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ACÓRDÃO N.º 554/2008 Processo n.º 773/08 2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional: A – Relatório 1 – AA, melhor identificado nos autos, reclama para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção (LTC), do despacho proferido pelo Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu o recurso de constitucionalidade, interposto do Acórdão de 15 de Julho de 2008, proferido nesse Tribunal. 2 – Com interesse para a decisão, colhe-se dos autos: 2.1 – Inconformado com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou improcedente o recurso interposto do Acórdão prolatado no 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, que condenara o arguido na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão, o ora reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que sintetizou as conclusões impugnatórias, nos seguintes termos: “1) Deficiências das gravações das provas, nos mesmos termos em que a questão foi colocada no recurso para o Tribunal da Relação, invocando que «está em causa a garantia do duplo grau de jurisdição e o cerne dos direitos e garantias de defesa do arguido, como consagrados no artigo 32°, nº 1 e nº 5º da Constituição da República Portuguesa, tal como, visivelmente, no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem».

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                                                    ACÓRDÃO N.º  554/2008Processo n.º 773/082.ª SecçãoRelator: Conselheiro Benjamim Rodrigues

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A – Relatório

            1 – AA, melhor identificado nos autos, reclama para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção (LTC), do despacho proferido pelo Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu o recurso de constitucionalidade, interposto do Acórdão de 15 de Julho de 2008, proferido nesse Tribunal.

            2 – Com interesse para a decisão, colhe-se dos autos:                        2.1 – Inconformado com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou improcedente o recurso interposto do Acórdão prolatado no 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, que condenara o arguido na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão, o ora reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que sintetizou as conclusões impugnatórias, nos seguintes termos:

         “1) Deficiências das gravações das provas, nos mesmos termos em que a questão foi colocada no recurso para o Tribunal da Relação, invocando que «está em causa a garantia do duplo grau de jurisdição e o cerne dos direitos e garantias de defesa do arguido, como consagrados no artigo 32°, nº 1 e nº 5º da Constituição da República Portuguesa, tal como, visivelmente, no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem».

Argumenta que sempre será inconstitucional admitir-se valor ao julgamento quando não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o arguido de poder impugnar devidamente a decisão proferida sobre a matéria de facto, por violação do artigo 32°, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa (Conclusões 1.ª a 12.ª).

2) Inexistência das duas queixas que tenham sido tempestivamente apresentadas por parte de CC pelo alegado crime de ameaças e, noutro momento, pelo alegado crime de violação de domicilio, falta de legitimidade e legalidade no procedimento criminal – questões também já suscitada na Relação (Conclusões 13.ª a 17.ª).

3) Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP relativamente à condenação pelos crimes de sequestro, coacção grave, violação e homicídio qualificado na forma tentada contra a sua ex-namorada BB (Conclusões 18.ª a 22.ª).

4) Violação do art. 127.º e inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do desse princípio, «no sentido de que o julgador pode, sem qualquer fundamento concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados». (23.ª a 36.ª, 37.ª a 42.ª (relativamente ao crime de violação) e

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também 59.ª, tudo isto de mistura com alegação de vícios do art. 410.º, n.º 2: erro notório e insuficiência da matéria provada para a decisão).

5) Inconstitucionalidade da interpretação do artigo 349° do Código Civil e do artigo 125° do Código de Processo Penal no sentido de se socorrer o Tribunal, na falta de qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de apenas uma presunção para condenar o arguido por determinado facto, por violação do artigo 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (Conclusão 43.ª).

6) Violação do princípio in dubio pro reo e princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32°, n° 2, da Constituição da República Portuguesa, a propósito dos crimes de ameaça, de violação de domicílio e de violação, de mistura com vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP: alíneas b) e c) – Conclusões 44.ª a 47.ª).

7) Intenção de matar , contestação da “frieza de ânimo” e novos vícios do art. 410.º, n.º 2), violação do art. 127.º, do art. 32.º da Constituição (Conclusões 48.ª a 62.ª), 87.ª a 89.ª).

8) Atenuante de bom comportamento e a convicção do tribunal (Conclusões 63.ª a 67.ª).

9) Limitação de testemunhas de defesa em atropelo à lei e às garantias constitucionais do arguido (art. 283.º, n.º 3, alínea d) do CPP e 32., n.º 1 e 2 da Constituição) – Conclusões 68.ª a 75.ª).

10) Impugnação do dolo eventual no crime de homicídio (violação da presunção de inocência e do in dubio pro reo (Conclusões 76.ª a 82.ª).

11) Qualificação dos factos pelo crime de homicídio negligente (negligência consciente) ou por ofensas à integridade física do art. 144.º do CP, ou ofensas à integridade física graves, a título de negligência consciente, nos termos do artigo 148°, nºs 1 e 3, do mesmo diploma legal (Conclusões 83.ª a 86ª).

12) Hipótese do crime de homicídio privilegiado, do art. 133.º do CP, considerando todo o circunstancialismo anterior e actual aos acontecimentos de 2 de Março de 2005 (Conclusões 90.ª e 91.ª)..

13) Medida da pena: confissão de alguns factos, o que não podia deixar de ser inferido pelo exame crítico das provas; antecedentes criminais; circunstâncias de relacionamento concreto entre o arguido e a vítima, criticando-se o fundamento de prevenção geral invocado e invocando-se a propósito a violação do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; tempo passado pelo arguido na prisão e comportamento irrepreensível do arguido (restantes conclusões)”.

            2.2 – Analisando as questões equacionadas pelo recorrente, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu:

         “(...)         Conceder provimento parcial à questão prévia do Ministério Público e, em

consequência rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso interposto pelo arguido AA relativamente a todos os crimes com excepção dos crimes de violação e homicídio;

- Rejeitar, por inadmissibilidade, o mesmo recurso relativamente às questões interlocutórias (deficiência das gravações; inexistência de queixa relativamente ao crime de violação de domicílio; limitação de testemunhas);

- Rejeitar por manifesta improcedência o mesmo recurso relativamente às questões da matéria de facto e dos vícios do art. 410º, n.º 2, do CPP, violação do princípio da livre apreciação da prova (arts. 127.º e 125.º do CPP), violação do princípio in dubio pro reo, questão da intenção de matar, qualificação do crime de homicídio, e improcedente quanto à medida das penas dos crimes de violação e homicídio;

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- Conceder parcial provimento ao recurso no tocante à medida da pena única, pelo que se revoga nessa parte a decisão recorrida e se condena o arguido na pena única de 14 (catorze) anos de prisão”.

            Esta decisão abonou-se nos seguintes fundamentos:           

“(...)9.1. Questão prévia9.1.1. O Ministério Público levantou a questão da recorribilidade da decisão

relativamente a todos os crimes pelos quais o arguido foi condenado, com excepção do crime de homicídio, defendendo a sua rejeição com base em não terem sido aplicadas penas, por cada um de tais crimes, superiores a 8 anos de prisão e terem sido confirmadas pela Relação de Coimbra, pelo que só o crime de homicídio, cuja pena aplicada foi de 10 (dez) anos de prisão, e a pena única (cúmulo jurídico de todas as penas aplicadas) deveriam ser conhecidos.

A decisão da 1.ª instância foi proferida no domínio da lei anterior às alterações introduzidas no Código de Processo Penal (CPP) pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, mas a decisão da Relação foi já proferida no domínio da lei nova.

No âmbito da lei anterior, era conhecida a jurisprudência deste STJ a respeito do art. 400, n.º 1, alínea f) do CPP, pois é tal preceito que está em causa na vertente situação. O STJ só conhecia, em recurso de acórdãos proferidos pelas relações, que confirmassem decisão condenatória da 1.ª instância, dos crimes, singularmente considerados, cuja pena aplicável fosse superior a 8 anos. É que de acordo com o disposto no referido preceito, não era admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que fosse aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções. Entendia-se que era como se cada um dos referidos crimes fosse objecto de um processo, sendo a competência do tribunal determinada por conexão, nos termos do art. 25.º do CPP. Se cada um dos crimes tivesse sido julgado separadamente no processo atinente a esse crime, não haveria lugar a recurso para o STJ, por força de ao crime não ser aplicável pena de prisão superior a cinco anos.

Esta jurisprudência, que podia dizer-se maioritária, senão mesmo uniforme, tinha uma variante na 5.ª Secção Criminal: a de que o Supremo Tribunal podia (devia) rever a pena única aplicada num concurso de crimes, quando a pena aplicável, segundo os critérios do art. 77.º, n.º 2 do CP, tivesse um limite máximo superior a 8 anos. Desse modo, embora não se conhecesse dos crimes cujas penas singularmente aplicáveis não fossem superiores a 8 anos de prisão e fossem confirmadas, em recurso, pelas relações, revia-se a pena única nas condições acima referidas e controlava-se a sua conformidade com os critérios específicos a que a lei mandava atender para a sua determinação concreta. Isto, claro está, se tal pena única tivesse sido posta em causa no recurso.

No presente caso, segundo a jurisprudência focada, só dois dos crimes singulares pelos quais o arguido foi condenado estavam em condições de serem conhecidos, em recurso, pelo STJ: o crime de homicídio tentado qualificado (arts. 131.º, 132.º, nºs 1 e 2, alínea i), 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP, quer na redacção actual, quer na redacção anterior) e o crime de violação, do art. 164.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, também na redacção anterior e na actual, pois as penas abstractamente aplicáveis a cada um deles ultrapassam os 8 anos de prisão, tendo em conta o limite máximo aplicável. Também a pena única, segundo a variante acima focada e que sempre foi perfilhada por esta Secção Criminal, seria objecto de revisão por este Tribunal, tanto mais que foi impugnada no recurso.

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Na redacção actual do art. 400, n.º 1, alínea f), passou a falar-se em pena aplicada em vez de pena aplicável e deixou de se fazer referência ao concurso de crimes.

Art. 400.º1 – Não é admissível recursof) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem

decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.»Deste modo, por um lado, restringe-se o âmbito da recorribilidade, na medida em que

a referência, agora, não é a pena aplicável, mas a pena efectivamente aplicada e, por outro lado, amplia-se essa recorribilidade, ao menos em relação àquela corrente jurisprudencial que atendia somente aos crimes singulares, independentemente do concurso de crimes, não admitindo a revisão da decisão, mesmo em relação à pena única que fosse superior a 8 anos, quando todos os crimes, singularmente considerados, fossem puníveis com pena não superior a esse limite e a Relação tivesse confirmado a condenação.

Actualmente, se é a pena aplicada que constitui a referência da recorribilidade, essa pena tanto pode ser a referida a cada um dos crimes singularmente considerados, como a que se reporta ao concurso de crimes (pena conjunta ou pena única). O legislador aferiu a gravidade relevante como limite da dupla conforme e como pressuposto do recurso da decisão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça pela pena efectivamente aplicada, quer esta se refira a um crime singular, quer a um concurso de crimes. O que significa que o STJ está obrigado a rever as questões de direito que lhe tenham sido submetidas em recurso ou que ele deva conhecer ex officio e que estejam relacionadas com os crimes cuja pena aplicada tenha sido superior a 8 anos de prisão, e também a medida da pena do concurso, se a aplicada nesse âmbito for superior a 8 anos de prisão, ainda que os crimes que fazem parte desse concurso, singularmente considerados, tenham sido punidos na 1.ª instância com penas inferiores ou iguais a tal limite e confirmadas pela Relação. Dir-se-ia que o legislador, na querela que, a certa altura, dividiu a jurisprudência sobre a questão da pena aplicável ou pena aplicada, no recurso das decisões das relações para o STJ, tomou partido por esta última, embora com um sentido diferente dos termos em que a questão era jurisprudencialmente colocada, pois, neste domínio, a pena aplicada só era de tomar em conta para efeitos de (não) recorribilidade para o STJ, se não houvesse recurso do Ministério Público, caso em que, por força do princípio da “proibição da reformatio in pejus, a pena aplicada não podia ser agravada, convertendo-se então na pena aplicável.

Por outro lado, na questão que dividiu a jurisprudência quanto aos poderes de revisão da pena única, quando aos crimes singulares não coubesse pena superior a 8 anos, mas a pena do concurso excedesse esse limite, dir-se-ia que o legislador optou, nessa querela, pela tese da revisão da pena única, ou seja, pela possibilidade de revisão da medida da pena conjunta aplicada a um concurso de crimes por tribunal de 1.ª instância e confirmada pela Relação, ainda que. a decisão não fosse recorrível quanto aos crimes singulares.

Uma coisa parece certa: com esta reforma, o legislador pretendeu, em matéria de recursos, “aliviar a carga” do STJ, acentuando a linha da reforma anterior e reservando para o Supremo Tribunal os casos de maior gravidade. Desde logo, o art. 400.º, n.º 1, alínea f), que temos vindo a analisar, ao tomar como referência da recorribilidade para o STJ a pena efectivamente aplicada, em vez da pena aplicável, restringiu substancialmente os casos de recurso para o mais alto tribunal, pois só no caso de ter sido aplicada pena superior a 8 anos de prisão, que tenha sido confirmada pela Relação, se admite recurso para o STJ – casos, portanto, que são já de grande gravidade.

E mesmo nos casos de recurso directo do tribunal colectivo para o STJ (art. 432.º, alínea c), foi restringida significativamente a possibilidade desse recurso, pois, para além

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da exigência, que vinha já da anterior reforma, de o recurso visar exclusivamente matéria de direito passar a estender-se também ao recurso do tribunal de júri, o pressuposto relativo à pena deixou de referenciar a pena aplicável para passar a referir a pena aplicada. Com efeito, só são recorríveis para o STJ os acórdãos do tribunal colectivo ou do tribunal de júri, que, visando exclusivamente matéria de direito, tenham aplicado pena superior a 5 anos de prisão.

Mesmo que se leve em conta que a pena aplicada tanto é a relativa à pena singular, como à pena conjunta, a possibilidade de recurso directo para o STJ foi drasticamente restringida, pois só serão passíveis de tal recurso as decisões do tribunal colectivo ou de júri que isoladamente tenham aplicado por um crime pena superior a 5 anos ou que, num concurso de crimes, tenham aplicado uma pena única superior àquele limite, ainda que as penas parcelares aplicadas sejam iguais ou inferiores a 5 anos. Neste caso, porém, o recurso será restrito à medida da pena única, a menos que alguma das penas parcelares seja também superior a 5 anos, caso em que o recurso abrange essas penas parcelares e a pena conjunta (Acórdão de 02-04-2008, Proc. n.º 415/08, da 3.ª Secção).

Na verdade, seria um contra-senso, na perspectiva focada de restrição do recurso para o Supremo Tribunal, que o legislador, ao falar de pena aplicada em concreto, em vez de pena aplicável em abstracto, pretendesse levar o STJ a conhecer de todos os crimes que formam um concurso de infracções, mesmo que tais crimes correspondam àquela noção que normalmente se designa de criminalidade bagatelar ou que, tendo já passado pelo crivo da Relação, e não sendo crimes de bagatela, viram as respectivas condenações confirmadas por aquela, até um limite de gravidade tido como razoável (na opção legislativa, 8 anos de prisão), a partir do qual se justifica a revisão do caso pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Deste modo, como se afirma no Acórdão de 21/10/2007, Proc. n.º 1772/07, da 3.ª Secção: «Temos, assim, dois momentos possíveis de definição de pena com sujeição a critérios diferentes: a definição das penas parcelares que modelam a moldura penal dentro da qual será aplicada a pena conjunta resultante do cúmulo jurídico e, posteriormente, a definição da pena conjunta dentro dos limites propostos por aquela. É quanto a nós evidente que as penas parcelares englobadas numa pena conjunta que está sujeita à regra da dupla conforme só podem ser objecto de recurso, desde que superiores a 8 anos de prisão. Por outras palavras: dir-se-á que está, então, em causa a forma como se produziu a pena conjunta do concurso superior a 8 anos de prisão e não qualquer uma das penas parcelares relativamente à qual foi cominada pena inferior àquele limite».

Aderindo a esta tese, dir-se-á que a lei actual é, no caso, mais restritiva de direitos do arguido, pois, tendo a decisão recorrida confirmado a da 1.ª instância, só admitiria recurso para o STJ relativamente ao crime de homicídio e à pena conjunta, ao passo que, segundo a lei antiga, admiti-lo-á relativamente aos crimes de violação (punível em abstracto com pena de 3 a 10 anos de prisão), ao crime de homicídio qualificado tentado, punível em abstracto com pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, e à pena conjunta.

Ora, a lei nova aplica-se imediatamente, nos termos do art. 5.º do CPP, salvo se da sua aplicação imediata resultar “agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa” ou “quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo” (alíneas a) e b) daquele normativo).

A decisão recorrida foi proferida no domínio da lei nova; porém, a decisão da 1.ª instância foi proferida ainda no domínio da lei antiga, abrindo-se, então, uma nova fase processual – a fase do recurso – e, nessa altura, o arguido podia recorrer da decisão da Relação que lhe fosse desfavorável com o âmbito que se assinalou à lei antiga – um âmbito mais alargado do que o permitido pela lei nova. Consequentemente, será essa a

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lei aplicável ao caso, porque da aplicação imediata da lei nova resulta «agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa».

Deste modo, a questão prévia não é totalmente procedente, devendo aplicar-se ao caso a lei antiga e, em consequência, conhecendo-se do recurso interposto relativamente aos crimes de violação, de homicídio e à medida da pena conjunta.

Em contrapartida e logicamente não é admissível o recurso relativamente aos crimes de coacção grave, de ameaça, de sequestro, dos dois crimes de violação de domicilio, dos dois crimes de detenção ilegal de arma, do crime de resistência e coacção sobre funcionário e do crime de evasão.

Em consequência, rejeita-se o recurso relativamente a esses crimes, nos termos dos arts. 400.º, n.º 1, alínea f), 414.º, nºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1, todos do CPP, na versão anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, com ressalva da revisão da pena conjunta, onde as penas parcelares aplicadas por esses crimes serão objecto de consideração da pena única, nos termos do art. 77.º, nºs 1 e 2 do CP.

9.2. Questões interlocutórias9. 2.1. Relativamente à questão da deficiência das gravaçõesA deficiência das gravações da prova, no caso de existir, constitui uma mera

irregularidade sujeita à disciplina do art. 123.º do CPP, e portanto devendo ser arguida pelo interessado no prazo aí estipulado como repetidamente tem afirmado este Tribunal (Cf. os acórdãos de 15/2/2006, Proc. n.º 4012/05, desta 5.ª Secção, de 15/2/2006, Proc. n.º 2874/05, da 3.ª Secção e de 13/9/2006, Proc. n.º 1934/06, também da 3.ª Secção). Isto, porque em matéria de nulidades, vigoram os princípios da legalidade e da tipicidade, ou seja, a violação ou inobservância das disposições da lei só acarreta nulidade quando esta estiver expressamente prevista. Nos casos em que a nulidade não for cominada, o acto ilegal é irregular. Ora, o arguido não suscitou a irregularidade da deficiência das gravações nos termos e prazo do art. 123.º do CPP, o que implicava a sanação da irregularidade, se a houvesse.

De qualquer forma, o Tribunal da Relação de Coimbra conheceu da questão, concluindo, após minuciosa análise, que não se verificou «a existência de qualquer irregularidade de gravação que possa inquinar a reapreciação da prova.

Trata-se de decisão interlocutória que não põe termo à causa e da qual não é admissível recurso para o STJ, nos termos do art. 400.º, n.º 1, alínea c) do CPP, na versão anterior, entendendo-se que «pôr termo à causa» significa que «a questão substantiva que é objecto do processo fica definitivamente decidida» e, consequentemente que não põe termo à causa aquela questão que não é impeditiva de o processo prosseguir para a sua apreciação, por não ser atinente ou conexa com a questão substantiva ou então que está para além da questão substantiva já resolvida (cf. acórdão deste STJ de 29/6/2005, Proc. n.º 1845/05 – 3ª, Sumários dos Acs. STJ, Boletim, n.º 92, p. 101).Por outras palavras: decisão interlocutória é a decisão que tem como consequência o arquivamento ou encerramento do objecto do processo, mesmo que se não tenha conhecido do mérito (entre outros, os Acs. de 21.2.02, proc. n. 131/02-5.ª, de 12/10/03, Proc. n.º 2634/03 – 5.ª e 19/7/2006, Proc. n.º 1949/06 – 3.ª).Na versão actual da alínea c) do art. 400.º do CPP, não é admissível recurso «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo”. Ora esta expressão não significa outra coisa senão “decisão que põe termo ao litígio da forma sobredita”. A questão das gravações é uma questão prévia e como tal foi tratada, não sendo nesse sentido atinente ou conexa com a questão substantiva, essa sim objecto de apreciação da decisão final.

De forma que: a questão não devia ter sido conhecida, por não ter sido arguida a irregularidade respectiva; tendo-o sido e partindo do pressuposto que a Relação dela

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conheceu legalmente, a decisão não é recorrível para o STJ, pelo que o recurso é de rejeitar quanto a tal questão.

9.2.2. Inexistência de queixa relativamente aos crimes de ameaça e de violação de domicílio falta de pressuposto de procedibilidade.

Trata-se também de decisão interlocutória que a Relação conheceu, tendo a questão sido objecto de decisão anterior da 1.ª instância, que a apreciou em sede de audiência de julgamento (despachos de fls. 1011 e 1016, constantes da acta de audiência). Como tal, valeriam para aqui as considerações anteriormente feitas, se não acrescesse uma outra razão: a de se tratar de questão relativa a crimes que não admitem recurso para este Tribunal, por força da rejeição do recurso nessa parte (Cf. ponto 9.1. – parte final).

9.2.3. Limitação de testemunhas de defesa.Esta questão também foi suscitada e decidida em audiência de julgamento, sem que o

recorrente reagisse por meio do competente recurso. Como tal, transitou em julgado.Apesar disso, a Relação sufragou expressamente a decisão da 1.ª instância, fazendo-o,

todavia, por uma razão de reforçar o acerto de tal decisão.Como tal, esta questão é de rejeitar por manifestamente improcedente.10. Decisão de fundoVícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP.10.1. O recorrente arguiu estes vícios a respeito dos crimes de sequestro, coacção

grave, violação de domicílio, ameaça, violação e homicídio.Só em relação aos dois últimos a questão será conhecida, por força da rejeição do

recurso relativamente aos outros crimes.Mas diga-se já: esta questão também é claramente para rejeitar por manifesta

improcedência.Vejamos as conclusões do arguido a tal propósito:18) Mesmo à partida gravemente coarctado para efeitos de reapreciação da matéria de

facto pelo Tribunal da Relação, não pode o arguido, de forma alguma, se conformar com a sua condenação pelos crimes de sequestro, coacção grave, violação e homicídio qualificado na forma tentada contra a sua ex-namorada BB.19). Como já se dizia perante o Tribunal da Relação em recurso e ora perante V. Ex.as com atenção para com o teor da decisão sob recurso, apesar de estar o arguido tão limitado no exercício do direito fundamental de defesa em sede de matéria de facto pelas falhas comprovadas e de relevo da gravação da prova em audiência, a verdade é que o próprio teor e termos dos Acórdãos anteriores nessa matéria pecam, de forma flagrante, pelos vícios previstos no artigo 410°, nº 2, do Código de Processo Penal. 20) No que se consegue ouvir apenas das respostas das testemunhas, deparamos com um discurso absolutamente incoerente, ficcionado, manipulador de BB e suas amigas, não hesitando aquela, suposta vítima de violação, em apelidar o arguido de mero amigo ou parceiro com quem mantinha relações íntimas, tendo o mesmo sido referido pelas suas amigas, que manifestaram expressamente nunca terem gostado do miúdo que atrapalhava as suas saídas nocturnas e que, para elas, o facto de BB manter relações sexuais com ele não significava um namoro a sério, mas não mais do que ir com um amigo ao café. 21) É desde logo contrário à lógica e senso comum, assim perceptível por qualquer pessoa – diga-se o homem minimamente atento – que se possa dar entender que as palavras da ofendida BB, que se disse vítima de sequestro, coacção grave e violação, possam ser isentas e servir por si, à revelia da restante prova e na falta de prova, para condenar o arguido por tudo o que dissesse e disse. 22) A prova documental – que existe nos autos -foi totalmente desconsiderada pelo Tribunal, com decisões contrárias ao seu teor, destacando-se a apreciação, que deveria sim ter sido vinculada e correcta, do Relatório do Conselho Nacional de Andidopagem e Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls. 736 e ss dos autos. 23) Interpretação e aplicação do princípio

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constante do artigo 127° do Código de Processo Penal no sentido de que o Julgador pode, sem qualquer fundamento concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados é inconstitucional, por violação do artigos 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa. 24) Para além de desconsiderar factos e elementos probatórios carreados aos autos, sem fundamento objectivo e plausível, o Tribunal selecciona e interpreta, como bem quer, alguns outros elementos probatórios, de forma puramente subjectiva e, assim, arbitrária e desconforme ao propósito de prossecução da descoberta material. 25) O princípio da livre apreciação da prova tem, inevitavelmente, limites, desde logo os que decorrem das regras da experiência comum e do propósito maior da descoberta da verdade, com vista ao do fim último da realização de Justiça. 26) E interpretação do artigo 127° do Código de Processo Penal no sentido de que a livre apreciação da prova corresponde a uma valoração meramente subjectiva por forma a suprir as insuficiências dos elementos probatórios, ou desconsiderando e contrariando a prova produzida, sem fundamento concreto e objectivo, é desconforme à Constituição da República Portuguesa, por violação do artigo 32°, nºs 1 e 2 deste diploma fundamental. 27) Os vícios na apreciação da prova são tão graves e evidentes no caso e na decisão em apreço que a verdade é que qualquer pessoa – nem necessariamente o homem médio minimamente atento – que tome e tenha já tomado contacto com esta condenação logo conclui pela sua incoerência e injustiça. 28) Sobre os alegados crimes de sequestro e coacção grave e, acima de tudo, violação contra a demandante BB, tal como os alegados crimes de ameaças e violação de domicílio contra CC, pedimos nós a V. Excelências se conheça dos vícios previstos no artigo 410°, nº 2, a), b) e c), do Código de Processo Penal que efectivamente ressaltam quer da decisão ora sob recurso, quer da decisão de 1a instância que naquela se reproduz e se dá como correcta. 29) Relativamente às testemunhas de AA, a predisposição para não atender a qualquer coisa que pudesse ser dita pelas mesmas sobre os factos evidenciou-se logo com a imposição por parte do Tribunal (que, ainda por cima, não ficou gravada) de que o arguido escolhesse das 20 apresentadas apenas 5, as abonatórias, não tendo todas as demais sido chamadas, como se apenas ao arguido devesse interessar a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. 30) O Tribunal efectivamente não considerou, sem argumento plausível para o efeito e respeito pela equitatividade processual, tudo o que disseram aquelas duas e restantes testemunhas de defesa sobre a vida e relacionamento do casal AA e BB. 31) Não considerou o que efectivamente disseram algumas das próprias testemunhas de acusação – os vizinhos da mãe de BB – que, com isenção, refutaram qualquer tipo de investida do arguido contra a BB ou mãe desta, sequer presença que se notasse perto da casa destas, contrariando directamente o que aquelas disseram e quiseram dar a entender. 32) O Tribunal deixou de atender, sem justificação, a factos concretos e perfeitamente contextualizados, sustentados por elementos de prova, que refutam por inteiro qualquer acto de coacção e/ou sequestro de BB enquanto namorava com o arguido, incorrendo, assim, para além do erro notório que se evidencia no texto do Acórdão, no vício de insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto. 33) Invoca o Tribunal as mensagens que constam do auto de leitura do telemóvel de BB, de fls. 152 e ss, mas, atenta a globalidade dessas mensagens – como constantes dos autos – e o contexto amoroso, não compreendemos o valor que se pretendeu atribuir a apenas algumas delas, escolhidas e descontextualizadas pelo Tribunal. 34) O que faz o Tribunal, manifestamente, é desconsiderar factos e provas que os sustentaram, ou mesmo decidir contra a prova produzida, com uma valoração e apreciação puramente subjectiva e tendenciosa da causa. 35) Interpretação do artigo 127° do Código de Processo Penal no sentido de que a livre apreciação da prova corresponde a uma valoração meramente subjectiva por forma a suprir as insuficiências dos elementos probatórios, ou desconsiderando e contrariando a prova produzida, sem

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fundamento concreto e objectivo, é desconforme à Constituição da República Portuguesa, por violação do artigo 32°, nºs 1 e 2 deste diploma fundamental. 36) Existe, pois, atento o disposto e o teor do Acórdão recorrido, ta! como do Acórdão de 1a instância que reproduz, desde logo na condenação do arguido pelos alegados crimes de coacção grave e sequestro ERRO NOTÓRIO e INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA – que se pede sejam, em Vossa Justiça, conhecidos, com as devidas consequências legais. 37) O 1º Juízo Criminal de Viseu entendeu, ou melhor, presumiu considerar-se provado que o arguido violou a sua namorada durante determinado período temporal, tendo o Tribunal da Relação anuído ao mais surpreendente raciocínio e sua grave consequência de condenação do arguido pelo crime de violação, de forma perfeitamente adversa às regras da experiência comum e alheia à prova produzida nos autos. 38) Tão evidente é a falta de prova nesse sentido, que o Tribuna! de Viseu se socorreu, em sede de convicção sobre a matéria de facto que considerou provada, de uma presunção de que o arguido praticou com culpa factos capazes de subsumir-se no tipo legal do crime de violação. 39) Não há desde logo qualquer elemento probatório objectivo, concreto e consistente que permita, em respeito pelos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, concluir, muito menos presumir a prática do crime de violação e, com isto, se entender ter-se prosseguido o fim da descoberta material e realização de Justiça. 40) O discurso da demandante a que se submetem ambos os Tribunal Judicial de Viseu e o Tribunal da Relação está repleto de contradições e incoerências crassas, sem apoio possível na realidade aos olhos de qualquer pessoa, diga-se o homem médio minimamente atento. 41) O Tribunal de Viseu desatendeu e decidiu mesmo contra prova documental, que é, como diz o Tribunal da Relação no Acórdão recorrido, de apreciação vinculada – é o caso do relatórios suscitados, solicitados e juntos aos autos, de que se destaca o Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem, atestando aquilo que, de resto, é facto público e notório: a toma de anabolizantes tem como efeitos secundários a hipertensão arterial e perturbações da libido, ou seja, falta de desejo e impotência sexual. 42) Para além do erro notório que se evidencia na decisão sobre a matéria de facto relativa também ao crime de violação, verifica-se ainda, à semelhança do que sucedeu, simultaneamente, sobre os alegados crimes de coacção grave e sequestro, que o Tribunal Judicial de Viseu, sem que o Tribunal da Relação o tenha minimamente considerado e sanado, decide contra a prova e desatende factos e elementos probatórios de relevo sem fundamento algum, pelo que peca a decisão sobre recurso também pelo vício de insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto.(…). 46) Mesmo sem gravação ou transcrição que o possibilite com a precisão que a situação e caso impõem – com a maior gravidade no que aos factos de 2 de Março de 2005 respeita –, o Tribunal da Relação pretende apoiar, mais uma vez, a decisão do 1o Juízo Criminal de Viseu de condenar o arguido por homicídio qualificado na forma tentada. 47) Dar-se como provado facto em desfavor do arguido com base em desconhecimento ou dúvidas das testemunhas constitui violação do princípio in dúbio pro reo e princípio da presunção de inocência como consagrado no artigo 32°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa. 48) Quisesse o arguido matar BB, fosse esse o seu objectivo, tinha-o efectivamente feito, concentrando-se nela e apontando a zonas vitais, estando junto a ela, sendo a própria prova indiciária coincidente com o que relatou o arguido com todo o pormenor. 49) Contrariamente ao que diz o Tribunal da Relação, é do senso comum, lógica, coerência numa apreciação cuidada dos factos que, àquela distância, com experiência de armas, quisesse o arguido matar a demandante tinha-o feito. 50) Aliás, fosse esse o seu objectivo desmedido e premeditado, teria morto a demandante ainda dentro da casa cuja porta arrombou. 51) Os disparos foram um acidente, num momento único, excepcional de tensão extrema, momento com que o arguido foi naquele instante surpreendido e que nunca antes havia sido vivido peio

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arguido que nem registo criminal tinha para além de uma condução sem habilitação aos 16 anos e, isto, apesar de trabalhar desde muito novo em meios por natureza susceptíveis de gerar conflitos. 52) Emoção, tensão extrema, quando rodeado por agentes da PSP que avançaram a correr para ele com armas empunhadas – circunstâncias excepcionais a que já não se refere o Tribunal da Relação. 53) Frieza é tudo o que não caracteriza este caso e nenhum sentido faz que se conclua pela mesma naquele circunstancialismo e, aliás, também em contradição, ao mesmo tempo que dizia o Tribunal Judicia! de Viseu que pretendia punir mais o arguido para reprimir os crimes passionais de que se fala nos media, veio depois imputar-lhe frieza nos disparos que em segundos deflagraram e se sucederam rapidamente, num momento extremo de tensão em que convergiram rapidamente todas as emoções e desespero maior. 54) Há contradição, erro notório, insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto e violação grosseira do princípio da presunção de inocência na forma como se decidiu dar como provado como o arguido praticou os factos de 2 de Março de 2005. 55) Nas páginas 55 a 57, refere-se o Tribunal da Relação a quanto invocou o arguido sobre factos que deveriam ter sido atendidos, porque suscitados e relevantes para a boa decisão da causa, e que deveriam ter sido dados como provados atenta a existência de elementos probatórios inultrapassáveis nesse sentido. 56) Ao contrário do que referiu o Tribunal de Viseu – ironizando, inclusive, despropositadamente a questão pertinente do uso e efeitos dos anabolizantes – e o que refere agora o Tribunal da Relação, as oscilações da libido, ou seja, falta de desejo, a atrofia e a impotência sexual, para além de abundantemente publicitados a título de alerta, constam, com evidência, do Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem a fls. 736, tal como do subsequente Partial Agreement in the Social and Public Health Filed, do Conselho da Europa, a fls738 e ss, sendo tal prova documental técnica de apreciação vinculada. 57) Para além desses efeitos a nível do desempenho sexual dos utilizadores de esteróides, constam também, como efeitos outros secundários principais, hipertensão artéria! e aumento de agressividade {vide mesmos Relatório do Conselho Nacional de Andidopagem e Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls. 736 e ss), aos quais acresce, como é do senso comum, o stress próprio de quem se dedica intensivamente, como era o caso do arguido, a competições. 58) O Julgador não pode impor decisão contrária a factos cientificamente atestados e publicitados, sem sequer invocar fundamento objectivo e lógico concreto para esse decisão, sendo, para mais, os factos em causa de relevo maior para a boa decisão da causa, revelando-se, na sua desconsideração, insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto. 59) Interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127° do Código de Processo Penal no sentido de que o Julgador pode, sem qualquer fundamento concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados é inconstitucional, por violação do artigos 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa. 60) O Tribunal da Relação desconsidera os factos avançados, de forma genuína, pelas testemunhas arroladas pela defesa no sentido de que ouviram – o que ouviram e onde – à demandante dizer ao arguido em público, a título de provocação e humilhação de cariz sexual derivada da toma de esteróides, referindo que tais FACTOS E ELEMENTOS PROBATÓRIOS são um argumento não credível pois BB, conhecedora da personalidade do arguido, não se atreveria a tal, muito menos à frente dos amigos do recorrente. 61) Em vez de considerar, com a mínima objectividade e cuidado com vista à descoberta da verdade, aqueles factos, o Tribunal afasta-os a priori porque prejudicam a condenação do arguido. 62) A desconsideração de factos e elementos probatórios com relevo para a decisão porque divergem do propósito de condenação do arguido constitui flagrante violação do artigo 32°, n°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, para além de crassa violação do artigo 6o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Foi propositadamente que transcrevemos

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neste lugar esta massa inextricável de conclusões. Através delas, só se pode tirar uma conclusão: o recorrente confunde vícios da matéria de facto que inquinam a própria decisão de facto na sua génese e na sua estrutura com a apreciação e valoração da prova produzida em audiência de julgamento.

Ora, sendo a prova produzida aquilo que o recorrente ataca directamente, não é a questão dos vícios que está em causa, mas a matéria de facto que foi discutida e objecto de prova nas instâncias e que ele transporta de novo para este Tribunal. Um tal recurso da matéria de facto não é admissível para o Supremo Tribunal de Justiça, que apenas tem competência, como tribunal de revista, para apreciar matéria exclusivamente de direito (arts. 432.º, alínea c) e 434.º do CPP, na redacção actual – anteriormente, excluíam-se apenas as decisões do tribunal de júri). Mas mesmo em relação aos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, os quais, como se sabe, têm de resultar patentemente do texto da decisão recorrida, encarado em si mesmo, sem recurso a elementos extrínsecos, como sejam, nomeadamente, as provas produzidas em audiência de julgamento, embora sem excluir a possibilidade de conjugar esse texto com as regras gerais da experiência comum, este Tribunal tem entendido uniformemente o seguinte: O recurso da matéria de facto, ainda que restrito aos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP (a chamada revista alargada) tem actualmente (isto é, depois da reforma introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) de ser interposto para a Relação, e da decisão desta que sobre tal matéria se pronuncie já não é admissível recurso para o STJ, pelo que se haverão de considerar precludidas todas as razões que foram ou podiam ser invocadas nesse recurso, cuja decisão esgota os poderes de cognição nessa matéria (Cf., entre outros, os recentes acórdãos de 1/6/2006, Proc. n.º 1427/06 – 5.ª e de 22/6/2006, Proc. n.º 1923-06 – 5.ª e no mesmo sentido SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, O Novo Código E Os Recursos, 2001, edição policopiada, pgs. 9 e 10).Esta interpretação colhe apoio na redacção introduzida pela aludida reforma na alínea d) do art. 432.º do CPP, que passou a conter a locução, antes inexistente, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito. É de notar que a redacção actual, não só reconfirma, como alarga esta solução, na medida em que a alínea c), que passou a englobar a matéria das anteriores alíneas c) e d), dispõe que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito”. Por conseguinte, pretendendo interpor-se recurso de acórdão final do tribunal colectivo (ou de júri, na redacção actual) quanto à matéria de facto, seja por via da impugnação da apreciação e valoração da prova produzida, seja por meio da alegação de vícios do art. 410.º, n.º 2, tal recurso há-de ser dirigido ao Tribunal da Relação, que é uma instância que aprecia matéria de facto e de direito, ao invés do STJ que aprecia exclusivamente matéria de direito. A decisão da 2.ª instância é definitiva quanto a tal matéria, não podendo reeditar-se no recurso para o STJ as razões que fundaram a alegação desses vícios para a Relação e que já foram apreciadas. Se os recorrentes interpuseram recurso para a Relação em que suscitaram divergências relativas à matéria de facto nas quais se inclui a que agora retomam, tendo a Relação decidido sobre tais questões, a matéria de facto tem de ser considerada como assente, não podendo tal questão ser retomada no recurso para o STJ, restrito que está à reposição da matéria de direito (cfr. disposições conjugadas dos arts. 432.º, al. d), e 434.º do CPP (Ac. de 15-10-2003, Proc. n.º 1882/03 - 3.ª Secção). Esta interpretação colhe inclusive o apoio doutrinário de Germano Marques da Silva, que assim se pronuncia no seu Curso de Processo Penal III, 2.ª Edição, Editorial Verbo 2000, p. 371: Recente jurisprudência do STJ tem considerado que a norma do art. 410.º do CPP deve ser interpretada restritivamente, não sendo aplicável aos recursos referidos na alínea d), do artigo 432.º. Parece-nos acertada esta orientação, pois, se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º e houver razões para crer que a

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renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo, a relação deve desde logo proceder à sua renovação. Acresce que tendo havido documentação da prova, o tribunal da relação pode também decidir com base na prova documentada, o que o STJ não pode fazer por não ter poderes de decisão em matéria de facto. É claro que uma tal interpretação é feita sem prejuízo de o STJ conhecer dos citados vícios oficiosamente, nos termos do disposto no art. 434.º do CPP e da jurisprudência fixada por este Tribunal no Acórdão n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR 1.ª S/A, de 28/12/95. Em tal caso, porém, o STJ conhece oficiosamente desses vícios, não porque possam ser alegados em novo recurso que verse os mesmos depois de terem sido apreciados pela Relação, mas quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentem como plausíveis. Uma tal interpretação não colide com o direito ao recurso, enquanto parte integrante do direito de defesa consagrado no art. 32.º, n.º 1 da Constituição, pois o referido direito alcança satisfatoriamente as exigências constitucionais com o asseguramento de um grau de recurso para um tribunal superior, neste caso a Relação. Mas se é assim no respeitante aos vícios do art. 410.º, nº 2 do CPP, muito mais o há-de ser num recurso como o do recorrente, que, afinal, visa tão-só a reanálise e reinterpretação da prova produzida, com o pretexto de que o tribunal “a quo” errou notoriamente na interpretação e valoração que fez dessa prova, ou incorreu em contradição insanável ou ainda que a prova produzida é insuficiente para a condenação (o que não corresponde, em nenhum caso, à alegação dos erros-vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP), alegando ainda o recorrente que o tribunal “a quo” extravasou o “poder de livre apreciação da prova”. Com efeito, o recorrente não faz outra coisa senão invocar depoimentos e declarações produzidos em julgamento, pretenso desprezo da prova produzida por parte do tribunal de 1.ª instância (note-se: da 1.ª instância, quando a decisão recorrida é a da Relação, que já apreciou as questões agora reeditadas), condenação sem provas ou por puro arbítrio do tribunal, etc. reincidindo na impugnação da matéria de facto que fez no recurso para a Relação e pretendendo extrair outras conclusões da prova produzida que levem a uma diferente decisão da matéria de facto. Simplesmente, o Supremo Tribunal de Justiça funciona como tribunal de revista, como já se disse, e, por isso, só reexamina matéria de direito, o que o recorrente ignora de uma forma patente, colocando o seu recurso, neste âmbito, sob o ângulo da manifesta improcedência. Concluímos, pois, que o recurso interposto, visando a matéria de facto, é manifestamente improcedente.10.2. O mesmo se diga da pretensa violação do art. 127.º do CPP.

Com efeito, o recorrente invoca, como se disse, a violação do princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 127.º do CPP para justificar a sua discordância da decisão da matéria de facto. Mas trata-se, obviamente, no contexto da motivação de recurso, de um mero pretexto para pôr em crise a decisão sobre a questão factual, que não de uma verdadeira questão de direito. A livre apreciação da prova significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que predeterminem ou hierarquizem o valor dos diversos meios de prova (veja-se Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I vol. 1974, págs. 202 e segs.). A livre apreciação da prova pode envolver, como é natural, uma grande dose de subjectivismo, pois é impossível desligar o julgador da sua experiência pessoal, da sua cultura, das suas ideias de vida, da sua moral, etc. Porém, tal «princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida» (obra citada). A discricionariedade com que o julgador aprecia a prova não pode confundir-se com arbitrariedade. Por isso, «a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (...) A verdade "material" que se busca em processo penal não é o conhecimento ou apreensão absolutos

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de um acontecimento, que todos sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata de conhecimento de acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de prova que, por sua natureza – e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal... – se revelam particularmente falíveis» (idem). Perante tal princípio da livre apreciação da prova, «uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime, da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão. As considerações feitas dão exigência de que as comprovações judiciais sejam sempre motiváveis» (idem). Por isso, o art. 97º obriga a que todos os actos decisórios – sentenças, despachos e acórdãos – sejam fundamentados. E tal fundamentação tem de incidir, não só sobre os aspectos de interpretação da lei, como era tradicional, mas também sobre a decisão da matéria de facto, pelas razões já apontadas. Efectivamente, o art.º 374º, n.º 2, dispõe sobre a elaboração da sentença que «ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». Em suma, o princípio da livre apreciação da prova está intimamente conexionado com a fundamentação da decisão, proscrevendo uma interpretação caprichosa e imotivada da prova produzida e exigindo a motivação da convicção decisória em termos que se reconduzam a critérios objectivos, de modo a que o processo lógico seguido pela decisão seja perceptível pelos seus destinatários e controlável pelos tribunais superiores. Foi isto que disse o Tribunal Constitucional, ao acentuar que “este princípio da livre apreciação da prova não é absoluto, e não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo” (acórdão nº 1165/96 de 19 de Novembro; BMJ, 461, 93). Ora, no caso sub judice, o recorrente não impugna propriamente a decisão recorrida sob esse prisma da falta de motivação, da arbitrariedade, da ausência de critérios objectivos na avaliação e interpretação da prova ou falta do seu exame crítico, enfim, na postergação de regras da experiência comum. Não é que não impute tudo isso à decisão recorrida, o seu ataque à decisão assenta primacialmente na referida impugnação da prova produzida, em termos em tudo semelhantes aos que fez no recurso para a Relação. Ou seja, o recorrente passa por cima do que a lei prescreve acerca dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, continuando prisioneiro de uma fase – a da apreciação e valoração das provas – que já foi ultrapassada. Em todo o caso diga-se que a decisão da 1.ª instância, que foi confirmada também nesse aspecto pelo Tribunal da Relação, está motivada de acordo com os critérios que foram enunciados acima, suportando perfeitamente, em termos de lógica, racionalidade, regras gerais da experiência comum e exame crítico das provas, as opções tomadas em matéria de facto.

10.3. O recorrente invoca ainda, nas conclusões 23.ª e 59.ª (precisamente iguais, como tantas vezes sucede ao longo do extenso e prolixo rol conclusivo) que a «interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127° do Código de Processo Penal no sentido de que o Julgador pode, sem qualquer fundamento concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados é inconstitucional, por violação do artigos 32°, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa».

Já vimos que esta conclusão é ela própria infundamentada e arbitrária, não se surpreendendo na decisão, quer da 1.ª instância, quer da Relação, cada qual ao seu nível decisório, nada que na respectiva fundamentação das opções tomadas indicie arbítrio,

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capricho, falta de indicação das competentes razões ou exame crítico das provas que serviram para formar a respectiva convicção, pelo que a invocação da violação do art. 32.º, n.º 1 da Constituição é meramente emblemática.

Mas tentemos ver o que quer dizer exactamente o recorrente com aquele “sem qualquer fundamento concreto e objectivo invocar para o efeito, contrariar ou desatender (…) factos objectivos cientificamente atestados”.

Antes do art. 23.º das conclusões, o recorrente, sempre no seu intento de impugnar indevidamente o decidido em matéria de facto, contesta, entre outros, o crime de violação, afirmando que “É desde logo contrário à lógica e senso comum, assim perceptível por qualquer pessoa - diga-se o homem minimamente atento - que se possa dar entender que as palavras da ofendida BB, que se disse vítima de sequestro, coacção grave e violação, possam ser isentas e servir por si, à revelia da restante prova e na falta de prova, para condenar o arguido por tudo o que dissesse e disse”.

“A prova documental – que existe nos autos -foi totalmente desconsiderada pelo Tribunal, com decisões contrárias ao seu teor, destacando-se a apreciação, que deveria sim ter sido vinculada e correcta, do Relatório do Conselho Nacional de Andidopagem e Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls. 736 e ss dos autos”.

Por seu turno, antes do art. 59 das conclusões, o arguido refere-se aos “acontecimentos de 2 de Março de 2005”, e estes acontecimentos dizem respeito à introdução na casa de MC, onde estava a assistente BB, ao sequestro desta pelo arguido e ao disparo da arma (revólver) que levava consigo sobre a referida BB, primeiro na direcção da cabeça, depois na zona abdominal (factos descritos em V), supra 8.1.)

Em suma, na parte relevante para a decisão, refere-se ao crime de homicídio. E, nos arts. 56, 57 e 58 das conclusões, diz:

56) Ao contrário do que referiu o Tribunal de Viseu – ironizando, inclusive, despropositadamente a questão pertinente do uso e efeitos dos anabolizantes -e o que refere agora o Tribunal da Relação, as oscilações da libido, ou seja, falta de desejo, a atrofia e a impotência sexual, para além de abundantemente publicitados a título de alerta, constam, com evidência, do Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem a fls. 736, tal como do subsequente Partial Agreement in the Social and Public Health Filed, do Conselho da Europa, a fls738 e ss, sendo tal prova documental técnica de apreciação vinculada. 57) Para além desses efeitos a nível do desempenho sexual dos utilizadores de esteróides, constam também, como efeitos outros secundários principais, hipertensão artéria! e aumento de agressividade (vide mesmos Relatório do Conselho Nacional de Andidopagem e Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls. 736 e ss), aos quais acresce, como é do senso comum, o stress próprio de quem se dedica intensivamente, como era o caso do arguido, a competições. 58) O Julgador não pode impor decisão contrária a factos cientificamente atestados e publicitados, sem sequer invocar fundamento objectivo e lógico concreto para esse decisão, sendo, para mais, os factos em causa de relevo maior para a boa decisão da causa, revelando-se, na sua desconsideração, insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto. Por conseguinte, quer num caso, quer noutro (violação, homicídio), o recorrente refere-se (pelo menos é o que parece resultar das suas pouco explícitas conclusões) aos célebres efeitos dos anabolizantes no comportamento do arguido, tanto ao nível de agressividade, hipertensão e stress, como ao nível da falta de desejo, atrofia e impotência sexual. São esses, pelos vistos, os factos cientificamente comprovados.

Pois bem: mais uma vez se constata que se anda sempre à volta do mesmo problema: a prova produzida, a sua interpretação e valoração, como se o Supremo Tribunal fosse uma terceira instância de apreciação de facto.

Mas, uma vez que se imputa à decisão recorrida a divergência acintosa de resultados de exames periciais, vejamos como a Relação encarou o problema:

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IV) Matéria de facto considerada não provada pela decisão recorrida. Pretende o arguido que se dê como provado que: a) o arguido praticava e entrava em competições de powerlifting, fazendo uso de asteróides anabolizantes, cujos efeitos secundários são, entre os demais, como cientificamente atestado, hipertensão arterial, aumento de agressividade, impotência sexual e oscilações da libido, ou seja, falta de desejo sexual; b) BB tinha o hábito de humilhar o arguido em público, entre amigos e mesmo patrões deste, tecendo comentários e provocações sobre o seu desempenho sexual, no sentido de que a não conseguia satisfazer devido ao uso de anabolizantes; c) o arguido começou a andar perturbado em função da sua relação com a BB, a partir do momento em que esta mudou o seu comportamento para com aquele, deixando-o no desconhecimento de por onde andava e permitindo que as suas amigas ingerissem na relação dos dois. Considera ainda que o Tribunal recorrido devia ter dado como provado o bom comportamento anterior do recorrente. A este respeito cumpre referir que o Tribunal tinha que se pronunciar sobre os factos da acusação/pronúncia e da contestação, bem como daqueles outros que resultassem da discussão da causa que tidos como relevantes para a decisão, com incidência directa no "recorte de vida" submetido à sua apreciação ou com relevo para a determinação da medida concreta da pena. Não sobre tudo o que o recorrente pudesse vir a considerar relevante, em seu critério, a posteriori. Ora o Tribunal deu como provado, neste âmbito, que "o arguido tomava anabolizantes para obter melhores performances na actividade de powerlífting que praticava" – cfr. ponto IX 1 dos factos provados. Não tinha que se pronunciar sobre os possíveis efeitos secundários, não só porque não foram alegados, mas também porque eram indiferentes para o conhecimento da responsabilidade criminal do arguido. Aliás, alegando que tomava os anabolizantes "para obter melhores performances" na actividade desportiva, não se vê como pudesse ter efeitos contrários para outros efeitos também de ordem física. Pronunciando-se sobre factos alegados na contestação, o Tribunal tomou posição — e só isso lhe competia — decidindo dar como não provado que "à data dos factos e, desde de Janeiro de 2005, o arguido estivesse com as faculdades alteradas devido a substâncias que tomava e fosse hipertenso" – cfr. fls. 17 do acórdão. Tendo-o feito, mais uma vez, não de forma arbitrária, mas com base em parecer técnico, emitido pelo Conselho Nacional Antidopagem, junto a fls. 736-788, motivado em literatura médica que anexou, onde em resumo se refere que "não se encontra descrito qualquer efeito que, de qualquer modo, afecte o discernimento de quem ingira tais medicamentos". Sobre o parágrafo b) supra referido, o tribunal também deu como não provado que «BB tivesse humilhado o arguido a ponto de denegrir as suas capacidades sexuais perante amigos comuns». Fundamentando o julgamento sobre tal matéria a fls. 17 e 18 do acórdão. Ora para além da explicação dada pelo tribunal recorrido, para que se remete, por reproduzida supra, não é credível, minimamente, que BB, conhecedora da personalidade do arguido, se atrevesse a tal. Muito menos à frente dos amigos do recorrente. A própria BB relata dois episódios, ocorridos em Maio, logo cerca de dois meses após o início da relação, em que refere que o arguido a agrediu, factos que o arguido acabou por reconhecer, embora dando explicação diferente para tais comportamentos. Todo o conjunto da matéria de facto provada, desde logo a confessada pelo arguido revelam uma personalidade autoritária e dominadora que não se coaduna de modo algum com a atitude passiva do arguido, perante as alegadas afrontas que a BB ousava lançar-lhe, corno quiseram fazer crer as testemunhas FF e GG.

Este trecho da decisão é o mais claro desmentido das afirmações do recorrente, quer no que toca ao arbítrio que imputa à decisão, quer no que respeita à divergência não fundamentada de juízo científico.

Por conseguinte, continua a ser manifestamente improcedente a alegação do recorrente.

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10.4. O recorrente invoca a violação do princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, que não são exactamente a mesma coisa. Com efeito, como salienta CASTANHEIRA NEVES, o princípio in dubio pro reo é «o correlato processual» da exclusão do ónus da prova, ou seja o que o princípio postula é «a prova efectiva da infracção, ou, inversamente, a inadmissibilidade de uma condenação por uma infracção não provada…» (Sumários de Processo Criminal, lições policopiadas, Coimbra 1968, p. 56/57)

Ora, tem este Tribunal entendido que o STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo, se da decisão resultar que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido (entre outros, os Acórdãos de 5/6/03, Proc. n.º 976/03 – 5.ª, de 12/7/05, Proc. n.º 2315/05 – 5.ª e de 7/12/05, Proc. n.º 2963/05. 3ª,), ou ainda quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, naqueles casos em que se possa constatar que a dúvida só não foi reconhecida em virtude de erro na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP (entre outros, os Acórdãos de 30/10/01, Proc. n.º 2630/01 – 3.ª, de 6/12/2002, Proc. n.º 2707/02 – 5.ª e de 24/11/05, Proc. n.º 2831/05 – 5ª).

 Em síntese e numa formulação que parece bem acomodada à natureza do princípio e aos poderes de cognição do STJ, escreveu-se no Acórdão de 20/10/05, Proc. n.º 2431/05): «A sindicância do princípio in dubio pro reo está limitada aos aspectos externos da formação da convicção das instâncias: há-de ficar-se pela exigência de que tal convicção seja objectivada e motivada na análise crítica das provas, dela sendo a expressão de um processo racional convincente que suporte a conclusão final do tribunal recorrido pela valoração feita deste ou daquele meio de prova». Por conseguinte, a violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, pode ser sindicado pelo STJ. Todavia, essa sindicação tem de exercer-se dentro dos limites de cognição desse Tribunal, devendo por isso resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, ou seja: quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. Ora, o recorrente, ao levantar a questão da violação do princípio in dubio pro reo, fá-lo mais uma vez como forma de encapotadamente atacar a apreciação e valoração da prova produzida feitas pelas instâncias. Na realidade, o que ele pretende é opor à convicção a que chegaram as instâncias a sua própria visão das coisas. Neste sentido, as dúvidas quanto à prova estão na sua maneira de a verem e interpretarem, não na decisão recorrida. Da fundamentação desta, conjugada com a motivação da convicção da decisão da 1.ª instância não resulta que, ao darem-se como provados os respectivos factos nos pontos questionados, se tivesse decidido contra o arguido, não obstante a persistência de dúvidas razoáveis. Por outro lado, dada a forma como o tribunal de 1.ª instância motivou a convicção e que o Tribunal da Relação acolheu na sua fundamentação, reinterpretando-a à luz dos problemas postos, não se surpreende nenhuma conclusão que não seja suportada, em matéria de apreciação e exame crítico da prova, pelo processo lógico e racional, integrado pelas regras gerais da experiência, que conduziu à convicção. Como tal, é também manifestamente improcedente o recurso quanto a tal questão.

10.5. No que diz respeito ao crime de homicídio, o recorrente começa por impugnar a intenção de matar, sempre na óptica da não aceitação da interpretação e valoração da

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prova produzida em julgamento – o que. para o dizermos, mais uma vez, está para além dos limites de cognição deste Tribunal. Tal resulta manifestamente das conclusões do recurso acima transcritas (47.º a 62.ª - ponto 10.1.)

Como tal, nem vale a pena perder tempo com a alegação do recorrente. De resto, a Relação, com uma detenção e uma erudição dignas de aplauso, faz uma alongada excursão sobre a questão da prova da intenção de matar. Certo é que a factualidade provada, que se deve considerar definitivamente assente, pelos motivos constantemente repetidos ao longo deste acórdão, apontam inequivocamente no sentido da intenção de matar , pois, “ao disparar sobre a mencionada BB, da forma como o fez, o arguido agiu com intenção de lhe causar a morte, o que só não aconteceu por circunstâncias estranhas à sua vontade, designadamente, pelo facto daquela ter sido socorrida prontamente.

E ainda que “os ferimentos causados pelos disparos efectuados pelo arguido sobre a BB eram adequados a causar-lhe a morte, resultado que o arguido quis e que apenas por mero acaso não veio a verificar-se.

Além disso, “o arguido teve consciência da direcção que imprimiu ao primeiro disparo que efectuou e que atingiu a BB na cabeça, sendo certo que o segundo disparo apenas não atingiu a ofendida em regiões vitais – como era intenção do arguido – devido a circunstância alheias à vontade deste.”

“O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente”.Por conseguinte, daqui não há que fugir: a actuação do recorrente configura um crime

de homicídio na forma tentada (arts. 131.º e 22.º do CP). Já veremos se este crime é ou não qualificado.

10.6. Quanto à questão da qualificação, o recorrente oferece uma panóplia de soluções que esgotam praticamente todas as hipóteses possíveis em direito penal: ofensa à integridade física por negligência (consciente), ou ofensas à integridade física do art. 144.º do CP, ou ofensas à integridade física graves, a título de negligência consciente, nos termos do artigo 148°, nºs 1 e 3, do mesmo diploma legal, homicídio privilegiado do art. 133.º do CP. Tudo menos o tipo matricial de homicídio.

O problema é que a factualidade assente, descontada as interpretações e valorações fácticas avançadas pelo recorrente, só dá para preencher precisamente o tipo legal de crime que ele quer ver excluído – o de homicídio voluntário, na forma tentada.

A este propósito, veja-se o acerto das considerações tecidas na decisão recorrida:O recorrente discorda do enquadramento jurídico-penal dos factos que levaram o

tribunal a condená-lo pelo crime de homicídio tentado qualificado. Sustentando que tudo não passou de um acto negligente (!) do arguido no manejo da arma pelo que deveria ser somente condenado pelo crime de ofensa à integridade física por negligência pp. pelo art. 148.º, nºs 1 e 3 do C. Penal. Na base de tal enquadramento está a alegada ausência de intenção de matar ou mesmo de atingir a integridade física da ofendida. Tratando-se, por isso, de argumentação já apreciada em sede de reapreciação da matéria de facto, tendo naufragado. Pelo que, em face da matéria de facto provada (disparo de arma de fogo calibre 7,65 mm., à queima-roupa, sobre a região temporal direita da cabeça da vítima, com intenção de a matar, o que só não sucedeu por motivo estranho á vontade do agente) é, de todo em todo estulta, e como tal manifestamente improcedente, a posição do recorrente neste ponto. Por último alega, para o caso de se concluir pela intenção de matar, que os factos devem ser enquadrados pelo crime de homicídio privilegiado do art. 133 – do C. Penal, sob a forma de tentativa, alegando que o arguido estava acometido de uma emoção violenta e extrema. Também aqui carece ostensivamente de sentido tal pretensão, face à matéria de facto provada. Desde logo porque o arguido não estava possuído por qualquer emoção violenta, muito menos compreensível ou relevante que o impelissem a disparar letalmente contra a ofendida. Pelo contrário verifica-se que se deslocou, pensadamente, de Lisboa a Viseu, localizou a vítima, arrombou o apartamento

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da casa da amiga onde se refugiara, levou-a sob a ameaça de uma arma a sair de casa e a dirigir-se até ao seu automóvel onde pretendia obrigá-la a entrar (e onde tinha, além de outras armas, um par de algemas prontas para a receber). Sendo certo que em todo este percurso a ofendida nada fez que pudesse desencadear, em termos de normalidade, a reacção do arguido. Mesmo a reacção da vítima a pedir socorro foi de autodefesa e não de confronto com o arguido de forma a poder tê-lo exaltado. Aproximando a arma da cabeça dela a apontando à zona temporal, visando uma zona vital do corpo da ofendida. Mais não fazendo, aliás, do que cumprir o anúncio que lhe fizera já anteriormente, pelo telemóvel. Revelando assim requintada obstinação, frieza de ânimo e sangue frio, tal como conclui a decisão recorria, cuja argumentação jurídica não é rebatida. Concordamos inteiramente com este raciocínio. Só faltou analisar a hipótese de crime de ofensas à integridade física graves do art. 144.º do CP. Porém, a base do raciocínio é a mesma. O que está provado é que o arguido agiu com intenção de causar a morte da assistente e não de a ofender corporalmente, ainda que provocando-lhe as consequências previstas nas diversas alíneas desse artigo e, nomeadamente, perigo para a vida.

Por conseguinte, está arredada a hipótese de ofensas à integridade física em qualquer das modalidades aventadas pelo recorrente.

10.7. Vejamos agora a questão da qualificação do crime.O recorrente quer ver afastada a circunstância da frieza de ânimo. Porém, fá-lo

sempre debaixo da sua peculiar e frustre perspectiva: através da impugnação da decisão de facto.

Ora, a matéria de facto assente não deixa margem para dúvidas quanto à verificação de circunstâncias que coincidem com o exemplo-padrão da alínea i) do n.º 2 do art. 132.º do CP, como judiciosamente observa a decisão recorrida, numa correcta interpretação da factualidade provada.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a definir frieza de ânimo como o agir «de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida» (Acórdão de 14/7/2004, Proc. n.º 1889/04 – 3ª, Sumários dos Acórdãos do STJ, n.º 83, p. 78); comportamento traduzido num agir de «modo frio, indiferente ao valor da vida da vítima (…) revelando uma forte intensidade da vontade criminosa» (Acórdão de 23/2/2005, Proc. n.º 4302/04 – 3ª, Sumários, n.º 88, p. 108); «firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa» (Acórdão de 10/3/2005, Proc. n.º 224%05 – 5ª, Sumários, n.º 89, p. 102). O Comentário Conimbricense do Código Penal, por seu turno, define a frieza de ânimo como a «firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução, indiciada pela sua persistência durante um apreciável lapso de tempo e, como tal, reveladora de uma forte intensidade da vontade criminosa» (Tomo I, p. 39). Ora, a forma como o recorrente agiu e que se deixou descrita nos seus traços mais impressivos traduz as características apontadas pela jurisprudência e pela doutrina. Na verdade, o arguido agiu, em todos os momentos da sua actuação, como se tivesse o privilégio do domínio absoluto sobre a assistente, que não teria outra forma de viver senão submeter-se-lhe à sua despótica vontade. A assistente quis acabar com a curta relação de namoro que mantivera com o arguido; porém, este, não se conformando, passou a perseguir a assistente de forma que se pode dizer “totalitária”, telefonando-lhe, remetendo-lhe mensagens pelo telemóvel, ameaçando-a de que “tinha a sentença feita”, perseguindo-a por todo o lado, jurando que a havia de matar, batendo-lhe, ameaçando a própria mãe dela, obrigando-a a entrar para dentro do seu carro e algemando-a, transportando-a à força para Lisboa e mantendo-a sem liberdade, obrigando-a a ter com ele relações sexuais. Por fim, dirigiu-se a casa de uma amiga, onde ela se encontrava refugiada, levando consigo o revólver de marca “Taurus”, descrito na matéria de facto, e obrigando a assistente a sair de casa dessa amiga sob ameaça de arma, que manteve sempre empunhada e encostada ao seu abdómen, pretendeu introduzi-la no carro.

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Quando se encontrava próximo deste, a assistente teve uma inesperada reacção, pedindo socorro, e o arguido não hesitou em desferir um tiro, apontando a arma à sua cabeça e atingindo-a na zona parietal direita. Depois, efectuou um segundo tiro, atingindo-a no abdómen. Toda esta actuação está interligada e denota o propósito do arguido, formado há muito, de, literalmente, se apropriar da assistente, como se fosse um objecto seu, ainda que em caso extremo de recusa dela, a tivesse que matar, como vinha anunciando e ameaçando, praticando actos que pura e simplesmente a reduziam a uma ”coisa”. Ora, tudo isto cabe no conceito de frieza de ânimo, tal como ficou acima definido e se encontra elencado na alínea i) do n.º 2, do art. 132.º do CP. Sendo, no entanto, o art. 132.º um tipo de culpa qualificador que articula um critério generalizador – o contido no n.º 1 – com um critério especializador, enunciado através de exemplos-padrão contidos no n.º 2, mutuamente implicantes, de forma que, tendo de ocorrer uma situação que possa enquadrar-se num dos exemplos-padrão ou em circunstâncias que lhes sejam estruturalmente análogas, não basta que elas se verifiquem, sendo ainda necessário que, por intervenção do critério da culpa, se possa dizer que a circunstância ocorrida se traduziu numa especial censurabilidade ou perversidade do agente. Ora, no caso, também não há dúvida de que toda a acção do recorrente se traduziu numa censurabilidade acrescida, pois que, formando com antecedência o propósito de matar, persistindo nele por considerável lapso de tempo, agindo da forma calculada que ficou assinalada, demonstrou uma especial intensidade na vontade de praticar o crime – razão e fundamento da qualificação –, revelando aspectos particularmente desvaliosos quer da acção, quer da sua própria personalidade, traduzidos estes, por exemplo, na forma implacável como levou o seu intento até ao fim. Assim, a integração do homicídio no tipo qualificado não merece censura.

10.8. Medida da pena.No que se refere a esta, o arguido começa por contestar a decisão de facto, no que

tange a não se ter dado como provado o bom comportamento anterior. Invoca depois a confissão de alguns factos, o que não podia deixar de ser inferido pelo exame crítico das provas; antecedentes criminais; circunstâncias de relacionamento concreto entre o arguido e a vítima, criticando o fundamento de prevenção geral invocado e referindo a propósito a violação do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; tempo passado pelo arguido na prisão e comportamento irrepreensível do arguido. A medida da pena tem necessariamente de situar-se, pelo que diz respeito ao crime de violação, no âmbito do art. 164.º, n.º 1 do CP, cuja pena abstracta vai de 3 a 10 anos de prisão, e, no caso do crime de homicídio, dentro da moldura penal correspondente ao crime de homicídio qualificado tentado, previsto e punido pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, aliena i) do CP, ou seja, 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses, em ambos os casos na redacção vigente ao tempo da prática dos factos, mas sem alterações sensíveis na redacção introduzida pelas alterações da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro. 8.1. A determinação da pena concreta, como se sabe, obedece a parâmetros rigorosos, que têm como elementos nucleares de referência a prevenção e a culpa, tudo nos termos dos números 1 e 2 do art. 71.º do CP. Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP). Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o

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condenado servir de instrumento a tais exigências. Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime). Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).

Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.

O recurso foi interposto da decisão da Relação para o STJ, funcionando este com a sua vocação essencial de tribunal de revista, pois a revisão da pena aplicada traduz-se na aplicação de matéria de direito. Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem, no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou da moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se mostrarem violadas regras da experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada (Cf. FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 19). A decisão recorrida acolheu a fundamentação do tribunal de 1.ª instância, e este, por seu turno, explanou a propósito o seguinte: Foi elevado o grau de ilicitude com que o arguido actuou em relação a todos os factos, pela manifesta superioridade física e de meios com que agiu em relação às vítimas dos mesmos e pela persistência da actividade delituosa que demonstrou em relação a uma delas (a BB) que durou cerca de 10 meses.

Foram gravíssimas as lesões sofridas pela vítima BB e desastrosas as consequências que delas lhe advieram.

Com efeito, sendo ela à data uma jovem alegre e sem mazelas físicas, solteira, com perspectivas, legítimas, de alcançar a felicidade plena, vê esse sonho posto em causa pela actuação do arguido, seja porque a nível profissional, no futuro, a incapacidade permanente ( de 53% ) de que ficou portadora lhe poderá limitar o campo de oportunidades, seja porque deixou de poder contar com a sua beleza – que toda a mulher gosta de exibir perante os outros – ao ter de conviver o resto da sua vida com a desfiguração do rosto que por virtude das lesões sofridas passou a apresentar, com todos os traumas e inibições que definitivamente daí lhe advêm e tudo a afectar profundamente a sua auto-estima e auto-confiança e a causar-lhe desgosto.

Foi intensa a energia criminosa com que o arguido actuou em relação a todas as situações, manifestada com especial acuidade no caso dos tiros que desferiu contra a pessoa da demandante BB, quer pela pluralidade dos disparos efectuados contra esta, quer pelas zonas do corpo da mesma por ele visadas, com especial realce para o disparo efectuado próximo e na direcção da cabeça da vítima BB, agindo, por isso, com dolo directo.

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A motivação subjacente à maioria dos factos revela que o arguido é dotado de uma personalidade violenta, egoísta e egocêntrica, que se afere pelo desprezo dos meios empregues e da vontade das vítimas em prol da satisfação do seu único interesse, designadamente, ao pretender manter, com recurso a meios violentos e apenas por vontade própria e contra a vontade manifestada da BB, uma relacionamento amoroso que já só ele queria e que sabia ter deixado de interessar a esta, evidenciando, ainda, traços de uma personalidade dominadora e possessiva, ao subjugar aquela como se fosse coisa sua pela forma patenteada na factualidade provada, com recurso à força física e a intimidações psicológicas.

A favor do arguido propendem, apenas, as suas condições de vida, nos aspectos familiares, desempenho e competência profissional e reputação perante aqueles que lhe são próximos, a sua confissão em relação a alguns dos factos, ainda que de pouco valor contributivo para a descoberta da verdade - já que o arguido confessou apenas os factos que o Tribunal não poderia deixar de inferir do exame crítico das provas carreadas para os autos e à luz da experiência comum, e nem sequer assumiu a intenção de disparar aquando do segundo tiro com que veio a atingir a vítima BB, refugiando-se num disparo acidental -, e, ainda, o seu manifestado arrependimento, patenteado no propósito de reparar as consequências de alguns dos crimes, ao depositar a quantia de € 98 para pagamento dos estragos causados na porta da casa da mencionada DD, ao ressarcir o demandante EE dos danos por este sofridos, e ao adiantar por conta da indemnização peticionada pela lesada BB a quantia, ainda que módica, de € 2.500,00, apesar de na posição por si assumida nos autos a fls. 1320 deixar antever algum fingimento na atitude de adiantamento desta última quantia ao alegar sentimentos de vingança por parte da demandante BB, postura que não pode deixar de salientar-se como reveladora de que não interiorizou a desconformidade da sua conduta face à lei e a gravidade das consequências dos actos praticados, o que, conjugado, também com o facto do arguido na sua contestação se escudar num estado de perturbação das suas faculdades aquando dos factos, que, sem êxito, tentou provar na audiência de julgamento, retira alguma seriedade ao arrependimento por si propalado.

Os antecedentes criminais do arguido, ainda que por crime de diferente natureza jurídica e menor gravidade propendem contra ao mesmo, embora com pouco pendor agravativo.

Por fim, não são de desprezar as razões de prevenção a nível geral, dado o crescendo de violência passional no nosso país que os media vêm noticiando.

Termos em que, adequadas à culpa do arguido e sobretudo de molde a dar satisfação às prementes exigências de retenção, de defesa do ordenamento jurídico e da paz social em tal sorte de crimes sem deixar de lado as necessidades de ressocialização do arguido, se julgam adequadas as seguintes penas:

(…)- pela prática, como autor material, de um crime de violação, p. e p. pelo Art. 164º

Nº1 do C. Penal, a pena de 4 ( quatro ) anos e 6 ( seis ) meses de prisão;(…)- pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado na forma

tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1, al.s a) e b), 131º e 132º Nº1 e 2 i) do C. Penal, a pena de 10 ( dez ) anos de prisão;

(…) Estas considerações merecem acolhimento, por acertadas. É de destacar que a confissão dos factos não tem grande relevo, como se referiu na decisão da 1.ª instância, e que o arrependimento, em relação aos crimes de violação e homicídio, não tem também praticamente valor, pelas razões apontadas. Quanto aos antecedentes criminais, foi bem referido pelo tribunal de 1.ª instância que, tendo o arguido uma condenação por condução sem carta, tal circunstância tem pouco pendor agravativo. Todavia, o arguido

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pretende ir mais longe, pois contesta que não se tenha dado como provado o bom comportamento anterior. Tal matéria, porém, como já foi assinalado, diz respeito à matéria de facto, ou seja, à interpretação e valoração da prova produzida, o que arreda tal questão dos poderes cognitivos deste STJ (Quantas vezes será necessário afirmá-lo?). Por conseguinte, não se provou o bom comportamento anterior do arguido. Quanto à singularidade da pessoa em concreto e, em particular do relacionamento entre o arguido e a assistente, já vimos que toda a factualidade provada conflui no sentido de agravar a sua responsabilidade, tanto no domínio da ilicitude, como no da culpa e também do ponto de vista da prevenção (geral e especial). No que diz respeito ao facto de o fundamento avançado no capítulo da prevenção geral – “o crescendo de violência passional no nosso país que os media vêm noticiando” – constituir «uma violação crassa de quanto estabelece, desde logo, o art. 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», não vemos como tal possa suceder. Se o recorrente se quer referir ao facto de os juízes deverem ser independentes e não julgarem de acordo com a comunicação social, estamos inteiramente de acordo, mas, com tal afirmação, o tribunal não quis significar essa imbricação da justiça com os media, mas tão-só referir um facto objecto de notícia – o crescendo de violência passional – e, através disso, aferir a relevância desse factor na prática de certos crimes, o que sem dúvida tem reflexos a nível das preocupações da comunidade social e, por aí, na percepção das necessidades comunitárias relativamente ao debelamento dessa criminalidade. Mas só nesse aspecto, pois quanto aos factores de que depende a determinação concreta da pena e, nomeadamente, o critério da prevenção geral, o juiz (neste caso, o tribunal) manteve a sua autonomia, desde logo expressa em critérios jurídicos que são independentes dos critérios de valoração da comunicação social. O facto de o arguido ter já um tempo considerável de prisão preventiva também não é factor, só por si, com relevância na determinação concreta da pena. De resto, o arguido, até se evadiu da prisão onde se encontrava e praticou, nesse acto, alguns dos crimes por que foi condenado. Releve-se o facto de, segundo o Relatório Social revelar «competências pessoais e profissionais» e dispor de uma rede de apoio familiar e comunitário capazes de funcionarem como elementos protectivos e facilitadores do seu ajustamento e reinserção social”. Tendo em conta todo este contexto, as penas fixadas para o crime de violação e para o crime de homicídio, não se mostram exageradas, sendo certo que o STJ só deve intervir correctivamente nesta matéria do quantum da pena, se esta se mostrar claramente desajustada em face das regras gerais da experiência comum, o que não é o caso. Improcede, pois, o recurso quanto às penas parcelares. 10.9. Cúmulo jurídico. Estabelecendo a lei que na determinação da pena única as balizas a atender são, por um lado, a mais elevada pena parcelar, que forma o limite mínimo da moldura penal do concurso, e a soma das penas concretamente fixadas para os vários crimes, que constitui o limite máximo, é dentro destas «balizas» que aquela terá de ser encontrada (art. 77.º, n.º 2 do CP).

No caso, o limite mínimo é constituído por 10 anos de prisão e o limite máximo, por 25 anos de prisão (por imposição legal). Na fixação da pena única, sendo embora de levar em conta os critérios de determinação da medida da pena que incidiram sobre cada um dos crimes singularmente tomados, há que atender sobretudo e de modo específico aos factos globalmente considerados, em conjunto com a personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1 do CP).

Ora, o recorrente cometeu, num determinado período, uma série de crimes, onde sobressaem a coacção grave, o sequestro, a ameaça, a violação de domicílio, detenção ilegal de arma de fogo, resistência e coacção sobre funcionário, violação e homicídio. A tónica dominante é-nos dada pela componente de violência contra as pessoas, atingindo bens como a liberdade de locomoção, a liberdade de determinação sexual, a vida.

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Dada a proximidade dos bens jurídicos em causa, todos eles de carácter eminentemente pessoal, e o número de crimes praticados, bem pode dizer-se que o recorrente manifestou uma personalidade agressiva e uma. certa tendência para um tipo de crimes violentos.

Bem certo que o recorrente tem uma certa juventude (precisamente 28 anos) e que a prática dos aludidos crimes se deveu a razões de carácter passional, mas em que manifestou tendências violentas, com a redução do outro a uma “coisa” e não hesitando em recorrer a todos os métodos para conseguir os seus fins egoístas. É um começo de vida pouco auspicioso, mas também não se poderá afirmar de ânimo leve que a actuação por ele manifestada, «numa avaliação da personalidade – unitária – do agente, (...) é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma «carreira») criminosa» e não a uma «pluriocasionalidade que não radica na personalidade do agente» (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, p. 291). Bem pode suceder que toda essa criminalidade se inscreva numa determinada fase de vida, que futuramente será ultrapassada, o que será indiciado pela vivência prisional, marcada pela «penosidade e ansiedade face às repercussões que toda a situação tem acarretado para si e para a família e face às implicações que a (…) condenação (…) introduzirá na sua vida», como se acentua no Relatório Social, que também põe em destaque, as suas competências pessoais e profissionais e a rede de apoio familiar e comunitária de que dispõe, «capazes de funcionarem como elementos protectivos e facilitadores do seu ajustamento e reinserção social.»

Deste modo, cremos que a pena única fixada peca por uma certa excessividade, sendo mais adequado fixar-lhe a pena conjunta em 14 anos de prisão, uma pena suficientemente expressiva da reprovação global que merece a sua conduta.

Assim, quanto a este aspecto, o recurso merece provimento.(...)”.

2.3 – Na sequência, o arguido interpôs recurso para este Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, delimitando o seu objecto nos seguintes termos:

“(...)<!--[if !supportLists]-->1)           <!--[endif]-->É inconstitucional interpretação do artigo 400º, nº 1,

alínea c), do artigo 434º, do 410º, nº 3, do artigo 123º, nºs 1 e 2, e dos artigos 363º e 364º do Código de Processo Penal no sentido de que as deficiências graves da gravação de praticamente todos os depoimentos fundamentais prestados na audiência de discussão e julgamento, comprovadas na própria transcrição constante dos autos, se tratam de mera irregularidade e não merecem apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, por resultarem violados a garantia do próprio duplo grau de jurisdição, o cerne dos direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido, e a equidade processual, ou seja, o consagrado nos artigos 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, tal como no artigo 6º nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda nos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->2)           <!--[endif]-->É ilegal e inconstitucional admitir-se validade ao julgamento quando este não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o arguido o direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida sobre a matéria de facto, por violação dos artigos 363º, 364º, 399º, 410º, nº 3, e do próprio artigo 428º do Código de Processo Penal, evidenciando-se a violação do artigo 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 3,

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alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->3)           <!--[endif]-->É ilegal e inconstitucional aplicação do artigo 283º, nº 3, alínea d), para que remete o artigo 315º, nº 4, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de limitar o arguido – como o foi – a cinco testemunhas abonatórias das 20 arroladas em contestação, tal como é inconstitucional interpretação do artigo 434º daquele mesmo diploma legal no sentido de não merecer aquele atropelo à Lei apreciação em sede de recurso, atento dele resultar preclusão indevida das garantias de defesa do arguido e persistir evidente violação do princípio da presunção de inocência, ou seja, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como da equidade e igualdade processuais previstas no artigo 6º, nºs 1, 2 e 3, alínea b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda de quanto resulta dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->4)           <!--[endif]-->É inconstitucional entendimento dos artigos 434º e 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, vertido no Acórdão recorrido, no sentido de vedar ao arguido o exercício efectivo do direito fundamental de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação sobre os vícios previstos naquele segundo preceito legal, quando esses mesmos vícios resultam do próprio acórdão do Tribunal da Relação na apreciação que faz sobre a prova e na sua decisão sobre a matéria de facto provada, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->5)           <!--[endif]-->Interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127º do Código de Processo Penal admitindo-se que o Julgador possa, de forma patente nos acórdãos condenatórios, proceder a uma valoração puramente subjectiva da prova para suprir insuficiência de elementos probatórios e possa, sem fundamento concreto e objectivo, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados são inconstitucionais, por violação do artigos 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tal como do artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->6)           <!--[endif]-->Fazer depender uma apreciação efectiva da suscitada violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da presunção de inocência de uma efectiva consideração dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, a que, por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça não procede por entender ser bastante o recurso em sede de matéria de facto para o Tribunal da Relação, ainda que persistam, como suscitado, aqueles vícios no acórdão desta, constitui violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->7)           <!--[endif]-->Dar-se como provado facto, em desfavor do arguido, com base em desconhecimento ou dúvidas das testemunhas constitui violação do princípio da presunção de inocência e, assim, do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->8)           <!--[endif]-->É inconstitucional interpretação do artigo 349º do Código Civil e do artigo 125º do Código de Processo Penal no sentido de se socorrer o Tribunal, na falta de qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de apenas uma presunção para condenar o arguido por determinado facto, por violação do artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da

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Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

2.4 – Por despacho, de 13 de Agosto de 2008, o relator, no tribunal a quo, considerou o recurso inadmissível, não o tendo admitido.            Essa decisão encontra-se fundamentada do seguinte modo:

“Não admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional. Na verdade, quanto às pretensas deficiências da gravação, o recorrente não indicou o

sentido com que, na decisão recorrida, foram interpretadas as normas do Código de Processo Penal cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade, por violadora de normas e princípios constitucionais, nomeadamente o direito de defesa. Mais precisamente: em que é que o considerar-se a deficiência da gravação como simples irregularidade, devendo ser arguida nos termos e prazo do art. 123.° do CPP (o que ele não fez), afronta o aludido direito de defesa.

Além disso, o recorrente invoca violação do duplo grau de jurisdição, quando esse duplo grau foi garantido, pelo que a sua alegação é manifestamente improcedente.

Relativamente à limitação de testemunhas, este Tribunal não conheceu da questão, por dizer respeito a questão interlocutória. Além disso, tendo sido suscitada e decidida durante a audiência de julgamento, o recorrente não reagiu, deixando transitar em julgado a respectiva decisão.

Com respeito aos vícios do art. 410.°, n.º 2, o recorrente também não explicitou em que sentido é que a interpretação feita colide com qualquer norma ou princípio constitucional, sendo certo que foi assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

Em relação ao art. 127.°, o recorrente também não explicitou em que sentido é que a decisão recorrida adoptou uma interpretação dessa norma que infringisse as normas ou princípios constitucionais. Para além de que o que ele impugna é a própria decisão, com a qual está em discordância.

O mesmo se verifica em relação à pretensa violação do princípio in dubio pro reo. Relativamente à pretensa violação do art. 349.° do Código Civil e 125.° do Código

de Processo Penal, o recorrente igualmente põe em cheque a decisão recorrida e não qualquer interpretação de norma substantiva ou adjectiva que tenha violado norma ou princípio constitucionais.

Por todas estas razões sumariamente expostas o recurso não é admissível”.

          2.5 – Discordando desse despacho, o arguido reclamou nos termos supra descritos, deixando consignada a argumentação que se transcreve:

“1º Os mesmos juízos de ilegalidade e inconstitucionalidade que justificaram a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão de 15 de Julho da 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça haviam sido suscitados quer no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra do Acórdão de 30 de Março de 2007 do 1º Juízo Criminal de Viseu, quer no recurso interposto do Acórdão de 28 de Novembro de 2007 do Tribunal da Relação de Coimbra para o Supremo Tribunal de Justiça.

2º O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça mereceu parcialmente procedência, com redução da pena única de prisão ao arguido de 16 para 14 anos de prisão, mas persistiram os mesmos juízos atentatórios da Constituição da República Portuguesa, tal como da própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tornando inevitável a sua submissão à apreciação do Tribunal Constitucional.

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3º Pelo despacho ora sob reclamação, proferido em 13 de Agosto de 2008, a 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional do seu Acórdão de 15 de Julho de 2008, referindo, sumariamente, relativamente a todos e cada um dos juízos cuja inconstitucionalidade tem vindo sempre a ser suscitada, que o arguido não indicou, no requerimento de interposição do recurso, em que medida as normas em causa colidem, na interpretação e aplicação feitas e mantidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, com preceitos e princípios constitucionais.

4º Os juízos são os que se seguem, como constantes do requerimento de interposição de recurso, que respeitou os requisitos previstos nos artigos 70º e 75º-A da lei do Tribunal Constitucional, não podendo o arguido concordar com os argumentos do Supremo Tribunal de Justiça para a rejeição do recurso, pelas razões que passa a expor.5º As violações de preceitos e princípios constitucionais afiguram-se-nos flagrantes, sendo logo o primeiro entendimento cuja inconstitucionalidade tem vindo a ser suscitada, mas sempre mantido, da maior gravidade, porque profundamente atentatório das garantias elementares de defesa e da equidade processual num Estado de Direito.

<!--[if !supportLists]-->9)       <!--[endif]-->É inconstitucional interpretação do artigo 400º, nº 1, alínea c), do artigo 434º, do 410º, nº 3, do artigo 123º, nºs 1 e 2, e dos artigos 363º e 364º do Código de Processo Penal no sentido de que as deficiências graves da gravação de praticamente todos os depoimentos fundamentais prestados na audiência de discussão e julgamento, comprovadas na própria transcrição constante dos autos, se tratam de mera irregularidade e não merecem apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, por resultarem violados a garantia do próprio duplo grau de jurisdição, o cerne dos direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido, e a equidade processual, ou seja, o consagrado nos artigos 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, tal como no artigo 6º nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda nos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->10)   <!--[endif]-->É ilegal e inconstitucional admitir-se validade ao julgamento quando este não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o arguido o direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida sobre a matéria de facto, por violação dos artigos 363º, 364º, 399º, 410º, nº 3, e do próprio artigo 428º do Código de Processo Penal, evidenciando-se a violação do artigo 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

6º Rejeitou o Supremo Tribunal de Justiça o recurso para o Tribunal Constitucional nesta parte com o fundamento de que:

“... quanto às pretensas deficiências da gravação, o recorrente não indicou o sentido com que, na decisão recorrida, foram interpretadas as normas do Código de Processo Penal cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade, por violadora de normas e princípios constitucionais, nomeadamente o direito de defesa.”

7º Ora, salvo o muito e devido respeito, o teor do requerimento de interposição de recurso, supra transcrito, é preciso, dando pleno cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional.

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8º Para mais, quer no recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra do Acórdão condenatório de 1ª Instância, proferido em 30 de Março de 2007 pelo 1º Juízo Criminal de Viseu, quer no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão de 28 de Novembro de 2007 do Tribunal da Relação de Coimbra foi suscitada a mesma questão, persistindo neste processo violação grave da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

9º As deficiências gravíssimas da gravação da audiência de discussão e julgamento neste caso, constatadas e comprovadas nos autos (cassetes e própria transcrição), persistem como questão gravíssima, que, embora tenha sido suscitada logo no recurso para o Tribunal da Relação, não foi considerada.

10º Estranha-se que se diga ainda, no próprio despacho sob reclamação, que, sendo INAUDÍVEIS TODAS AS PERGUNTAS de praticamente todos os depoimentos prestados em audiência (desde logo de todos os depoimentos das testemunhas de acusação, ofendida incluída), foi garantido ao arguido o efectivo duplo grau de jurisdição.

11º Não se trata de inaudição de uma ou duas perguntas, tão pouco de um ou dois depoimentos de menor (conclusão em si relativa) importância, mas sim, neste caso, com flagrante e comprovada maior gravidade, de TODOS os depoimentos das testemunhas de acusação.

12º O duplo grau de jurisdição e o direito fundamental de defesa não podem ser mera ilusão, sendo evidente, neste caso, com persistência da prova nos autos (cassetes e transcrição) que o arguido se viu ilegalmente – e com indiferença –coarctado gravemente no direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão sobre a matéria de facto.

13º Perguntar-se-á como foi possível ao Tribunal da Relação de Coimbra uma reapreciação da decisão sobre a matéria de facto face à ausência/inaudição da prova testemunhal produzida em julgamento.

14º Limitou-se o Tribunal da Relação a pronunciar-se sobre esta questão dizendo que se conseguem deduzir quais fossem as perguntas em falta, todas inaudíveis, mesmo que a respostas como “Sim”, “Não”, “Talvez”, “Não vi isso”.

15º Ou seja, entendeu o Tribunal da Relação que uma efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, para mais estando em causa acusações graves como a de homicídio qualificado na forma tentada, coacção grave e até violação e sequestro, se basta com presumir, adivinhar perguntas e, com estas, o exacto sentido e teor das respectivas respostas de todas as testemunhas.

16º Como compreenderão V. Ex.ªs, esta questão afigura-se-nos muito grave, atentatória do direito fundamental de defesa, com preclusão da própria garantia do duplo grau de jurisdição, persistindo nos autos uma transcrição em que as perguntas do Tribunal Colectivo, do Magistrado do Ministério Público, do mandatário do arguido e do mandatário da ofendida se resumem constantemente a meras reticências.17º No Acórdão de 15 de Julho de 2008, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a questão referindo que se trata de mera irregularidade e, com visto no próprio despacho sob reclamação, desconsiderando as deficiências gravíssimas da gravação do julgamento para

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efeitos de garantia do duplo grau de jurisdição e exercício efectivo do direito de defesa pelo arguido.18º Não podemos concordar com tal entendimento, como levado à consideração e à apreciação do Tribunal Constitucional no requerimento de interposição de recurso.

19º Entende o Supremo Tribunal de Justiça que a inaudição de algumas respostas e de todas as perguntas em praticamente todos os depoimentos prestados em audiência se trata de mera irregularidade e que, assim sendo, deveria ter sido suscitada pelo arguido no próprio acto ou, se a este não tivesse o arguido assistido, nos três dias úteis seguintes a contar daquele em que tivesse sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado, nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal.

20º Como poderia o arguido, que esteve presente e representado por mandatário nas várias sessões de julgamento, antecipar, adivinhar ou prever que a gravação não estava a ser ou ficaria correctamente feita?!

21º Se se entende que se trata de mera irregularidade a deficiência grave a este ponto da gravação, sendo o regime a aplicar o do artigo 123º do Código de Processo Penal, como podia o arguido, presente no acto, em boa verdade e coerência, suscitar gravação deficiente em curso?

22º Até nisto, e salvo o devido respeito, se evidencia a incoerência do entendimento em causa, justificando interposição de recurso para o Tribunal Constitucional pela afronta ao cerne do direito de defesa do arguido, ao lhe ser recusado o próprio duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

23º Acresce que do nº 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal resulta também poder o Tribunal ordenar oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade – se assim consideram a falta da devida documentação da audiência e da prova – no momento em que da mesma tomasse conhecimento, quando ela afectar o valor do acto praticado.

24º As deficiências graves da gravação, com falta de documentação de quase toda a prova, resultam dos autos e foram suscitadas no recurso interposto para o Tribunal da Relação, a que o Senhor Procurador do Tribunal Judicial de Viseu respondeu, mas sem que fosse reparada a dita mera irregularidade.

25º Nenhum valor tem o julgamento quando a prova produzida não foi gravada, não se ouve, vedando ao arguido o exercício efectivo do direito de defesa e ver efectivamente reapreciada a decisão sobre a matéria de facto.

26º Para melhor ilustrar o caso em apreço, importa referir que, para maior gravidade, como levado, com o mesmo pormenor, ao conhecimento e à apreciação do Tribunal da Relação, tal como do Supremo Tribunal de Justiça, as cópias das gravações magnetofónicas da audiência de discussão e julgamento, apesar de logo solicitadas, apenas foram facultadas pelo Tribunal Judicial de Viseu à actual mandatária do arguido em 10 de Abril de 2007, dez dias após a prolação do Acórdão condenatório de 30 de Março de 2006.

27º Ficou o arguido, objectivamente, com menos de 6 dias (e, isto, porque o termo do prazo peremptório ocorrido de 15 dias terminava a um sábado, 14 de Abril de 2007) para preparar o recurso e, assim, desde logo gravemente limitado no exercício do seu direito fundamental de defesa, com violação de quanto se encontra consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição

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da República Portuguesa e, com muita precisão, no artigo 6º, nº 3, alínea b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como direito mínimo do arguido com vista a assegurar a equitatividade processual (dispor de meios e tempo para preparação da sua defesa).

28º Por alguma razão, prevê já o actual Código de Processo Penal, expressamente, que as cópias da gravação do julgamento deverão ser cedidas pelo Tribunal de 1ª Instância num prazo máximo de 48 horas, sendo, para mais, hoje o prazo para recurso sobre a matéria de facto dada como provada de 30 dias, em vez dos 15 dias à data.

29º Ouvidas as cópias da gravação do julgamento, deparámos com graves deficiências, que, inevitavelmente, comprometiam a impugnação e possibilidade de reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, como levado, com pormenor na descrição e identificação dos depoimentos, à consideração do Tribunal da Relação.

30º Como referido e resulta provado nos autos, as deficiências existentes em algumas das cassetes e em todos os depoimentos fundamentais resultam em se ouvirem, por vezes, as respostas dos depoentes, mas nunca as perguntas do Tribunal, Ministério Público e mandatários, o que torna, obviamente, impossível perceber e contextualizar aquelas respostas, que muitas vezes, se limitam a um “sim”, “não”, “talvez”, “não vi”, ou seja, muitas vezes apenas confirmação ou negação de perguntas que, como bem se vê na própria transcrição, não se ouvem e conhecem minimamente.

31º O visionamento da transcrição tornou-se imperioso atendendo ao facto de o Senhor Procurador de 1ª Instância ter vindo invocar, em resposta ao recurso para o Tribunal da Relação, ser perfeitamente audível e estar totalmente gravada a prova em audiência, para surpresa de quem, nas cópias efectuadas forçosamente pelo próprio Tribunal de Viseu, nada ouvia, deparando, inclusive, com ausência total de gravação de depoimentos e sessões de julgamento, como pormenorizado e concretizado no recurso.

32º Ora, pese embora se confirmem afinal na transcrição as deficiências gravíssimas na gravação como descritas nos recursos, deparou o arguido, na pessoa na sua mandatária, ao visionar aquela transcrição efectuada pelo Tribunal, com a existência de 20 cassetes de gravação de julgamento, e não apenas as 15 cassetes que o Tribunal Judicial de Viseu facultara ao arguido, como sendo a totalidade da gravação solicitada.

33º Não podíamos deixar de referir tais factos perante V. Ex.ªs, pois bem ilustram a gravidade maior da forma como o arguido foi indevida e ilegalmente limitado no exercício do direito fundamental de recurso, no cerne do exercício do seu direito elementar de defesa, saindo comprometida, neste caso, com persistência nas decisões proferidas, as garantias e a equidade processual indispensáveis à própria realização de Justiça.

34º Já no recurso do arguido para o Tribunal da Relação referíamos que, atenta a deficiente gravação, não havia forma possível de se saber o que era dito pelo Tribunal e ao que exactamente estavam a responder as testemunhas e as próprias alegadas ofendidas, ficando assim na ausência e desconhecimento dos elementos de prova que sempre tinha e tem o arguido direito a que sejam reapreciados, em respeito pelas suas garantias fundamentais de defesa.

35º Estava e está em causa a garantia do duplo grau de jurisdição e o cerne dos direitos e garantias de defesa do arguido, como consagrados no artigo 32º, nº 1 e nº 5 da Constituição da

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República Portuguesa, tal como, visivelmente, no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

36º Como levado à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da Relação diminuiu a importância da própria gravação da prova em julgamento referindo, no seu Acórdão de 28 de Novembro de 2007, que:

“é na prova produzida oralmente em audiência que o Tribunal recorrido forma a sua convicção, constituindo o registo, apenas, um meio de controlo do julgamento efectuado com base na oralidade e imediação. (...) trata-se de cópias fornecidas ao recorrente, extraídas dos originais gravados durante a audiência, durante a qual não foram suscitadas quaisquer dúvidas sobre a gravação efectuada”

37º Como também se referiu perante o Supremo Tribunal de Justiça, no recurso interposto daquele Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, atentas aquelas conclusões sobre a questão em apreço, parecia tal Tribunal demitir-se a priori de uma verdadeira e efectiva reapreciação da prova e matéria de facto, reduzindo a gravação da prova em audiência a um mero registo e meio de controlo do julgamento, a que nada haverá, à partida, a apontar.

38º E, a entender-se que as comprovadas falhas graves deveriam ser suscitadas durante a audiência de julgamento, como poderia e conseguiria o arguido nessa altura antecipar que a gravação viria a constatar-se ter sido mal feita?!39º Foi também levada à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça a inconsistência e contradição da conclusão do Tribunal da Relação sobre esta questão, quando começa por referir que toda a prova está perfeitamente gravada e que não há defeito que inquine o recurso da matéria de facto, para logo depois dizer que:

“De qualquer forma o recorrente apenas refere que são imperceptíveis algumas “perguntas” formuladas. O que é diferente das “respostas” dadas a essas perguntas. Sendo certo que são as declarações e não as perguntas prestadas que constituem meios de prova. E embora algumas das perguntas formuladas não estejam efectivamente transcritas, elas resultam perfeitamente perceptíveis das correspondentes respostas dadas às perguntas.”

40º Ou seja, como se evidencia, que a garantia do duplo grau de jurisdição se basta com adivinhar perguntas e o exacto teor de respostas a perguntas que não se ouvem.

41º Ainda para melhor precisar o caso e a gravidade da questão em apreço, como referido, com pormenor, no recurso para a Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça, resultando da transcrição requerida ao 1º Juízo Criminal de Viseu e efectuada por entidade credenciada para o efeito, não se ouvem minimamente as perguntas em todo o interrogatório, tal como o exercício do contraditório, a: <!--[if !supportLists]-->1.                                                <!--[endif]-->BB (cassetes 3, 4 e 5)<!--[if !supportLists]-->2.                                                <!--[endif]-->HH (cassete 6)<!--[if !supportLists]-->3.                                                <!--[endif]-->II (cassete 7)<!--[if !supportLists]-->4.                                                <!--[endif]-->JJ (cassete 7)<!--[if !supportLists]-->5.                                                <!--[endif]-->LL (cassete 8)<!--[if !supportLists]-->6.                                                <!--[endif]-->MM (cassete 8)<!--[if !supportLists]-->7.                                                <!--[endif]-->NN (cassetes 8 e 9)<!--[if !supportLists]-->8.                                                <!--[endif]-->OO (cassete 9)<!--[if !supportLists]-->9.                                                <!--[endif]-->PP (cassete 9)

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<!--[if !supportLists]-->10.                                            <!--[endif]-->Agente da PSP QQ Aparício (cassete 10)

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testemunhas de Acusação

42º Não se trata de deficiência pequena e inócua, mas sim de deficiência grave da gravação de praticamente todos os depoimentos - todos os das ofendidas e testemunhas de acusação em que se baseou o 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu para condenar o arguido.

43º Como já dizíamos supra e foi referido perante o Supremo Tribunal de Justiça, é do senso e lógica comuns e resulta da gravação e respectiva transcrição nos autos que “sim”; “não”, “talvez”, “não sei se foi assim”, “não foi isso que vi”, “não me pareceu”, “baixou-se”, etc não constituem resposta ou declaração perceptível sem que se ouça e perceba a respectiva pergunta.44º Como resultava expressamente do recurso interposto nessa matéria perante o Tribunal da Relação de Coimbra, o recorrente fê-lo com as maiores limitações – invocadas ponto a ponto e desde o início – e porque o erro notório, a contradição e a insuficiência para a matéria de facto dada como assente decorria do próprio Acórdão de 1ª Instância, tal como agora do Acórdão do Tribunal da Relação, que seguiu na íntegra o que Viseu decidiu, na impossibilidade evidente de proceder a uma efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.

45º A deficiência grave da gravação para efeitos de reapreciação da matéria de facto em recurso determina a repetição inevitável do julgamento para garantia do direito fundamental de defesa, em prol da realização de Justiça num processo equitativo.

46º Está em causa a garantia do duplo grau de jurisdição e o cerne dos direitos e garantias de defesa do arguido, tal como a equidade processual, com violação dos artigos 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, tal como no artigo 6º nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda nos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

47º Suscitadas perante o Supremo Tribunal de Justiça tal questão de direito e a afronta que o entendimento vertido e seguido no próprio Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra consubstancia à Constituição da República Portuguesa, limitou-se o Tribunal ora reclamado a repetir que a deficiência grave da prova em julgamento comprovada nos autos se reconduz a uma mera irregularidade, a suscitar nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal, ou seja, pelo arguido presente em julgamento, antecipando este, assim, como pudesse, a constatação de uma deficiente gravação/documentação da audiência e da prova.

48º O teor do requerimento de interposição de recurso é preciso no entendimento cuja inconstitucionalidade é suscitada perante o Tribunal Constitucional e sempre tem vindo a ser suscitada nos autos, atento o que deles resulta e o teor das decisões proferidas a propósito.

49º No despacho sob reclamação, refere o Supremo Tribunal de Justiça a fim de rejeitar o recurso para o Tribunal Constitucional que o duplo grau de jurisdição foi garantido, o que, com visto, sempre foi posto, justamente e de forma consistente, em causa pelo arguido, seja perante o Tribunal da Relação, seja perante o Supremo Tribunal de Justiça.

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50º  É a garantia do duplo grau de jurisdição e a plenitude das garantias de defesa do arguido que estão, desde logo, em causa face ao entendimento de que deficiências graves na gravação da prova em julgamento não relevam para uma efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e o exercício efectivo do direito de recurso, sendo mera irregularidade, de importância menor.

<!--[if !supportLists]-->11)   <!--[endif]-->É ilegal e inconstitucional aplicação do artigo 283º, nº 3, alínea d), para que remete o artigo 315º, nº 4, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de limitar o arguido – como o foi - a cinco testemunhas abonatórias das 20 arroladas em contestação, tal como é inconstitucional interpretação do artigo 434º daquele mesmo diploma legal no sentido de não merecer aquele atropelo à Lei apreciação em sede de recurso, atento dele resultar preclusão indevida das garantias de defesa do arguido e persistir evidente violação do princípio da presunção de inocência, ou seja, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como da equidade e igualdade processuais previstas no artigo 6º, nºs 1, 2 e 3, alínea b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda de quanto resulta dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

51º Consta dos autos que das 20 testemunhas arroladas na contestação só cinco prestaram declarações, pese embora todas aquelas 20 tenham sido previamente indicadas aos factos.

52º Já o Tribunal da Relação dizia, no Acórdão de 28 de Novembro de 2007, que se tratou tão somente de dar cumprimento do disposto no artigo 315º, nº 4, do Código de Processo Penal, ou seja, convite ao arguido para indicar quais das 20 que arrolou seriam tão somente abonatórias.

53º Se assim foi, menos se compreende como o arguido tenha ficado sim, peremptoriamente, limitado a essas 5 testemunhas, ou seja, como a descoberta da verdade e boa decisão da causa ficaram, a final, limitadas a 5 testemunhas das 20 indicadas pelo arguido aos factos.

54º Remeteu o Tribunal da Relação o problema – constatado – para o mandatário constituído à data, dando a crer, como resulta também do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido, que, se em plena audiência de julgamento, foram violadas garantias e direitos constitucionais do arguido, tal como os direitos humanos, e o mandatário nada disse na altura, o problema ficaria como que sanado.

55º Mas o Tribunal rege-se, na função maior de julgar, por princípios fundamentais, como o da descoberta da verdade material, para boa e justa decisão da causa.

56º Será, assim, atentatório da própria Constituição da República Portuguesa considerar-se que, se os direitos humanos e fundamentais do arguido foram violados pelo Tribunal, o problema ficou sanado por o arguido não ter reagido à data, como se o interesse na descoberta da verdade e na realização de Justiça fosse apenas do arguido, que não minimamente do próprio Tribunal.

57º Determinar-se que o arguido desse cumprimento ao disposto no artigo 283º, nº 3, alínea d), indicando quais, das 20 testemunhas arroladas na contestação, iriam depor apenas em abono do arguido é coisa bem distinta do que sucedeu, reduzindo-se, ilegalmente, a defesa do arguido a 5 testemunhas abonatórias e não chamando a audiência as 15 restantes testemunhas

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arroladas na contestação e notificadas para comparecer, para esclarecimento dos factos e descoberta da verdade.

58º A questão, porque de direito, legalidade, constitucionalidade e respeito pela equidade processual, foi levada à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, mas, como consta do despacho sob reclamação, este não a apreciou.

59º Entende o Supremo Tribunal de Justiça que se trata de questão que não lhe cabe conhecer, mas é uma questão de direito e legalidade, sendo que a inconstitucionalidade do entendimento sobre a limitação da prova testemunhal de defesa a 5 testemunhas foi suscitada, persiste o mesmo entendimento nos autos, cabendo ora ao Tribunal Constitucional apreciar a sua pertinência.

60º Não concordamos, assim, com a rejeição do recurso também nesta parte pelo Tribunal recorrido porque foram cumpridos todos os requisitos previstos no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, explicitando o recorrente o entendimento legal cuja inconstitucionalidade foi suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça.

<!--[if !supportLists]-->12)   <!--[endif]-->É inconstitucional entendimento dos artigos 434º e 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, vertido no Acórdão recorrido, no sentido de vedar ao arguido o exercício efectivo do direito fundamental de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação sobre os vícios previstos naquele segundo preceito legal, quando esses mesmos vícios resultam do próprio acórdão do Tribunal da Relação na apreciação que faz sobre a prova e na sua decisão sobre a matéria de facto provada, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

61º Refere o Tribunal recorrido e ora reclamado que foi assegurado o duplo grau de jurisdição ao arguido.

62º Como supra exposto, evidencia-se, neste processo, que tal não sucedeu.

63º A prova produzida em julgamento não está devidamente documentada, tendo o arguido sido, ilegal e inconstitucionalmente, impedido de efectivamente impugnar a decisão sobre a matéria de facto e vê-la efectivamente reapreciada pelo próprio Tribunal da Relação de Coimbra.

64º No próprio recurso interposto para o Tribunal da Relação suscitou o arguido esse impedimento, pormenorizando, ponto por ponto, a ausência de documentação dos elementos de prova carreados para os autos em julgamento, para efeitos de uma efectiva impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e da sua condenação por via do expediente fundamental de recurso.

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65º Persiste, neste caso e processo concretos, com evidência e prova na própria gravação da prova produzida em julgamento e na respectiva transcrição, uma violação grosseira dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

66º O Tribunal da Relação deu simplesmente como incensurável a decisão sobre a matéria de facto e a condenação do arguido em 1ª instância, colando a esta a sua decisão e considerando irrelevante o pleno e efectivo conhecimento da prova produzida em julgamento.

67º Praticamente todos os depoimentos das testemunhas de acusação, ofendida incluída, são inaudíveis em todas as perguntas feitas e, assim, no exacto teor das respostas.

68º Afigura-se-nos inédito que, ainda assim, em situação tão grave, não se tenha determinado a repetição do julgamento para a devida documentação de toda a prova, com vista a assegurar ao arguido o seu legítimo direito de defesa e o exercício efectivo do direito de recurso.

69º O Tribunal da Relação não pôde conhecer verdadeiramente a prova produzida, mas isso foi considerado irrelevante e, ainda assim, proferido Acórdão, que, na impossibilidade de uma efectiva reapreciação do caso, se bastou com uma mera colagem ao decidido em 1ª instância.

70º Ora, assim sendo e comprovada que está nos autos a ausência da devida documentação da audiência de discussão e julgamento, com maior gravidade neste caso, não deixa de nos surpreender que se continue a insistir ter sido assegurado o duplo grau de jurisdição.

71º O arguido não teve direito a uma efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e da sua condenação por uma 2ª instância.

72º Concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, na página 31 do Acórdão recorrido, que:“...pretendendo interpor-se recurso de acórdão final do tribunal colectivo (ou de júri, na redacção actual) quanto à matéria de facto, seja por via da impugnação da apreciação e valorização da prova produzida, seja por meio da alegação de vícios do art. 410.º, nº 2, tal recurso há-de ser dirigido ao Tribunal da Relação, que é uma instância que aprecia matéria de facto e de direito, ao invés do STJ que aprecia explosivamente matéria de direito. A decisão da 2ª instância é definitiva quanto a tal matéria, não podendo reeditar-se no recurso para o STJ as razões que fundaram a alegação desses vícios para a Relação e que já foram apreciadas.”

73º Sucede que, neste caso, com evidência e prova nos próprios autos, a Relação demitiu-se de efectivamente reapreciar a decisão sobre a matéria de facto, fosse de que forma fosse, sendo demonstração maior disso a indiferença expressa para com o facto de a prova produzida em julgamento não estar devidamente documentada para seu conhecimento e para uma real e verdadeira reapreciação.

74º O arguido não teve no Tribunal da Relação uma 2ª instância para efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e da sua condenação.

75º E, ainda assim, invoca o Supremo Tribunal de Justiça que foi garantido o duplo grau de jurisdição e a decisão (ou falta de pronúncia e decisão efectivas) da Relação é definitiva.

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76º O Tribunal da Relação limitou-se a dar como assente a decisão de 1ª instância e, por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça invoca que o arguido pôde recorrer para o Tribunal da Relação, como se o direito a um recurso efectivo se bastasse com a ilusão dele.77º O arguido começou a suscitar a impossibilidade de exercer efectivamente direito de recurso e, com este, o seu legítimo direito de defesa no próprio recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Coimbra.

78º Parece continuar a ser indiferente, neste caso, que o arguido veja minimamente assegurado o direito fundamental de defesa.

79º Peca o processo por falta de equidade e garantias de defesa ao arguido, indispensáveis que são à própria realização de Justiça.

80º Defende e recomendava o Supremo Tribunal de Justiça, em notas de reflexão imediatamente anteriores à entrada em vigor das alterações últimas ao Código Penal e ao Código de Processo Penal<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->:

“Assunção do pressuposto de que o direito de recurso constitui uma garantia constitucional de defesa, e um corolário da garantia de acesso ao direito e aos tribunais mas deve subordinar-se a uma desígnio de celeridade associado à presunção de inocência e à descoberta da verdade material”, reforçando que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (Constituição, garantias de processo criminal, art. 32º, nº 1)”

81º Mais fez constar, avisadamente, o Supremo Tribunal de Justiça, nas mesmas notas de reflexão:

“constatação de que ainda estamos longe, na prática, do efectivo recurso da matéria de facto que a revisão de 1998 visou consagrar deslocando para as Relações, com amplos poderes de cognição nesta matéria, a competência para a apreciação dos recursos das decisões do tribunal colectivo”, que veio a ser reforçada “com a documentação alargada da prova e a apreciação das gravações pelas Relações”.“A experiência do STJ com múltiplas anulações de decisões das Relações por insuficiente decisão da questão de facto, com refúgio nos princípios da livre apreciação da prova da oralidade e da imediação, como obstáculos ao efectivo grau de jurisdição em matéria de facto, devem alertar-nos para esse problema real.”

82º No Acórdão recorrido, pág. 31, o Supremo Tribunal de Justiça invoca, aplicando-o ao caso concreto, que:

“Recente jurisprudência do STJ tem considerado que a norma do art. 410º do CPP deve ser interpretada restritivamente, não sendo aplicável aos recursos referidos na alínea d), do artigo 432º. Parece-nos acertada esta orientação, pois, se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410.º e houver razões para crer que a renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo, a relação deve desde logo proceder à sua renovação. Acresce que tendo havido documentação da prova, o tribunal da relação pode também decidir com base na prova documentada, o que o STJ não pode fazer por não ter poderes de decisão em matéria de facto.”

83º Tal entendimento tem como pressupostos a garantia de recurso efectivo para a Relação em sede de matéria de facto e, como visto e é evidente, a própria documentação da prova para uma efectiva e real decisão da Relação sobre aquela matéria.

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84º Daí que, no despacho sob reclamação, o Supremo Tribunal de Justiça tenha invocado, como fundamento para rejeitar o recurso para o Tribunal Constitucional, que “foi assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto”.

85º Mas tal não sucedeu e a prova disso persiste evidente nos autos, sendo que, ao mesmo tempo que alegadamente declara o Tribunal reclamado ter sido assegurado o duplo grau de jurisdição, não contesta a falta da devida documentação da audiência e da prova.

86º Neste caso concreto, a decisão de facto bastou-se com o entendimento e a apreciação dos elementos de prova em 1ª instância, sem direito a um efectivo segundo grau de jurisdição, sem direito a um efectivo recurso em sede de matéria de facto.

87º O Supremo Tribunal de Justiça não se pronuncia nos termos do artigo 410º, nº 2, apesar de, com evidência nos autos, não ter sido assegurado, por via do recurso para a Relação, o duplo grau de jurisdição em sede de decisão sobre a matéria de facto.

88º É esse o entendimento com que não concordamos, como explícito no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, supra transcrito, por dele resultar violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como dos artigos 6º, nº 1, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->13)   <!--[endif]-->Fazer depender uma apreciação efectiva da suscitada violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da presunção de inocência de uma efectiva consideração dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, a que, por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça não procede por entender ser bastante o recurso em sede de matéria de facto para o Tribunal da Relação, ainda que persistam, como suscitado, aqueles vícios no acórdão desta, constitui violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

89º Dá-se aqui como reproduzido tudo quanto foi levado à Vossa consideração sobre os pontos anteriores e a forma como foi comprovadamente recusado ao arguido, neste caso e processos concretos, o duplo grau de jurisdição em sede de apreciação e decisão sobre a matéria de facto.

90º Refere o Tribunal recorrido e ora reclamado, na página 40 do Acórdão de 15 de Julho de 2008, que:

“o recorrente, ao levantar a questão da violação do princípio in dubio pro reo, fá-lo mais uma vez como forma de encapotadamente atacar a apreciação e valoração da prova produzida feitas pelas instâncias.”

91º E remete o Supremo Tribunal de Justiça para a apreciação feita da prova em 1ª instância e a suposta reapreciação da mesma pela Relação – aliás, como refere o Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da Relação limitou-se efectivamente a “acolher” por inteiro a fundamentação e a decisão de 1ª instância.

92º O arguido não teve um processo equitativo e conforme às garantias de defesa consagradas na Constituição da República Portuguesa e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

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93º A audiência de julgamento e prova ali produzida, alvo de apreciação e decisão na e para a condenação em 1ª instância, não foi devidamente documentada, sendo as deficiências da gravação de maior relevo e gravidade neste caso.94º Suscitadas e arguidas essas deficiências graves, comprovadas nos autos, perante o Tribunal da Relação, este limita a sua pronúncia a uma inevitável colagem à decisão de 1ª instância, como se com esta se bastassem aquelas garantias de defesa do arguido em Portugal.

95º O Supremo Tribunal de Justiça invoca a apreciação da prova e a decisão sobre a matéria de facto feitas pelo Tribunal da Relação, ou seja, remete para aquilo que consubstancia sim ausência de pronúncia e de reapreciação efectiva da decisão sobre a matéria de facto e a condenação do arguido.

96º Persiste a agrava-se neste processo a violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

<!--[if !supportLists]-->14)   <!--[endif]-->Interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127º do Código de Processo Penal admitindo-se que o Julgador possa, de forma patente nos acórdãos condenatórios, proceder a uma valoração puramente subjectiva da prova para suprir insuficiência de elementos probatórios e possa, sem fundamento concreto e objectivo, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados são inconstitucionais, por violação do artigos 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda do artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

97º Salvo o devido respeito, não vemos por que o Tribunal recorrido rejeita, em primeira mão, o recurso para o Tribunal Constitucional também nesta parte, com o argumento de que não foi explicitado no requerimento de interposição de recurso, da forma transcrita, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que considera inconstitucional.

98º O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional distingue-se da posterior alegação, cingindo-se aos requisitos previstos nos artigos 70º e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional.

99º Como resulta do despacho sob reclamação, o Supremo Tribunal de Justiça não contesta que resulte do Acórdão recorrido o entendimento supra transcrito, suscitado quer no recurso para o Tribunal da Relação, quer no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e, ainda assim, mantido.

100º O Tribunal ora reclamado fundamenta a rejeição do recurso para o Tribunal Constitucional dizendo que o recorrente “não explicitou em que sentido é que a decisão recorrida adoptou uma interpretação dessa norma que infringisse as normas ou princípios constitucionais.”

101º Mas bastará atentar no teor do requerimento de interposição de recurso para se notar que o recorrente explicitou qual o exacto entendimento vertido no Acórdão recorrido que considera inconstitucional e submete à apreciação do Tribunal Constitucional.

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102º Refere o Tribunal recorrido e ora reclamado que o que o recorrente pretende é impugnar a própria decisão, ou seja, que o recorrente não concorda é com a decisão.

103º Ora, é evidente que se o recorrente considera determinado juízo e entendimento vertidos na decisão inconstitucionais, e os submete ao Tribunal Constitucional, não concorda com a decisão.

104º O recorrente não concorda com a decisão nesse entendimento nela vertido.

105º Nem podia, obviamente, concordar, se considera consubstanciar violação da Constituição da República Portuguesa.

106º E o entendimento em causa havia sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, que, no Acórdão recorrido, o considerou “arbitrário” e que “a invocação da violação do art. 32º, nº 1 da Constituição é meramente emblemática”.

107º Estranhamos que, num processo e caso como o ora em apreço, em que se considerou irrelevante a própria falta da devida documentação da audiência e da prova produzida, se possa dizer que a violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição é meramente emblemática.

108º O processo em causa é sim emblemático de violação grosseira do artigo 32, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, tal como, entre o mais, do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

109º O entendimento em causa é preciso, está explícito no requerimento de interposição de recurso e resulta do teor do Acórdão recorrido, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 15 de Julho de 2008.

110º Apreciando o teor daquele Acórdão, páginas 35 a 38, com reprodução, a que o Supremo Tribunal de Justiça anui, das conclusões da Relação de Coimbra, que, por sua vez, consistem numa anuência acrítica à decisão de 1ª instância, não deixa de se evidenciar uma valorização puramente subjectiva da prova para suprir insuficiência de elementos probatórios, ao mesmo tempo que, da mesma forma puramente subjectiva e até tendenciosa, porque sem fundamento concreto e objectivo, se contrariou ou desatendeu na decisão de facto elementos objectivos cientificamente atestados.

111º É o que se passou com a surpreendente e profundamente injusta prática do crime de violação de que o arguido vinha acrescidamente acusado pela ofendida, sua ex-namorada, e por que acabou mesmo condenado, à semelhança da prática do crime de sequestro enquanto viveram juntos, contra tudo quanto é compreensível e aceitável pelo homem médio minimamente atento.

112º O Tribunal recorrido cita, a propósito do princípio da livre apreciação da prova, na página 34 do Acórdão de 15 de Julho de 2008, o Acórdão do TC nº 1165/96, de 19 de Novembro:

“…este princípio não é absoluto, e não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo”

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113º Refere ainda, na página 33, com referência às palavras do Prof. Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, Vol. I, 1974, págs. 202 e ss), que:

«Perante tal princípio da livre apreciação da prova, “uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime, da pena) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão. As considerações feitas dão exigência de que as comprovações judiciais sejam sempre motiváveis.”»

114º Ora, de forma alguma isto sucede neste caso e processo.115º A condenação do arguido por crimes como o de violação e o de sequestro da sua ex-namorada enquanto namoraram não consegue impor-se como compreensível e justa à própria comunidade, pois assenta em considerações que atentam seriamente contra a lógica e o senso comuns, tecidas contra a prova produzida, com desconsideração tendenciosa de depoimentos e até de prova científica de relevo para a boa decisão da causa, sem fundamento concreto, objectivo e isento para tal.

116º Não é uma condenação justa, coerente, e qualquer pessoa que tome e toma contacto com a mesma e a sua fundamentação disso mesmo se apercebe.

117º O homem médio minimamente atento estranha, inevitavelmente, as conclusões judiciais perfeitamente inverosímeis, sem suporte probatório consistente, e que tenham sido desconsiderados, sem que se indique razão plausível, elementos de prova outros, até de cariz científico, ou considerados parcialmente apenas no que pudesse desfavorecer o arguido e coadunar-se com a sua condenação.

118º Mais grave se torna a forma como foi conduzido judicialmente o processo quando até se negou ao arguido o próprio exercício efectivo do direito de recurso, considerando-se irrelevante estar ou não a prova devidamente documentada com vista a uma reapreciação da decisão de facto e da condenação do arguido por 2ª instância.

119º O Supremo Tribunal de Justiça começa por se pronunciar sobre em quanto deve consistir e limitar-se o princípio e o poder de livre apreciação da prova, mas quando incide e se pronuncia, na sua decisão, sobre a forma como foi exercido aquele “poder do julgador” neste caso persiste o entendimento cuja inconstitucionalidade é levada à Vossa apreciação.

120º Mais se evidencia a adopção e persistência de entendimento atentatório da Constituição quando o Supremo Tribunal de Justiça, a título de fundamento da sua decisão e entendimento perfilhado neste caso, se refere ao que foi alegado e suscitado a propósito pelo recorrente e reproduz a decisão do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, anuindo à mesma.

121º É que a decisão do próprio Tribunal da Relação é elucidativa de que foram efectivamente desconsiderados e contrariados elementos de prova, no todo ou em parte, sem fundamento objectivo e motivação plausível para o efeito.

122º Da própria decisão do Tribunal da Relação, corroborando quanto e tudo o que foi decidido em 1ª instância, consta uma apreciação puramente subjectiva, indiferente a elementos de prova de cariz científico e depoimentos prestados por testemunhas arroladas na contestação do arguido.

123º O 1º Juízo do Tribunal Judicial de Viseu extravasou efectivamente o “poder” de livre apreciação da prova, evidenciando-se, neste caso, a discricionariedade, condenando o arguido sem prova, contra a prova e desconsiderando elementos de prova em quanto favorecessem a

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absolvição, desde logo no que respeita aos crimes de coacção grave, de violação e de sequestro da namorada que vivia com o arguido, convivendo com amigos e amigas deste, e a expensas do rapaz, mais novo que ela.

124º O Supremo Tribunal de Justiça socorre-se, como exemplo, da condenação por violação, que, reitere-se, é perfeitamente aberrante, injusta, sem suporte em qualquer prova científica, na lógica e senso comuns.

125º Como resulta do próprio Acórdão recorrido, na pronúncia sobre a questão em apreço, o rapaz foi condenado apenas com base nas declarações, em si perfeitamente inverosímeis, da ofendida BB, que, por conta deste processo, passou subitamente a vítima de violação por aquele que descreve em julgamento como apenas um parceiro com quem tinha relações íntimas.

126º No Acórdão recorrido para o Tribunal Constitucional, faz o Supremo Tribunal de Justiça, pronunciando-se sobre a aplicação feita do artigo 127º na apreciação da prova e condenação do arguido, ao que foi invocado, concretamente, em sede de conclusões, pelo recorrente:

<!--[if !supportLists]-->56)                        <!--[endif]-->Ao contrário do que referiu o Tribunal de Viseu – ironizando, inclusive, despropositadamente a questão pertinente do uso e efeitos dos anabolizantes – e o que refere agora o Tribunal da Relação, as oscilações da libido, ou seja, falta de desejo, a atrofia e a impotência sexual, para além de abundantemente publicitados a título de alerta, constam, com evidência, do Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem a fls. 736, tal como do subsequente Partial Agreement in the Social and Public Health Filed, do Conselho da Europa, a fls738 e ss, sendo tal prova documental técnica de apreciação vinculada.<!--[if !supportLists]-->57)                        <!--[endif]-->Para além desses efeitos a nível do desempenho sexual dos utilizadores de esteróides, constam também, como efeitos outros secundários principais, hipertensão arterial e aumento de agressividade (vide mesmos Relatório do Conselho Nacional de Andidopagem e Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls. 736 e ss), aos quais acresce, como é do senso comum, o stress próprio de quem se dedica intensivamente, como era o caso do arguido, a competições.<!--[if !supportLists]-->58)                        <!--[endif]-->O Julgador não pode impor decisão contrária a factos cientificamente atestados e publicitados, sem sequer invocar fundamento objectivo e lógico concreto para esse decisão, sendo, para mais, os factos em causa de relevo maior para a boa decisão da causa, revelando-se, na sua desconsideração, insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto.

127º Considera o Supremo Tribunal de Justiça que pretende o recorrente fazer desse Tribunal uma 3ª instância de apreciação de facto, mas o que verdadeiramente está em causa, foi suscitado – e continua a ser, porque justificado - é a forma como se deu aplicação ao artigo 127º do Código de Processo Penal na apreciação da prova, extravasando em muito este princípio e “poder” do julgador.128º O que estava e está em causa é uma questão de legalidade e constitucionalidade no âmbito de um processo criminal, que o Supremo Tribunal de Justiça acaba por desconsiderar, tratando-a como se se tratasse de pretensão de reapreciação da prova.

129º Mas o facto é que, ao fazê-lo, transcrevendo, para se pronunciar, o próprio teor da decisão da Relação, veio reforçar a desconformidade da forma como os Tribunais se

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socorreram do princípio da livre apreciação da prova neste processo em desconformidade com os artigos 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda do artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

130º Como referido no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça acaba por, expressamente, admitir entendimento e aplicação daquela norma legal em desconformidade com preceitos e princípios constitucionais.

131º Os efeitos dos esteróides anabolizantes foram debatidos em sede de julgamento, em particular, a impotência sexual e oscilações da libido, ou falta de desejo sexual, tendo o Senhor Procurador chegado a ironizar as dificuldades de desempenho sexual do arguido comparando-o ao Popeye em plena audiência de julgamento, enquanto interrogava uma das cinco testemunhas a que a defesa ficou indevidamente limitada, que confirmou a perda de potência sexual com a ingerência de esteróides para aumento de força física.

132º O Supremo Tribunal de Justiça reproduz o que foi entendido pela Relação a propósito da desconsideração infundada do Tribunal de 1ª instância de prova científica carreada para os autos e discutida em julgamento - como a impotência sexual e falta de desejo sexual como um dos principais efeitos secundários do uso de esteróides anabolizantes pelo arguido, que competia regularmente na modalidade de powerlifting.

133º O arguido vinha acusado pela sua ex-namorada e companheira de a violar quando tinham relações sexuais.

134º Como consta do Acórdão recorrido, página 37, a final, na transcrição feita do Acórdão do Tribunal da Relação, pronunciou-se este Tribunal sobre a desconsideração daqueles factos de conhecimento público e cientificamente provados nos autos, desde logo por via documental, da seguinte forma:

«Ora o Tribunal deu como provado, neste âmbito, que “o arguido tomava anabolizantes para obter melhores performances na actividade de powerlifting que praticava” – cfr. Ponto IX 1 dos factos provados.Não tinha que se pronunciar sobre os possíveis efeitos secundários, não só porque não foram alegados, mas também porque eram indiferentes para o conhecimento da responsabilidade criminal do arguido.Aliás, alegando que tomava os anabolizantes “para obter melhores performances” na actividade desportiva, não se vê como pudesse ter efeitos secundários para outros efeitos também de ordem física.»

135º Os efeitos secundários do uso de anabolizantes foram debatidos em audiência de julgamento, pautando-se a mesma pelo princípio da descoberta da verdade material, com vista à boa decisão da causa.

136º Aliás, contrariamente ao entendimento vertido no Acórdão ora proferido, referia o Supremo Tribunal Justiça, no Acórdão de 13/01/1999, Proc. nº 1126/98, que consubstancia mesmo vício de insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto:

“omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não

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provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão da causa”

137º O que foi entendido pelo próprio Tribunal da Relação, corroborando tudo quanto possa ter sido decidido pelo Tribunal Judicial de Viseu, é que está ao alcance do julgador contrariar directamente prova científica e desconsiderar, de mote e decisão próprios, elementos probatórios que interessem à defesa e, acima de tudo, à boa decisão da causa num processo equitativo.138º Ao mesmo tempo que se refere, de mote e decisão próprios, sem fundamento objectivo, que a impotência sexual e falta de desejo do arguido enquanto desportista de competição utilizador regular de esteróides anabolizantes nada interessavam para se aferir da responsabilidade criminal do arguido, refere-se, com igual transcrição no Acórdão recorrido para o Tribunal Constitucional, que:

«…o tribunal também deu como não provado que “BB tivesse humilhado o arguido a ponto de denegrir as suas capacidades sexuais perante amigos comuns” (…)Ora, para além da explicação dada pelo tribunal recorrido, para que se remete, por reproduzida supra, não é credível, minimamente, que BB, conhecedora da personalidade do arguido, se atrevesse a tal. Muito menos à frente dos amigos do recorrente.A própria BB relata dois episódios, ocorridos em Maio, logo cerca de dois meses após o início da relação, em que refere que o arguido a agrediu, factos que o arguido acabou por reconhecer, embora dando explicação diferente para tais comportamentos.Todo o conjunto da matéria de facto provada, desde logo a confessada pelo arguido revelam uma personalidade autoritária e dominadora que não se coaduna de modo algum com a atitude passiva do arguido, perante as alegadas afrontas que a BB ousava lançar-lhe, como quiseram fazer crer as testemunhas UU e VV.”

139º O Supremo Tribunal de Justiça vê nestes trechos da decisão da Relação objectividade e divergência devidamente fundamentada a juízos e factos científicos.

140º Transcrevemo-lo perante V. Ex.ª pois o que dele resulta é o contrário, mais justificando também os dois entendimentos legais infra, mantidos no Acórdão recorrido, cuja inconstitucionalidade pretendemos levar à Vossa consideração, sendo que sobre o segundo o Tribunal recorrido não se pronunciou.

141º São desconsiderados os efeitos a toma de esteróides anabolizantes, de conhecimento público e cientificamente demonstrados nos autos, porque simplesmente se entendeu não terem interesse para a decisão sobre a matéria de facto e a condenação do arguido, sem fundamento objectivo indicado para tal entendimento, como bem se retira do Acórdão recorrido e trechos supra transcritos.

142º Os Tribunais arrogam-se poder escolher de entre a prova produzida a que interesse e se melhor se coadune com a defesa da versão da ofendida e, assim, a condenação do arguido.

143º Ao mesmo tempo que se invoca, sem fundamento objectivo, o desinteresse da impotência e falta de desejo sexual sofridos pelo arguido - que vinha acusado e foi condenado por violação -, refere-se que as testemunhas arroladas na contestação a que foi permitido depor em audiência falaram em afrontas e comentários públicos que testemunharam por parte

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da ofendida BB ao arguido, de cariz sexual, gozando e queixando-se das dificuldades deste no respectivo desempenho sexual.

144º Não há – nem podia haver – qualquer prova de que o arguido violasse a ofendida quando tinha relações sexuais com ela, tendo os Tribunais se bastado com o depoimento de BB e desconsiderado, sem fundamento qualquer objectivo, prova científica de relevo e os depoimentos das testemunhas arroladas na contestação com o argumento de que eram amigos do arguido e, por isso, à partida, sem valor o que dissessem para esclarecimento dos factos.

145º E assim, sem prova e contra a prova, foi este rapaz condenado até por violação.

146º Pura arbitrariedade, subjectividade, em afronta ao que se pretende seja um processo equitativo, aos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, aos próprios propósitos de descoberta da verdade material e realização de Justiça.

147º Tal entendimento sobre a aplicação do artigo 127º do Código de Processo Penal persiste no Acórdão recorrido, é mantido e evidencia-se no caso concreto e condenação em apreço, pelo que, suscitado, o levamos à Vossa apreciação.

<!--[if !supportLists]-->15)        <!--[endif]-->Dar-se como provado facto, em desfavor do arguido, com base em desconhecimento ou dúvidas das testemunhas constitui violação do princípio da presunção de inocência e, assim, do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

148º Da mesma forma, contrariamente ao que é referido no despacho objecto da presente reclamação, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é explícito e preciso no entendimento legal e judicial cuja inconstitucionalidade é suscitada.

149º O Tribunal recorrido não contesta que tal entendimento esteja patente no Acórdão de 15 de Julho de 2008, antes fundamentando a rejeição do recurso para o Tribunal Constitucional na falta de explicitação desse entendimento no respectivo requerimento.

150º Mas, como visto, o recorrente precisa exactamente qual é o entendimento que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, porque atentatório de preceitos constitucionais, mencionando também expressamente de que preceitos se trata e estarão em causa.

151º Como já supra referíamos, o requerimento de interposição de recurso não se confunde, como vem alertando o Tribunal Constitucional, com a alegação posterior, após notificação para o efeito.

152º O requerimento apresentado respeita o disposto nos artigos 70º e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, não havendo motivo para a sua imediata rejeição pelo Tribunal recorrido.

<!--[if !supportLists]-->16)   <!--[endif]-->É inconstitucional interpretação do artigo 349º do Código Civil e do artigo 125º do Código de Processo Penal no sentido de se socorrer o Tribunal, na falta de qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de apenas uma presunção para condenar o arguido por determinado

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facto, por violação do artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

153º Nesta parte do requerimento de interposição de recurso, o Tribunal recorrido invoca, como fundamento para rejeição do recurso, a final do despacho de 13 de Agosto de 2008, que “o recorrente põe em cheque a decisão recorrida e não qualquer interpretação de norma substantiva ou adjectiva que tenha violado norma ou princípio constitucionais.”

154º Tal não resulta do teor do requerimento de interposição de recurso, com indicação precisa das normas legais e dos entendimento e aplicação das mesmas cuja inconstitucionalidade tem vindo a suscitar, por violação de preceitos constitucionais também devidamente mencionados.

155º No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foi invocada a forma como, para condenação do arguido pela prática de violação, se socorreu o Tribunal Judicial de Viseu de uma presunção., com completa anuência a este entendimento por parte do Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão de 28 de Novembro de 2007.

156º A decisão sobre a matéria de facto e condenação ao arguido consiste em:“4. Muitas vezes, no período em que o arguido conseguiu manter a BB consigo, na zona de Lisboa, pelos meios referidos, obrigou-a a manter com ele relações de cópula vaginal e anal, para além de a obrigar à prática de sexo oral, sendo certo que a BB se opunha a tais práticas, só as suportando por receio de consequências para a sua integridade física e mesma para a vida.5. Nas circunstâncias referidas, e designadamente em Novembro/Dezembro de 2004, o arguido manteve relações sexuais com a BB, na referida residência, sempre contra a vontade desta, relações sexuais essas às quais BB por vezes ofereceu resistência, sendo que dessas vezes o arguido a agarrava com firmeza e utilizava a força muscular, envolvendo-a com os braços para que ela não fugisse, introduzia o pénis erecto na vagina, ânus ou boca, friccionando até ejacular, suportando aquela BB idênticas práticas nas outras vezes por receio de consequências para a sua integridade física e mesmo para a vida,6. O arguido ao obrigar a BB a entrar e a manter-se no seu carro para a transportar para Lisboa, ao mantê-la fechada em casa e mesmo ao manter aquelas referidas relações sexuais, agia sempre contra a vontade daquela, sabendo que estava a privá-la indevidamente da sua liberdade física e de autodeterminação”

157º Não há, como não podia haver, prova alguma objectiva, concreta e isenta de que o arguido tenha alguma vez forçado a namorada a ter relações sexuais.

158º Não foi produzida prova alguma, nem mesmo por via do depoimento da ofendida BB em que a condenação se apoiou, que permitisse aquelas conclusões – e tal pormenorização das mesmas - pelos Tribunais.

159º A fundamentação em 1ª Instância da condenação por violação do arguido, não contestada minimamente pelo Tribunal da Relação é a seguinte, como levada à consideração do Supremo Tribunal de Justiça:

“Assim sendo, e à luz das regras da experiência, não poderá deixar de considerar-se absolutamente verosímil a versão da demandante trazida à

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audiência de julgamento sobre o relacionamento sexual havido entre a mesma e o arguido, forçado por este e contra a vontade daquela, já que não é razoável supor-se que alguém colocado na situação da demandante – levada à força e contra a sua vontade para determinados locais no contexto referido por ela e pelas mencionadas testemunhas ( a algumas das quais também a demandante deu a saber desse relacionamento sexual imposto pelo arguido e contra a sua vontade) – chegado a tais locais se disponibilize a relacionar-se sexualmente com a pessoa que lhe coarctou a liberdade para a colocar naquela situação, antes sendo  mais plausível que, como até aí, a pessoa subjugada continue a resistir a esse relacionamento sexual ou então a suportá-lo apenas e só por receio de mal maior, para a sua integridade física ou para a vida, como referiu a demandante.”

160º Evidencia-se que o Tribunal de Viseu e o Tribunal da Relação dão como assente que o arguido violava a sua namorada considerando que da prática dos crimes de coacção e de sequestro, que considerou provados, se presume que o arguido também praticou o crime de violação.

161º Como decorre da fundamentação dos Acórdãos de 1ª e 2ª instâncias, nem as amigas íntimas ou mãe da demandante se referiram a qualquer tipo de problemas sexuais no casal.

162º E o que as testemunhas de defesa relataram, com precisão e pormenor, foi a postura habitual e comentários depreciativos da demandante em público relativamente ao desempenho sexual do arguido, dizendo que não chegava para ela. 163º Mesmo que ouvida a demandante, sem quaisquer reservas no que queira imputar ao seu ex-namorado, como fez o Tribunal, não percebemos de onde retirou uma conclusão, a título de facto provado, como:

“…o arguido manteve relações sexuais com a BB, na referida residência, sempre contra a vontade desta, relações sexuais essas às quais BB por vezes ofereceu resistência, sendo que dessas vezes o arguido a agarrava com firmeza e utilizava a força muscular, envolvendo-a com os braços para que ela não fugisse, introduzia o pénis erecto na vagina, ânus ou boca, friccionando até ejacular, suportando aquela BB idênticas práticas nas outras vezes por receio de consequências para a sua integridade física e mesmo para a vida…”

164º Esta conclusão é pura ficção, sem qualquer apoio e fundamentação que não seja a já supra referida e transcrita condenação por presunção e, atento o pormenor, considerações fantasiosas do próprio Tribunal, avançando com factos e ideias que não foram sequer mencionados pela demandante.

165º Não pretendíamos que fosse reapreciada a prova pelo Supremo Tribunal de Justiça, mas sim que este Tribunal se pronunciasse sobre a condenação por via de mera presunção que resulta quer do teor e fundamentação do Acórdão de 1ª instância, quer do Acórdão do Tribunal da Relação.

166º Mas, visto o Acórdão de 15 de Julho de 2008 do Supremo Tribunal de Justiça, não há pronúncia efectiva sobre tal questão de direito, legalidade e afronta a preceitos constitucionais.

167º O Supremo Tribunal de Justiça considerou, nas páginas 17 a 22 do Acórdão recorrido, que podia o arguido recorrer – como fez – para o Supremo Tribunal de Justiça relativamente ao crime de violação.

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168º No entanto, no que ao mesmo respeita, apenas dele se socorreu na apreciação da forma como os Tribunais interpretação e aplicaram o artigo 127º do Código de Processo Penal desconsiderando e contrariando elementos probatórios de apreciação vinculada, como o Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem, a fls. 736 dos autos, e o Partial Agreement in the Social and Public Health Field, a fls. 738 e ss, que atestam – como deles expressamente resulta – a impotência sexual e oscilações na libido do arguido, com falta de desejo sexual, enquanto desportista de competição e utilizador regular de esteróides anabolizantes.

169º Não se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, em concreto, sobre a forma como os Tribunais se socorreram de presunção para colmatar falta de prova que permitisse condenar o arguido pela prática do crime de violação, atentando contra o princípio da presunção de inocência.

170º Presunção que resulta do próprio texto das decisões condenatórias proferidas nos autos, como supra transcrito.

171º Não há qualquer elemento probatório objectivo, concreto e consistente que permita, em respeito pelos princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo, concluir, muito menos presumir a prática do crime de violação e, com isto, se entender ter-se prosseguido o fim da descoberta material e realização de Justiça.

172º Não só não há prova, como o Tribunal de Viseu desatendeu e decidiu mesmo contra prova documental científica (que é, como não deixou de dizer o Tribunal da Relação, de apreciação vinculada): caso dos relatórios suscitados, solicitados e juntos aos autos, de que se destaca o Relatório do Conselho Nacional de Antidopagem, atestando aquilo que, de resto, é facto público e notório (“célebres”, como até refere o Supremo Tribunal de Justiça): a toma de anabolizantes tem como efeitos secundários a hipertensão arterial e perturbações da libido, ou seja,  impotência sexual e falta de desejo.

173º O resultado é uma condenação injusta, tendo os Tribunais extravasado em muito o “poder da livre apreciação da prova”, ao decidir contra ela, na falta dela, com base em puras presunções e opiniões próprias, perfeitamente insustentadas em termos probatórios.

174º E tal interpretação legal e actuação judicial constituem violação do artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

175º É este o entendimento explicitado no requerimento de interposição de recurso, que persiste nos autos, não tendo o próprio Supremo Tribunal de Justiça se pronunciado efectivamente sobre ele.

176º Não se compreende, pois, como rejeita o recurso para o Tribunal Constitucional imputando ao recorrente falta de indicação – que tem sido exaustiva desde o primeiro recurso para o Tribunal da Relação – do entendimento que, nesta parte, afronta a Constituição da República Portuguesa.

          2.6 – Já neste Tribunal, o representante do Ministério Público, pugnou pelo indeferimento da reclamação, com base nas seguintes razões:

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“A presente reclamação carece manifestamente de fundamento.Assim, quanto às questões interlocutórias suscitadas em sede de alegada deficiência

das gravações e da limitação das testemunhas, não tem o reclamante em consideração que o STJ, no acórdão recorrido não as apreciou sequer, por entender que a decisão da Relação, proferida sobre a primeira, era irrecorrível e que tinha transitado em julgado a decisão. Proferida em audiência de julgamento, sobre a segunda – não aplicando, como é óbvio, as interpretações expendidas, de forma, aliás, confusa, no requerimento de recurso.

Quanto às questões ligadas à apreciação da prova, são obviamente desprovidas de carácter normativo, não especificando ostensivamente o recorrente, a propósito delas, qualquer critério ou interpretação normativa que o Supremo tenha aplicado efectivamente à dirimição do caso”.

          2.7 – Na sequência, foi o reclamante notificado nos termos do disposto nos artigos 3.º, n.º 3 e 704.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi o disposto no artigo 69.º da LTC, para se pronunciar, querendo, no prazo de 10 dias, sobre os fundamentos de inadmissibilidade do recurso invocados naquele parecer, na parte em que os mesmos não sejam integralmente coincidentes com os constantes do despacho reclamado.

          2.8 – Em resposta, o reclamante veio sustentar que:          “(...)

I- Da questão das comprovadas deficiências gravíssimas da gravação da prova produzida em julgamento

1° Com atenção para com o teor preciso do Vosso despacho, devemos pronunciar-nos sobre o primeiro juízo que se nos afigura inconstitucional e para o qual pedimos, por gravidade maior na afronta a direitos humanos e processuais fundamentais, a Vossa consideração. 2º Trata-se do entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a questão de direito das falhas muito graves da gravação do julgamento e consequente violação da garantia do duplo grau de jurisdição – como persiste verdadeiramente provado nos autos, para todos os devidos e possíveis efeitos. 3º Importa precisar e reforçar os factos e decisões respeitantes a tal questão, de tão grave que a mesma é, sem perder de vista o objectivo concreto desta resposta, com referência ao Parecer do Exmo. representante do Ministério Público. 4º Tem o arguido vindo a pedir a consideração dos Tribunais Superiores – Tribunal da Relação de Coimbra e Supremo Tribunal de Justiça – para com a inexistência da devida gravação de praticamente toda a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, como comprovado nos autos (cassetes magnetofónicas e própria transcrição). 5° As deficiências da gravação são muito graves, manifestas neste caso, com consequente preclusão do efectivo duplo grau de jurisdição não tendo o arguido podido exercer o seu direito fundamental de defesa e contar no seu processo com uma verdadeira a efectiva reapreciação da decisão.6° É esta questão inultrapassável, que resulta dos próprios autos com toda a evidência: atentas as deficiências de gravidade maior da gravação da prova produzida em julgamento, o arguido não teve direito a um recurso efectivo da sua condenação em 1ª instância; não viu, de forma alguma, asseguradas todas as garantias de defesa como previsto na Constituição da República Portuguesa; não teve um processo equitativo, com violação flagrante da própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 7° As cópias da gravação do julgamento foram facultadas à actual mandatária do arguido pelo 1° Juízo do Tribunal Judicial de Viseu apenas em 10 de Abril de 2007, dez dias após ter sido proferido o Acórdão condenatório em 30 de Março de 2007, quando dispunha o arguido, à

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data, de quinze dias para interposição de recurso (tudo o que também resulta objectivamente dos autos). 8° Detectadas, obviamente que após a sua audição, as deficiências gravíssimas da gravação do julgamento, tal questão foi levada à apreciação do Tribunal da Relação de Coimbra nos cinco dias remanescentes, contados do dia em que foi facultada a própria gravação ao arguido, tendo o recurso sido apresentado já com pagamento de muita atentos o escasso período de tempo deixado ao arguido para a sua elaboração e interposição. 9° Para nossa inevitável e confessa surpresa, o Tribunal da Relação de Coimbra manifestou-se sobre a questão referindo que o facto – comprovado nos autos – de não se ouvirem minimamente quaisquer das perguntas feitas em Tribunal a praticamente todas as testemunhas não impedia que se pronunciassem sobre a decisão sobre a matéria de facto e a condenação do arguido pois o exercício fundamental de defesa do arguido bastava-se com uma adivinhação/presunção pelo, Tribunal de recurso daquelas perguntas. 10° E com esta adivinhação de perguntas a respostas que muitas vezes – como resulta e obviamente que continuará a resultar das cassetes e transcrição existentes nos autos – se resumiram a “Sim”, “Não”, “Não sei” e outras respostas absolutamente incompreensíveis sem que se ouvisse a pergunta bastou-se o Tribunal da Relação, simplesmente mantendo, como no seu entender irrepreensível, tudo o que foi entendido e decidido em 1ª Instância. 11° Referia o Tribunal da Relação, na página 35 do respectivo Acórdão, que “é na prova produzida oralmente em audiência que o Tribunal recorrido forma a sua convicção, constituindo o registo, apenas um meio de controlo do julgamento efectuado com base na oralidade e imediação.” 12º E mais referiu o Tribunal da Relação que, havendo como há deficiência gravíssima na gravação da prova em audiência, “trata-se de cópias fornecidas ao recorrente, extraídas dos originais gravados durante a audiência, durante a qual não foram suscitadas quaisquer dúvidas sobre a gravação efectuada” 13° Ora, é, desde logo, objectivamente impossível conhecer das deficiências graves de que poderá vir a pecar uma gravação enquanto a mesma está a ser feita. 14° Atento o entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra sobre questão tão grave e a consequente preclusão ao arguido de um efectivo recurso e duplo grau as jurisdição, foi a questão levada à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, cabendo dentro dos seus poderes de cognição, quer porque se trata de questão de direito, quer atento o disposto no nº 3 do artigo 410°, do Código de Processo Penal. 15° Foi pedido ao Supremo Tribunal de Justiça que, com referência ao entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra plasmado no respectivo Acórdão, fosse considerada e apreciada a forma corno foi seriamente coarctado este arguido no legítimo e por demais justificado recurso em sede de matéria de facto, recusando-se-lhe o próprio duplo grau de jurisdição. 16° O processo em causa é comum colectivo, pelo que era obrigatória, por Lei, sua gravação, que competia, naturalmente, ao Tribunal assegurar, dando cumprimento ao princípio geral constante do artigo 363° do Código de Processo Penal. 17° As falhas da gravação são por demais graves, não tendo sequer sido possível uma completa e devida transcrição, nos termos do nº 4 do artigo 412° do Código de Processo Penal – como resulta, objectiva e comprovadamente, dos autos. 18° Pelas falhas e irregularidades da gravação e a consequente ausência e desconhecimento de toda a prova produzida, tornou-se impossível para o arguido impugnar devidamente a decisão sobre a matéria de facto, tal como para o Tribunal da Relação efectivamente reapreciá-la, que não apenas depreender o que foi verdadeiramente dito e dar, a priori e de todo o modo, como sempre certa a decisão do Tribunal de 1ª Instância.

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19° O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a questão da deficiência grave da gravação do julgamento e consequente recusa ao arguido de um electivo recurso e duplo grau de Jurisdição dizendo que:

“….constitui uma mera irregularidade sujeita à disciplina do artigo 123º do CPP, e portanto devendo ser arguida pelo interessado no prazo aí estipulado”. (Página 22 e ss do Acórdão recorrido)

20º Considerou ainda o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 15 de Julho de 2008, que a questão das deficiências graves da gravação do julgamento e suscitada afronta aos direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido, como consagrados na Constituição da República Portuguesa e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não consubstanciam questão de Direito que merecesse a sua apreciação. 21° No despacho reclamado de 13 de Agosto de 2008, transcrito no Vosso douto despacho, referiu o Supremo Tribunal de Justiça, como seu fundamento para a rejeição do recurso para o Tribunal Constitucional nesta parte, que:

“...quanto às pretensas deficiências da gravação, o recorrente não indicou o sentido com que, na decisão recorrida, foram interpretadas as normas do Código de Processo Penal cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade, por violadora de normas e princ4oios constitucionais, nomeadamente o direito de defesa. Mais precisamente: em que é que o considerar-se, a deficiência da gravação corno simples irregularidade, devendo ser arguida nos termos do prazo do art. 123° do CPP (o que ele não fez,), afronta o aludido direito de defesa. Além disso, o recorrente invoca violação do duplo grau de jurisdição, quando esse grau foi garantido, pelo que a sua alegação é manifestamente improcedente”

22° O Supremo Tribunal de Justiça, aqui recorrido, considera, pois, que a deficiência da gravação do julgamento deveria ter sido suscitada no acto, no julgamento, enquanto este decorria e aquela era feita, pelo arguido que a estava presente, pois, no seu entender, é mera irregularidade, estando sujeita ao regime do artigo 123° do Código de Processo Penal. 23° Como já referido, não é, desde logo, objectivamente possível ao arguido, presente no julgamento, adivinhar, pressentir ou prever que a gravação em curso não estava a ser bem feita e vida a pecar por falhas tão graves. 24° Mais considerou o Supremo Tribunal de Justiça, ao mesmo tempo que reconduziu as falhas graves da gravação e a impossibilidade objectiva e inultrapassável dai decorrente de exercício efectivo, real, do direito fundamental de recurso a meras irregularidades, que o duplo grau de jurisdição foi assegurado. 25° A gravação e a transcrição constam dos autos, como estão, como foram feitas, evidenciando-se a impossibilidade flagrante do arguido ter tido direito a uma efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e a sua condenação, ou seja, que não foram, de forma alguma, assegurados, neste caso, ao arguido um recurso efectivo e um verdadeiro duplo grau de jurisdição – que não apenas a ilusão de tais direitos elementares 26° Não se trata de mera irregularidade e, salvo o muito e sempre devido respeito, nem sentido faz, pelo já exposto e quanto resulta do próprio artigo 123º do Código de Processo Penal, dizer se que o arguido teria que suscitar as falhas da gravação no próprio julgamento, quando, como é óbvio, ainda as necessariamente desconhecia e não podia sequer prever. 27° Trata-se de questão de Direito, de afronta a direitos e garantias constitucionais, justificando a repetição que se pediu do julgamento. 28° É, de resto, o que tem vindo a ser decidido: em casos porventura nem tão graves nas falhas/inaudição da gravação do julgamento, suscitada a questão em recurso, é por vezes o próprio Tribunal recorrido que, atentas aquelas falhas, imediatamente determina a repetição do julgamento ou dos depoimentos prejudicados, com vista a que sejam asseguradas ao arguido todas as garantias constitucionais de defesa, por via do expediente fundamental do recurso, e, assim, a indispensável equidade processual

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29° Com precisa atenção para com o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 15 de Julho de 2008, novamente mencionado no próprio despacho reclamado, e atenta a maior gravidade deste questão de direito, que contende seriamente com direitos humanos e processuais fundamentais, foi inevitavelmente interposto recurso para o Tribunal Constitucional. 30° Não podemos concordar com o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão recorrido, tendo levado à Vossa consideração e melhor decisão a inconstitucionalidade e? afronta grave aos direitos humanos do arguido de:

“interpretação do artigo 4OOº, nº 1, alínea c), do artigo 434°, do 410° nº 3, do artigo 123°, nºs 1 e 2, e dos artigos 363° e 364° do Código de Processo Penal no sentido de que as deficiências graves de gravação de praticamente todos os depoimentos fundamentais prestados na audiência de discussão e julgamento, comprovadas na própria transcrição constante dos autos, se tratam de mera irregularidade e não merecem apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, por resultarem violados a garantia ao próprio duplo grau de jurisdição, o cerne aos direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido, e a equidade processual, ou seja, o consagrado nos artigos 20°, nº 4, 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa tal como no artigo 6° nºs 1 e 3, alínea b), e 13° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda nos artigos 8° e 11°, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.”

e de

“Admitir-se validade ao julgamento quando este não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o arguido o direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida sobre a matéria de facto, por violação dos artigos 363º, 364º, 399º,410º, nº 3, e do próprio artigo 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6°, nºs 1 e 3, alínea b, e 13° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 80 e 11°, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem,”

31° Contrariamente ao que é referido pelo Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal Constitucional, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça consta entendimento sobre a questão em apreço e é esse preciso entendimento que levamos à apreciação, na sua inconstitucionalidade, do Tribunal Constitucional.

II— Da questão de direito da limitação indevida do rol de testemunhas

32° Também nesta parte devemos pronunciar-nos, atenta a motivação aduzida pelo Exmo. Senhor representante do Ministério Público. 33° Refere o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto que o Supremo Tribunal de Justiça não apreciou a questão da limitação indevida a cinco das vinte testemunhas arroladas pelo arguido em Contestação, pelo que não poderá ser o entendimento do Tribunal recorrido objecto de recurso para o Tribunal Constitucional. 34º No requerimento de recurso invocou o arguido a ilegalidade e a inconstitucionalidade de:

“Aplicação do artigo 283°, nº 3, alínea d), para que remete o artigo 315°, nº 4, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de limitar o arguido – como o foi – a cinco testemunhas abonatórias das 20 arroladas em contestação como é inconstitucional interpretação do artigo 434º daquele mesmo diploma legal no sentido de não merecer aquele atropelo à Lei apreciação em sede de recurso, atento dele resultar preclusão indevida das garantias de defesa do arguido e persistir evidente violação do princípio da presunção de inocência <!--[if !supportFootnotes]--> [2] <!--[endif]--

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>, ou seja, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como da equidade e igualdade processuais previstas no artigo 6º, nºs 1, 2 e 3, alínea b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda de quanto resulta dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração universal dos Direitos do Homem.”

35º Afigura-se ao arguido inconstitucional o próprio entendimento do Supremo Tribunal de Justiça de não merecer apreciação a questão em apreço e isso mesmo deixou de ser suscitado perante o Tribunal Constitucional no recurso em apreço.36º Reiteramos e damos aqui por reproduzida a motivação da reclamação nessa parte.37° Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que se trata de questão que não lhe cabe conhecer, mas é uma questão, de direito, legalidade, constitucionalidade. 38° Determinar-se que o arguido desse cumprimento ao disposto no artigo 263°, nº 3, alínea d), indicando quais, das vinte testemunhas arroladas na contestação, iriam depor apenas em abono do arguido é coisa bem distinta do que sucedeu, reduzindo-se, ilegalmente, a defesa do arguido a cinco testemunhas abonatórias e não chamando a audiência as quinze restantes testemunhas arroladas na contestação e notificadas para comparecer, para esclarecimento dos factos e descoberta da verdade. 39° O Tribunal rege-se, na função maior de julgar, por princípios fundamentais, como o da descoberta da verdade material, para boa e justa decisão da causa. 40° Será, assim, atentatório da própria Constituição da República Portuguesa considerar-se que, se os direitos humanos e fundamentais do arguido foram violados pelo Tribunal, o problema ficou sanado por o arguido não ter reagido à data, como se o interesse na descoberta da verdade e na realização de Justiça fosse apenas do arguido, que não minimamente do próprio Tribunal.

III – Das questões ligadas à apreciação da prova

41º Nesta parte, verificamos que a motivação do Exmo. Senhor representante do Ministério Público coincide, da mesma forma genérica, com os argumentos constantes do despacho reclamado, pelo que, atento o Vosso douto despacho de 29 de Outubro de 2008, nada temos a acrescentar – antes apenas REITERAR quanto Vos foi levado à consideração no recurso e na reclamação apresentada. 42° O requerimento de interposição de recurso afigura-se-nos preciso e conforme ao que dele é exigido à luz da Lei do Tribunal Constitucional nos juízos cuja inconstitucionalidade se submete à Vossa apreciação e à Vossa decisão, com explicitação na reclamação apresentada das razões de discordância da rejeição do recurso pelo Tribunal recorrido. 43° Apenas nos permitimos reforçar, em apelo aos habituais vigor e rigor do Tribunal Constitucional na adequada e justa conformação de decisões judiciais com valores e princípios maiores, tal como o respeito por direitos humanos, a gravidade deste processo, em que, de forma elucidativa, se tem vindo a entender ser até indiferente uma adequada gravação da prova com vista a que o arguido pudesse ter e ver assegurados o seu direito de defesa e uma efectiva reapreciação da sua condenação pelo Tribunal de recurso”.

Perante o relatado, importa agora julgar.

B – Fundamentação

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            3 – Como é consabido, o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, apenas se pode traduzir numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.             Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. José Manuel M. Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e actualizada, 2007, pp. 31 e segs), e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000).             Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas se afigura possível quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.             Por esse motivo, tem a jurisprudência deste Tribunal sublinhado que nada impede que, ao invés de se suscitar a inconstitucionalidade de um preceito legal, se questione apenas um seu segmento ou uma determinada dimensão normativa (cf., entre a abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 367/94 – publicado no DR II série, de 7 de Setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça (…) esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a constituição”), contudo, em tal hipótese, é necessário que a norma que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido, efectivamente, aplicada in casu com a interpretação que se entende inconstitucional (e que tenha constituído a ratio decidendi do juízo proferido) – cf., nesse sentido, entre outros, o Acórdão n.º 139/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º volume, 1995, o Acórdão n.º 197/97, publicado no Diário da República, IIª Série, n.º 299, de 29 de Dezembro de 1998 e, mais recentemente, o Acórdão n.º 214/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.

Concretizando, ainda, um outro aspecto do seu regime, cumpre acentuar que, sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).            Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação (directa) dos

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parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].            A este propósito escreve Carlos Lopes do Rego («O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, 3, p. 8) que «É, aliás, perceptível que, em numerosos casos – embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida – o que realmente se pretende controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso sub judicio […]; a adequação e correcção do juízo de valoração das provas e de fixação da matéria de facto provada na sentença (…) ou a estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a aplicação do direito […]».            Em suma, como se disse no Acórdão n.º 44/85, “saber se a norma era ou não aplicável ao caso, ou se foi ou não bem aplicada – isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional” (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, 1985, p. 408), aceitando o Tribunal como um dado a interpretação-aplicação realizada pelas instâncias.          Postas tais considerações, importa agora verificar do cumprimento dos mencionados pressupostos do recurso de constitucionalidade, tendo em conta o modo como os mesmos foram assumidos no despacho reclamado.          Vejamos, então.

          3.1 – No seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente começa por colocar à apreciação deste Tribunal a fiscalização da conformidade constitucional de duas “normas” referentes às alegadas deficiências da gravação da audiência de discussão e julgamento em 1.ª Instância, sustentando que [a)] “é inconstitucional [a] interpretação do artigo 400º, nº 1, alínea c), do artigo 434º, do 410º, nº 3, do artigo 123º, nºs 1 e 2, e dos artigos 363º e 364º do Código de Processo Penal no sentido de que as deficiências graves da gravação de praticamente todos os depoimentos fundamentais prestados na audiência de discussão e julgamento, comprovadas na própria transcrição constante dos autos, se tratam de mera irregularidade e não merecem apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, por resultarem violados a garantia do próprio duplo grau de jurisdição, o cerne dos direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido, e a equidade processual, ou seja, o consagrado nos artigos 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, tal como no artigo 6º nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda nos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”, e que [b)] “é ilegal e inconstitucional admitir-se validade ao julgamento quando este não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o arguido o direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida sobre a matéria de facto, por violação dos artigos 363º, 364º, 399º, 410º, nº 3, e do próprio artigo 428º do Código de Processo Penal, evidenciando-se a violação do artigo 20º, nº 4, 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 3, alínea b), e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

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          Confrontando o teor destas proposições, vertidas em juízos de inconstitucionalidade, com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, na parte em que se decidiu a matéria das alegadas deficiências das gravações, constata-se efectivamente que “o recorrente não indicou o sentido com que, na decisão recorrida, foram interpretadas as normas do Código de Processo Penal cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade (sublinhado aditado)”, dado que os critérios definidos pelo recorrente não espelham o sentido normativo acolhido in casu como ratio decidendi do julgado.          Em relação à matéria em causa, cumpre referir, antes de mais, que, apesar do Supremo Tribunal de Justiça ter começado por afirmar que “o arguido não suscitou a irregularidade da deficiência das gravações nos termos e no prazo do artigo 123.º do CPP, o que implicava a sanação da irregularidade, se a houvesse”, o certo é que, do mesmo passo, considerando que a decisão do Tribunal da Relação conhecera da questão e, partindo do pressuposto que dela conheceu legalmente, decidiu-se que o juízo formulado naquela instância – segundo o qual se concluiu que “não se verificou a existência de qualquer irregularidade de gravação que possa inquinar a reapreciação da prova” – não comportava recurso para o Supremo por irrecorribilidade fundada no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, tal como, de resto, se mostra vertido no segmento decisório do Acórdão.          Deste modo, estando em causa questões diferenciadas e com autónoma concretização normativa, torna-se evidente que a indicação do sentido com que as normas foram aplicadas apenas poderia fazer-se denunciando, por referência aos diferenciados suportes normativos, a concreta dimensão em que aqueles foram aplicados, ou seja, sindicando, na óptica do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, a inconstitucionalidade da irrecorribilidade de decisões interlocutórias que não ponham termo à causa, tendo em conta que a decisão relativamente a esta matéria acabou por ser fundada na “inadmissibilidade do recurso relativamente às questões interlocutórias”.          Ora, esta específica dimensão normativa não foi controvertida a se pelo recorrente que erigiu o recurso de constitucionalidade em torno de uma “norma” que não constituiu ratio decidendi do julgado.          Acresce ainda ao exposto que, na parte circunstancialmente em causa, o recurso vem suportado num objecto inidóneo porque referido à qualificação resultante da aplicação dos critérios legais e não, tout court, a esses específicos fundamentos normativos, como transparece do facto do reclamante controverter, apenas sob a forma de norma, a decisão na parte em que subsume as deficiências de gravação ao elenco das irregularidades.          De resto, esta conclusão não só abrange a norma supra referida em a), como também o juízo de “ilegal[idade] e inconstitucional[idade]” que se imputa à decisão projectada na “validade ao julgamento quando este não foi, em depoimentos fundamentais, correctamente gravado, impossibilitando o arguido o direito a impugnar e ver efectivamente reapreciada a decisão proferida sobre a matéria de facto”, sendo evidente que o problema aí equacionado não é de inconstitucionalidade normativa, mas de sindicância da decisão à qual o reclamante atribui o referido resultado.

          3.2 – Iguais conclusões valem, mutatis mutandis, para a consideração de que “é ilegal e inconstitucional aplicação do artigo 283º, nº 3, alínea d), para que remete o artigo 315º, nº 4, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de limitar o arguido – como o foi – a cinco testemunhas abonatórias das 20 arroladas em contestação, tal como é inconstitucional interpretação do artigo 434º daquele mesmo diploma legal no sentido de não merecer aquele atropelo à Lei apreciação em sede de recurso, atento dele resultar preclusão indevida das garantias de defesa do arguido e persistir evidente violação do princípio da presunção de inocência, ou seja, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (...)”.

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          Também aqui é patente que o Supremo Tribunal não aplicou os referidos critérios, por considerar irrecorrível a decisão da Relação sobre a matéria em causa, nos termos do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, retendo, do mesmo passo, que sendo uma questão suscitada e decidida durante a audiência de julgamento, o reclamante, não tendo reagido, deixou transitar em julgado a questão.          Por outro lado, também, neste caso, sempre, seria de concluir que, tal como o reclamante definiu o objecto do recurso, a questão sindicanda não tem natureza normativa, referindo-se outrossim à aplicação dos preceitos referidos que se tem por ilegal e inconstitucional, o que se revela particularmente evidente na parte em que se define o critério interpretativo extraído do artigo 434.º do Código de Processo Penal a partir do resultado subsuntivo-aplicativo, sem explicitação do critério normativo que o possibilitou.

3.3 – O reclamante considera também inconstitucional o “entendimento dos artigos 434º e 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, vertido no Acórdão recorrido, no sentido de vedar ao arguido o exercício efectivo do direito fundamental de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação sobre os vícios previstos naquele segundo preceito legal, quando esses mesmos vícios resultam do próprio acórdão do Tribunal da Relação na apreciação que faz sobre a prova e na sua decisão sobre a matéria de facto provada, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda dos artigos 8º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.          Neste caso, tal como no decidido supra (ponto 3.1.), é patente que o reclamante não definiu o objecto do recurso, por indicação do sentido com que, na decisão recorrida, foram interpretadas as normas do Código de Processo Penal cuja aplicação redundou em inconstitucionalidade.          De facto, compulsando o teor do Acórdão do Supremo, chega-se à conclusão de que o recurso interposto nesta parte não dizia respeito ao elenco dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “visa[ndo] tão-só a reanálise e reinterpretação da prova produzida, com o pretexto de que o tribunal a quo errou notoriamente na interpretação e valoração que fez dessa prova, ou incorreu em contradição insanável ou ainda que a prova produzida é insuficiente para a condenação (o que não corresponde, em nenhum caso, à alegação dos erros-vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP)”.          Daqui resulta que, na economia do decidido, os vícios alegados não se reconduziam a qualquer uma das situações previstas no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, razão pela qual se julgou manifestamente improcedente o recurso em matéria de facto sem que fosse feita aplicação da norma que o reclamante considera inconstitucional.          Por esse motivo, independentemente das considerações tecidas quanto à interpretação acolhida, relativamente ao conhecimento dos vícios previstos na referida norma, a ratio decidendi assumida pelo Supremo não se revela coincidente ou compatível com a definição normativa constante do objecto do recurso.

          3.4 – Considere-se, agora, a “interpretação e aplicação do princípio constante do artigo 127º do Código de Processo Penal admitindo-se que o Julgador possa, de forma patente, nos acórdãos condenatórios, proceder a uma valoração, puramente, subjectiva da prova para suprir insuficiência de elementos probatórios e possa, sem fundamento concreto e objectivo, contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente atestados são inconstitucionais, por violação do artigos 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tal como do artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.          Quanto a esta questão, a mera leitura do que se deixou consignado nos pontos 10.2 e 10.3 do aresto do Supremo bastaria para que se concluísse que, na realidade, a “norma” que o reclamante pretende ver apreciada sub species constitutionis acaba por reconduzir-se à mera crítica do julgado

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tendo em conta as conclusões que aí se assumiram e que constituem o contra-pólo negativo do “sentido” que o reclamante deixa transparecer do critério imputado ao artigo 127.º do Código de Processo Penal, não tendo o Tribunal admitido que o “o julgador possa, de forma patente, nos acórdãos condenatórios, proceder a uma valoração, puramente, subjectiva da prova, para suprir insuficiência de elementos probatórios e possa, sem fundamento concreto e objectivo, contrariar ou desatender, na sua decisão, factos objectivos, cientificamente, atestados”.          É certo que, na perspectiva do reclamante, a aplicação vertida no julgado conduzirá à proposição conclusiva com que definiu o objecto do recurso.          Todavia, atentos os poderes de cognição deste Tribunal, essa matéria, por exorbitar da esfera de controlo da constitucionalidade de normas, não é susceptível de ser conhecida nesta sede.          Assim sendo, entendendo-se que o reclamante não explicitou nem reflectiu no critério em causa a dimensão normativa, efectivamente, aplicada à dirimição do caso, improcede a reclamação nesta parte.

          3.5 – Como se disse, o reclamante considerou igualmente que “fazer depender uma apreciação efectiva da suscitada violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da presunção de inocência de uma efectiva consideração dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, a que, por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça não procede por entender ser bastante o recurso em sede de matéria de facto para o Tribunal da Relação, ainda que persistam, como suscitado, aqueles vícios no acórdão desta, constitui violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, e 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.          Tal como se decidiu no despacho reclamado, é bem visível que tal questão não tem qualquer conteúdo normativo, não se encontrando sequer formalmente ancorada em qualquer preceito de direito positivo, daí resultando que o reclamante apenas sindica a decisão judicial e não qualquer norma que lhe esteja subjacente.          Independentemente desta conclusão, não pode olvidar-se que o Supremo Tribunal de Justiça (cf. ponto 10.4 da decisão recorrida) perfilhou nesta sede um critério normativo que não coincide com o conteúdo apodado de inconstitucional.

          3.6 – Idêntica conclusão vale, sem necessidade de ulteriores explicitações, para a pretensão do reclamante relativamente ao controlo da actividade das instâncias na medida em que se considera dado “como provado facto, em desfavor do arguido, com base em desconhecimento ou dúvidas das testemunhas constitui violação do princípio da presunção de inocência e, assim, do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.                    3.7 – Resta, por fim, considerar a admissibilidade do objecto do recurso quanto à “interpretação do artigo 349º do Código Civil e do artigo 125º do Código de Processo Penal no sentido de se socorrer o Tribunal, na falta de qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de apenas uma presunção para condenar o arguido por determinado facto, por violação do artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nºs 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10º e 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.          Tal como considerou o Tribunal a quo relativamente às discordâncias manifestadas pelo reclamante relativamente à convicção alcançada pelas instâncias, é patente que as conclusões retiradas por aquele não se encontram acompanhadas pelas decisões jurisdicionais prolatadas nos autos nem pelos critérios normativos aí mobilizados.

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          Não tendo as instâncias sufragado qualquer critério normativo coincidente com a definição aportada pelo reclamante – ou seja, no sentido de se socorrer o Tribunal, na falta de qualquer elemento probatório objectivo e concreto nesse sentido, de apenas uma presunção para condenar o arguido por determinado facto –, não estão reunidos os requisitos para conhecer do objecto do recurso quanto a esta parte.          Importa, no entanto, esclarecer que a convicção de uma parte sobre o sentido com que uma norma foi aplicada não basta para que o recurso de constitucionalidade seja admitido.          Na verdade, em casos como o presente – onde existe uma discrepância acentuada entre o critério normativo consubstanciador da decisão e a norma que o recorrente considera ter sido aplicada, em sentido contrário ao ocorrido –, é legitimo concluir que se encontra posta em crise a própria decisão e não qualquer critério normativo que traduza o oposto daquela.          E, essa discordância para com o decidido, não pode ser manifestada por uma visão subjectiva da norma, mas apenas colocando ao Tribunal Constitucional o critério normativo efectivamente aplicado no juízo das instâncias, tal como é exigido, a mais da natureza do recurso de constitucionalidade, pela necessidade de se controverter a ratio decidendi normativa que justifica o juízo recorrido.          In casu, não tendo o Tribunal a quo perfilhado o critério que se considerou inconstitucional, falece esse pressuposto de admissibilidade do recurso, sendo, igualmente, claro que o sentido que o reclamante tem por inconstitucional acaba por traduzir-se, como se considerou no despacho reclamado, num juízo valorador da decisão, propriamente dita, que não contende com o suporte normativo da decisão que considerou provados os factos em que a condenação se estribou sem apelo a qualquer “presunção” ou perante “a falta de qualquer elemento probatório objectivo”.

C – Decisão

          4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.

Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs.Lisboa, 19/11/2008

Benjamim RodriguesJoaquim de Sousa RibeiroRui Manuel Moura Ramos

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<!--[endif]--> <!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> http://www.stj.pt/nsrepo/cont/EJuridicos/Recursos%20STJ.pdf<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]--> Sublinhado nosso

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