ações afirmativas para negros no brasil. o início e uma reparação histórica

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  • 8/8/2019 Aes afirmativas para negros no Brasil. O incio e uma reparao histrica.

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    Petrnio Domingues

    164 Maio /Jun /Jul /Ago 2005 No 29

    A simples negligncia de problemas culturais,

    tnicos e raciais numa sociedade nacional to heterog-

    nea indica que o impulso para a preservao da

    desigualdade mais poderoso que o impulso oposto, na

    direo da igualdade crescente. [...] Nenhuma democra-

    cia ser possvel se tivermos uma linguagem aberta e

    um comportamento fechado.

    Fernandes (1972, p. 161-162)

    Introduo

    A proposta deste artigo fazer um exame das

    aes afirmativas em benefcio da populao negra,

    tendo como eixo a polmica em torno da instituiode um programa de cotas raciais, principalmente nas

    universidades pblicas. Devido ao quadro de desigual-

    dade racial nas oportunidades educacionais do Bra-

    sil, argumenta-se, em um primeiro momento, que as

    cotas constituem um eficiente instrumento para ga-

    rantir maior representao dos negros. Em um segun-

    do momento, tem-se a inteno de escrutinar (e refu-

    tar) as principais crticas dos opositores s cotas

    raciais.

    Resultado da luta empreendida pelo movimento

    negro, h dcadas assiste-se a uma mudana de postu-

    ra, em vrios segmentos da sociedade brasileira, em

    relao ao tratamento conferido s questes da popu-

    lao negra no pas (Silvrio, 2002; Heringer, 2001). A

    segunda metade dos anos de 1990 foi marcada pela

    introduo do debate sobre a ao afirmativa no Brasil.

    J existe uma no desprezvel produo acadmica

    sobre a temtica (Walters, 1997; Skidmore, 1997;

    Espao Aberto

    Aes afirmativas para negros no Brasil:o incio de uma reparao histrica*

    Petrnio DominguesUniversidade Estadual do Oeste do Paran

    Universidade de So Paulo, Programa de Histria Social

    * Uma verso preliminar deste texto serviu de base para mi-

    nha comunicao ao VII Simpsio Interdisciplinar em Histria,

    na sesso Uma injustia na histria: a questo do negro, na Uni-

    versidade Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE), em 21 de

    novembro de 2003. Registra-se aqui um agradecimento s suges-

    tes do parecerista ad hoc da Revista Brasileira de Educao.

    Como este artigo aborda um tema polmico, com a defesa de po-

    sicionamento poltico, de acordo com as orientaes da Revista,

    preferi public-lo na seo Espao Aberto. Em funo disso, no

    haver espao suficiente para um exame mais acurado da produ-

    o acadmica sobre a temtica das aes afirmativas.

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    Aes afirmativas para negros no Brasil

    Revista Brasileira de Educao 165

    Guimares, 1999, 2002, 2003; Gomes, 2001; Heringer,

    2001; Bernadino, 2002; Moehlecke, 2002; Fry &

    Maggie, 2002; Silvrio, 2001, 2002; Munanga, 1996,

    2003; Durham, 2003; Telles, 2003), mas o balano dessa

    produo foge dos propsitos deste artigo.

    O Brasil o pas da segregao racial no decla-

    rada. Todos os indicadores sociais ilustram nmeros

    carregados com a cor do racismo. Segundo a pesqui-

    saMapa da populao negra no mercado de traba-

    lho no Brasil, realizada pelo Instituto Sindical Intera-

    mericano pela Igualdade Racial (INSPIR), em 1999,

    um homem negro na regio metropolitana de So

    Paulo recebe 50,6% do rendimento mdio mensal de

    um homem no-negro. A situao da mulher negra

    mais dramtica. Ela recebe 33,6% do rendimentomdio mensal de um homem no-negro. A taxa de

    desemprego na regio metropolitana de So Paulo

    de 16,1% para os no-negros e 22,7% para os negros.1

    Em pesquisa realizada para avaliar a qualidade

    de vida da populao negra, Maria Ins Barbosa, da

    Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So

    Paulo (USP), constatou que o preconceito racial in-

    fluencia diretamente na sade dessa populao. Em

    1995, a projeo da expectativa de vida do brasileiro,

    conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-tstica (IBGE), era de 64 anos para os homens e 70

    anos para as mulheres. No seu trabalho, Maria Ins

    mostra que, na cidade de So Paulo, os negros no

    chegam a atingir essa mdia. Segundo ela, 63% dos

    homens negros e 40% das mulheres negras morrem

    antes de completar 50 anos.2 A distribuio popula-

    cional no espao geogrfico da cidade de So Paulo

    segregada racialmente. Baseado nos dados do IBGE,

    Maria Ins inferiu que em Moema, um dos bairros

    conceituados de So Paulo, 7,9% dos moradores so

    negros; j o Jardim ngela, conhecido pela violn-

    cia, tem 53,3% de residentes negros.3

    A violncia tem cor. Uma das manchetes do jor-

    nal Folha de S.Paulo era reveladora: Negro morre a

    bala, e branco, do corao.4 Segundo a matria, os

    homicdios por arma de fogo so a principal causa de

    morte entre negros na cidade de So Paulo. J entre

    os brancos, a principal causa de morte so os infartos

    agudos do miocrdio. Dados da Ouvidoria das Pol-

    cias Civil e Militar do Estado de So Paulo mostram

    o perfil das vtimas da violncia policial no ano de

    1999: cor, 54,05% negros; antecedentes criminais,

    56,52% no tinham; sexo, 93,22% masculino; faixa

    etria, 44,12% de 18 a 25 anos.

    De acordo com o Instituto de Pesquisa Econ-

    mica Aplicada (IPEA), de 53 milhes de brasileiros

    que vivem na pobreza, 63% so negros. De 22 mi-lhes de brasileiros que vivem abaixo da linha de po-

    breza, 70% so negros (idem). Na rea da educao,

    a situao do negro no menos calamitosa. Do total

    dos universitrios, 97% so brancos, sobre 2% de

    negros e 1% de descendentes de orientais (idem). Se-

    gundo estudo baseado na Pesquisa Nacional por

    Amostra de Domiclios (PNAD), de 1999, a taxa de

    analfabetismo trs vezes maior entre negros. Os jo-

    vens brancos, aos 25 anos, tm, em mdia, 8,4 anos

    de estudos, quando negros da mesma idade tm amdia de 6,1 anos. No Itamaraty, existem apenas dez

    negros entre mil diplomatas. No Congresso Nacio-

    nal, no passam de 3%. Juzes, mdicos, oficiais, en-

    genheiros, professores universitrios negros somam

    um contingente nfimo, parecem mais personagens de

    fico no Brasil. Em cem anos de vida universitria,

    no chega a 1% o nmero de professores negros (Car-

    valho, 2001).

    Aes afirmativas e cotas para negros

    Como reverter esse quadro de injustia e desi-

    gualdades raciais? Do ponto de vista conjuntural, a

    sada que se vislumbra a defesa de um amplo pro-

    grama de aes afirmativas. Mas, afinal, o que so1Mapa da populao negra no mercado de trabalho (1999).

    So Paulo: INSPIR/DIEESE.

    2Jornal da USP, (1998). So Paulo, 5 a 11 out., p. 7.

    3Idem. 4Folha de S.Paulo, (1998). So Paulo, 17 maio, p. 3.1.

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    Petrnio Domingues

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    aes afirmativas? A expresso ao afirmativa foi

    criada pelo presidente dos Estados Unidos J. F.

    Kennedy, em 1963, significando um conjunto de

    polticas pblicas e privadas de carter compulsrio,

    facultativo ou voluntrio, concebidas com vistas ao

    combate da discriminao de raa, gnero etc., bem

    como para corrigir os efeitos presentes da discrimi-

    nao praticada no passado (Gomes, 2001). No en-

    tanto, mister contextualizar o seu surgimento. As

    aes afirmativas no foram dadas pela elite branca

    dos Estados Unidos; pelo contrrio, elas foram con-

    quistadas pelo movimento negro daquele pas, aps

    dcadas de lutas pelos direitos civis.

    Segundo Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 6-7),

    os objetivos das aes afirmativas so: induzir trans-formaes de ordem cultural, pedaggica e psicol-

    gica, visando a tirar do imaginrio coletivo a idia de

    supremacia racial versus subordinao racial e/ou de

    gnero; coibir a discriminao do presente; eliminar

    os efeitos persistentes (psicolgicos, culturais e com-

    portamentais) da discriminao do passado, que ten-

    dem a se perpetuar e que se revelam na discrimina-

    o estrutural; implantar a diversidade e ampliar a

    representatividade dos grupos minoritrios nos diver-

    sos setores; criar as chamadas personalidadesemblemticas, para servirem de exemplo s geraes

    mais jovens e mostrar a elas que podem investir em

    educao, porque teriam espao.

    Alguns indicadores apontam que as aes afir-

    mativas proporcionam benefcios insofismveis.

    Edward Telles (2003, p. 279) demonstra que, em ra-

    zo de tais aes, houve uma diminuio da desigual-

    dade racial nos Estados Unidos (entre 1960 e 1996)

    e, no Brasil, para o mesmo perodo, houve um aumento

    da distncia entre negros e brancos, por exemplo, no

    mercado de trabalho. Aps uma pesquisa acurada acer-

    ca de programas do mesmo gnero, os economistas

    H. Holzer e D. Newhart concluram:

    a) a ao afirmativa promove uma justia distributiva, ao

    aumentar o nvel de emprego entre mulheres e minorias nas

    organizaes que a utilizam; b) patres que utilizam a ao

    afirmativa recrutam e selecionam com mais cuidado, bus-

    cando empregados de modo mais amplo e avaliando-os se-

    gundo mais critrios; c) patres engajados na ao afirmati-

    va no perdem em nada no grau de execuo do trabalho

    pelos empregados. Se h alguma diferena, ela tende a ser

    que minorias e mulheres tm uma performance melhor, mes-

    mo em casos em que as credenciais do homem branco eram

    superiores, pois ao utilizar uma gama mais ampla de crit-

    rios na contratao, outros atributos foram descobertos.5

    Entre as polticas de aes afirmativas que vm

    sendo experimentadas no Brasil, a mais polmica o

    programa de cotas para negros. Na verdade, as cotas

    constituem mecanismos extremos de ao afirmativa:

    a reserva de um percentual determinado de vagas para

    um grupo especfico da populao (negros, mulheres,gays, entre outros), principalmente no acesso univer-

    sidade, ao mercado de trabalho e representao pol-

    tica.6 O Brasil j dispe de diversas leis fundadas no

    princpio das aes afirmativas. Tais leis reconhecem

    o direito diferena de tratamento legal para grupos

    que sofreram (e sofrem) discriminao negativa, sen-

    do desfavorecidos na sociedade brasileira. As leis

    listadas abaixo so apenas alguns exemplos:

    O art. 67 das Disposies Transitrias da Cons-tituio Federal de 1988 estabelece que: A

    Unio concluir a demarcao das terras ind-

    genas no prazo de cinco anos a partir da pro-

    mulgao da Constituio.

    A lei n 8.112/90 prescreve, no art. 5o, 2o,

    cotas de at 20% para os portadores de defi-

    cincias no servio pblico civil da Unio.

    5In: Assessing affirmative action. Journal of Economic

    Literature, n 38, 2000 (apudTelles, 2003, p. 280).

    6 Moehlecke (2002, p. 199) menciona que nos EUA, alm

    do sistema de reserva de vagas (cotas), existem outros formatos

    para a ao afirmativa. Existem ainda as taxas e metas, que se-

    riam basicamente um parmetro estabelecido para a mensurao

    de progressos obtidos em relao aos objetivos propostos, e os

    cronogramas, pensados enquanto etapas a serem observadas num

    planejamento a mdio prazo.

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    Petrnio Domingues

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    Na rea da educao, o Estado do Rio de Janeiro

    foi um dos primeiros a estabelecer uma lei de cotas

    raciais, como forma de democratizar o acesso ao en-

    sino superior. No vestibular de 2003, a Universidade

    do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade

    Estadual do Norte Fluminense (UENF) reservaram

    40% das vagas para alunos negros. Apesar de pol-

    mico, o sistema de cotas das universidades estaduais

    do Rio de Janeiro foi adotado por outras instituies

    pblicas de ensino superior, como a Universidade de

    Braslia (UnB).

    Argumentando a favor de cotas para negros

    H uma espcie de consenso nacional de que preciso adotar dispositivos concretos de combate ele-

    vada desigualdade racial no pas, e cotas um desses

    dispositivos. No entanto, os crticos questionam sua

    adequao e eficcia.9 Exclamam, prematuramente,

    que elas esto fadadas ao malogro. Mas como esta-

    riam fadadas ao malogro se o pas ainda no as expe-

    rimentou? Doravante, alguns dos principais argumen-

    tos utilizados contra o programa de cotas para negros

    na universidade sero apresentados e, na medida do

    possvel, refutados.Uma das crticas mais freqentes a de se estar

    plagiando os norte-americanos com sua poltica de

    aes afirmativas. Os Estados Unidos no detm o

    monoplio das aes afirmativas (ou compensatrias);

    programas semelhantes, diz Sabrina Moehlecke (2002,

    p. 199) ocorreram em vrios pases da Europa Oci-

    dental, na ndia, Malsia, Austrlia, Canad, Nigria,

    frica do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros.

    Um ataque comum desferido por um setor da

    esquerda marxista ao programa de cotas para negros

    que tal programa seria uma reivindicao reformis-

    ta, e no revolucionria. No h dvida de que a pro-

    posta de cotas tem uma natureza reformista, paliati-

    va, assim como outras reivindicaes do movimento

    social, como, por exemplo, a bandeira da reforma

    agrria, defendida pelo Movimento dos Trabalhado-

    res Rurais Sem-Terra (MST). A reforma agrria, como

    o prprio termo designa, reforma, e no revoluo

    agrria. Rigorosamente, ela significa levar o capita-

    lismo para o campo. Historicamente, essa proposta,

    que tem um carter democrtico, foi esposada pela

    burguesia na Frana, Inglaterra e Estados Unidos. Da

    a pergunta: por que, ento, se deve defender a refor-

    ma agrria, uma tarefa que estaria no bojo do projeto

    de revoluo burguesa? Porque, no atual contexto his-

    trico do Brasil, defender a reforma agrria tem um

    carter progressista, que mobiliza as pessoas e colocaem xeque a desigualdade social no pas.

    A mesma premissa valida para a luta pela im-

    plementao de cotas para negros. Trata-se de uma

    luta que, apesar de sua natureza reformista, tem um

    carter democratizante, que educa ou mobiliza politi-

    camente os negros e, sobretudo, coloca em xeque a

    secular opresso racial deste pas. Como escreveu o

    pensador marxista e lder revolucionrio, Leon

    Trotsky, no seu opsculo Programa de transio

    (1989), tem-se que saber combinar as reivindicaesespecficas e gerais; tem-se que abraar um progra-

    ma mnimo no qual, mediado por medidas transit-

    rias, se sinalize para um programa mximo que rom-

    pa as estruturas do sistema.

    Portanto, essa a concepo da proposta de co-

    tas. Ela no um fim em si mesma, mas um meio,

    uma medida especfica transitria que, no Brasil,

    progressista, pois, entre outros motivos, tem o poder

    de proporcionar visibilidade ao povo negro. Por exem-

    plo, no censo oficial realizado pela USP, no segundo

    semestre de 2001, constatou-se que apenas 1,3% dos

    38.930 dos alunos de graduao so negros.10 Se fos-

    se implantado o programa de cotas do Ncleo de Cons-

    cincia Negra da USP, esse percentual se elevaria para9 Entre os principais setores que se opem s aes afirmati-

    vas (ou aos programas de cotas para negros) no Brasil, encontram-

    se a imprensa e os intelectuais, como Roberto DaMatta (1997), Peter

    Fry & Yvonne Maggie (2002) e Eunice Durham (2003). 10Jornal da USP, (2003). So Paulo, 24 fev. a 02 mar. p. 7.

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    Aes afirmativas para negros no Brasil

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    25%. Em termos numricos, dos atuais 506, os estu-

    dantes negros subiriam, imediatamente, para 9.733.

    Esse eventual enegrecimento da USP representaria

    ou no um avano?

    Ser contra cotas para negros assim como se

    contrapor reforma agrria ter uma postura con-

    servadora. Do ponto de vista da conjuntura interna-

    cional, as aes afirmativas, atualmente, esto sendo

    questionadas pelo governo neoliberal de George W.

    Bush nos Estados Unidos. Nesse quadro, qual deve

    ser o papel de todo democrata: sair em defesa das

    conquistas histricas do movimento negro estaduni-

    dense. Ironicamente, opor-se s cotas hoje significa,

    no plano internacional, estar do lado da elite imperia-

    lista norte-americana. Da a necessidade de se apoiartaticamente as aes afirmativas. Tal apoio, no atual

    estgio da correlao de foras, uma poltica de re-

    sistncia ao neoliberalismo, e tambm significa unir-

    se luta anti-racista dos afro-americanos pela manu-

    teno de suas conquistas histricas, arrancadas com

    tanto sangue, suor e lgrima.

    Uma outra crtica freqente de que o ingresso

    de negros nas universidades pelo programa de cotas

    subverte o mrito. Em uma sociedade marcada pelas

    contradies de classe, gnero e raa, o mrito nopassa de um discurso ideolgico. Um exemplo: duas

    candidatas vo prestar a prova da Fundao Univer-

    sitria para o Vestibular (FUVEST, instituio orga-

    nizadora do vestibular da USP) para o curso de medi-

    cina. Ambas chegam segunda fase, mas apenas uma

    aprovada. Uma negra. Moradora da sinistra peri-

    feria da zona leste paulistana, com 13 anos j traba-

    lhava para ajudar a me. Ela oriunda de uma famlia

    desestruturada, que convive com a violncia. Para

    completar, estudou noite, em escola pblica. A ou-

    tra branca, mora no bairro elitizado do Morumbi.

    Estuda ingls, pratica esportes, tem alimentao sau-

    dvel, dispe de computador e todo tipo de benesse

    material. Estudou nas melhores escolas particulares e

    ainda fez cursinho pr-vestibular. Coincidentemente,

    foi a branca que ficou com a vaga do curso de medi-

    cina. Ambas eram concorrentes diretas, e pergunta-

    se: das duas, quem tem mais mrito? Em uma socie-

    dade capitalista e racista, as oportunidades na vida

    no so igualitrias. Portanto, mrito no um valor

    absoluto. evidente que a referida candidata negra

    vai precisar de algum dispositivo compensatrio para

    nivel-la branca.

    Para Telles, o ingresso via uma nica prova de

    admisso, o vestibular, no est baseado no mrito.

    Passar no vestibular parece estar mais relacionado com

    as condies do candidato para pagar cursinhos, ge-

    ralmente caros, de preparao para o vestibular e em

    dedicar um ano ou mais inteiramente aos estudos para

    as provas, do que habilidade em ter xito na faculda-

    de (Telles, 2003, p. 287). Alm disso, argumenta esse

    autor, as escolas pagas da classe mdia branca do

    maior chance para seus alunos passarem no vestibu-lar. A meritocracia, conforme descrita na origem do

    termo,

    [...] utpica, porque busca recompensar indivduos com

    base na inteligncia ou nas habilidades cognitivas; e isto

    no ocorre em lugar algum. A admisso universidade pa-

    rece, ento, ser muito mais uma testocracia do que uma

    meritocracia. A aprovao no vestibular , na melhor das

    hipteses, um teste de mrito muito questionvel. (idem,

    ibidem)

    Um estudo de trs dcadas de acompanhamento

    dos calouros de Harvard [EUA] mostrou que os es-

    tudantes com baixos resultados na prova do SAT (Tes-

    te Padro de Aptido), vindos da classe trabalhadora,

    tiveram maior sucesso que seus colegas de classe m-

    dia, principalmente por terem mais iniciativa (idem,

    ibidem).

    Outra objeo recorrente que o ingresso de ne-

    gros pelo sistema de cotas vai implicar o rebaixamento

    da qualidade de ensino. No basta ser negro para, au-

    tomaticamente, ser aprovado nesse novo mecanismo

    de seleo. Tem de ter qualificao. Em pesquisa reali-

    zada pelo Programa de Apoio ao Estudante da UERJ,

    constatou-se que os alunos que entraram pelo critrio

    de cotas tiveram, no primeiro semestre de estudos em

    2003, rendimento acadmico superior e taxa de evaso

    menor em relao aos alunos que obtiveram a vaga

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    Petrnio Domingues

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    sem ter direito ao benefcio. De acordo com a pesqui-

    sa, no campus principal da UERJ que concentra a

    maior parte dos cursos 47% dos estudantes que en-

    traram sem cotas foram aprovados em todas as disci-

    plinas do primeiro semestre. Entre os estudantes que

    entraram no vestibular restrito a alunos que se

    autodeclararam negros, a taxa foi maior: 49%. A com-

    parao inversa tambm favorvel aos cotistas. A

    percentagem de alunos reprovados em todas as disci-

    plinas por nota ou freqncia entre os no-cotistas foi

    de 14%. Entre os que ingressaram pelo programa de

    cotas para negros, a percentagem foi de 7%.11

    Alm de um rendimento acadmico superior, os

    cotistas abandonaram menos os cursos. Entre os no-

    cotistas, a taxa de evaso no primeiro semestre foi de9% dos estudantes. Essa percentagem foi de 5% entre

    os ingressantes pelas cotas para negro. O acompa-

    nhamento dessa primeira turma que entrou na UERJ

    por cotas mostra que a universidade no teve preju-

    zo acadmico com esses estudantes, afirmou o coor-

    denador do estudo e do Programa de Apoio ao Estu-

    dante, Cludio Carvalhares.12 Os dados mostram

    tambm que, ao menos para a primeira turma de

    cotistas, o resultado do vestibular no determinante

    no desempenho acadmico. No houve, assim, o im-pacto negativo, como era temido pelos crticos do pro-

    grama.

    Alm disso, no se pode esquecer que o vestibu-

    lar um mtodo duvidoso de aferio do conheci-

    mento. Em uma pesquisa realizada na USP, pelo N-

    cleo de Apoio aos Estudos de Graduao (NAEG),

    constatou-se que no h uma relao mecnica entre

    a nota do candidato no vestibular e seu rendimento

    no curso. O aluno que teve uma das melhores notas

    no vestibular no necessariamente ser o aluno com

    o maior grau de aproveitamento do curso no decorrer

    dos anos. A recproca tambm verdadeira. O candi-

    dato que porventura foi aprovado com uma nota bai-

    xa no vestibular pode ter um desempenho satisfatrio

    na realizao do curso (Domingues, 2002, p. 230).

    Tambm cabvel assinalar que os estudantes

    oriundos da frica e de diversos pases da Amrica

    Latina que ingressam, por exemplo, na USP e em cer-

    tas universidades pblicas federais, no so submeti-

    dos a nenhum tipo de avaliao por tais instituies.

    Eles vm por um sistema de convnio que se estabe-

    lece entre as embaixadas. Tais estudantes que, a ri-

    gor, tm uma formao educacional mais defasada

    que a dos brasileiros , sintomaticamente, no tm

    seus nveis de excelncia questionados ao trmino dos

    cursos. O potencial deles equiparado ao de qual-

    quer outro estudante no-negro brasileiro. Isso mos-

    tra que o discurso de excelncia da universidade s

    serve para balizar o ingresso, e no o produto do pro-cesso educacional.

    Um outro argumento muito utilizado contra a

    proposta de cotas baseia-se no pressuposto de que a

    soluo para as distores raciais na educao a

    melhoria do ensino fundamental e mdio da rede p-

    blica. Os defensores do programa de cotas para ne-

    gros no so contrrios melhoria da rede pblica de

    ensino. Uma proposta no conflitante com a outra.

    As cotas so uma alternativa emergencial, provis-

    ria, ao passo que a melhoria da rede pblica de ensinoexige um esforo de mdio a longo prazo, ciclo de

    uma gerao, no mnimo. At l, os negros vo conti-

    nuar sendo destitudos do sonho de cursar uma uni-

    versidade pblica e de qualidade?

    Se tentarem convencer um jovem negro, vesti-

    bulando, de que ele tem que esperar a melhoria do

    sistema educacional brasileiro... (daqui no se sabe

    quantos anos!) para poder realizar o sonho de ingres-

    sar na universidade pblica, a reao dele vai ser de

    indignao. Afinal, ele quer uma soluo para o pro-

    blema hoje, e no deixar para amanh ou perder de

    vista na linha imaginria do tempo. O Estado brasi-

    leiro tem uma dvida para com o povo negro, e ela

    tem que ser saldada j.

    Alm disso, a melhoria da rede de ensino exige

    polticas governamentais universais (ou universalistas),

    e tais polticas no erradicam a desigualdade racial no

    pas. Porm, no isso o que pensa a maior parte da

    11Folha de S.Paulo, (2003), So Paulo, 14 dez., p. C5.

    12Idem.

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    8/14

    Aes afirmativas para negros no Brasil

    Revista Brasileira de Educao 171

    direita e de um setor da esquerda. Ambas as correntes

    de pensamento entendem que o problema do negro

    ser resolvido, simplesmente, com a implementao

    de polticas pblicas universais, quais sejam, progra-

    mas governamentais que atacariam as causas sociais

    da desigualdade. Consoante pesquisa realizada pelo Ins-

    tituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) em

    2001, todas as polticas pblicas universais implanta-

    das pelo governo, desde 1929 at os dias atuais, no

    conseguiram eliminar a taxa de desigualdade racial no

    progresso educacional do brasileiro. Os brancos estu-

    dam em mdia 6,6 anos, e os negros, 4,4 anos. Essa

    distncia, de 2,2 anos, praticamente a mesma do in-

    cio do sculo XX. A concluso reveladora: apesar de

    ter acontecido a elevao do nvel de escolarizao dobrasileiro, de 1929 para os dias atuais, a diferena de

    anos de estudos dos negros frente aos brancos perma-

    nece inalterada. Segundo a mesma pesquisa, os negros

    precisariam, caso os brancos ficassem parados, de 32

    anos para atingir o nvel educacional dos estudantes

    brancos (Henriques, 2001).

    Isso significa que programas sociais ou polticas

    pblicas universais, por si ss, no tm eficcia para

    evitar as desvantagens que os negros levam em rela-

    o aos brancos no acesso s oportunidades educa-cionais. Para corrigir essa deficincia do sistema ra-

    cial so necessrias tambm polticas pblicas

    especficas (ou diferencialistas) em benefcio da po-

    pulao negra, ou seja, programas sociais que ado-

    tem um recorte racial na sua aplicao, e que so de-

    nominados aes afirmativas. Os problemas

    especficos dos grupos que historicamente sofreram

    (e sofrem) discriminao negativa (como negros, mu-

    lheres, gays, entre outros) se resolvem combinando

    medidas gerais e especficas. Portanto, a discrimina-

    o contra o negro deve ser enfrentada, igualmente,

    com aes anti-racistas. O machismo deve ser enfren-

    tado, tambm, com aes sexistas; o preconceito con-

    tra o gay, com aes anti-homofbicas.

    A combinao oposta tambm se impe. Como sa-

    lienta Antnio Srgio A. Guimares (1999, p. 172):

    [Polticas de aes afirmativas] devem estar ancoradas em

    polticas de universalizao e de melhoria do ensino pbli-

    co de primeiro e segundo graus, em polticas de universali-

    zao da assistncia mdica e odontolgica, em polticas

    sanitrias, enfim, numa ampliao da cidadania da popula-

    o pobre. No deve haver dvida, portanto, de que no se

    podem elaborar polticas de ao afirmativa sem que estas

    estejam respaldadas por polticas de ampliao dos direitos

    civis, tal como aconteceu nos Estados Unidos. O que est

    em questo, portanto, no uma alternativa simples, diria

    mesmo simplista, entre polticas de cunho universalista

    versus polticas de cunho particularista. O que est em jogo

    outra coisa: devem as populaes negras, no Brasil, satis-

    fazer-se em esperar uma revoluo do alto, ou devem

    elas reclamar, de imediato e pari passu, medidas mais ur-

    gentes, mais rpidas, ainda que limitadas, que facilitem seuingresso nas universidades pblicas e privadas [...]?

    O povo brasileiro no contrrio s polticas de

    aes afirmativas, tampouco na sua verso mais po-

    lmica, um programa de cotas. Quem as rejeita so as

    classes mdias e as elites, inclusive intelectuais (Gui-

    mares, 2002, p. 71), que assim tornam-se setores re-

    fratrios democratizao do acesso universidade

    pblica. Naquela que foi considerada a mais abran-

    gente pesquisa j realizada sobre o preconceito racialno Brasil, de 1995, o instituto de pesquisaDataFolha

    era incisivo em uma de suas perguntas:

    Diante da discriminao passada e presente contra os

    negros, tm pessoas que defendem a idia de que a nica

    maneira de garantir a igualdade racial reservar uma parte

    das vagas nas universidades e dos empregos nas empresas

    para a populao negra; voc concorda ou discorda com

    essa reserva de vagas de estudo e trabalho para os negros?

    O resultado foi surpreendente. Os mais pobres

    (69,5% dos brancos e 80,3% dos negros que recebem

    at dez salrios mnimos) e os menos escolarizados

    se manifestaram favorveis a cotas, posio que se

    inverteu nas camadas mais abastadas e cultas: ape-

    nas 30,5% dos brancos que recebem acima de dez

    salrios mnimos seriam favorveis a tais polticas

    (Turra & Ventura, 1995). A posio favorvel s co-

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    Petrnio Domingues

    172 Maio /Jun /Jul /Ago 2005 No 29

    tas para negros por parte da opinio pblica perma-

    nece. Em pesquisa nacional realizada pela Fundao

    Perseu Abramo, em 2003, a maioria dos entrevista-

    dos (59%) declarou aprovar as cotas raciais como sis-

    tema de ingresso na universidade.13

    Os detratores, outrossim, alegam que um even-

    tual programa de cotas vai acentuar o racismo no

    ambiente universitrio, no cotidiano dos estudantes.

    Ora, o que pode acontecer cair a mscara do racis-

    mo na sociedade brasileira, o que, por sinal, j est

    acontecendo. O racismo uma arma ideolgica de

    dominao que existe na sociedade brasileira sem a

    existncia das cotas para negros. Trata-se de um ra-

    cismo dissimulado, mascarado, velado, porm extre-

    mamente eficiente. Por exemplo, o progresso educa-cional do negro brasileiro inferior ao do negro

    sul-africano da poca do apartheid, e dos negros dos

    Estados Unidos da poca da segregao racial. Nes-

    ses pases, havia maior nmero de mdicos, engenhei-

    ros e advogados negros do que aqui.14

    Portanto, o racismo brasileira j perverso;

    porm, se o programa de cotas contribuir para que o

    conflito nas relaes raciais fique declarado, pode ser

    o primeiro passo para sua superao definitiva. Uma

    comparao singela vlida para entender esse pro-cesso. Um mdico s consegue prescrever um medi-

    camento correto se o paciente explicita os sintomas

    da doena. Caso o paciente dissimule seus problemas

    de sade, dificilmente o mdico tem condies de tra-

    ar um diagnstico preciso e, por conseguinte, pres-

    crever um medicamento eficaz para eliminar a doen-

    a. Assim, s possvel vislumbrar a superao

    definitiva para qualquer problema, inclusive o racial,

    quando ele, efetivamente, vier baila.

    Os refratrios tambm argumentam que no

    possvel implantar um programa de cotas porque no

    Brasil no d para definir quem negro, uma vez que

    todo brasileiro seria mestio. No entanto, como ex-

    plica Kabenguele Munanga,

    [...] confundir o fato biolgico da mestiagem brasileira (a

    miscigenao) e o fato transcultural dos povos envolvidos

    nessa miscigenao com o processo de identificao e de

    identidade cuja essncia fundamentalmente poltico-ide-

    olgica, cometer um erro epistemolgico notvel.

    (Munanga, 1999, p. 108)

    O discurso da mestiagem tal como propalado

    no Brasil perigoso. Em uma perspectiva biolgi-

    ca, o mestio existe em qualquer lugar do mundo; afi-

    nal, no existe raa pura. Mestio no uma catego-

    ria genuinamente brasileira. At na Alemanha ou nos

    Estados Unidos existe uma certa dosagem de mesti-

    agem, ou seja, de mistura racial. A alegao segun-do a qual no houve cruzamento entre as chamadas

    raas [negra e branca] nos Estados Unidos, diz

    Munanga (1999, p. 93), uma ignorncia, ou me-

    lhor, uma malcia dos defensores da miscigenao bra-

    sileira. E, como questiona Guimares,

    Classificamos ou no as pessoas por sua cor? Considera-

    mos ou no algumas pessoas brancas e outras pessoas

    negras? Discriminamos ou no discriminamos as pessoas

    em termos de cor? Tudo se passa, nessa verso romntica

    do anti-racismo, como se se quisesse negar uma realidade

    na qual, no ntimo, acredita-se: declara-se que as raas no

    existem, mas usa-se a classificao de negros e bran-

    cos dos Estados Unidos, como se esta fosse uma classifi-

    cao racial verdadeira, como se os brancos americanos no

    fossem, eles prprios, tambm mestios; como se eles fos-

    sem puros, cem por cento brancos. Apenas nossos bran-

    cos que seriam mestios [...]. (Guimares, 1999, p. 168-

    169)

    Carl Degler (1976) levantou a hiptese de que a

    construo ideolgica da figura do mulato (mestio,

    pardo, moreno ou termo que o valha), no Brasil, ser-

    viu para amortecer o choque racial. Como os negros

    constituam, desde o perodo colonial, a maioria da

    populao, e os brancos uma minoria, fabricou-se uma

    categoria intermediria, o mulato, que servia como

    vlvula de escape para a tenso racial. Essa sada te-

    13Dirio de So Paulo, (2003), So Paulo, 29 nov.

    14Cadernos pelas reparaes (1993), So Paulo: Ncleo de

    Conscincia Negra na USP.

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    Aes afirmativas para negros no Brasil

    Revista Brasileira de Educao 173

    ria sido providencial: um ser hbrido, que nunca se

    define se negro ou branco. O discurso ideolgico da

    mestiagem popularizou-se, de modo que a popula-

    o brasileira ao contrrio da norte-americana, por

    exemplo geralmente no se assume racialmente.

    Entende-se, pois, que o programa de cotas ataca

    essa esquizofrenia do nosso sistema racial, na me-

    dida em que obriga as pessoas a assumirem se so

    negras ou no-negras. E as supostas fraudes? No ves-

    tibular piloto da UERJ, aumentou minimamente o

    nmero de pessoas que se autodeclararam negras em

    relao ao ano anterior. E os casos de pessoas que so

    aparentemente claras e se inscreveram pelo sistema

    de cotas? Esses casos foram excees. Ainda assim,

    no parecem constituir fraudes, haja vista que os cri-trios para definir quem negro no so os marcado-

    res biolgicos ou simplesmente a cor de pele. A ge-

    ntica j provou que raa no existe. O critrio , pois,

    poltico e ideolgico. Negro quem se assume, quem

    se identifica enquanto tal; no limite, todo aquele

    que abraa a luta anti-racista.15

    Ao contrrio do que o ento candidato presi-

    dncia Luiz Incio Lula da Silva (Partido dos Traba-

    lhadores) declarou no ltimo debate antes das elei-

    es, no existe mtodo cientfico capaz de determinarquem negro no Brasil. Alis, em nenhum lugar do

    mundo. Nos Estados Unidos, na Alemanha ou em

    qualquer outro pas, o critrio para identificar quem

    negro, em ltima instncia, tambm arbitrrio, ou

    seja, so critrios polticos e ideolgicos, mas jamais

    biolgicos ou genticos.

    Por ltimo, vale lembrar que estabelecer cotas

    para negros constitucional. A Constituio brasi-

    leira, no artigo quinto que trata dos direitos funda-

    mentais , discorre sobre o sentido de igualdade em

    dois momentos: a igualdade formal perante a lei e a

    igualdade substantiva. No relatrio da Comisso

    Teotnio Vilela e do Ncleo de Estudos da Violn-

    cia, de 1993, essa questo analisada da seguinte

    maneira:

    Ao se falar em igualdade na constituio, est se di-

    zendo duas coisas ao mesmo tempo: por um lado, impede-

    se o tratamento desigual e por outro impe-se ao Estado

    uma ao positiva no sentido de criar condies de igual-

    dade, o que necessariamente impe um tratamento desi-

    gual dos indivduos. [...] Neste sentido no ilegal discri-

    minar positivamente com o objetivo de criar melhores con-

    dies para um determinado grupo, tradicionalmente des-

    privilegiado dentro da sociedade.16

    Porm, Moehlecke (2002, p. 213) adverte que,

    apesar da discusso normativa acerca da validade

    das aes afirmativas encontra[r] sustentao legal em

    algumas interpretaes, essa ainda , at o momen-

    to, uma rea em disputa.

    Consideraes finais

    As polticas que estabelecem cotas raciais devem

    respeitar o percentual de negros na composio po-pulacional dos diversos estados da nao. Elas tm

    sempre de ser proporcionais, correspondendo reali-

    dade local. Por exemplo, a cota para So Paulo deve

    ser menor do que para a Bahia, o estado com maior

    concentrao da populao negra do pas. Desse

    modo, o corpo discente da universidade vai represen-

    tar mais fielmente a composio racial do estado no

    qual estiver inserido.

    No Brasil, h uma tradio de pensar que os pro-

    gramas sociais beneficiam, de maneira igualitria,

    todas as pessoas, independente da cor da pele, mas

    as pesquisas mostram que isso um engodo. Polti-

    cas pblicas de cunho social, isoladamente, no ata-

    cam o racismo. Pelo contrrio, contribuem para re-15 Quando a UnB definiu os critrios para que as pessoas

    pudessem se candidatar ao sistema de cotas em seu vestibular de

    2004, j havia sido escrito este artigo. Mas escusado dizer que

    se trata de um equvoco instituir uma comisso com poderes para

    decidir, a partir de uma foto, quem (ou no) negro no Brasil.

    16Os direitos humanos no Brasil (1993). So Paulo: Ncleo

    de Estudos da Violncia (USP)/Comisso Teotnio Vilela, p. 13-14.

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    Petrnio Domingues

    174 Maio /Jun /Jul /Ago 2005 No 29

    produzir a separao existente entre negros e bran-

    cos na estrutura de classes. Os negros, diz Telles

    (2003, p. 306), so desproporcionalmente ignora-

    dos por tais polticas.

    Com a poltica de aes afirmativas, a primei-

    ra vez que o Estado brasileiro implementa polticas

    pblicas a favor da populao negra, pois, em toda a

    histria do Brasil, essa populao sempre foi alvo de

    polticas que a desfavoreciam. O que dizer de quase

    trezentos anos de escravido? Quem foram os benefi-

    ciados? O que dizer da poltica imigrantista, do final

    do sculo XIX e incio do sculo XX? Ser que os

    beneficiados de tal poltica foram os ex-escravos e

    seus descendentes? So necessrias aes efetivas para

    enfrentar o problema da excluso do negro no Brasil,mais do que boas intenes, retrica poltica e de-

    bates acadmicos.

    A implementao dos primeiros programas de

    aes afirmativas, entre os quais a poltica de cotas,

    decreta o fim do mito da democracia racial, ou seja,

    do mito da ausncia de preconceitos ou discrimina-

    es raciais no Brasil. A vigncia desses programas,

    por si s, a prova cabal de que existe tanto racismo

    quanto um problema especfico do negro no pas, pois,

    caso contrrio, no haveria a necessidade de medidasreparatrias para esse segmento populacional. As ba-

    ses ideolgicas de sustentao do mito da democra-

    cia racial, portanto, esto sendo implodidas.17

    Alm disso, os primeiros programas de cotas para

    negros em algumas universidades pblicas servem

    como estopim para desencadear, ainda que tardiamen-

    te, o debate, no seio da sociedade brasileira, de como

    o Estado deve reparar as injustias e atrocidades cau-

    sadas no passado populao negra e, principalmen-

    te, de como se deve eliminar o problema do racismo

    antinegro no presente.

    Em razo do exposto, necessrio salientar que

    este um momento singular na histria do pas, em

    que amplos setores da sociedade civil no s se

    conscientizam cada vez mais do problema do racis-

    mo, como se debruam nas possveis solues. Pela

    primeira vez, na histria do Brasil, acena-se romper

    com a barreira do silncio que paira sobre o racismo.Felizmente, as alternativas para a superao desse mal

    tendem a entrar na pauta da agenda nacional. Eviden-

    temente, as cotas no so a panacia para todos os

    problemas advindos da desigualdade racial, mas so

    o incio. Entre escolher um programa de cotas ou nada,

    seguramente um programa de cotas. Da a responsa-

    bilidade de todos que ainda so contrrios a essa me-

    dida compensatria. Opor-se s cotas e no apresen-

    tar nada de alternativo para enfrentar a desigualdade

    de oportunidades entre negros e brancos no campoeducacional fazer o jogo do opressor que, se de um

    lado, h 117 anos, decretou a abolio da escravatura

    no pas, de outro, empreendeu (e empreende) uma

    poltica de excluso e racismo.

    PETRNIO DOMINGUES, doutor pelo Programa de His-

    tria Social da Universidade de So Paulo (USP), professor da

    Universidade Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE). lti-

    mas publicaes: Aes afirmativas: a sada conjuntural para os

    17 Do ponto de vista poltico, acadmico e legislativo, o mito

    da democracia racial vem sendo questionado h dcadas. Nas pri-

    meiras dcadas do sculo XX, a imprensa negra paulista j de-

    nunciava a existncia de preconceito e discriminao raciais no

    Brasil. Na dcada de 1950, intelectuais como Florestan Fernandes,

    Roger Bastide, Octvio Ianni e Fernando Henrique Cardoso reve-

    laram por intermdio de pesquisas cientficas a existncia de

    um racismo antinegro no Brasil. Em 1951 foi aprovada a lei de no

    1.390, conhecida como Lei Afonso Arinos, a partir da qual a dis-

    criminao racial foi considerada crime de contraveno penal.

    Em 1988, um sculo aps a abolio da escravatura, foi promul-

    gada uma nova lei (conhecida como Lei CAO), que aperfeioou a

    anterior e passou a definir o racismo como crime inafianvel e

    imprescritvel. Mas, apesar da existncia de legislao antidiscri-

    minatria, de pesquisas cientficas e de denncias do Movimento

    Negro, o mito de que no havia problema racial no pas permane-

    ceu vivo, mormente no discurso do senso comum. Assim, suge-

    re-se que s na atual conjuntura que o mito, efetivamente, est

    estiolando.

  • 8/8/2019 Aes afirmativas para negros no Brasil. O incio e uma reparao histrica.

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    TURRA, Cleusa, VENTURA, Gustavo, (orgs.) (1995).Racismo

    cordial: a mais completa anlise sobre preconceito de cor no

    Brasil. So Paulo: tica.

    WALTERS, Ronald, (1997). Racismo e ao afirmativa. In:

    SOUZA, Jess (org.). Multiculturalismo e racismo: uma

  • 8/8/2019 Aes afirmativas para negros no Brasil. O incio e uma reparao histrica.

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    Petrnio Domingues

    176 Maio /Jun /Jul /Ago 2005 No 29

    comparao Brasil-Estados Unidos. Braslia: Paralelo 15,

    p. 105-123.

    Outras fontes consultadas

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    cincia Negra na USP.

    Dirio de So Paulo, (2003). So Paulo, 29 nov.

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    Jornal da USP, So Paulo, 5 a 11 out. 1998; 24 fev. a 2 mar 2003.

    Mapa da populao negra no mercado de trabalho, (1999). So

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    Os Direitos Humanos no Brasil, (1993). So Paulo: Ncleo de

    Estudos da Violncia/USP e Comisso Teotnio Vilela.

    Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH II), (2002).

    Braslia: Ministrio da Justia/Secretaria de Estado dos Di-

    reitos Humanos.

    III Conferncia Mundial contra o Racismo, Discriminao Ra-

    cial, Xenofobia e Intolerncia Correlata,(2001). Declarao

    de Durban e plano de ao. Braslia: Fundao Cultural

    Palmares-Ministrio da Cultura.

    Recebido em junho de 2004

    Aprovado em maro de 2005

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    Resumos/Abstracts

    Petrnio Domingues

    Aes afirmativas para negros no Brasil: o incio de uma reparao histrica

    Prope fazer um exame das aes afirmativas em benefcio da populao negra, tendo como eixo a polmica em torno da institui-

    o de um programa de cotas raciais, principalmente nas universidades pblicas. Conclui-se que tal programa significa um marco

    na histria do pas: por um lado, a primeira vez que o Estado brasileiro busca reparar a populao negra pelas injustias do pas-

    sado (e do presente); e, por outro, tambm a primeira vez que a opinio pblica nacional se sensibiliza tanto para o problema do

    racismo antinegro e discute suas possveis solues.Palavras-chave: negro; racismo; desigualdade; discriminao; relaes raciais

    Affirmative action for Negroes in Brazil: the beginning of a process of historical reparation

    The propose of this article is to examine affirmative actions which benefit the black population, taking as its argument the contro-

    versy about the institution of a programme of racial quotas, especially in public universities. It concludes that such a programme

    represents a landmark in the countrys history: on the one hand, because it is the first time that the Brazilian state seeks to make

    amends for past (and present) injustices to the black population and, on the other, because it also represents the first time that pu-

    blic national opinion has been so involved in the problem of anti-black racism and in discussing possible solutions.

    Key-words: Negro; racism; inequality; discrimination; race relations