pela grande empresa como
fundamentais para os fins de controle.
No processo de expansão da Petrobras e do BNDES, a prática da seletividade se torna
inerente ao processo de ampliação de seus espaços. Assim, os lugares ocupados por essas
empresas se transformaram, submetidos agora por outros parâmetros. É o que está ocorrendo
atualmente com o novo bairro da Lapa (mapa 5) no trecho da cidadela empresarial,
especificamente na quadra das Avenidas Henrique Valadares, Ruas do Senado, dos Inválidos
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e Dídimo67
. Enfim, são transformações advindas do desdobramento da cidadela a partir da
construção do Centro Empresarial Senado.
Mapa 5 – O novo bairro da Lapa
Fonte: Mapa produzido pelo Instituto Pereira Passos – IPP, adaptado pelo autor, 2016.
67 O novo bairro da Lapa possui os seguintes limites: Rua Riachuelo, Rua André Cavalcanti, Rua do Rezende,
Rua Ubaldino do Amaral, Rua do Senado, Rua dos Inválidos, Rua Visconde do Rio Branco, Rua do Lavradio,
Rua dos Arcos, Rua Evaristo da Veiga, Rua das Marrecas, Rua do Passeio, Avenida Luís de Vasconcelos, Rua
Mestre Valentim, Rua Teixeira de Freitas, Avenida Augusto Severo, Rua da Lapa, Rua da Glória, Rua Conde de
Lages, Rua Joaquim Silva. Fonte: PL 104/2013 – disponível no site da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
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O território da Petrobras é, assim, o resultado de uma complexa prática de seletividade
espacial, a qual contribui para configurar uma nova espacialidade na medida em que interfere
em outras atividades. Assim, a Petrobras vê ampliado o seu papel de gestora, não apenas de
seu território, mas de toda uma organização espacial.
Corrêa (s/d) identifica que, nesse processo, a grande empresa pode localizar uma de
suas unidades em um lugar antes que condições favoráveis tenham sido satisfeitas. Segundo o
autor, trata-se da prática da antecipação espacial, na qual a grande empresa estabelece uma
reserva de território, garantia para o futuro próximo do controle, ainda que parcial, de uma
dada organização espacial. Nesse sentido, a antecipação significa a possibilidade de preparar
as condições de reprodução de suas atividades e só é possível no âmbito da grande empresa
multilocalizada, que pode arcar com taxas diferenciadas de remuneração, inclusive negativas,
entre suas diversas unidades.
Chamamos a atenção para essa prática espacial, pois uma das nossas questões é que no
processo de expansão da cidadela de Santo Antônio houve uma articulação entre a Petrobras,
o capital imobiliário/financeiro e a municipalidade visando garantir as condições da
reprodução das atividades da estatal.
Nesse contexto, o papel exercido pelo capital financeiro não pode ser esquecido na
produção das espacialidades da reprodução da cidadela. É o que faremos a seguir.
3.1.2 Os “caminhos” da cidadela
Procuramos, nesta seção, os “caminhos” para o entendimento da reestruturação dos
centros urbanos. Para nós, a palavra “caminho” possui dois sentidos: como um referencial
teórico que nos ajude a estudar os centros; e como a direção da expansão espacial do CBD.
Dessa maneira, o estudo da reprodução da cidadela empresarial de Santo Antônio
permitirá, em nosso entendimento, a construção de um quadro interpretativo que sinalize os
caminhos para os estudos urbanos.
Santos (1959), ao estabelecer processos metodológicos que procurem estudar os
centros urbanos, atesta que não deve ser a preocupação do geógrafo delimitar rigorosamente o
perímetro de estudo. Seria, segundo ele, uma tarefa praticamente impossível em virtude das
variantes regionais, que dificultam a formação de um esquema rígido. Então, se não há um
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único modelo de centro urbano, o que se deve considerar como centro da cidade? O autor
responde:
a parte de uma aglomeração urbana que apresenta a maior animação e conhece a
mais forte atividade, sob todas as suas formas. Isso lhe atribui individualidade, em
relação aos demais elementos do organismo urbano. Mas o que dá aos centros de
cidade uma característica comum é a natureza das atividades que aí se processam,
responsáveis que são pelos aspectos de paisagem e de estrutura que asseguram mais
fortemente aquela individualidade (p. 18).
Sobre a hierarquia dos centros, Santos frisa que independentemente do grau de
centralidade, o centro se caracteriza pela concentração de recursos e funções que conferem o
poder de organização. Essas atividades, diz o autor, possuem um lugar próprio no espaço
urbano: “é seu centro68
” (p. 19).
Salgueiro (2013) analisa o centro a partir de três dimensões: a geométrica, a funcional
e a simbólica. A autora explica que esses níveis podem ser separados por conveniência da
análise do pesquisador, no entanto, são profundamente inter-relacionados e presentes em
todos os centros urbanos.
Do ponto de vista geométrico, o centro é um ponto, um lugar central, um lugar
geométrico das menores distâncias (ibidem). O efeito da distância teve grande importância na
organização do espaço em áreas concêntricas em torno do ponto central. Segundo Salgueiro,
essa interpretação foi reiterada pela teoria dos lugares centrais da corrente neopositivista da
geografia. Nessa interpretação, a distância é um atributo funcional responsável pela dimensão
e pela posição hierárquica dos centros.
Do ponto de vista funcional, os centros são uma concentração de funções
diversificadas que atraem muita gente e, portanto, suportam importantes trocas de informação.
Salgueiro frisa que na geografia urbana, o centro rapidamente deixou de ser visto
apenas como uma área central pela localização e pela acessibilidade para passar a ser
contemplado pela aglomeração de atividades terciárias, principalmente as que exigem
deslocamento de pessoas e propiciam o contato pessoal.
Assim, a centralidade funcional está associada à organização e ao controle da
produção, portanto com a produção do espaço para a realização do capital, mas também com a
apropriação e o uso para reprodução da vida. As necessidades da organização da produção e
68 No caso do Rio de Janeiro, esse setor da cidade recebe um termo de caráter popular: “cidade”. Como nos
lembra o IBGE, para os cariocas, ir à cidade significa, grosso modo, dirigir-se ao trecho compreendido entre a
Praça XV e a Praça Tiradentes; entre a Praça Mauá e a Cinelândia.
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da acumulação do capital explicam porque os centros acolhem os níveis altos da
administração pública e da empresarial, os bancos, outras empresas da área financeira e as
sedes das grandes empresas.
Salgueiro (2013) lembra que as funções que geram centralidade não são
necessariamente as mesmas nos lugares transformados para servir à produção e à circulação
do capital (centro de negócios) ou para atrair visitantes para o consumo (centro de comércio,
serviços, cultura e lazer). Tradicionalmente, essas funções coexistem no mesmo espaço,
contudo, nos grandes centros, nota-se uma tendência para a separação interna das funções.
Em relação à dimensão simbólica, a autora ressalta que as cidades são objetos
materiais com uma determinada estrutura física que provoca representações abstratas as quais,
por sua vez, afetam as decisões e a vida das pessoas. Assim, as espacialidades urbanas
possuem uma estrutura física objetiva e uma estrutura subjetiva ou cognitiva.
A centralidade simbólica está essencialmente ligada às ideias de prestígio e de poder
que explicam a marcação física desse espaço pelo poder político, ao longo dos tempos, e a
atração que transforma os centros em lugares de concentração.
Também estará associada à dimensão histórico-cultural, que se materializa em formas
arquitetônicas do passado. A espacialidade simbólica não poderá de forma alguma ser
ignorada ao estudarmos o centro do Rio de Janeiro, pois, como veremos a seguir, essa
dimensão interage dialeticamente com as dimensões sociais, econômicas e políticas,
interferindo na reprodução da cidadela. Segundo Rabha (2006), essa dimensão explica porque
o centro da cidade, mesmo com o processo de descentralização verificado a partir dos anos
1960, manteve a sua importância. Em muitas situações, os centros entram em crise; noutras,
por razões diversas associadas, por exemplo, a uma ação urbanística, foi capaz de demonstrar
notável resiliência e nunca deixou de ser centro principal (ibidem). É o caso do centro do Rio
de Janeiro.
Segundo Sposito e Fernandes (2013), o centro é produzido por dinâmicas diversas
associadas não apenas a diferentes ritmos de transformação, mas também à desigual forma
como se revestiu a ação dos agentes de transformação e do modo como se articulam na
promoção dos seus interesses.
Portanto, a centralidade exercida pela cidadela empresarial de Santo Antônio define o
seu papel no espaço urbano em diversas escalas, isto é, um lugar de convergência de pessoas,
ideias, bens e serviços, encontros e referências. São essas características de concentração dos
elementos mais diversos do urbano que melhor definem o centro de uma cidade
(FERNANDES e SPOSITO, 2013).
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Rabha (2006) identifica na segunda metade do século XX, fatos que acarretaram a
diminuição do interesse sobre o centro do Rio. Dentre eles, podem ser apontados: a mudança
da capital federal, o decorrente esvaziamento das atividades administrativas até então
localizadas na área central, a intensificação da descentralização residencial, a consolidação de
áreas de expansão na direção sul da orla oceânica, o crescimento das favelas e a segurança
pública.
A autora identifica uma mudança no curso da reprodução da área central, sustentada
pela alteração na orientação das anteriores práticas de renovação urbana, baseadas na
eliminação de elementos históricos, para uma política de preservação da memória urbana.
Além disso, incorporou-se também o incentivo ao uso residencial, antes varrido por
reformas, decretos e regulamentos, editados pelo setor público municipal. Assim, morar no
centro tornou-se uma política de governo, viabilizada por intermédio de programas de
fomento e subsídio para atrair dinamismo, gente para o espaço anterior e obstinadamente
modelado como território exclusivo de trabalho (ibidem).
Segundo a urbanista, os anos 1980 marcam o início de uma revisão sobre tal
tratamento até então conduzido para a área central. Foram criados instrumentos que
garantiram a permanência de trechos periféricos ao centro de negócios, refletindo a
emergência de novos conceitos voltados à preservação da memória edificada. A expansão do
turismo apropriou-se do patrimônio urbano mais antigo.
Contudo, na base desse processo, estaria a expansão dos setores de serviços
beneficiados por oportunidades e descobertas, que vão desde o aproveitamento dos espaços
intersticiais vazios ou obsoletos nas áreas centrais, até os antigos portos, ferrovias, instalações
industriais etc.
Assim, chegamos a um ponto crucial em nossa pesquisa. Em função dos fatores
mencionados, associados ao aumento dos investimentos da Petrobras e do BNDES, surge um
processo de expansão física da cidadela, identificada na própria Avenida Chile com a
construção do Ventura Towers e, em torno de sua periferia imediata, especificamente na
quadra entre a Avenida Henrique Valadares, Ruas do Senado, dos Inválidos e Dídimo, onde
foram construídas as novas torres da Petrobras.
De todos os fatores identificados e analisados por Rabha (2006), gostaríamos de
acrescentar um que, em nossa compreensão, é fundamental para a compreensão da
reestruturação urbana do centro do Rio de Janeiro. Trata-se da financeirização do mercado
imobiliário, que possui em sua expressão material as torres de escritórios de alto padrão. É o
que veremos a seguir.
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3.2 O capital financeiro e a reprodução do espaço urbano
Definir e analisar o capital financeiro não é uma tarefa fácil. Da mesma forma,
compreender a sua atuação na reprodução do espaço urbano também não é uma tarefa fácil,
diante das relações contraditórias com o Estado e com os demais agentes sociais como
veremos mais adiante.
Há inúmeras discussões e concepções, contudo muitas são observadas de maneira
superficial, não alcançando a sua complexidade nem a sua natureza contraditória (HARVEY,
2013). Não é nosso objeto alcançar uma definição de capital financeiro na linguagem dos
economistas, mas sim discutir suas contradições que são reproduzidas na espacialidade
urbana, pois, como já observado, esse agente está se transformando num poderoso produtor
do espaço.
Os fundos imobiliários estão reestruturando o espaço urbano, fragmentando e
segregando; centralizando e descentralizando, enfim, criando, com isso, novas espacialidades,
particularmente nas metrópoles. Esses fundos são formados por grupos de investidores que
aplicam seus recursos em negócios com base imobiliária, seja no desenvolvimento de
empreendimentos imobiliários, seja em imóveis prontos69
.
Harvey (2013) trabalha com duas concepções de capital financeiro, a saber: “a
primeira é aquela de um processo de circulação do capital que rende juros; a segunda, a de um
bloco de poder institucionalizado dentro da burguesia” (p. 411). O autor se esforça para reunir
essas duas concepções para alcançar uma definição mais adequada.
O capital financeiro está envolvido em um mistério que se origina de sua enorme
complexidade (ibidem). O sistema abrange inúmeras instituições, a saber: o Banco Central, as
instituições internacionais como o Banco Mundial e o FMI; todo um complexo de mercados
financeiros interligados 24 horas por dia (bolsas de valores, mercados futuros, mercados
hipotecários); agentes (corretores de valores, banqueiros, atacadistas); instituições (fundos de
pensão, seguros, bancos mercantis, associações de crédito, poupança etc.); além de poderosos
bancos privados.
O autor enfatiza que as decisões tomadas pelos centros de decisão afetam a vida de
milhões de pessoas, o que sugere que essas corporações financeiras estão no controle da vida
69 Disponível em <http://www.fundoimobiliario.com.br/vantagens.htm>. Acesso em 26 de novembro de 2015.
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dos indivíduos, tanto capitalistas, quanto trabalhadores. Esse poder, que parece ser assustador,
também afeta a questão da propriedade do solo urbano, interferindo na produção da cidade.
Entretanto, Harvey procura desmistificar alguns pontos desse poder controlador
totalmente hegemônico e mostrar sua vulnerabilidade interna e suas contradições.
Acreditamos ser importante essa discussão, pois, como vimos, questionamos se há limites
para a expansão do capital financeiro na produção do espaço urbano. Acreditamos que
contradições e vulnerabilidade serão desenhadas no processo de reprodução da cidadela
empresarial de Santo Antônio.
Para o autor, a concepção de capital financeiro, como um fluxo de valor que rende
juros, aproxima-se da concepção marxista que vê o capital como um processo e não como
uma coisa. Essa concepção contribui para dissolver e solucionar impasses, ajudando também
a entender a instabilidade das configurações que surgem quando o capital financeiro é
considerado um bloco de poder no interior do sistema capitalista.
O poder do sistema financeiro está concentrado em algumas mãos, como afirma
Harvey. Alguns indivíduos ou famílias extremamente ricas podem acumular a massa do poder
monetário da sociedade, ou algumas instituições poderosas podem controlar esse poder
disperso de inúmeros indivíduos desprovidos de poder. Dessa concepção, surge, segundo o
autor, uma definição prática de capital financeiro que foi observada por Lênin, isto é, um
valor controlado como unidade de posse e inserido no centro estratégico da circulação do
capital que rende juros.
Assim, escrever sobre o capital financeiro nos remete à lógica da circulação, ou seja, o
valor reproduzindo-se na própria esfera da circulação, “sem arcar com o peso e os riscos da
materialidade representada pela esfera da produção” (VOLOCHKO, 2008).
Segundo Harvey (2013), na base da expansão do capital financeiro está uma transação
elementar entre agentes econômicos que controlam os excedentes dos valores e que querem
fazer uso desses excedentes para algum propósito. Sobre isso, o autor escreveu:
As unidades econômicas podem ser indivíduos (de qualquer classe), corporações,
governos, sindicatos, instituições como a Igreja e a coroa, organizações profissionais
e comerciais, fundos de pensão, instituições beneficentes, bancos etc., enquanto a
série de possíveis propósitos é imensa (para circular como capital industrial ou
mercantil; para adquirir uma casa, erguer um monumento, lançar uma campanha política, comprar uma propriedade no campo para uma amante favorita, construir
uma igreja etc.) (p. 361).
Os objetivos parecem ser infinitos, contudo, a importância da dimensão espacial nesse
processo é clara. Assim, os fundos de investimentos são concentrados em shopping centers e
165
prédios comerciais (ibidem). No entanto, há uma mudança de perfil devido à diversificação
das opções de investimento: parques temáticos, hospitais, complexos industriais, flats e
imóveis residenciais.
Dessa forma, o capital financeiro expande-se em torno da necessidade de encontrar
formas eficientes para coletar, concentrar e converter os excedentes na circulação como
capital que rende juros (ibidem).
O capital financeiro também não discrimina os seus usos, fluindo para receitas
apropriadas que permitam sua reprodução. Logo, não há limites para o investimento
especulativo na apropriação de receitas. Harvey (2013) frisa que o capital financeiro pode se
integrar, e talvez até disciplinar a dívida do governo, do consumidor e do produtor, além de
especular através de ações na bolsa de valores e dos fundos imobiliários extraindo a renda do
solo.
Da mesma forma, o capital não discrimina particularmente de onde vem o dinheiro ou
aonde vai (o que nos lembra do problema da lavagem de dinheiro), de modo que o poder do
dinheiro que se reúne pela via do sistema de crédito tem uma base social extraordinariamente
ampla (HARVEY, 2013).
O autor também destaca que entre a origem do capital e o destino do investimento
podem surgir conflitos oriundos dos interesses dos diversos segmentos sociais. No entanto,
afirma que o sistema de crédito oferece o mecanismo de controle e de reconciliação mediante
a organização e o gerenciamento apropriados.
Não podemos esquecer que a natureza essencial do sistema capitalista é a contradição.
É dela que o capital consegue a sustentação para sua acumulação. Nesse sentido, a
contradição de ter num mesmo bloco, investidores e interesses tão diversos, a nosso ver, não
fere, mas, sobretudo permite a lógica e o gerenciamento do sistema. Portanto, a partir dessas
contradições, o capital financeiro consegue se apropriar de rendas diversas; dessas
contradições que o capital financeiro consegue subordinar outros agentes sociais e se aliar a
agentes que a priori seriam inconcebíveis, como a igreja, uma universidade pública, pequenos
investidores, ou até mesmo trabalhadores através da utilização de fundos de previdência.
Volochko (2008) levanta alguns questionamentos: quais seriam as relações que esse
processo de financeirização do capital guarda com a produção do espaço? Existiriam
estratégias espaciais envolvidas nesse processo de reprodução financeira, que envolve uma
abstração tão elevada a ponto de parecer um processo a-espacial?
Para o autor, as espacialidades inseridas na lógica dos mercados imobiliário e
financeiro, com apoio na racionalidade do Estado, colocam-se submissas à forma geral da
166
mercadoria como lógica abstrata da troca que retalha o espaço através da propriedade privada
para realizar sua compra e sua venda.
Sanfelici (2015) mostra que as recentes transformações nas cidades brasileiras têm
raízes numa nova articulação contraditória entre agentes, processos e estratégias que
priorizam diferentes escalas espaciais de ação. A questão das escalas é, segundo ele, a base da
intensificação do processo de acumulação na produção das cidades, tendo como resultado o
aumento da tendência das metrópoles brasileiras de funcionarem como espaços voltados,
prioritariamente, para o negócio.
Como se sabe, o Brasil passou por um boom imobiliário a partir dos anos 2000 que
alterou as estratégias e práticas dos agentes e suas escalas de atuação. Promoveu também
mudanças no mercado imobiliário, consequentemente, impactando na forma de produzir o
espaço urbano (ibidem).
“Essa nova trama de relações econômicas permitirá, então, caracterizar o momento
atual como estruturalmente diverso do que havia predominado até então na produção das
cidades” (SANFELICI, 2015, p. 126). Acreditamos que essa nova trama de relações e escalas
caracterizam a produção/reprodução do morro de Santo Antônio como veremos mais adiante.
Segundo Sanfelici (2015), a principal transformação ocorrida no mercado imobiliário
brasileiro a partir da década de 1990 foi a sua crescente internacionalização. Até então, havia
um mercado estritamente local, geralmente sob o comando de empresas controladas por
famílias influentes em escala regional, que transferiam capitais acumulados em outros setores
para investimentos em incorporação e construção.
Dessa forma, há também uma mudança na escala de atuação dos agentes no mercado
imobiliário, pois empresas de atuação local passam a expandir seus mercados. Além disso, e
para nós, o mais importante, o Estado brasileiro através de seu Banco Central regulamenta os
fundos de investimento imobiliário, grupos que capturam recursos investidos no mercado
financeiro para investir em projetos imobiliários geradores de fluxos de renda (ibidem).
A partir de então, novos agentes financeiros entram em cena interessados na
apropriação de renda a partir da produção do espaço urbano, a saber: os fundos de pensão, os
fundos de investimentos, seguradoras e os fundos ligados às grandes corporações
(BOTELHO, 2007). Na metrópole paulista, diversos projetos imobiliários ligados ao mercado
de edifícios corporativos de alto padrão são financiados por fundos de investimentos
imobiliários (ibidem).
No entanto, Sanfelici (2015) reforça que não podemos enxergar a financeirização
como um processo universal e onipresente, ou seja, capaz de explicar toda a dinâmica do
167
mercado imobiliário. Portanto, ao enfatizarmos o papel desse agente na reprodução da
cidadela de Santo Antônio, não podemos deixar de abordar, principalmente, as novas relações
existentes entre capital, Igreja e Estado.
Assim, é necessária uma formulação reflexiva, relacional e historicizada sobre os
fenômenos e os processos associados à produção do morro e da cidadela empresarial de Santo
Antônio.
Segundo Carlos (2015), a produção do espaço se coloca como uma noção fundamental
para compreendermos o mundo. Permite uma reflexão crítica sobre os múltiplos e
contraditórios processos e relações sociais que estão em transformação e que se reproduzem
espacialmente, relevando com isso, os próprios fundamentos da reprodução da sociedade.
A análise da produção do espaço permite, portanto, desmistificar aquilo que aparece
como novo absoluto. A autora escreve: “os novos espaços, as novas práticas, novas
representações e justapondo o velho, modificando parcialmente, no movimento simultâneo da
constituição do novo” (CARLOS et al., 2015, p. 7).
Essa afirmação nos ajuda a entender a produção histórica da produção do morro de
Santo Antônio e a justaposição entre tempos e espaços.
3.2.1 A reprodução da cidadela como estratégia do capital financeiro
Qual definição de capital financeiro utilizaremos para a análise da produção do espaço
urbano, especificamente no estudo da cidadela de Santo Antônio? Inicialmente, visualizamos
o capital financeiro como um bloco de poder que exerce enorme influência sobre outros
agentes sociais. Entretanto, ao aprofundarmos a leitura sobre o tema, percebemos que essa
visão não é a mais adequada, pois esconde as inúmeras contradições internas que são geradas
no interior do bloco.
Assim, o capital financeiro precisa ser visto como um grupo multidimensional, pois,
como lembra Harvey (2013), o capital financeiro não é discriminador em relação à sua
origem. O autor cita: “as poupanças dos trabalhadores se fundem com aquelas dos capitalistas
endinheirados de tal modo que com frequência se tornam indistinguíveis. O poder monetário
reunido via o sistema de crédito tem uma base social extraordinariamente ampla” (p. 378).
O objetivo desta seção é compreender a reprodução da cidadela empresarial de Santo
Antônio pelo movimento da globalização financeira. Assim, pretendemos analisar o que
168
Carlos (2015) denomina de novo sentido hegemônico assumido pela cidade e pelo urbano,
isto é, de “reproduzir não mais as condições necessárias para a acumulação do capital no
espaço urbano, mas reproduzir diretamente o capital por meio da produção do espaço urbano”
(p. 8).
Nesse sentido, o espaço urbano carioca, especialmente, a cidadela empresarial de
Santo Antônio, vem sendo absorvido cada vez mais pela produção dos agentes hegemônicos
econômicos e políticos, que reúnem o Estado em suas instâncias (municipal, estadual e
federal) e o capital em suas frações (produtivo, financeiro e comercial), com predomínio do
financeiro. O espaço urbano se transforma num grande negócio, condição para a reprodução
da sociedade capitalista.
Gottdiener (2010) revela um fragmento de O Capital no qual Marx se refere à
Fórmula da Trindade, a saber: capital, trabalho e terra. Estes são os três componentes, que,
segundo Marx, representam a base da produção de mais-valia do sistema capitalista. Em
resumo, a renda sobre a terra se transforma numa fonte inesgotável de acumulação de mais
valor.
A essência do pensamento marxista é que, no capitalismo, a propriedade da terra
constitui um meio de adquirir riqueza (ibidem). Sobre essa condição, Lefebvre (1999)
enfatiza que o capitalismo encontrou uma nova energia ao conquistar o espaço através da
especulação imobiliária, nas grandes obras, na compra e na venda do espaço.
É importante frisar que a estratégia do capital vai além de uma simples venda de um
pedaço do espaço. Assim, o capitalismo faz o espaço entrar na produção da mais-valia,
reorganizando da produção subordinada aos centros de informação e decisão (ibidem).
Como vimos no capítulo 1, a produção do espaço se constituiu num elemento
fundamental para a expansão capitalista, assumindo diferentes conteúdos ao longo do
processo histórico. Segundo Lefebvre (1999), a produção do espaço não é uma coisa nova, no
entanto, ele afirma que o novo é a produção global e total do espaço social.
Nesse sentido, a produção expandiu-se espacialmente, penetrando em diversas escalas,
desde o local até o global, incorporando as atividades humanas e redefinindo-se sob a lógica
do processo de valorização do capital (CARLOS, 2011b). Dessa forma, a espacialidade
assume a condição de mercadoria: “a produção do espaço se insere, assim, na lógica da
produção capitalista que transforma todo o produto dessa produção em mercadoria” (Ibidem,
p. 64).
A consequência desse processo é que o valor de uso, ou seja, aquilo que é necessário à
realização da vida é redefinido pelo valor de troca. Para Carlos, trata-se de um momento
169
histórico em que a expansão capitalista penetra profundamente no vivido, reorientando-a sob
sua lógica.
Portanto, há algo de novo na produção do espaço urbano. Segundo Carlos (2015), o
boom imobiliário iniciado no século XXI gerou profundas mudanças no processo de expansão
do mercado imobiliário brasileiro a partir de novo arranjo e entre agentes que operam em
diferentes escalas espaciais. A autora frisa que essa nova trama de relações permite
caracterizar o momento atual como estruturalmente diverso do que havia predominado até
então na produção do espaço.
Ela destaca duas grandes transformações do mercado que vão interferir de forma
decisiva na produção das metrópoles brasileiras, a saber: a internacionalização e a
financeirização do setor imobiliário. Assim, o caráter local ou regional do mercado
imobiliário brasileiro foi redefinido a partir da década de 1990 por mudanças expressivas,
observadas como a expansão espacial do capital imobiliário.
Vale destacar que, além disso, no mesmo período são regulamentados os fundos de
investimentos imobiliários que capturam recursos de investidores do mercado financeiro para
investimentos em projetos de mobiliário gerados no fluxo de renda (ibidem).
Carlos (2001) mostra o processo de financeirização do mercado imobiliário urbano,
que gera uma grande contradição, “isto porque o espaço, enquanto valor, entra no circuito da
troca geral da sociedade (produção/repartição/distribuição) fazendo parte da reprodução da
riqueza, constituindo-se em raridade” (p.2). Neste sentido, a propriedade privada do solo
urbano, como condição da reprodução da cidade no capitalismo, transforma-se num limite à
expansão econômica capitalista. Em outras palavras, o espaço produzido socialmente, torna-se
mercadoria no processo histórico, criando limites para sua própria reprodução.
É importante frisar que as contradições presentes no espaço socialmente produzido são
inerentes ao modo de produção capitalista. Nesse sentido, Lefebvre (2013) afirma que essas
contradições procedem, em parte, de antigas contradições, oriundas do processo histórico de
produção do espaço.
Segundo Carlos (2001), o espaço urbano como raridade ocorre pela confluência de
alguns fatores, a saber: a existência da propriedade privada do solo, a centralidade das novas
atividades econômicas e o grau de ocupação da área no conjunto do espaço da metrópole.
O processo de produção do espaço da metrópole concentrada no centro e, em seguida,
expandido e disperso a partir dele numa área mais ampla, permitiu a realização da propriedade
privada do solo. Esse movimento criou uma contradição, pois sua saturação impede a
expansão do setor de serviços no centro.
170
A autora frisa que já no final da década de 1970 o esgotamento dos terrenos passíveis
de serem incorporados para escritórios em São Paulo obrigou o mercado imobiliário a buscar
novas alternativas locacionais para permitir a reprodução de sua atividade.
No Rio de Janeiro, verificamos esse processo, especificamente na cidadela de Santo
Antônio através da transferência do capital para ativos financeiros, tendo o espaço urbano
como condição para a reprodução, em áreas selecionadas da Avenida Chile e de sua periferia
imediata.
O espaço físico marcado pela presença de uma área remanescente do morro e da forma
de ocupação da “esplanada” com a presença de áreas livres e a justaposição com a zona
periférica do centro permitiu que novas áreas fossem incorporadas pela lógica da articulação
entre capital financeiro e o Estado.
Assim, um ponto precisa ser enfatizado: para se apropriar do espaço, é necessário que
o capital se alie ao Estado, na medida em que poder público atua em diversas frentes:
produzindo a infraestrutura necessária capaz de atrair o interesse do capital, como no caso
específico da zona portuária; alterando as normas urbanísticas de uma área específica, como é
o caso da mudança do gabarito na Avenida República do Paraguai, o que possibilitou a
incorporação de uma parte do morro para construção do prédio anexo do BNDES; ou até
mesmo, com medidas ligadas ao setor financeiro, como o aumento das taxas de juros pelo
Banco Central, o que possibilita que várias frações do capital sejam canalizadas para o setor
financeiro, ligadas ao mercado de imóveis.
Carlos lembra também que o Estado pode "colocar em suspensão" o estatuto da
propriedade privada do solo urbano, através da desapropriação, liberando as áreas ocupadas
para novas atividades; o que significa a criação de novas estratégias entre as várias formas de
capital e do Estado.
Queremos mostrar que a reprodução da cidadela empresarial de Santo Antônio é
baseada pela lógica do capital financeiro como no jogo “Banco Imobiliário”70
. Entretanto,
nesse “jogo”, o capital financeiro apesar de desempenhar um papel central na reprodução do
70
A Revista Exame.com em 16 de novembro 2012 publicou uma reportagem cujo título era o seguinte: As
regras do Banco Imobiliário valem para a vida real? Segundo a reportagem, algumas regras foram retiradas do
manual do jogo e usadas como referência por especialistas para identificar quais delas se aplicam ou não ao
mundo real dos investimentos. A conclusão é simples: apesar da complexidade do mundo real dos negócios
imobiliários, alguns lances do jogo realmente se aproximam com a lógica do mercado imobiliário, como a
aquisição de hotéis, a diversificação dos negócios, a compra de diversas propriedades e a compra de ações de
empresas.
171
espaço, não é o único. Assim, temos uma possibilidade de entender as relações dialéticas entre
os agentes sociais envolvidos nesse processo.
Neder (1997) identifica na entrada de capitais estrangeiros o aumento da quantidade de
imóveis de alta qualidade. De fato, isso pode ser constatado na reprodução da cidadela com a
construção de torres como o Rio Metropolitan Center, a Ventura Corporate Towers e o Centro
Empresarial Senado.
O espaço como condição pode se transformar numa barreia à expansão da urbanização
aliada ao capital financeiro? Vimos que ao entrar no circuito de troca geral da sociedade, o
espaço se transforma em raridade. Nesse sentido,
(...) diante das necessidades impostas pela reprodução do capital, o espaço produzido socialmente - e tornado mercadoria, no processo histórico - é apropriado
privativamente, criando limites a sua própria reprodução. Nesse momento, o espaço,
produto da reprodução da sociedade, entra em contradição com as necessidades do
desenvolvimento do próprio capital. O que significa dizer que a "raridade" é produto
do próprio processo de produção do espaço ao mesmo tempo que sua limitação - o
que se configura como uma contradição do espaço (inerente ao seu processo de
produção) (CARLOS, 2001).
Esse fenômeno ocorre principalmente nos centros das grandes metrópoles. Entretanto,
no caso do Rio de Janeiro, as Avenidas República do Chile e República do Paraguai, o espaço
como raridade encontra uma preciosidade, isto é, áreas ainda possíveis de serem apropriadas
no interior do centro da cidade, transformando-se em condição de reprodução do capital
financeiro.
Sobre essa questão, Singer (1979) lembra que a procura por espaço na cidade é
realizada por empresas, por indivíduos ou por entidades que atendem às necessidades de
consumo coletivo. No caso das empresas, o uso é objetivado para realizar atividades
produtivas, comerciais ou financeiras. O autor afirma: “do ponto de vista das empresas, cada
ponto do espaço urbano é único, no sentido de proporcionar determinado elenco de vantagens
que influem sobre seus custos” (p. 24).
Nesse contexto, novas áreas da cidade são incorporadas. Há, portanto, uma nova
lógica na produção do espaço urbano baseada na apropriação do espaço ordenado a partir de
operações que se realizam no mercado. Desse modo, afirma Carlos (2001), “o espaço é
produzido e reproduzido enquanto mercadoria reprodutível”.
172
Acreditamos que as novas apropriações ocorridas nas Avenidas Chile e do Paraguai,
além da Rua da Carioca, envolvendo novas relações entre o capital financeiro, o Estado em
seus diversos segmentos e a Igreja, confirmam a hipótese acima.
Assim, a escassez de espaço no centro do Rio de Janeiro é minimizada através de
possibilidade da ocupação de áreas vazias ainda existentes na Avenida Presidente Vargas, na
zona portuária e no entorno do morro de Santo Antônio.
Entretanto, o processo é ainda mais complexo. Se por um lado existem
“preciosidades” a serem capturadas por essa lógica, por outro, existem outros elementos
nessas áreas que podem dificultar essa expansão. No caso do Rio de Janeiro, isso é um ponto
essencial.
É no contexto da renovação urbana que edifícios de escritórios são construídos fora da
área central numa área propícia à expansão dessa atividade em função das áreas passíveis de
serem incorporadas pelo mercado imobiliário e com zoneamento adequado (ibidem).
Assim, com o processo de generalização do valor de troca, a cidadela de Santo
Antônio é incorporada através da construção de torres de escritórios a partir das necessidades
de crescimento do mercado imobiliário e da expansão da Petrobras e do BNDES.
No caso da cidade de São Paulo, Carlos (2001) mostra que a escassez de espaços
disponíveis obrigou as empresas voltadas ao setor de serviços modernos e ao setor financeiro
a optarem por novas localizações gerando um movimento espacial, em que o processo de
reprodução espacial gerou novas centralidades.
No caso da cidadela empresarial de Santo Antônio, o espaço como raridade foi
atenuado pela condição da espacialidade local. Como já observado, a baixa massa edificada e
a presença de áreas livres se transformaram em condições para que o movimento espacial
gerado pela expansão do capital financeiro, capitaneados pelo processo de expansão da
Petrobras e do BNDES, gerasse a ocupação das áreas ainda disponíveis.
Assim, acreditamos ser importante nesse momento debatermos sobre a natureza e o
papel contraditório do capital financeiro na produção do espaço urbano, onde novas
espacialidades surgem pela lógica da cidade como negócio. É o que faremos em seguida.
173
3.2.2 A nova questão sobre a propriedade imobiliária
Denominamos a nova questão da propriedade na cidadela de Santo Antônio a fase
atual dos interesses, das transações e das disputas jurídicas que envolvem a propriedade do
solo urbano. Como na questão do final do século XIX, envolve os agentes sociais
hegemônicos, no entanto, inseridos na temporalidade e na espacialidade da produção do
espaço urbano pela lógica do capital financeiro. São eles, o Estado, a Igreja e o capital em
suas diversas frações.
Assim, o objetivo desta seção é analisar essas transações que se sustentam pela lógica
da espacialização capitalista. Em todas, há uma espacialidade contraditória ou ainda em
processo. Podemos verificá-las no quadro abaixo:
Quadro 4 – A nova questão sobre a propriedade imobiliária
Questões
Ano
Principais agentes sociais
envolvidos
Expressão Material
1
1995
Encol Engenharia, TELERJ e
União
Condomínio Rio Metropolitan
Center
2
2011
Tishman Speyer, Camargo
Corrêa, UFRJ, Petrobras e
BNDES
Ventura Corporate Towers
3
2012
Wtorre, Petrobras e
Municipalidade
Centro Empresarial Senado
4
atual
Banco Opportunity, VOT,
Municipalidade e comerciantes
locais
Rua da Carioca (lado ímpar)
5
atual
BNDES, VOT e Municipalidade
Anexo do BNDES a ser
construído na Avenida
República do Paraguai
Fonte: o autor, 2016.
174
É importante ressaltar que ao longo do processo de parcelamento do solo e de
edificação, novos agentes hegemônicos entram em cena, como fundos imobiliários e fundos
de pensão, apropriando-se de partes ou da totalidade da propriedade dos imóveis. Por ordem
cronológica, iniciaremos o estudo das questões com o Condomínio Rio Metropolitan Center,
situado na Avenida República do Chile, nº 500.
3.2.2.1 O Rio Metropolitan Center
A construção do Rio Metropolitan Center pode ser considerada uma mudança no
paradigma da produção da cidadela empresarial. Vimos no capítulo anterior que o capital
imobiliário, por questões ligadas à concepção urbanística e ao contexto econômico da época,
não se interessou de imediato pela aquisição dos terrenos, restringindo-se ao setor de
construção dos novos edifícios. Nesse sentido, o Rio Metropolitan Center, inaugurado em
1995, representa uma “virada de página”, pois abriu caminho para a chegada do capital
financeiro na construção de edifícios corporativos de alto padrão.
Foto 15 – O Rio Metropolitan Center na cidadela empresarial de Santo Antônio
Nota: O Rio Metropolitan Center, primeira torre à esquerda.
Fonte: O autor, 2016.
175
Assim, se as conjunturas política e econômica do Rio de Janeiro de 1960 e 1970 não
aqueceram o mercado imobiliário da área correspondente ao desmonte do morro de Santo
Antônio, a década de 1990 marca a retomada do centro aliada à expansão do setor financeiro
ávido por extrair rendas da produção do espaço. Enfim, era uma questão de tempo para o
capital se interessar por aquela área, e também de espaço, claro.
O edifício foi construído pela Encol S.A. Engenharia Comércio e Industrial, que
investiu cento e quarenta milhões de dólares entre compra de terreno e construção.
Segundo Capel (2005), a análise do parcelamento do solo constitui um elemento
indispensável ao estudo da morfologia urbana. Assim, o autor afirma que uma edificação se
realiza no interior de uma parcela que se adapta à forma e à dimensão da mesma, e quando o
seu tamanho não é apropriado, obriga a operações de reparcelamento por compra de novas
parcelas.
Sobre a aquisição do terreno, a Encol arrematou em leilão público uma área de 3.660
m2, desmembrada do lote que pertencia à empresa Telecomunicações do Rio de Janeiro S.A.
– TELERJ71
. Vale lembrar que era nesse terreno que a Companhia Telefônica Brasileira
(CTB) pretendia construir sua sede na década de 1970.
Como a TELERJ era uma empresa de economia mista e pertencente ao Sistema
TELEBRAS – Telecomunicações Brasileiras S.A, foi necessária a aprovação do Ministério
Público Federal para permitir o processo de alienação de bens imóveis da União.
A materialidade resultada dessa ação é um edifício de trinta andares com uma área de
62 mil metros quadrados. Atualmente, 60% do edifício pertencem à Fundação Sistel de
Seguridade Social, uma empresa ligada ao setor de previdência privada que atua em fundos de
pensão patrocinados por empresas privadas72
. Segundo essa empresa, os investimentos em
ativos imobiliários contribuem para a solidez da instituição. A rentabilidade dos investimentos
desse fundo é gerada com as locações de imóveis situados em vários estados brasileiros. No
Rio, destacamos além do Rio Metropolitan Center, o Centro Empresarial Rio, na praia de
Botafogo, onde a empresa é dona de andares, e o Centro Empresarial Internacional Rio, o
RB1, onde a Fundação é detentora de 25% do edifício73
.
Quatorze andares do Rio Metropolitan Center são alugados ao Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Além dessa instituição, o setor de petróleo também está
presente com a Petrobras e a francesa Total E&P do Brasil. Essa última fechou contrato, em
71
Diário Oficial da União, seção 1, página 120, 10 de outubro de 1989. 72 Disponível em <www.sistel.com.br/sistel/opencms/sobre_a_sistel/>. Acesso em 22 de janeiro de 2016. 73 Disponível em <www.sistel.com.br/sistel/export/sites/default/.content/downloads-pdf/revista-sistel-ed11.pdf>.
Acesso em 22 de janeiro de 2016.
176
2014, de alocação de 1.000 m2 do edifício com a outra proprietária do imóvel – a Caixa de
Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil, considerado o maior fundo de pensão da
América Latina. No prédio também está situada a Accenture, uma empresa global de
consultoria de gestão, serviços de tecnologia e outsourcing74
, o que reforça o papel global
exercido pela cidadela.
Assim, a forte presença de fundos de pensão na aquisição de ativos imobiliários na
cidadela de Santo Antônio nos remete à proliferação de investidores institucionais, como
fundos coletivos, que atualmente encontram ali um lugar para expandir suas operações. Sem
dúvida, o Rio Metropolitan reforça esse fato. Contudo, não é só ele.
3.2.2.2 O Ventura Corporate Towers
De todas as torres da cidadela, a Ventura Corporate Towers (foto 16) é, sem dúvida, a
mais imponente, não somente pela sua materialidade, mas também pelos seus números. Foi
construída pela transnacional Tishman Speyer e pela Camargo Corrêa, após um acordo feito
com Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), proprietária do terreno.
Pelo contrato firmado entre as referidas partes, a universidade teria direito a uma área
de 16 mil metros quadrados no Ventura Corporate Towers, o equivalente a 9 andares.
O Ventura Corporate Towers é um complexo corporativo composto por duas torres de
36 metros e com mais de cem mil metros quadrados de área. O projeto foi desenvolvido pela
Kohn Pedersen Fox, sediada em Nova York, e pelo escritório de arquitetura Aflalo &
Gasperini no Brasil. As torres apresentam também 14 mil quadrados para investimentos
comerciais.
Veja como a Tishman Speyer, empresa operadora e administradora de fundos do
mercado imobiliário, entende a localização de seu principal empreendimento no centro do
Rio:
As Torres Ventura estão em uma localização privilegiada, a começar pela vista da
paisagem: de um lado, a Baía da Guanabara com o Pão de Açúcar e, do outro, a
74
O termo Outsourcing está relacionado à utilização estratégica de fontes externas de mão-de-obra de uma
empresa. Basicamente, falar em outsourcing significa falar em “terceirização”, termo mais conhecido no Brasil.
É a ação tomada pelo gestor de uma empresa em obter mão-de-obra de uma fonte externa à organização.
Fonte: Disponível em <http://www.sobreadministracao.com>. Acesso em 01 de junho de 2016.
177
Ponte Rio-Niterói. Ao seu redor estão monumentos como a Catedral, o Teatro
Municipal, o Convento de Santo Antônio, a Petrobras, o BNDES, o Aeroporto
Santos Dumont, o MAM, os Arcos da Lapa e a Marina da Glória; Próximo à
Petrobras e ao BNDES; Fácil acesso ao aeroporto Santos Dumont e Próximo à
Marina da Glória75.
A torre leste foi vendida em janeiro de 2009, antes mesmo do término da construção,
para um fundo internacional árabe pelo valor de R$ 422 milhões. Cinquenta por cento da
segunda torre oeste foram vendidos pela Camargo Corrêa Desenvolvimento Imobiliário
(CCDI) a BR Propitiers pelo valor de R$247 milhões, os demais 50% permanecem com uma
afiliada da norte-americana Tishman Speyer76
.
A Petrobras e o BNDES ocupam a torre leste desse empreendimento. A torre oeste é
ocupada além do BNDES por parceiras da Petrobras, empresas globais ligadas ao setor de
petróleo, logística energética e tecnologia: GE, BG Brasil, Logum, Techint e Tenaris.
Foto 16 – O Ventura Corporate Towers
Nota: O Ventura Towers no centro da foto.
Fonte: Camargo Corrêa – Disponível em <www.camargocorrea.com.br/grupo-camargo-
correa/comunicacao/central-de-midia/fotos/incorporacao-imobiliaria.html>. Acesso em 26 de junho de
2016.
75 Disponível em <http://tishmanspeyer.com.br/comercial/ventura>. Acesso em 12 de março de 2014. 76 Disponível em <http://www.portalvgv.com.br/site/camargo-correa-desenvolvimento-imobiliario-anuncia-
venda-da-segunda-torre-do-edificio-ventura-corporate-towers/>. Acesso em 05 de maio de 2016.
178
Apesar de não ter o peso do poder de suas “primas” BNDES e Petrobras, a
Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) alugou, em 2014, seis andares da torre oeste do
Ventura pelo valor mensal de 1,6 milhão por mês por um período de 10 anos. O que mais
chama a atenção nessa transação é que a FINEP possui sede própria localizada na Praia do
Flamengo, n. 200, o que gerou inúmeros protestos em seu quadro funcional.
Recentemente, a Escola de Música da UFRJ levou sua sede (termo retirado do site da
universidade) para o Ventura Towers. Localizada no 21º andar da torre leste, funcionam
setores administrativos, biblioteca, salas de aula e Programa de Pós-Graduação. Segundo
informações obtidas por funcionários da Petrobras, o som dos instrumentos alcançam os
andares comerciais. Em nossa compreensão, é uma contradição a instituição de ensino dividir
o espaço em uma torre corporativa com diversas empresas globais. Essa contradição só pode
ser entendida quando você toca na questão da propriedade.
O BNDES alugou 23 andares e meio da Ventura Towers, pelos quais o BNDES pagará
R$ 310 milhões durante cinco anos. Segundo a assessoria do banco, esses valores estão
abaixo do valor de mercado de aluguéis na região central do Rio de Janeiro77
.
O problema da falta de espaço ocorreu também com a Petrobras. A empresa possui
cerca de 44 mil funcionários trabalhando na área administrativa no Rio, ocupando mais de
250 mil metros quadrados espalhados entre o EDISE, as Torres Senado, a Ventura Towers e a
Torre Almirante. Em relação às torres Ventura, a Petrobras aluga uma, a torre leste, e um
quarto da torre oeste, a um custo estimado de 6 milhões de reais por mês78
.
3.2.2.3 O Centro Empresarial Senado
Segundo Diniz (2009), o terreno onde atualmente estão localizadas as Torres Senado
(foto 17), pertencia até 1890 à Chácara dos Inválidos nas proximidades do antigo morro do
Senado. Era uma propriedade que servia de abrigo para pessoas sem moradia. Nesse mesmo
ano começou a construção da Vila Rui Barbosa, que ocupou todo o quarteirão com 145 casas
para famílias e 324 cômodos para solteiros em sobrados. Inaugurada em 1901, a vila só ficou
pronta definitivamente em 1912. Com ruas arborizadas em seu interior, havia uma lavanderia,
77 Op. Cit. 78 Por Geraldo Samor - Veja Mercados, 12 de fevereiro de 2016. Veja.com.
179
armazéns e uma carvoaria. Com estilo arquitetônico eclético, a vila foi construída para ser
uma vila operária, no entanto, acabou ocupada por população de classe média (ibidem).
Na década de 1970, a Vila Rui Barbosa entra em decadência. Muitos moradores
desocupam seus imóveis, paralelamente casas são invadidas e suas travessas se transformam
em estacionamento. O terreno passa a pertencer ao Banco Banespa que, posteriormente, foi
incorporado pelo Banco Santander. Em 2008, o Banco, com o objetivo de criar a sua nova
sede, onde poderia concentrar os 6 mil funcionários espalhados em quatro prédios em São
Paulo, compra da Wtorre, a Torre São Paulo, na Marginal Pinheiros, por 1,06 bilhão,
considerado o maior negócio imobiliário fechado no país até então79
. Como parte do
pagamento, o Santander cedeu à Wtorre o terreno na Rua do Senado (DINIZ, 2009).
Foto 17 – O Centro Empresarial Senado
Fonte: O autor, 2016.
A Wtorre é uma holding na área de atuação de construção de propriedades comerciais,
de desenvolvimento imobiliário, de centros logísticos, de entretenimento, de shopping centers
79 Caderno Mercado, Folha de São Paulo, 20 de agosto de 2008.
180
e de infraestrutura. Em 2010, constrói o Centro Empresarial Senado e realiza obras de
restauro de obras públicas e de edifícios históricos no entorno80
.
Em 2006, com o crescimento da empresa, a Petrobras decidiu construir um novo
prédio para acomodar o quadro pessoal. A comissão da Diretoria de Serviços sugeriu que o
prédio deveria de preferência estar próximo à sede atual.
A alternativa foi alugar as Torres já construídas pela Wtorre na Rua do Senado. O
Edifício abriga 10 mil funcionários da área administrativa da estatal; a obra foi orçada em R$
1,2 bilhão. A Petrobras é locatária até 2029. O contrato prevê aluguéis de cerca de R$ 100
milhões ao ano por esse período.
Além desse empreendimento, a Wtorre adquiriu 12 sobrados nas ruas do Senado e dos
Inválidos. Segundo a Empresa, serão reformados e alugados para fins comerciais. Além disso,
conforme informação da empresa, construções próximas estão passando por melhorias – a
Igreja de Santo Antônio dos Inválidos, o Palácio da Polícia Central e a Sociedade Brasileira
de Belas Artes e fazem parte de um acordo realizado com a prefeitura para a aprovação do
projeto de construção das torres. O acordo também prevê a construção de novo calçamento,
cuidado com paisagismo e iluminação e colocação de câmeras de vigilância.
Essa nova espacialidade é acompanhada pela especulação imobiliária. Um estudo
imobiliário sobre a região encomendado pela Wtorre Rio mostra um aumento de até 450%
nos valores entre 2007 e maio de 2012. Na aquisição dos primeiros sobrados, a Wtorre pagou
entre mil e mil e quinhentos reais pelo metro quadrado. Nos últimos, o valor já estava em dez
mil reais.
A euforia do mercado imobiliário foi acompanhada pelo discurso da renovação urbana
de inúmeros jornais. Entretanto, algo deu errado como poderemos ver mais adiante.
Na próxima seção, falaremos de mais uma tentativa de reestruturação no centro do
Rio, a venda da Rua da Carioca a um fundo financeiro.
80 Segundo o site da Wtorre, a área em torno que abriga o Centro Empresarial Senado recebeu obras de
recuperação de calçadas, recuperação e pintura de fachadas, requalificação viária, restauração e recuperação de
imóveis considerados patrimônios históricos.
181
3.2.2.4 A Rua da Carioca
Em 2012, o Opportunity Fundo de Investimento Imobiliário comprou 41 imóveis da
VOT, sendo 18 localizados na Rua da Carioca.
A análise dessa transação imobiliária confirma a nossa preocupação em inserir a igreja
como um agente hegemônico em nossa tipologia para compreendermos a reprodução do
espaço urbano carioca.
Em tese, a VOT está ligada aos franciscanos pelos princípios religiosos, no entanto,
são duas instituições distintas. Nas palavras do Frei Anacleto do Convento de São Francisco
de São Paulo: “a Congregação dos Franciscanos não tem qualquer ligação com a Venerável
Ordem Terceira de São Francisco de Penitência nem com suas atividades empresariais (...)”81
.
Isso ficou claro quando um diretor da VOT nos informou que os franciscanos e os terceiros
constituem “empresas completamente diferentes”.
À essa discussão, o Frei Anacleto acrescenta: “Algumas organizações como a Ordem
Terceira do Rio, que são entidades civis autônomas, cresceram muito e se transformaram em
instituições de grandeza, de poder, até no próprio nome: ‘venerável’. Isso tem muito pouco de
religioso e muito de poder”82
. Aliás, o poder evidenciado pelo seu patrimônio imobiliário.
Tivemos acesso à Escritura Pública de Compra e Venda, registrada no Cartório 2º
Ofício de Justiça do município de Belford Roxo. Como podemos visualizar no quadro 5, com
a exceção de uma loja localizada em Ipanema, todos os imóveis adquiridos pelo Banco
Opportunity estão localizados no centro da cidade.
Quadro 5 – Imóveis adquiridos pelo Banco Opportunity na cidade do Rio de Janeiro
ENDEREÇO
BAIRRO
1 – Rua da Carioca nº 11 Centro
2 – Rua da Carioca nº 13 Centro
3 – Rua da Carioca nº 15 Centro
4 – Rua da Carioca nº 17 Centro
5 – Rua da Carioca nº 19 Centro
6 – Rua da Carioca nº 21 Centro
7 – Rua da Carioca nº 23 Centro
8 – Rua da Carioca nº 25 Centro
9 – Rua da Carioca nº 27 Centro
81 Jornal o Globo, 30 de março de 1986. 82 Jornal o Globo, 30 de março de 1986.
182
10 – Rua da Carioca nº 29 Centro
11 – Rua da Carioca nº 31 Centro
12 – Rua da Carioca nº 33 Centro
13 – Rua da Carioca nº 35 Centro
14 – Rua da Carioca nº 37 Centro
15 – Rua da Carioca nº 39 Centro
16 – Rua da Carioca nº 43 Centro
17 – Rua da Carioca nº 47 Centro
18 – Rua da Carioca nº 53 Centro
19 – Loja A e Subsolo do Edifício Avenida Rio Branco Centro
20 – Sobreloja nº 201 do Edifício Avenida Rio Branco Centro
21 – Salão 201 do Edifício Avenida Rio Branco Centro
22 – Salão 1801 do Edifício Avenida Rio Branco Centro
23 – Loja 211 do Edifício nº 547 da Rua Visconde de Pirajá Ipanema
24 – Prédio da Rua Primeiro de Março nº 19 Centro
25 – Prédio na Travessa do Ouvidor nº 9 Centro
26 – Prédio na Rua Senhor dos Passo nº 107 Centro
27 – Prédio na Rua Sete de Setembro nº 155 Centro
28 – Prédio e terreno na Rua Miguel Couto nº 98 Centro
29 – Prédio na Rua Miguel Couto nº 100 Centro
30 – Prédio na Rua Miguel Couto nº 102 Centro
31 – Prédio na Rua Miguel Couto nº 104 Centro
32 – Prédio na Rua Miguel Couto nº 106 Centro
33 – Prédio no Largo de Santa Rita nº 10 Centro
34 – Prédio na Avenida Mém de Sá nº 102 Centro
35 – Prédio na Gonçalves Dias nº 17 Centro
36 – Prédio na Rua Uruguaiana nº 76 Centro
37 – Prédio na Rua Uruguaiana n 78 Centro
38 – Prédio na Rua Teófilo Otoni nº 24 Centro
39 – Prédio na Rua Teófilo Otoni nº 99 Centro
40 – Prédio na Rua Teófilo Otoni nº 101 Centro
41 – Prédio na Rua Teófilo Otoni nº 103 Centro
Fonte: Registro de Compra e Venda registrada no Cartório 2º Ofício de Justiça do município de
Belford Roxo. Data: 2012.
Vale frisar que o Banco reconheceu os contratos de locação da VOT e repassou aos
comerciantes os reajustes de aluguel. Segundo Roberto Cury, presidente da Sociedade dos
Amigos da Rua da Carioca (SARCA), em alguns casos, o valor quase triplicou, gerando o
fechamento de inúmeras lojas. Nas palavras do Cury: “a rua está parecendo um cemitério de
lojas”.
Os imóveis da Rua da Carioca são tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio
Cultural (INEPAC) desde 1983. Além disso, o conjunto arquitetônico também é protegido
pelo Corredor Cultural. O prefeito decretou que o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade
(IRPH) estudasse medidas para preservar os imóveis, entre elas, iniciar o processo de
desapropriação.
Em junho de 2013, a prefeitura publicou o decreto 37.273 criando o Sítio Cultural da
Rua da Carioca, abrangendo toda a rua e tombando definitivamente nove imóveis. O decreto
183
criava também nova categoria de patrimônio imaterial na cidade: a de atividade econômica
notável. Na ocasião, o presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, Washington
Fajardo, explicou que o tombamento municipal impedia modificações arquitetônicas nos
prédios sem aprovação do conselho de patrimônio. Assim, qualquer mudança de uso dos
imóveis também precisaria ser autorizada pelo instituto.
O lado ímpar da Rua da Carioca foi vendido em bloco, com exceção dos números 30 e
31 onde estão o Cinema Íris e o Shopping Matriz. Aliás, essa foi uma das reclamações dos
comerciantes que alocam esses imóveis, pois a venda em bloco praticamente impediu a
compra dos imóveis pelos inquilinos.
Finalizaremos a nova questão sobre a propriedade, abordando o projeto do edifício
anexo do BNDES.
3.2.2.5 O edifício anexo do BNDES
O projeto de construção de um edifício anexo para o BNDES está gerando uma nova
polêmica. A justificativa apresentada pelo banco para a construção de um edifício na Avenida
República do Paraguai, na parte remanescente do morro de Santo Antônio (foto 18), é o
crescimento da instituição, acompanhada por um salto de 35% no número de funcionários.
Assim, o EDSERJ ficou pequeno para abrigar o seu quadro funcional.
A solução temporária foi alugar um espaço no Ventura Corporate Towers. Entretanto,
em longo prazo, a solução seria a construção de um novo prédio.
184
Foto 18 – Área remanescente do morro de Santo Antônio
Nota: Área remanescente do morro de Santo Antônio entre o Centro Empresarial Castelo Branco (à
esquerda) e o EDSERJ (à direita).
Fonte: O autor, 2016
Em Ata de Audiência Pública realizada em 27/01/2014, o BNDES apresentou o
projeto de seu edifício anexo. Participaram importantes agentes que interferem na produção
do espaço urbano: a Prefeitura representada pelo Instituto Patrimônio Rio-Humanidade, a
Fraternidade Secular de São Francisco da Penitência e o BNDES, representado pela
Superintendência da área de Administração.
A análise em tela permite visualizar como agentes sociais poderosos se articulam
visando aos “ajustes espaciais” que permitam a reprodução do espaço urbano. Nesse sentido,
os estudos realizados pelo banco foram levados à equipe técnica da Secretaria de Urbanismo,
ao mesmo tempo em que iniciaram as conversações com a Fraternidade Franciscana, a outra
proprietária, especificamente, de 38% do terreno onde está planejada a construção do prédio
anexo.
O terreno escolhido para a construção do edifício nos remete a uma condição do
espaço já debatida: o espaço urbano como raridade. Nesse sentido, representantes do BNDES
enfatizavam que o único terreno disponível para a construção na área era o da Avenida
República do Paraguai.
Estudos realizados pelo banco mostraram que o projeto é viável economicamente, pois
os custos com a compra do terreno e com a construção seriam inferiores aos dispêndios com o
aluguel do Ventura.
185
Após o apoio favorável da Prefeitura, a Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU)
preparou o projeto que tramitou por mais de três anos na Câmara de Vereadores, o projeto foi
aprovado em março de 2014. Da mesma forma, o Conselho da Fraternidade Franciscana
também aprovou o projeto de parceria com o BNDES83
.
É importante frisar que as duas propriedades precisaram ser legalmente desmembradas
dos seus terrenos originais para formar um novo terreno. Nesse ajuste espacial, foi alterado o
gabarito da área. Essa é a base da polêmica que abordaremos na parte final da tese.
Pelo acordo entre os dois proprietários, o banco pagará 72 parcelas trimestrais pelo
terreno e, após concluída a construção, um aluguel pelo uso de 5,46% do terreno.
3.3 “Tudo se junta, e tudo se separa” na cidadela empresarial de Santo Antônio
As transformações atuais na cidadela empresarial de Santo Antônio nos revelam,
através das contradições materializadas em suas espacialidades, o entrecruzamento entre
espaço, tempo e sociedade. Portanto, acreditamos que ao buscarmos as contradições
presentes na cidadela, encontraremos com base na teoria espacial de Edward Soja, o
thirdspace.
Portanto, o nosso objetivo nesta parte final da tese é alcançarmos as múltiplas
contradições expressas materialmente com base na trialética espacialidade, temporalidade e
sociedade.
Sem nos tornarmos repetitivos, afirmamos que a cidadela empresarial de Santo
Antônio é uma janela paradigmática para estudar a produção capitalista do espaço urbano,
reafirmando e ampliando a sensibilidade crítica sobre a espacialidade.
Carlos (2011a) afirma que o processo de reprodução do espaço urbano na metrópole se
realiza através do aprofundamento das contradições pela existência da propriedade privada da
terra e pela extensão do valor de troca. Assim, nossa busca terá como aspectos norteadores a
divisão social do espaço e a emergência do capital financeiro.
83 A parceria entre o BNDES e a VOT é, na verdade, anterior ao projeto da construção do prédio anexo. O
restauro do Museu Sacro da Igreja de São Francisco da Penitência foram patrocinados pelo banco. Além disso, a
parceria se consolida quando o administrador do referido Museu é um funcionário do quadro do BNDES.
186
A autora afirma que, com a globalização econômica, o lugar é perpassado por forças
originadas em diversas escalas, o que gera um desencontro e muitos conflitos entre a
dimensão da vida cotidiana e a escala da concentração do capital.
Portanto, a espacialidade da cidadela empresarial de Santo Antônio é resultado da
multiplicidade e da combinação entre forças de agregação e desagregação. É importante
enfatizar que essas forças são geradas em diversas escalas temporais.
Quando afirmarmos que “tudo se junta e tudo se separa” na cidadela de Santo
Antônio, estamos parafraseando Soja (1993) ao afirmar que, sob diversos aspectos, Los
Angeles é o lugar onde “tudo se junta”. Sobre isso, o autor afirma:
(...) ao redor do centro da cidade de Los Angeles de prototopos, lugar
paradigmático; ou, levando a criatividade ainda mais longe, de mesocosmo, um
mundo ordenado em que o micro e o macro, o ideográfico e o nomotético, o
concreto e o abstrato podem ser vistos simultaneamente, numa combinação articulada e interativa (p. 232).
Analogias à parte, e claro, respeitando suas devidas escalas, procuramos reafirmar a
articulação dialética entre os agentes produtores do espaço urbano. É o que faremos a seguir.
3.3.1 “Os de cima” e “os de baixo”
Todavia, diferentemente de Los Angeles, acreditamos que a “inadvertida falha” do
planejamento urbano contribui, de certa forma, para que a área fosse apropriada
estrategicamente pelos grupos hegemônicos.
Dessa maneira, segundo a nossa compreensão, a área que abrange as Avenidas
República do Chile e República do Paraguai, é na verdade um enclave fortificado
caracterizado pela presença de poderosas instituições que se materializam em formas
monumentais.
O que chamamos de uma “inadvertida falha” do planejamento é, na verdade, a
interrupção ou a não conclusão dos diversos projetos concebidos para a área por questões
políticas, econômicas ou ideológicas. Destacamos dois exemplos que confirmam a nossa
hipótese.
A atual estrutura viária da “esplanada” é um desdobramento da evolução da proposta
de Affonso Eduardo Reidy, que projetou duas avenidas com níveis diferenciados. O projeto
187
do urbanista, como dissemos anteriormente, previa a construção de um centro cívico que
abrigaria prédios da prefeitura, câmara, biblioteca, museu e auditório, edifícios de escritórios;
uma zona comercial com prédios de escritórios, cinemas, teatros e restaurantes, além de uma
zona residencial com espaço para escola, clube e centro de saúde. Para Reidy, a presença de
espaços livres entre as edificações permitiriam criar áreas de convivência social.
Entretanto, as atuais Avenidas República do Chile e República do Paraguai se
resumem a trechos curtos que não contribuíram para a conexão efetiva da cidade como
idealizado pelo arquiteto (SANSÃO, 2004).
Outro exemplo foi a intervenção do IPHAN, cuja intenção era manter um testemunho
do morro de Santo Antônio para preservar uma parte do patrimônio histórico da cidade.
Contudo, o resultado foi a presença de uma pequena elevação na Avenida Chile, contribuindo
posteriormente para que as instituições se apropriassem daquela forma intencionalmente,
produzindo uma espacialidade do poder.
Como já mencionado, a demolição do morro de Santo Antônio não produziu uma área
aplainada. Sobre isso, o jornal Correio da Manhã noticiou a presença de um “calombo” no
centro da cidade84
(foto 19). As obras de rebaixamento da Avenida Chile, nivelando com a
Avenida Almirante Barroso, ocorreu no final da década de 1960 após a venda dos terrenos85
,
o que nos sugere pensar que as instituições queriam ficar localizadas na parte de cima,
separando-se dos rés-do-chão.
84 Jornal Correio da Manhã, 06 de fevereiro de 1968. 85 Jornal Correio da Manhã, 04 de fevereiro de 1968.
188
Foto 19 – Avenida Chile, um “calombo” no centro da cidade
Fonte: Jornal Correio da Manhã, s/d. – Arquivo Nacional.
Essa parte da cidadela nos remete a uma espacialidade hostil. Lefebvre (1999) e
Jacobs (2000) nos ajudarão a entender o que queremos afirmar. Segundo Jacobs (2000), a rua
e a calçada são os locais mais importantes de uma cidade. A autora frisa: “se as ruas de uma
cidade parecerem interessantes, a cidade parecerá interessante; se elas parecerem monótonas,
a cidade parecerá monótona” (p. 29). Seguindo essa interpretação, acrescentaríamos: se as
ruas parecerem hostis, a cidade parecerá hostil.
Assim, as avenidas em tela são hostis, pois não há ali os elementos que, segundo
Lefebvre (1999), são os mais importantes para a vida de uma cidade: o encontro e o convívio
de pessoas.
Portanto, as instituições se apropriaram dos espaços públicos de convivência
transferindo um caráter privado. É o que ocorre com o cercamento de áreas públicas, como
são os casos da Praça do Centro Empresarial Castelo Branco no entorno do Teatro Nelson
Rodrigues (foto 20), e do jardim projetado por Burle Marx no Largo da Carioca.
189
Foto 20 – Praça do Centro Empresarial Castelo Branco
Fonte: O autor, 2016.
A presença de um jardim em pleno Largo da Carioca pretendia “arejar” e “humanizar”
o centro, segundo a avaliação de Burle Marx (VALVERDE, 2007). A ideia seria a de oferecer
um espaço para o descanso e para o lazer no centro da cidade, rompendo a perspectiva da
exclusividade funcional.
Para que a ambiência de tranquilidade fosse preservada, uma grade passou a separar o
jardim do Largo da Carioca (ibidem) (foto 21). Vale lembrar que o jardim é controlado pelo
Condomínio do BNDES (CEDSERJ).
Nada mais contraditório do que criar ambiências excluindo parte da população que
circula no centro da cidade.
190
Foto 21 – Jardim do Largo da Carioca
Fonte: O autor, 2016.
Os encontros ocorrem nos “cantinhos” do café no interior das torres empresariais,
como podemos constatar no Ventura Towers ou nas praças corporativas, mantidas e
controladas pelas instituições (foto 22).
Foto 22 – Praça interna do Edifício Rio Metropolitan Center
Fonte: O autor, 2016.
191
Os arquitetos que projetaram o Rio Metropolitan Center, Paulo Casé e Luiz Acioli,
almejavam, em tese, amenizar esse isolamento ao construir um prédio tão imponente como os
da Petrobras, do BNDES e do BNH, mas com uma concepção diferente de não ser um prédio
isolado como os seus vizinhos86
.
Já que a Avenida Chile dificultava a reunião de pessoas, os arquitetos idealizaram
“levar” a rua como local de encontro para o interior do prédio através da construção de uma
praça e de um pavimento que abrigaria serviços públicos, restaurantes, lanchonetes, teatro e
lojas de comércio.
“O projeto vai mudar o conceito de edifício isolado, pois terá preocupação com as
pessoas que transitam pelo centro. Sua arquitetura prevê um espaço que unirá o particular e o
público, voltado não apenas para quem trabalha no prédio”, diz Paulo Casé87
.
A nosso ver, nada mais contraditório. Em nosso trabalho empírico, percebemos que
esse projeto não logrou êxito. De fato, há uma praça no segundo pavimento do edifício como
podemos constatar, no entanto, mais uma vez o isolamento se impôs. A área comercial se
restringe a uma pequena lanchonete e a um jornaleiro.
A distância entre os dois níveis da Avenida República do Chile e os prédios podem ser
medidas em termos de nível ou de classe social. Muitas vezes despercebidas em nível do
cotidiano (foto 23).
Foto 23 – Avenida República Chile
Fonte: O autor, 2016.
86 Jornal do Brasil, 30 de outubro de 1990. 87 Op.Cit.
192
Dificilmente você verá um “rés-do-chão” no nível superior da Avenida República do
Chile. É importante frisar que eles não estão proibidos de transitar por ali, entretanto,
verificamos inúmeras vezes, em nossos campos, seguranças das instituições (fotos 24 e 25)
colocando “as pessoas estranhas” em seu devido lugar.
Sobre essa vigilância, Bauman (1998) diz:
O que faz certas pessoas estranhas e, por isso, irritantes, enervantes, desconcertantes
e, sob outros aspectos, ‘um problema’, é – vamos repetir – sua tendência a
obscurecer e eclipsar as linhas de fronteira que devem claramente ser vistas. Em
diferentes épocas e em diferentes situações sociais, são diferentes as fronteiras que devem ser vistas mais claramente do que outras. Em nossos tempos pós-modernos,
por motivos acima esmiuçados, as fronteiras que tendem a ser ao mesmo tempo mais
fortemente desejadas e mais agudamente despercebidas são as de uma justa e segura
posição na sociedade, de um espaço inquestionavelmente da pessoa, onde possa
planejar sua vida com o mínimo de interferência, desempenhar seu papel num jogo
em que as regras não mudem da noite para o dia e sem aviso, agir razoavelmente e
esperar pelo melhor (BAUMAN, 1998, p. 38).
O Estado moderno legisla para manter a sua existência, definindo com clareza as
divisões, classificações, distribuições e fronteiras. Uma estratégia será bani-los dos limites do
mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro, em nosso caso,
do lado de cima (ibidem).
Foto 24 – Segurança escondido na parte superior da Avenida Chile.
Fonte: O autor, 2016.
193
Segundo Vasconcelos (2013), as desigualdades sociais podem ser refletidas no espaço
ou podem ser “escondidas”. Sobre as noções de diferenciação e de desigualdades
socioespaciais, Marcuse (2004) ressalta o fenômeno da fortificação nos centros das
metrópoles norte-americanas, sobretudo, em áreas de escritórios e das grandes corporações.
Segundo o autor, o processo de segregação urbana pode ser entendido em níveis cultural,
funcional ou por status hierárquico. Nesse último são formadas verdadeiras fortificações
refletindo relações de poder na metrópole. Essa forma de segregação pode ser representada
pelas formações de enclaves como condomínios fechados ou pela desigualdade na
distribuição dos serviços públicos oferecidos pelo Estado.
Foto 25 - Segurança entre as Avenidas Chile e
Paraguai
Fonte: O autor, 2016.
194
Santos (1992) afirma: “nos tempos de hoje, a cidade grande é o espaço onde os fracos
podem subsistir” (p. 258). Os moradores de rua que usam o gabarito inferior da Avenida
Chile confirma essa afirmação (foto 26).
Foto 26 – Os sem-teto nos “subterrâneos” do
morro de Santo Antônio
Fonte: O autor, 2016.
O autor afirma que a modernização contemporânea produz duas situações, cada qual
responsável pela instalação de divisões típicas dentro das cidades. Nesse contexto, por um
lado, há uma economia explicitamente globalizada, produzida de cima, e por outro, há um
setor produzido de baixo, o setor popular.
Segundo Santos (1992), todos os lugares se mundializam, contudo, há lugares globais
simples e lugares globais complexos. A cidadela de Santo Antônio é, a nosso ver, um lugar
complexo. É complexo porque representa as lógicas, as forças hegemônicas de agentes como
o Estado, o capital e a Igreja. Entretanto, mesmo nesses lugares, há agentes menos poderosos,
mas que se apropriam daquele espaço para a sobrevivência. Com finalidades diversas, essas
duas forças coexistem no mesmo espaço.
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