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Anais FLIPA | 26 A VIAGEM DE CHIHIRO: Uma leitura do Fantástico através do Simbólico na obra de Hayao Miyazaki Jária Laís Correia da Silva [email protected] João Gabriel Carvalho Marcelino [email protected] RESUMO Este trabalho foi elaborado com o objetivo de estudar a narrativa do filme A viagem de Chihiro (2001), animação japonesa produzida e dirigida por Hayao Miyazaki, observando para tanto a simbologia que é carregada no filme sobre alguns personagens. Para a realização deste estudo, utilizam-se os como fundamentação teórica as pesquisas de Pimenta (2006), Todorov (2014), Orgado (2010), e Chevalier e Gheerbrant (2015). Com a pesquisa foi possível perceber que o universo fantástico que Chihiro encontra sua narrativa é carregado de simbolismos que tornam o universo percorrido pela protagonista um mundo cheio de maravilhas e absurdos, revelando a sensibilidade da natureza em relação as ações humanas e utilizando-se de recursos como a metáfora para apresentar críticas ao comportamento humano e a sua relação com o meio ambiente através da jornada da protagonista. Palavras-chave: A viagem de Chihiro. Cinema. Fantástico. Hayao Miyazaki. Símbolo. SPIRITED AWAY: an analysis of the fantastic through the symbolic in hayao miyazaki’s work ABSTRACT This paper aims to study the narrative of the movie Spirited Away (2001), Japanese animation produced and direct by Hayao Miyazaki, through the observation of the symbologies present in the construction of some characters. To carry it out, we base on the researches of Pimenta (2006), Todorov (2014), Orgado (2010) and Chevalier and Gheerbrant (2015). With this research, it was possible to observe that the fantastic universe in which the movie sets its narratives is filled with symbologies that turns the world explored by the main character into a universe of wonders and absurd, unveiling the environment’s frailty in face of human’s actions and making use of metaphors to criticize human behavior and its relationship with nature through the main character’s journey. Keywords: Spirited Away. Cinema. Fantastic. Hayao Miyazaki. Symbol.

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Anais – FLIPA | 26

A VIAGEM DE CHIHIRO: Uma leitura do Fantástico através do Simbólico na obra de

Hayao Miyazaki

Jária Laís Correia da Silva [email protected]

João Gabriel Carvalho Marcelino [email protected]

RESUMO

Este trabalho foi elaborado com o objetivo de estudar a narrativa do filme A

viagem de Chihiro (2001), animação japonesa produzida e dirigida por Hayao

Miyazaki, observando para tanto a simbologia que é carregada no filme sobre

alguns personagens. Para a realização deste estudo, utilizam-se os como

fundamentação teórica as pesquisas de Pimenta (2006), Todorov (2014), Orgado

(2010), e Chevalier e Gheerbrant (2015). Com a pesquisa foi possível perceber

que o universo fantástico que Chihiro encontra sua narrativa é carregado de

simbolismos que tornam o universo percorrido pela protagonista um mundo

cheio de maravilhas e absurdos, revelando a sensibilidade da natureza em relação

as ações humanas e utilizando-se de recursos como a metáfora para apresentar

críticas ao comportamento humano e a sua relação com o meio ambiente através

da jornada da protagonista.

Palavras-chave: A viagem de Chihiro. Cinema. Fantástico. Hayao Miyazaki.

Símbolo.

SPIRITED AWAY: an analysis of the fantastic through the symbolic in

hayao miyazaki’s work

ABSTRACT

This paper aims to study the narrative of the movie Spirited Away (2001),

Japanese animation produced and direct by Hayao Miyazaki, through the

observation of the symbologies present in the construction of some characters.

To carry it out, we base on the researches of Pimenta (2006), Todorov (2014),

Orgado (2010) and Chevalier and Gheerbrant (2015). With this research, it was

possible to observe that the fantastic universe in which the movie sets its

narratives is filled with symbologies that turns the world explored by the main

character into a universe of wonders and absurd, unveiling the environment’s

frailty in face of human’s actions and making use of metaphors to criticize

human behavior and its relationship with nature through the main character’s

journey.

Keywords: Spirited Away. Cinema. Fantastic. Hayao Miyazaki. Symbol.

A VIAGEM DE CHIHIRO: Uma leitura do Fantástico através do Simbólico na obra de Hayao Miyazaki

Jária Laís Correia da Silva | João Gabriel Carvalho Marcelino

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1 INTRODUÇÃO

O universo das animações de origem japonesa é um espaço de proposições interessantes,

observando a grande gama de produções e indo além da estética aplicada, as leituras feitas da

cultura oriental e da visão acerca da cultura ocidental tornam essas produções ricas em

significado. Hayao Miyazaki3 roteirizou e dirigiu a animação A viagem de Chihiro (2001), obra

que narra a aventura da menina Chihiro em um mundo mágico com bruxas, espíritos e dragões,

enquanto busca barganhar a liberdade dos pais que foram transformados em porcos pela bruxa

Yubaba, durante a aventura, a menina é ajudada por figuras maravilhosas como Haku – aprendiz

da bruxa Yubaba; Sem Rosto – espírito que segue Chihiro; e até mesmo a irmã gêmea de

Yubaba, a bruxa Zeniba.

A narrativa se constrói em um plano espiritual que existe paralelamente com o plano físico e

tem seu portal encontrado por Chihiro e seus pais, quando estes se perdem durante a mudança.

Ao ter seus pais transformados em porcos, não resta opção a Chihiro senão trabalhar para

Yubaba em sua casa de banho, sacrificando seu nome e passando a chamar-se Sen, para que

busque de algum modo, trazer seus pais de volta.

Ao longo dessa jornada, Chihiro/Sen lida com espíritos e percebe a influência das ações

humanas na natureza, uma marca do trabalho de Miyazaki; é dessa marca que este trabalho

extrai seu objetivo de realizar uma leitura crítica da obra A viagem de Chihiro. Em

consequência, a pesquisa possui como objetivos específicos estudar a literatura fantástica

através do Anime; verificar a representação do mundo real e do mundo espiritual e como estes

se influenciam; e por fim, observar a simbologia presente na obra. Para tanto, utilizam-se os

estudos de Todorov (2014), Orgado (2010), Chevalier e Gheerbrant (2015) entre outros.

2 CHIHIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA

Observar a relação do homem com o meio na obra proposta, nos direciona ao misticismo e a

religiosidade oriental, perspectivas que envolvem a filosofia oriental e a forma que aquela

3 (Tóquio, 5 de Janeiro de 1941) Diretor, Roteirista e Designer de Animação; trabalhou para a Toei Animation e

posteriormente fundou o Estúdio Ghibli. Além de A Viagem de Chihiro (2001), dirigiu Princesa Mononoke (1997),

Meu Vizinho Totoro (1988) e adaptou livro de Diana Wynne Jones, O Castelo Animado (1986), para a animação

homônima em 2004.

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sociedade enxerga a sua relação com o ambiente; isso revela também o caminho utilizado para

a composição da obra, o universo da literatura fantástica.

Tratar do universo místico presente na literatura e nas artes, nos remete ao conceito de

fantástico, que é descrito por Todorov, em Introdução a literatura fantástica (2014), quando

este afirma que “O conceito de fantástico se define, pois, com relação aos de real e de

imaginário[...]” (p. 31) podemos observar essa relação entre o real e o imaginário, nas tentativas

da humanidade de explicar os fenômenos naturais, criando para isso figuras que povoam o

imaginário popular. Essas figuras acabam por povoar a literatura e as artes utilizadas pelo povo

para disseminar sua cultura, os mangás e animes japoneses estão povoados pelos chamados

Yōkais, espíritos e demônios japoneses, assim como divindades e figuras até mesmo do folclore

e das religiões ocidentais.

Para Gisele Tyba Mayrink Redondo Orgado, na dissertação A tradução de metáforas no filme

japonês A viagem de Chihiro (2010), as animações de Miyazaki “São desenhos cujas questões

morais e sociais são presença marcante, tratando de temas atuais de forma dura e complexa, o

que não faz com que perca seu carisma cativante[...]” (p. 60-61) portanto, não é incomum

encontrar os paralelos com a cultura e a sociedade oriental nestas.

Ao lidar com as narrativas de Miyazaki é comum observar a relação do ambiente com os

personagens humanos, animais e autômatos, os universos narrados pelo diretor denunciam os

males da guerra, as marcas do avanço do homem contra a natureza, ao mesmo tempo em que o

maravilhoso e o místico estão em evidência. Encontramos, por exemplo, em Meu amigo Totoro

a presença de um mundo humano urbano, enquanto na floresta encontram-se os seres

maravilhosos como o próprio Totoro, desse modo os dois mundos interagem entre si através

das personagens principais.

Semelhante ao mundo de Totoro, porém, em mais evidência, em A viagem de Chihiro, o mundo

em que Chihiro entra está repleto de seres sobrenaturais que povoam o folclore japonês, os

chamados Yōkais, assim como dragões e feiticeiras, desse modo a narrativa de Chihiro pode

ser classificada como uma obra do fantástico-maravilhoso, que nas palavras de Todorov:

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[...] em outros termos, na classe das narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam

por uma aceitação do sobrenatural. Estas são narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este,

pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado, sugere-nos realmente a

existência do sobrenatural (TODOROV, 2013, p. 58)

A narrativa que coloca Chihiro na casa de banho de Yubaba, onde a garota entrega seu nome

para trabalhar para a bruxa na tentativa de trazer seus pais de volta a forma humana, em um

mundo que inicia-se ao pôr do sol, tem sua justificativa no sobrenatural, através dos espíritos,

dos humanos aprisionados pela bruxa, do aprendiz de feiticeiro, do trem repleto de espíritos

sem rosto, entre outros elementos incríveis.

Além disso, Chihiro também relaciona-se ao maravilhoso, o gênero comum aos contos de fadas,

que para Todorov (2013) são os acontecimentos que não causam nenhuma surpresa, animais

falantes e alguns outros pequenos absurdos que por fazer parte de um universo maior, tornam-

se críveis para aquela situação, dado o contrato entre texto e leitor.

Em vários aspectos, a narrativa de Chihiro assemelha-se as jornadas encaradas pelas

protagonistas de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol, e O Mágico de Oz de Frank L.

Baum, em que as meninas Alice e Dorothy viajam por mundos fantásticos, repletos de seres

maravilhosos para em algum momento voltar ao mundo real.

3 OS DRAGÕES ORIENTAIS E A ÁGUA

Observando a relação entre espiritualidade e meio ambiente, encontramos na jornada de Chihiro

alguns elementos que revelam o contato entre esse plano espiritual e o plano físico,

evidenciando a relação entre o mundo e as ações humanas sobre a natureza e o mundo espiritual,

mostrando isso de forma metafórica. Observando esse aspecto, para Orgado:

A viagem de Chihiro apresenta uma extensa galeria de personagens fantásticos que se envolvem em

conflitos simbólicos, e nos remetem diretamente à maneira como a humanidade vem tratando o meio

ambiente, como nas alusões que faz personificando rios poluídos ou rios assoreados para edificar

construções, como também a ganância e ambição, além de transmitir demais valores, sempre

comprometidos com a forma artística da película, mas mostrando que a regeneração e redenção

ainda serão possíveis, desde que se esteja disposto a enfrentar as consequências de suas próprias

atitudes. (2010, p. 62)

Tais personagens se apresentam através de diversos elementos, desde os humanos que são

transformados em porcos ao deixar levarem-se pela gula, quanto os próprios funcionários da

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casa de banho que por interessar-se pelo ouro acabam por sofrer as consequências da própria

ganância.

A figura do Deus Fedido/Deus do rio é uma grande evidencia das ações do homem sobre a

natureza, a figura que aparece na casa de banho de Yubaba, inicialmente na forma de um

aparente Deus Fedido buscando ser limpo pelas águas da bruxa, revelando também o poder

purificador da água.

Figura 1 - Deus Fedido e a Poluição

Fonte: A Viagem de Chihiro (2001)

Observando as imagens acima, é possível observar que o material fétido que cobre a criatura

disforme que é o Deus Fedido, é composta de lixo humano, como placas, tubulações, geladeiras

entre outros. Pode-se compreender isso como uma reação da natureza, uma vez que esses

espíritos representam o meio ambiente, as ações do homem, ao descarte inadequado do lixo.

Para Helena Ferreira Pimenta, no texto Explorações Sobre a Construção da Narrativa Mítica:

A Viagem de Chihiro (2006), o banho do espírito do rio corresponde a um “Ritual de purificação

(harai) através do banho. Onde o espírito do rio é limpo de todas as impurezas que carregava

consigo e que o aprisionavam a um corpo que não condizia com a realidade” (p. 40).

O mergulho do Deus Fedido nas águas corresponde ao aspecto simbólico da água descrito por

Chevalier e Gheerbrant (2015) “Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver

totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar as origens, carregar-se de novo num

imenso reservatório de energia e nele beber uma nova força” (2015, p. 15) a limpeza

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proporcionada pelo banho de ervas limpa o Deus Fedido da interferência humana, revelando

sua forma de Deus do rio, desse modo a água “é regeneradora, opera um renascimento, no

sentido já mencionado, por ser ela, ao mesmo tempo, morte e vida” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2015, p. 18). Ao ser limpo pelas aguas de Yubaba, o Deus dos rios aparece

em forma de dragão, como podemos ver a seguir:

Figura 2 - Deus do rio em sua forma limpa

Fonte: A Viagem de Chihiro (2001)

Ao contrário do dragão no ocidente, que está associado ao fogo, no oriente o dragão é associado

as águas e é um símbolo de proteção, uma divindade aquática a busca do Deus do rio/dragão

pode ser vista também pela representação da água na Ásia que “é a forma substancial da

manifestação, a origem da vida e o elemento da regeneração corporal e espiritual [...]”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 15) podemos compreender a forma Fedida do Deus

do rio como uma consequência da poluição sobre o ambiente, uma vez que todo o lixo que

cobre a divindade é comumente encontrado sendo descartado em rios, então o banho o regenera

completamente devolvendo a vida ao ser divino.

Pode-se ainda perceber o aspecto Bachelardiano do elemento, para o autor “A água é realmente

o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser

consagrado à água é um ser em vertigem” (apud FERREIRA, 2013, p. 13), mesmo que o Deus

do Rio tenha sido consagrado no banho, é possível compreender que o rio ainda está em

vertigem, se não houver uma mudança nas ações para com o rio.

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Essa representação recorrente do dragão no Japão e no oriente em geral está associado ao fato

que este animal é um “Símbolo celeste, em todo caso, poder de vida e de manifestação, ele

cospe as águas primordiais ou o Ovo do mundo, o que faz do dragão uma imagem do Verbo

criador” [sic] (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 350) o dragão é, desse modo, uma

manifestação do divino, especialmente se observarmos que não é incomum nas religiões

orientais a multiplicidade de formas dos deuses e divindades.

Com a figura do Deus do Rio e a recorrente forma draconiana de Haku, o aprendiz da feiticeira

Yubaba, podemos observar, de certo modo, três espécies de dragões representadas no Japão,

“Existe no Japão uma distinção popular entre as quatro espécies: celeste, pluvial, terrestre-

aquático, e subterrâneo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 350) o Deus do rio que

pode ser caracterizado tanto como um dragão pluvial – dada a sua apresentação ocorrer durante

a chuva; quanto como um dragão terrestre-aquático por sua relação com o rio, característica

que compartilha com Haku.

A forma de dragão de Haku pode ser vista como uma incorporação de duas espécies, o dragão

celeste, protetor que cruza os céus; e o dragão terrestre-aquático, pois seu nome vem de Kohaku,

o rio do qual Haku era o espirito guardião e que salvou Chihiro de um afogamento. Na imagem

a seguir, temos as duas formas de Haku:

Figura 3 - Haku em sua forma humana e de Dragão

Fonte: A Viagem de Chihiro (2001)

Observando a construção visual de Haku como dragão e como humano, é possível observar a

correspondência do dragão oriental descrita por Chevalier e Gheerbrant:

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A escalada do trovão, que é a do yang da vida, da vegetação, da renovação cíclica, é representada

pela aparição do dragão, que corresponde a primavera, ao nascente, à cor verde: o dragão se eleva

ao céu no equinócio da primavera e mergulha no abismo do equinócio de outono[...] (2015, p. 350)

Haku corresponde ao aspecto Yang, masculino, representando o dragão celestial, mantendo a

cor verde dos olhos e dos cabelos tanto na forma humana quanto na forma de dragão. O aspecto

primaveril também pode ser observado na cena a seguir:

Figura 4 - Haku guia Chihiro pelo Jardim

Fonte: A Viagem de Chihiro (2001)

Como podemos ver, Haku guia Chihiro por entre as flores para leva-la até seus pais. Os dragões

que aparecem na narrativa estão apresentados como guardiões e protetores, tratando-se de “[..]

aspectos distintos de um símbolo único que é o do princípio ativo e demiúrgico: poder divino,

élan espiritual” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 350), em outras palavras, os dragões

podem ser vistos como a representação da força divina que protege o físico e o espiritual.

4 O ESPÍRITO SEM ROSTO

No mundo em que Chihiro viaja, há diversos espíritos com formas indefinidas e faces cobertas

por papeis ou até mesmo sem cobertura nenhuma, estes espíritos cumprem jornadas repetitivas

diariamente por toda a eternidade, alguns indo para a casa de banhos de Yubaba, outros

passeando pelo parque abandonado que existe antes da casa de banhos, alguns pegam o trem

que viaja pelas águas; e há o Sem Rosto

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Figura 5 - Sem rosto

Fonte: A Viagem de Chihiro (2001)

Sem rosto é um espírito pacífico que acaba por seguir Chihiro durante a narrativa, o seu nome

vem do fato dele carregar uma máscara inexpressiva no lugar do seu rosto, complementando

seu corpo etéreo e disforme. Se observamos o aspecto simbólico do rosto, Chevalier e

Gheerbrant afirmam que “O rosto é o símbolo do que há de divino no homem, um divino

apagado ou manifesto, perdido ou reencontrado” (2015, p. 791) a presença do rosto estabelece

uma relação com o divino, uma vez que o divino é criado à imagem do ser humano; a ausência

dele então desconecta o ser deste elemento divino. O rosto também é “Substituto do indivíduo

todo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 791) pois é capaz de representar o indivíduo

ou o ser mesmo estando separado do seu conjunto.

O espirito Sem Rosto, possui a capacidade de absorver as características e habilidades dos que

ele engole, em sua forma natural ele não passa de uma sombra com uma máscara, entretendo;

observando o significado da Máscara, por sua vez:

[...] é destinada a captar a força vital que escapa de um ser humano ou de um animal no momento

de sua morte. A máscara transforma o corpo do dançarino que conserva sua individualidade e,

servindo-se dele como suporte vivo e animado, encarna um outro ser: gênio, animal mítico ou

fabuloso, que é assim momentaneamente figurado; desse modo, o poder é mobilizado [Grifo

nosso] (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 597)

Sem rosto está carregando na narrativa o aspecto capturador da força vital da máscara, ao passo

que ele captura o sapo, ele ganha patas; ao capturar um dos empregados da casa de banho, ele

ganha a habilidade de falar, mobilizando o poder e as habilidades destes seres através de si; essa

habilidade da máscara tem consequências, para os autores “Mas a máscara não é inócua para

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quem a usa. Essa pessoa, tendo desejado captar as forças do outro lançando-lhe as ciladas de

sua máscara, pode ser, por sua vez, possuída pelo outro” (CHEVALIER; GHEERBRANT,

2015, p. 597) a medida que o Sem Rosto incorpora outros personagens ele acaba por incorporar

também as características negativas da personalidade destes personagens.

A simbólica da máscara e do Sem Rosto acabam por fazer referência aos mitos orientais

descritos por Chevalier e Gheerbrant:

Mas talvez aqui cheguemos a uma aproximação com os mitos hindus e chineses do leão, do dragão

ou do ogre, que pedem ao deus que os criou vítimas para devorar e que o ouvem responder:

alimentai-vos de vós mesmos: eles então se apercebem de que são apenas mascaras, aparência,

desejo, apetite insaciável, mas vazios de toda substância [Grifo nosso] (2015, p. 598)

O espirito sem rosto, sem forma e sem matéria acaba sendo uma máscara vazia, sem identidade,

um ser perdido que busca uma função para executar durante a eternidade, mesmo que seja a de

ajudante da bruxa Zeniba, próximo ao final da narrativa.

5 SEN E CHIHIRO: O PODER DO NOME

É importante observar na narrativa estudada, a definição e o poder do nome, no título original

em japonês, é observado por Orgado que:

No caso de A viagem de Chihiro, o título original da obra é 千と千尋の神隠し (Sen to Chihiro no

Kamikakushi4). E fazendo uma análise comparativa entre ambos, é possível perceber inicialmente a

diferença quanto ao(s) nome(s) do(s) personagem(ns), isso porque na versão em português, o único

nome próprio que aparece é o de Chihiro, enquanto que na versão em língua japonesa, o título faz

alusão a dois nomes, Sen e Chihiro, como se fossem duas pessoas distintas, quando na verdade,

trata-se da mesma personagem. (ORGADO, 2010, p. 64)

Em uma questão relacionada a tradução do título para o português, a omissão do nome Sen

ignora um elemento importante na narrativa, que é o poder que o nome possui sobre o ser, o

nome carrega poder sobre o indivíduo a quem nomeia, e privá-lo deste, como pode-se ver no

filme acaba por privar a personagem de tudo o que o nome envolve, da identidade à história da

personagem. Para a autora essa omissão de Sen, ainda:

Para quem não assistiu o filme, não é possível saber que essa referência se faz ao fato da personagem

de Chihiro ter sido escravizada na casa de banho, tendo seu nome “roubado”, sendo obrigada pela

bruxa Yubaba a adotar o codinome Sen. Essa é a maneira que a bruxa encontra para controlar seus

prisioneiros, pois não lembrando seus nomes verdadeiros, nunca poderão sair de seu domínio,

retornando ao mundo real. (ORGADO, 2010, p. 64)

4 Transcrição em Romaji, que “é uma adaptação do alfabeto latino utilizado para a transcrição ocidental, baseado

no sistema Hepburn” (ORGADO, 2010, p. 23)

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Se observarmos o aspecto simbólico do nome, encontramos a importância deste tanto para a

narrativa, quanto para o controle que a bruxa Yubaba possui sobre seus prisioneiros, o aspecto

que é explicado por Chevalier e Gheerbrant para os autores “o conhecimento do nome

proporciona poder sobre a pessoa: aspecto mágico, liame misterioso do símbolo” (2015, p.

641) por essa característica o nome é o elemento que liga o poder significativo do nome à

pessoa, a sua existência, um aspecto relacionado aos egípcios no mundo antigo, que corrobora

com o japonês, “Para os egípcios da Antiguidade, o nome pessoa é bem mais que um signo de

identificação. É uma dimensão do indivíduo.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 641).

Esse poder relacionado ao nome, para os autores “[...] pertence à mentalidade primitiva.

Conhecer o nome, pronunciá-lo de um modo justo é poder exercer um domínio sobre o ser ou

sobre o objeto” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 641) enquanto Yubaba possui o

nome de Chihiro, Haku e outros, eles são seus servos, aos recuperá-los, eles podem se tornar

livres, pois recuperam não só seus nomes, mas toda a carga simbólica que eles carregam.

Quando observamos a retirada do nome de Chihiro e a quase perca da memória de quem a

menina é, observamos também que o símbolo que representa Sen na escrita oriental, está

presente em Chihiro.

Figura 6 - Cena em que Chihiro entrega o nome a Yubaba

Fonte: A Viagem de Chihiro (2001)

É interessante notar que o ideograma que representa Sen (千), também representa a palavra mil

em japonês, carregando a ambiguidade da retirada de nome que pode ser compreendido pela

afirmação de Octavio Paz, de que “A ausência de relação entre as coisas e seus nomes é

duplamente insuportável: ou o sentido se evapora, ou as coisas se desvanecem” (apud

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ORGADO, 2010, p. 68) enquanto em uma perspectiva tudo o que foi Chihiro supostamente se

evaporou, se observarmos o ideograma a retirada de nome também pode representar a

possibilidade da criação de uma novas identidades, já que a Chihiro do final da narrativa não é

a mesma do início.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Literatura Fantástica até os dias de hoje povoa o imaginário popular, essa forma literária

transcende as barreiras geográficas, os moldes, movimentos e formalidades, sendo capaz de se

fazer entender em qualquer comunidade – seja no ocidente, ou no oriente; para transmitir

mensagens, expor significados e narrar aventuras que encantam os leitores de todas as idades.

Diante do exposto, pode-se compreender que A Viagem de Chihiro, de modo semelhante a

outras narrativas, leva o expectador a um mundo onde o real e o imaginário se conectam; no

qual figuras do imaginário se tornam reais e táteis enquanto a própria realidade parece se

expandir para, em um pacto ficcional, levar o leitor à casa de banhos da bruxa Yubaba, em que

deuses, dragões, espíritos tomam forma, animais falam e humanos são transformados em

animais.

Os símbolos incutem de significado as personagens, cenas e elementos presentes na narrativa,

abrindo um leque de leituras possíveis. Observando a obra de Miyazaki, percebemos como as

imagens podem revelar a relação do homem com a natureza; como as figuras do imaginário

popular que povoam a cultura trazem representações e críticas ao comportamento humano; e

como alguns elementos aparentemente simples presentes no filme, como uma mudança de

nome, podem ser carregados de questões simbólicas que propõem discussões que vão além do

símbolo.

REFERÊNCIAS

A VIAGEM, Chihiro de. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Toshio Suzuki. Intérpretes:

Rumi Hiragi, Miyu Irino, Mari Natsuki e outros. Roteiro: Hayao Miyazaki. Música: Joe

Hisaishi. Tokio: Studio Ghibli, c2001. 1 DVD (124 MIN), Color. Produzido por Studio

Ghibli.

A VIAGEM DE CHIHIRO: Uma leitura do Fantástico através do Simbólico na obra de Hayao Miyazaki

Jária Laís Correia da Silva | João Gabriel Carvalho Marcelino

Anais – FLIPA | 38

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,

costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 27ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,

2015.

FERREIRA, Agripina Encarnacion Alvarez. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos

e conceitos Bachelardianos. Londrina: Eduel, 2013.

HAYAO MIYAZAKI. In. STUDIO Ghibli. Brasil, 2008. Disponível em:

http://site.studioghibli.com.br/diretores/hayao-miyazaki/ Acesso em 16/01/2017.

ORGADO, Gisele Tyba Mayrink Redondo. A tradução de metáforas no filme japonês A

viagem de Chihiro. 112 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Programa de

Pós-Graduação em Estudos da Tradução, UFSC, Florianópolis, 2010.

PIMENTA, Helena Ferreira. Explorações Sobre a Construção da Narrativa Mítica: A

Viagem de Chihiro. 2006. 49f. Monografia (Bacharelado em Comunicação Social) – Centro

Universitário de Brasília, UniCEUB. Brasília, DF.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2014.