ações afirmativas para negros no brasil. o início e uma reparação histórica
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Petrnio Domingues
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A simples negligncia de problemas culturais,
tnicos e raciais numa sociedade nacional to heterog-
nea indica que o impulso para a preservao da
desigualdade mais poderoso que o impulso oposto, na
direo da igualdade crescente. [...] Nenhuma democra-
cia ser possvel se tivermos uma linguagem aberta e
um comportamento fechado.
Fernandes (1972, p. 161-162)
Introduo
A proposta deste artigo fazer um exame das
aes afirmativas em benefcio da populao negra,
tendo como eixo a polmica em torno da instituiode um programa de cotas raciais, principalmente nas
universidades pblicas. Devido ao quadro de desigual-
dade racial nas oportunidades educacionais do Bra-
sil, argumenta-se, em um primeiro momento, que as
cotas constituem um eficiente instrumento para ga-
rantir maior representao dos negros. Em um segun-
do momento, tem-se a inteno de escrutinar (e refu-
tar) as principais crticas dos opositores s cotas
raciais.
Resultado da luta empreendida pelo movimento
negro, h dcadas assiste-se a uma mudana de postu-
ra, em vrios segmentos da sociedade brasileira, em
relao ao tratamento conferido s questes da popu-
lao negra no pas (Silvrio, 2002; Heringer, 2001). A
segunda metade dos anos de 1990 foi marcada pela
introduo do debate sobre a ao afirmativa no Brasil.
J existe uma no desprezvel produo acadmica
sobre a temtica (Walters, 1997; Skidmore, 1997;
Espao Aberto
Aes afirmativas para negros no Brasil:o incio de uma reparao histrica*
Petrnio DominguesUniversidade Estadual do Oeste do Paran
Universidade de So Paulo, Programa de Histria Social
* Uma verso preliminar deste texto serviu de base para mi-
nha comunicao ao VII Simpsio Interdisciplinar em Histria,
na sesso Uma injustia na histria: a questo do negro, na Uni-
versidade Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE), em 21 de
novembro de 2003. Registra-se aqui um agradecimento s suges-
tes do parecerista ad hoc da Revista Brasileira de Educao.
Como este artigo aborda um tema polmico, com a defesa de po-
sicionamento poltico, de acordo com as orientaes da Revista,
preferi public-lo na seo Espao Aberto. Em funo disso, no
haver espao suficiente para um exame mais acurado da produ-
o acadmica sobre a temtica das aes afirmativas.
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Guimares, 1999, 2002, 2003; Gomes, 2001; Heringer,
2001; Bernadino, 2002; Moehlecke, 2002; Fry &
Maggie, 2002; Silvrio, 2001, 2002; Munanga, 1996,
2003; Durham, 2003; Telles, 2003), mas o balano dessa
produo foge dos propsitos deste artigo.
O Brasil o pas da segregao racial no decla-
rada. Todos os indicadores sociais ilustram nmeros
carregados com a cor do racismo. Segundo a pesqui-
saMapa da populao negra no mercado de traba-
lho no Brasil, realizada pelo Instituto Sindical Intera-
mericano pela Igualdade Racial (INSPIR), em 1999,
um homem negro na regio metropolitana de So
Paulo recebe 50,6% do rendimento mdio mensal de
um homem no-negro. A situao da mulher negra
mais dramtica. Ela recebe 33,6% do rendimentomdio mensal de um homem no-negro. A taxa de
desemprego na regio metropolitana de So Paulo
de 16,1% para os no-negros e 22,7% para os negros.1
Em pesquisa realizada para avaliar a qualidade
de vida da populao negra, Maria Ins Barbosa, da
Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So
Paulo (USP), constatou que o preconceito racial in-
fluencia diretamente na sade dessa populao. Em
1995, a projeo da expectativa de vida do brasileiro,
conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-tstica (IBGE), era de 64 anos para os homens e 70
anos para as mulheres. No seu trabalho, Maria Ins
mostra que, na cidade de So Paulo, os negros no
chegam a atingir essa mdia. Segundo ela, 63% dos
homens negros e 40% das mulheres negras morrem
antes de completar 50 anos.2 A distribuio popula-
cional no espao geogrfico da cidade de So Paulo
segregada racialmente. Baseado nos dados do IBGE,
Maria Ins inferiu que em Moema, um dos bairros
conceituados de So Paulo, 7,9% dos moradores so
negros; j o Jardim ngela, conhecido pela violn-
cia, tem 53,3% de residentes negros.3
A violncia tem cor. Uma das manchetes do jor-
nal Folha de S.Paulo era reveladora: Negro morre a
bala, e branco, do corao.4 Segundo a matria, os
homicdios por arma de fogo so a principal causa de
morte entre negros na cidade de So Paulo. J entre
os brancos, a principal causa de morte so os infartos
agudos do miocrdio. Dados da Ouvidoria das Pol-
cias Civil e Militar do Estado de So Paulo mostram
o perfil das vtimas da violncia policial no ano de
1999: cor, 54,05% negros; antecedentes criminais,
56,52% no tinham; sexo, 93,22% masculino; faixa
etria, 44,12% de 18 a 25 anos.
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econ-
mica Aplicada (IPEA), de 53 milhes de brasileiros
que vivem na pobreza, 63% so negros. De 22 mi-lhes de brasileiros que vivem abaixo da linha de po-
breza, 70% so negros (idem). Na rea da educao,
a situao do negro no menos calamitosa. Do total
dos universitrios, 97% so brancos, sobre 2% de
negros e 1% de descendentes de orientais (idem). Se-
gundo estudo baseado na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domiclios (PNAD), de 1999, a taxa de
analfabetismo trs vezes maior entre negros. Os jo-
vens brancos, aos 25 anos, tm, em mdia, 8,4 anos
de estudos, quando negros da mesma idade tm amdia de 6,1 anos. No Itamaraty, existem apenas dez
negros entre mil diplomatas. No Congresso Nacio-
nal, no passam de 3%. Juzes, mdicos, oficiais, en-
genheiros, professores universitrios negros somam
um contingente nfimo, parecem mais personagens de
fico no Brasil. Em cem anos de vida universitria,
no chega a 1% o nmero de professores negros (Car-
valho, 2001).
Aes afirmativas e cotas para negros
Como reverter esse quadro de injustia e desi-
gualdades raciais? Do ponto de vista conjuntural, a
sada que se vislumbra a defesa de um amplo pro-
grama de aes afirmativas. Mas, afinal, o que so1Mapa da populao negra no mercado de trabalho (1999).
So Paulo: INSPIR/DIEESE.
2Jornal da USP, (1998). So Paulo, 5 a 11 out., p. 7.
3Idem. 4Folha de S.Paulo, (1998). So Paulo, 17 maio, p. 3.1.
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aes afirmativas? A expresso ao afirmativa foi
criada pelo presidente dos Estados Unidos J. F.
Kennedy, em 1963, significando um conjunto de
polticas pblicas e privadas de carter compulsrio,
facultativo ou voluntrio, concebidas com vistas ao
combate da discriminao de raa, gnero etc., bem
como para corrigir os efeitos presentes da discrimi-
nao praticada no passado (Gomes, 2001). No en-
tanto, mister contextualizar o seu surgimento. As
aes afirmativas no foram dadas pela elite branca
dos Estados Unidos; pelo contrrio, elas foram con-
quistadas pelo movimento negro daquele pas, aps
dcadas de lutas pelos direitos civis.
Segundo Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 6-7),
os objetivos das aes afirmativas so: induzir trans-formaes de ordem cultural, pedaggica e psicol-
gica, visando a tirar do imaginrio coletivo a idia de
supremacia racial versus subordinao racial e/ou de
gnero; coibir a discriminao do presente; eliminar
os efeitos persistentes (psicolgicos, culturais e com-
portamentais) da discriminao do passado, que ten-
dem a se perpetuar e que se revelam na discrimina-
o estrutural; implantar a diversidade e ampliar a
representatividade dos grupos minoritrios nos diver-
sos setores; criar as chamadas personalidadesemblemticas, para servirem de exemplo s geraes
mais jovens e mostrar a elas que podem investir em
educao, porque teriam espao.
Alguns indicadores apontam que as aes afir-
mativas proporcionam benefcios insofismveis.
Edward Telles (2003, p. 279) demonstra que, em ra-
zo de tais aes, houve uma diminuio da desigual-
dade racial nos Estados Unidos (entre 1960 e 1996)
e, no Brasil, para o mesmo perodo, houve um aumento
da distncia entre negros e brancos, por exemplo, no
mercado de trabalho. Aps uma pesquisa acurada acer-
ca de programas do mesmo gnero, os economistas
H. Holzer e D. Newhart concluram:
a) a ao afirmativa promove uma justia distributiva, ao
aumentar o nvel de emprego entre mulheres e minorias nas
organizaes que a utilizam; b) patres que utilizam a ao
afirmativa recrutam e selecionam com mais cuidado, bus-
cando empregados de modo mais amplo e avaliando-os se-
gundo mais critrios; c) patres engajados na ao afirmati-
va no perdem em nada no grau de execuo do trabalho
pelos empregados. Se h alguma diferena, ela tende a ser
que minorias e mulheres tm uma performance melhor, mes-
mo em casos em que as credenciais do homem branco eram
superiores, pois ao utilizar uma gama mais ampla de crit-
rios na contratao, outros atributos foram descobertos.5
Entre as polticas de aes afirmativas que vm
sendo experimentadas no Brasil, a mais polmica o
programa de cotas para negros. Na verdade, as cotas
constituem mecanismos extremos de ao afirmativa:
a reserva de um percentual determinado de vagas para
um grupo especfico da populao (negros, mulheres,gays, entre outros), principalmente no acesso univer-
sidade, ao mercado de trabalho e representao pol-
tica.6 O Brasil j dispe de diversas leis fundadas no
princpio das aes afirmativas. Tais leis reconhecem
o direito diferena de tratamento legal para grupos
que sofreram (e sofrem) discriminao negativa, sen-
do desfavorecidos na sociedade brasileira. As leis
listadas abaixo so apenas alguns exemplos:
O art. 67 das Disposies Transitrias da Cons-tituio Federal de 1988 estabelece que: A
Unio concluir a demarcao das terras ind-
genas no prazo de cinco anos a partir da pro-
mulgao da Constituio.
A lei n 8.112/90 prescreve, no art. 5o, 2o,
cotas de at 20% para os portadores de defi-
cincias no servio pblico civil da Unio.
5In: Assessing affirmative action. Journal of Economic
Literature, n 38, 2000 (apudTelles, 2003, p. 280).
6 Moehlecke (2002, p. 199) menciona que nos EUA, alm
do sistema de reserva de vagas (cotas), existem outros formatos
para a ao afirmativa. Existem ainda as taxas e metas, que se-
riam basicamente um parmetro estabelecido para a mensurao
de progressos obtidos em relao aos objetivos propostos, e os
cronogramas, pensados enquanto etapas a serem observadas num
planejamento a mdio prazo.
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Na rea da educao, o Estado do Rio de Janeiro
foi um dos primeiros a estabelecer uma lei de cotas
raciais, como forma de democratizar o acesso ao en-
sino superior. No vestibular de 2003, a Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade
Estadual do Norte Fluminense (UENF) reservaram
40% das vagas para alunos negros. Apesar de pol-
mico, o sistema de cotas das universidades estaduais
do Rio de Janeiro foi adotado por outras instituies
pblicas de ensino superior, como a Universidade de
Braslia (UnB).
Argumentando a favor de cotas para negros
H uma espcie de consenso nacional de que preciso adotar dispositivos concretos de combate ele-
vada desigualdade racial no pas, e cotas um desses
dispositivos. No entanto, os crticos questionam sua
adequao e eficcia.9 Exclamam, prematuramente,
que elas esto fadadas ao malogro. Mas como esta-
riam fadadas ao malogro se o pas ainda no as expe-
rimentou? Doravante, alguns dos principais argumen-
tos utilizados contra o programa de cotas para negros
na universidade sero apresentados e, na medida do
possvel, refutados.Uma das crticas mais freqentes a de se estar
plagiando os norte-americanos com sua poltica de
aes afirmativas. Os Estados Unidos no detm o
monoplio das aes afirmativas (ou compensatrias);
programas semelhantes, diz Sabrina Moehlecke (2002,
p. 199) ocorreram em vrios pases da Europa Oci-
dental, na ndia, Malsia, Austrlia, Canad, Nigria,
frica do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros.
Um ataque comum desferido por um setor da
esquerda marxista ao programa de cotas para negros
que tal programa seria uma reivindicao reformis-
ta, e no revolucionria. No h dvida de que a pro-
posta de cotas tem uma natureza reformista, paliati-
va, assim como outras reivindicaes do movimento
social, como, por exemplo, a bandeira da reforma
agrria, defendida pelo Movimento dos Trabalhado-
res Rurais Sem-Terra (MST). A reforma agrria, como
o prprio termo designa, reforma, e no revoluo
agrria. Rigorosamente, ela significa levar o capita-
lismo para o campo. Historicamente, essa proposta,
que tem um carter democrtico, foi esposada pela
burguesia na Frana, Inglaterra e Estados Unidos. Da
a pergunta: por que, ento, se deve defender a refor-
ma agrria, uma tarefa que estaria no bojo do projeto
de revoluo burguesa? Porque, no atual contexto his-
trico do Brasil, defender a reforma agrria tem um
carter progressista, que mobiliza as pessoas e colocaem xeque a desigualdade social no pas.
A mesma premissa valida para a luta pela im-
plementao de cotas para negros. Trata-se de uma
luta que, apesar de sua natureza reformista, tem um
carter democratizante, que educa ou mobiliza politi-
camente os negros e, sobretudo, coloca em xeque a
secular opresso racial deste pas. Como escreveu o
pensador marxista e lder revolucionrio, Leon
Trotsky, no seu opsculo Programa de transio
(1989), tem-se que saber combinar as reivindicaesespecficas e gerais; tem-se que abraar um progra-
ma mnimo no qual, mediado por medidas transit-
rias, se sinalize para um programa mximo que rom-
pa as estruturas do sistema.
Portanto, essa a concepo da proposta de co-
tas. Ela no um fim em si mesma, mas um meio,
uma medida especfica transitria que, no Brasil,
progressista, pois, entre outros motivos, tem o poder
de proporcionar visibilidade ao povo negro. Por exem-
plo, no censo oficial realizado pela USP, no segundo
semestre de 2001, constatou-se que apenas 1,3% dos
38.930 dos alunos de graduao so negros.10 Se fos-
se implantado o programa de cotas do Ncleo de Cons-
cincia Negra da USP, esse percentual se elevaria para9 Entre os principais setores que se opem s aes afirmati-
vas (ou aos programas de cotas para negros) no Brasil, encontram-
se a imprensa e os intelectuais, como Roberto DaMatta (1997), Peter
Fry & Yvonne Maggie (2002) e Eunice Durham (2003). 10Jornal da USP, (2003). So Paulo, 24 fev. a 02 mar. p. 7.
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25%. Em termos numricos, dos atuais 506, os estu-
dantes negros subiriam, imediatamente, para 9.733.
Esse eventual enegrecimento da USP representaria
ou no um avano?
Ser contra cotas para negros assim como se
contrapor reforma agrria ter uma postura con-
servadora. Do ponto de vista da conjuntura interna-
cional, as aes afirmativas, atualmente, esto sendo
questionadas pelo governo neoliberal de George W.
Bush nos Estados Unidos. Nesse quadro, qual deve
ser o papel de todo democrata: sair em defesa das
conquistas histricas do movimento negro estaduni-
dense. Ironicamente, opor-se s cotas hoje significa,
no plano internacional, estar do lado da elite imperia-
lista norte-americana. Da a necessidade de se apoiartaticamente as aes afirmativas. Tal apoio, no atual
estgio da correlao de foras, uma poltica de re-
sistncia ao neoliberalismo, e tambm significa unir-
se luta anti-racista dos afro-americanos pela manu-
teno de suas conquistas histricas, arrancadas com
tanto sangue, suor e lgrima.
Uma outra crtica freqente de que o ingresso
de negros nas universidades pelo programa de cotas
subverte o mrito. Em uma sociedade marcada pelas
contradies de classe, gnero e raa, o mrito nopassa de um discurso ideolgico. Um exemplo: duas
candidatas vo prestar a prova da Fundao Univer-
sitria para o Vestibular (FUVEST, instituio orga-
nizadora do vestibular da USP) para o curso de medi-
cina. Ambas chegam segunda fase, mas apenas uma
aprovada. Uma negra. Moradora da sinistra peri-
feria da zona leste paulistana, com 13 anos j traba-
lhava para ajudar a me. Ela oriunda de uma famlia
desestruturada, que convive com a violncia. Para
completar, estudou noite, em escola pblica. A ou-
tra branca, mora no bairro elitizado do Morumbi.
Estuda ingls, pratica esportes, tem alimentao sau-
dvel, dispe de computador e todo tipo de benesse
material. Estudou nas melhores escolas particulares e
ainda fez cursinho pr-vestibular. Coincidentemente,
foi a branca que ficou com a vaga do curso de medi-
cina. Ambas eram concorrentes diretas, e pergunta-
se: das duas, quem tem mais mrito? Em uma socie-
dade capitalista e racista, as oportunidades na vida
no so igualitrias. Portanto, mrito no um valor
absoluto. evidente que a referida candidata negra
vai precisar de algum dispositivo compensatrio para
nivel-la branca.
Para Telles, o ingresso via uma nica prova de
admisso, o vestibular, no est baseado no mrito.
Passar no vestibular parece estar mais relacionado com
as condies do candidato para pagar cursinhos, ge-
ralmente caros, de preparao para o vestibular e em
dedicar um ano ou mais inteiramente aos estudos para
as provas, do que habilidade em ter xito na faculda-
de (Telles, 2003, p. 287). Alm disso, argumenta esse
autor, as escolas pagas da classe mdia branca do
maior chance para seus alunos passarem no vestibu-lar. A meritocracia, conforme descrita na origem do
termo,
[...] utpica, porque busca recompensar indivduos com
base na inteligncia ou nas habilidades cognitivas; e isto
no ocorre em lugar algum. A admisso universidade pa-
rece, ento, ser muito mais uma testocracia do que uma
meritocracia. A aprovao no vestibular , na melhor das
hipteses, um teste de mrito muito questionvel. (idem,
ibidem)
Um estudo de trs dcadas de acompanhamento
dos calouros de Harvard [EUA] mostrou que os es-
tudantes com baixos resultados na prova do SAT (Tes-
te Padro de Aptido), vindos da classe trabalhadora,
tiveram maior sucesso que seus colegas de classe m-
dia, principalmente por terem mais iniciativa (idem,
ibidem).
Outra objeo recorrente que o ingresso de ne-
gros pelo sistema de cotas vai implicar o rebaixamento
da qualidade de ensino. No basta ser negro para, au-
tomaticamente, ser aprovado nesse novo mecanismo
de seleo. Tem de ter qualificao. Em pesquisa reali-
zada pelo Programa de Apoio ao Estudante da UERJ,
constatou-se que os alunos que entraram pelo critrio
de cotas tiveram, no primeiro semestre de estudos em
2003, rendimento acadmico superior e taxa de evaso
menor em relao aos alunos que obtiveram a vaga
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sem ter direito ao benefcio. De acordo com a pesqui-
sa, no campus principal da UERJ que concentra a
maior parte dos cursos 47% dos estudantes que en-
traram sem cotas foram aprovados em todas as disci-
plinas do primeiro semestre. Entre os estudantes que
entraram no vestibular restrito a alunos que se
autodeclararam negros, a taxa foi maior: 49%. A com-
parao inversa tambm favorvel aos cotistas. A
percentagem de alunos reprovados em todas as disci-
plinas por nota ou freqncia entre os no-cotistas foi
de 14%. Entre os que ingressaram pelo programa de
cotas para negros, a percentagem foi de 7%.11
Alm de um rendimento acadmico superior, os
cotistas abandonaram menos os cursos. Entre os no-
cotistas, a taxa de evaso no primeiro semestre foi de9% dos estudantes. Essa percentagem foi de 5% entre
os ingressantes pelas cotas para negro. O acompa-
nhamento dessa primeira turma que entrou na UERJ
por cotas mostra que a universidade no teve preju-
zo acadmico com esses estudantes, afirmou o coor-
denador do estudo e do Programa de Apoio ao Estu-
dante, Cludio Carvalhares.12 Os dados mostram
tambm que, ao menos para a primeira turma de
cotistas, o resultado do vestibular no determinante
no desempenho acadmico. No houve, assim, o im-pacto negativo, como era temido pelos crticos do pro-
grama.
Alm disso, no se pode esquecer que o vestibu-
lar um mtodo duvidoso de aferio do conheci-
mento. Em uma pesquisa realizada na USP, pelo N-
cleo de Apoio aos Estudos de Graduao (NAEG),
constatou-se que no h uma relao mecnica entre
a nota do candidato no vestibular e seu rendimento
no curso. O aluno que teve uma das melhores notas
no vestibular no necessariamente ser o aluno com
o maior grau de aproveitamento do curso no decorrer
dos anos. A recproca tambm verdadeira. O candi-
dato que porventura foi aprovado com uma nota bai-
xa no vestibular pode ter um desempenho satisfatrio
na realizao do curso (Domingues, 2002, p. 230).
Tambm cabvel assinalar que os estudantes
oriundos da frica e de diversos pases da Amrica
Latina que ingressam, por exemplo, na USP e em cer-
tas universidades pblicas federais, no so submeti-
dos a nenhum tipo de avaliao por tais instituies.
Eles vm por um sistema de convnio que se estabe-
lece entre as embaixadas. Tais estudantes que, a ri-
gor, tm uma formao educacional mais defasada
que a dos brasileiros , sintomaticamente, no tm
seus nveis de excelncia questionados ao trmino dos
cursos. O potencial deles equiparado ao de qual-
quer outro estudante no-negro brasileiro. Isso mos-
tra que o discurso de excelncia da universidade s
serve para balizar o ingresso, e no o produto do pro-cesso educacional.
Um outro argumento muito utilizado contra a
proposta de cotas baseia-se no pressuposto de que a
soluo para as distores raciais na educao a
melhoria do ensino fundamental e mdio da rede p-
blica. Os defensores do programa de cotas para ne-
gros no so contrrios melhoria da rede pblica de
ensino. Uma proposta no conflitante com a outra.
As cotas so uma alternativa emergencial, provis-
ria, ao passo que a melhoria da rede pblica de ensinoexige um esforo de mdio a longo prazo, ciclo de
uma gerao, no mnimo. At l, os negros vo conti-
nuar sendo destitudos do sonho de cursar uma uni-
versidade pblica e de qualidade?
Se tentarem convencer um jovem negro, vesti-
bulando, de que ele tem que esperar a melhoria do
sistema educacional brasileiro... (daqui no se sabe
quantos anos!) para poder realizar o sonho de ingres-
sar na universidade pblica, a reao dele vai ser de
indignao. Afinal, ele quer uma soluo para o pro-
blema hoje, e no deixar para amanh ou perder de
vista na linha imaginria do tempo. O Estado brasi-
leiro tem uma dvida para com o povo negro, e ela
tem que ser saldada j.
Alm disso, a melhoria da rede de ensino exige
polticas governamentais universais (ou universalistas),
e tais polticas no erradicam a desigualdade racial no
pas. Porm, no isso o que pensa a maior parte da
11Folha de S.Paulo, (2003), So Paulo, 14 dez., p. C5.
12Idem.
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direita e de um setor da esquerda. Ambas as correntes
de pensamento entendem que o problema do negro
ser resolvido, simplesmente, com a implementao
de polticas pblicas universais, quais sejam, progra-
mas governamentais que atacariam as causas sociais
da desigualdade. Consoante pesquisa realizada pelo Ins-
tituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) em
2001, todas as polticas pblicas universais implanta-
das pelo governo, desde 1929 at os dias atuais, no
conseguiram eliminar a taxa de desigualdade racial no
progresso educacional do brasileiro. Os brancos estu-
dam em mdia 6,6 anos, e os negros, 4,4 anos. Essa
distncia, de 2,2 anos, praticamente a mesma do in-
cio do sculo XX. A concluso reveladora: apesar de
ter acontecido a elevao do nvel de escolarizao dobrasileiro, de 1929 para os dias atuais, a diferena de
anos de estudos dos negros frente aos brancos perma-
nece inalterada. Segundo a mesma pesquisa, os negros
precisariam, caso os brancos ficassem parados, de 32
anos para atingir o nvel educacional dos estudantes
brancos (Henriques, 2001).
Isso significa que programas sociais ou polticas
pblicas universais, por si ss, no tm eficcia para
evitar as desvantagens que os negros levam em rela-
o aos brancos no acesso s oportunidades educa-cionais. Para corrigir essa deficincia do sistema ra-
cial so necessrias tambm polticas pblicas
especficas (ou diferencialistas) em benefcio da po-
pulao negra, ou seja, programas sociais que ado-
tem um recorte racial na sua aplicao, e que so de-
nominados aes afirmativas. Os problemas
especficos dos grupos que historicamente sofreram
(e sofrem) discriminao negativa (como negros, mu-
lheres, gays, entre outros) se resolvem combinando
medidas gerais e especficas. Portanto, a discrimina-
o contra o negro deve ser enfrentada, igualmente,
com aes anti-racistas. O machismo deve ser enfren-
tado, tambm, com aes sexistas; o preconceito con-
tra o gay, com aes anti-homofbicas.
A combinao oposta tambm se impe. Como sa-
lienta Antnio Srgio A. Guimares (1999, p. 172):
[Polticas de aes afirmativas] devem estar ancoradas em
polticas de universalizao e de melhoria do ensino pbli-
co de primeiro e segundo graus, em polticas de universali-
zao da assistncia mdica e odontolgica, em polticas
sanitrias, enfim, numa ampliao da cidadania da popula-
o pobre. No deve haver dvida, portanto, de que no se
podem elaborar polticas de ao afirmativa sem que estas
estejam respaldadas por polticas de ampliao dos direitos
civis, tal como aconteceu nos Estados Unidos. O que est
em questo, portanto, no uma alternativa simples, diria
mesmo simplista, entre polticas de cunho universalista
versus polticas de cunho particularista. O que est em jogo
outra coisa: devem as populaes negras, no Brasil, satis-
fazer-se em esperar uma revoluo do alto, ou devem
elas reclamar, de imediato e pari passu, medidas mais ur-
gentes, mais rpidas, ainda que limitadas, que facilitem seuingresso nas universidades pblicas e privadas [...]?
O povo brasileiro no contrrio s polticas de
aes afirmativas, tampouco na sua verso mais po-
lmica, um programa de cotas. Quem as rejeita so as
classes mdias e as elites, inclusive intelectuais (Gui-
mares, 2002, p. 71), que assim tornam-se setores re-
fratrios democratizao do acesso universidade
pblica. Naquela que foi considerada a mais abran-
gente pesquisa j realizada sobre o preconceito racialno Brasil, de 1995, o instituto de pesquisaDataFolha
era incisivo em uma de suas perguntas:
Diante da discriminao passada e presente contra os
negros, tm pessoas que defendem a idia de que a nica
maneira de garantir a igualdade racial reservar uma parte
das vagas nas universidades e dos empregos nas empresas
para a populao negra; voc concorda ou discorda com
essa reserva de vagas de estudo e trabalho para os negros?
O resultado foi surpreendente. Os mais pobres
(69,5% dos brancos e 80,3% dos negros que recebem
at dez salrios mnimos) e os menos escolarizados
se manifestaram favorveis a cotas, posio que se
inverteu nas camadas mais abastadas e cultas: ape-
nas 30,5% dos brancos que recebem acima de dez
salrios mnimos seriam favorveis a tais polticas
(Turra & Ventura, 1995). A posio favorvel s co-
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tas para negros por parte da opinio pblica perma-
nece. Em pesquisa nacional realizada pela Fundao
Perseu Abramo, em 2003, a maioria dos entrevista-
dos (59%) declarou aprovar as cotas raciais como sis-
tema de ingresso na universidade.13
Os detratores, outrossim, alegam que um even-
tual programa de cotas vai acentuar o racismo no
ambiente universitrio, no cotidiano dos estudantes.
Ora, o que pode acontecer cair a mscara do racis-
mo na sociedade brasileira, o que, por sinal, j est
acontecendo. O racismo uma arma ideolgica de
dominao que existe na sociedade brasileira sem a
existncia das cotas para negros. Trata-se de um ra-
cismo dissimulado, mascarado, velado, porm extre-
mamente eficiente. Por exemplo, o progresso educa-cional do negro brasileiro inferior ao do negro
sul-africano da poca do apartheid, e dos negros dos
Estados Unidos da poca da segregao racial. Nes-
ses pases, havia maior nmero de mdicos, engenhei-
ros e advogados negros do que aqui.14
Portanto, o racismo brasileira j perverso;
porm, se o programa de cotas contribuir para que o
conflito nas relaes raciais fique declarado, pode ser
o primeiro passo para sua superao definitiva. Uma
comparao singela vlida para entender esse pro-cesso. Um mdico s consegue prescrever um medi-
camento correto se o paciente explicita os sintomas
da doena. Caso o paciente dissimule seus problemas
de sade, dificilmente o mdico tem condies de tra-
ar um diagnstico preciso e, por conseguinte, pres-
crever um medicamento eficaz para eliminar a doen-
a. Assim, s possvel vislumbrar a superao
definitiva para qualquer problema, inclusive o racial,
quando ele, efetivamente, vier baila.
Os refratrios tambm argumentam que no
possvel implantar um programa de cotas porque no
Brasil no d para definir quem negro, uma vez que
todo brasileiro seria mestio. No entanto, como ex-
plica Kabenguele Munanga,
[...] confundir o fato biolgico da mestiagem brasileira (a
miscigenao) e o fato transcultural dos povos envolvidos
nessa miscigenao com o processo de identificao e de
identidade cuja essncia fundamentalmente poltico-ide-
olgica, cometer um erro epistemolgico notvel.
(Munanga, 1999, p. 108)
O discurso da mestiagem tal como propalado
no Brasil perigoso. Em uma perspectiva biolgi-
ca, o mestio existe em qualquer lugar do mundo; afi-
nal, no existe raa pura. Mestio no uma catego-
ria genuinamente brasileira. At na Alemanha ou nos
Estados Unidos existe uma certa dosagem de mesti-
agem, ou seja, de mistura racial. A alegao segun-do a qual no houve cruzamento entre as chamadas
raas [negra e branca] nos Estados Unidos, diz
Munanga (1999, p. 93), uma ignorncia, ou me-
lhor, uma malcia dos defensores da miscigenao bra-
sileira. E, como questiona Guimares,
Classificamos ou no as pessoas por sua cor? Considera-
mos ou no algumas pessoas brancas e outras pessoas
negras? Discriminamos ou no discriminamos as pessoas
em termos de cor? Tudo se passa, nessa verso romntica
do anti-racismo, como se se quisesse negar uma realidade
na qual, no ntimo, acredita-se: declara-se que as raas no
existem, mas usa-se a classificao de negros e bran-
cos dos Estados Unidos, como se esta fosse uma classifi-
cao racial verdadeira, como se os brancos americanos no
fossem, eles prprios, tambm mestios; como se eles fos-
sem puros, cem por cento brancos. Apenas nossos bran-
cos que seriam mestios [...]. (Guimares, 1999, p. 168-
169)
Carl Degler (1976) levantou a hiptese de que a
construo ideolgica da figura do mulato (mestio,
pardo, moreno ou termo que o valha), no Brasil, ser-
viu para amortecer o choque racial. Como os negros
constituam, desde o perodo colonial, a maioria da
populao, e os brancos uma minoria, fabricou-se uma
categoria intermediria, o mulato, que servia como
vlvula de escape para a tenso racial. Essa sada te-
13Dirio de So Paulo, (2003), So Paulo, 29 nov.
14Cadernos pelas reparaes (1993), So Paulo: Ncleo de
Conscincia Negra na USP.
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ria sido providencial: um ser hbrido, que nunca se
define se negro ou branco. O discurso ideolgico da
mestiagem popularizou-se, de modo que a popula-
o brasileira ao contrrio da norte-americana, por
exemplo geralmente no se assume racialmente.
Entende-se, pois, que o programa de cotas ataca
essa esquizofrenia do nosso sistema racial, na me-
dida em que obriga as pessoas a assumirem se so
negras ou no-negras. E as supostas fraudes? No ves-
tibular piloto da UERJ, aumentou minimamente o
nmero de pessoas que se autodeclararam negras em
relao ao ano anterior. E os casos de pessoas que so
aparentemente claras e se inscreveram pelo sistema
de cotas? Esses casos foram excees. Ainda assim,
no parecem constituir fraudes, haja vista que os cri-trios para definir quem negro no so os marcado-
res biolgicos ou simplesmente a cor de pele. A ge-
ntica j provou que raa no existe. O critrio , pois,
poltico e ideolgico. Negro quem se assume, quem
se identifica enquanto tal; no limite, todo aquele
que abraa a luta anti-racista.15
Ao contrrio do que o ento candidato presi-
dncia Luiz Incio Lula da Silva (Partido dos Traba-
lhadores) declarou no ltimo debate antes das elei-
es, no existe mtodo cientfico capaz de determinarquem negro no Brasil. Alis, em nenhum lugar do
mundo. Nos Estados Unidos, na Alemanha ou em
qualquer outro pas, o critrio para identificar quem
negro, em ltima instncia, tambm arbitrrio, ou
seja, so critrios polticos e ideolgicos, mas jamais
biolgicos ou genticos.
Por ltimo, vale lembrar que estabelecer cotas
para negros constitucional. A Constituio brasi-
leira, no artigo quinto que trata dos direitos funda-
mentais , discorre sobre o sentido de igualdade em
dois momentos: a igualdade formal perante a lei e a
igualdade substantiva. No relatrio da Comisso
Teotnio Vilela e do Ncleo de Estudos da Violn-
cia, de 1993, essa questo analisada da seguinte
maneira:
Ao se falar em igualdade na constituio, est se di-
zendo duas coisas ao mesmo tempo: por um lado, impede-
se o tratamento desigual e por outro impe-se ao Estado
uma ao positiva no sentido de criar condies de igual-
dade, o que necessariamente impe um tratamento desi-
gual dos indivduos. [...] Neste sentido no ilegal discri-
minar positivamente com o objetivo de criar melhores con-
dies para um determinado grupo, tradicionalmente des-
privilegiado dentro da sociedade.16
Porm, Moehlecke (2002, p. 213) adverte que,
apesar da discusso normativa acerca da validade
das aes afirmativas encontra[r] sustentao legal em
algumas interpretaes, essa ainda , at o momen-
to, uma rea em disputa.
Consideraes finais
As polticas que estabelecem cotas raciais devem
respeitar o percentual de negros na composio po-pulacional dos diversos estados da nao. Elas tm
sempre de ser proporcionais, correspondendo reali-
dade local. Por exemplo, a cota para So Paulo deve
ser menor do que para a Bahia, o estado com maior
concentrao da populao negra do pas. Desse
modo, o corpo discente da universidade vai represen-
tar mais fielmente a composio racial do estado no
qual estiver inserido.
No Brasil, h uma tradio de pensar que os pro-
gramas sociais beneficiam, de maneira igualitria,
todas as pessoas, independente da cor da pele, mas
as pesquisas mostram que isso um engodo. Polti-
cas pblicas de cunho social, isoladamente, no ata-
cam o racismo. Pelo contrrio, contribuem para re-15 Quando a UnB definiu os critrios para que as pessoas
pudessem se candidatar ao sistema de cotas em seu vestibular de
2004, j havia sido escrito este artigo. Mas escusado dizer que
se trata de um equvoco instituir uma comisso com poderes para
decidir, a partir de uma foto, quem (ou no) negro no Brasil.
16Os direitos humanos no Brasil (1993). So Paulo: Ncleo
de Estudos da Violncia (USP)/Comisso Teotnio Vilela, p. 13-14.
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produzir a separao existente entre negros e bran-
cos na estrutura de classes. Os negros, diz Telles
(2003, p. 306), so desproporcionalmente ignora-
dos por tais polticas.
Com a poltica de aes afirmativas, a primei-
ra vez que o Estado brasileiro implementa polticas
pblicas a favor da populao negra, pois, em toda a
histria do Brasil, essa populao sempre foi alvo de
polticas que a desfavoreciam. O que dizer de quase
trezentos anos de escravido? Quem foram os benefi-
ciados? O que dizer da poltica imigrantista, do final
do sculo XIX e incio do sculo XX? Ser que os
beneficiados de tal poltica foram os ex-escravos e
seus descendentes? So necessrias aes efetivas para
enfrentar o problema da excluso do negro no Brasil,mais do que boas intenes, retrica poltica e de-
bates acadmicos.
A implementao dos primeiros programas de
aes afirmativas, entre os quais a poltica de cotas,
decreta o fim do mito da democracia racial, ou seja,
do mito da ausncia de preconceitos ou discrimina-
es raciais no Brasil. A vigncia desses programas,
por si s, a prova cabal de que existe tanto racismo
quanto um problema especfico do negro no pas, pois,
caso contrrio, no haveria a necessidade de medidasreparatrias para esse segmento populacional. As ba-
ses ideolgicas de sustentao do mito da democra-
cia racial, portanto, esto sendo implodidas.17
Alm disso, os primeiros programas de cotas para
negros em algumas universidades pblicas servem
como estopim para desencadear, ainda que tardiamen-
te, o debate, no seio da sociedade brasileira, de como
o Estado deve reparar as injustias e atrocidades cau-
sadas no passado populao negra e, principalmen-
te, de como se deve eliminar o problema do racismo
antinegro no presente.
Em razo do exposto, necessrio salientar que
este um momento singular na histria do pas, em
que amplos setores da sociedade civil no s se
conscientizam cada vez mais do problema do racis-
mo, como se debruam nas possveis solues. Pela
primeira vez, na histria do Brasil, acena-se romper
com a barreira do silncio que paira sobre o racismo.Felizmente, as alternativas para a superao desse mal
tendem a entrar na pauta da agenda nacional. Eviden-
temente, as cotas no so a panacia para todos os
problemas advindos da desigualdade racial, mas so
o incio. Entre escolher um programa de cotas ou nada,
seguramente um programa de cotas. Da a responsa-
bilidade de todos que ainda so contrrios a essa me-
dida compensatria. Opor-se s cotas e no apresen-
tar nada de alternativo para enfrentar a desigualdade
de oportunidades entre negros e brancos no campoeducacional fazer o jogo do opressor que, se de um
lado, h 117 anos, decretou a abolio da escravatura
no pas, de outro, empreendeu (e empreende) uma
poltica de excluso e racismo.
PETRNIO DOMINGUES, doutor pelo Programa de His-
tria Social da Universidade de So Paulo (USP), professor da
Universidade Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE). lti-
mas publicaes: Aes afirmativas: a sada conjuntural para os
17 Do ponto de vista poltico, acadmico e legislativo, o mito
da democracia racial vem sendo questionado h dcadas. Nas pri-
meiras dcadas do sculo XX, a imprensa negra paulista j de-
nunciava a existncia de preconceito e discriminao raciais no
Brasil. Na dcada de 1950, intelectuais como Florestan Fernandes,
Roger Bastide, Octvio Ianni e Fernando Henrique Cardoso reve-
laram por intermdio de pesquisas cientficas a existncia de
um racismo antinegro no Brasil. Em 1951 foi aprovada a lei de no
1.390, conhecida como Lei Afonso Arinos, a partir da qual a dis-
criminao racial foi considerada crime de contraveno penal.
Em 1988, um sculo aps a abolio da escravatura, foi promul-
gada uma nova lei (conhecida como Lei CAO), que aperfeioou a
anterior e passou a definir o racismo como crime inafianvel e
imprescritvel. Mas, apesar da existncia de legislao antidiscri-
minatria, de pesquisas cientficas e de denncias do Movimento
Negro, o mito de que no havia problema racial no pas permane-
ceu vivo, mormente no discurso do senso comum. Assim, suge-
re-se que s na atual conjuntura que o mito, efetivamente, est
estiolando.
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Recebido em junho de 2004
Aprovado em maro de 2005
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Resumos/Abstracts
Petrnio Domingues
Aes afirmativas para negros no Brasil: o incio de uma reparao histrica
Prope fazer um exame das aes afirmativas em benefcio da populao negra, tendo como eixo a polmica em torno da institui-
o de um programa de cotas raciais, principalmente nas universidades pblicas. Conclui-se que tal programa significa um marco
na histria do pas: por um lado, a primeira vez que o Estado brasileiro busca reparar a populao negra pelas injustias do pas-
sado (e do presente); e, por outro, tambm a primeira vez que a opinio pblica nacional se sensibiliza tanto para o problema do
racismo antinegro e discute suas possveis solues.Palavras-chave: negro; racismo; desigualdade; discriminao; relaes raciais
Affirmative action for Negroes in Brazil: the beginning of a process of historical reparation
The propose of this article is to examine affirmative actions which benefit the black population, taking as its argument the contro-
versy about the institution of a programme of racial quotas, especially in public universities. It concludes that such a programme
represents a landmark in the countrys history: on the one hand, because it is the first time that the Brazilian state seeks to make
amends for past (and present) injustices to the black population and, on the other, because it also represents the first time that pu-
blic national opinion has been so involved in the problem of anti-black racism and in discussing possible solutions.
Key-words: Negro; racism; inequality; discrimination; race relations