amartya sen – a ideia de justiça [resenha]

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Amartya Sen – A ideia de Justiça São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Alexandre Araújo Costa * Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho ** No livro A ideia de justiça, Amartya Sen reflete sobre os desafios decor- rentes do fato de existirem “razões de justiça plurais e concorrentes, todas com pretensão de imparcialidade, ainda que diferentes – e rivais – umas das outras” (p. 43). Uma das peculiaridades da obra, publicada originalmente em 2009, deriva do seu lugar de fala, pois como o Nobel de Economia de 1998 admite, “a economia é supostamente minha profissão, não importando o que eu faça do meu caso de amor com a filosofia” (p. 303). E, como indicam as próprias reflexões de Sen sobre o conhecimento, a nossa posição tem uma capacidade tanto de iluminar como de gerar ilusões. De fato, o livro dialoga com a filosofia, mas concentra-se basicamente nos pensadores cuja obra exerce impacto no pensamento econômico, como Adam Smith, Karl Marx, Stuart Mill. Mesmo que o seu principal interlocutor seja John Ralws, a quem a obra é dedicada, Amartya Sen realiza na Parte I (As exigências da justiça) uma crítica da teoria neocontratualista deste filósofo político, a partir de um enfoque comparativo inspirado nos autores citados. Além disso, grande parcela da argumentação, inclusive toda a Parte II (Formas de argumentação racional), volta-se a criticar o modo como a teoria econômica se apropria de conceitos filosóficos. Já na Parte III (Os materiais da justiça), Sen realiza uma adaptação ao De- senvolvimento como liberdade campo da teoria moral do argumento econômi- co desenvolvido em seu livro, no qual defendeu que “o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas * Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Brasília, DF, Brasil). E-mail: alexandre. [email protected] ** Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (Recife, PE, Brasil).

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A ideia de justiça, por Amartya Sen.

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  • Amartya Sen A ideia de Justia

    So Paulo: Companhia das Letras, 2011.

    Alexandre Arajo Costa*

    Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho**

    No livro A ideia de justia, Amartya Sen reflete sobre os desafios decor-rentes do fato de existirem razes de justia plurais e concorrentes, todas com pretenso de imparcialidade, ainda que diferentes e rivais umas das outras (p. 43). Uma das peculiaridades da obra, publicada originalmente em 2009, deriva do seu lugar de fala, pois como o Nobel de Economia de 1998 admite, a economia supostamente minha profisso, no importando o que eu faa do meu caso de amor com a filosofia (p. 303). E, como indicam as prprias reflexes de Sen sobre o conhecimento, a nossa posio tem uma capacidade tanto de iluminar como de gerar iluses.

    De fato, o livro dialoga com a filosofia, mas concentra-se basicamente nos pensadores cuja obra exerce impacto no pensamento econmico, como Adam Smith, Karl Marx, Stuart Mill. Mesmo que o seu principal interlocutor seja John Ralws, a quem a obra dedicada, Amartya Sen realiza na Parte I (As exigncias da justia) uma crtica da teoria neocontratualista deste filsofo poltico, a partir de um enfoque comparativo inspirado nos autores citados. Alm disso, grande parcela da argumentao, inclusive toda a Parte II (Formas de argumentao racional), volta-se a criticar o modo como a teoria econmica se apropria de conceitos filosficos.

    J na Parte III (Os materiais da justia), Sen realiza uma adaptao ao De-senvolvimento como liberdade campo da teoria moral do argumento econmi-co desenvolvido em seu livro, no qual defendeu que o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expanso das liberdades reais que as pessoas

    * Professor do Instituto de Cincia Poltica da Universidade de Braslia (Braslia, DF, Brasil). E-mail: [email protected]

    ** Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (Recife, PE, Brasil).

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    desfrutam (Sen, 2000, p. 17). Na medida em que Sen defende que a justia de um ato deve ser medida em termos de sua capacidade de promover as liberdades, o resultado uma identificao entre Justia e Desenvolvimento.

    Por fim, na Parte IV, estabelecida uma relao entre o uso pblico da razo, que Sen considera apto a justificar a validade objetiva de juzos morais, e a noo de democracia, entendida como um governo baseado na discus-so pblica. Porm, como Amartya Sen sustenta a tese iluminista de que a justia deve ter um carter universal, ele se contrape reduo da nossa responsabilidade moral aos membros de nossas comunidades polticas, em um argumento que culmina na defesa de que os direitos humanos so elemen-tos capazes de determinar valores de justia dotados de validade universal.

    O eixo terico do livro a oposio traada por Amartya Sen entre teo-rias morais transcendentais e comparativas, que so as duas vertentes ticas que ele identifica no iluminismo moderno. Nas sociedades que se tornam complexas, a coexistncia de uma multiplicidade de interesses sociais gera um discurso moral polifnico, integrado por categorias e valores contrapos-tos que se apresentam como legtimos. Diante das tenses geradas por essa pluralidade, os pensadores de inspirao iluminista buscam definir critrios objetivos de justia a partir da dependncia da argumentao racional e o apelo s exigncias do debate pblico (p. 19), por meio de teorias que Sen divide em duas correntes.

    A primeira, que ele denomina institucionalismo transcendental, tem dominado o discurso tico contemporneo e envolve a busca de uma socie-dade perfeitamente justa (p. 36). Tais abordagens so focadas em arranjos (arrangement-focused), no sentido de que buscam definir os arranjos sociais formadores de uma comunidade perfeita e medem a justia da sociedade atual em termos de sua aproximao com o arqutipo sociedade desenhado por suas teorias. Seus principais representantes so os contratualistas, que vo de Hobbes a Rawls, passando por Rousseau e Kant, pensadores para quem impossvel fazer julgamentos morais objetivos sem definir um nico conjunto de princpios de justia (p. 235).

    A segunda vertente do iluminismo desenvolve o que Sen chama de comparao focada em realizaes (realization-focused comparison), que reconhece a impossibilidade de construir instituies polticas perfeitas e se concentra no estabelecimento de critrios capazes de orientar as escolhas humanas no sentido de que elas sejam mais justas que as alternativas viveis.

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    Esta a vertente a que Amartya Sen se filia, inspirando-se em autores como Smith, Condorcet, Marx e Mill, pensadores que reconhecem a inexistncia de uma fundamentao racional capaz de definir um critrio perfeito de justia, levando-nos a elaborar parmetros que permitam escolher entre os mltiplos valores e discursos ticos existentes em uma comunidade. Para todos eles, parece valer a posio de Marx de que a filosofia no deve limitar--se a interpretar a realidade, mas precisa transform-la. Nessa medida, os debates acerca do fundamento ltimo da validade interessam pouco a Sen, que se mostra mais preocupado em delinear uma teoria capaz a orientar decises polticas capazes de ampliar a justia social, especialmente no que toca minimizao das injustias intolerveis.

    A oposio entre perspectivas transcendentais e comparativas a espinha dorsal terica do livro, que a todo momento se contrape s noes trans-cendentalistas, mas sem nunca desviar-se de sua vinculao iluminista ao que Sen chama de caminho da razo (path of reason), sob inspirao das ideias de Akbar, imperador muulmano que governou a ndia na dcada de 1590, ou seja, aproximadamente na mesma poca em que Hobbes desen-volveu sua obra poltica (p. 81).

    Naquela poca, tanto a sociedade indiana quanto as sociedades europeias eram marcadas por tenses decorrentes da multiplicidade religiosa. Na Euro-pa, a pluralidade instituda pela reforma era percebida como uma ciso que devia ser reparada, havendo uma constante luta entre protestantes e catlicos no sentido de restabelecer a unidade religiosa perdida. Nesse embate por hegemonia, a divergncia era equiparada ao erro e, em vrios casos, heresia. Na ndia, a pluralidade religiosa era ainda maior (envolvendo especialmente hidusmo, budismo, jainismo e islamismo) e o imperador Akbar instaurou um regime que procurava equilibrar essa pluralidade por meio de um governo que sustentava a liberdade religiosa e o tratamento equnime das diversas crenas. Nesse sentido, Akbar disse a um amigo seu que a busca da razo e a rejeio do tradicionalismo so to brilhantemente evidentes que esto acima da necessidade de argumentar. (p. 69).

    Esse apelo a uma racionalidade que seja capaz de transcender as mlti-plas percepes religiosas e guiar o pensamento por uma senda mais segura fez com que Akbar tivesse uma postura compatvel com os pensadores iluministas, por considerar que apenas uma vontade determinada pela ra-zo poderia enfrentar o desafio de elaborar uma tica capaz de suplantar a

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    moralidade tradicional. Nesse sentido, Sen se aproxima dos enfoques neoi-luministas de Rawls e de Habermas, que acentuam o papel de uma discusso pblica orientada por critrios racionais, embora ele discorde da posio transcendentalista desses autores. Essa proximidade faz com que o livro se concentre em mostrar os pontos de contato e de distanciamento entre a perspectiva comparativa defendida por Sen, em oposio aos racionalismos transcendentais de vis neokantista, que ele critica. Alm disso, ele precisa diferenciar-se de outras teorias que utilizam um conceito forte de razo, como a teoria da escolha racional, que reduz a racionalidade promoo do interesse individual, noo esta que Sen considera uma crena extrema-mente alienante (p. 63).

    Embora Sen no utilize a oposio tpica/sistemtica, essa oposio entre teorias comparativas e transcendentais parece compatvel com a distino entre perspectivas que buscam elaborar um sistema de avaliao unificado e completo e enfoques que se contentam com oferecer uma rede de topoi capa-zes de guiar os juzos concretos. Assim, torna-se possvel o estabelecimento de critrios que envolvem a prevalncia comparativa de certos elementos sobre outros, sem que a combinao de todos os critrios forme uma hierar-quia rgida, predeterminada e impessoal. Nesse sentido, a principal tarefa acertarmos nos juzos comparativos que podem ser formulados atravs da argumentao pessoal e pblica, em vez de nos sentirmos compelidos a opinar sobre todas as comparaes que poderiam ser consideradas. (p. 278).

    Enquanto os transcendentalistas tm uma vontade de sistema, que os levam a desenhar teorias que deveriam resolver adequadamente todos os problemas morais, Amartya Sen adota uma postura menos ambiciosa, ligada apenas ao estabelecimento de uma tpica: um conjunto de orientaes que organize decises plausveis dentro de um campo determinado, mas que no tm pretenses de completude. Sen parece concordar com a afirmao de Nietzsche de que a vontade de sistema uma falta de retido (Nietzsche, 2006, p. 13), pois ela exige das teorias ticas um ideal que no pode ser cumprido. Melhor do que elaborar um sistema totalizante e imperfeito (como fatalmente realizam as teorias transcendentais) seria definir um modelo comparativo que orientasse o raciocnio prtico de modo a maximizar a justia possvel. Alm disso, a tpica garante a possibilidade de um modelo que pode se desenvolver de maneira mais orgnica, incorporando novas formas de avaliao moral, decorrentes das mudanas nos valores sociais prevalentes.

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    De certo modo, Amartya Sen retoma o utilitarismo, pois o seu ideal de teoria tica o de uma perspectiva capaz de maximizar a justia nas deci-ses concretas que ela determina. Porm, ele no cai na tentao de reduzir critrios de utilidade a um nico elemento, operao que facilita o clculo de utilidade sob o custo de perder a prpria justia buscada. Isso fica espe-cialmente claro na Parte III, que, apesar do ttulo Formas de argumentao racional, basicamente uma crtica das concepes reducionistas de razo que normalmente instruem o pensamento econmico.

    Diante da pluralidade de valores, Sen defende que a necessidade de transcender as limitaes de nossas perspectivas posicionais importante na filosofia moral e poltica, e na teoria do direito (p. 187). Essa transcen-dncia das individualidades normalmente realizada por meio de um apelo razo, que o prprio Sen realiza com inspirao em Akbar. Consciente que a posio de cada pessoa influencia os seus engajamentos valorativos, ele defende que essa posicionalidade pode ser parcial ou totalmente superada de modo a nos levar a uma viso menos limitada (p. 202), o que pode ser realizado mediante um processo de ampliao comparativa (comparative broadening) dos nossos pontos de vista, tornando-os cada vez mais perme-ados a uma imparcialidade aberta (open impartiality).

    Essa imparcialidade aberta resulta em uma ampliao das pessoas pe-rante quem ns temos responsabilidade tica, colocando Amartya Sen em contraposio s teorias econmicas que supem a ao humana dirigida exclusivamente realizao de interesses individuais. Isso faz com que v-rios captulos da Parte III sejam voltados a criticar a noo individualista de racionalidade defendida pela teoria da escolha racional, defendendo que a insistncia da chamada teoria da escolha racional na definio de racionalidade simplesmente como promoo inteligente do autointeresse d pouco valor ao uso humano da razo (p. 228) e que ser atencioso com os desejos e objetivos dos outros no precisa ser visto como uma violao da racionalidade (p. 227). Sen tambm critica essa perspectiva por considerar que a atitude cooperativa das pessoas est fundada em um benefcio mtuo reciprocamente constitudo, pois as pessoas se comportam em funo de sua responsabilidade moral, logo, o poder efetivo e as obrigaes que surgem dele de maneira unilateral tambm podem ser uma base importante para o raciocnio imparcial, que vai muito alm da motivao pelos benefcios mtuos (p. 241).

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    Assim, por mais que Amartya Sen desenvolva a sua argumentao a partir de uma perspectiva econmica, ele se contrape interpretao dominante neste campo, que compreende a ao coletiva como uma decorrncia da busca individual pela maximizao dos interesses. Ele insiste na existncia de uma multiplicidade de elementos que precisam ser levados em conta na justificao de uma tomada de deciso concreta: liberdade, capacidade, recursos, resultados, felicidade e igualdade so critrios a ser considerados, e que no podem ser incorporados em um sistema que defina para cada um deles um valor predeterminado. Essa multiplicidade de parmetros impede o desenvolvimento de um clculo unificado e de um sistema de hierarqui-zao, mas para Sen isso no significa que eles no possam ser articulados de forma racional.

    Uma das peculiaridades do discurso de Amartya Sen a apropriao que ele faz de uma distino clssica da jurisprudncia indiana, entre niti e nyaya, que so palavras diferentes usadas pelo snscrito antigo ligadas ideia de justia. Niti a justia que deriva do cumprimento estrito dos costumes e dos deveres contidos na lei, sendo que uma das manifestaes mais claras dessa ideia pode ser encontrada na clebre frase fiat justitia, et pereat mundus (faa-se a justia, ainda que perea o mundo) (p. 51). A justia, nesse sentido, o cumprimento do dever, dentro de uma perspectiva deontolgica forte, que desliga a justia de uma avaliao das consequncias do ato.

    J nyaya aponta para uma avaliao consequencialista, em que os resul-tados de um ato esto ligados sua prpria justia. O mais importante que as relaes derivadas do ato sejam justas e contribuam para que se evite o contrrio da justia, que o matsanyaya, ou seja, a situao de anomia em que os mais fortes podem oprimir os mais fracos. Uma das ideias relevantes ligadas a essa perspectiva a de que, embora haja uma grande variedade de noes sobre o que justo, h certo consenso em cada momento histrico sobre o fato de certas situaes constiturem uma injustia intolervel, como a tortura ou a escravido.

    Porm, nyaya no pode ser reduzida a uma anlise interessada apenas nos resultados de culminao (culmination outcome), pois a sensibilidade s consequncias no exige insensibilidade em relao agncia e s relaes pessoais na avaliao do que est acontecendo no mundo. (p. 255). Com essas consideraes, Sen se afasta do consequencialismo utilitarista, em funo do duplo reducionismo que existe nessa perspectiva: reduo da anlise aos

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    resultados diretos (sem consideraes intencionais e normativas) e reduo da avaliao utilidade (sem levar em conta outros elementos, especialmente a liberdade). No obstante, Amartya Sen compartilha com os utilitaristas o objetivo de estabelecer uma orientao para as decises que seja capaz de avaliar o grau relativo de justia de cada ao, para poder justificar uma escolha tica racional entre elas.

    Amartya Sen se dedica a elaborar uma teoria que seja capaz de orientar uma reflexo racional que estimule um engajamento efetivo das pessoas no apenas no cumprimento das leis (niti), mas na transformao da sociedade para que ela se torne mais prxima da nyaya, ao menos com uma excluso das injustias sentidas em um determinado momento como inaceitveis. Por isso mesmo que o seu maior esforo o de justificar a importncia relativa de uma srie de elementos que podem no formar um sistema de valores hierarquizados, mas que forma um conjunto de fatores legtimos a serem levados em conta em uma avaliao moral. Essa reflexo, desenvolvida na Parte III, tem como principal objetivo garantir espaos de avaliao tica que transcendam o consequencialismo utilitarista (tpico da economia e da cincia poltica), considerando a ampliao da liberdade (freedom) como um elemento relevante do julgamento moral. Afirma ele que ao avaliarmos nossas vidas, temos razes para estarmos interessados no apenas no tipo de vida que conseguimos levar, mas tambm na liberdade que realmente temos para escolher entre diferentes estilos e modos de vida. (p. 261).

    Na medida em que a teoria da justia sempre engajada na realizao de uma determinada ideia de Bem, necessrio ter critrios para avaliar se a vida de uma pessoa pode ser considerada boa. Na economia, essa medida normalmente leva em conta renda, riqueza e recursos (income, wealth and resourses), sendo elas teorias baseadas na utilidade e nos recursos (p. 265). Em contraposio, Amartya Sen prope uma perspectiva baseada na liberdade (freedom-based), na qual a vida boa medida em termos da efetiva liberdade das pessoas, entendida tanto em termos da existncia concreta de oportunidades de escolha individual (possibilidade efetiva de se fazer o que se deseja) quanto da existncia de processos de deciso pblica que respeitem essa liberdade (p. 266). Segundo Sen, a avaliao da liberdade deve ser feita em termos de capacidades (capabilities), dado que o bem pessoal deve ser medido em termos da capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razo para valorizar (p. 265).

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    De acordo com Sen, esse enfoque possibilita uma avaliao que leva em conta a pluralidade de objetivos que as pessoas tm, em vez de identificar de modo idealizado um determinado padro como desejvel em si. Alm disso, ele nos estimula a pensar na capacidade de gerar combinaes funcionais valorativas (combinations of valued functionings), que podemos julgar de modo comparativo. Com isso, tal posio permite ir alm de avaliaes fundadas nas realizaes (achievements) ou nos recursos disponveis, que so mais facilmente mensurveis, mas que no levam em conta o fato de eles serem moralmente valiosos na medida em que decorrem do exerccio da liberdade.

    Amartya Sen defende, ao longo do livro, um papel relevante para a racionalidade nas decises morais e que esta racionalidade se desenvolve por meio de uma argumentao pblica, que pode oferecer justificativas aceitveis pelos envolvidos, dentro de um processo de ampliao das pessoas envolvidas no campo da responsabilidade moral. Esse posicionamento faz com que ele estabelea uma conexo clara entre a ideia de justia e as teorias contemporneas que apresentam a democracia como um governo por meio do debate (government by discussion) (p. 358).

    Embora os tericos da democracia e os pensadores contratualistas nor-malmente limitem-se a pensar essa discusso dentro de uma determinada organizao poltica, o argumento de Amartya Sen volta-se elaborao de uma argumentao pblica mais ampla, que seja inclusiva em mbito mun-dial. Na sociedade contempornea, a interdependncia entre os pases e os mltiplos contatos em relao a atividades literrias, artsticas e cientficas, alm disso, no nos permitem esperar que qualquer considerao adequada dos diversos interesses e preocupaes se restrinja de maneira plausvel aos cidados de determinado pas, ignorando todos os demais. (p. 438).

    Tendo em vista esta perspectiva universalizante, que alis a tnica do iluminismo ao qual Amartya Sen se filia, no deve causar espanto que ele pretenda conferir concretude s pautas ticas objetivamente vlidas me-diante uma remisso aos direitos humanos, entendidos como pretenses ticas constitutivamente associadas importncia da liberdade humana (p. 401). Ele defende os direitos humanos como representao de uma pauta tica universal, cristalizada na demanda de que todas as pessoas em posio de fazer algo para defender esses direitos tm uma boa razo para faz-lo, ainda que essa exigncia no constitua uma obrigao jurdica efetiva, e

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    passvel de se sobrepor a argumentos de outras ordens. Assim, mesmo que no haja uma sano agregada ao seu descumprimento, para Sen no se deve confundir obrigao vagamente especificada com ausncia de qualquer obrigao (p. 409).

    Mas como podem ser definidos esses direitos humanos? Segundo Sen, tal como o caso com outras proposies ticas, a sua validade est baseada no pressuposto implcito de que eles sobreviveriam a um exame aberto e bem informado, o que supe invocar um processo de interao entre o exame crtico e a imparcialidade aberta (inclusive estar aberto a informaes provenientes de vrias posies, prximas e distantes) (p. 420). Embora reconhea que esse sistema no exista de modo efetivo em escala global, Sen considera a crena generalizada de que certas pretenses passariam por esse teste (como o tratamento igualitrio entre etnias e sexos) razo suficiente para justificar a sua validade moral.

    Essa uma definio assumidamente imprecisa, que no define os con-tedos dos direitos humanos (cujo estabelecimento remetido ao debate pblico) nem os critrios efetivos desse escrutnio (cujas regras no podem ser sistematizadas e cujo resultado sempre provisrio). No obstante todas as dificuldades em definir um conjunto de direitos humanos moralmente protegidos de forma universal, Amartya Sen considera que seria um equvoco assumir que j que no possvel resolver todas as disputas atravs do exame crtico, ento no teramos bases slidas suficientes para utilizar a ideia de justia nos casos em que o exame racional leva a um juzo conclusivo (p. 436).

    Mas que pretenses seriam essas, nos dias de hoje e nessa escala global? Embora essa resposta no seja dada de forma clara, Amartya Sen afirma que muitas sociedades protegem direitos humanos a liberdades particulares, inclusive a no discriminao entre pessoas de raas diferentes ou entre homens e mulheres, ou ao direito a liberdade formal bsica de ter razovel liberdade substantiva de expresso (p. 421). Ele tambm sustenta que, no rol de direitos humanos, devem estar includos direitos sociais e econmicos (p. 384). E, contra o fato de que muitas sociedades no protegem sequer os direitos de primeira gerao, ele responde que nelas inexiste o debate pblico que seria essencial tanto para o seu reconhecimento quanto para a sua rejeio (p. 422).

    Na obra A ideia de justia, Amartya Sen realiza em especial uma anlise crtica das concepes de moralidade mais influentes no pensamento eco-

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    nmico contemporneo. De um lado, ele avalia os limites da perspectiva de John Rawls, que ainda a principal referncia de teoria da justia dentro da tradio anglo-sax, e que tem repercusses econmicas na medida em que ela se presta especialmente a justificar a necessidade moral de desenvolver polticas redistributivas. Alm disso, ele faz uma apreciao bastante crtica das teorias ligadas escolha racional, contra as quais Sen articula uma te-oria da escolha social, que seria capaz de superar os reducionismos tpicos daquela corrente. Por fim, ele oferece uma teoria moral que defende que os debates acerca da justia social (especialmente no campo da economia) devem ultrapassar os limites das teorias hegemnicas e incorporar uma avaliao moral vinculada promoo das liberdades estabelecidas pelos direitos humanos, aos quais reconhece validade universal.

    Tal concentrao no pensamento econmico, como era de se esperar, a fora e a fraqueza da obra de Sen. a fora na medida em que seu novo livro tem a potencialidade de contribuir para uma renovao nos debates acerca da justia, superando debates centrados no utilitarismo e na justia redistributiva rawlsiana, por meio da incorporao de um discurso centrado em liberdades e direitos, que exigem clculos mais sofisticados, porm so mais capazes de refletir as demandas contemporneas de justia. Todavia, essa potencialidade mitigada uma vez que os argumentos apresentados por Sen no so propriamente novos, visto que configuram um desenvolvimento das teses apresentadas no captulo 3 de Desenvolvimento como liberdade (Sen, 2000, p. 72 e ss.), que tem influenciado profundamente os debates sobre justia social ao longo da ltima dcada.

    Por outro lado, ao refletir basicamente sobre as categorias filosficas ligadas ao discurso econmico dominante, Amartya Sen oferece um texto em que os filsofos tendem a sentir falta de um dilogo mais plural com as perspectivas filosficas que so centrais para a filosofia tica, mas que no encontram eco no pensamento econmico. Se a ausncia de uma anlise mais detida das razes clssicas da discusso at pode ser justificada pela adoo de um enfoque mais contemporneo, essa postura no justifica a falta de um dilogo efetivo com a ps-modernidade e seus precursores. Nesse mbito, h apenas citaes ligeiras de Nietzsche, e no h qualquer anlise do discurso dos pensadores existencialistas, hermenuticos, fenomenolgicos e outros que compem o panorama continental no sculo XX. Tampouco h um dilogo com a tradio analtica e pragmtica, que to relevante no cenrio

  • anglo-saxo, o que gera um enfraquecimento no discurso de Amartya Sen, tendo em vista que ele praticamente se limita a confrontar a sua viso com as perspectivas de Rawls e da teoria do agir racional.

    Alm desse enfoque economicista, os filsofos podem estranhar o fato de as preocupaes de Amartya Sen serem mais dogmticas do que heursticas, pois ele busca estabelecer parmetros que possibilitam medir o grau de justia de situaes concretas. Nessa medida, o discurso do livro se aproxima menos dos livros de tica do que das obras jurdicas, que buscam definir critrios adequados para realizar uma aplicao justa do direito no contexto plural da contemporaneidade. Todavia, no que toca aos critrios para definir os direitos humanos que serviriam como pautas morais universais, Amartya Sen tambm no estabelece parmetros suficientemente determinados para serem incorporveis pela prtica jurdica.

    Quanto aos economistas, imagino que eles talvez no compreendam bem o caso de amor de Amartya Sen com a filosofia, que analisa minuciosamente as potencialidades tericas de cada um dos conceitos que ele defende ou critica, conferindo ao discurso econmico uma dimenso que pode ser sentida como um exagero filosfico, ainda mais tendo em vista o idealismo com que Sen adota o discurso dos direitos humanos. E talvez considerem cansativo o grau de detalhe com que ele avalia as estratgias discursivas de Rawls e da teoria da escolha racional.

    O resultado final de um livro que reflete sobre os critrios mais adequa-dos para avaliar a justia das situaes concretas, com o objetivo de guiar pessoas que pretendem tomar decises em termos de justia e liberdade e no apenas de eficincia tcnica. A defesa que Sen realiza de uma teoria da escolha social parece especialmente sedutora para pessoas que exercem atividades ligadas s cincias sociais aplicadas (como direito, economia e gesto de polticas pblicas) e que buscam incorporar sua prtica decisria uma reflexo filosfica mais consistente. Trata-se, portanto, de uma obra de filosofia aplicada s cincias sociais, e no de um livro de filosofia pura. Enquanto os filsofos podem se limitar a acentuar a incalculabilidade da justia e a incomensurabilidade dos valores, Sen se prope a estabelecer uma teoria capaz de orientar uma escolha valorativa racionalmente informada, baseada na ideia de que a escolha e a ponderao podem ser difceis, mas no h nenhuma impossibilidade geral de fazer escolhas arrazoadas baseadas em combinaes de objetos diversos (p. 275).

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    Referncias bibliogrficasNIETZSCHE, Friedrich. 2006. Crepsculo dos dolos. So Paulo: Companhia

    das Letras.SEN, Amartya. 2000. Desenvolvimento como liberdade. So Paulo: Compa-

    nhia das Letras.

    Recebido em 10 de novembro de 2011.Aprovado em 6 de dezembro de 2011.