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"UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE LETRAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURAS """""""" """""ALTO ENGENHO EM RODA PROSASTICA
O epistolrio do Padre Vieira como projeto figural das epifanias de uma repblica hesitante
e das litanias a el-Rei no ressuscitante
""""""""
Fernando Antnio Dusi Rocha """"""Braslia, maro de 2014 """"
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""UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE LETRAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURAS """""""" """""""ALTO ENGENHO EM RODA PROSASTICA
O epistolrio do Padre Vieira como projeto figural das epifanias de uma repblica hesitante
e das litanias a el-Rei no ressuscitante
"""Fernando Antnio Dusi Rocha ""
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Doutorado na linha de pesquisa Literatura e outras reas do conhecimento, como parte dos requisitos para a obteno do grau de Doutor em Literaturas. Departamento de Teoria Literria e Literaturas do Instituto de Letras da Universidade de Braslia. "Orientador: Prof. Dr. Joo Vianney Cavalcanti Nuto "" ""
Braslia, maro de 2014. "
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""""""""""""""""""""""""""""Aos enhora Claudia, poa, y Paula, filha, fruytus dos ceos, "Do caminhay com cuydado, dayme ca ea mo, Andayvos, que yrey quanto poder mais liure Dayme tempo de folgar todas as couas c rezo. "Ao enhora Tereinha de Jesu, my, "Oo como e daes ditoa e fermoa, Tomates ante por ante em fraqueza, Por hum rayo reluzente voa perla precioa. ""Ao enhora Nadime, anjo das leteras, "Do quanto ganhaes per paos autorizada, Sem trituras, eforada, trigoa his por ventura, De lge vencetes muy egura a verdade pouada. """ "
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"AGRADECIMENTOS
" Ao Sumo Bem seja louvado, pois me livrou de mim.
minha mulher to amada, Claudia, e minha filha to linda, Paula pois vi quanto
so belas as almas dotadas de grande pacincia e constncia em todas as tribulaes e
trabalhos, interiores e exteriores, espirituais e corporais, maiores ou menores.
Ao meu bakhtiniano orientador, Prof. Dr. Joo Vianney Cavalcanti Nuto pois se
sabia que preciso cuidar to-somente em ir pelos montes e ribeiras das virtudes.
Ao Prof. Dr. Henryk Siewierski, meu preceptor nas coisas de Agostinho da Silva
pois que a alma devia ser advertida que, em certa quietude, embora no se sinta caminhar ou
fazer qualquer coisa, adianta-se muito mais do que se andasse com seus ps.
Ao Padre Nivaldo Luiz Pessinati, Diretor-Executivo da Ordem Salesianos do Brasil
pois sempre se soube que a alma que caminha no amor no cansa nem se cansa.
minha querida terapeuta, Teresa Mayorga pois o tempo todo conhecamos a
importncia de conservar o corao em paz: que nenhum acontecimento o desassossegasse,
haja vista que tudo havia de acabar.
s minhas devotadas mdicas Dras Yuna Ribeiro, Henriqueta Camarotti, Cristiana
Bertin, Mercedez Arajo e Virgnia Delacroix Cury e aos honrados mdicos, Drs. Jos Luis
Furtado de Mendona, Alexandre Cunha e Aderivaldo Dias Filho porque escolhi para mim
um esprito forte, o mais desapegado possvel a coisa alguma, para encontrar doura e paz;
pois aprendi que a fruta mais saborosa colhe-se em terra fria e seca.
s minhas fieis fisioterapeutas Patrcia Rosa e Mariana Sayago e minha doce
fonoaudiloga Aline Walker porque vimos que o padecer mais puro traz e acarreta mais
puro entender.
prestimosa amiga, Dra Mary Torlig, que cuidou e me ensinou a zelar de meus
amigos porque manso quem sabe suportar o prximo e tolerar-se a si mesmo.
Por fim, carssima colega de doutorado, Isabel Cristina Corgosinho trata-se, em
suma, de agir com muita constncia e valor, para no se abaixar a colher flores: ter coragem
de no temer feras e fortaleza de transpor os fortes e as fronteiras.
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""""""""""""""""Posto que o modo a tempo vence mais que a porfia, eu estou certo que, se houvera vontade, nem fora necessria a porfia nem ainda o modo; mas h muitos modos de intentar, de que usam os homens, assim como Deus tem muitos de libertar, quando servido.
Padre Antnio Vieira, Carta a d. Rodrigo de Meneses, 1665."""Segundo, ou que se segue, ou que deve seguir-se, no vai fixar-te em tempo ou em lugar sempre o que est depois, do Sul se j foste Leste, a Oeste se j foste Norte, a todo porto intermedirio na plena redondez do mundo, sempre em largos crculos que o abracem de entregas e de f, e sempre afinal por depois haver outro, mais primeiro que o segundo; a todo o alvo seta, sem que os possas fixar em escala, a todo o novo desferindo o voo, e, simultaneamente, asa que inventa o novo porque voa. Agostinho da Silva, Voltas a mote alheio, 1975. ""[...] Alm do mais, em algumas circunstncias, os planos antecipados malogram-se porque a multiplicidade, a complexidade e a obscur idade de causas geram a imprevisibilidade sem esperana. Mesmo quando certa avaliao possvel, o tempo e a oportunidade no se pem espera. 1 Gary Saul Morson, The long and short of it - from aphorism to novel, 2012. ""
MORSON, The long and short of it - from aphorism to novel. Stanford (USA): Stanford University Press, 2012, p. 222. Texto original, por mim traduzido: [...] What is more, in some situations advance planning fails because the multiplicy, entanglement, and obscurity of causes create hopeless unpredictability. Even when some calculation is possible, time and opportunity will not wait.
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"RESUMO
" Nesta tese tenciona-se investigar as estratgias textuais e extratextuais do discurso do
Padre Vieira, contemplado na sua escrita prosastica aos reis portugueses, quando o jesuta
lutava contra a escravizao indgena e defendia uma sociedade, tanto quanto possvel, menos
injusta entre ndios e colonos, mediante instituio de uma repblica missionria. Quer-se
adentrar os artifcios habilidosos da discursividade de Antnio Vieira, fixados em
representaes de uma cotidianidade manifestada em narrativas espontneas ou artificiais do
dia a dia que do origem s chamadas epifanias do sonho republicano. Em contrapartida a
essas foras discursivas, quer-se defrontar com a sublimidade e a frustrao do discurso
arcano, contido nas Esperanas de Portugal que incitam as chamadas litanias ao rei no
ressuscitado. Na interrelao entre esses dois discursos, pretende-se chamar a ateno para a
ecloso de um sujeito e a de um leitor prosastico da escrita vieiriana real ou ideal , a
partir dos transbordamentos narrativos das cartas e de aportes espistemolgicos incomuns.
Nas relaes e nas dissociaes enxergadas, discute-se, enfim, as fronteiras nas quais a
escrita vieiriana pode gerar impacto na conscincia do seu leitor e criar expectativas de
transportar o debate tico ao espao esttico.
"Palavras-chave: Literatura epistolar do Padre Vieira; Escrita prosastica; Estratgias textuais
e extratextuais.
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ABSTRACT
" In this dissertation I aim to examine Padre Vieiras textual and extratextual discursive
strategies as observed in his prosaic writings to Portuguese kings in his struggle against the
indigenous slavery and support for a society as little unfair as possible between indigenous
peoples and colonisers by means of the institution of a missionary republic. I would like to
delve into the skilful discursive devices in Antnio Vieiras rhetoric as crystallised as they are
in representations of a dailiness that is manifested in everyday narrations, whether
spontaneous or artificial which gives rise to what is called epiphanies of the republican
dream. I would like to read these discursive forces against the sublimeness and
disappointment of the arcane discourse of Esperanas de Portugal (the hope of Portugal)
which triggers what is called the litanies of the non-resurrected king. In the intertwining of
these two kinds of discourse I aim to muster attention to the origins of the individual within
Vieiras prosaic and the prosaic reader in Vieira whether real or idealised from the
narrative overflowing in his letters as well as from the unusual epistemological grounds
thereof. In what is thus seen as connections and dissociations I then discuss the boundaries
where Vieiras writing can make an impact on the readers conscience and give rise to
expectations of taking the discussion on ethics into the realm of aesthetics.
"Key words: Padre Vieiras Letters; Procaics writings; Textual and extratextual strategies."
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""SUMRIO ""
INTRODUO......................................................................................................................11
"CAPTULO I...........................................................................................................................49
1. FLAGRANTES DE CODITIANOS NEM TO SERENOS NEM TO
ELOQUENTES.......................................................................................................................49
1.1 - As salamandras pr-histricas congeladas e o viver habitual...........................................49
1.2 -Aquando o Bufo a l en ta o povo e o Grande Inqu i s i to r r i va l i za com
Deus61
1.3 - O sebo de carneiro no maratonista e as esperanas dilatadas do Valete75
"CAPTULO
II..9 7
2. PROSDIAS DE UM PARASO TERREAL: TPICOS DE IMAGSTICA NA
EPISTOLOGRAFIA DE VIEIRA.97
2.1 - Nos veios prosasticos das aventuranas celestes e mundanas.97
2.2 - Sum do Brasil: a esperana perdida nas patranhas de uma terra onde no se devia
morrer......................................................................................................................................112
2.3 - A enformao da correspondncia dos soldados de Loyola: o zelo pelo estilo limpo nas
primeiras narrativas do Novo Mundo.....................................................................................130
2.4 - Os deslocamentos imagticos e o realismo observador..................................................141
2.5 - Entonaes da vivacidade e da espetacularidade jesutica na correspondncia rgia de
Vieira.......................................................................................................................................149
""CAPTULO III......................................................................................................................171 "3. AS ACUMULAES EPIFNICAS : NARRATIVAS A EL-REI VIVENTE...........171 "3.1 - Safris nos Brasis setentrionais almas por Cristo, ndios ao mercadejo...................171
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3.1.1 - Narrativas da terra a ser missionada: a realidade com virtudes do
inferno.....................................................................................................................................177
3.2 - O sonho repblico em que imos embarcados escrevendo a el-Rei.................................186
3.3 - Esboos plidos de uma repblica missionria..196
3.3.1 - Uma res publica emprica, por excelncia.......................................................199
3.3.2 - Indcios da repblica platnica........................................................................201
3.3.3 - Decalques de Aristteles e marcas de Ccero..................................................205
3.4 - As representaes figurais do cotidiano nas cartas prosasticas.....................................210
3.4.1 - Marcadores do eixo discursivo epistolar..........................................................219
a) As emergncias da veracidade.....................................................................219
a) A presentificao como estratgia textual..................................................225
c) A fora discursiva da declamao...............................................................229
3.4.2 - As epifanias multifacetadas de uma repblica irrealizvel..............................240
a) A epifania do prncipe.................................................................................240
b) A epifania dos Brasis...................................................................................247
c) A epifania do bem-comum..........................................................................256
d) A epifania dos gentlicos.............................................................................263
"CAPTULO IV......................................................................................................................284
4. AS PAUTAS LITNICAS: DESALENTOS POR EL-REI NO REVIVIDO...........284
"4.1 - Interpelaes sobre o talho carnavelesco nas Esperanas de Portugal.........................284
4.2 - Duas percepes cnicas: o tremor da morte e o terramoto da ressureio...................291
4.3 - A retrica da encarnao e o Entrudo da impostura.......................................................298
"CAPTULO V.......................................................................................................................320
5. AJUSTAMENTOS PARA A PROSASTICA VIEIRIANA..........................................320
"5.1 - Os fios condutores da elocuo na imagem-presena....................................................320
5.2 - As demandas do discurso ordem da lngua portuguesa e ordem narrativa...............331
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5.3 - O cogito discursivo e a epistemologia do transbordamento...........................................345
""CAPTULO VI.....................................................................................................................364
6. ENGATES DE UMA RODA PROSASTICA...............................................................364
"6.1- Pausa para h terramoto na ordem do mundo.................................................................364
6.2 - Por uma fenomenologia do engodo ...............................................................................370
6.3 - O libi de uma experincia tica e esttica.....................................................................378
6.3.1 - Arranques e frenagens do sujeito prosastico...................................................386
6.3.2 - Brevirio de uma esttica compartilhvel........................................................394
"CONCLUSO.......................................................................................................................408
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................423
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#11
INTRODUO
"
[Porque], se os ndios malcativos se puserem em liberdade; se os das aldeias viverem como verdadeiramente livres, fazendo suas lavouras e servindo somente por sua vontade e por seu estipndio; [...] os ndios se reduziro facilmente nossa amizade, abraaro a f, vivero como cristos, e com as novas do bom tratamento dos primeiros traro estes aps de si e muitos outros, com que, alm do bem espiritual seu, e de todos seus descendentes, ter tambm a repblica muitos ndios que a sirvam e que a defendam, como eles foram os que em grande parte ajudaram a restaur-la [...]
"
Antnio Vieira, Carta ao Rei D. Joo IV, de 20 de maio de 1653
2
Dissolver tudo em humores banal e pode ser feito a qualquer momento; mas quando o mais profundo da alma, a pura saudade, vaga atravs da corprea e rispidamente insensvel realidade mesmo quando ela perambula como uma estranha, como peregrina desconhecida ento isto uma verdade sublime e um milagre.
Georg Luckcs, Saudade e Forma (1910) 3
"O objeto desta tese investigar o discurso peculiar da correspondncia rgia do Padre
Antnio Vieira aos monarcas e prncipes portugueses, no auge do seu perodo missionrio
(1653-1661), nas potencialidades das representaes de uma cotidianidade espontnea e nas
extrapolaes narrativas dos acontecimentos discursivos que idealizam uma sociedade, o
quanto possvel, mais igualitria. Na apreenso da essncia deste discurso, busca-se
demonstrar a desconexo destas foras discursivas com as do discurso engenhoso, em todo
seu ornato dialtico, abrigado na Carta Esperanas de Portugal redigida por em 29 de abril
de 1659 e dirigida ao Bispo do Japo, na qual Vieira defendia Quinto Imprio do Mundo, a
primeira e segunda vida del-Rei Dom Joo IV, conforme profetizado por Gonaliannes
In: Cartas, Joo Lcio de Azevedo, vol. I, p. 241 (itlicos meus).2
In: Soul and Form. Trad. Anna Bostock. Cambridge (USA): The Mit Press, 1980, p. 105. Ttulo do ensaio em 3portugus: Longing and Form, Saudade e forma. (traduo minha). Segue texto original, por mim traduzido: [...] To dissolve everything in moods is banal, it can be done at any time; but when the innermost centre of the soul, pure longing, wanders corporeal and harshly reality even if it wanders there as a stranger, un unknown pilgrim then this is a sublime truth and a miracle [...] (itlicos meus).
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#12
Bandarra em suas famosas Trovas a fim de aferir a amplitude e a originalidade daquelas
cartas.
Por outras palavras, pretendo visualizar a resultante de duas foras discursivas bem
marcantes na escrita do Padre Vieira. A primeira delas aflora do vigor de um stantard
considerado prosastico (i) , favorvel ao projeto de humanizao do monarca e de
concomitante imposio de sua persona junto s populaes indgenas das provncias do
Maranho e do Gro-Par. Trata-se de uma fonte enunciativa pouco ou nada explorada. Nela,
destaco a inteno do jesuta de fixar, em sua correspondncia rgia, as bases e andaimes
institucionais de uma Repblica (res publica) solidria entre colonizados e colonizadores.
A segunda fora, em proposital contraste com a anterior, a decantada enunciabilidade
vieiriana em textura barroca e em pronncia apodctica, plena de certezas e de desenganos,
bem aos modos daqueles Seiscentos, vividos intensamente pelo Padre Antnio Vieira. Na
superposio desses dois eixos discursivos, tendo dar prioridade s representaes
prosasticas do cotidiano. Tais representaes, mesmo impregnadas de componentes figurais,
tentam escapar dos infindveis desenganos do mundo, encravados na escritura barroca de
Vieira. Nesta leitura inusitada deste epistolrio do jesuta, a viso proftica das Esperanas de
Portugal e as predies jamais realizadas da Histria do Futuro so secundarizadas e do
lugar aferio de modelos discursivos mais perspicazes (ii), que servem de instrumento para
enriquecer a percepo moral das situaes vivenciadas na labuta diria do missionamento (iii)
de Vieira, naquele perodo especialmente conturbado.
meu intento fazer emergir das cartas rgias de Antnio Vieira as representaes
prosaicas e prticas do cotidiano, com fora suficiente para realizar mudana no plano
referencial da realidade. Para tanto, preciso desencobrir o Padre Vieira. No passivamente,
de molde a faz-lo sofrer mudana em sua escritura diante da realidade, mas ativamente, de
forma a faz-lo eclodir numa vontade potencial e exponencial de mudana no plano da
realidade por meio de suas cartas dirigidas aos reis, prncipes e regentes portugueses.
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#13
Quem ler as cartas rgias aqui tratadas h de ver a plenitude da vida dos nativos e dos
suicidados portugueses , que no s abandonaram a Corte, mas o Reino, e que at no 4
quiseram ser reinis. Nas palavras de Agostinho da Silva , foram os suicidados de ento 5
[...] os que queriam imaginar e sonhar um Portugal envilecendo [...] Foram eles que
inventaram o Brasil, com a ajuda obsequiosa de Vieira, que soube como ningum captar nas
cartas e nos sermes os ndulos da vida braslica, com todos seus acidentes e alternativas
reais. Uma vida que estava a exigir do jesuta o [...] exerccio ininterrupto de uma atividade
proteica [...] nutrida por uma energia inabalvel de perturbar a realidade condio capital 6
de uma existncia sem amenidades, sem consolaes.
A prosastica rege essa potencialidade de mudana segundo Morson e Emerson 7
e requer tanto a desconfiana no sistema quanto uma nfase na maior importncia dos
acontecimentos triviais. Ela enfoca acontecimentos cotidianos que, em princpio, furtam-se
reduo s leis e aos sistemas subjacentes; e repele redues impostas pela simples aplicao
das cincias exatas, buscando nas cincias humanas uma forma de estudar a prpria ordem
dos fatos. A prosastica aqui captada no deixa de ser uma construo afeioada ao pensar
bakhtiniano. Na percepo de Morson , um dos formuladores do prosaics, ela o 8
revigoramento da sabedoria prtica (ou phronesis). Na verdade, a prosastica bem mais do
que se robustescer naquela sabedoria. mais do que aplicar-se a teoria: um rico
entendimento auferido, antes de mais nada, da sabedoria prtica tirada da grande fico, como
a de Tolstoi.
Em suas consideraes sobre o cotidiano e o trivial, Bakhtin segue a tradio de
pensadores anti-ideolgicos como Alexander Herzen, Leon Tolstoi e Anton Tchkov.
Compartilhando o desprezo fundamental a sistemas, Bakhtin e Tolsti acreditam que nem a
DIAS, Francisco Palma. Agostinho da Silva, bandeirante do Esprito (entrevista realizada na primavera de 41987). In: Agostinho. Promoo e organizao da Academia Lusada de Cincias, Letras e Artes; coordenador Rodrigues Leal Rodrigues. So Paulo: Editora Green Forest do Brasil, 2000, p. 147.
Idem, p. 147.5
BRAGA, Belmiro. In: Montezinas. Prefcio de Joo Batista Martins, de julho de 1902. Juiz de Fora: Funalfa. 62011, p. 31.
MORSON & EMERSON, Criao de uma prosastica, p. 50.7
MORSON, Prosaic Bakhtin, p. 60.8
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#14
cultura nem a tica podiam tornar-se normas [...] e que em matria de moralidade no
se pode substituir uma sensibilidade educada por uma irredutibilidade particular das pessoas
em circunstncias particulares irrepetveis [...] anotam Morson & Emerson . Como 9
Tolstoi afirmam os mesmos autores americanos o pensador russo imaginava a si 10
mesmo oferecendo [...] uma alternativa para a viso de que o conhecimento nas humanidades
deveria ser modelado sobre as rgidas cincias e culturas, linguagem, e que o pensamento
deveria no final das contas ser descrito como sistemas [...]
Prosseguem Morson & Emerson afirmando que, embora Bakhtin abomine a tica 11
como um conjunto de regras, isso no faz dela um fardo. Se h uma tica real, localizada em
situaes fundamentalmente particulares, ento sempre se requer o trabalho real. Essa
apreciao reclama um risco (incerto, mas previsvel), uma ateno voltada s
particularidades de situaes irrepetveis e um envolvimento especial com outras pessoas,
[...] nicas num dado momento de nossas vidas [...] A vinculao da tica a cada momento
trivial da vida das pessoas uma das chaves para a abertura do universo prosastico de
Bakhtin e de Tolstoi. E este universo oferecido pelos romances a mais prosastica de
todas as formas literrias que ocupam um lugar privilegiado na educao tica. A prpria
extenso dos romances de Tolstoi e seus tantos pormenores irrelevantes para a trama em 12
geral so essenciais para a compreenso de uma tica que no questo de conhecimento,
mas de sabedoria, obviamente no sistematizvel. Eis a energia criativa contnua, ou o
potencial real, que produz o genuinamente novo com fora disponvel para expressar
possibilidades de desenvolvimento futuro.
Mas a prosastica no s embebida em fico. Nem somente nos romances que se
pode conhecer essa energia criativa ou a intensa atividade proteica do mundo prosastico. Ela
MORSON & EMERSON. Rethinking Bakthin, p. 4. Texto no original, por mim traduzido: [...] and that in 9morality there is no substitute for an educated sensibility to irreducibly particular people in unrepeatable particular circumstances [...]
MORSON & EMERSON, Rethinking Bakthin, p. 30. Segue texto original, por mim traduzido: [...] an 10alternative to the view that knowlegde in the humanities must be modeled on the hard sciences and the culture, language, and the mind could ultimately be described as systems [...]
MORSON & EMERSON, Criao de uma prosastica, p. 45.11
Cf. MORSON & EMERSON, Criao de uma prosastica, p. 45.12
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#15
se faz mostrar por outras formas mais prosaicas de sabedoria prtica, como no caso de
aforismos ou apotegmas, que transmitem preceitos bastante simples e aparentemente
insignificantes, mas extremamente acessveis s pessoas. So sentenas buriladas com o
tempo, impregnadas de contedo tico e, por isso mesmo, capazes de expressar sentimentos
comuns que unem as pessoas e as libertam de seu isolamento e da iluso de que somente o
primor da arte capaz de expressar algum nexo da moralidade.
Tentar alcanar um grau ainda maior de singeleza e simplificao para a prosastica
torna-se tarefa delicada, sobretudo quando Morson resolve debruar-se sobre os chamados 13
aforismos prosaicos aqueles por meio dos quais a mais comum das pessoas acredita
possuir em seu poder a presuno de um universo em conformidade com as formas habituais
de conhecimento, mas que, na verdade, traam apenas a incompreensibilidade do mundo. Diz
Morson que a obstruo de nosso entendimento sobre os apotegmas prosaicos e a prpria 14
prosastica, como quero crer no um mistrio, um poder inefvel nem um paradoxo
insolvel. O impedimento no est antes do tempo, nem no mundo dos espritos, nem em
categorias preexistentes criao do universo, mas num mundo bem diante de nossos olhos.
[...] Ns falhamos ao compreender as coisas porque elas so muito complexas [...]
exprime-se o mesmo autor norte-americano . 15
No alguns princpios inacessveis, mas a abrupta diversidade de qualidades desafia a simplificao. As causas no se reduzem a poucas leis subjacentes, tudo muda diante de nossos olhos, e ns mesmos mudamos de um momento para o outro. Quando examinamos as coisas primorosamente suficientes, elas nos frustram sempre com distines ainda mais primorosas. Quando o mundo, especialmente o mundo humano, parece uniforme, estvel e simples, porque ns no o estamos olhando suficientemente de perto. O apotegma prosaico demanda-nos olhar e nos ensina a ver [...] 16
" In: The long and short of it , pp. 211/212.13
In: The long and short of it, p. 212.14
In: The long and short of it, p. 212.15
In: The long and short of it, p. 212. Trecho original, por mim traduzido: [...] Not some inaccessible principle 16but the sheer diversity of qualities defies simplification. Causes do not reduce to a few underlying laws, everything shifts before our eyes, and we ourselves differ from moment to moment. When we examine things finely enough, they baffle us with ever finer distinctions. When the world, especially the human world, seems uniform stable, or simple, it is usually because we are not looking at it closely enought. The prosaic apothegm asks us to look and teaches us to see [...] (itlicos originais e no originais).
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#16
No pretendo cuidar nesta tese de grandes novelas de Tolstoi nem de memorveis
contos de Tchkov. O potencial prosastico deles tem sido bem discutido e ultrapassa o objeto
de minhas pesquisas. As consideraes de Morson transcritas trazem lume sobre a aferio de
modelos discursivos bem perspicazes, utilizados pelo Padre Vieira. Nesses modelos quase
vivos onde poderia haver simplificao, a trama da escritura do jesuta tornou invivel o
simples; onde havia evidente complexidade, Vieira apenas tentou a simplificao. Na
parecena dos aforismos prosaicos, Vieira vivifica a incompletude dos Seicentos ibricos
como protagonista, ora da elocuo de algumas cartas escritas a monarcas e prncipes
portugueses, ora nas tramas da insigne Esperanas de Portugal. So situaes diferenciadas
onde a incompreensibilidade prolonga-se a partir dos Seicentos e alcana o mundo ardente
diante de nossos olhos.
Tenciono levar ribalta as representaes do cotidiano, manipuladas habilmente por
Vieira ao relatar, em seu epistolrio rgio, acontecimentos triviais do dia a dia dos colonos
portugueses, dos ndios escravizados ou livres, e da operosidade ou insucesso das diversas
misses jesuticas. O relato de eventos aparentemente singelos segue uma formatao ou
enformao bem adequada at mesmo plasmtica ao convencimento dos monarcas a
quem as cartas so dirigidas. Donde surge, de esguelha, a necessidade de aprofundamento
dessas representaes como manifestaes prosasticas, atreladas ao finalismo poltico-
missionrio de Vieira, que restou em dado momento histrico absolutamente contrrio aos
interesses da mquina colonial.
Tais representaes, mesmo impregnadas de tropos, do conta de diferentes formas de
escape das decepes do fim do mundo este inefvel modo de vida dos sculos do engao,
to exacerbado nos sermes sacros de Vieira. Aquelas cartas oferecem modelos discursivos
que parecem eficazes como instrumentos para enriquecer a percepo moral das situaes
experimentadas no Brasil por Vieira no cotidiano dos missionamentos. Assim, sob uma srie
de circunstncias agravadas por necessidades e dificuldades extremosas da vida colonial
brasileira, julgo concebvel descortinar um arcabouo literrio idneo a surpreender um Vieira
prosastico, como missionrio jesuta e correspondente real, nas chamadas representaes e
experincias vividas no cotidiano, no qual ele acumulava energia criativa suficiente para
tentar mudar o plano da referncia pelo da realidade.
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#17
Ditosamente, a vida de Vieira, suas idias, aes e escritos so contraditrios, haja
vista, por exemplo, o fato de ter advogado bravamente a causa dos nativos indgenas contra a
escravido e, na contramo, ter defendido expressamente a escravido negra. Essas
inconsistncias que proveem a possibilidade de se certificar ou de se verificar o vis
prosastico na escritura do Padre Vieira.
Com efeito, o potencial real que faz emergir o veio prosastico [...] somente pode
resultar de aes com alguma singularidade potencial num mundo infinalizvel [...], segundo
de Morson & Emerson . Isso me leva a refletir que o potencial real atuante num mundo 17
singular e no finalizvel resulta de um ato de promessa no mundo dos acontecimentos, uma
promessa tentada e aberta, hbil o bastante para produzir o genuinamente novo. Se a ndole
turbulenta do conde Tolstoi permite que seus romances e alguns de seus escritos sejam
contagiados por elementos prosasticos captados no em grandes dilogos, mas em
pormenores inteis, primeira vista , porque a incoerncia torna-se condio sine qua
que no chega a comprometer o mundo referencial na expresso da obra ou no sentido de
profundidade da vida.
Ningum pode negar que Tolstoi ao menos tenha prometido agir no mundo ao seu
redor, malgrado uma vida plena de tormentos espirituais, colhidos entre apelos
circunstanciais, entre promessas e aes impuras. Quando se autor de promessas abertas e
de tentativas insondveis para explicar acontecimentos singulares e irrepetveis,
inevitavelmente se conclui que o mundo nada mais do que diversidade e dissimilaridade . 18
Mas o prosastico exige energia vital para criar-se o sinceramente novo, apesar das barreiras
do mundo dos acontecimentos. Essa parece-me ser uma leitura vlida tanto para Tolstoi
quanto para o Padre Vieira.
As incoerncias ou inconsistncias do prosastico, ou impurezas assim chamadas
por Thornton no viciam a referncia do significado: [...] Elas simplesmente a tornam 19
In: Rethinking Bakthin p. 19. No original: [...] which can result only from acting out of ones potencial 17singularity in a infinalizable world [...] (traduo minha).
Aqui me aproprio do aforismo de MONTAIGNE, apud MORSON, in: The long and short of it , p. 211.18
THORNTON, William H. In: Cultural Prosaics - The Second Postmodern Turn. Edmonton (Alberta): 19University of Alberta, Research Institute for Comparative Literature. 1998, p. 39. Segue trecho no original, por mim traduzido: [...] They simply render it problematic and dirty which is to say, prosaic. Prosaics, then, is the art and science of the impure [...] (itlicos meus).
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#18
problemtica e maculada o que vale dizer, o prosaico. A prosastica, ento, a arte e a
cincia do impuro [...] As impurezas de Vieira no so menos dignas do que as de Tolstoi: h
apenas mundos prosasticos distintos e eventos singulares acomodados a condies
relacionais de tempo e de lugar. Mas a no finalizabilidade a mesma, quer nos romances do
escritor russo, quer nos sermes ou cartas do jesuta luso-brasileiro. A impureza nunca ter
fim e a no finalizabilidade ser sempre aberta. Por esse motivo, a pureza, como afirmam
Morson & Emerson , uma palavra pejorativa no universo bakhtiniano, onde se prefere 20
enfatizar a desordem impura do mundo.
Vieira obstinado, impuro, borrascoso, tempestuoso, ventoso em pensamentos, atos,
palavras, promessas e omisses. Sua obstinao d oportunidade de revelar-nos uma face at
ento oculta, que vm tona no epistolrio prosastico enviadas aos Reis durante sua luta
contra a elite de colonizadores. Essas elocues podem ser muito bem pensadas at certo
ponto como atestaes mimtica. No porque fidelssimas realidade, mas porque fidedignas
a um trabalho real, peculiar ao colorido da loquacidade vieiriana. As representaes
prosasticas do cotidiano aqui tratadas no devem ser entendidas como simples parecenas
com a realidade das coisas. A criatividade que desponta do discurso que precisa ter relao
direta com a realidade.
Esses mecanismos discursivos usados por Vieira saem do tom das prticas
cotidianas que constroem a rede de poder na monarquia portuguesa naquele momento.
Curto registra que, na gesto do Imprio, os arbtrios passaram a fazer parte da 21
lgica retributiva do Antigo Regime. A literatura dos arbtrios e advertncias
representaria algo de novo nos circuitos de comunicao poltica da monarquia,
apontando, em ltimo foro, para uma modernizao das estruturas do Estado e do
Imprio.
In: Rethinking Bakthin, p. 15. Trecho original, por mim traduzido: [...] the impure messiness of the world 20[...]
Apud LOUREIRO, Marcello Jos Gomes. A segunda escolstica e a legitimao do poder no Portugal 21Restaurado (1640-1650). Caminhos da Histria. Vassouras, vol. 7, edio especial, p. 126.
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Em face de toda a complexidade desta rede, Hespanha, citado por Loureiro 22
enfatiza que
o processo afastava-se cada vez mais de uma linha reta entre uma petio inicial e uma deciso, enfatuando-se e reverberando em mil incidentes, informaes, decises interlocutrias, conflitos jurisdicionais, cada qual obedecendo a lgicas, estilos, narrativas e estratgias totalmente distintas, que se reconhecem na prpria maneira de dizer e de contar.
"Vieira tenta superar a cultura poltica de pareceres em seu verbo prosastico. Mas no
consegue escapar totalmente ao iderio da Segunda Escolstica ibrica, que constri o
pensamento jurdico, filosfico, poltico, teolgico e at econmico, de modo a configurar as
instituies reinantes ideias que empapavam a vida cultural e artstica . O padre 23
inaciano no se retira em debandada de um dos pilares do neotomismo: a tentativa de
conservao das coisas tal como elas aparentam ser.
A formao jesutica exigiria de Vieira total repulsa s abruptas mudanas do
destino (vii). Porm, o inaciano no foge ao imprevisvel no modo peculiar de
representao do cotidiano: prefere enfrent-lo e o acomoda em prticas discursivas
que buscam encurtar o caminho entre a petio inicial e a deciso, entre sua
vontade e a ao no mundo concreto, entre o figural e o real. A arquitetura de sua
escrita prosastica prescinde do emaranhado de arbtrios e de incidentes. Bastam-
lhes seus prprios expedientes interlocutrios com os gestores da monarquia. Faber
est suae quisque fortunae: cada um artfice do prprio destino, ou deveria ser.
Vieira no se contenta em ser porta-voz da sua sina quer pronunciar ou
declamar o destino de seu povo e dos povos selvagens dos Brasis.
Idem, p. 126.22
Cf. ORREGO, Santiago. A importncia da segunda escolstica no Ocidente. Entrevista concedida a Mrcia 23Junges e Alfredo Culleton. Traduo de Benno Dischinger. IHU - On line. Revista do Instituto Humanitas - Unisinos, 342, Ano X, 06.09.2010
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Diz Oswald de Andrade que enquanto o acar da Bahia era levado para Portugal, 24
Vieira nos trazia a lbia. E mais gravosamente: afirma ainda Oswald que [...] antes dos 25
portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade [...] Julgo ser esta
uma felicidade impura e maculada, embora virginal: a felicidade prosastica das eras sem
malcia. A bem-aventurana do Paraso Terreal ainda intocado, a bendita felicidade das naes
dos canibais de Montaigne [...] por terem recebido muito pouco trato de esprito humano e 26
acharem-se muito prximas da ingenuidade original [...] A pureza que resplendia
maravilhosamente numa terra ambgua, maculada e imaculada, onde no se via nenhum
homem que no preferia ser matado e comido a pedir simplesmente para no ser.
Vieira tentou resgatar a felicidade dos braslicos a seu modo e porfia. O Paraso
perdido deveria ser encontrado depois de longas viagens, cruzando a linha do Equador com
caravelas miserveis, quase nufragas nas tempestades e nas bonanas do mar, na fome e nas
doenas, no sangue anmico dos marinheiros, como indica Heinnrich (2008, pg. 23). 27
Desesperados e desiludidos passavam os dias, mas para chegar terra prometida [...]
nenhum sofrimento grande e nenhuma solido tem fim [...] Pois diziam nos portos velhos
que naquela terra cor de esmeralda ningum ficaria sozinho e sem terra. E um dia, um brado
proclamara os sonhos delirantes dum mendigo de el-Rei, dum ladro dos becos escuros de
Lisboa: [...] Praia, areia, floresta e fazendas onde ningum trabalha seno os ndios, que ns
caaramos nas beiras dos igaraps para eles nos dizerem o caminho dourado, pois onde j se
viu um paraso sem frutas poderosas e inesquecveis? [...]
Em contrapartida, observa ainda Heinnrich , tantas eram as desgraas neste Novo 28
Mundo, neste mundo de brbaros, que a pergunta passava a ser outra: se este mundo dos
Apud MIRANDA, Maria Geralda de. Discurso e ideologia. Encontrvel em http://www.filologia.org.br/24revistas/artigo/6(17)47-53.html
Apud GIANNETTI, Eduardo. O livro das citaes - um brevirio de idias replicantes. So Paulo: Companhia 25das Letras, 2008, p. 343.
Apud MALTA, J.M. de Toledo. Dos Canibais. In: Seleta de Ensaios de Montaigne. 1 tomo. Rio de Janeiro: 26Jos Olympio Editora, 1961, p. 149.
In: As lgrimas de Vieira e a tristeza tropical. Nova gua - Revista de Cultura para o sc. XXI. Edio: 27Associao Agostinho da Silva. Sintra: Zfiro, n. 2. 2 semestre de 2008, p. 23.
HEINRICH, idem, p.23.28
http://www.filologia.org.br/revistas/artigo/6(17
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gentios era mais digno do riso ou das lgrimas. Para o Padre Antnio Vieira, em seus mais
engenhosos sermes ou em suas copiosas cartas, [...] as lgrimas mais salgadas e ardentes
eram as lgrimas da ignorncia, da cobia e da luxria, que j inundaram toda a terra, uma
chuva tropical, sbita e grossa, que vai e volta num crculo vicioso sobre a serra e a selva at
hoje [...]
Os brados delirantes dos mendigos de el-Rei, que sonhavam com o paraso tropical,
no passaram despercebidos pelo universo ptolomaico dos sermes e das cartas de Antnio
Vieira, que buscavam reinventar um Brasil para seus malsofridos nativos e para a amarga raa
dos suicidados portugueses, da qual descendia. A severidade dos eventos que marcaram sua
longa vida crivada pelo impaludismo e pela tsica calaram em Vieira um esprito
atormentado, que preferia fugir a todo custo da aurea mediocritas . Portanto, as lgrimas do 29
conselheiro real, deportado para o Brasil por tantos inimigos colecionados na Corte,
convertem-se em atitudes concretas do ator missionrio, sob o domnio de uma tica real,
aplicada em situaes reais, particularizveis e irrepetveis.
O mundo, mesmo o daqueles Seiscentos, no haveria de ser para Vieira um vale de
lgrimas, apenas dulcificado pela expectativa da vida eterna. Haveria de ser povoado de
missionrios que salgassem as terras cor de esmeralda (Vos estis sal terrae, Mt, 5 ). Nesse 30
teatro, prevaleciam horizontes do tempo, com seus preldios de santificao universal,
expresses de transbordamento da graa do Cristo Redentor sobre o pecado de Ado e sobre a
Queda da humanidade. Por essas razes, em Vieira imprescindvel descobrir e explorar
hemisfrios possveis, onde o tempo futuro seja antecipado pela interpretao do passado.
Para isso, era necessrio que Vieira forjasse seu prprio astrolbio discursivo, de tal
maneira era envolvido por uma nsia de ser e por uma maneira incmoda de estar no mundo,
bem diversa do universalismo renascentista. Sob a posio peculiar de seu astrolbio
permitiu-se a compreenso espiralada dos sinais dos tempo, os indcios do Universo, os
acenos dos acontecimentos polticos, a vontade do prncipe e de seus vassalos. E nesse
Expresso derivada de um verso de Horcio, Ode II, 10, 5: Auream quisquis mediocritatem [...]. Usada para 29indicar uma condio de sereno equilbrio e de apagamento, que foi evitado por Vieira durante toda vida. Cf. ZINGARELLI, Nicola. Vocabolario della lingua italianna - Lo Zingarelli minore. Edizione Terzo millennio. Bologna: Zanichelli Editore, 2001, p. 1207.
Mote utilizado por Vieira no Sermo de Santo Antnio, pregado na cidade de So Lus do Maranho, no ano 30de 1654 (in: VIEIRA, Sermes, Alcir Pcora. Tomo I, p. 315).
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movimento haveria de prevalecer uma crena na significao interpretada e
espitemologicamente crvel sob pena de jamais se pronunciar a lngua do Paraso perdido
na Terra de Santa Cruz.
Diria o prprio Vieira : [...] Enfim, um dia estais aqui em uma altura, e ao outro dia 31
noutra, porque os lbios so como o Astrolbio [...] Neste fragmento de sermo, o padre
inaciano verdadeiro prestidigitador do Verbo, segundo Pedrosa estabelece com 32
argcia uma relao entre lbios que so como o astrolbio, este instrumento em forma de
planisfrio, que os antigos usavam para observar a posio dos astros e medir a latitude e a
longitude. No poderia haver comparao mais esmerada: lbios (ou lbia) como astrolbio
que lhe permitem medir posies impossveis acima do horizonte, em latitudes e longitudes
por que no dizer? impuras. Mas a perspicaz confrontao no cessa a: astrolbio
tambm era o instrumento com o qual os astrlogos prediziam o futuro. A mesma liga que faz
a lbia permite brincar com o tempo. E o tempo, como experimentado por Vieira e pelos
destinatrios de seu discurso, s pode ser traduzido em funo do texto e do sistema de
referncias fornecidas pelo prosastico e pelo engenhoso. Nesses exerccios, o tempo sempre
objetificado por Vieira. Nunca, o autor da farsa.
Desde a Queda do homem, e com muita intensidade no sculo de Vieira, ningum
ousava discutir que a lngua se interpusesse entre a apreenso e a verdade, [...] como uma
vidraa empoeirada ou um espelho deformado [...], percebe Steiner . A lngua do den, no 33
entanto, continua o mesmo crtico, assemelhava-se a um vidro sem defeito: [...] um feixe de
luz da compreenso total o atravessava [...]
34
A deformidade no vidro da compreenso pelo grande pregador dos Seiscentos
ibricos decorre da complexido barroca de seu discurso, em que a sinuosidade da
argumentao se aliava necessidade de cumprir o paradigma teofnico, sem abrir mo do
dulce et utile . Aquilo que afirmava ele, a partir de seu astrolbio discursivo, tinha que ser 35
Sermo da Quinta Dominga da Quaresma. In: Sermes, Alcir Pcora, Tomo I, p, 520.31
In: Lcido alucinado. Revista Bravo. Edio: Abril. n. 173, janeiro de 2012, p. 40.32
In: Depois de Babel, p. 87.33
STEINER, Depois de Babel, p. 87.34
WELLEK & WARREN. In: Teoria da literatura. Traduo: Jos Palla Carmo. Lisboa: Biblioteca 35Universitria, [199-?], v. 2, p. 33.
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#23
superior ao estado de idlio. Mas Vieira tinha que manter a promessa no mundo dos
acontecimentos, dentro ou fora do seu universo visionrio ou da linguagem admica. Para
tanto, tinha que mergulhar de ponta no ato de [...] falar ao cu em nome dos homens e da
terra e terra em nome de Deus [...] , segundo Mendes . Pela ao de seu proferir, edifica-36
se uma imagem cujo ethos e pathos so comuns a antiqussimos senhores da verdade, quais
sejam, os profetas, como destaca ainda Mendes . 37
Porm, os mesmos senhorios da verdade (iv) podem ser senhores de enganos. Mesmo
entre os canibais brasileiros, Montaigne dava notcias de haver supostos padres ou profetas 38
que raramente se apresentavam ao povo, porque moravam nas montanhas. O profeta exortava
a assemblia das aldeias virtude e a seus deveres e prognosticava as coisas futuras e os
sucessos que deviam esperar de suas empresas. Se lhe suceder falhar no bem adivinhar e se
apanhado, era logo retalhado em mil pedaos. E eis que naqueles tempos de inocncia,
supnhamos felizes. Vieira tambm se portou como autntico senhor da verdade e se houve
com inmeros enganos: quando interpreta profecias das quais se torna profeta, quando
defende aes polticas em favor da Coroa em prol dos judeus ou dos indgenas brasileiros.
No foi retalhado em mim pedaos, s pagou com alma pelo seu fado. E eis que j no tempo
do Padre Vieira, somos todos convictos de esprito de no haver qualquer felicidade.
Fao por ora uma projeo ao extremo das penas pagas por Vieira em razo de seus
enganos. E alcano o final do penoso processo no Tribunal do Santo Ofcio, quando o jesuta
teve a liberdade pessoal recuperada com a absolvio da pena, e obtida a alforria mais
prezada, a de comunicar-se com o pblico por meio da tribuna sacra. Findo o perodo de tanta
amargura, o grande pregador j estava pronto para reaparecer no teatro de suas glrias, em
que sua fatuidade buscava a reparao pblica no aplauso do auditrio. Antnio Vieira era um
donzelo intransigente, para usar a expresso que Gilberto Freire estendeu a todos os 39
jesutas. Austero, solitrio, autocentrado um eglatra rematado o padre inaciano exigia
In: 2003, p. 137.36
In: 2003, p. 403.37
Apud MALTA, idem, pp. 151-2.38
Apud VAINFAS, Ronaldo. Antnio Vieira: jesuta do rei. So Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 293.39
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#24
o ressarcimento do plpito, se outro no lhe era possvel obter. Azevedo dava conta de que, 40
na Quaresma de 1669, o jesuta pregava vrias vezes e no lhe faltava a multido com o
aplauso bajulador de que era to vido. Pode-se at cogitar que a viso sibilina de Bandarra,
de que [veio] um alto engenho/ Em ha roda triunfante [...] , havia-se concretizado. 41
Mas essa roda triunfante nunca fez voltas. A impureza nunca ter fim em Vieira, e sua
no finalizabilidade jamais se cicatriza. Por tais motivos, no crculo vicioso dos trpicos
cruis, foi intensssima a produo epistolar de Vieira para viabilizar o projeto felizmente,
impuro e nafde instaurar uma Repblica missionria igualitria, em moldes quase
platnicos. Eventos impuros, maculados e maculosos, so postos prova pelo Jesuta na
execuo deste desgnio. So acontecimentos que do a essncia para as cartas rgias e que
compem a verdadeira roda prosastica vieiriana, manejada com astcia ao longo de quase
um sculo de existncia do nosso jesuta.
A necessidade a me da inveno. Este aforismo to prosaico faz o finalismo de
Vieira ser extremamente prtico. Apesar da engenhosidade e da impenetrabilidade da maior
parte de seus escritos, as cartas em foco lhe reclamaram uma linguagem comum, uma
enunciao menos barroca. Nesse epistolrio, o Padre Vieira detentor de um ethos
distanciado daquele dos que se diziam da verdade. dono de atitudes que demandavam um
agir imediatamente traduzvel em evidente vantagem ao agente. A fora das ideias prticas,
em relao poltica jesutica de disseminao da f catlica no Novo Mundo junto aos
brbaros amerndios, registros e exps os mais diversos eventos do cotidiano, como fato
prosasticos, os quais insisto no procuravam ajustar-se a modelos oficiais ou sistemas
vigorantes e confinados. Essa pragmtica peculiar somente admitia que o efeito de uma ao
sobre a realidade prtica pode ser a nica causa de cognio do mundo.
Em outras palavras: o emolduramento tpico das cartas prosasticas de Vieira traz o
selo de um ethos diferenciado daquele do grande pregador sacro. No quero dizer que o telos
AZEVEDO, Histria de Antnio Vieira, Tomo II, p. 103. 40
BANDARRA, Gonaliannes. Trovas do Bandarra. Reproduo fac-similada da Edio de Nantes (1644). 41Introduo de Anbal Pinto de Castro. Lisboa: Edies INAPA; Academia Portuguesa de Histria, 1989, p. 60, Trova 149.
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#25
se bifurque nos dois casos. Tanto como pregador quanto como missivista, o Padre Vieira est
engajado at o pescoo na defesa dos ndios e na sua grande causa de uma Repblica
Missionria. Mas no caso das cartas em exame, ele no tem necessidade de arriscar-se na
lngua admica: precisa apenas correr o risco de manusear a realidade por meio de uma escrita
confortvel a cotidianos possveis.
Os jesutas diz cruamente Agostinho da Silva foram uma criao basca e 42
surgiram como [...] uma legio estrangeira destinada a travar o nosso amigo Lutero. Era a
legio estrangeira do Papa [...] Quando Vieira faz as redues indgenas (autorizadas por
el-Rei desde Nbrega), ele de fato persegue os ndios, afirma ainda o pensador portugus. Era
uma forma extremada de corporificao do ideal de Loyola, que assinalava o carter poltico-
missionrio do finalismo de Vieira: a imposio de um cristianismo castrense, militar, em
cima de um cristianismo que deveria ser todo ele espontaneidade e amor . 43
Porque h documentos que mostram o nosso amigo Padre Antnio Vieira querendo castigar ndios que os tribunais no queriam castigar homem! , levado por aquele zelo religioso e pela ideia do Brasil Repblica Missionria, ele excedia aquilo que era a dureza dos tribunais governativos. 44"
No entanto, mister dissecar Vieira em sua hetedoroxia, ou em sua mais depurada
impureza, em suas extravagncias e vaidades, mesmo quando ele, visivelmente, tenta se
equilibrar na corda da ortodoxia contrarreformista. H de se anatomiz-lo para dentro dele
encontrar um Herclito-Demcrito, que de tudo chora e ri, sobretudo da comdia da sua vida.
E ao fim da dissecao desse jesuta que se autoproclama louco ver-se-o doidices falsas e
verdadeiras [...] as falsas so os doidos que seguem a vaidade: Vanitates, et insanitas
falsas: as verdadeiras, so os doidos que seguem o contrrio da mesma vaidade, que a
verdade [...] 45
Apud DIAS, idem, p. 150 (itlicos meus).42
SILVA. Agostinho da, apud DIAS, id.ibidem., pp.108-9. 43
SILVA, Vida Conversvel, 3a ed., pp. 313-4 (itlicos meus). 44
VIEIRA, Sermes consagrados Glorificao de S. Francisco Xavier. Sermo stimo: Doidices. In Sermes - 45Obras completas, 1945, Tomo XIII, p. 304.
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#26
Em algumas das cartas estudadas, fatos verdicos ou no constituem parte essencial
dos acidentes de vida dos colonizadores e colonizados: so tubos de ensaio para a
compreenso, ou incompreenso, daquele mundo. Esses fatos geram aes que se insinuam
muito mais palpveis sobre um mundo pleno de glria e misria, de realidade e poesia, de
tradio e comdia, de vida e morte, de certezas e enganos. Tudo so causas instrumentais que
capacitam Vieira de explorar a ordem da lngua portuguesa e a ajust-la ordem do 46
mundo, aos horizontes do tempo, tentativa de reescrever aquele Brasil to despiedoso e, por
fim, fuga do destino coletivo e individual. O jesuta domina como poucos seiscentistas o
corpo imaginrio, o conjunto de representaes que ultrapassam o limite imposto pela
experincia vivida.
Todo esse processo parece ter sido levado s ltimas consequncias pelo jesuta, ainda
que alguns historiadores ponham em dvida os mtodos utilizados pela Companhia de Jesus
para a converso dos indgenas e a conquista das almas a Cristo. No devir imagtico e
discursivo, que assegura o potencial prosastico, percebe-se um instrumental eficiente, voltado
a obter efeitos proveitosos em favor da causa indgena e do projeto missionrio jesutico
algumas vezes questionado como copartcipe da explorao colonial.
"
" Mesmo espelhada em princpios e conceitos bakhtinianos, a prosastica do Padre
Vieira deve ser cuidadosamente aplicada no processo de articulao textual e extratextual
ou na realidade discursiva ou no discursiva que emerge da fortssima performance de sua
elocuo missionria e epistolar. Sua prosastica no destoa da percepo de um mundo-em-
construo, de um mundo estampado com o selo da inconclusividade ou no-
finalizabilidade . Fora de dvida, portanto, que as cartas enviadas por Vieira aos portentosos 47
da Coroa buscavam projetar um mundo que nunca se cumpriu, simplesmente porque
inconclusividade que delas se arranca era lacerada e incurvel. Aqui se expe a incompletude
vieiriana: a repblica que falhou, e com ela um sonho impossvel de igualdade. Vieira, enfim,
Expresso iluminadamente cunhada por MENDES, 1989, p. 31.46
Cf. MORSON & EMERSON, Criao de uma prosastica.47
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#27
abandonado pela realidade brasileira e tendo que enfrentar a dura e vexamosa deportao para
Portugal, depois da morte do seu monarca protetor.
Enveredar pela prosastica vieiriana impe analisar alguns requisitos enunciativos 48
que condicionam e emolduram a expresso de seu pensamento. A discursividade do jesuta
sempre d indcios de ficar como que emparedada: de um lado, ela demonstra o impulso de
subsistncia de uma dose de sabedoria prosaica , como no caso do epistolrio em tela; de 49
outro lado, acha-se presa a um cristianismo castrense , ou seja, a uma ordem de discurso que
lhe impe regras de formao e certa dose de submisso a modelos oficiais de discursividade,
como no caso das cartas jesuticas e de certos escritos polticos de menor importncia.
Passo a exemplificar alguns desses condicionamentos discursivos, fazendo referncia
a um memorial escrito por Vieira ao prncipe regente, D. Pedro I. Escrito aps a morte de D.
Joo IV monarca que ostensivamente apadrinhou Antnio Vieira em muitas de suas
doidices , o memorial aqui confrontado tem uma finalidade eminentemente prtica: fazer
corte ao prncipe, destinatrio do apontamento e smbolo vivo do poder, responsvel pela
gestoria da monarquia . O escrito justifica-se diante da necessidade de anexar certides de 50
mercs ao requerimento de seu pai, Bernardo Vieira Ravasco, para que Gonalo Ravasco, seu
irmo, seja sucessor do falecido no ofcio de secretrio de estado no Brasil. Por considerar a
pea uma interlocutoria oportuna para demonstrao do prestgio supostamente gozado, o
jesuta resolve, na verdade, juntar ao memorial duas certides: uma, das mercs que se
desfizeram (falando do pai); e outra, das mercs que no fizeram a seu irmo (falando de si
mesmo).
Impunha-se cortejar o regente, por isso o memorial uma pea articulada e
formal, fazendo apelo justia e razo do prncipe para o atendimento ao pleito
do irmo, em razo do histrico das principais serventias concedidas por Vieira em
favor da monarquia. Na escrita evidencia-se a moderao da criatividade do jesuta
e um descomedimento na articulao de suas qualidades. Pino apenas o trecho
Observo que enunciado aqui no termo usado no sentido de uma verdade demonstrada ou que se quer 48demonstrar, muito menos no sentido de proposio, como parte de um silogismo. O exerccio lgico no condiz com a escrita de Vieira.
Termo cunhada por Bakhtin, citado por MORSON & EMERSON, Criao de uma prosastica, p. 33.49
Expresso utilizada por LOUREIRO, idem, p. 123.50
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#28
final da certido das mercs no feitas ao irmo, no qual Vieira decide expor,
cronologicamente, o desempenho de suas funes ao Estado em negcios Coroa
Portuguesa na Frana, na Holanda e em Roma, no auge da influncia exercida sobre
o pai do destinatrio da pea. Enfim, uma escrita laudatria de sua prpria pessoa,
sem qualquer vivacidade prosastica. , na verdade, um atestado pelo qual Vieira
cobra da Coroa o pagamento por servios que ele se sentiria credor at o final de
sua vida.
"""Esses so, senhor, por maior os servios do padre Antnio Vieira em 38 anos, to baixamente avaliados nos registros das mercs de vossa alteza, que s se alegam por parte do merecimento, para se dar a um filho do proprietrio o ofcio de seu pai, que nenhum rei de Portugal negou. ""
E porque o padre Antnio Vieira s conhece o seu zelo, e sabe o que obrou e padeceu
em servio do seu rei, assim com no pede mercs por seus servios, assim sente muito que
no hajam certides em que se diga, que esto premiados em seu irmo, e com tal prmio; por
esta causa fez este breve resumo dos ditos servios, e lhe chama certido das mercs que ao
dito irmo se no fizeram. 51
A citao tem por finalidade demonstrar o engessamento da loquacidade de Vieira. A
conteno de sua habitual parolice comprova, mais uma vez, que o finalismo vieiriano
sumamente prtico. Com propriedade, registram Xavier & Hespanha que os conceitos 52
polticos nos sculos XVII e XVIII certificavam uma prtica poltico-administrativa guiada
pela busca, por quaisquer meios, da utilidade e da vantagem poltica. [...] Tais eram no s as
propostas tericas dos polticos maquiavlicos, como a prtica dos alvitristas (de alvitre,
VIEIRA, Escritos histricos e polticos, p. 425.51
XAVIER, ngela Barreto; HESPANHA, Antnio Manuel. A representao da Sociedade Portuguesa. In 52Histria de Portugal. Direo: MATTOSO, Jos. Lisboa: Editorial Estampa. Vol. IV - O antigo regime (1620-1807), 1998, p. 115.
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#29
arbitrium), inventores de expedientes para realizar a utilidade (normalmente financeira) da
coroa [...], salientam os mesmos autores 53
Vieira se embrenha num modelo discursivo da cultura oficial exclusivamente com o
intuito de obter uma vantagem, seja para si mesmo, seja para seu irmo um alvitrista
bastante idneo em todas as instncias de sua vontade. A deferncia pessoa real impunha a
forma peticional frondosa e rogacional. O refreamento criatividade era uma injuno no
apenas circunstancial e protocolar: Vieira nunca gozou de muito crdito junto a D. Pedro I e
precisava angariar algum valimento para sua pessoa, ao menos em assuntos de ordem
particular. Da porque a expressividade do memorial mnima, a rodear um fato tambm
insignificante, perfeitamente adaptado discursividade oficial. ""Para estes modelos criados com base na experincia menor e particular caracterstico um pragmatismo e um utilitarismo especficos. Servem de esquema para uma ao interessada e prtica do homem e neles, com efeito, a prxis determina a conscincia. Por isso, representam um ocultamento deliberado, a mentira, as mentiras piedosas de todo tipo, a ninharia e a mecanicidade do esquema, a monovalncia e a unilateralidade da valorao. 54
No cabe aqui discutir a folha corrida do Padre Vieira em prol da Coroa. Ponho em
jogo a forma de utilizao de seus servios prestados em uma praxe que chega a ser
mesquinha embora ordinria, como a da transmisso hereditria de cargos pblicos , mas
idnea a gerar uma discursividade mecanicista, que clama os excessos de tibieza de quem
peticiona, pouco importando os anseios da verdade, calados pela vontade de quem decide. O
cortejo principesco de Vieira prescinde da verdade e, se parte dela desponta, logo furtada
destreza do estilo solene e untuoso. Trata-se de uma prtica costumeira e basilar da cultura de
servios do contratualismo portugus do Antigo Regime (v).
Idem, p. 115 (itlicos meus).53
BAKHTIN, Hacia una filosofia del acto tico, p. 154. Texto no original, por mim traduzido: [...] Para estos 54modelos creados en base a la experiencia menor y particular del hombre es caracterstico un pragmatismo y un utilitarismo especficos. Sirven de esquema para una accin interesada y prctica del hombre e en ellos, con efecto, la praxis determina la conciencia. Por eso representan un ocultamiento deliberado, la mentira, las mentiras piadosas de todo tipo, la simpleza y la mecanicidad del esquema, la monovalencia u la unilateralidad de la valoracin [...] (itlicos meus).
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#30
Fao notar que o trecho transcrito do memorial no carregado sequer de mentiras
piedosas, porque o jesuta no demonstra buscar a piedade do regente. Por trs da etiqueta
protocolar da interlocutoria, ele no consegue escamotear uma cobrana que paira sobre o
pedido de seu irmo. H aqui somente ocultao e pequenez. O que legitima a querela no
o favor real, mas a troca de indulgncias reais no contexto de um utilitarismo deteriorado,
prprio da administrao nascedoura. Nesse discurso oficial, a verdade nunca autorizada a
vir a furo, porque se viesse ela teria que assumir uma feio bivocal, desinteressada,
indiferente aos destinos particulares.
No difcil perceber que Vieira contumaz em prticas discursivas constrangidas,
ordenadas e pelo que se supe limpas, que tendem a se sobrepor tanto conscincia do
autor do discurso como a de seus destinatrios. Nesse desenho elocutrio, Vieira faz uso de
estofos epistolares rigidssimos , como o da Companhia de Jesus, sem que o realmente novo
possa fluir. Para longe do territrio das cartas, Vieira o monstro que tateou o mito
prometaico de furtar o fogo aos deuses, e se serviu de modelos sermonrios concorrenciais ao
tempo meta-histrico e prpria histria luso-brasileira dos Seiscentos . Deste radical 55
herico diz Dugos ficou-nos a universalidade, amputada do imprio de Deus na terra.
[...] Da Humanidade, iluminada por Prometeu e agindo pela razo titnica ficou-nos o livre
arbtrio e a crtica, amputados da dimenso sagrada [...], conclui o mesmo autor. 56
Seus sermes esto distantes de um riscado homogneo e normatizante, por serem
verdadeiras catedrais literrias do engano no mundo, onde ele se permite atitudes 57
acrobticas a partir do seu ethos heroico. O que neles levado em conta no um contedo
terico ou pragmtico, mas um procedimento quase cirrgico sobre circunstncias concretas.
A loucura e os desenganos que em Vieira no se cabem radicam na liberdade
circunstancial de sua vontade.
Cortejar prncipes em modelos discursivos oficiais para obter mercs para si e para o
irmo, lisonjear precipcios, ou derreter cristais ou desmaiar jasmins em sermes quase
Cf. DUGOS, Carlos. Metforas do V Imprio e de outras utopias. Nova gua - Revista de Cultura para o sc. 55XXI. Edio: Associao Agostinho da Silva. Sintra: Zfiro, n. 2. 2 semestre de 2008, p. 17 (grifei).
Idem, p. 17 (itlicos meus). 56
Apropriao da expresso cunhada por MENDES para o Sermo da Sexagsima (in: 2003, p. 149).57
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#31
escatolgicos no so condio suficiente para assegurar o surgimento da verdade no discurso
de Vieira. Mas, em contrapartida, o teor de sua discursividade no deixa de ser a substncia
oculta ou a orientao transcendente que justifica sua ao no mundo real, quer em
experincias sem muita valia, como no caso do memorial citado, quer em de maior monta,
como no caso das cartas prosasticas como preldio de uma Repblica missionria.
Quando fao voltar o ponteiro do tempo, percebo que na tradio oratria crist o
emparedamento de Vieira torna-se paradoxal. As prticas sermonrias do jesuta radicam nos
pregadores famosos do Oriente, como So Joo Crisstomo, e do Ocidente, como Santo
Agostinho. O gosto pela oratria dos pais da Igreja fazia os ouvintes aplaudirem e se
empolgarem quando a figura retrica lhes agradava. Mas o efeito final dessa tradio, por
mais despropositado que possa parecer, era a simplicidade, subordinada clareza pedaggica,
quando a construo de frases devia soar por vezes quase coloquial.
Ao analisar essa tradio oratria, afirma Auerbach : [...] Temos aqui uma retrica 58
pragmtica, composta de elementos solenes e cotidianos, destinados doutrinao e
admoestao [...] Enfim, uma espcie de teatro didtico, onde as cenas e gestos no se
limitam a ensinar a lio, mas buscam tambm representar as reaes que a lio deve
suscitar. Vieira foi um dos maiores artfices nesta arte de disfarar e de revelar medos
intocveis e e esperanas quase palpveis, na tribuna sacra ou abaixo dela.
Os modelos oficiais de discursividade, cujo exemplo aqui foi trazido, repelem a
abertura de conscincia dos autores e destinatrios das elocues. Eles so reverentes, e
comportados: pressupem a ordem, exigem artificialidade e fabricam a pureza. Nunca
chegariam a ser prosasticos. Os sermes de Vieira, por sua vez, parecem dar seguimento aos
passos da tradio da retrica pragmtica em rumo sonhada simplicidade. A verdade no
lhes repugna porque neles ela no protocolar: litrgica, epifnica e confortavelmente
repetitiva. Repetita iuvant. As coisas repetidas so teis: eis um aforismo escolstico,
prosaicamente entalhado a Vieira. No so atos repetitivos e teis, mas necesssrios ao
cotidiano litrgico e solene, quando o dia a dia dever estar pronto para acolher cada
momento do discurso em sua irrupo de acontecimentos . dizer: abrigar o cotidiano 59
In: 2007, p. 35 (itlicos meus).58
In: A arqueologia do saber, p. 28.59
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numa disperso temporal [...] que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado,
apagado at os menores traos, escondido bem longo de todos os olhares, na poeira dos
livros [...], como salienta Foucault . Tudo isso segundo o discernimento de um ator de 60
tantos desenganos como Antnio Vieira.
A discursividade de Vieira em dadas circunstncias parece reclamar uma interveno
bakhtiniana, ainda que com todo desvelo. Diz Bakhtin que a retrica, [...] na medida de sua falsidade 61
[lzhivos], tende a produzir justamente o medo ou a esperana [...] Fao a presente citao com o
intuito de escorar ou deixar desabar de vez o mundo-em-construo nas cartas prosasticas de Vieira.
Medo e esperana so imoderadamente suscitados nos sermes. So ambivalncias, no desatinos. Ou,
antes, uma questo de escolha do jesuta diante de circunstncias abertas e concretas.
Os acontecimentos contados por Vieira nas cartas aludidas, os seus insistentes remdios ou
a propositura de desfechos plausveis no trato de questes polticas guardam similitude com as
figuraes utilizadas com a inteno de persuadir (vi) os dignatrios da nao portuguesa a coibir a
sanha dos colonos e prescrever um estatuto jurdico que permitiria a construo de uma Repblica
igualitria nas provncias do Maranho e Gro-Par. So figuraes que geram muito mais
esperana do que medo. No jogo entre a aparncia e a realidade do registro do cotidiano, Antnio
Vieira presentifica e atualiza a tentativa de edificar uma sociedade mais justa. A dissimulao um
componente genuinamente coadjuvante em cada lance.
Passo a destacar trechos de duas cartas rgias. A primeira, tirada da carta a D. Joo IV, de
20 de maio de 1653, quando Vieira ainda gozava de alguma autoridade junto a el-Rei. Sentia-se
embaixador plenipotencirio do rei, julgando sempre que este lhe havia encomendado a converso
da gentilidade e a conservao e o aumento a f. A carta serve para dar conta dos desamparos
espirituais que em todas as partes se padeciam, apontando-lhes as causas e os remdios com que se
podia acudir. Interessa transcrever o fragmento que trata dos ndios que moram em suas aldeias
com ttulos de livres, que Vieira considera mais cativos do que os que moram nas casas
particulares dos portugueses. "
In: A arqueologia do saber, p. 28.60
BAKHTIN, Hacia una filosofia del acto tico, p. 138. Texto original, por mim traduzido: [...] La retrica, en 61la medida de su falsedad [lzhivos], tiende a producir justamente el miedo o la esperana [...] (itlicos meus).
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Mandam-nos servir violentamente a pessoas e em servios a que no vo seno forados, e morrem l de puro sentimento; tiram as mulheres casadas das aldeias e pem-nas a servir em casas particulares, com grandes desservios de Deus e queixas de seus maridos, que depois de semelhantes jornadas muitas vezes se apartam delas; no lhes do tempo para lavrarem e fazerem suas roas, com que eles, suas mulheres e seus filhos padecem e perecem; enfim, em tudo so tratados como escravos, no tendo a liberdade mais que no nome, pondo-lhes nas aldeias por capites alguns mamelucos ou homens de semelhante condio, que so os executores dessas injustias, com que os tristes ndios esto hoje quase acabados e consumidos; e, para no acabarem de se consumir de todo, estiveram abaladas as aldeias este ano para se passarem a outras terras, onde vivessem fora desta sujeio to malsofrida, e sem dvida o fizeram, se por meio de uma padre, bom lngua, os no reduzramos a que esperassem nova resoluo de V. M [...] 62"
O segundo trecho pinado da outra missiva escrita a D. Joo IV, em 4 de abril de
1654, quando o monarca faz a merc ao jesuta de mandar emitir parecer sobre a convenincia
de haver no Estado do Maranho ou dois capites-mores ou um s governador. De pronto,
lanceta Vieira que menos mal ser um ladro que dois; e que mais dificultosos sero achar
dois homens de bem que um. O fragmento que se segue no se limita a descrever as mazelas
dos ndios. Fala das necessidades de que padecem muitos portugueses. Tudo isso sai do sangue e do suor dos tristes ndios, aos quais trata [o capito-mor] como to escravos seus que nenhum tem liberdade, nem para deixar de servir a ele, nem para poder servir a outrem; o que, alm da injustia que se faz aos ndios, ocasio de padecerem muitas necessidades os portugueses e de perecerem os pobres. Em uma capitania destas confessei uma pobre mulher, das que vieram das Ilhas [os Aores] , a qual me disse, com muitas lgrimas, que, de nove filhos que tivera, lhe morreram em trs meses cinco filhos, de pura fome e desamparo; e, consolando-a eu pela morte de tantos filhos, respondeu-me: Padre, no so esses por que eu choro, seno pelos quatro que tenho vivos sem ter com que os sustentar, e peo a Deus todos dos dias que mos leve tambm. So lastimosas as misrias que passa esta pobre gente das Ilhas, porque, como no tm como que agradecer, se algum ndio se reparte no se lhe chega a eles, seno aos poderosos; e este um desamparo a que V.M. por piedade devera mandar acudir com efeito: mas tambm a isto se acode nos captulos de um papel que com esta vai [...] 63"
VIEIRA, Carta ao Rei Dl Joo IV, de 20 de maio de 1653. In: Cartas, Joo Lcio de Azevedo, vol. I, pp. 62239/40 (itlicos meus).
VIEIRA, Carta ao Rei D. Joo IV, de 4 de abril de 1654. In: Cartas, Joo Lcio de Azevedo, vol. I, p. 311 63(itlicos meus).
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Com facilidade se percebe nesses trechos o distanciamento de Vieira dos chamados
modelos oficiais de discursividade. Evidencia-se nessas missivas uma prxis tendente a
repercutir na conscincia dos seus destinatrios a urgncia de transformar aquele injustssimo
cotidiano. Vieira vocifera por um mundo menos monovocal e tanto quanto possvel mais
ntegro um cometimento no finalizvel, que jamais fica isento dos enganos do seu sculo.
No se trata de uma praxe apequenada, pois repele um discurso automatizado ou e a fraqueza
do elocutor. por meio delas que o Padre Vieira determina seus anseios pelo genuinamente
novo. E tenta prefiro crer armar o biombo da dissimulao numa experincia muito
mais louvvel do que pedir a sinecura para o irmo: quer ver fixados em seu discurso os
andaimes de instituies polticas mais igualitrias.
Os fragmentos citados do a forte impresso de estarem carregados de mentiras
misericordiosas. O que neles se v uma forma de entonao em que o peso das
circunstncias tende a encontrar uma expresso legtima nas figuraes presentificadas pelo
jesuta. Esta entonao permite estabelecer um liame entre a elocuo e o contexto
extraverbal. Um vnculo estabelecido pela vivacidade prosastica que leva a palavra para alm
dos limites de suas prprias fronteiras verbais. Aqui, a verdade precisa vir tona no pelas
formas ordenadas e sacramentais, mas pela construo de imagens capazes de replicar os
eventos prosaicos ou extraordinrios daqueles tristes trpicos na conscincia dos destinatrios
das missivas.
A Vieira no basta dizer que os ndios morrem e so escravos. Prefere ostentar imagens
paradigmticas, certamente de que eles [...] morrem l de pleno sentimento [...]; [...]
em tudo so escravos, no tendo a liberdade mais que no nome [...]; e [...] esto hoje quase
acabados e consumidos [...] [...] Tudo isso sai do sangue e do suor dos tristes ndios, aos 64
quais trata [o capito-mor] como to escravos seus que nenhum tem liberdade, nem para
deixar de servir a ele, nem para poder servir a outrem [...] . No s a exposio dos 65
acontecimentos que circundam os ndios sofre entonao. Tambm o relato sobre os
miserveis portugueses que l aportaram, vivendo em enorme penria. Vigorssima a cena
VIEIRA, Cartas, Joo Lcio de Azevedo, vol. I, p. 239.64
VIEIRA, Cartas, Joo Lcio de Azevedo, vol. I, p. 311.65
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da viva que, de nove filhos que tivera, perdera trs de fome: [...] Padre, no so esses por
que eu choro, seno pelos quatro que tenho vivos sem ter com que os sustentar, e peo a Deus
todos dos dias que mos leve tambm [...] 66
O alegado emparedamento de Vieira requer certo tino, tanto quanto seu livramento. O
jesuta no chega a oficiar missas em altares foucaultianos. Tambm no consigo v-lo em
sotainas bakhtinianas. Vieira submete-se, sem dvida, a uma ordem de discurso ou a uma
ordem narrativa , mas abre horizontes criativos a partir de elocues nas quais texto e
realidade fundem-se na essncia do vivido. So as representaes (ou presentaes) contidas
nas cartas rgias que asseguram a reflexibilidade entre o smbolo e a vida, entre a imagem e a
realidade, nas quais esta sempre ofuscada pela fora da imago.
Morson adverte que o objeto do esforo humano decorrente do processo de 67
criatividade levado a efeito num mundo no qual selves reais eu preferiria dizer egos
criam, exercitam escolhas, tomam responsabilidades e se desenvolvem inesperadamente
enquanto interagem com um mundo igualmente incerto. Intercalando essas consideraes
com a prosastica prpria de Vieira, parece-me que as cartas pem em evidncia pontos de
interceptao entre o momento do discurso em sua irrupo de acontecimentos e a fora das
decises prosaicas e dirias. No teatro vieiriano, este processo impulsionado pelas dobras do
diversificado e do dissimilante , pelo embate entre a teoria e a vida diria, entre abstraes e 68
concretudes.
Um dos resultados verossmeis dessas intersees seria visualizar as cartas como
interlocutorias com cotidianos inflexveis no como emulaes com o prncipe regente ou
com o monarca. Outro efeito seria engendrar imagens litrgicas a partir daqueles cotidianos,
em que so pronunciadas epifanias de uma repblica fracassada e litanias a el-Rei no
ressuscitado. O paradoxo da simplificao, imposto pela ordem, perdura nos dois casos: no
das epifanias, por tentar invocar-se a esperana e anseios de verdade num mundo inacessvel a
VIEIRA, Cartas, Joo Lcio de Azevedo, vol. I, p. 311.66
MORSON, & EMERSON, Rethinking Bakhtin, p. 11. 67
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elas; no das litanias, por tentar recompor-se a realizao do mito das bem-aventuranas
terrenas no cotidiano j vivido.
Entre 1655 e 1661, Vieira devotou-se a uma atividade missionria prodigiosa enquanto
se dedicava a proferir as epifanias de sua Repblica Missionria. As tribos do interior lhe
chamavam de Paj Au (Grande Pai) e essas mesmas tribos se uniram a vilas portuguesas. E
Vieira um novo Francisco Xavier as convertia em massa. Foram anos triunfais, cujos
sucessos e fracassos foram relatados com matizes verdadeiramente prosasticos aos reis e
prncipes portugueses. Essa situao segue at a expulso dos jesutas do Maranho e do
Gro-Par e o retorno de Vieira a Portugal, quando padece o longo processo inquisitorial.
Vencia o sonho do eldorado mais factvel e presto, alcanado pelo trabalho escravo e
pela matana dos ndios. O prprio Vieira, citado por Ribeiro , descrevendo os rios que 69
visitara uma dcada antes, espantara-se com a quantidade de gente dizimada pelos colonos.
Ele fala certamente sem exagero de 2 milhes de ndios que se teriam gasto e se
continuavam gastando. Um genocdio que lanava a p de cal sobre um modelo-vivo do
pensamento utpico-prosaico portugus.
Em meio a essa atividade missionria robusta, Vieira, mesmo trpego sobre uma canoa
pelo Amazonas, redige as Esperanas, o seu primeiro escrito sobre o maior ideal de sua vida:
a consumao do Reino de Cristo na Terra, que vinha estudando desde a sua entrada na
Companhia de Jesus em aprofundadas investigaes bblicas, com as quais tentava descobrir
na mediao dos profetas e de Bandarra as referncias ao papel de Portugal nessa
empresa.
Vieira certamente extrapolou ao escrever seus textos profticos, atropelando a teologia oficial romana, namorando a heresia, colocando as causas da monarquia acima de quaisquer outras. Pagou preo alto por sua coragem e independncia intelectual, seja na Companhia de Jesus, seja no foro temerrio da Inquisio portuguesa [...] 70
" RIBEIRO, apud GUIRADO, Marica Ceclia. Notcias do Brasil no sculo XVII: Vieira e a globalizao. Nova 69
gua - Revista de Cultura para o sc. XXI. Edio: Associao Agostinho da Silva. Sintra: Zfiro, n. 2. 2 semestre de 2008, p. 46.
VAINFAS, idem, p. 284 (itlicos meus).70
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#37
Enquanto as cartas ditas rgias seguem convenes de um tempo real o hic et nunc
num cotidiano experimentado e sofrido as Esperanas s contemplam fatos
extraordinrios. Por meio dessa carta, escrita ao Bispo do Japo, pode-se deleitar com o
numinoso, to caro alma portuguesa. Mas o numinoso no a voz do cotidiano e por esse
motivo no permite a compreenso prosastica da realidade como as cartas prosasticas de
Vieira certamente buscam alcanar. No seu universo de trabalho, o jesuta precisava dar ao
mundo um segundo mundo e uma segunda vida em pecados declarados para fazer chover a
graa e ler nas estrelas os sinais do amanh de um ontem bastante prspero. 71
Vieira desvela arcanos e se expe nas Esperanas de Portugal: nelas o caos troveja ao
tangenciar eventos que deveriam ser nicos e irrepetveis. Nessa desordem intencional e
contextualizada, Vieira coleciona instantes do presente que [...] imos vivendo onde o
pretrito termina e o h-de ser presente comea [...]. Nas Esperanas, ele dirige sua 72
argcia ao prodgio, surpreendncia dos eventos sobrenaturais, decantados em seu discurso
proftico. Tem a habilidade de remexer no mito do Encoberto, transferido da persona do
Desejado, Dom Sebastio, de Dom Joo IV. Tudo isso feito contra as expectativas dos
partidrios do sebastianismo, originalmente tomado pelo povo como uma espcie de logro
salvfico contra a vergonha e humilhao nacional, aps a derrota de Alccer-Quibir.
Como sabido, esta carta, que serviu de pretexto para o processo inquisitorial, tem por
essncia a ressurreio de D. Joo IV, deduzida a partir da interpretao das trovas de
Bandarra. Vieira a escreve a partir do clebre silogismo: [...] O Bandarra verdadeiro
profeta; o Bandarra profetizou que el-Rei D. Joo h de obrar muitas cousas que ainda no
obrou, nem pode obrar seno ressuscitando; logo, el-Rei D. Joo o quarto h de ressuscitar
[...]
Ao tentar provar as trs proposies, Vieira reantecipa a compreenso do mito do
encoberto, como histria paradigmtica e simblica que, pelos atos de seus protagonistas e
pelo sentido do seu enredo, testificariam uma antiqussima experincia humana, mais
MOTTA, Marcus Alexandre. Esta nova e nunca histria de Antnio Vieira - o livro anteprimeiro e outros 71escritos. Rio de Janeiro: UERJ Publicaes Dialogarts, 2008, p. 29 (itlicos meus).
MOTTA, idem, p. 29. (itlicos meus e originais).72
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#38
profunda: [...] a arca ou o arcano de uma indizvel e longa revelao ntica [...] . De fato, 73
ao tentar convencer o leitor das Esperanas sobre a combinao de dois versos das Trovas: O
rei novo levantado (1 sonho) e O rei novo acordado ( 2 sonho), argumenta o jesuta
em textura barroca e apodctica:
Estava el-Rei D. Joo encoberto dentro de si mesmo; e alguns acidentes del-Rei, em que mais se reparava, era uma cobertura e disfarce natural, com que Deus tinha encoberto nele o que queria obrar por ele, para que sejam mais maravilhosas suas maravilhas. Leiam agora os curiosos todas as profecias de Bandarra, assim as que contm os sucessos j passados, como as que prometem os futuros, e em todas elas no acharo diferena individuante, nem sinal ou /fl.307.v/ qualidade pessoal alguma do monarca profetizado, mais que estas aqui que temos fielmente referidas, as quais todas so to prprias da pessoa de El-Rei D. Joo o 4, lhe quadram todas to naturalmente e sem violncia, que bem se est vendo que a ele tinha diante dos olhos, e no a outro, quem com cores to vivas e to suas o retratava. Com que fica evidentemente mostrado e demonstrado que o Senhor Rei D. Joo o 4, que est na sepultura, o rei fatal de que em todas suas profecias fala Bandarra, assim nas que j se cumpriram, como nas que esto ainda por suceder [...] 74"
O rei estava encoberto e voltaria numa manh de nevoeiro, montado no seu cavalo
branco. Bandarra, Simo Gomes, D. Joo de Castro, os historiadores-profetas de Alcobaa o
diziam, o povo luso o queria e o esperava. Vieira, reinterpretando as charadas do apateiro 75
de Trancoso, entronizar, por convenincia, o outro Encoberto ou outros Encobertos. O rei
fatal estava encoberto dentro de si mesmo, seria acordado e voltaria a reinar. Tudo crvel no
discurso de Vieira: nada desproposital e, ao mesmo tempo, todo evento discursivo
estranhamente acidental. Tudo mistura de texto e contexto, de realidade e de representao
da realidade sem ningum poder afirmar o que prevalece.
QUADROS, Antnio. Poesia e filosofia do mito sebastianista polmica, histria e teoria do mito. vol. II. 73Lisboa: Guimares & Cia Editores. 1983, p. 116 (itlicos meus).
VIEIRA, Esperanas de Portugal. Quinto Imprio do Mundo. Primeira, e segunda vida del-Rei Dom Joo 74Quarto. Escritas por Gonaliannes Bandarra. In: Os Autos do Processo de Vieira na Inquisio 1660-1668/ edio, transcrio, glossrio e notas Adma Muhana. 2 ed. ampliada e revista. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2008, p. 60 (itlicos meus).
apateiro forma histrica da grafia de sapateiro no sculo XIV. Cf. verbete Sapateiro, in HOUAISS, 75Antnio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2516.
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#39
Quando escreve um memorial ao prncipe regente, Vieira prefere envaidecer-se
discorrendo sobre suas serventias Coroa a pedir o cargo para o irmo. Ao redigir cartas aos
reis e prncipes portugueses, ele no se limita a narrar os sofrimentos e a matana de ndios e
as mazelas dos suicidados portugueses encurralados pelo medo: explora nelas o rico potencial
prosastico a fim convencer o monarca a dar sustento sua Repblica solidria. Quando,
enfim, o sonho repblico sucumbe, Vieira quer tomar posse de esperanas do povo portugus,
por no se conformar com a morte de el-Rei: escreve as Esperanas [...] em uma canoa em
que vou navegando no rio das Almazonas [...] . Por elas no s espera pela sua segunda vida 76
de el-Rei, como tambm anuncia o Quinto Imprio do Mundo, sob a tutela de Portugal. No
efeito de tantos sucessos, diz Vieira, [...] certo e certssimo de que no me engano; no
cmputo do tempo, de que no tenho tanta segurana, tambm presumo que me no hei de
enganar [...] Enganou-se; mas nos legou suas epifanias e litanias. 77
O Imperador da lngua portuguesa faz correr o novelo de seu infalvel instrumento 78
de trabalho no passadio do cotidiano em que viveu, pregou, transformou, converteu e
resgatou ndios, conquistou almas a Cristo, praguejou, vociferou, perorou, pacificou,
dulcificou, retesou, lutou com palavras e com armas (quando estas lhe convinham), profetizou
as prprias profecias, corroborou as de outros profetas e, por fim, perdeu-se em tantos
desenganos. Em Vieira, o [...] incmodo confronto com a alteridade e a diferena [...] no 79
implicou o abandono do seu sincero missionamento e da ideia do Brasil como Repblica
Missionria, que pretendia ser protecionista dos desiguais. Essa passou a ser uma obsesso,
ainda que em Vieira todo empreendimento se reparta em pedaos aparentemente
inconciliveis.
Diante dos panoramas e paradigmas civilizatrios abertos com o Novo Mundo, a
diferena do outro precisava ser aquilatada no teatro dos Seiscentos e na experincia viva: na
VIEIRA. In: Os Autos do Processo de Vieira na Inquisio 1660-1668, p. 39.76
VIEIRA. In: Os Autos do Processo de Vieira na Inquisio 1660-1668, p. 68.77
Terceiro verso do poema Antnio Vieira, in PESSOA, Fernando. Mensagem. So Paulo: Companhia das 78Letras, 1998, p. 84.
CAVALCANTI FILHO, Jos Paulo. Fernando Pessoa, uma quase autobiografia. Rio de Janeiro: Record, 792011, 4 ed, p. 547.
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#40
surpreendncia dos acontecimentos previsveis ou imprevisveis do dia a dia, no no discurso
oficial ou proftico. A alteridade devia ser exibida s geraes posteriores nas reais
potencialidades de presentaes cotidianas e evolutivas, por irradiao e por contgio da
prpria lngua e cultura portugue