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Psicologia & Sociedade; 15 (2): 101-123; jul./dez.2003 101 ACIDENTES DE TRÂNSITO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DAS VÍTIMAS EM CAMPINAS Marcos S. Queiroz Patricia C. P. Oliveira Universidade de Campinas -UNICAMP RESUMO: Este artigo focaliza, numa perspectiva interdisciplinar qualitativa, o problema de acidente de trânsito a partir da visão de 20 vítimas hospitalizadas. Através de dados obtidos por meio de entrevistas, características sociais do acidentado e as circunstâncias do acidente foram analisados. O artigo focaliza, ainda, as represen- tações sociais do acidentado sobre vários temas, tais como o hospi- tal, as causas do acidente, o trânsito, o trabalho, o sistema de trans- porte coletivo e individual, a motocicleta e as perspectivas para o futuro. Concluímos que as representações sociais do acidentado so- bre o trânsito e o acidente de trânsito estão fortemente relacionadas com as dimensões comportamentais e culturais dos indivíduos en- volvidos. Tais achados sugerem que, em um nível mais abrangente, a solução do problema de acidente de trânsito requer, sobretudo, a implementação de políticas públicas que levem em conta a dimen- são cultural e enfatizem programas de educação para o trânsito. PALAVRAS-CHAVE: representações sociais para acidente de trânsito, políticas públicas para o trânsito em Campinas. TRAFFIC ACCIDENTS: AN ANALYSIS BASED ON THE PERSPECTIVE OF THE VICTIMS IN CAMPINAS, BRAZIL ABSTRACT: This article focuses, through a qualitative interdisciplinary perspective, the problem of traffic accidents, according to the view of 20 hospitalized victims. Based on the data obtained from interviews, the social characteristics of the victims and the circumstances of the accident were studied. The article proceeds by focusing the social representations of the victims about

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ACIDENTES DE TRÂNSITO: UMA ANÁLISEA PARTIR DA PERSPECTIVA DAS

VÍTIMAS EM CAMPINAS

Marcos S. QueirozPatricia C. P. Oliveira

Universidade de Campinas -UNICAMP

RESUMO: Este artigo focaliza, numa perspectiva interdisciplinarqualitativa, o problema de acidente de trânsito a partir da visão de20 vítimas hospitalizadas. Através de dados obtidos por meio deentrevistas, características sociais do acidentado e as circunstânciasdo acidente foram analisados. O artigo focaliza, ainda, as represen-tações sociais do acidentado sobre vários temas, tais como o hospi-tal, as causas do acidente, o trânsito, o trabalho, o sistema de trans-porte coletivo e individual, a motocicleta e as perspectivas para ofuturo. Concluímos que as representações sociais do acidentado so-bre o trânsito e o acidente de trânsito estão fortemente relacionadascom as dimensões comportamentais e culturais dos indivíduos en-volvidos. Tais achados sugerem que, em um nível mais abrangente,a solução do problema de acidente de trânsito requer, sobretudo, aimplementação de políticas públicas que levem em conta a dimen-são cultural e enfatizem programas de educação para o trânsito.

PALAVRAS-CHAVE: representações sociais para acidente de trânsito,políticas públicas para o trânsito em Campinas.

TRAFFIC ACCIDENTS: AN ANALYSIS BASED ON THEPERSPECTIVE OF THE VICTIMS IN CAMPINAS, BRAZIL

ABSTRACT: This article focuses, through a qualitativeinterdisciplinary perspective, the problem of traffic accidents,according to the view of 20 hospitalized victims. Based on the dataobtained from interviews, the social characteristics of the victimsand the circumstances of the accident were studied. The articleproceeds by focusing the social representations of the victims about

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several aspects, such as the hospital, the cause of the accident, thetraffic, the collective transport system, the work situation and theperspectives for the future. We conclude that the socialrepresentations from the victims about the traffic accidents arestrongly connected to both behavioral and cultural dimensions.These findings suggest that, in a wider perspective, the solution tothe problem of traffic accidents require, above all, theimplementation of public policies which take into account the cul-tural dimension and emphasizes traffic educational programs.

KEYWORDS: Social representations for traffic accidents, PublicPolicies for Traffic.

O presente artigo focaliza o significado do acidente de trânsito(AT) em Campinas a partir do ponto de vista de suas vítimas. Comum foco dirigido à dimensão subjetiva do AT, a pesquisa baseia-seem metodologia qualitativa, proveniente das Ciências Sociais emgeral e da Psicologia Social em particular.

É um pressuposto teórico fundamental desse estudo ser ocomportamento no trânsito fortemente influenciado tanto por umadimensão comportamental, como por um sistema de valores, estrei-tamente relacionado a uma dimensão sócio-cultural. A Organiza-ção Mundial de Saúde (OMS, 1984) concluiu, nesse sentido, que énecessário um conhecimento maior dos contextos sócio-culturais epsicológicos para o desenvolvimento de programas de capacitação,reabilitação e educação, que promovam um comportamento maisadequado no trânsito, tendo em vista as graves conseqüências dosAT e o alto custo social que representam.

No contexto da reforma sanitária, em processo deimplementação no Brasil e em sintonia com a maior parte do mun-do desenvolvido e em desenvolvimento, os AT passaram a ser perce-bidos como um aspecto da saúde pública, assim como os acidentesde trabalho, o uso de drogas, o comportamento sexual e outros as-pectos que, direta ou indiretamente afetam a saúde da população.Em sintonia com a proposta pela Organização Mundial da Saúde,

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tal postura tem enfatizado uma visão de saúde que dimensiona ocompleto bem estar físico, mental e social do indivíduo, e não só aausência de doenças (O’Neill, 1983).

A concentração da pesquisa em Campinas justifica-se pelofato deste município ter-se caracterizado, em vários aspectos, comopioneiro no processo de descentralização e municipalização de ser-viços de trânsito. O esforço da Secretaria de Transporte do municí-pio em promover uma verdadeira revolução nesta área acarretou umadiminuição significativa nos índices de mortalidade no trânsito. Entre1992 e 1999, houve, no município de Campinas, uma reduçãodramática de 53,4% no índice de AT com vítimas fatais por 10.000veículos (SETRANSP/EMDEC, 2000).

METODOLOGIA

A própria natureza dessa pesquisa induziu à adoção de umapostura eclética do ponto de vista teórico e metodológico, uma vezque pressupõe um enfoque qualitativo numa perspectivamultidisciplinar.

O instrumento utilizado foi um roteiro de entrevista semi-aberto aplicado a uma amostra de conveniência de 20 vítimas deAT do sexo masculino e feminino com idade acima de 18 anos in-ternadas na Cirurgia/Enfermaria do Trauma do Hospital das Clíni-cas da UNICAMP. As entrevistas foram realizadas durante os mesesde setembro, outubro e novembro de 1999 no próprio hospital,fora de horário de visitas, o que permitiu uma interação tranqüilaentre o paciente e o entrevistador. Em geral, cada entrevista duroude 2 a 3 horas, sendo gravada e, posteriormente, transcrita.

A condição inicial fundamental para que o indivíduo fosseescolhido para ser entrevistado foi a sua disponibilidade e disposi-ção para a concessão da entrevista. Tal condição excluiu aqueles queestavam muito traumatizados e também alguns dos que tinhamacabado de sofrer um AT e se encontravam perturbados pelo even-to. Todos entenderam sem qualquer problema o motivo da entrevis-ta, ou seja, o da realização de uma pesquisa sobre acidentes de trân-sito. Tal enfoque permite a expressão do que um conjunto maior dacomunidade sente, pensa e faz, mas não se expressa dentro de um

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quadro de referência formalizado e coerente, deixando esta tarefapara os seus “intelectuais” (TURNER, 1960).

O roteiro das entrevistas centrou-se no próprio acidente detrânsito e na crise pessoal proporcionada por ele. A partir disso, oroteiro foi aberto, levando em conta o interesse e a motivação doentrevistado com relação à sua situação e às conseqüências do aci-dente de trânsito para a sua vida. Temas relacionados com as causasdo acidente, com o automóvel, com o hospital, com o transportecoletivo, com o trabalho e com a vida moderna fluíram naturalmen-te em todas as entrevistas. A indução do pesquisador em abordartais assuntos foi relativa, uma vez que os próprios entrevistados de-monstraram interesse em discorrer sobre eles e, em muitas ocasiões,anteciparam o assunto por sua própria iniciativa.

O enfoque centrado no conceito de representações sociais, apartir do conceito desenvolvido por Moscovici (1976), que informateórica e metodologicamente a pesquisa, significa uma abordagemcompreensiva que percebe o ator social como um agente que inter-preta o mundo à sua volta com uma atitude que contém intençõese, portanto, projetos de ação. Ainda que fortemente influenciadopelo pensamento de Durkheim, Moscovici desloca suas categoriasexplicativas, de um espaço essencialmente social para uma dimen-são entre o social e o psicológico, o que torna seu conceito de repre-sentação social mais maleável, dinâmico e operacional do que o con-ceito de representação coletiva de Durkheim, principalmente quandoaplicado em nível cotidiano de sociedades complexas, como é o casodesta pesquisa. Neste contexto, a dimensão qualitativa da pesquisaprivilegia a profundidade das informações, em detrimento da suaextensão. A tradição acadêmica da Psicologia Social tem mostrado aimportância deste tipo de abordagem através do estudo de repre-sentações simbólicas, avaliações de sentido e classificações cognitivasque indivíduos ou grupos sociais realizam no interior de uma de-terminada cultura. Para um aprofundamento no assunto, ver a res-peito Sá (1993) e Spink (1994).

Após cada entrevista - na tradição da pesquisa etnográfica - ospesquisadores realizaram um relatório no qual informavam aspectosemocionais não verbais emitidos pelo entrevistado e os sentidos ge-rais e conexões teóricas que a entrevista remetia. Após a transcrição

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de cada entrevista, procedeu-se a várias leituras, com o propósito deencontrar unidades de significados, ou núcleos de sentido que in-formaram o conteúdo de análise, de acordo com os procedimentosapropriados para uma pesquisa qualitativa descritos por Denzin &Lincoln (1994) e Bardin (1977). Neste contexto, a unidade de sig-nificação liberta-se naturalmente de um texto analisado segundocritérios relativos à teoria que serve de guia (BARDIN, 1977, p. 105).

Devido ao fato da abordagem qualitativa do tema da pesqui-sa ter sido muito pouco explorado pela literatura, adotamos ummodelo que considera as categorias analíticas como abertas, extraí-das a partir do próprio material empírico, com um sentido maisdescritivo e exploratório. Um modelo fechado seria adequado paraum tema amplamente explorado, que permita com que as categoriaspossam ser definidas a priori. Na conclusão do trabalho, faremosuma tentativa de inferir os resultados da pesquisa a algumas ques-tões teóricas mais amplas.

AS VÍTIMAS PESQUISADAS: ANÁLISE DOS DADOS

Os 20 sujeitos entrevistados são, todos eles, moradores domunicípio de Campinas, sendo 15 deles do sexo masculino, comidade entre 19 e 46 anos, e 5 do sexo feminino, com idade entre 18e 25 anos. Há uma consistência entre a composição dessa amostra e ofato da grande maioria dos acidentados no trânsito no mundo inteiroserem jovens do sexo masculino, como demonostra a OMS (1984).

A grande maioria da população pesquisada (85%) apresentaum grau de escolaridade que não ultrapassa o segundo grau com-pleto, sendo que 3 indivíduos tinham curso superior. Quanto àrenda individual e familiar, observamos uma variação entre R$ 250,00a R$ 1.500,00 e entre R$ 400,00 a R$ 6.000,00 respectivamente.Com relação à profissão, notamos 3 estudantes do 2

o. e 3° graus, 3

técnicos de escritório, 1 bancário, 4 operadores de máquina, 1 pe-dreiro, 2 vendedores, 1 jardineiro autônomo, 1 técnico em eletro-mecânica, 2 programadores de computação e 3 desempregados.

No que concerne à situação em relação ao acidente da vítimaentrevistada, 5 delas eram condutores de automóvel particular (3 ho-mens e 2 mulheres), 4 de motocicleta (todos homens) e 1 de bicicleta

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(homem); 3 pedestres atropelados (homens); 5 passageiros de carro ouperuas (3 homens e 2 mulheres) e 2 de moto (1 homem e 1 mulher).No contexto desta pesquisa, é irrelevante o fato do CID consideraracidente de bicicleta como acidente de transporte e não de trânsito.

Dentre os AT, a maioria (13) ocorreu em fins de semana ouferiados, aqui considerado das 20:00 hs de sexta feira ou véspera deferiado até as 6:00 hs da segunda-feira ou 24:00 hs do feriado. Operíodo noturno, incluindo a madrugada, foi o que mais produziuacidentes (11), vindo a seguir o período da tarde (8). O período damanhã é o que menos produziu acidentes (1) em nossa amostra.Tais números são consistentes com o fato de que tanto o períodonoturno e madrugada e os fins de semana e feriados serem os quemais produzem acidentes de trânsito (SETRANSP/EMDEC, 2000).

A maioria da população entrevistada considerava-se estressadapor ocasião do AT. No contexto dessa pesquisa, estresse significaalterações fisiológicas e psicológicas mais drásticas decorrentes detensões, pressões ou fricções inerentes a certas situações de vida, detrabalho e de relacionamento social e familiar. No âmbito das rela-ções sociais, os termos “sofrimento” ou “desgaste mental” têm sidoutilizados com o mesmo sentido por Dejours, (1992) e Seligmann-Silva (1994). Trata-se de uma definição que se alinha perfeitamentecom o próprio entendimento de senso comum dos entrevistados.

A respeito do principal motivo de estresse, houve 10 referên-cias relacionadas ao salário baixo e falta de dinheiro; 5 referências aproblemas de saúde na família e 3 referências a problemas conjugais(inclusive brigas com namorado) e conflitos na família. Além dessassituações, foram mencionados ainda problemas com vizinhos (1),insatisfação com o emprego (1) e desemprego (2). Apenas 3 referi-ram não estar passando por nenhuma situação de estresse.

Com a exceção de um entrevistado, que revelou ter cirrosehepática em função de alcoolismo, todos os demais afirmaram que,até o momento do acidente, não havia qualquer comprometimentomais sério à saúde.

A questão de ingestão de bebida alcoólica mostrou-se genera-lizada entre os participantes, mas apenas 5 admitiram ter ingeridoálcool no dia do acidente. A bebida social em fins de semana mos-trou ter a maior prevalência de respostas (8), vindo a seguir a bebi-

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da social esporádica (6) e a bebida regular sem exagero (3). Apenas3 indivíduos afirmaram beber regularmente ou ocasionalmente emgrande quantidade. Quanto ao uso de drogas ilícitas, ninguém re-velou ser um usuário freqüente e não houve admissões desse tipo deconsumo no dia do acidente.

A amostra pesquisada revelou uma incidência significativa denão uso de cinto de segurança, apesar da nova lei do trânsito, que tornao uso desse dispositivo de segurança obrigatório e prevê multa severapara os infratores. Nos 10 acidentes que envolveram automóveis, em 3ocasiões os entrevistados mencionaram não estarem usando o cinto,todos eles de passageiros do banco traseiro. Com respeito ao uso decapacete para ciclistas e motociclistas, a incidência de não uso mostrou-se ainda mais séria. Dos 7 envolvidos com motos e bicicleta, a maioria(4) afirmou não estar usando capacete por ocasião do acidente.

Analisando os aspectos que poderiam estar envolvidos na si-tuação dos acidentes, segundo entendimento das vítimas entrevis-tadas, verificamos que, com a exceção de um caso, eles acontecerampor falha humana ou imprudência das pessoas envolvidas. Além docaso em que os amortecedores gastos provocaram o capotamento deum veículo, não houve acidentes ocasionados por problemas mecâ-nicos, elétricos, de manutenção dos veículos; nem por más conser-vações de estradas, ruas, avenidas e nem, ainda, por condições cli-máticas desfavoráveis. Apenas em um caso, no qual a vítima condu-zia uma moto, foi lembrado que condições climáticas desfavoráveis(neblina) influenciaram o acidente.

A gravidade do acidente foi uma constante em todos os casospesquisados, motivo pelo qual os pacientes estavam hospitalizados.Muitos quebraram pernas, braços e pescoço (9), alguns perfuraramórgãos internos, tais como o estômago, pâncreas e intestino (4),outros tiveram contusões sérias na cabeça (4), os demais (3) tiveramferimentos graves em várias partes do corpo.

A hospitalização e a insegurança das vítimas

O papel de doente, estudado por Parsons (1951) um papelque se manifesta tanto ao nível da ordem social como da estruturada personalidade, significa que a sociedade somente concede isen-

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ção de certas responsabilidades e desculpa o paciente de suainatividade se ele concordar com as prescrições legitimamente de-terminadas pela ordem médica. Tal concordância significa perderuma boa parcela de autonomia e liberdade pessoais. No hospital,esta perda é ainda mais dramática, condição esta que, de um modogeral, os pacientes entrevistados não demonstraram apreciar. Em-bora seja um autor clássico, cuja posição teórica tem sido considera-da ultrapassada pelo desenvolvimento das Ciências Sociais moder-nas, é importante considerar que o pensamento de Parsons sofreuuma considerável revitalização a partir da Teoria da Ação Comuni-cativa de Habermas (1993).

A hospitalização significa, sobretudo, uma mudança radicalna rotina e nos hábitos do paciente, ou seja, passa-se do conforto dolar e da família para um ambiente que causa uma certa estranheza,contribuindo pouco para compensar a situação de vulnerabilidadeemocional. Os medos e as dificuldades que as vítimas de AT relata-ram relacionam-se com as seqüelas físicas decorrentes do acidente,com a possibilidade de perder alguma parte do corpo, com os riscosda cirurgia, com a questão da morte e com a recuperação da saúde.Um quadro de ansiedade foi observado generalizadamente entre osentrevistados, no sentido de poderem assumir o mais rápido possí-vel o “controle” de suas vidas e, assim, retomar as atividades cotidi-anas, ao trabalho e ao vínculo com a família.

Diante desse momento de insegurança, a reflexão sobre o va-lor da vida adquire contornos de mudança de atitudes e comporta-mentos que, até o momento do acidente, não eram questionados.Os trechos de entrevistas abaixo revelam esses vários aspectos.

Meu maior medo é ficar paralítico. O médico disse que vou ter quefazer bastante fisioterapia, mas vou ficar bom. Eu tenho pensadona minha família, porque estou desempregado e não sei quandovou poder trabalhar outra vez, também não sei o que vai acontecercomigo. Teve dias em que fiquei bastante nervoso pensando emtudo o que aconteceu, tudo o que eu fiz que eu poderia ter evitado.Às vezes a gente só aprende quando acontece uma desgraça como essa.(condutor de automóvel, 31 anos).

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A parte mais difícil está sendo a recuperação, porque eu ainda nãosei se o tratamento vai dar certo. Eu ainda estou irreconhecível,com a cabeça raspada por causa da cirurgia, inchada de tantosoro, deformada mesmo, então está sendo muito difícil para mim.Às vezes eu me olho no espelho e não me reconheço, porque tudomudou em mim, não só fisicamente, mas também os sentimentos.Antes eu achava que tinha domínio sobre a minha vida, agoranão, eu tenho que ficar aqui deitada, parada, aguardando alta,não posso fazer nada até me recuperar. (passageira de automóvel,25 anos).

A interpretação das causas do AT

Ao serem inquiridos sobre a causa principal do acidente, 11dos entrevistados considerou-a conseqüência de imperícia ou falhahumana; 06 da falta de sorte e 03 da inveja ou mau-olhado de outraspessoas. É importante mencionar que, em 6 ocasiões, estas últimasinstâncias foram consideradas como meios coadjuvantes secundáriosdo AT. Os trechos de entrevistas abaixo mostram tais aspectos.

O acidente aconteceu porque o outro veículo invadiu a preferencialem alta velocidade e bateu no meu carro. Foi só por causa daimperícia e imprevidência que houve o acidente. Que outra causapoderia ter? (condutor de automóvel, 26 anos).

O meu acidente tinha que acontecer, porque nada na vida aconte-ce por acaso, tudo o que você faz tem uma razão de ser, não dápara culpar ninguém pelo que aconteceu, o que tem que aconteceracontece, foi coisa do destino, é coisa que tinha que acontecer. (con-dutor de motocicleta, 29 anos).

Foi inveja de um colega de serviço, nós brigamos uma vez, porqueele não suporta ver alguém bem sucedido. Quando eu comprei mi-nha moto, ele ficou falando, “nossa !! tá de moto nova ? tá rou-bando, né ? Ele ficou mordido de inveja e só pode ter sido isso quecausou o acidente. (condutor de motocicleta, 27 anos).

A questão da causação de infortúnios em geral envolve umaquestão mais ampla de cosmologia cultural. Com respeito à causação

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de doenças, Foster & Anderson (1978) dividiram sistemas médicospopulares em dois grupos básicos, naturalístico e personalístico,sendo o primeiro relativo a explicações de causas de doenças ouinfortúnios em termos naturais e o segundo em termos pessoais,envolvendo freqüentemente conteúdos mágicos ou religiosos. Essasúltimas, como muito bem demonstraram Gluckman (1973) e EvansPritchard (1937), estão inevitavelmente relacionadas com a organi-zação e a estrutura social.

Tal questão foi também muito bem tratada por Jung (1971)a nível psicológico. Trata-se de dar uma interpretação pessoal a umacoincidência simbolicamente relevante, que une dois tipos de even-tos. Nesta ação psicológica, em que não cabe o acaso, Jung a deno-minou “coincidência significativa”, ou seja, um tipo de pensamentoarquetípico, que é hegemônico na maior parte das culturas nãoOcidentais modernas, mas que também se manifestam nas “som-bras” da modernidade.

Embora tivesse havido na entrevista menção por parte doentrevistador em relacionar o AT com uma dimensão política oueconômica mais ampla, em nenhum caso esse tipo de referênciarecebeu sustentação.

O automóvel particular, o sistema de transporte coletivo eas novas leis de trânsito

Apesar do choque terrível que o acidente provocou, a grandemaioria dos entrevistados ainda continuava valorizando o automó-vel individual. Não houve um único discurso de desvalorização des-se tipo de veículo ou de mudança de comportamento no sentido demaior utilização do transporte coletivo. Tanto os condutores comoos passageiros percebiam e continuavam a perceber o automóvelcom um sentido positivo, com significado de liberdade, indepen-dência e status, além da sua utilidade prática.

De um modo geral, os entrevistados sustentaram que o pro-blema não é o carro em si, mas o motorista que o conduz inadequa-damente. Já a motocicleta foi percebida como um tipo de veículoque contém uma ameaça muito maior à segurança física. Mesmoassim, apenas uma entrevistada decidiu enfaticamente nunca mais

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andar de motocicleta, sem estender essa decisão para os automóveis.Os demais chegaram, no máximo, a dizer que não sabiam se volta-riam a conduzir ou andar nesse tipo de veículo.

Já as representações sobre o transporte coletivo mostraram-se,em geral, bastante negativas. Embora a municipalização do sistemade trânsito e transporte em Campinas seja um fenômeno pioneiro erecente, com vários projetos inovadores, ainda não obteve avançosconsistentes na questão do transporte coletivo. Mesmo quando com-parado a outros municípios brasileiros como, por exemplo, Curitiba,Campinas encontra-se em nível consideravelmente defasado(QUEIROZ e MARIN, 2000). Em tal contexto, não foi surpresaverificar que a população entrevistada foi unânime em reconhecer asdeficiências do serviço, como mostra o trecho de entrevista abaixo.

Eu não gosto de andar de ônibus, porque eu sempre acabo ficandocom dor de cabeça. O lugar é abafado, apertado e, dependendo dohorário, você vai como sardinha em lata. É simplesmente horrível.Por isso eu evito usar ônibus o máximo que puder. Mas para quemprecisa, o único jeito é usar, porque melhorar tão cedo não vai.(condutora de automóvel, 25 anos).

As vítimas entrevistadas consideraram que as novas leis me-lhoraram o trânsito na cidade e reconheceram que as pessoas, de ummodo geral, as estão respeitando mais do que antes. Para eles, noentanto, não basta ter uma lei severa se ela não for aplicada igual-mente para todas as pessoas e também se não houver fiscalizaçãoeficiente. Os motoqueiros sentiram-se prejudicados, nesse sentido,por causa do que eles consideram perseguição contra as motos. Ostrechos de entrevistas abaixo revelam tais aspectos.

A nova lei é bastante rigorosa, obriga a gente a andar nas ruascom cuidado, atenção. Você sabe como é, quando mexe no bolso, éaí que o povo respeita mesmo. Eu vejo na rua muita gente respei-tando limite de velocidade, sinal, e a faixa de pedestre. Eu achoque está funcionando sim, pelo menos é o que eu tenho visto. Aúnica coisa que eu não acho certo é que os polícias geralmente dãomuito mais “blitz” em moto do que em carro. Eles consideram omotoqueiro irresponsável e bagunceiro, e não é bem assim, existem

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as exceções. Eu acho que a lei tem que valer para todos, só isso vaiobrigar as pessoas a dirigir de forma correta e, assim, diminuir osacidentes. (condutor de moto, 29 anos).

Diante da questão sobre o que poderia ser feito na cidade deCampinas para diminuir os acidentes e melhorar o trânsito e quemdeveria se responsabilizar por isso, a grande maioria dos entrevista-dos concluiu que as medidas que deveriam ser tomadas já estavamsendo colocadas em prática e que foram reforçadas com as novas leisde trânsito. Os aspectos que poderiam ser melhorados dizem res-peito a uma maior fiscalização pela polícia e à melhoria no asfalto deruas e estradas. Contudo, todos concordaram que não adianta tertudo isso se as pessoas não fizerem a parte delas, que é respeitar asleis de trânsito. A idéia de desenvolver uma campanha educativapara um trânsito civilizado recebeu apoio unânime.

A violência na vida moderna e no trânsito

Além dos sintomas típicos da modernidade, tão bem estuda-dos por Giddens (1991; 1995) e Habermas (1993), relacionadoscom a dissolução da comunidade local, da esfera econômica atuandosem controle normativo e da alienação dos indivíduos quanto aosprocessos sociais que influenciam suas vidas, é necessário considerar,ainda, a condição de subdesenvolvimento. Tal condição acrescenta,àquela violência mais geral da modernidade, outros níveis mais espe-cíficos, relacionados com a falta de amparo social às situações de criseeconômica, de desemprego, de doença e de falta de segurança.

A situação de violência no trânsito ocorre principalmente emcidades que ultrapassaram a condição de porte médio, como é ocaso de Campinas. Em nossa amostra, apenas 4 dos 20 indivíduospesquisados nunca tinham sofrido antes um outro AT ou um assal-to a mão armada. Ao restringir a questão a apenas um ou mais AT,10 indivíduos, ou seja, a metade de nossa amostra, encaixou-se nes-sa situação. O trecho de entrevista abaixo revela não só o aspecto daviolência implícita no acidente específico ao trânsito, mas tambémo medo e insegurança, que acompanham a vida urbana em geral,prejudicando o cidadão de expressar suas opiniões e emoções.

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Logo depois do acidente, mesmo com a perna machucada, eu saí docarro e tive uma reação que me surpreendeu. Eu fiquei muito bravacom o motorista que provocou o acidente, sem ter percebido que eleestava bêbado. Se ele estivesse com uma arma, ele poderia ter atiradoem mim. Eu preciso mudar esse tipo de reação, porque se eu encontroum cara mais violento eu estaria no cemitério e não aqui no hospitalsó com a perna machucada. Eu preciso me controlar mais porque,em várias discussões de trânsito, muitas pessoas perdem a vida, e eucorri esse risco à toa. (condutora de automóvel, 25 anos).

Dos 20 entrevistados em nossa amostra, apenas 3 afirmaramnão ter nenhum motivo de estresse por ocasião do acidente. A gran-de maioria, portanto, apresentou motivos para poder considerar-secom algum tipo de estresse, físico ou psicológico. Parte desses moti-vos devem-se, em parte, às perturbações no relacionamento huma-no e, em parte, às condições de trabalho. Os trechos de entrevistasabaixo ilustram tais situações:

Eu estava muito ansioso e muito apressado, porque eu ia visitar aminha namorada, a gente tinha discutido por telefone, então, euestava querendo chegar logo lá. Todos os dias eu acordo e penso que,se eu tivesse tido mais cuidado, se eu não estivesse tão estressado,nada disso teria acontecido. (condutor de automóvel, 31 anos).

Eu estava trabalhando de segunda à segunda, era direto, sem fol-ga, tinha dia que eu entrava às 22:00h e saia às 11:00h do outrodia. O acidente aconteceu porque eu saí tarde aquele dia, estavafazendo hora extra e estava muito cansado. Eu vinha correndo,mas era o outro carro que deveria parar no cruzamento. Não deutempo de frear a moto, eu bati na porta dele e voei por cima docarro. Acho que vai demorar um bom tempo antes de poder operaras máquinas de novo na fábrica. (motoqueiro, 38 anos).

A relação entre meio urbano moderno, condições de trabalho,violência e estresse tem sido analisada apropriadamente por Dejours(1992), que mostra como, em tal contexto, o trabalhador pode tor-nar-se uma pessoa estressada a qualquer momento, correndo riscosde sofrer ou de provocar vários tipos de acidentes, inclusive o detrânsito. Dejours concentra-se, em particular, nas condições de tra-balho, que levam à alienação e ao estresse.

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A despersonalização do indivíduo, que caracteriza o mundomoderno contemporâneo, não está presente apenas no ambientede trabalho, ela também se estende fora dele para todos os outroscontextos que ele mantém contato, como por exemplo, o ambientefamiliar, o trânsito, o supermercado, entre outros, de tal modo queo tempo de trabalho e o tempo fora do trabalho formam umcontinuum dificilmente dissociável. Nas palavras de Dejours:

Numerosos são os operários e empregados submetidos à organizaçãocientífica do trabalho, que mantém ativamente, fora do trabalho edurante os dias de folga, um programa onde atividades e repouso sãoverdadeiramente comandados pelo cronômetro. Assim, eles conser-vam presente a preocupação ininterrupta do tempo permitido a cadagesto, uma espécie de vigilância permanente para não deixar apagaro condicionamento mental ao comportamento produtivo. Assim, oritmo do tempo fora do trabalho não é somente uma contaminaçãomas antes uma estratégia, destinada a manter eficazmente a repres-são dos comportamentos espontâneos que marcariam uma brecha nocondicionamento produtivo. (DEJOURS, 1992:47).

Nessa obra, Dejours analisou também a separação radicaldo trabalho manual do trabalho intelectual, que impede o traba-lhador de desenvolver o seu potencial criativo e gera insatisfação eangústia, principalmente naquele que processa um trabalhorepetitivo, tornando-o vulnerável às doenças, sejam elas mentais ousomáticas. O autor concluiu que as regras pré-estabelecidas, quedeterminam o processo de trabalho, despersonalizam o indivíduo,desumanizam-no, transformando-o em um instrumento de um pro-cesso ao qual ele não tem controle algum.

Acidente de motocicleta

É amplamente sabido que a proporção de feridos nos acidentesde motocicleta é muito maior do que naqueles acidentes de trânsito,que envolvem automóveis. É importante notar que, num cenário dequeda significativa no índice total de mortes ocorridas no trânsito nomunicípio de Campinas, de 54,3% entre 1995 a 1999, houve umaumento brutal de mortes entre condutores e ocupantes de motos,

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da ordem de 209% neste mesmo período (SETRANSP/EMDEC,2000). A gravidade dos ferimentos do motociclista ou de seu passa-geiro, quando envolvidos em acidentes, também é muito maior doque nos demais acidentes de veículo a motor. Há uma estimativa deque a proporção de feridos por acidente de trânsito seja de 90% paraos acidentes de motocicleta e de 9% para os automóveis (CDC, 1995).Outro fator que devemos destacar é que nem todos os motoqueirostêm o hábito de usar equipamentos de segurança, principalmente ocapacete, que permite diminuir o impacto da colisão na região dacabeça, evitando fraturas graves no crânio e a morte.

Observarmos entre a população pesquisada que o grupo que maisapresentou envolvimento em outros acidentes de trânsito foi o dos con-dutores de motocicleta. Considerando os 4 condutores de motos e os 5de automóveis em nossa pesquisa, concluímos que a média anual deacidentes sérios (que provocam algum tipo de ferimento) entre os pri-meiros é de 2,1 e, entre os segundos, 0,3. A relação entre estas 2 médiasmostra que há 7 vezes mais acidentes sérios, que provocam vítimas,entre motoqueiros do que entre motoristas de automóveis. O trecho deentrevista abaixo revela alguns aspectos do acidente de motocicleta, queremete à imprudência do motorista.

Um outro acidente sério de moto foi quando eu estava andandoem alta velocidade, uns 100km/h, numa rua no bairro ondemoro, e um carro saiu de repente na minha frente e eu bati atrásdele. Eu não estava usando capacete, mas quebrei o braço, aperna, e quem me socorreu foi o próprio sujeito do carro, que melevou ao hospital. Eu não costumava andar de capacete no meubairro, só quando eu ia pegar alguma estrada, mas agora eu usoem qualquer lugar que eu vá. Esse acidente aconteceu faz mais oumenos um ano. (condutor de moto, 25 anos).

Todos os motoqueiros entrevistados mostraram as marcas dosacidentes, atuais e anteriores, com visível satisfação e vaidade, semqualquer conotação de inspirar pena ou compaixão. Tal gesto signi-fica que há uma forte implicação simbólica entre a motocicleta e asfreqüentes transgressões no trânsito. Para a maioria dos motoqueirosentrevistados, a moto é sinônimo de liberdade, de emoção, de

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adrenalina, de aventura e de desafios. O ato de transgredir as leis,correr riscos e superar desafios, em uma busca constante pelo prazerde viver perigosamente, é cultuado como se fora um ato heróico, detal modo que as cicatrizes dos acidentes significam sinais que sereferem a esse valor.

Um dado importante, diretamente relacionado com a ques-tão da transgressão na adolescência, é que, dos 4 motoqueiros entre-vistados, 3 começaram a dirigir moto quando eram menores de ida-de e não possuíam habilitação. O outro só não dirigiu por causa dapressão cerrada de seus pais, que consideravam esse tipo de veículomuito perigoso.

A adolescência, a passagem intermediária da infância para a vidaadulta, é marcada por mudanças corporais, comportamentais e psico-lógicas muito significativas. A sociedade de consumo reforça uma cul-tura que enfatiza o choque com valores considerados “ultrapassados”, aomesmo tempo em que realça novas idéias e conceitos. (KNOBEL, 1980).

Para os condutores de motocicleta entrevistados, pergunta-mos ainda se continuariam dirigir moto e se iriam dirigir de formadiferente. Todos responderam que continuariam dirigindo, mas demodo mais cuidadoso, com maior precaução. Destacaremos a se-guir alguns trechos de entrevistas que ilustram o significado que amoto tem para os motoqueiros e as transgressões que eles assumi-ram, ainda que, após o último acidente, tivessem considerado teraprendido uma lição que evitaria novas infrações.

Eu sempre achei moto o máximo, é econômica, dá para você estaci-onar em qualquer espaço, é mais barata do que um carro, alémdas emoções que ela proporciona. Quando estou muito estressadodo trabalho, eu pego a minha moto e saio por aí, vou dar umavolta, a sensação que eu tenho é de liberdade, de estar solto nomundo, de ser dono de mim mesmo. O único problema é que,infelizmente, o motoqueiro não é respeitado no trânsito e o risco deacontecer um acidente é grande. Mesmo assim, eu vou compraruma moto nova, uma vez que a minha ficou totalmente destruídanesse acidente, e vou procurar dirigir com mais cuidado. (condutorde moto, 29 anos).

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Eu sempre transgredia as leis de trânsito, sempre passava em sinalvermelho, corria muito além do limite de velocidade, tirava fina decarros, empinava e derrapava a moto, tirava racha, tudo isso. Depoisdesse último acidente eu deixei de achar isso bonito, pelo contrário,eu acho que é burrice, porque a gente coloca em risco a própria vidae a dos outros. (condutor de moto, 26 anos).

Os AT envolvendo motocicletas em nossa amostra relacio-nam-se tanto com situações de lazer como com as de trabalho. Asentrevistas demonstraram que, no primeiro caso, os acidentes (2)conectaram-se com uma tendência de transgressão, relacionada prin-cipalmente com os rituais da adolescência. No segundo caso, osacidentes (2) tiveram a ver com uma condição perversa impostapelo mercado de trabalho, que promove estresse e incapacidade domotorista agir com equilíbrio e tranqüilidade. O trecho de entrevis-ta abaixo revela este último aspecto.

Eu nunca fui de andar em turma de moto, fazendo arruaça por aí.Os acidentes que eu sofri, seis deles foi quando eu era “motoboy”,mas sem conseqüências graves. Nessa época, eu não respeitava muitosinal ou o limite de velocidade, porque a gente tinha que fazer asentregas rápido. Eu tinha que podar os carros, passar em sinalvermelho, andar correndo com a moto, essas coisas que todo o“motoboy” faz, só que agora a moto é só para eu passear, e assimnão há necessidade da gente ficar transgredindo. Além disso, comessa nova lei, transgredir ficou ainda mais complicado.

CONCLUSÃO

Uma característica comum às representações sociais analisa-das neste artigo repousa no fato delas interpretarem o acidente detrânsito à luz de uma perspectiva centrada no universo mais imedi-ato do entrevistado. Em tal contexto, as representações remetem,diretamente, a uma falha comportamental, seja da própria vítimapesquisada, seja do outro protagonista do acidente. As representa-ções remetem também, indiretamente, à interferência de algum re-lacionamento próximo (quando, por exemplo, a vítima considerou-se estressada por causa de uma namorada ou afetada pela ação de

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mal olhado ou inveja) ou de uma condição negativa nas condiçõesde trabalho (obrigação de cumprir horas extras estressantes ou ne-cessidade de rapidez na entrega de mercadorias). De um modo ge-ral, as representações sociais relacionam-se a um micro-cosmos quereflete e reconstrói dimensões psicológicas e sociológicas mais am-plas, que merecem ser dimensionadas nesta conclusão.

Como vimos, o AT obriga o pesquisador a confrontar-se como fato de que a grande maioria dos acidentes de trânsito ocorre entreuma população masculina jovem, no interior de 2 tipos principaisde atividades, o lazer e o trabalho. Tal característica é fundamentalpara informar os programas desenvolvidos pelo poder público, quevisam à mudança de valores, atitudes e comportamentos no trânsito,por meio da Educação e Ações Preventivas.

Para serem efetivos, tais programas devem atentar, necessari-amente, para as características sócio-culturais e psicológicas dos gru-pos alvos, como preconiza a OMS (1984). Mudanças de atitudesem relação à segurança no transito implicam em mudanças em ou-tras áreas do comportamento como, por exemplo, o uso de bebidaalcoólica e consumo de drogas, especialmente entre adolescentes.Há estudos indicando que cerca de 50% dos acidentes graves detrânsito se associam com o uso de drogas ou de álcool (OMS, 1984).

Como vimos, a impulsividade, a ousadia, a influência do grupona tomada de decisões constituem fatores que levam o adolescente auma tendência de infringir as normas sociais, entre as quais as detrânsito (alta velocidade, desrespeito aos sinais, consumo de álcool edrogas). Em nossa pesquisa, tais aspectos mostraram-se particular-mente verdadeiros entre os condutores de motocicletas, cujos valo-res culturais remetem, como vimos, a atos “heróicos”, que pressu-põem a transgressão das leis de trânsito.

Quando as representações sobre os acidentes de trânsito refe-riram-se às condições de trabalho, então, elas remeteram a dimen-sões de ordem mais sociológica, envolvendo representações sobreestresse ou desgaste físico e psicológico, além de reflexões sobre otrânsito em geral, incluindo o novo código de trânsito, o sistema detransporte coletivo e a violência urbana como tópicos correlatos.Este âmbito refere-se a uma dimensão mais estrutural, dependentede fatores que escapam ao controle comportamental proposto por

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programas de prevenção e educação no trânsito. Aqui, os problemasdo trânsito relacionam-se, direta ou indiretamente, ao modo deprodução econômico e social e somente o desenvolvimento de umpensamento crítico voltado a este modo de produção pode apontarmeios de promover consciência, cidadania e, conseqüentemente, umtrânsito mais civilizado.

No contexto da modernidade radical em que vivemos, o rit-mo de vida acelerado nas cidades, o individualismo, o desemprego,a competição, o trabalho, a luta pela sobrevivência podem tornar-sefontes permanentes de estresse no dia-a-dia, que levam o indivíduoa desenvolver algum quadro de enfermidade física ou mental. Essequadro retrata um paradoxo mencionado por Giddens (1995), ondeo homem modifica o seu modo de vida em nome do progresso e doavanço tecnológico, com o intuito de obter uma qualidade de vidamelhor; ao mesmo tempo, ele é atingido pelas conseqüênciasimpremeditadas desse ato, que lhe causam muito sofrimento e, pro-vavelmente, uma situação de estresse ainda maior.

Tanto Habermas (1993) quanto Giddens (1991; 1995)enfatizaram, nesse contexto, o descontrole de um sistema abstratode economia e poder, distanciado do controle comunitário e quenão tem qualquer responsabilidade sobre suas ações. Se houver umaguerra nuclear, uma crise econômica, desemprego em massa, au-mento da criminalidade, de quem seria a culpa? De ninguém, emparticular, mas de um sistema abstrato que não assume responsabi-lidade sobre seus atos. Giddens usou uma analogia desse processocom um mito proveniente da Índia, em que um carro celeste, ocarro de Jagrená, corre descontrolado, sem rumo e sem propósito,atropelando a todos os que se deparam em seu caminho.

Se o processo de modernidade radical é considerado proble-mático tanto por Habermas como por Giddens no contexto do mun-do desenvolvido, que adota uma certa preocupação em humanizartambém o processo de trabalho, como a vida urbana e restaurar oprocesso comunicativo da comunidade. Em um contexto em desen-volvimento, como o do Brasil, em que a preocupação com a saúde e obem estar do trabalhador ocorre apenas no setor mais avançado daeconomia, o processo de modernidade mostra-se com uma face mui-to mais problemática, que também se reflete no trânsito.

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Em escala mundial, de cada 100 mortes em AT, 70 são habi-tantes de países subdesenvolvidos. Entre estes últimos, cerca de umterço são crianças (LUNDEBYE, 1997). Esse mesmo estudo apon-ta que, na América do Sul, os atropelamentos fatais respondem pormais da metade das mortes ocorridas no trânsito. Já nas nações ri-cas, a vítima mais comum em AT são os ocupantes dos automóveis,motoristas e passageiros.

O uso descontrolado do automóvel em meio urbano, em pa-íses em desenvolvimento, significa um custo social e cultural signi-ficativo porque, além de provocar ruído e poluição, ele segrega eimpede a integração de indivíduos. Esse aspecto é particularmenteverdadeiro entre as classes sociais mais baixas, que constituem amaioria da população. Nesses meios, a rua tem um significado deintegração social muito maior do que nas classes sociais mais altas,uma vez que é na rua, na condição de pedestre, que o pobre sedesloca e se socializa.

A grande diferença nos níveis de AT entre países desenvolvi-dos ou em desenvolvimento está estreitamente vinculada à responsa-bilidade do poder público em implementar políticas adequadas efazer cumprir a lei. No Brasil, até recentemente, os altos índices deAT sempre estiveram associados à falta tanto de uma legislação, comode políticas públicas adequadas, em relação a tal fenômeno. A partirde 1988, o Novo Código de Trânsito veio dotar, pelo menos aonível da legislação, um instrumento adequado para se poder lidarcom o problema. A educação para o trânsito - um aspecto funda-mental dessas políticas públicas - está apenas começando a ser pro-movida no país.

Conquanto o Novo Código de Trânsito tenha introduzidouma disciplina muito maior no trânsito, produzindo, em conseqü-ência, uma redução nos índices de mortalidade, ele necessita deações coadjuvantes provenientes de uma política pública adequada,que envolva, através da educação no trânsito, uma mudança cultu-ral profunda no sentido de transformar motoristas e pedestres emcidadãos mais conscientes em relação aos seus direitos e deveres.

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Marcos S. Queiroz é Antropólogo, doutor pela Universidade de Manchester, Inglaterra,pesquisador do Centro de Memória, Unicamp, Professor dos Programas de Pós gradua-

ção em Medicina e Enfermagem da Unicamp.O endereço eletrônico do autor é:

[email protected]/

Patricia C. P. Oliveira é Psicóloga, mestre pelo Departamento de Psiquiatria e PsicologiaMédica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Assessora de RH da Organizaçãodas Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – FAO, prestando serviço na Secretaria

do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade do Município de São Paulo.

Marcos S. Queiroz e Patrícia C. P. OliveiraAcidentes de trânsito: uma análise a partir da perspectiva das vítimas em Campinas.Recebido:16/6/20031ª revisão: 3/9/2003Aceite final: 21/11/2003