álvaro l.m. valls o que é ética

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  • 1. IndiceOs Problemas da tica..........................................7tica Grega Antiga...............................................24tica e Religio......................................................35Os Ideais ticos....................................................43A Liberdade...........................................................48Comportamento Moral: o Bem e o Mal............62A tica Hoje..........................................................70Indicaes Para Leitura........................................79
  • 2. O Que tica lvaro L. M. VallsColeo Primeiros Passos - N 177 ISBN 85-11-01177-3 - Ano: 1994 Editora Brasiliense
  • 3. Conhece-te a ti mesmo. Scrates Sede perfeitos, como vosso pai perfeito. Jesus Cristo Age moralmente. Kant Meu dilema no significa, em primeiro lugar, que se escolha entre o bem e o mal; ele designa a escolha pela qual se exclui ou se escolhe o bem o o mal. Kierkegaard A triste cincia (...) se refere a um domnio que por tempos imemoriais foi considerado o especfico da filosofia,porm, desde a transformao desta em mtodo, caiu no desprezo intelectual, na arbitrariedade das sentenas e afinal no esquecimento: a doutrina da vida correta. Adorno
  • 4. OS PROBLEMAS DA TICA A tica daquelas coisas qua todo mundo sabe o que so, mas queno so fceis de explicar, quando algum pergunta. Tradicionalmente ela entendida como um estudo ou umareflexo, cientfica ou filosfica, e eventualmente at teolgica, sobreos costumes ou sobre as aes humanas. Mas tambm chamamos detica a prpria vida, quando conforme aos costumes consideradoscorretos. A tica pode ser o estudo das aes ou dos costumes, e pode sera prpria realizao de um tipo de comportamento. Enquanto uma reflexo cientfica, que tipo de cincia seria atica? Tratando de normas de comportamentos, deveria chamar-seuma cincia normativa. Tratando de costumes, pareceria uma cinciadescritiva. Ou seria uma cincia de tipo mais especulativo, quetratasse, por exemplo, da questo fundamental da liberdade? 7
  • 5. Que outra cincia estuda a liberdade humana, enquanto tal, e em suasrealizaes prticas? Onde se situa o estudo que pergunta se existe a liber-dade? E como ele deveria sar definida teoricamente, a como deveria servivida, praticamente? Ora, ligado ao problema da liberdade, aparecesempre o problema do bem e do mal, e o problema da conscincia moral eda lei, e vrios outros problemas deste tipo. Didaticamente, costuma-se separar os problemas tericos da tica emdois campos: num, os problemas gerais e fundamentais (como liberdade,conscincia, bem, valor, lei e outros); e no segundo, os problemaespecficos, de aplicao concreta, como os problemas da ticaprofissional, da tica poltica, de tica sexual, de tica matrimonial, debiotica, etc. um procedimento didtico ou acadmico, pois na vida realeles no vm assim separados. Mais adiante teremos de ver tambm como a tica se distingue deoutros ramos do saber, ou de outros estudos de comportamentos humanos,como o direito, a teologia, a esttica, a psicologia, a histria, a economia eoutros. Quando diferenciamos estes ramos do saber, no estamos dizendoque os problemas, na prtica da vida, no sajam complexos e com vriasdimenses simultaneamente. Vejamos um exemplo. Subornar umfuncionrio, um problema apenas tico, apenas econmico, ou tem osdois aspectos? 8
  • 6. As quetes da tica nos aparecem a cada dia. A partir do exemploacima, logo poderamos nos perguntar se, num pas capitalista, o princpiodo lucro poderia ou deveria situar-se acima ou abaixo das leis da tica. Eem pocas mais difceis, muitas vezes nos perguntamos se uma lei injustade um Estado autoritrio precisa ou no ser obedecida. E quando nsternos um "problema de conscincia", quando estamos com um"sentimento de culpa", coisa que ocorre a todos, no se torna importantesaber se este sentimento corresponde de fato a uma culpa real? Cabe reflexo tica perguntar se o homem pode realmente ser culpado, ou se oque existe apenas um sentimento de um mal-estar sem fundamento. E as artes tambm levantam problemas para a tica. Por exemplo: opoder de seduo, de encantamento, da msica, pode (ou deve) ser usadopara condicionar o comportamento das pessoas? E o mandamento evanglico do amor aos inimigos vlido como umaobrigado tica para todos? E quando, lendo um romance de Dostoievski, encontramos umpersonagem como Ivan, de Os Irmos Karamazov, afirmando que "seDeus no existe tudo permitido", devemos ento concluir que isso umaproposta de abolio da tica? Os problemas que acabamos de mencionar implicam todosalguma relao com outras disciplinas tericas e prticas, mas so todosproblemas especficos da tica. 9
  • 7. Mas h uma outra questo, especificamente tica, que parece serabsolutamente fundamental. Os costumas mudam e o que ontem eraconsiderado errado hoje pode ser aceito, assim como o que aceito entreos ndios do Xingu pode ser rejeitado em outros lugares, do mesmo pasat. A tica no seria ento uma simples listagem das convenes sociaisprovisrias? Se fosse assim, o que seria um comportamento correto, em tica? Noseria nada mais do que um comportamento adequado aos costumesvigentes, e enquanto vigentes, isto , enquanto estes costumes tivessemfora para coagir moralmente, o que aqui quer dizer, socialmente. Quem secomportasse de maneira discrepante, divergindo dos costumes aceitos erespeitados, estaria no erro, pelo menos enquanto a maioria da sociedadeainda no adotasse o comportamento ou o costume diferente. Quer dizer:esta ao seria errada apenas enquanto ela no fosse o tipo de um novocomportamento vigente. claro que, de qualquer maneira, a tica tem pelo menos tambm umafuno descritiva: precisa procurar conhecer, apoiando-se em estudos deantropologia cultural e semelhantes, os costumes das diferentes pocas edos diferentes lugares. Mas ela no apenas retrata os costumes; apresentatambm 10
  • 8. 11
  • 9. algumas grandes teorias, que no se identificam totalmente com as formasde sabedoria que geralmente concentram os ideais de cada grupo humano.A tica tem sido tambm uma reflexo terica, com uma validade maisuniversal, como ainda veremos. Quanto aos costumes, para partirmos do real e no do idealpropriamente dito, preciso reconhecer desde logo uma sria restrio: ahumanidade s reteve por escrito depoimentos sobre as normas decomportamentos (e teorias) dos ltimos milnios, embora os homens jexistam h muito mais tempo. Como se comportavam eticamente oshomens das cavernas, h mais de trinta mil anos? Como era a sua ticasexual, que tipos de normas polticas vigoravam na pr-histria? extremamente difcil diz-lo. Quanto s grandes teorizaes, h documentos importantssimos pelomenos desde os gregos antigos, h uns dois mil e quinhentos anos. Mas importante ento lembrar que as grandes teorias ticas gregas tambmtraziam a marca do tipo de organizao social daquela sociedade. Taisreflexes no deixavam de brotar de uma certa experincia de um povo, e,num certo sentido, at de uma classe social. Tais enraizamentos sociaisno desvalorizam as reflexes mais aprofundadas, mas sem dvida ajudama compreender a distncia entre as doutrinas ticas escritas pelos filsofos,de um lado, e os costumes reais do povo e das diferentes classes, por outrolado, 12
  • 10. tanto no Egito quanto na Grcia, na ndia, em Roma ou na Judia. Em certos casos, s chegaremos a descobrir qual a tica vigente numaou noutra sociedade atravs de documentos no escritos ou mesmono-filosficos (pinturas, esculturas, tragdias e comdias, formulaesjurdicas, como as do Direito Romano, a polticas, como as leis de Espartaou Atenas, livros de medicina, relatrios histricos de expediesguerreiras e at os livros penitenciais dos bispos medievais). Como no se admirar diante da diversidade dos costumes,pesquisando, por exemplo, o que os gregos pensavam da pederastia, ou oscasos em que os romanos podiam abandonar uma criana recm-nascida,ou as relaes entre o direito de propriedade e o "no cobiar a mulher doprximo" dos judeus antigos, ou a escala de valores que transparece noslivros penitenciais da Idade Mdia, quando o casamento com urnaprima em quinto grau constitua uma culpa mais grave do que o abusosexual de uma empregada do castelo, ou quando o concubinato, mesmodos padres, era uma forma de regulamentar eficazmente o direito daherana? O que acabamos de mencionar coloca a questo nos seguintes termos.No so apenas os costumes que variam, mas tambm os valores que osacompanham, as prprias normas concretas, os prprios ideais, a prpriasabedoria, de um povo a outro. 13
  • 11. Mas algum poderia argumentar que, embora s conheamos asnormas ticas dos ltimos milnios, certamente deve haver um princpiotico supremo, que perpasse a pr-histria e a histria da humanidade. Noseria, quem sabe, o princpio que probe o incesto (sexo antre parentes)?Mas at esta norma to antiga e to importante carece de uma verdadeiraconcreo, de uma formulao bem determinada. Afinal, a definioconcreta dos casos de incesto constantemente variou. Voltemos ao exemplo da Idade Mdia. Ao redor do ano 1000, a relaoincestuosa atingia at o stimo grau. Casar com uma prima de at stimograu era um crime e um pecado. Mas, se a quase totalidade era analfabeta,como conhecer bem a rvore genealgica? O costume ento era bastantematreiro: os nobres se casavam sem perguntar pela genealogia, e s sepreocupavam com o incesto quando eventualmente desejassem dissolver ocasamento, anulando-o. No era difcil, ento, conseguir um monge letradoou mesmo testemunhas compradas, para demonstrar o impedimento eanular o casamento. Graas ao incesto, o nobre podia tentar varias vezes,at conseguir ganhar um filho homem, o que era, muitas vezes, a sua realpreocupao, por causa da linhagem, do nome e da herana. Se formos pesquisar estes costumes mais a fundo, descobriremos entotalvez que, por trs das normas explcitas, havia outros valores mais altos,tais 14
  • 12. como a linhagem, as alianas poltico-militares, e quem sabe at a pazsocial, dentro de uma estrutura baseada na luta, na competio e na guerra,por questes de honra, da religio ou de herana. Mas ento temos de nosperguntar qual a importncia desta regulamentaco tica para ns hoje,numa poca de capitalismo avanado (ou mesmo salvagem), onde a grandemaioria se sustenta ou empobrece graas exclusivamente ao seu trabalhopessoal, sua fora de trabalho, independente de linhagem e de herana. Mesmo nos dias de hoje, numa mesma sociedade, no notamos ntidasdiferenas de costumes entre as classes da mais alta burguesia, a pequenaburguesia e o proletariado, para no falar dos camponeses ou agricultores? Mas no haveria, ento, uma tica absoluta? No teria, quem sabe, ocristianismo trazido esta tica absoluta, vlida acima das fronteiras detempo e espao? Ser verdade que o cristianismo trouxe realmente umanica tica? Max Weber, pensador alemo do incio do nosso sculo, mostra queesta tica no era, em todo o caso, simples, clara e acessvel a todos. Poisos protestantes, principalmente os calvinistas, sempre valorizarameticamente muito mais o trabalho e a riqueza, enquanto os catlicos davamum valor maior abnegao, ao esprito de pobreza e de sacrifcio. E adiversidade simultnea no a nica: maiores so as variaes de umsculo para outro. 15
  • 13. No passado, houve pocas em que a pobreza e a castidade eram os valoresmais altos da escala tico-religlosa (geralmente em pocas em que seprevia para breve o fim do mundo). Isto explica os grandes movimentosmonacais, assim como, em contrapartida, nos permite entender por que, nosculo passado, o ideal do homem cristo enaltecia muito mais o burgusculto, casado, com famlia grande e boas economias acumuladas, cultor davida urbana e social. No seria exagerado dizer que o esforo de teorizao no campo datica se debate com o problema da variao dos costumes. E os grandespensadores ticos sempre buscaram formulaes que explicassem, a partirde alguns princpios mais universais, tanto a igualdade do gnero humanono que h de mais fundamental, quanto as prprias variaes. Uma boateoria tica deveria atender a pretenso de universalidade, ainda quesimultaneamente capaz de explicar as variaes de comportamento,caractersticas das diferentes formaes culturais e histricas. Dois nomes merecem ser logo citados, como estrelas de primeiragrandeza desse firmamento: o grego antigo Scrates (470-399 a.C.) e oalemo prussiano Kant (1724-1804). Scrates, o filsofo que aparece nos Dilogos de Plato, usando omtodo da maiutica (interrogar o interlocutor at que este chegue por simesmo 16
  • 14. verdade, sendo o filsofo uma espcie de "parteiro das idias"), foicondenado a beber veneno. Mas por qu? A acusao era a de que eleseduzia a juventude, no honrava os deuses da cidade e desprezava as leisda polis (cidade-estado). Depois de dois milnios, ainda no sabemos sesua condenao foi justa. Pois Scrates obedecia s leis, mas asquestionava em seus dilogos, procurando fundamentar racionalmente asua validade. Ele ousava, portanto, perguntar se estas leis eram justas. Emesmo que chegasse a uma concluso positiva, o conservadorismo gregono podia suportar este tipo de questionamento, pois as leis existiam paraserem obedecidas, e no para serem justificadas. Mas, embora os gregos no gostassem dos questionamentos socrticos,Scrates foi chamado, muitos sculos depois, "o fundador da moral",porque a sua tica (e a palavra moral sinnimo de tica, acentuandotalvez apenas o aspecto de interiorizao das normas) no se baseavasimplesmente nos costumes do povo e dos ancestrais, assim como nas leisexteriores, mas sim na convico pessoal, adquirida atravs de umprocesso de consulta ao seu "demnio interior" (como ele dizia), natentativa de compreender a justia das leis. Parece mesmo que Scrates abandonou at o estudo das cincias danatureza (as famosas cosmologias), para se ocupar exclusivamente consigo 17
  • 15. mesmo e o seu agir. Scrates seria ento, para muitos, o primeiro grandepensador da subjetividade, o que, alis, tambm transparecia por seucomportamento irnico. Pois a ironia (que alguns traduzem como umaignorncia fingida, mas que deve ser muito mais do que isto) sempreestabelece uma diferena entre o que eu digo e o que eu quero dizer, eassim entre a formulao e o sentido das proposies uma distncia,portanto, entre o exterior e o interior. Ora, se este movimento de interiorizaco da reflexo e de valorizaoda subjetividade ou da personalidade comea com Scrates, parece que eleculmina com Kant, l pelo final do sculo XVIII. Kant buscava uma tica de validade universal, que se apoiasse apenasna igualdade fundamental entre os homens. Sua filosofia se volta sempre,em primeiro lugar, para o homem, e se chama filosofia transcendentalporque busca encontrar no homem as condies de possibilidade doconhecimento verdadeiro e do agir livre. No centro das questes ticas,aparece o dever, ou obrigao moral, uma necessidade diferente da natural,ou da matemtica, pois necessidade para uma liberdade. O dever obrigamoralmente a conscincia moral livre, a a vontade verdadeiramente boadeve agir sempre conforme o dever e por respeito ao dever. Partindo do pressuposto, tpico do movimento iluminista queacompanhou a ascenso da burguesia, da igualdade bsica entre oshomens, 18
  • 16. Kant achava que a igualdade entre os homens era fundamental para o desenvolvimento de uma tica universal. 19
  • 17. Kant precisa chegar a uma moral igual para todos, uma moral racional, anica possvel para todo e qualquer ser racional. Esta moral no se interessa essencialmente pelos aspectos exteriores,empricos e histricos, tais como leis positivas, costumes, tradies,convenes e inclinaes pessoais. Se a moral a racionalidade do sujeito,este deve agir de acordo com o dever e somente por respeito ao dever:porque dever, eis o nico motivo vlido da ao moral. Legalidade e moralidade se tornam extremos opostos. Diante de cadalei, de cada ordem, de cada costume, o sujeito est obrigado, para ser umhomem livre, a perguntar qual o seu dever, e a agir somente da acordocom o seu dever, e isto, exclusivamente, por ser o seu dever. Como vemos,uma tica bastante revolucionria para uma poca dominada por umregime antigo, baseado em tradies e imposies irracionais. Para Kant, os contedos ticos nunca so dados do exterior. O quecada um de ns tem, porm, a forma do dever. Esta forma se expressa emvrias formulaes, no chamado imperativo categrico, o qual tem estenome por ser uma ordem formal nunca baseada em hipteses oucondies. A formulao clssica do imperativo categrico a seguinte,conforme o texto da Fundamentao da Metafsica dos Costumes: "devoproceder sempre de maneira que eu possa querer tambm que a minhamxima se torne uma lei universal". 20
  • 18. Colocado como um imperativo para o outro, seria: "age de tal maneira quepossas ao mesmo tempo querer que a mxima da tua vontade se torne leiuniversal". E se algum perguntasse a Kant: "sim, mas de que maneira,concretamente?", sua resposta seria: "exatamente desta maneira. Ou seja,Kant procurou deduzir da prpria estrutura do sujeito humano, racional elivre, a forma de um agir necessrio e universal. moralmente necessriotodos ajam assim. Os crticos de Kant costumam dizer que ele teria as mos limpas, setivesse mos, ou seja, que desta maneira concretamente impossvel agir.Impossvel agir refletindo a cada vez, aplicando ao caso concreto afrmula do imperativo categrico. Seria querer comear, a cada vez, tudode novo, seria supor em si uma conscincia moral to pura e racional quenem existe, e seria reforar, na prtica, o individualismo. A outra crtica,complementar a esta, a de que no se pode ignorar a histria, as tradiesticas de um povo, etc., sem cair numa tica totalmente abstrata. Masparace tambm impossvel, hoje em dia, ocupar-se com a tica ignorandoas idias de Kant.Teremos de analisar mais calmamente, neste livro, as posies deScrates e de Kant, juntamente com outras posies clssicas econtemporneas. No 21
  • 19. obstante, talvez j se possa afirmar que, com nosso pequeno esboo sobreo que teria sido a vida tica grega antes de Scrates e sobre a posioextremamente racionalista de Kant, ficaram colocadas as duas margenspara o grande rio do pensamento tico, no meio do qual se encontrammuitas outras posies, algumas atentas principalmente aos costumesexteriores, que teriam de ser interiorizados, outras mais preocupadas com aatitude individual e subjetiva, que no entanto no deveriam esquecer asituao social, poltica, histrica, etc. Neste grande rio se movimentam pensadores do porte de Plato eAristteles, Santo Agostinho e Santo Toms de Aquino, Maquiavel eSpinoza, Hegel e Kierkegaard, Marx e Sartre, enfim, quase todos osgrandes pensadores que ns, ocidentais, conhecemos, assim como, nomeio deles, todos ns, que a cada dia enfrentamos problemas tericos eprticos, ticos ou morais. E que temos de resolv-los, corn ou sem ajuda,mas de preferncia com alguma ajuda daqueles que mais pensaram sobretais questes. Antes de continuarmos, porm, um alerta: h muito pensadorimportante, principalmente hoja em dia, que considera que o estudo datica a regio mais difcil, e aquela para a qual o pensamento, reflexivo ediscursivo, est atualmente menos preparado. Mas ento, o que fazer?Adotar, como 22
  • 20. propunha Descartes, uma moral provisria, para cuidar primeiro dasquestes tericas, resolvendo as questes prticas do jeito que der? Ou quem sabe seria melhor simplesmente ignorar as questes ticas,cuidando apenas dos assuntos tcnicos, tais como: arranjar dinheiro,arranjar-se na vida, progredir na vida profissional, gozar o que forpossvel, conseguir fora suficiente para dominar e no ser dominado. . .Ou quem sabe no seria melhor ainda simplesmente deixar-se levar pelosistema e pelos acontecimentos? Mas, neste caso, ns homens no estaramos abdicando, renunciandoao nosso anseio de liberdade? 23
  • 21. TICA GREGA ANTIGA Entre os anos 500 e 300 a.C., aproximadamente, ns encontramos operodo ureo do pensamento grego. um perodo importante no s paraos gregos, ou para os antigos, mas um perodo onde surgiram muitas idiase muitas definies e teorias que at hoje nos acompanham. No soapenas trs pensadores (Scrates, Plato e Aristteles) os responsveis poresta fabulosa concentrao de saber, e por esta incrvel anlise e reflexosobre o agir do homem, mas talvez valha a pena esquematizar rapidamentealgumas das idias dos dois ltimos, para ternos uma imagem de como osproblemas ticos eram formulados naqueles tempos. A reflexo grega neste campo surgiu como uma pesquisa sobre anatureza do bem moral, na busca de um princpio absoluto da conduta. Elaprocede do contexto religioso, onde podemos encontrar o cordo umbilicalde muitas 24
  • 22. idias ticas, tais como as duas formulaes mais conhecidas: "nada emexcesso" e "conhece-te a ti mesmo". O contexto em que tais idiasnasceram est ligado ao santurio de Delfos do deus Apolo. O grande sistematizador, entre os discpulos de Scrates, foi Plato(427-347 a.C.). Nos Dilogos que deixou escritos, ele parte da idia de quetodos os homens buscam a felicidade. A maioria das doutrinas gregascolocava, realmente, a busca da felicidade no centro das preocupaesticas. Mas no se deve pensar, da, que Plato pregava um egosmorasteiro. Pelo contrrio, ao pesquisar as noes de prazer, sabedoria prticae virtude, colocava-se sempre a grande questo: onda est o Sumo Bem? Plato parece acreditar numa vida depois da morte e por isso prefere oascetismo ao prazer terreno. No dilogo Repblica ele at condena a vidavoltada exclusivamente para os prazeres. Contando com a imortalidade daalma, sugerida no dilogo Fdon, e que coerente com uma preexistnciada alma, ele espera a felicidade principalmente para depois da morte. Os homens deveriam procurar, ento, durante esta vida, acontemplao das idias, e principalmente da idia mais importante, aidia do Bem. Plato descreve, de uma maneira literariamente muitosedutora, como h uma espcie de Eros filosfico que atrai o homempara este exerccio de 25
  • 23. contemplao. Como o astrnomo contempla os astros, o filsofocontempla, atravs da arte da dialtica, as idias mais altas, principalrnenteas do Ser e do Bem. O Ser imutvel, e tambm o Bem. A partir desteBem superior, o homem deve procurar descobrir uma escala da bens, que oajudem a chegar ao absoluto. O sbio no , ento, um cientista terico, mas um homem virtuoso ouqua busca a vida virtuosa e que assim consegue estabelecer, em sua vida, aordem, a harmonia e o equilbrio que todos desejam. O sbio faz penetrarem sua vida e em seu ser a harmonia que vem do hbito de submeter-se razo. Dialtica e virtude devem andar juntas, pois a dialtica o caminhoda contemplao das idias e a virtude esta adequao da vida pessoal sidias supremas. Mas a virtude tambm uma purificao, atravs da qual o homemaprende a desprender-se do corpo com tudo o que este tem de terreno e desensvel, e desprender-se do mundo do aqui e agora para contemplar omundo ideal, imutvel e eterno. A est o Sumo Bem, para Plato. Aprtica da virtude (aret) por isso a coisa mais preciosa para o homem. Avirtude a harmonia, a medida (mtron) e a proporo, e a harmoniaindividual e social assim uma imitao da ordem csmica. (Cosmos jsignifica ordem, ao contrrio de caos). O ideal buscado pelo homem virtuoso a imitao ou assimilaco deDeus: aderir ao divino. A plebe, naturalmente, considera o filsofo umlouco, 26
  • 24. por causa de sua hierarquia dos bens, invertida em relaco dela. Mas osbio exatamente aquele que busca assemelhar-se ao Deus, tanto quantolhe possvel humanamente. O dilogo das Leis afirma que "Deus amedida de todas as coisas". E qual seria ento a norma da virtude? aprpria idia do Bem, uma idia perfeita e subsistente. Nas pesquisas efetuadas dialeticamente nos diversos dilogos, Platovai organizando um quadro geral das diferentes virtudes. As principaisvirtudes so as seguintes:-- Justia (dike), a virtude geral, que ordena e harmoniza, e assim nosassemelha ao invisvel, divino, imortal e sabio;-- Prudncia ou sabedoria (frnesis ou sofa) a virtude prpria da almaracional, a racionalidade como o divino no homem: orientar-se para osbensdivinos. Esta virtude, que para Plato equivale vida filosfica como umamsica mais elevada, aquela que pe ordem, tambm, nos nossospensamentos;-- Fortaleza ou valor (andria) a que faz com que as paixes maisnobres predominem, e que o prazer se subordine ao dever;-- Temperana (sofrosine) a virtude da serenidade, equivalente aoautodomnio, harmonia individual. 27
  • 25. Assim, o que mais caractariza a tica platnica a idia do Sumo Bem,da vida divina, da equivalncia de contemplao filosfica e virtude, e davirtude como ordem a harmonia universal. A distncia entre as virtudesintelectuais e morais pequana, pois a vida prtica se assemelha muito prtica terica. Plato foi, alm de grande filsofo, tambm um grande poeta ouliterato. A maioria de seus escritos tem a forma de dilogos, que so lidoscom muito prazer e interesse intelectual e moral. J o seu discpuloAristteles, filsofo da mesma estatura de seu mestre, tem um outro estiloem seus escritos. Ele muito mais um professor do que um poeta. Muitosde seus escritos so fragmentos ou notas para exposies aos discpulos.Mas tem tambm livros unitrios. Aristteles (384-322 a.C.), alm de um grande pensador especulativoe profundo psiclogo, levava muito a srio (e mais do que Plato) aobservao emprica. Assim, enquanto Plato desenvolvia suaespeculao mais terica, Aristteles colecionava depoimentos sobre avida das pessoas e das diferentes cidades gregas. Isto no quer dizer queele fosse um empirista sem capacidade especulativa, mas mostra o seuesforo analtico e comparativo, quando ele se punha a comparar, porexemplo, mais de uma centena de constituies 28
  • 26. polticas de cidades gregas. Seus livros explicitamente sobre questes de tica so a tica aEudemo e a tica a Nicmaco, mas ele escreveu tambm uma MagnaMoral e um pequeno tratado sobre as virtudes e os vcios. Ele tambm parte da correlaco entre o Ser e o Bem. Mais do quePlato, porm, insiste sobre a variedade dos seres, e da conclui que osbens (no plural em Aristteles) tambm devem necessariamente variar.Pois para cada ser deve haver um bem, conforme a natureza ou a essnciado respectivo ser. De acordo com a respectiva natureza estar o seu bem,ou o que bom para ele. Cada substncia tem o seu ser e busca o seu bem:h um bem para o deus, um para o homem, um para a planta, etc. Quantomais complexo for o ser, mais complexo ser tambm o respectivo bem. Assim, a questo platnica do Sumo Bem d lugar, em Aristteles, pesquisa sobre os bens em concreto para o homem. neste sentido que podemos dizer que a tica aristotlica finalista eeudemonista, quer dizer, marcada pelos fins que devem ser alcanadospara que o homem atinja a felicidade (eudaimona). Mas em que consiste o bem ou a felicidade para o homem? Qual omaior dos bens? Ora, Aristteles no isola muito um bem supremo, poisele sabe que o homem, como um ser complexo, no precisa apenas domelhor dos bens, mas sim de vrios bens, de tipos diferentes, tais comoamizade, sade e 29
  • 27. at alguma riqueza. Sem um certo conjunto de tais bens, no h felicidadehumana. Mas claro que h uma certa escala de bens, pois os bens so devrias classes, e uns melhores do que outros. Quais os melhores bens? As virtudes, a fora, o poder, a riqueza, abeleza, a sade ou os prazeres sensveis? A resposta de Aristteles parte do fato de que o homem tem o seu serno viver, no sentir e na razo. Ora, esta ltima que caracterizaespecificamente o homem. Ele no poda apenas viver (e para isso osgregos consideravam fundamental uma boa respirao como base dasade), mas ele precisa viver racionalmente, isto , viver de acordo com arazo. A razo, para no se deixar ela mesma desordenar, precisa da virtude,da vida virtuosa. Qual seria, ento, a virtude mais alta, ainda que no anica necessria? O bem prprio do homem a vida terica ou teortica,dedicada ao estudo e contemplao, a vida da inteligncia. Convm lembrar aqui que afinal de contas esses grandes filsofosgregos viviam numa sociedade de classes, baseada no trabalho escravo, eque os filsofos em geral se dirigiam aristocracia, isto , queles quepodiam dedicar-se quase que exclusivamente vida do pensamento, livresque estavam do trabalho duro e cotidiano. (E convm lembrar, igualmente,que uma observao como esta acima no explica toda a grandeconstruo terica sobre a tica, de pensadores como Scrates, Plato eAristteles). 30
  • 28. No seria melhor ignorar as questes ticas e cuidar apenas dos assuntos tcnicos? 31
  • 29. Para Aristteles, o pensamento o elemento divino no homem e o bemmais precioso. Assim, quem sbio no carece de muitas outras coisas. Avida humana mais feliz a contemplativa, porque imita melhor a atividadedivina, mas como este ideal demasiado elevado para a maioria, precisoanalisar tambm as outras coisas de que o homem carece. Mesmo assim, a contemplao no , aqui., um saber pelo saber, mas antes um estudo das cincias (cincias teorticas, como a teologia e amatemtica, cincias prticas e poticas). Mas o objeto do estudo maiselevado o da teologia: o Deus. Na tica a Eudemo, o objetivo ou a finalidade da vida humana oculto e a contemplao do divino. Este o fim mais nobre e a nossa normamais segura de conduta. J na tica a Nicmaco aparecem mais as coisas relativas e tambmnecessrias, de modo que o autor busca igualmente as normas maisrelativas. Assim, por exemplo, o prazer no um bem absoluto, mastambm no um mal, pois ele acompanha as diferentes atividades,mesmo as intelectuais ou espirituais. No entanto, Aristteles insiste em que"os verdadeiros prazeres do homem so as aes conforme a virtude". A felicidade verdadeira conquistada pela virtude. As virtudes soento analisadas longa e detalhadamente. O ser do homem substnciacomposta: 32
  • 30. corpo material e alma espiritual. Como o corpo sujeito s paixes, a almadeve desenvolver hbitos bons, uma vez que a virtude sempre uma foraadquirida, um hbito, que no brota espontaneamente da natureza. Aristteles valoriza, ento, mais do que seu mestre, a vontade humana,a deliberao e o esforo um busca de bons hbitos. O homem precisaconverter suas melhores disposies naturais em hbitos, de acordo com arazo: virtudes intelectuais. Mas esta auto-educao supe um esforo voluntrio, de modo que avirtude provm mesmo da liberdade, que delibera e elege inteligentemente.Virtude uma espcie de segunda natureza, adquirida pela razo livre. Para concluir esta pequena amostra a respeito do pensamento tico dosgrandes tericos gregos, vale a pena citar um trecho da tica a Nicmaco,ondeAristteles mostra toda a lgica de seu raciocnio, aliada a uma agudaobservao psicolgica e a um bom senso acostumado a ver as coisascomoelas so, na prtica. Vejamos uma das tradues possveis da definio devirtude: " um hbito adquirido, voluntrio, deliberado, que consiste nojusto meio em ralao a ns, tal como o determinaria o bom juzo de umvaro prudente e sensato, julgando conforme a reta razo e a experincia". 33
  • 31. Que os exemplos resumidos de Plato e Aristteles nos bastem, emtermos de grandes teorias morais. Apenas como uma amostra. Umaamostra da profundidade e da seriedade da reflexo tica. Que muitomais do que isto. 34 TICA E RELIGIO Entre os gregos antigos, a discusso sobre o mundo e a harmoniacsmica produziu doutrinas prticas, que procuravam orientar a ao dosindivduos para uma vida voltada para o bem, a virtude e a harmonia coma natureza. Viver de acordo com a natureza no era uma questoexclusivamente ecolgica, mas tambm moral, isto , eles consideravamque devia haver uma lei moral no mundo, que permitisse ao homem vivere se realizar como homem, isto , de acordo com a sua natureza. A leimoral seria ento um aspecto da lei natural. Scrates, com sua preocupao moral, expressa no lema "conhece-te ati mesmo" (lema que no era terico, mas prtico, pois no buscava umconhecimento puro e sim uma sabedoria de vida), acentuou aespecificidade da moral frente cosmologia (estudo filosfico do mundo). 35
  • 32. A religio grega, como muitas outras religies antigas, era aindabastante naturalista, sendo os deuses geralmente quase apenaspersonificaes de foras naturais, como o raio, a fora, a inteligncia, oamor e at a guerra. Com a religio judaica, a questo se modifica umtanto. O Deus de Abrao, Isaac e Jac no se identifica tom as foras danatureza, estando assim acima de tudo o que h de natural. Em termos ticos ou morais, isto tem uma conseqncia profunda:quando o homem se pergunta como deve agir, no pode mais satisfazer-secom a resposta que manda agir de acordo com a natureza, mas deve adotaruma nova posio que manda agir de acordo com a vontade do Deuspessoal. Para que isto seja praticamente vivel, torna-se necessrioconhecer a vontade deste Deus pessoal, e a filosofia sente a necessidade deuma ajuda fundamental fora dela: os homens procuram a revelao deDeus. A revelao de Deus no uma exposio terica, mas toda elavoltada para a educao e o aperfeioamento do homem. O homem buscaser santo, como Deus no cu santo. Em relao religio da Abrao e Moiss, expressa nos livros doAntigo Testamento, os ensinamentos de Jesus Cristo so uma certacontinuao e um certo aperfeioamento. Ele no nega a lei antiga, mas arelativiza num mandamento renovado, o mandamento do amor. Este amor agora diferente 36
  • 33. do amor grego e mesmo do amor judaico aos seus, pois inclui o perdo emuitas outras coisas duras de ouvir. E principalmente um amor que vemde cima: Deus nos amou primeiro, por isso, na relao com os irmos (queso agora todos os homens, resumidos na categoria do prximo) cada umdeve procurar amar primeiro. A religio trouxe, sem dvida alguma, um grande progresso moral humanidade. A meta da vida moral foi colocada mais alto, numasantidade, sinnimo de um amor perfeito, e que deveria ser buscada,mesmo que fosse inatingvel. Mas no se vai negar, tambm, que osfanatismos religiosos ajudaram a obscurecer muitas vezes a mensagemtica profunda da liberdade, do amor, da fraternidade universal. A prpriareligio serviu de grande estmulo para os filsofos e moralistas,levantando novas questes, como a do relacionamento entre a natureza e aliberdade, ou a da fraternidade universal confrontada a uma solidariedademais restrita, grupal ou nacional, ou a da valorizao e relativizao doprazer, do egosmo, do sofrimento, etc. Finalmente, todos sabem que asinfluncias de uma certa viso religiosa, que no explicava bem o queentendia por carne (sinnimo de pecado), em muitas pocas foramresponsveis por um moralismo centrado nas questes do sexo.Quando, ento, certos religiosos criticam o pan-sexualismo de um Freud,por 37
  • 34. exemplo, muitas vezes se esquecem de que eles mesmos, em sua moral,fizeram tudo girar ao redor desta questo, e geralmente numa perspectivasectria que, mais do que crist, era platnica no mau sentido da palavra.Esta identificao da moral com a preocupao com o sexo invadiu,porm, at as cabeas de gente no ligada religio. Quando eu perguntei,certa vez, a um professor que se considerava marxista e que estivera naUnio Sovitica a respeito da moral dos russos aps a Revoluo, suaresposta foi toda voltada para as questes da sexualidade, enquanto eleesquecia de falar sobre as questes morais ligadas aos ideais defraternidade e aos problemas de propriedade, poder, violncia revo-lucionria etc. Na medida em que se convencionou chamar a Idade Mdia europia operodo cristo do Ocidente, o pensamento tico que conhecemos est,portanto, todo ele ligado religio, interpretao da Bblia e teotogia.Na Idade Moderna, que coincide com os ltimos quatro ou cinco sculos,apresentam-se ento duas tendncias: a busca da uma tica laica, racional(apenas), muitas vezes baseada numa lei natural ou numa estrutura(transcendental) da subjetividade humana, que se supe comum a todos oshomens, e, por outro lado, novas formas de sntese entre o pensamentotico-filosfico e a doutrina da Revelao (especialmente a crist").Pensadores como Kant e Sartre, por exemplo, tentam formular teoriasticas 38
  • 35. aceitveis pela pura razo. Pensadores como Hegel, Schelling,Kierkegaard e Gabriel Marcel, ou mesmo Martin Buber, discutem apenas amaneira de relacionar as doutrinas religiosas com a reflexo filosfica. Uma figura sui generis neste contexto, filsofo alemo LudwigFeuerbach (1804-1872), que tentou traduzir a verdade da religio,especialmente a crist, numa antropologia filosfica que estivesse aoalcance de todos os homens instrudos. Na metade do sculo XIX, ento,todos eram "feuerbachianos" (como diz Engels), e o prprio Marx assumiua perspectiva de Feuerbach, criticando-a, porm, por ser demasiadocontemplativa e esquecedora da prtica. Marx desenvolve, ento, umanova viso do mundo e da histria humana, que, num certo sentido,deveria substituir a religio. A moral revolucionria, que aparece emmuitos textos de Marx (e que foi desenvolvida principalmente pelosmarxistas do sculo atual), no deixa de ser, em muitos pontos,influenciada pelo pensamento cristo, com temas como converso,redeno, sacrifcio, martrio e espera do Reino que est sendo construdo. No de espantar, por isso, que pensadores cristos atuais busquemrecuperar nos textos da tradio marxista muitos pontos da tradio ticacrist, por mais que isto parea paradoxal. O marxismo , no sculo XX,uma grande tradio de preocupaes ticas, onde persistem elementosdo 39
  • 36. cristianismo em forma secularizada, o que no quer dizer que marxismoseja sinnimo de cristianismo, na medida em que este se move em outrascategorias, como f, revelao, paternidade divina e pecado, com apossibilidade do perdo. Ao lado desta tendncia moderna que busca formas de unir uma ticareligiosa e uma reflexo filosfica, desenvolvem-se no mundo moderno econtemporneo prticas e teorias que ignoram as contribuies da religio.Estas tendncias so as mais variadas e podemos no mximo esquematiz-las. H, como veremos mais adiante, a concepo determinista que ignora,por princpio, a liberdade humana como sendo uma iluso. H umaconcepo racionalista que procura deduzir da "natureza humana" (numaperspectiva naturalista, fisicalista ou materialista, ou numa perspectivatranscendental kantiana, que define a natureza humana como liberdade, e aconscincia humana como "legisladora universal") as formas corretas daao moral. Esta concepo, na sua linha kantiana, procura principalmenteformas de procedimento prtico que possam ser universalizveis, isto ,uma ao moralmente boa aquela que pode ser universalizvel, de talmodo que os princpios que eu sigo pudessem valer para todos, ou aomenos que eu pudesse querer que eles valessem para todos. O chamado "formalismo kantiano" no deixa de ter os seus encantos,pois 40
  • 37. ele procura basear-se quase que exclusivamente nas leis do pensamentos eda vontade, dando assim critrios prticos de serventia inegvel. Se eutomo hoje, por exemplo, a questo da tortura, posso me perguntar se seriapossvel desajar, ou melhor, querer, que tal procedimento fosse aplicadouniversalmente. Se no posso querer a universalizao da tortura, noposso aceitar a tortura tambm aqui e agora. Enfim, h outras tendncias bastante difundidas, como a doutilitarismo: bem o que traz vantagens para muitos (a da se deduziu atuma matemtica ou clculo moral). Esta tendncia aparece em muitasformulaes que podem ser definidas como pragmatismo: deixam-se delado as questes tericas de fundo, apelando-se para os resultados prticos,muitas vezes imediatos. Este pragmatismo parece estar bastante ligado aopensamento anglo-saxo, e se desenvolveu sobretudo nos pases de falainglesa. Prximo a este pragmatismo, h duas outras tendncias atuaisimportantes, para um estudo da tica, e que at certo ponto se completam.H uma prtica, especialmente desenvolvida nos pases de capitalismomais avanado, que busca a utilidade e a vantagem particular: bom o queajuda o meu progresso (econmico, principalmente) e o meu sucessopessoal no mundo (carreira, amizades teis, etc.). Est prxima, portanto,das formas gregas do hedonismo, ou busca do prazer terreno, pormmediada pelas 41
  • 38. condies que o progresso tcnico e o econmico proporcionaram aomundo atual. A outra linha atual, at certo ponto complementar, encontra-se maisentre os pensadoras do positivismo lgico, que ignoram muitas vezesaquelas questes fundamentais, que chamam de metafsicas ouespeculativas, e se dedicam apenas a pesquisar as formas da linguagemmoral, os tipos vlidos de formulaes ticas, a lgica e a sintaxe dosimperativos ticos e assim por diante. um estudo certamente excitante ebem feito, mas que leva muitas vezes o pensador a "se esquecer de simesmo", como diria Kierkegaard, a se esquecer de que ele um sujeitoexistente, que tem de decidir eticamente sobre suas aces, e que no podepassar a vida toda somente estudando a linguagem da tica, sem viver atica, isto , sem viver eticamente. E podemos encerrar este captulo ento com Kierkegaard. Estepensador religioso considerava que uma tica puramente humana, depoisdo cristianismo, no deixava de ser um retorno ao paganismo, no seio deuma cristandade no mais crist. A nica vantagem que haveria, talvez,para um tal esforo, seria, na perspectiva do homem de f, a obteno deuma linguagem comum, aceitvel tambm pelos homens que no possuema mesma f. O que, para Kierkegaard, era uma vantagem ainda duvidosa. 42
  • 39. OS IDEAIS TICOS Mas, afinal - perguntava-me um estudante -, qual o critrio damoralidade? Ele compreendia facilmente que a conscincia moral deveriaser ao menos uma espcie de critrio imediato. Agir moralmentesignificaria agir de acordo com a prpria conscincia. Mas, afora isto,agir como? Buscando o qu? Qual seria o ideal da vida tica? As respostas variam, como estamos vendo. Para os gregos, a ideal ticoestava ou na busca terica e prtica da idia do Bem, da qual as realidadesmundanas participariam de alguma maneira (Plato), ou estava nafelicidade, entendida como uma vida bem ordenada, uma vida virtuosa,onde as capacidades superiores do homem tivessem a preferncia, e asdemais capacidades no fossem, afinal, desprezadas, na medida em que ohomem, ser sinttico e composto, necessitava de muitas coisas(Aristteles). 43
  • 40. Para outros gregos, o ideal tico estava no viver de acordo com anatureza, em harmonia csmica. (Esta idia, modificada, foi depoisadotada por telogos cristos, no seguinte sentido: viver de acordo com anatureza seria o mesmo que viver da acordo com as leis que Deus nos deuatravs da natureza.) Os esticos insistiram mais nesta vida bem natural. Jos epicuristas afirmavam que a vida devia ser voltada para o prazer: para osentir-se bem. Tudo o que d prazer bom. Ora, como certos prazeres emdemasia fazem mal, acabam por produzir desprazer, uma certa economiados prazeres, uma certa sabedoria e um certo refinamento, at uma certamoderao ou temperana eram exigncias da prpria vida de prazer. No cristianismo, os ideais ticos sa identificaram com os religiosos. Ohomem viveria para conhecer, amar e servir a Deus, diretamente e em seusirmos. O lema socrtico do "conhece-te a ti mesmo" volta tona, emSanto Agostinho, que agora ensina que "Deus nos mais ntimo que onosso prprio ntimo". O ideal tico o de uma vida espiritual, isto , doacordo com o esprito, vida de amor e fraternidade. Historicamente, porm,muitas formas dualistas, que separavam radicalmente, por exemplo, o cue a terra, esta vida e a outra, o amor a Deus e o amor aos homens,acabaram dificultando a realizao dos ideais ticos cristos. Nem sempreos cristos estiveram altura da afirmao do seu Mestre: "Nistoconhecero que sois 44
  • 41. meus discpulos: se vos amardes uns aos outros". Com o Renascimento e o Iluminismo, ou seja, aproximadamente entreos sculos XV e XVIII, a burguesia que comeava a crescer e a impor-se,em busca de uma hegemonia, acentuou outros apectos da tica: o idealseria viver de acordo com a prpria liberdade pessoal, e em termos sociaiso grande lema foi o dos franceses: liberdade, igualdade, fraternidade. (Hquem afirme que a Revoluo Francesa buscou concretizar apenas aliberdade, a Russa, a igualdade e a Africana, ou a do Terceiro Mundo, afraternidade.) O grande pensador da burguesia e do Iluminismo, Kant,identificou bastante, como temos visto, o ideal tico com o ideal daautonomia individual. O homem racional, autnomo, autodeterminado,aquele que age segundo a razo e a liberdade, eis o critrio da moralidade. Se Kant e a Revoluco Francesa acentuaram de maneira talvezdemasiado abstrata a liberdade, o ideal tico para Hegel estava numa vidalivre dentro de um Estado livre, um Estado de direito, que preservasse osdireitos dos homens a lhes cobrasse seus deveres, onde a conscinciamoral e as leis do direito no estivessem nem separadas e nem emcontradio. A profunda perspectiva poltica de Plato e Aristtelestransparece de novo, portanto, em Hegel. Mas parece que a realidadehistrica no acompanhou muitas de suas teorias. Os valores espirituais,ticos e religiosos foram se tornando, nestes 45
  • 42. ltimos duzentos anos, sempre mais assunto particular, e os assuntos geraisforam sendo dominados pelo discurso da ideologia. No sculo XX, os pensadores da existncia, em suas posies muitodiversas, insistiram todos sobre a liberdade como um ideal tico, emtermos que privilegiavam o aspecto pessoal ou personalista da tica:autenticidade, opo, resoluteza, cuidado, etc. J o pensamento social e dialtico buscou como ideal tico, na medidaem que aqui ainda se usa esta expresso, a idia de uma vida social maisjusta, com a superao das injustias econmicas mais gritantes. A tica sevolta sobre as relaes sociais, em primeiro lugar, esquece o cu e sepreocupa com a terra, procurando, de alguma maneira, apressar aconstruo de um mundo mais humano, onde se acentua tradicionalmenteo aspecto de uma justia econmica, embora esta no seja a nicacaracterstica deste paraso buscado. Assim como em Maquiavel e Hegel a razo de Estado parecia infiltrar-se na reflexo tica como elemento complicador, tambm no pensamentorevolucionrio de esquerda surgem alguns problemas semelhantes. Arelao entre os meios e os fins no parece um problema resolvido.Tambm no se entende muito bem que uma gerao deva ser sacrificadahoje pelas geraes futuras, e h quem diga que a justia futura naocompensar jamais a injustia atual. E assim por diante. 46
  • 43. Finalmente, no h como negar que exatamente a maioria dos pasesricos atuais se caractariza por uma tica que em muitos casos lembra abusca grega do prazer, porm, nem sempre com moderao. O prazer,depois do sculo XIX, poca da grande acumulao capitalista, reduziu-sebastante, de fato, posse material de bens, ou propriedade do capital. Emnome da defesa do capital, ou, mais modestamente, em nome da defesa dapropriedade particular, muito sangue j foi derramado e muita injustiacometida. O grande argumento do pensamento de esquerda que no foi aesquerda quem inventou a luta de classe. E que a propriedade um direitobsico para todos. A reflexo tico-social do sculo XX trouxe, alm disso, uma outraobservao importante: na massificao atual, a maioria hoje talvez j nose comporte mais eticamente, pois no vive imoral, mas amoralmente. Osmeios de comunicao de massa, as ideologias, os aparatos econmicos edo Estado, j no permitam mais a existncia de sujeitos livres, decidados conscientes e participantes, do conscincias com capacidadejulgadora. Seria o fim do indivduo? 47
  • 44. A LIBERDADE Falar de tica significa falar da liberdade. Num primeiro momento, atica nos lembra as normas e a responsabilidade. Mas no tem sentido falarde norma ou de responsabilidade se a gente no parte da suposio de queo homem realmente livre, ou pode s-lo. Pois a norma nos diz como devemos agir. E se devemos agir de talmodo, porque (ao menos teoricamente) tambm podemos no agir destemodo. Isto : se devemos obedecer, porque podemos desobedecer,somos capazes de desobedecer norma ou ao preceito. Tambm no tem sentido falar de responsabilidade, palavra que derivade resposta, se o condicionamento ou o determinismo to completo que aresposta aparece como mecnica ou automtica. 48
  • 45. Todas as doutrinas ticas se articulam entre dois extremos que tornama tica impossvel. Se algum afirma que o determinismo total, ento no h mais tica.Pois a tica se refere s aes humanas, e se elas so totalmenledeterminadas de fora para dentro, nao h espao para a liberdade, comoautodeterminao, e, conseqentemente, no h espao para a tica. H muitas formas de determinismo. Por exemplo: o fatalismo: tudo oque acontece, tinha de acontecer. A fatalidade o que rege, por exemplo,as tragdias gregas. dipo afastado ou se afasta do seu lugar duas vezes,para fugir ao destino fatal. Mas, exatamante ao se afastar da casa daquelesque ele cr serem seus pais, cai nas malhas do destino, matando seu paiverdadeiro e casando com sua me. Os orientais diriam: "estava escrito".Se a fatalidade, ou o destino, rege todos os nossos passos, no temosliberdade, e nem temos, propriamente, presente ou futuro. Tudo o que vaiacontecer j estava decidido: vivemos assim num eterno passado. O determinismo pode aparecer igualmente com a doutrina de um Deusdominador. Tudo o que fazemos decidido por ele, de modo que notemosliberdade. Mas o determinismo pode aparecer tambm como uma doutrina de ummaterialismo estrito: a natureza, ou a lei natural, rege todos os nossos atos.Os condicionamentos materiais (como os econmicos, por exemplo)decidem 49
  • 46. por ns. Esta posio extremada tambm acaba com a tita. E mesmoMarx, que acreditava numa liberdade humana, ao menos como poderlibertador, ao descrever situaes nas quais o capital (este deus dasociedade moderna) dominaria totalmente o homem trabalhador,denunciava uma situao de escravido total, onde o homem realmenteno teria mais liberdade. Nesta situao, a prpria tica no teria maissentido. Ou teria, no mximo, o mandamento tico de revolucionar talsociedade. Quando uma objetividade total domina o sujeito, no h maisespao para a liberdade e conseqen-temente nem para a tica. O extremo oposto ao do determinismo, porm, nega igualmente a tica.Pois o outro extremo est representado por uma concepo que acreditanuma liberdade total e absolutamente incondicionada. Os filsofosesticos, gregos ou romanos, pensavam que "o sbio livre sempre,mesmo que esteja aprisionado e acorrentado". Ora, esta liberdade seresumiria possibilidade de pensar o que quisesse. Mas liberdade parapensar, sem poder agir de acordo com os pensamentos, isto , sem poderagir livremente, no liberdade humana. Assim como tambm no o uma liberdade absoluta e abstrata, sem condicionamentos, sem normas,sem necessidade. O pensamento estico, que afirmava apenas estaliberdade abstrata, penetrou no cristianismo, que assim tambm pecoupor este exagero, deixando que a 50
  • 47. liberdade real se resumisse a algo de puramente interior. No comeo do sculo passado, alguns pensadores do idealismotambm acentuaram de tal maneira o poder da vontade, acima de todos oscondicio-namentos naturais e materiais, sociais, econmicos e psicolgicosque, no final, restava a pergunta: esta liberdade ainda seria a liberdade dohomem, um ser que s pode ser compreendido como uma estruturasinttica, e no simples, um ser que no puro esprito, pois tambm (outem) corpo, um ser que no puramente subjetivo, mas tambm umobjeto? O homem um esprito puro, ou um ser afinal de contas corporal econdicionado, um ser cultural com bastante dependncia das condiesconcretas das formas culturais de seu tempo e de seu lugar? Assim, os chamados idealistas subjetivos acabam pressupondo umsujeito puramente racional, infinito, acima e livre do aqui e agora, umesprito to poderoso que no se identifica mais com o homem real econcreto. Tambm contra esses pensadores, vale uma frase famosa deAdorno (1903-1969), pensador da chamada "Escola de Frankfurt":"Liberdade da economia nada mais do que a liberdade econmica", ou,mais simplesmente: s no depende do dinheiro quem o tem de sobra. Pois bem no meio da poca dos diversos idealismos que floresceramnas terras alems, em 1809, o filsofo F. W. J. Schelling (1775-1854)escreveu um 51
  • 48. pequeno mas profundo tratado intitulado Investigaes filosficas sobre aessncia da liberdade humana e assuntos conexos. Esta pequena obrasitua-se entre os escritos de Kant e Fichte, de um lado, e os de Hegel, deoutro lado. E a palavra-chave, no caso, a expresso "liberdade humana".Por insistir em investigar uma liberdade que fosse realmente humana, nemmais e nem menos, Schelling a at antecipou crticas a escritos posterioresde Hegel. Pois a questo da liberdade, em Hegel, muito discutida, e com razo,devido profundidade com que este filsofo trata o tema, realmentecentral para o seu pensamento. Na perspectiva de Schelling, teramos dedizer que a liberdade que Hegel expe to infinita a absoluta, que j nocorresponde mais realidade humana, considerando-se que o homem umesprito condicionado e finito. Mas se Hegel (1770-1831) em certas passagens expe a histria deuma liberdade que seria sobre-humana, no se pode negar, principalmentehoje, a importncia de seus escritos para esta questo. Em primeiro lugar,porque ele procura expor uma histria filosfica da liberdade. Assim eleexplica, por exemplo, porque que num Estado em que apenas um homem livre ningum livre, nem mesmo o tirano. E Hegel mostra qua a liberdade no pode ser apenas exterior, nemapenas interior, e que ela se desenvolve na conscincia e nas estruturas. Aliberdade 52
  • 49. aumenta com a conscincia que se tem dela, embora a simplesconscincia da liberdade ainda no seja a liberdade efetiva, isto , real. E esta histria prossegue, mostrando como o homem e a humanidadese constroem, na busca de uma liberdade sempre mais real. Nos gregos, asnormas exteriores da polis no respeitavam a liberdade individual. Com ocristianismo teria surgido a conscincia profunda da liberdade e do valorinfinito de cada indivduo. O ponto mximo desta tendncia trazida pelocristianismo estaria no pensamento moral de Kant, que acentua tanto aliberdade moral, que at deixa na sombra o aspecto exterior da legalidade,isto , da organizao em leis da sociedade. O que Hegel procurou, desde sua juventude, nos tempos da RevoluoFrancesa, foi a formulao de uma sntese da poltica grega e da moralcrist, que deve aparecer na estruturao de um Estado de direito,moderno e constitucional, onde cada indivduo fosse realmente livre,interior e exteriormente. Num Estado de direito, o exterior, ou seja,as leis e as organizaes sociais, garante a liberdade, ou melhor, asliberdades individuais e o bem comum. Pois no basta que eu me sintalivre, preciso que eu me saiba realmente livre, num Estado organizadoque garanta a liberdade de todos e de cada um. Esta tentativa de sntese brota como uma necessidade aps as 53
  • 50. experincias histricas da Revoluo Francesa. Segundo Hegel, o erroocorrido na fase do Terror, com seu libertarismo acompanhado pelaguilhotina, teria sido a procura de uma liberdade puramente abstrata etotal. O que faltou, portanto, foi a percepo de que a liberdade precisava"organizar-se na sociedade", "dar-se existncia", ou organizar a sociedadede acordo com a sua idia. Uma liberdade que se d existncia concretaaparece como um Estado, que seria a realizao da liberdade de todos,concretizada em instituies sociais e polticas. Hegel atingiu, com seu pensamento, um estgio que no pode mais serignorado, mesmo que critiquemos alguns aspectos de sua teoria. Mesmoassim, as crticas so fortes. Criticando a teoria do Estado de Hegel, Karl Marx (1818-1883) dirque o Estado nao , de fato, o que o mestre Hegel gostaria que ele fosse,isto , a instncia do universal, instncia preocupada com a realizao dobem comum e com a harmonizao dos interesses contrrios da sociedadecivil burguesa. O Estado seria, de fato, um instrumento a mais de poderpara uma das classes em conflito na sociedade burguesa. No seria ouniversal harmonizador, mas o particular dominador, seria um instrumentoconquistado por uma classe. J os filsofos de inspirao kantiana criticam a teoria hegeliana doEstado por um outro lado: a estaria instituda uma tica baseada nona 54
  • 51. autonomia, mas na heteronomia, isto , o homem, ao pretender agirmoralmente segundo Hegel, acabaria guiando-se no por sua conscinciamoral autnoma, e sim, em ltima instncia, por "razes de Estado". Finalmente, no campo da crtica a Hagel, h os pensadores daexistncia, como Kierkegaard, no sculo passado, e Jaspers, Heidegger,Merleau-Ponty e Sartre, neste sculo. Eles insistem, de diferentesmaneiras, sobre a crtica de que Hegel teria esquecido a dimensopropriamente humana e individual da liberdade. O sistema de Hegel, quacoloca tudo num processo impressionante, acabaria menosprezando asingularidade da instncia individual, afirmada apenas verbalmente, masesquecida de fato. Relativizando a instncia individual, baseada naconscincia moral, o pensamento hegeliano seria, no fundo, amoral. Dito de outra maneira, esta crtica soaria assim: quando um processosupera o individual, esvazia-se a dimenso tica. Ao que Hegelresponderia: supera-se dialeticamente a moral, para entrar no terrenoslido e real da vida tica (Sittlichkeit), concretizada em instituies(supra-individuais) como a famlia, a sociedade civil e o Estado,dimenses que no podem ser ignoradas por nenhuma tica que pretendaser concreta. Um dos pontos mais interessantes da filosofia atual a pesquisa dospontos de aproximao entre os marxistas crticos ( como oschamados 55
  • 52. frankfurtianos) com os pensadores da existncia, na questo da crtica doEstado totalitrio e autoritrio do sculo XX. No por acaso que, ao falarmos de liberdade, viemos parar naquesto do Estado moderno. Mas convm agora retomar a distino inicialdos dois tipos de negao da liberdade: o determinismo absoluto e olibertarismo absoluto. Dizamos que a tica se movimenta entre estes doisextremos, igualmente falsos. A tica se preocupa, podemos diz-lo agora, com as formas humanasde resolver as contradies entre necessidade e possibilidade, entre tempoe eternidade, entre o individual e o social, entre o econmico e o moral,entre o corporal e o psquico, entre o natural e o cultural e entre ainteligncia e a vontade. Essas contradies no so todas do mesmo tipo,mas brotam do fato de que o homem um ser sinttico, ou, dito maisexatamante, o homem no o que apenas , pois ele precisa tornar-se umhomem, realizando em sua vida a sntese das contradies que oconstituem inicialmente. Antes de encerrar este pequeno captulo sobre a liberdade, questocentral para qualquer estudo de tica, seria til destacar ainda duascontribuies 56
  • 53. importantes neste campo, igualmente do sculo passado, de grandeinfluncia sobre o atual: uma de Marx, outra de Kierkegaard. K. Marx (1818-1883) interpretou a histria da humanidade como ahistoria de uma luta constante com a natureza. A ao humana se defineento como trabalho, como tcnica. Tentando dominar a natureza, pelotrabalho, para humaniz-la, o homem encontra sempre a resistncia domaterial, mas, ao tantar transformar a matria ao redor dele, ele tambm setransforma: ao trabalhar, ele se faz trabalhador, se especializa, se adaptaaos segredos do material, se produz. Marx est longe, portanto, doidealismo subjetivo com os sonhos de liberdade incondicionada. Pelocontrrio, a liberdade, como possibilidade humana, est semprecondicionada pelas possibilidades tcnicas e pelas formaes econmico-sociais. Mas num aspecto Marx se mostra tambm condicionado pelo seutempo. Num aspecto ele ingnuo como quase todos os pensadores dosculo XIX: ele aceita tranqilamente que a natureza "deva ser dominada",s no aceitando "a dominao do homem pelo homem". Ora, osfrankfurtianos hoje reconhecem que havia a uma contradio, pois, afinalde contas, cada homem tambm um pedao da naturaza, de modo queesta ltima dominao decorre naturalmente da aceitao sem restries daprimeira. As questes ticas da ecologia comeam a corrigir certos ideaisda economia. 57
  • 54. Marx tenta seguir a linha de Kant, que afirmava que o homem deve sersempre tratado como um fim, e nunca como um meio. Mas o prprio Kantno via que o homem, sendo tambm um ser da natureza, se coloca elemesmo numa posio de meio, por exemplo, quando pede um emprego eaceita um trabalho. Mas, ao contrrio de Kant, Marx desenvolve, por outrolado, com total insistncia o aspecto tcnico do agir humano(transformao da natureza pelo trabalho), que deixa bastante na sombra oaspecto propriamente moral. Hoje em dia, pensadores inspirados por Marx, mas que conhecem bemtoda a tradio alem, preferem falar, como J. Habermas, de duas dife-rentes dimenses do agir humano. Alm da atividade terica, o homemteria no s uma atividade tcnica, representada pelo trabalho produtivo,mas tambm uma atividade propriamente prtica (no sentido grego, eportanto tica), representada pelo amor, por ideais de comunicao e porvalores como a fraternidade entre os homens. Assim, o problema docapitalismo, por exemplo, teria de ser reestudado, para vermos como apredomina a dimenso tcnica sobre a dimenso tica, e para descobrirmosuma alternativa realmente diferente. S. Kierkegaard (1813-1855), pensador dinamarqus e grandeadmirador dos gregos, especialmente de Scrates, o responsvel pelaoutra grande contribuio para as pesquisas no terreno da tica. 58
  • 55. Kierkegaard relaciona a angstia com a experincia humana de ser livre, de poder optar e de ter mesmo que optar. 59
  • 56. Confrontando o pensamento grego antigo com o cristo, Kierkegaardpercebeu que para os gregos o pecado seria apenas ignorncia. ParaScrates e Plato, diz ele, o problema tico era, no fundo, um problema dateoria: a nica coisa importante para o homem seria "conhecer o bem",porque da se seguiria necessariamente um "agir bem". Os gregos nocompreendiam, ento, que se pudesse fazer o mal, conhecendo o bem; demodo que o homem mau seria sempre (apenas) um ignorante, que poderiae deveria ser curado pela filosofia. Ora, Kierkegaard insiste, conhecedor que do pensamento cristo emsuas fontes (por exemplo, So Paulo), que o homem pode conhecar o beme preferir o mal, e a liberdade, quer dizer, tambm a tica, estariaexatamente nesta zona da problemas. Neste caso, a liberdade no seria,absolutamente, sinnimo de conhecimento filosfico (terico) do bem, oudo processo dialtico do bem (ou da liberdade), do qual seguirianecessariamente a prtica do bem. No, a liberdade deve consistir antes naopo voluntria pelo bem, consciente da possibilidade de preferir o mal. Em seu livro de 1844 dedicado questo da liberdade, O Conceito deAngstia, Kierkegaard descreve a angstia como a experinciapropriamente humana do ser livre, experincia de poder realmente optar eter mesmo de optar. Este pensador dinamarqus descreve, como outrospsiclogos profundos posteriores, no s a angstia que o homem sentediante do mal, 60
  • 57. mas tambm a que sente diante do bem, quando preferiu o mal. A angstia o reflexo psicolgico da conscincia da liberdade. Aquiloque totalmente necessrio no poda angustiar. O que j real, enquantotal, no angustia tambm. O que angustia a possibilidade. Ou o que j real, mas que aparece de novo como uma possibilidade. Neste contexto, posteriormente explorado pelos pensadores daexistcia, o esprito realmente humano (e no o esprito absoluto) aparececomo uma tarefa e um poder de auto-sintetizao, de auto-realizao,sendo que o instante da deciso se mostra como uma sintetizao entrenecessidade e possibilidade, ou, se quisermos, de aspectos necessrios,dados, e de possibilidades abertas. E por isso diz Kierkegaard que opresente deve ser compreendido como o instante da deciso, sntese depassado e de futuro. 61
  • 58. COMPORTAMENTO MORAL: O BEM E O MAL Kierkegaard dizia, em seu livro O Conceito de Angstia, que a ticagrega era, no fundo, apenas uma esttica. Isto significaria dizer que anorma grega de buscar o belo e bom se resumiria, no fundo, busca dabeleza, do prazer, de tudo o que era agradvel. E explicaria tambm umpouco a dificuldade que eles tiveram frente ao cristianismo, onde a mortena cruz no era bela, e onde o Sermo da Montanha no era racional. De maneira semelhante se poderia dizer que a tica medieval, pelomenos na cristandade, era, no fundo, um comportamento religioso, e notico, no sentido restrito. Pois o comportamento era orientado pelosmandamentos divinos, pela autoridade religiosa e continha, neste sentido,uma certa exterioridade em relao conscincia moral dos indivduos.Com isso no se 62
  • 59. quer negar que um filsofo e telogo como Toms de Aquino, porexemplo, desse uma importncia fundamental conscincia moral. E o queseria esta conscincia moral? Aquela voz interior que nos diz que devemosfazer, em todas as ocasies, o bem e evitar o mal. Mas, como j vimos em outros momentos, na prpria Idade Mdiaexistiam paralelamente vrios cdigos de tica, como o dos cavaleiros eprncipes, o dos bispos locais, o da Igreja de Roma e o dos seguidores deMaom. A histria da tica dos cavaleiros est sendo escrita atualmente.Falta agora escrever a respeito da tica na perspectiva das mulheres e dosservos. Com o Renascimento e a Idade Moderna, junto com a imprensa, a ore-estudo do mundo antigo, a difuso da cultura (enquanto na Idade Mdiaquase todos os letrados ou simplesmente alfabetizados eram clrigos), oenriquecimento de urna nova classe a burguesia o fortalecimento dosEstados nacionais, surgem, naturalmente, novos estudos de moral, tantosobre os aspectos individuais quanto sobre os sociais e estatais. nessafase que surgem as grandes obras de Maquiavel, Rousseau, Spinoza eKant. O que a tica agora desenvolve principalmente a preocupao com aautonomia moral do indivduo. Este indivduo procura agir de acordo coma sua razo natural. O mundo mediaval (pintado magistralmente porUmberto 63
  • 60. Eco em O Nome da Rosa), baseado na autoridade da "palavra divinarevelada", j est longe. Os homens querem fundamentar o seu agir nanatureza. Assim temos o "direito natural", que contm uma idiarevolucionria em relao ao "direito divino dos reis", do regime antigo.Assim temos Rousseau (1712-1778), com o ideal de uma vida melhorgraas ao retorno s condies naturais, anteriores civilizao. E assimtemos Kant, que busca descobrir em cada homem (e neste sentido antiaristocrata e burgus) uma natureza fundamentalmente igual, pormnatureza livre. O agir da acordo com a nossa natureza, em Kant, portanto bemdiferente dos ideais aparentemente paralelos dos gregos (esticos e outros),dos medievais e de um Rousseau. Para os gregos, isto significava umacerta harmonia passiva com o cosmos. Para o medieval, significava umaobedincia pessoal ao Criador da natureza. Para Rousseau significava umagir de forma mais primitiva. Mas para Kant, a natureza humana umanatureza racional, o que equivale a dizer que a natureza nos fez livres, mascom isso no nos disse o que fazer, concretamente. Sendo o homem um sernatural, mas naturalmente livre, isto , destinado pela natureza liberdade,ele deve desenvolver esta liberdade atravs da mediao de sua capacidaderacional. Mas se a natureza nos quer livres e no nos diz como devemos agir,ento precisamos consultar a nossa conscincia individual. Ora, parano carmos 64
  • 61. num subjetivismo irracional, pois arbitrrio, no-universal, temos de suporque todos os homens so estruturalmente iguais. Cada indivduo, ao agirde acordo com sua conscincia ilustrada, educada da melhor maneirapossvel, ao agir refletidamente como legislador universal, age de umamaneira universal, embora subjetiva, pois as decises que toma soaquelas que deveriam ser vlidas e vigentes para todos os indivduosconscientes, racionais e livres. Completando a obra do pensamento moderno, Hegel consideroudemasiado abstrata a posio kantiana, lembrando que seu igualitarismopostulado no levava realmente em conta as tradies e os valores, o modode ver de cada povo; ignorava, portanto, as instituies histricas concretase no chegava a uma tica de valor histrico. Hegel liga, ento, como jvimos, a tica histria e poltica, na medida em que o agir tico dohomem precisa concretizar-se dentro de uma determinada sociedadepoltica e de um momento histrico varivel, dentro dos quais a liberdadese daria uma existncia concreta, organizando-se num Estado. Talvez pudssemos agora perguntar: se a tica grega era uma esttica,e a tica medieval crist uma atitude religiosa, no se deveria dizer que atica hegeliana uma poltica? Talvez sim, mas tambm verdade queprovavelmente Hegel no consideraria esta afirmao, absolutamente,como 65
  • 62. uma crtica. Todo agir poltico, inclusive e principalmente o agirtico. Finalmente, em termos de comparaes histricas, o caso de lembrarque Marx, relacionando todo comportamento humano economia, eacentuando as relaes econmicas que sempre interferem sobre o agirtico, abriu novas perspectivas, mas tambm novo problema. Como sabero que o tico e o que o econmico, em um dado comportamentoconcreto? Na segunda metade do sculo atual, a questo do comportamento ticose modificou mais uma vez. As atenes se voltaram principalmente para aquesto do discurso, mas isto de duas maneiras mais ou menosindependentes. Por um lado, e ainda por influncia do pensamento deesquerda, as reflexes ticas passaram a analisar os discursos com vistas auma crtica da ideologia. Por outro lado, filsofos de inspirao anglo-saxnica passaram a ocupar-se principalmente com uma crtica dalinguagem, dentro da qual se desenvolve tambm a crtica ou anlise dalinguagem tica. A crtica da ideologia busca descobrir, por trs dos discursos sobre asaes humanas, individuais ou grupais, os (verdadeiros) interesses reais,materiais, econmicos ou de dominao poltica. Por trs dos apregoadosinteresses ticos e universais, descobrir a hipocrisia e revelar o cinismo dosinteresses econmicos, polticos e particulares. Esta crtica da ideologiatem ajudado inclusive a reescrever a histria da tica. 66
  • 63. A anlise da linguagem, dentro principalmente das diversas linhas dafilosofia analtica, tem os mritos do rigor formal, quando se concentra naanlise das formulaes lingsticas atravs das quais os homens definemou justificam o seu agir. extremamente interessante, por exemplo, verum autor como E. Tugendhat demonstrar que a afirmao "eu te amo" notem sentido, logicamente, uma vez que o sentido desta proposio s seencontraria, ou melhor, s seria encontrado pela segunda pessoa naobservao dos atos empricos da primeira. E no deixa de ser instrutivoler, por exemplo, como Moritz Schlick (1882-1936), membro do Crculode Viena e grande inspirador de muitos filsofos atuais, analisa o queseriam as aes boas: "Boas aes so aquelas que se exigem de ns. . ." Por mais que variem os enfoques filosficos ou mesmo as condieshistricas, algumas noes, ainda que bastante abstratas, permanecemfirmes e consistentes na tica. Uma delas a questo da distino entre obem e o mal. Agir eticamente agir de acordo com o bem. A maneiracomo se definir o que seja este bem, um segundo problema, mas aopo entre o bem e o mal, distino levantada j h alguns milnios,parece continuar vlida. 67
  • 64. Um dos pseudnimos de Kierkegaard, definido exatamente corno "otico", afirmava, por isso: "meu dilema no significa, em primeiro lugar,que se escolha entre o bem e o mal; ele designa a escolha pela qual seexclui ou se escolhe o bem e o mal". Neste sentido, poderamos continuar,dizendo que uma pessoa tica aquela que age sempre a partir daalternativa bem ou mal, isto , aquela que resolveu pautar seucomportamento por uma tal opo, uma tal disjuno. E quem no vivedessa maneira, optando sempre, no vive eticamente. Numa apresentao da moral tomista, encontramos a seguintedefinio. "A moral uma cincia prtica, cujo objeto o estudo e adireo dos atos humanos em ordem a conseguir o ltimo fim, ou seja, aperfeio integral do homem, no que consiste a felicidade. Os atoshumanos so particulares, e assim, enquanto cincia prtica, a moral deveatender e descer ao particular" (Fraile, Historia de la Filosofa, BAC). Ora,os homens discutiro sempre sobre os atos particulares, isto , as aesconcretas de cada um. O julgamento concreto de cada ao exigeexatamente todos os pressupostos ticos. J se discutir menos sobre aquesto da busca da felicidade, e se discutir menos sobre a relao entre oagir tico e a perfeio do homem enquanto homem. Kierkegaard criticava, no sculo passado, a especulao idealista,porque, segundo ele, ela distraa o sujeito, com grandes apresentaeshistricas, 68
  • 65. fazendo com que ele se esquecesse que tinha de agir, e que tinha deescolher entre o bem e o mal. O perigo desta distrao talvez venha, nosculo XX, daquelas teorias que insistem sobre a anlise formal dodiscurso, e que muitas vezes parecem esquecer de que, fundamentalmente,a tica uma cincia prtica, que trata, portanto, de uma questo prtica,da ao, e no apenas do discurso. Mas parece que de resto os homens do sculo XX esto maisconscientes de que eles no so espectadores, e sim atores, que no estona platia, e sim no palco, como diziam os pensadores da existncia. Aquesto atual principalmente saber se, mesmo sabendo isto, os homensde hoje ainda se sentem em condies de agir individualmente, isto , agirmoralmente. A massificao, a indstria cultural, a ditadura dos meios decomunicao e mesmo as ditaduras polticas so fenmenos que tm de seranalisados tambm nesta perspectiva, para sabermos at que ponto ohomem de hoje ainda pode escolher entre o bem e o mal. Adorno, em sua anlise do fetichismo da msica coloca a questo:nosso mundo individualista no estaria acabando exatamente com aindividualidade, estrutura bsica de um agir moral? 69
  • 66. A TICA HOJE Logo no incio de seu difcil livro Minima Moralia, Theodor Adorno(1903-l969) chama a ateno para o fato de que hoje a tica foi reduzida aalgo de privado. J o jovem Marx, no incio dos anos 40 do sculopassado, observava o mesmo a respeito da religio. Ora, nos tempos dagrande filosofia, a justia e todas as demais virtudes ticas referiam-se aouniversal (no caso, ao povo ou polis), eram virtudes polticas, sociais.Numa formulao de grande filosofia, poderamos dizer que o lemamximo da tica o bem comum. E se hoje a tica ficou reduzida aoparticular, ao privado, isto um mau sinal. Um mrito definitivo do pensamento de Kant ter colocado aconscincia moral do indivduo no centro de toda a preocupao moral.Afinal de contas, o dever tico apela sempre para o indivduo, ainda queeste 70
  • 67. nunca possa ser considerado uma espcie de Robinson Cruso, como sevivesse sozinho no mundo. Procurando superar o ponto de vista kantiano, que chama de moralista,Hegel insistiu numa outra esfera, que chamou de esfera da eticidade ouda vida tica. Nesta esfera, a liberdade se realiza eticamente dentro dasinstituies histricas e sociais, tais como a famlia, a sociedade civil e oEstado. Hegel no teme afirmar que o Estado a realidade efetiva daidia tica. No h dvidas que a exposio de Hegel tem pelo menos omrito de localizar onde se encontram os problemas ticos. Assim, hoje em dia, os grandes problemas ticos se encontram nestestrs momentos da eticidade (famlia, sociedade civil e Estado), e uma ticaconcreta no pode ignor-los. 1) Em relao famlia, hoje se colocam de maneia muito aguda asquestes das exigncias ticas do amor. O amor no tem de ser livre? Oque dizer ento da noo tradicional do amor livre? Ele realmente livre?E como definir, hoje, o que seja a verdadeira fidelidade, sem identific-lacom formas criticveis de possessividade masculina ou feminina? Comofundamentar, a partir dos progressos das cincias humanas, oscompromissos do amor, como se expressam na resoluo (no sim)matrimonial? E como desenvolver uma nova tica para as novas formasde relacionamento heterossexual? E como 71
  • 68. fundamentar hoje as preferncias por formas de vida celibatria, casta ouhomossexual? As transformaes histrico-sociais exigem hoje igualmentereformulaes nas doutrinas tradicionais ticas sobre o relacionamento dospais com os filhos. Novos problemas surgiram com a presena maior daescola e dos meios de comunicao na vida diria dos filhos. As figurastradicionais, paterna e materna, no exigem hoje uma nova reflexo sobreos direitos e os deveres dos pais e dos filhos? Em especial, a reflexo sobre a dominao das chamadas minoriassociais chamou a ateno para a necessidade de novas formas derelacionamento dentro do prprio casal. O feminismo, ou a luta pelalibertao da mulher, traz em si exigncias ticas, que at agora ainda noencontraram talvez as formulaes adequadas, justas e fortes. A libertaoda mulher, como a libertao de todos os grupos oprimidos, umaexigncia tica, das mais atuais. E, como lembraria Paulo Freire, em seuPedagogia do Oprimido, a libertao no se d pela simples troca depapis: a libertao da mulher liberta igualmente o homem. 2) Em relaco sociedade civil, que para Hegel tambm significaria aforma histrica da sociedade burguesa, os problemas atuais continuam osmais urgentes: referem-se ao trabalho e propriedade. Como falar detica 72
  • 69. num pas onde a propriedade um privilgio to exclusivo de poucos? Eno um problema tico a prpria falta de trabalho, o desemprego, parano falar das formas escravizadoras do trabalho, com salrios de fome,nem da dificuldade de uma auto-realizao no trabalho, quando a maioriano recebe as condies mnimas de preparao para ele, e depois noencontram, no sistema