alzheimer digital: reflexões sobre o paradigma de um universo digital
TRANSCRIPT
ALZHEIMER DIGITAL: Reflexões sobre o paradigma de um universo digital
Teder Muniz Morás1
Solange Wajnman2
Resumo: Este artigo exercita uma reflexão sobre as inovações tecnológicas oferecidas pelos dispositivos móveis,
gerenciamento e armazenamento de dados, e analisa como essas facilidades implicam mudanças dos suportes
materiais e da sociedade. Pretendemos tecer um paralelo entre o mundo analógico e o digital quanto a questão da
memória e dos registros gerados nesses dois cenários, principalmente no audiovisual. Neste contexto buscamos
evidenciar as mudanças ocorridas em face da adoção da tecnologia digital na TV Cultura de SP, o impacto nas
atividades diárias e de seus profissionais. Palavras-Chave: Inovação. Comportamento. Preservação. Memória.
Abstract: This paper Proposes a reflection on the technological innovations Offered by mobile devices, data
management and storage, and how analyzes these features imply changes in the material supports and at our
society. We Intend to weave a parallel between the analogical and digital world faces to memory and records
generated in These two scenarios , Especially in the audiovisual . In this context we exploit the changes in the
digital technology adoption at TV Cultura network and its impact on the daily TV Activities and also on Their
professionals . Keywords: Innovation. Behaviour. Preservation . Memory .
Resumen: Este documento propone una reflexión sobre las innovaciones tecnológicas ofrecidas por los
dispositivos móviles, la gestión y el almacenamiento de datos, y analiza cómo estas características implican
cambios de soportes materiales y la sociedad. Tenemos la intención de tejer un paralelismo entre el mundo
analógico y el digital y la cuestión de la memoria y los registros generados en estos dos escenarios,
especialmente en el audiovisual. En este contexto, se busca demostrar los cambios en faz de la adopción de la
tecnología digital en la TV Cultura de SP, el impacto en las actividades diarias y en sus profesionales. Palabras
clave: Innovación. Comportamiento. Preservación. Memoria.
Introdução
O título Alzheimer Digital, faz referência ao Mal de Alzheimer, uma patologia neurológica
degenerativa, descrita em 1906, caracterizada por perda da memória de curto prazo, ou
memória recente. A analogia aqui se deve em virtude do armazenamento da memória social
humana na atualidade, através de processos digitais e em suportes instáveis. Isso tem gerado a
insegurança com relação à segurança dos dados armazenados e, caso elas venham a se perder
por não serem concretizadas em meios estáveis, resultará em uma perda irreversível das
informações que constituem conhecimento adquirido.
1 Doutorando e mestre em Comunicação pela Universidade Paulista – UNIP. [email protected]. 2Doutora em Sciences Sociales - Universite Rene Descartes, Sorbonne (1994). Realizou pesquisa de Pós-doutorado
na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa -ESTC (2009). Líder do grupo de pesquisa Moda, Comunicação
e Cultura junto ao CNPq, membro do Centro de Estudos de Telenovela da USP (CETVN/USP) e integrante do
projeto OBITEL (observatório de ficção televisiva ibero-americana). Membro do comitê científico do Colóquio
de Moda. Atualmente é professor titular da Universidade Paulista (UNIP) do mestrado em Comunicação. Tem
experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos
seguintes temas: comunicação visual, moda, estilo, consumo e novas tecnologias e epistemologia.
O mercado é movido por interesses financeiros, traduzidos em vantagens, agilidade no
processo produtivo e finalmente economia monetária utilizando-se da tecnologia digital, ainda
mais se comparada ao paradigma analógico. Somos contemporâneos de uma nova revolução,
a chamada era digital.
Ao longo da história há relatos de descobertas e inovações que mudaram o mundo. O salto
tecnológico promovido pela Revolução Industrial baseou-se no uso metal forjado em
máquinas e equipamentos. Foram introduzidos novos materiais, processos e consequente
novos fazeres. Toda essa mudança alterou também a forma como viviam e se relacionavam as
comunidades humanas.
Os artesãos – mestres que dominavam a arte do fazer – passaram a trabalhar nas novas
fabricas e não mais em suas residências. Isso gerou uma produção em larga escala, ou seja, a
primeira produção em massa. Esta condição também exigia melhores trabalhadores com
conhecimento para operar as novas máquinas.
Em 1913, Henry Ford inovou ao criar a linha de montagem para produção do modelo Ford T.
Ao invés de um item único e artesanal obtinha-se a produção de vários carros por dia a um
custo reduzido e acessível à população. Isto seria o início de uma nova era.
Toda essa revolução mudou também a forma de viver, redefiniu novas classes sociais.
Observou-se um novo padrão tecnológico concomitante à reorganização do consumo e à
relação tempo-espaço:
Sociedade da Informação, Sociedade pós-industrial, Sociedade do Conhecimento ou Sociedade
da Aprendizagem Permanente, são formas de designar um modo de desenvolvimento social e
econômico em que a aquisição, armazenamento, processamento, valorização, transmissão,
distribuição e disseminação de informação conducente à criação de conhecimento e à satisfação
das necessidades dos cidadãos e das empresas, desempenham um papel central na atividade
econômica, na criação de riqueza, na definição da qualidade de vida dos cidadãos e das suas
práticas culturais. Enganam-se, pois alguns ingênuos, quando pensam que: "são coisas lá da
malta dos computadores...". Livro Verde para a Sociedade da Informação em Portugal, 1997.
O século XX foi marcado por grandes feitos. Credita-se seu ápice à popularização da internet
- meados dos anos 1990, 3décadas após a sua criação, no auge da Guerra Fria. Até então as
guerras foram molas propulsoras dos saltos tecnológicos. E apesar do dilema, trouxeram à
humanidade grandes avanços nas áreas da medicina, pesquisa aeroespacial, farmacêutica e das
relações humanas, dentre outras.
São visíveis os benefícios da era digital em relação ao acesso a informação, que bem utilizado
gera conhecimento. A internet encurtou distancias, aperfeiçoou processos e trouxe ao homem
inúmeras facilidades de comunicação.
Segundo Fredric Jameson (1996), a ruptura tecnológica determinou mudanças fundamentais
no comportamento da sociedade. Diante de interesses econômicos característicos da pós-
modernidade, impulsionados pelas inovações tecnológicas, é possível constatar mudanças nas
estruturas das empresas. O embate entre o mundo analógico e digital resulta em alterações no
fazer midiático, no comportamento humano e sua adaptação aos novos equipamentos
eletroeletrônicos e aos conteúdos resultantes do novo fazer: as imagens técnicas. Neste
contexto há impacto social com a mudança de paradigma.
Como mostra Marcos Palacios (2005), as tecnologias, incluindo naturalmente as digitais, não
são unidirecionais, nem têm uma dinâmica própria e predeterminada de desenvolvimento.
Ainda de acordo com Laurentiz (1991),” A matéria é a preocupação mecânica com o suporte
material, ao passo que a materialidade abrange o potencial expressivo e a carga
informacional destes suportes, englobando também a extramaterialidade dos meios de
informação.” (Laurentiz, 1991. p.102).
Nosso objetivo é avaliar como ocorre essa mudança nos fazeres diários, como também
verificar como a sociedade lida com esse novo cenário. Citando Flusser (1985) com o fato de
somos operadores de tecnologia, não seus realizadores.
Não se trata apenas de nos colocarmos como meros expectadores da história, mas questionar e
buscar um melhor entendimento dessa mudança de hábitos, fazeres e consequentemente
comportamento.
Os mais atentos irão notar alterações em nossa percepção, como nos adaptamos ao meio e
nesse caso específico às novas tecnológicas e seus aparatos.
Diante de uma produção virtual cada vez maior e a sua imaterialidade colocam-se questões
decorrentes desse cenário digital: o descarte, a falta de registro, e principalmente a ausência
efetiva de guarda. Pretendemos tecer um paralelo entre o mundo analógico e o digital quanto
à questão da memória e dos registros gerados nesses dois cenários, principalmente no quesito
audiovisual (imagens em movimento, fotos e texto), conteúdo produzido em larga escala pela
maioria das pessoas, que em face das facilidades e aparatos tecnológicos, inundam nosso
cotidiano.
Citando Flusser, permanecermos incapazes de saber o que se passa no interior da caixa preta,
"somos, por enquanto, analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como
decifrá-las”. 3(Flusser, 1985b, p. 21).
Um dos autores trabalhou na Fundação Padre Anchieta, mantenedora das Rádios e Televisão
Cultura de São Paulo, de 1991, como estagiário a 2013, como gerente do Centro de
Documentação. Esse convívio de mais de duas décadas propiciou um rico cenário de
experimentação onde fora possível visualizar as transformações em toda cadeia produtiva
considerando o modelo analógico – uma forma quase artesanal do fazer televisivo – e todas as
facilidades - e riscos - do mundo digital.
Dentro deste contexto este estudo busca exercitar uma reflexão sobre as inovações
tecnológicas oferecidas pelos dispositivos móveis, sistemas de comunicação, gerenciamento e
armazenamento de dados, e analisa como essas facilidades implicam mudanças não somente
dos suportes materiais, mas da própria sociedade que é obrigada a interagir com essas
transformações. Diante de uma produção virtual cada vez maior e a sua imaterialidade
colocam-se questões decorrentes desse cenário digital: o descarte, a falta de registro, e
principalmente a ausência efetiva de guarda. Pretendemos tecer um paralelo entre o mundo
analógico e o digital quanto à questão da memória e dos registros gerados nesses dois
cenários, principalmente no quesito audiovisual (imagens em movimento, fotos e texto),
conteúdo produzido em larga escala pela maioria das pessoas, que em face das facilidades e
aparatos tecnológicos, inundam nosso cotidiano. Dentro deste contexto este estudo busca
evidenciar através de uma pesquisa exploratória e descritiva na TV Cultura de São Paulo, as
mudanças ocorridas em face da adoção da tecnologia digital, nos ambientes de Produção,
Jornalismo, Engenharia e Gestão da Informação, e seu impacto nas atividades diárias de seus
profissionais.
3 Flusser, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ed. Hucitec: São Paulo, 1985.
O Desafio da Memória e seu Registro
Preservar a memória e seu registro é nossa preocupação e combustível desse exercício de
reflexão. Sabe-se que hoje, a memória é registrada em larga escala em formatos audiovisuais
(imagens em movimento, fotos e texto). Evidencia-se um excesso de conteúdo produzido pela
maioria das pessoas que se beneficiam de facilidades e aparatos tecnológicos. Em “História e
Memória”, Jacques Le Goff (1990), relata que as sociedades históricas apesar de não
dimensionarem, tampouco compreenderem as mudanças que ocasionadas com o “moderno”
faziam uso dessas experimentações.
De fato, as sociedades históricas, mesmo que não se tenham apercebido da amplitude das
mutações que viviam, experimentaram o sentimento de moderno e forjaram o vocabulário da
modernidade nas grandes viragens da sua história. (Le Goff, 1990, p. 161).
Vale ressaltar ao leitor as diferenças entre História, Memória e Registro. Compartilhamos do
pensamento de Le Goff (1990), que observa que “a história é uma narração, verdadeira ou
falsa”, e foi meio de transmissão, num primeiro momento através da oralidade e
posteriormente através da escrita.
Ressaltamos não ser essa reflexão um contraponto à adoção de novas tecnologias, tampouco
empecilho para o egresso a um cenário virtual, no entanto como alerta Zielinski (2006), o
conceito da evolução propiciada pelas novas tecnologias da mídia deve ser cuidadosamente
analisada:
A passagem dos séculos apenas aprimora e aperfeiçoa as grandes ideias arcaicas. Esse ponto de
vista constitui pedagogia primitiva, que é maçante, e suga a energia do trabalho relativo às
mudanças tão desesperadamente necessárias. Então, se deliberadamente alterarmos a ênfase,
virarmos de ponta-cabeça e experimentarmos, o resultado vale a pena: não procuremos o velho
no novo, mas encontraremos algo de novo no velho. (Zielinski, 2006, p.19).
Os Desafios da Memória Digitalizada
Objetivamos com esse exercício avaliar as práticas atuais no tocante ao registro daquilo que
no passado era materializado no suporte físico, e em consequência se tornou documentação
histórica. Hoje, aquilo que caracterizamos como documentos históricos, é um registro do
cotidiano da sociedade da época que fora materializada em fotos, cartas e em películas
fílmicas sem nenhuma intenção de preservação. Pela natureza do suporte físico material esse
registro se perpetuou pelas décadas. Em face das novas tecnologias essa prática permanece, e
em uma escala jamais vista. Daí, a necessidade de encontrarmos uma equação entre produção,
presença, memória, história e identidade.
Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos (arquivos orais e audiovisuais) não escaparam
à vigilância dos governantes, mesmo que possam controlar esta memória tão estreitamente como
os novos utensílios de produção desta memória, nomeadamente a do rádio e a da televisão. (Le
Goff, 1990, p.436).
A história nos legou elementos físicos de sua memória através da arte, ciência, e literatura,
materializados na arquitetura, esculturas, artes plásticas, textos, música, cinema, fotografia e
outros. Esse rico e tangível acervo nos dá referência do que fomos e fizemos, e ainda
parâmetros de aonde queremos chegar. Desde os primórdios, através da oralidade, havia a
preocupação em preservar esses ensinamentos. Posteriormente a consciência preservacionista
fora reconhecida como ação fundamental na definição da identidade, desde que superados os
obstáculos orçamentários e de capacitação técnica para o restauro, preservação e guarda desse
legado.
Agora, diante de uma produção cada vez mais imaterial o descarte, a falta de registro, e
principalmente uma falsa sensação de guarda já é um conjunto de problemas decorrente desse
cenário digital. Se antes, uma foto produzida através de filme fotográfico precisava ser
revelada e materializada, essa por si só, e principalmente com o passar dos anos, tornar-se-ia
um objeto histórico, representativo de uma época, comportamento ou simples registro visual.
O mesmo para uma simples carta, ou um documento manuscrito.
Hoje, disparamos câmeras digitais, celulares e tablets a uma velocidade comparada à força de
um tsunami, e da mesma forma apagamos esses registros com um simples apertar de botão. O
ato de escrever no papel migrou para o texto digital. As emoções – acreditamos – ainda são as
mesmas: dramas, criticas, amores, ou mesmo um registro trivial são representados por bits, e
da mesma forma os “apagarmos” como um apagar de luzes. Esse gesto apaga também a
memória do que fora produzido, assim como a sua feitura.
A produção cinematográfica e televisiva, até então analógica, tinha no suporte midiático físico
o registro material e histórico desse fazer.
Somos contemporâneos da tirania digital e de um mercado – movido por interesses
financeiros – que simplesmente ignora esses acervos, descontinuando esses suportes e meios
de reprodução, caracterizando-os como obsoletos. O Advento da digitalização se traduz na
transição dos suportes materiais para suportes intangíveis. A virtualização de ambientes,
processos, e quem sabe dos atores humanos ratifica o cenário de desnaturalização. A
digitalização trouxe ao fazer televisivo inúmeros benefícios, reduzindo custos, tornando
processos mais eficazes e eficientes, propiciando acesso em larga escala além de uma maior
integração das áreas e capacitação de seus profissionais, no entanto, no caso da imagem
magnética, a digitalização rouba a aura do original. O vídeo é transformado em dado, e
mesmo com toda observância na gestão dessa informação lançando mão dos recursos
disponíveis esse conteúdo imaterial se tornou mais do que nunca refém da tecnologia voltada
aos interesses do mercado. Como defende Flusser (1985), em “Filosofia da Caixa Preta”
não dominamos o conhecimento sobre como fazer a tecnologia que nos serve, somos apenas
usuários.
Assim, cabe ao gestor de um acervo audiovisual, mesmo contrário às práticas de mercado,
buscar na tecnologia disponível meios de preservar a memória, caso não o faça, terá em
poucas décadas uma enorme “caixa de pandora”4, cujo conteúdo somente será lembrado por
àqueles que tiveram a contato com a experimentação, e a partir daí, somente através dos
contos.
Como expusemos um dos autores trabalhou na Fundação Padre Anchieta, mantenedora das
Rádios e Televisão Cultura de São Paulo, de 1991 a 2013. Durante esse período conviveu
com inúmeros profissionais e pode conhecer um pouco do universo televisivo e seus fazeres.
Bastidores, fluxos, processos, o segredo por detrás da tal “caixa mágica”.
Relatamos a seguir a chegada da tecnologia digital e seus impactos nos ambientes de
Produção, Jornalismo, Engenharia, principalmente na Gestão da Informação, e seu impacto
nas atividades diárias de seus profissionais.
4Caixa de Pandora é um artefato da mitologia grega, tirada do mito da criação de Pandora, que foi a primeira
mulher criada por Zeus. A "caixa" era na verdade um grande jarro dado a Pandora, que continha todos os males
do mundo. Nossa analogia é possuirmos um artefato cujo conteúdo não pode ser acessado.
Digitalização do acervo audiovisual da FPA5
A Fundação Padre Anchieta (FPA), é a mantenedora da TV Cultura de São Paulo. Tivemos
acesso ao plano de ação, implantado em 2005, voltado à migração de acervo em película
magnética (videoteipe) em bitolas com maior risco de obsolescência para mídias digitais.
Deliberar sobre qual mídia depositar nossa história audiovisual era, e ainda é um dilema ao
gestor daquele acervo audiovisual. Nenhum suporte digital hoje é definitivo, e esse é o maior
problema considerando a necessidade de guardarmos os registros gerados pela enorme
produção televisiva.
Essa dúvida sobre a melhor escolha nos motiva a constantes atualizações em uma ação sem
fim. Com isso, o risco de dano ou mesmo a perda dessa memória são fantasmas que
assombram àqueles que lutam pela preservação da memória audiovisual.
A tecnologia que gerencia (dados e informações) migrou da indústria da tecnologia da
informação (TI). Todo o fazer está sub judice de servidores.
Seguindo as diretrizes do plano de ação, todo acervo audiovisual foi inventariado. Foram
adotados os seguintes critérios para priorização: mídias com maior risco de obsolescência, na
sequência, produção própria, co-produção e terceiros.
Em face do alto custo de migração do acervo, o conteúdo audiovisual cujos critérios de direito
autoral (patrimonial e imagem) estejam regularizados, serão migrados primeiro. Suportes
magnéticos com algum tipo de restrição de uso, como por exemplo, programas e séries
produzidos por terceiros, será proposto ao produtor termo de parceria para recuperação desse
material. Como toda informação catalográfica estava em base de dados organizada a
estruturação desse inventário fora relativamente simples, cabendo apenas à direção da
Fundação Padre Anchieta validar o conteúdo selecionado para migração.
A obsolescência das fitas de vídeo, como também dos equipamentos reprodutores era fato.
Tínhamos então que achar a melhor alternativa para salvar os registros audiovisuais reunidos
em quase 40 anos de história.
5 O autor Teder Morás foi gerente do Centro de Documentação e Memória da TV Cultura no período de 1991 a
2013.
Naquele ano (2005), como ainda não havia referência no mercado que balizasse a escolha de
qual melhor solução adquirir, a direção da TV Cultura optou por um sistema idealizado pela
Sony, grande fabricante de equipamentos e fitas para o mercado televisivo. Logo os
profissionais envolvidos das áreas de Engenharia, TI e Ciência da Informação identificaram
grande restrição e dificuldade na customização do sistema, além é claro, de ser uma solução
proprietária. Em resumo, estavam 100% a mercê daquela empresa, seja na questão na
imaterialidade, o vídeo transformado em dado era então armazenado em outro tipo de mídia
digital, e também a gestão dessa informação, algo que primamos e sempre fomos
desenvolvedores.
Em 2007, a direção da TV Cultura mudou radicalmente a estratégia de digitalização do
acervo. Deixaram a proposta da Sony, e partiram para outra solução. Escolhemos a mídia:
LTO - Linear Tape-on, tecnologia desenvolvida pelas empresas HP e IBM, além de um
conjunto de fornecedores para hardwares (robótica) e softwares (sistema de gerenciamento).
O parceiro escolhido para o desenvolvimento conjunto de um sistema de gerenciamento da
informação fora a Media Portal, uma empresa nacional. Tal decisão pautou-se na questão
estratégica de que juntos (FPA e Media Portal) poderiam desenvolver um sistema
customizado e que atendesse aos interesses e premissas da FPA na gestão da informação e na
preservação de seu valioso acervo.
Além das vantagens de co-desenvolvedor, o custo da mídia e sua capacidade de
armazenamento foram determinantes. Para citar alguns exemplos com parecemos o quadro
abaixo, além do custo de manutenção e espaço físico:
Superadas as dificuldades de implantação, treinamento e mudança de paradigma, surge outro
– e certamente o maior desafio – que consistia no monitoramento constante da mídia,
Mídia Ano Capacidade Custo' Betacam equivalente Custo
LTO3 2005 500GB 400,00$ 30 4.500,00R$
LTO4 2007 800GB 250,00$ 40 6.000,00R$
LTO5 2009 1,6TB 150,00$ 80 12.000,00R$
LTO6 2012 2,5TB 240,00$ 160 24.000,00R$
¹ valor médio lançamento
Fonte: Cedoc FPA
Quadro comparativo custo/capacidade de armazenamento LTO/Betacam
mantendo-a atualizada conforme evolução tecnológica, assim como, procedimentos internos
para criação de cópias de segurança, sistemas redundantes, e plano de contingência.
O profissional de gestão de acervos audiovisuais, responsável pelas atividades da preservação
documental, se depara a cada dia, com uma quantidade crescente de informação que precisa
ser tornada acessível e disseminada com rapidez, de forma eficaz e eficiente através de
sistemas informatizados de gestão. O momento atual é de cooperação e convergência de
tecnologias, sem negligenciar o legado tradicional, priorizando investimentos na digitalização
de acervos em detrimento da conversação física dos suportes originais.
Preservação Documental [...] inclui todos os aspectos gerenciais, financeiros e humanos, para
prover acondicionamento e guarda adequadas, além de políticas, atividades técnicas e
procedimentos envolvidos na preservação, não apenas nos próprios documentos, mas também
nas informações contidas neles. (IFLA, 1998).
Segundo McGarry (1999), a informação dever ser ordenada, estruturada ou contida de alguma
forma, senão permanecerá amorfa e inutilizável, daí a importância na gestão da informação e
garantir seu tratamento bibliográfico, guarda e recuperação. Qualquer que seja a sua forma
externa, a essência de um arquivo é uma coleção de materiais organizados para uso. As
formas externas desses materiais têm mudado a cada inovação da tecnologia da comunicação,
das tabulas de argila ao computador. A organização para uso define sua função como
recipiente ou depósito para a memória externa da humanidade; mas armazenamento implica
recuperação e recuperação implica acesso, ou a oportunidade de tirar proveito disso na
condição de usuário.
Considerações finais
Os autores são de uma geração analógica, aficionada por televisão. Uma caixa mágica que
nos acompanha desde o desenvolvimento da oralidade até a evocação de sentimentos mais
complexos, quando nos emocionamos com determinado conteúdo exibido. A televisão
durante décadas foi o principal instrumento de mobilização social, político e comportamental,
afirmação atestada por (Abruzzese, 2006), em constatar que o impacto da televisão sobre a
sociedade não poderia ser teorizado considerando uma fusão do cinema com a pequena tela
“[...] mas sim como impacto crítico entre a fase avançada de institucionalização do
pensamento e da práxis audiovisuais (as especificidades cinematográficas, as produtoras, os
mercados, as políticas culturais) e a nova fase de germinação, relativamente autônoma, da
TV”.
Ao lado da Internet e com a mobilidade que a convergência tecnológica proporcionou, a
televisão divide esse papel e mesma responsabilidade com outros veículos de comunicação.
Como a televisão, o cinema, a literatura e outras formas de arte contribuíram para a formação
da sociedade e nos legaram registros fundamentais para compreensão da história e de nossa
identidade. No meio audiovisual, em face das novas tecnologias esses registros, em sua
maioria, estão sob a égide da imaterialidade, um cenário que gerações - como a nossa - ainda
não dominam completamente, no entanto, está sob nossa responsabilidade a busca de um
novo modelo paradigmático que mantenha esses registros intactos e acessíveis às próximas
gerações. Em relação à tecnologia digital, todo o parque de captação, edição, exibição e
arquivo está modernizado, habilitando a Fundação Padre Anchieta enfrentar o paradigma da
TV digital, e assim trabalhar pela preservação de seu acervo.
A digitalização está presente em nosso dia a dia, seja na virtualização de ações e processos a
um simples clicar fotográfico ou mesmo uma mensagem eletrônica (e-mail). As facilidades
técnicas deram ao homem a capacidade de produzir registros em escala épica. “Paramos o
tempo” em fotos digitais, publicações em redes sociais como Facebook e/ou Twitter, ou
torpedos pelos telefones móveis, memórias que geram um arquivo universal, imaterial e ao
alcance de qualquer pessoa. Se por um lado isso nos aproxima considerando a velocidade que
a informação é propagada e está disponível nessa grande rodovia chamada internet, a gestão
dessa história, e consequentemente a preservação dessa memória grita aos ouvidos dos mais
atentos.
Há uma convergência natural para que cada vez mais as publicações, originalmente
materializadas em livros, estejam em ambientes virtuais (servidores, discos rígidos etc.). Cada
vez mais raras são cartas escritas à mão, tampouco fotos relevadas, tudo está à mão do homem
nessa nuvem digital. Alguns mais cuidadosos replicam essa informação para servidores ou
dispositivos de armazenamento, o que não torna essa memória material. A imaterialidade é
um fato e ao mesmo tempo um risco. O conteúdo audiovisual dos acervos, principalmente
películas magnéticas (vídeo) e fílmicas, obrigatoriamente será digitalizado, cedo ou tarde, isso
em face da obsolescência tecnológica, seja do suporte ou do equipamento de reprodução.
Cabe-nos, decidir a melhor forma de preservar essa informação.
Não é nossa pretensão criar um cenário escuro e de incertezas, tampouco questionar se a
tecnologia digital é menos ou mais benéfica. Como pudemos constatar e de acordo com
Fredric Jameson (1996), a cada mudança de paradigma se faz também necessária à adaptação
comportamental. Somos agentes ativos na construção e manutenção de nossa história.
Tínhamos relativo conforto na gestão da informação tangível, isto é, ao alcance de nossas
mãos. Seja nas ações de preservação e gestão. O palco que se descortina nos apresenta uma
nova realidade, novos procedimentos, outros aprendizados. Talvez, a necessidade de
esvaziarmos nossos copos, principalmente para a geração analógica, seja crítica para que
possamos absorver novos conceitos, principalmente para aqueles que atuam no restauro
preservação e gestão da informação.
Os avanços tecnológicos seguirão seu curso. Trata-se de “tsunami cibernético” movido por
interesses econômicos, busca por novas linguagens, facilidades e, mesmo de forma maquiada,
a sonhada interação realmente participativa. Imagens ainda mais definidas, convergência para
artefatos portáteis e conectados com as necessidades do dia a dia, ditarão o comportamento
das próximas gerações.
“[...] qualquer contato humano com as coisas do mundo contém um componente de sentido e
um componente de presença, e que a situação da experiência estética é específica na medida em
que nos permite viver esses dois componentes em sua tensão”. (Gumbrecht, 2010, p.138-139).
Além disso, somos essencialmente presença, mesmo que na representação nosso eu, e
felizmente não somos virtuais, no entanto, caso não observado critérios de produção e
principalmente registro dos conteúdos produzidos, iremos padecer de um Alzheimer Digital.
Referencias
a) – Livros
ABRUZZESE, Alberto. O Esplendor da TV – origens e destino da linguagem audiovisual.
Tradução Roberta Barni. Ed. Studio Nobel. São Paulo : 2006.
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Trad. Paulo Neves, 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
__________. Memória e Vida. Textos escolhidos por Gilles Deleuze. Trad. Claudia Berliner, 1. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CARDOSO, João Batista Freitas. A semiótica do cenário televisivo. São Paulo : Annablume; Fapesp,
USCS – Universidade de São Caetano do Sul,2008.
CARDOSO, João Batista Freitas. Cenário Televisivo, Linguagens Múltiplas Fragmentadas. São
Paulo : Annablume; Fapesp, 2009.
FELINTO, Erick. Materialidades da Comunicação: Por um Novo Lugar da Matéria na Teoria da
Comunicação. Ciberlegenda, Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal Fluminense, UFF, nº 5. Rio de Janeiro, 2001.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ed. Hucitec. São Paulo, 1985.
_______________. Filosofiá del diseño – la forma de las cosas. Tradução Pablo Marinas. Editora
Sintesis. Madrid, 2002.
GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. Tradução de Celso Azzan Júnior / André
Gorz – São Paulo : Annablume, 2005.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Org.: João Cesar de Castro Rocha. Corpo e forma: ensaios para uma
crítica não hermenêutica. Rio de Janeiro : EdUERJ, 1998.
________________________ Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio
de Janeiro : Contra Ponto – PUC Rio, 2010.
JAMESON, Fredric. A lógica cultura do capitalismo tardio. In: ___. Pós-modernismo. A lógica
cultura do capitalismo tardio (trad. Maria Elisa Velasco), São Paulo: Ática, 1996. p.61.
JENKIS, Henry. Cultura da convergência / Henry Jenkins; tradução Susana Alexandria, 2.ed., São
Paulo : Aleph, 2009.
LAURENTIZ, Paulo (1991). A Holarquia do pensamento artístico. Campinas : Edunicamp
LE GOOF, Jacques. História e memória; tradução Bernardo leitão... [et al.] – Campinas, SP. Editora
da UNICAMP, 1990. (Coleção Repertórios).
LEVY, Pierre. O que é virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo : Editora 34, 2007.
MACHADO, Elias & PALACIOS, Marcos. Modelos de jornalismo digital. Salvador : Calandra,
2003.
McGARRY, Kevin. O contexto dinâmico da informação: uma análise introdutória. Brasília;
Briquet de Lemos, 1999.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix,
1974.
MORAS, Teder M. RESENDE, Fernanda Elisa C.P. Território Audiovisual: imagens e sons como
estratégia metodológica de pesquisa. Reflexão de questões levantadas no Simpósio 23, intitulado
Território Audiovisual – Imagens e Sons como Estratégia Metodológica de Pesquisa, coordenado
pelos autores durante o IV TAAS – Reunión de Teoría Arqueológica de América Del Sur, realizado
em setembro de 2012, na cidade de Goiânia, GO, Brasil.
PALACIOS, Marcos. Mundo Digital. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas (org.). “Cultura e
Atualidade”. Salvador: EDUFBA, 2005.
SANTOS, Roberto Elísio dos. Mutações da cultura midiática / Roberto Elísio dos Santos, Herom
Vargas, João Batista F. Cardoso. – 1. Ed. – São Paulo : Paulinas, 2009. (Coleção comunicação &
cultura).
SANTOS, Silvio de Oliveira. O escolar e a televisão. SP: Do autor, 1977 (monografia).
WAJNMAN, Solange. JARDIM, Silvia Cristina. Configurações da percepção contemporânea e
metaformas na televisão: estudo de formas visuais da MTV Brasil. Revista FAMECOS • Porto
Alegre • nº 34 • dezembro de 2007.
ZIELINSKI, S. Arqueologia da mídia- em busca do tempo remoto das técnicas do ver e do ouvir.
São Paulo : Ed. Annablume, 2006.
b) – Textos da internet
<http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/files/2010/02/const-comum_Rodrigo-GUERON.pdf>,
acesso em: 04 nov. 2014.
<http://www.ford.pt/ExperienciaFord/SobreFord/InformacaoSobreEmpresa/Heritage/TheEvolutionof
MassProduction>, acesso em: 04 nov. 2014 04/11/2014.
<http://www.missao-si.mct.pt>, na secção dedicada ao Livro Verde, acesso em: 04 nov. 2014.
IFLA - The International Federation of Library Associations and Institutions. Disponível em
<http://www.ifla.org/>, acesso em: 20 set. 2009.
c) – Trabalhos apresentados em eventos
MORAS, Teder M. ALZHEIMER DIGITAL: Reflexões sobre o paradigma de um universo digital.
Trabalho apresentado no I Simpósio Internacional de Imagem e Inserção Social, na Faculdade Cásper
Líbero. São Paulo, SP, de 05 a 07 de novembro de 2013.
MORAS, Teder M. Digitalização, a mudança de paradigma no processo de produção de cenários
televisivos na TV Cultura. Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação da
Universidade Paulista. São Paulo, 2012.