alberto. joão. estado e poder de classe dos gestores

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Texto que resume a teoria dos gestores enquanto classe a partir de João Bernardo.

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  • Histria e Perspectivas, Uberlndia (48): 191-214, jan./jun. 2013

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    O ESTADO E O PODER DE CLASSE DOS GESTORES.

    Joo Alberto1

    RESUMO: Apresento neste artigo uma reflexo sobre o conjunto da obra terica de Joo Bernardo, historiador marxista portugus, e enfatizando a centralidade conceitual dos Gestores (tecnocracia) como classe dominante capitalista e o seu poder institucional de controle do processo produtivo capitalista, tanto na organizao das condies gerais de produo, sob a mediao institucional do Estado Restrito (Poder Pblico), como no controle da produo e realizao da mais-valia, sob a mediao institucional do Estado Amplo (Empresas).

    PALAVRAS-CHAVE: Gestores. Estado Restrito. Estado Amplo.

    ABSTRACT: In this paper I present a discussion and reflect upon the theoretical work of Joo Bernardo, a Portuguese Marxist historian. Emphasis is given on the concept of managers (technocracy) as a dominant capitalist class and their institutional power over the process of the capitalist mode of production. I also further discuss the general organization of the conditions under which production occurs, being it mediated by the institutional Restricted State (public power); or on the control of production and the attainment of surplus value, mediated by the institutional Wide State (companies)

    KEYWORDS: Managers. Restricted State. Wide State

    1 Professor Adjunto na Faculdade de Histria da Universidade Federal de Gois (UFG) e Doutor em Histria Contempornea pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected]

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    Apresento neste artigo uma breve reflexo sobre o conjunto da obra terica de Joo Bernardo, historiador marxista portugus, e enfatizando a centralidade conceitual dos Gestores (tecnocracia) como classe dominante capitalista e o seu poder institucional de controle do processo produtivo capitalista, tanto na organizao das condies gerais de produo, sob a mediao institucional do Estado Restrito (Poder Pblico), como no controle da produo e realizao da mais-valia, sob a mediao institucional do Estado Amplo (Empresas). Trata-se de um artigo de descrio conceitual cujo propsito o de se apresentar como uma introduo ao universo temtico-conceitual do marxismo bernardiano. Para efeito de melhor justificar o sentido historiogrfico da matriz conceitual do autor, antecedo essa exposio com uma notcia da trajetria poltica do autor e uma apreciao global da sua produo bibliogrfica.

    Joo Bernardo Maia Viegas Soares nasceu em 1946 na cidade do Porto em Portugal. Em 1966, foi impedido judicialmente de estudar em qualquer Universidade portuguesa, vtima de uma condenao imposta pelo Supremo Tribunal de Justia por causa de uma suposta agresso ao reitor da Universidade de Lisboa, acontecida em 01 de abril de 1965, quando o autor era aluno do primeiro ano do Curso de Histria na Faculdade de Letras. Desse acontecimento, na verdade uma discusso com o reitor e no uma agresso houve luta corporal com dois funcionrios que impediram a aproximao de Joo Bernardo ao reitor, elaborou-se extenso processo administrativo que culminou, em 1966, com a sentena da expulso de todas as universidades pelo perodo de oito anos. Mesmo impedido de frequentar instituies acadmicas, Joo Bernardo manteve-se clandestinamente no meio estudantil, como um dos principais articuladores das lutas de resistncia contra o regime fascista portugus. Em meados de 1968, pela represso imposta pela PIDE (Polcia Internacional de Defesa do Estado) - rgo mximo da represso fascista do regime salazarista - contra as agremiaes polticas dos estudantes decidiu-se pelo exlio em Paris.2

    2 Sobre o processo de expulso de Joo Bernardo e a defesa do seu advogado (seu pai) consultar: SOARES, lvaro. Recurso do estudante Joo Bernardo

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    Era militante do PCP (Partido Comunista Portugus), mas nessa conjuntura (1965-1968) j estava sob a influncia do programa comunista dissidente desenvolvido pelo Camarada Campos (Francisco Martins Rodrigues). Um programa apresentado na revista Revoluo Popular (editada por Martins Rodrigues) e que teria como corolrio a organizao comunista maosta do CMLP (Comit Marxista Leninista Portugus).3 Joo Bernardo esteve sob a influncia do programa de Martins Rodrigues, mas manteve-se vinculado ao PCP (at 1966, quando o abandona) e, diante da heterodoxia do programa de Martins Rodrigues, organizou no interior do CMLP (quando j estava exilado em Paris a partir de agosto de 1968), no perodo de 1968 a fins de 1969, um programa terico poltico em defesa de um maosmo libertrio. Programa que teve como corolrio institucional a organizao dos Comits Comunistas Revolucionrios (CCRs), prticas que o levaram ao rompimento poltico definitivo com o PCP e ao rompimento ideolgico com o CMLP. De volta clandestinamente a Portugal, foi preso trs vezes por atuar no SCIP (Secretariado Coordenador da Informao e Propaganda), rgo federativo estudantil, no reconhecido oficialmente pela legislao estatal,

    Maia Viegas Soares da pena disciplinar de oito anos de excluso de todas as escolas nacionais. Lisboa: Edio do Autor, 1966, 74 p.; e ainda, SOARES, lvaro. Para o pleno: reclamao do despacho que no admitiu o recurso do Estudante Joo Bernardo Maia Viegas Soares do Acrdo que confirmou a pena disciplinar de oito anos de excluso de todas as escolas nacionais. Lisboa: Edio do Autor, 1968, 59 p.

    3 Sobre a conjuntura poltica e os impasses da esquerda portuguesa nas dcadas de 1960 e 1970, consultar, entre outros, os trabalhos de: ROSAS, Fernando; OLIVEIRA, Pedro Aires (Coord.). A transio falhada: o marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974). Lisboa: Notcias Editorial, 2004 (especialmente o captulo dois As oposies de esquerda e a extrema-esquerda de Joo MADEIRA, p. 91-135); CARDINA, Miguel. A esquerda radical. Coimbra: Editora AngelusNovus, 2010; MAXWELL, Kenneth. O imprio derrotado: revoluo e democracia em Portugal. So Paulo: Companhia das Letras, 2006; e SECCO, Lincoln. A revoluo dos cravos e a crise do imprio colonial portugus. So Paulo: Alameda, 2004. Os volumes da Revista Revoluo Popular foram reeditados por Francisco Martins RODRIGUES em edio fac-smile: Comit Marxista-Leninista Portugus. Revoluo Popular. Edio completa, 1964-1965. Lisboa: Edies Voz do Povo, 1975.

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    pois s permitia associaes acadmicas restritas s unidades de ensino. Ali organizou vrias clulas polticas formalmente prximas do CMLP que, no entanto, acabaram por se constituir como a base futura dos CCRs, que o autor organizou no exlio.4 Joo Bernardo esteve sob a influncia do programa de Martins Rodrigues (manteve-se vinculado ao PCP at 1966, quando o abandona) e diante da heterodoxia do programa comunista maosta organizou no interior do CMLP (quando j estava exilado em Paris, a partir de agosto de 1968), no perodo de 1968 a fins de 1969 um programa terico poltico em defesa de um maosmo libertrio que teve como corolrio institucional a organizao dos Comits Comunistas Revolucionrios (CCRs), prticas dissidentes que tambm o levaram ao rompimento poltico definitivo com o CMLP.

    Numa afirmao bastante simplificada pode-se afirmar que as principais matrizes tericas e polticas do comunismo portugus do perodo (1965-1974) poderiam ser descritas sob o acento das intervenes de lvaro Cunhal (PCP), de Martins Rodrigues (CMLP) e de Joo Bernardo (CCRs). Em Paris, Joo Bernardo (sob o pseudnimo de Tiago) organizou os CCRs e junto a eles firmou marca terico-poltica para o marxismo portugus centrada num leninismo-maosta radical exposta numa srie de artigos esquerda de Cunhal todos os gatos so pardos que escreveu em Viva o Comunismo!, peridico dos CCRs.5

    4 Outras informaes sobre a trajetria de Joo Bernardo no movimento estudantil clandestino esto em LOURENO, Gabriela; COSTA, Jorge e PENA, Paulo. Grandes Planos Oposio Estudantil Ditadura: 1956-1974. Lisboa: ncora Editora / Associao 25 de abril, 2001, p. 115-125 e 166-168.

    5 Essa srie tem ao todo quatro artigos escritos por Joo Bernardo (artigos no assinados) apresentados na seguinte ordem cronolgica: 1) esquerda de Cunhal todos os gatos so pardos 1. parte: limitaes e promessas no despontar de uma nova etapa do movimento revolucionrio (de janeiro de 1964 a dezembro de 1965). VIVA O COMUNISMO!,n 02/03, Paris / Lisboa, pp. 02-28, jul-ago, 1970; 2) esquerda de Cunhal todos os gatos so pardos (continuao) 2 parte: a degenerescncia dogmtica origem e efeitos (de princpios de 1966 a fins de 1968). VIVA O COMUNISMO!, Paris / Lisboa, n 04, p. 18-42, maio, 1971; 3) esquerda de Cunhal todos os gatos so pardos (continuao) 3 parte: as cises (de 1966 a 1969-1970). VIVA O

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    Sob a determinao desse debate programtico organizacional no campo da extrema-esquerda, o autor construiu os primeiros movimentos do seu modelo terico marxista heterodoxo. Esse modelo, que logo assinalaria o seu rompimento com as diretrizes do stalinismo pecepista, era organizado politicamente como uma frente democrtica antifascista, assim como com o maosmo do CMLP era organizado em torno de um projeto de revoluo classista (operrios e camponeses) armada contra o regime fascista salazarista. E tambm demarcaria, em fins de 1972, os indicativos de ruptura com o maosmo dissidente dos CCRs.

    De um leninismo radical que defendera como modelo de prtica poltica ideal junto aos CCRs, no perodo de 1973 a 1974, por causa dos resultados tericos do esforo investigativo que envidou sobre a poltica comunista portuguesa, a poltica institucional do comunismo internacional (em especial o modelo chins) e, fundamentalmente, sobre as novas composies das classes dominantes portuguesas no momento do governo de Marcelo Caetano (1968-1974), Joo Bernardo aponta o seu rompimento com a tradio marxista-leninista ortodoxa e desenvolve ento as bases tericas de um comunismo heterodoxo de prticas institucionais autogestionrias. A primeira verso global desse novo modelo terico-prtico do autor aparece publicada em 1975 com o livro Para uma teoria do modo de produo comunista,6 o documento maior do movimento

    COMUNISMO!, Paris / Lisboa, n 05, p. 27-51, maio, 1972; 4) esquerda de Cunhal todos os gatos so pardos (concluso) 4 parte: a situao actual grandes tendncias e a clarificao de posies. VIVA O COMUNISMO!, Paris / Lisboa, n 06, p. 02-34, agosto, 1972.

    6 BERNARDO, Joo. Para uma teoria do modo de produo comunista. Porto: Afrontamento, 1975. Este livro foi parcialmente redigido ainda em Paris, em 1972. O livro foi traduzido na Espanha em 1976. O autor republicou em 1978, em portugus, o importante prefcio que fez edio espanhola consultar: BERNARDO, Joo. A propsito da teoria do modo de produo comunista. Revista Trimestral de Histrias e Ideias, n. 02, Porto, Afrontamento, 1978, p. 99-105. Para uma definio historiogrfico-conceitual do comunismo libertrio ou autogestionrio como prtica poltica do marxismo europeu nas dcadas de 1960 e 1970, consultar: CLEAVER, Harry. Leitura poltica de O Capital. So Paulo: Zahar Editores, 1981, especialmente a primeira parte (p. 11-86).

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    comunista libertrio portugus representado nas prticas do coletivo reunido em torno do jornal Combate. Do reformismo capitalista do PCP, das contradies do maosmo, do fracasso da Revoluo Cultural Chinesa e da ascenso dos gestores como classe dominante no capitalismo de Estado chins, Joo Bernardo caminhar em definitivo para prticas de um marxismo libertrio. Com a publicao desse livro em 1975, o autor apresenta-se tanto teoricamente como politicamente, como uma das mais originais expresses do marxismo portugus no contexto da Revoluo dos Cravos (1974-1978).

    Durante a Revoluo dos Cravos, alm do livro citado, Joo Bernardo publicou textos programticos e textos de anlise conjuntural nas Edies Contra-a-Corrente que o coletivo do jornal Combate organizara nas cidades do Porto e Lisboa no final de 1974. Foram publicados 31 textos (em forma de brochuras) e vrios deles, de autoria de Joo Bernardo, foram, tambm, traduzidos na Inglaterra e na Espanha, caso, por exemplo, destes dois ttulos: Um ano, um ms e um dia depois. Para onde vai o 25 de abril? (Economia e poltica da classe dominante) que foi publicado em 26 de maio de 1975 e traduzido para o ingls em 12 de outubro de 1975, como: Portugal: Economy and Policy of the Dominant Class. One year, one month and one day after: where is the 25 th. April going? (28 p.). A brochura Lutas sociais na China, publicada em julho de 1976 (40 p.), foi traduzida para o espanhol com alguns acrscimos e publicada como livro Lucha de clases en China (1949-1976). (Madrid: Zero-ZYX, 1977). Ressalve-se tambm que no coletivo Combate estavam presentes inmeros colaboradores originrios de outros pases, casos do britnico Phil Mailer e do norte-americano Loren Goldner, sendo o primeiro, autor de um importante estudo historiogrfico sobre os fatos acontecidos em Portugal na Revoluo dos Cravos, e sob uma perspectiva comunista libertria. Trata-se do livro: Portugal: A revoluo impossvel? (Porto: Afrontamento, 1978).

    Da dcada de 1970 at o presente momento, o autor deu sequncia s suas pesquisas como historiador autodidata realizando-as em algumas das principais bibliotecas europeias (em Frana, Inglaterra, Itlia, Espanha e Portugal). Esse trabalho

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    de pesquisa teve como resultado, nos ltimos anos, um conjunto de obra terica e obra historiogrfica radicalmente coerente na sua integralidade com as prticas terico-ideolgicas desenvolvidas nas lutas polticas das dcadas de 1960 e 1970. No que isso signifique que o autor continue a defender canonicamente o mesmo programa comunista libertrio de antes. O que quero afirmar que o autor mantm, ao longo das ltimas dcadas, a mesma atitude intelectual, isto , revisa e amplia as bases conceituais do modelo terico anticapitalista que o seu marxismo heterodoxo prope como interpretao das formas e prticas institucionais do capitalismo na sua experincia contempornea de capital transnacionalizado.

    caracterstica fundamental desse conjunto de obra a constante reviso-atualizao pontual de alguns aspectos programticos que, no entanto, no lhe altera o estatuto fundamental: manter estudos sistemticos sobre as contradies do capitalismo estruturados teoricamente junto ao conceito de explorao e na redefinio (junto a Marx) do estatuto terico da mais-valia, da lei do valor nas prticas institucionais do capitalismo contemporneo. nesse sentido que o autor procura desenvolver tambm uma agenda poltica que desvele permanentemente as contradies sociais imanentes s prticas institucionais da organizao da explorao capitalista e essa agenda demarca-se pela defesa intransigente das lutas autonomistas dos trabalhadores oriundas dos laos de sua solidariedade e germinados nas prticas anticapitalistas, principalmente quelas que se antepem ao capitalismo dos sindicatos, uma das expresses mximas do capitalismo de gestores.

    Como resultado desse percurso poltico, determina-se como central ao conjunto de seu pensamento e obra a caracterizao histrica das prticas polticas dos Gestores como classe dominante na lgica da reproduo capitalista, classe dominante que se define historicamente no capitalismo ao lado (e depois se sobrepondo a ela) de outra classe dominante: a Burguesia, isto porque, como afirma a obra do autor, os Gestores so a expresso institucional do controle e organizao da explorao

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    global capitalista sobre a fora de trabalho assalariada. Assim, o capitalismo dos gestores e a consequente, porque obrigatria, redefinio do estatuto marxista da Lei do Valor so os emblemas-sntese da originalidade programtica do marxismo de Joo Bernardo. Some-se a esses aspectos estruturais de sua obra a busca por uma reflexo epistemolgica que se defina como modelo operacional de investigao global para as Cincias Sociais e Cincias Humanas em geral, centrada na explicao de como se estruturam e definem as prticas ideolgico-institucionais dos indivduos e das classes sociais na reproduo societria do capitalismo contemporneo.

    Numa rpida descrio do conjunto da obra, possvel verificar-se a coerncia e articulao que lhe so imanentes em conjunto de trs dcadas de publicaes. O conjunto da obra do autor tem diferentes tipos de publicaes. H ttulos de resposta conjuntural que colocam em prtica analtica o modelo terico desenvolvido com mais detalhamento e rigor que outros ttulos. Exemplos de trabalhos de conjuntura, de resposta poltica do intelectual em interveno crtica aos problemas do capitalismo que lhe contemporneo, so os livros: 1) O inimigo oculto: ensaio sobre a luta de classes. Manifesto anti-ecolgico (Porto: Afrontamento, 1979); 2) Crise da economia sovitica (Coimbra: Fora do Texto, 1990); 3) Transnacionalizao do capital e fragmentao dos trabalhadores anda h lugar para os sindicatos? (So Paulo: Boitempo, 2000); e 4) Democracia totalitria: teoria e prtica da empresa soberana (So Paulo: Cortez, 2004). Outros ttulos marcam-se como obras de investigao historiogrfica, o caso da trilogia: Poder e dinheiro: do poder pessoal ao estado impessoal no regime senhorial. Sculos V-XV (03 volumes) (Porto: Afrontamento, 1995, 1997 e 2002), e do estudo (sem similar na historiografia de lngua portuguesa pela sua colossal pesquisa bibliogrfica e envergadura conceitual) Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta (Porto: Afrontamento, 2003).

    Nesses trabalhos, a originalidade do modelo marxista do autor mantm-se com toda a sua efetividade. Por exemplo, na ltima obra citada, o autor apresenta em centenas de pginas a demonstrao historiogrfica da ao de classe dos gestores ao

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    longo do sculo XX. Se em outras obras a discusso conceitual sobre os gestores como classe dominante no capitalismo aparece como estruturao terica no embate conceitual interno do marxismo contemporneo, neste livro, ao longo de suas 959 pginas, o que se observa a demonstrao historiogrfica da materialidade da ao de classe dos gestores. O autor preparou esse livro ao longo de pelo menos duas dcadas, seu rascunho, seu desenho inicial j estava apontado num ensaio que compe uma das partes do livro Capital, sindicatos, gestores (So Paulo: Vrtice, 1987), publicao essa que caracteriza outro tipo de publicaes do autor, aquelas obras resultantes de cursos que ministrou no Brasil ao longo dos ltimos 30 anos.7 A esse tipo de publicao soma-se tambm o livro Estado: a silenciosa multiplicao do poder (So Paulo: Escrituras, 1998). A esses trs tipos de publicaes acrescenta-se aquele conjunto de ttulos que demarcam o ncleo duro, a centralidade do projeto terico poltico do marxismo de Joo Bernardo, refiro-me aos trabalhos de epistemologia, em obras como: Marx crtico de Marx: epistemologia, classes sociais e tecnologia (03 volumes) (Porto: Afrontamento, 1977) e Dialtica da prtica e da ideologia (So Paulo: Cortez; Porto: Afrontamento, 1991).8 Nesses livros o

    7 Com o fracasso da experincia poltica dos conselhos comunistas libertrios na revoluo portuguesa (1974-1978), Joo Bernardo depois de mais alguns anos de estudos em Portugal e em outros pases europeus, decidiu-se a vir para o Brasil em 1984. Personagem fundamental para essa tomada de deciso foi o professor Maurcio Tragtenberg que, naquela ocasio, orientava na PUC de So Paulo a dissertao de mestrado da professora Lcia Bruno sobre a experincia coletiva do jornal COMBATE. Maurcio Tragtenberg e Lcia Bruno foram-lhe fundamentais para a vinda e estabelecimento no Brasil. Ao longo dos anos seguintes, Joo Bernardo apresentou seus trabalhos em inmeros cursos que desenvolveu em programas de graduao e ps-graduao de vrias universidades brasileiras (PUC/SP, PUC/RJ, USP, FGV/SP, UFMG, UFRS, UNICAMP, UNESP, UFSC, UFU, UFG entre outras). Em paralelo a essa atividade docente, o autor tambm ministrou vrios cursos e participou de inmeras atividades polticas vinculadas a sindicatos de trabalhadores brasileiros.

    8 Esses dois ttulos remetem-se diretamente a um artigo que o autor escreveu em 1971, quando do seu exlio poltico, e que s publicou em 1978, refiro-me ao texto: Metodologia geogrfica e crtica da geografia ideolgica. Revista trimestral de histrias e ideias, v. 01, Porto, Afrontamento, 1978, p. 53

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    modelo terico do autor est configurado na sua estrutura bsica, nos fundamentos epistemolgicos de um marxismo radicado em articulada proposio heterodoxa porque asseverado por dilogo de reviso e contestao programtica direta com os fundamentos da matriz marxiana e dos clssicos do marxismo contemporneo, contudo, ainda assim, no livro Economia dos conflitos sociais (So Paulo: Cortez, 1991; 2. ed, So Paulo: Expresso Popular, 2009) que o modelo terico-poltico do autor apresenta-se na sua totalidade, esta a obra mxima do marxismo de Joo Bernardo. Os elementos de fundamentao epistemolgica, a caracterizao da economia poltica capitalista nos seus fundamentos bsicos: Condies gerais de produo, unidades de produo particular, a lei do valor e a reprodutibilidade das taxas da mais-valia relativa, as formas tecnolgicas de explorao dos tempos produtivos, a funo do dinheiro, as classes do capitalismo (burguesia, gestores, proletariado), as formas das lutas anticapitalistas nos modelos dos marxismos das foras produtivas e no das relaes sociais de produo, a historicidade institucional do poder poltico caracterizador na concepo de Estado no capitalismo (nas teses do Estado restrito e do estado amplo), em suma, nessa obra o sentido macroestrutural da totalidade conceitual do marxismo do autor aparece em toda a sua plenitude,9 e ser com ela que apresento a seguir, de forma

    89. O artigo publicado na ntegra, na sua verso de 1971 precedido por uma importante nota introdutria onde o autor, j sob as perspectivas epistemolgicas de 1977, apresentadas em Marx crtico de Marx..., redimensiona o sentido inicial daquele texto e as circunstncias polticas que lhe motivaram a redao.

    9 Alguns artigos publicados na dcada de 1980 antecipam os contedos desse livro sntese de 1991. Destaco trs trabalhos: 1) O dinheiro: da reificao das relaes sociais at o fetichismo do dinheiro. Revista de Economia Poltica, v. 03, n. 01, So Paulo, FGV, jan.-mar. de 1983, p. 53-68; 2) O proletariado como produtor e como produto. In Revista de Economia Poltica, v. 05, n. 03, So Paulo, FGV, jul.-set. de 1985, p. 83-100; 3) Gestores, Estado e Capitalismo de Estado. Revista Ensaio, n. 14, So Paulo, Editora Ensaio, 1985, p. 85-104. Os contedos destes artigos, publicados sob as determinaes polticas conjunturais, principalmente no que se refere ao papel dos sindicatos na organizao do capitalismo brasileiro seriam amplamente desenvolvidos (com algumas revises) em captulos do livro Economia dos conflitos sociais (1991).

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    sinttica, alguns dos principais elementos caracterizadores do marxismo bernardiano, destacando pelos propsitos deste dossi os conceitos de Estado amplo e estado restrito, e o poder de classe dos Gestores como classe dominante capitalista.

    Os Gestores e a integrao econmica do Estado restrito e do Estado amplo.

    O modo de produo capitalista uma totalidade histrica hierarquicamente integrada nos seus processos produtivos. Das suas particularidades constitutivas, segundo Joo Bernardo, afirma-se a particularizao produtiva das empresas (Estado amplo) e a integrao das condies gerais de produo promovida pelos poderes pblicos estatais (Estado restrito). Em cada um desses vrtices institucionais determina-se historicamente uma classe dominante capitalista: a classe burguesa e a classe dos gestores.

    Defino a burguesia em funo do funcionamento de cada unidade econmica enquanto unidade particularizada. Defino os gestores em funo do funcionamento das unidades econmicas enquanto unidades em relao com o processo global. Ambas so classes capitalistas porque se apropriam da mais-valia e controlam e organizam os processos de trabalho. Encontram-se, assim, do mesmo lado na explorao, em comum antagonismo com a classe dos trabalhadores.10

    As instituies capitalistas organizam-se em torno da produo e realizao da mais-valia, o fundamento estrutural de todas as sociabilidades no capitalismo. Afirmar a concretude da mais-valia afirmar historicamente a oposio e o conflito de classes, cada classe social afirma-se como tal em confronto com as demais. Nesse sentido, conforme o autor, pela sua comum oposio fora de trabalho que a burguesia e [os] gestores se classificam como classes capitalistas.11

    10 BERNARDO, Joo. Economia dos conflitos sociais. So Paulo: Cortez, 1991, p. 202.11 BERNARDO, Joo. Ibidem, 203.

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    pela oposio-relao que entre si estabelecem que [burgueses e gestores] se definem como classes capitalistas distintas. [...] O que os caracteriza [os burgueses, J.A.] organizarem processos particularizados e fazerem-no de modo a que esta particularizao se reproduza. Ao passo que os gestores organizam processos decorrentes do funcionamento econmico global e da relao de cada unidade com tal funcionamento. A integrao na globalidade econmica ocorre tanto no nvel da organizao da fora de trabalho e do mercado de trabalho, de que se encarregam mais diretamente os departamentos de pessoal nas empresas e os gestores que dirigem os sindicatos burocratizados; como no nvel da organizao material dos processos produtivos; como no nvel da organizao do mercado dos produtos. Em suma [...] a organizao dos processos de trabalho e dos demais aspectos da vida econmica no sinnimo de gesto. A gesto caracteriza aqui apenas a organizao de atividades em funo do seu carter integrado.12

    No h, na obra do autor, qualquer perspectiva historiogrfica que faa distino formal entre poltica e economia ou os espaos institucionais da poltica e/ou da economia. Na sua concepo totalizante os processos institucionais do capitalismo determinam-se sempre como organizadores da explorao, assim, poltica e economia so prticas que se realizam ontologicamente numa mesma processualidade, qualquer processo de organizao da explorao redunda em ao poltica entre os que organizam e os que sofrem as consequncias dessa organizao. Dessa maneira, a natureza histrica de uma empresa privada a de realizar-se economicamente como ao poltica de explorao organizada, todas as empresas privadas so, portanto, um Estado poltico. Isso implica dizer que no h nas formaes sociais capitalistas nenhum espao institucional privilegiado de realizao da poltica, a poltica a organizao econmica em realizao.

    Ao contrrio de uma dualidade formal entre um Estado poltico e uma presumida sociedade civil, Joo Bernardo afirma que na

    12 Ibid., 1991, p. 203.

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    historicidade da integrao econmica capitalista encontram-se dois tipos de Estado: o Estado restrito e o Estado amplo. Tipos de Estado que s podem ser percebidos relacionalmente porque expresso institucional da economia integrada. Nessas particularidades encontram-se as duas classes dominantes capitalistas: a burguesia e os gestores, e como percebido na citao anterior, a relao entre essas classes dominantes afirma-se como uma relao de oposio e, por essa caracterstica de oposio, que se afirmam como diferentes classes dominantes capitalistas. Duas classes dominantes capitalistas submetidas universalidade da lei do valor (fora de trabalho assalariada submetida lgica de expropriao da mais-valia), a expresso histrica fundante do capitalismo.

    Na forma como admito a integrao econmica h apenas um lugar fundamental de inter-relao social, que o da produo e extorso de mais-valia. [...] A produo da mais-valia se encontra no centro da vida econmica e social.13

    No marxismo de Joo Bernardo, a lei do valor o epicentro conceitual fundamental que define e estrutura a originalidade do seu universo terico. J no seu primeiro livro encontramos a afirmao da lei do valor como uma lei de tendncia, um princpio que rege tanto o modo de produo como o desenvolvimento desse modo de produo, determinando-lhe na estrutura a prpria mecnica do seu desenvolvimento.14 S h realizao histrica da mais-valia quando o valor da fora de trabalho passa a ser medido pelo tempo de trabalho nela incorporada. Assim, a explorao dos tempos produtivos da fora de trabalho no capitalismo exige a realizao de uma dupla determinao de prticas, determinao de relaes sociais muito especficas.

    13 Ibid., p. 229.14 BERNARDO, Joo. Para uma teoria do modo de produo comunista. Porto:

    Afrontamento, 1975, p. 13. Na forma como admito aqui a integrao econmica h apenas um lugar fundamental de interrelao social, que o da produo e extorso de mais-valia. [...] a produo da mais-valia se encontra no centro da vida econmica e social (BERNARDO, Joo. [1991], p. 229).

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    O tempo de trabalho a primeira determinao da lei do valor, isto , o valor de um produto o tempo de trabalho nele incorporado. Contudo, o processo de relaes sociais que define os valores dos tempos de trabalho de um produto no se define isoladamente numa unidade de produo. Tais valores so tambm valores genrico-abstratos desses produtos frente lgica global da concorrncia produtiva entre as empresas como unidades produtoras. Se h uma realidade global que define os valores dos produtos produzidos, logo, a fora de trabalho tambm est determinada a essa realidade geral. Percebe-se ento, como fundamento estrutural da lei do valor, um mecanismo de de elevao do particular ao geral, termo esse que se definir como outra determinao na lei do valor.15 O tempo da fora de trabalho na unidade produtiva determina a existncia de um produto e este determina o valor da fora de trabalho como produto com um valor mdio socialmente afirmado e a concluso a de que esse trabalhador afirmado como produtor tambm um produto de realizao da lei do valor. A dupla determinao da lei do valor pode ento ser assim sintetizada:

    Na sua primeira definio, a lei do valor era a lei da explorao da fora de trabalho numa unidade de produo particular. Na sua nova determinao, a lei do valor a lei da realizao geral da explorao na produo generalizada das unidades de produo. Deste modo, a explorao do trabalho vivo pelo trabalho morto vai realizar-se na procura de condies timas para a realizao da mais-valia, resultantes da incorporao num produto de um tempo de trabalho inferior quele que em geral incorporado num produto do mesmo tipo.16

    Descritas as determinaes fundamentais da lei do valor, cabe afirmar como o autor pensa as relaes sociais de produo constituidoras dessa processualidade institucionalizada. Joo

    15 BERNARDO, Joo. Op. cit., p. 13-25.16 Ibid., p. 20.

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    Bernardo tem como suposto que a historicidade do capitalismo sempre supe um processo de integrao global, no importando considerar aqui o alcance dessa integrao. O fato que para a existncia de uma empresa, exigem-se sempre condies gerais de produo que garantam previamente, entre outros elementos, a existncia da fora de trabalho como produto.17 uma impossibilidade histrica a existncia de empresas isoladas. Na histria das formaes sociais capitalistas, a organizao das condies gerais de produo marcada pela ao institucional do Estado restrito, a ao institucional do poder pblico, termo esse que nos dificulta pensar como realidade ftica a existncia de um livre mercado centrado apenas na ao da livre concorrncia entre empresas capitalistas. Assim, a existncia das relaes sociais de explorao no interior de uma empresa, sob a lgica da dupla determinao da lei do valor, afirma a constituio das relaes sociais de integrao, isto : para que capital e trabalho realizem-se historicamente como explorao, necessria a existncia institucional de um processo produtivo integrado que faculte a existncia da fora de trabalho como produto social. O capitalista para se constituir ontologicamente como tal tem que encontrar na fora de trabalho uma realidade (produto) j constituda.

    Creches, escolas, hospitais so termos instituidores da fora de trabalho. O capitalista compra, na fora de trabalho, um produto pronto, criado e desenvolvido por outras institucionalidades que no a empresa e essas outras institucionalidades so as condies gerais de produo, logo, pensar-se a lgica interna de uma empresa tambm pensar-se a lgica global da economia integrada.

    Nesse sentido, o livre mercado de empresas isoladas em concorrncia um mito, uma impossibilidade histrica. Encontra-se a burguesia na gesto e controle das unidades privadas de produo (empresas), e na gesto das condies gerais de produo encontramos o gestor. Contudo, o gestor tambm

    17 A fora de trabalho no produzida exteriormente ao capitalismo, num mbito privado. Ela um produto capitalista, produzido no capitalismo. BERNARDO, Joo. Op. cit., [1991], p. 74.

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    elemento axial na organizao interna das empresas, o gestor nasce historicamente com a burguesia.

    Durante muito tempo foram e so em boa parte ainda hoje os burgueses a deter a propriedade e o controle sobre as UPP [Unidades de Produo Particularizada] e a organizar a os processos de trabalho precisamente em funo do carter particularizado de tais unidades econmicas. Mas esta preponderncia burguesa no significa que no existisse, desde o incio, lugar para os gestores. A particularizao de modo algum implica qualquer completo isolamento; significa apenas, [...] que cada unidade econmica veicula os aumentos de produtividade exclusivamente ao longo da linha de produo em que diretamente se insere.18

    Como a existncia de uma empresa est determinada pela existncia das condies gerais de produo, logo o carter privado da mesma determinado to somente pela existncia da burguesia como detentora proprietria do capital e controladora da organizao ali envolvida, entretanto, o gestor tambm se faz presente no interior dessa empresa porque a sua particularidade como classe determina-se por suas funes de organizador da integrao. Um engenheiro, por exemplo, dentro de uma fbrica tem funes de controle em funo das condies macroestruturais envolvidas na produo ali particularizada. o engenheiro-gestor quem garante as condies produtivas de concorrncia, quem garante, portanto, as condies administrativas do controle dos tempos produtivos no interior da empresa diante da presso concorrente das demais empresas envolvidas ao setor produtivo equivalente.

    A burguesia define-se como classe dominante em funo do funcionamento de cada unidade econmica enquanto unidade particularizada,19 por outro lado, o gestor define-se como classe

    18 BERNARDO, Joo. Para uma teoria do modo de produo comunista. Porto: Afrontamento, p. 203, 1991.

    19 Ibid., p. 202.

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    dominante capitalista como o articulador do funcionamento da empresa em relao ao processo global das condies gerais de produo, portanto, como o articulador das melhores condies tecnolgicas da produo para a efetivao e realizao da mais-valia relativa. Um engenheiro controla o tempo produtivo da fora de trabalho assalariada, um engenheiro-gestor pode ser assalariado, mas por ser controlador da autoorganizao produtiva da empresa uma das engrenagens fundamentais para a existncia da lei do valor e, alm disso, quanto mais se desenvolve o sistema produtivo capitalista, mais integrado estar com o seu saber tecnolgico o que lhe significar maior poder na conduo do processo de extrao da mais-valia. Em suma, com a expanso global do capitalismo, o gestor torna-se crescentemente a classe dominante capitalista hegemnica por sua natureza estrutural de agente de integrao, como afirma o autor,

    quanto mais a economia se desenvolve e se integra, mais se consolidam os gestores, que nessa integrao fundamentam precisamente a sua existncia. So a classe capitalista que, contempornea da gnese deste modo de produo, expande-se e refora-se com o crescimento econmico, confundindo-se com ele o seu eixo de evoluo.20

    A burguesia nas suas institucionalidades privadas tende historicamente a ser uma classe dominante em extino, aspecto globalmente acentuado a partir da dcada de 1930 quando se percebe como tendncia histrica geral, o processo de transformao administrativa no interior das empresas alterando o estatuto de unidades produtivas privadas familiares a unidades produtivas de capital aberto. Acionistas em empresas de capital aberto no so burgueses. A transformao histrica da burguesia proprietria em rentista representa uma inferiorizao histrica como classe porque perdeu o controle do processo de trabalho, que , conforme Joo Bernardo, o mecanismo motor de toda

    20 Ibid., p. 216.

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    a sociedade. Apenas quem detm o controle e a organizao do processo produtivo, do ponto de vista daqueles submetidos a tal lgica institucional (a fora de trabalho assalariada), que se constitui como classe dominante capitalista.21 Com a transnacionalizao do capital, afirmam-se os gestores como classe dominante capitalista subordinando a esse processo de expanso a lgica institucional de burguesias nacionais-locais. Se pudesse fazer uma inferncia com o argumento do autor, diria que nas ltimas dcadas a burguesia determina-se historicamente como classe dominante-subordinada.

    Cumpre descrever como o autor define as condies gerais de produo (CGP) como o termo fundante da reprodutibilidade capitalista e o papel institucional dos gestores na organizao delas. Descrever a organizao das CGP descrever a ao institucional do Estado restrito. Somente da ao do Estado restrito que se podero efetivar as condies de existncia das empresas (Estado amplo).

    A funo central desempenhada pelas CGP na integrao econmica requer a sua relao, no nvel superestrutural, com uma instituio poltica centralizadora e coordenadora. Numa fase em que a disperso interna do Estado Amplo o fragmentava, sendo, portanto impossvel prosseguir no seu mbito uma ao coordenadora, era ao Estado Restrito que ela se devia. 22

    Ressalve-se que o autor no tem uma perspectiva dual de Estado. Estado restrito e Estado amplo so expresses institucionais que universalizam uma s realidade: a explorao e a extorso da mais-valia. Essa realidade fundante do capitalismo percebida em particularidades processuais, assim, Estado restrito e Estado amplo so a concepo histrico-poltica do Estado capitalista que universaliza a explorao, que autoorganiza as classes dominantes em detrimento da hetero-organizao

    21 Ibid., p. 214.22 Ibid., p. 165.

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    (fragmentao) dos trabalhadores23 e nunca locais privilegiados de realizao institucional da poltica. E no se trata por isso de uma concepo economicista de Estado, ao contrrio, o aspecto a reiterar como epicentro fundamental da concepo de histria do autor so as relaes sociais de produo na realizao da explorao capitalista. Diante da centralidade histrica da lei do valor, Estado restrito e Estado amplo so particularidades institucionais que universalizam a explorao. No est presente no autor qualquer argumento que reitere como termos fundacionais presumidas esferas pblicas e/ou privadas do social como instncias autnomas.

    Quais seriam ento as determinaes fundacionais do Estado Restrito? Estabelecer-se como o aparelho coordenador e controlador das CGP e assim tambm unificar o sentido produtivo das empresas (Estado Amplo).

    Neste ltimo caso, tais empresas particulares, embora mantendo-se formalmente o nvel do Estado Amplo, a que pertenciam, entravam em relaes de tipo especial com o Estado restrito, que nelas podia intervir na medida em que fiscalizava em ltima instncia o funcionamento das CGP e controlava-as indiretamente.24

    no mbito da ao institucional do Estado restrito que a burguesia pde se organizar como classe, mas as prticas

    23 O autor afirma: no existe no Estado capitalista qualquer lugar neutral, nenhuma arena onde exploradores e explorados possam medir foras e definir espaos, somando avanos e recuos e traando demarcaes que persistam ao longo do tempo. Muito mais do que um conjunto de instituies, funcionando como aparelho ao servio dos poderosos, o Estado um princpio de organizao geral das instituies. [...] O Estado capitalista no apenas uma plataforma que as classes dominantes usam para se constiturem internamente nem um simples instrumento de opresso dos explorados. Na sociedade actual uma classe domina na medida em que dita a organizao interna da classe dominada. Princpio de auto-organizao das classes capitalistas, o Estado ao mesmo tempo o princpio da hetero-organizao da classe trabalhadora. BERNARDO, Joo. Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta. Porto: Afrontamento, 2003, p. 26.

    24 BERNARDO, Joo. Op. cit., 1991, p. 164.

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    institucionais do Estado restrito no podem ser percebidas como prticas burguesas, ao contrrio, a ao institucional do Estado Restrito determinar-se- por prticas de gesto tecnocrtica, pela ao dos gestores na organizao das CGP.

    Afirma, o autor, que as CGP no se limitam ao que comumente se denomina como infraestruturas porque envolvem todo o campo tecnolgico em que esto articuladas as relaes sociais de produo. Isso significa dizer que no mbito das CGP que se definem os investimentos e modelaes tecnolgicas fundamentais para a garantia da realizao da mais-valia relativa na esfera do Estado amplo. Enquanto as empresas capacitam-se em concorrncia tecnolgico-produtiva nos limites dos seus setores de investimento, so as CGP quem garantem a disseminao das tecnologias ao amplo lastro produtivo da sociedade, na esfera das CGP que a fora de trabalho se qualifica ou requalifica. Para melhor elucidar a questo e perceber-se a ao tecnocrtica dos gestores, descrevo a seguir de maneira bastante sumria os principais tipos que definem, para o autor, a universalidade das CGP e a ao do Estado restrito.

    Nas condies gerais da produo e da reproduo da fora de trabalho, o autor encontra o sentido institucional das creches e dos demais estabelecimentos de ensino formadores de novas geraes de trabalhadores. Aqui se inserem tambm as infraestruturas sanitrias e hospitalares. As condies gerais da realizao social da explorao seriam as formas institucionais repressivas que garantiriam ao capital a no posse por parte dos trabalhadores dos produtos criados pelo seu trabalho e includo como termo central dessa ordem repressiva estaria o sentido global do urbanismo.

    As condies gerais da operatividade do processo de trabalho sintetizar-se-iam com os meios tecnolgicos que afastam dos trabalhadores a sua capacidade de administrao da produo sendo, portanto, instrumentos tecnolgicos de efetivao da administrao do capital sobre a fora de trabalho. Tais meios tecnolgicos seriam o produto estruturado atravs de institutos de investigao de pesquisa cientfica. Computadores e outras ferramentas de informtica seriam tecnologias para

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    a administrao como tambm para o armazenamento de informaes e demais mecanismos de controle decisrio. Nas condies gerais da operacionalidade das unidades de produo estariam as redes de energia, de comunicao e transporte, coleta de lixo e fornecimento de gua, o que se conhece como infraestrutura bsica.

    Para definir as condies gerais da operatividade do mercado, o autor encontra os sistemas de divulgao e cruzamento de dados fundamentais para o estabelecimento de relaes entre produtores e consumidores, e como corolrio dessas prticas, estariam, por fim aquelas condies gerais da realizao social do mercado como a propaganda e o estmulo ao consumo, os elementos de condicionamento ideolgico de estilos e padres vida.25 Com esta descrio estaria implcita a institucionalidade dos gestores na sociedade capitalista.

    Para concluir, deve-se afirmar que o marxismo de Joo Bernardo sustenta-se por uma ordem terica balizada pelo princpio da totalidade histrica. No se trata de politicismo ou economicismo, mas um modelo interpretativo estruturado na universalidade capitalista das relaes sociais de explorao e na lgica de produo e realizao da lei do valor. Esse o eixo histrico que baliza a proposio terica do autor, somente a partir dele que se depreende a anlise historiogrfica e se justificam as consequncias explicativas da teoria.

    Na raiz de todas as relaes sociais capitalistas o autor percebe que uma classe dominante no capitalismo s se pode definir historicamente pela sua capacidade de autoorganizao como tal e, principalmente, pela sua capacidade de impor a fragmentao dos trabalhadores. Com o que foi aqui sumariamente descrito pode-se perceber que, para o autor, os gestores so a nica classe dominante capitalista que consegue historicamente universalizar tais procedimentos de controle. Os gestores so classe dominante por serem os organizadores da reproduo integrada e ampliada do capital, o termo central para o controle e organizao institucional da sociedade.

    25 Id., pp. 159-161.

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