a usucapião especial urbana coletiva do estatuto da cidade como
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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA – PROPPEC CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS – CEJURPS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA COLETIVA DO ESTATUTO DA CIDADE COMO INSTRUMENTO DE
PROMOÇÃO DO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
LUIZ EDUARDO RIBEIRO FREYESLEBEN
Itajaí-SC 2015
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA – PROPPEC CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS – CEJURPS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA COLETIVA DO ESTATUTO DA CIDADE COMO INSTRUMENTO DE
PROMOÇÃO DO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
LUIZ EDUARDO RIBEIRO FREYESLEBEN
Dissertação submetida ao Curso de Mestrado
Acadêmico em Ciência Jurídica da Universidade do
Vale do Itajaí – UNIVALI e à Universidade de
Alicante – UA/Espanha -, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Ciência Jurídica e
Derecho Ambiental y de la Sostenibilidad,
respectivamente.
Orientador: Professor Doutor Pedro Manoel Abreu Coorientador: Professor Doutor Gabriel Real Ferrer
Itajaí-SC
2015
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Desembargador Nelson Juliano Schaefer Martins,
Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, pelo apoio firme ao
aprimoramento intelectual da magistratura catarinense, mesmo em tempos
tormentosos.
Ao Desembargador Pedro Manoel Abreu, Diretor-Executivo da Academia
Judicial do TJSC, entusiasta da parceria com a Univali e meu Orientador, com quem
tive rara oportunidade de aprendizado ao assessorá-lo por seis anos na Corte
estadual e de apreender um pouco da brandura de seu espírito elevado.
Ao Professor Gabriel Real Ferrer, meu Coorientador, e ao Professor
Germán Valencia Martín, Coordenador do Curso de Direito da Universidade de
Alicante, dois expoentes das letras jurídicas espanholas, que fizeram com que todos
nos sentíssemos em casa na terra de Cervantes.
A Lívia Renata Bittencourt, pelo incentivo permanente, valiosa
contribuição para este trabalho e crença comum de que há vida inteligente além do
mundo jurídico.
À Professora Eloísa Dias Gonçalves, que nos trouxe subsídios
importantes na fase final de elaboração deste estudo.
À equipe do 3º Juizado Especial Cível da Comarca de Joinville, que ao
longo dos estudos para este trabalho permitiu-nos manter as metas da Unidade em
tempos de valorização de estatísticas, sem esquecer da pessoa do jurisdicionado,
irredutível a números.
A meu pai, Luiz Carlos Freyesleben, jurista que nunca perde a capacidade
de reinvenção e de quem herdei o gosto pelo Direito.
A Glória Ribeiro Freyesleben, responsável por essa peregrinação
depuradora, figura reta e reconfortante, sempre disposta a ouvir e a tomar as dores
dos outros como mais importantes que as suas.
A Priscila Ribeiro Freyesleben, que conserva nos olhos mouriscos a
doçura da infância.
A Renato Lisboa Altemani, pensador inquieto e brilhante, cuja
extraordinária capacidade de análise faz-nos crer elementares os temas mais
complexos do Direito e da Economia.
A Manoel Alves Ribeiro, Telmo da Luz Ribeiro e Dilma da Luz Gonzales
que, como na saga dos Buendía de Cem Anos de Solidão, estão sempre tão
presentes, já nos tendo deixado.
À família Gutjahr, que em outubro de 2008 deu abrigo a um introspectivo
membro, às vezes dominado por uma rebeldia muda, perdido em seu pequeno e
particular mundo de reflexões. Um integrante de passos inaudíveis, ouvidos abertos
e palavras contidas, recebido com afeto especial no novo lar da Lagoa dos Patos e
presenteado com o que lhe faltava da existência.
A Rodrigo Galvão, intelectual prodigioso e discreto, de uma consistência
avessa a bailes de máscaras, de quem ouvi pela primeira vez as palavras de Antonio
Machado: “caminante no hay camino, se hace camino al andar”, para tornar a
escutá-las muitos anos mais tarde, na voz de Joan Manoel Serrat.
A Giorgio Pretto, Josie Menezes da Rosa Pretto, Fernando Ribeiro
Pacheco e Camila Maria Duarte por nos trazerem à tona sempre que as águas
turvas da rotina parecem sufocar-nos.
A Anderson Jacob Moreira Suzin, Caroline Moreira Suzin, Marcus Vinicius
Ribeiro de Camillo e Érica Pinheiro Medeiros de Camillo, a quem fizemos nossos
irmãos na fronteira oeste de Santa Catarina.
Aos colegas de aventura alicantina, com quem serpenteávamos pelo
Casco Antiguo até a Estação Mercado, onde o Castelo de Santa Bárbara velava por
nós, senhor absoluto do Monte Benacantil.
A Gabriel García Márquez, que sem sequer suspeitar de nossa tímida
existência, inspirou-nos à incansável tentativa de transposição poética da realidade,
além de, por meio de Florentino Ariza, do Juiz Arcádio, do padre Cayetano de Laura,
de Cândida Erêndira, do patriarca e seu outono, do general em seu labirinto e tantos
outros, fazer-nos sentir o ar denso de Macondo.
A Javier, personificação da lhaneza espanhola, graças a quem
desfrutamos da vista do campanário alcantilado de Guadalest.
DEDICATÓRIA
Para Patrícia, estrela da vida inteira.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido a este trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a
Coordenação do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do presente.
Itajaí-SC, 31/08/2015
Luiz Eduardo Ribeiro Freyesleben
Mestrando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADCT- Ato das Disposições Constitucionais Transitórias CC - Código Civil
CPC - Código de Processo Civil
CRFB - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPTU - Imposto Predial e Territorial Urbano
TJES - Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo TJMG - Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais TJPR - Tribunal de Justiça do Estado do Paraná
TJRJ - Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
TJRS - Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
TJSC - Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina
TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
RFA - República Federal da Alemanha
STF - Supremo Tribunal Federal
URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
ROL DE CATEGORIAS Dignidade da pessoa humana - apanágio de todo homem e dele indissociável,
compreendendo todas as abstenções estatais à lesão de um núcleo mínimo de
direitos necessários à plenitude da vida e da felicidade, bem como as prestações do
Poder Público necessárias a concretizar os elementos essenciais à efetivação desse
mister.
Direito à moradia - direito fundamental a espaço de habitação do indivíduo e/ou da
família, condizente com o instinto humano primevo ao abrigo, abrangendo o direito à
adequação do entorno, é dizer, a cidades sustentáveis e a um meio ambiente
saudável.
Direito Urbanístico - ramo do direito voltado ao estudo do zoneamento,
parcelamento e ocupação do solo urbano, da regularização fundiária e da
sustentabilidade, guardando proximidade com o direito ambiental.
Princípios constitucionais - normas jurídicas, tal como as regras, embutidas na
Constituição, mas sem a mesma especificidade ou precisão normativa, que norteiam
o sistema e dão lastro a todas as demais normas jurídicas, exercendo função
axiológica.
Regularização fundiária - resultado do emprego de instrumentos legais e adoção
de políticas públicas para amoldar a propriedade imobiliária irregular a padrões
urbanísticos compatíveis com a legislação e com o imperativo de justiça social.
Usucapião - modo de aquisição originária da propriedade em virtude de posse
mansa, pacífica, contínua e prolongada no tempo.
Usucapião especial urbana coletiva - modalidade qualificada de aquisição
dominial, com as características basilares da usucapião, mas com o acréscimo de
outras específicas: imóveis com dimensões superiores a 250m2, impossibilidade de
identificação de áreas individualmente ocupadas, destinação à moradia de
população de baixa renda e formação de condomínio especial.
Cidade Prevista
“Irmãos, cantai esse mundo
que não verei, mas virá
um dia, dentro em mil anos,
talvez mais... não tenho pressa.
Um mundo enfim ordenado,
Uma pátria sem fronteiras,
Sem leis e regulamentos,
Uma terra sem bandeiras,
Sem igrejas nem quartéis,
Sem dor, sem febre, sem ouro,
Um jeito só de viver,
Mas nesse jeito a variedade,
A multiplicidade toda
Que há dentro de cada um
Uma cidade sem portas,
de casas sem armadilha,
um país de riso e glória
como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem”.
Carlos Drummond de Andrade1
1 ANDRADE, Carlos Drummond. A Rosa do Povo. 30. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, pp. 156/157.
SUMÁRIO
RESUMO 15
RESUMEN 16
INTRODUÇÃO 17
1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DO RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 22
1.1 O VALOR INATO DA DIGNIDADE HUMANA 22
1.1.1 A virada kantiana 22 1.1.2 A revolução da dignidade 26 1.2 O DESPERTAR DA DIGNIDADE HUMANA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
29
1.2.1 A natureza plúrima da dignidade 31 1.2.2 A emergência do pós-positivismo 37 2 DIREITO À MORADIA, ESTATUTO DA CIDADE E NOVO DIREITO URBANÍSTICO 40
2.1 O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À MORADIA E AS NOVAS LUZES DA
CIDADE 40
2.1.1 A quebra do imobilismo: direito a prestações 41 2.1.2 Ordem urbanística popular embrionária 47 2.2 PROPRIEDADE: LEMBRANÇAS, CONTEMPORANEIDADE E PERSPECTIVAS
50
2.2.1 A propriedade usada e abusada 51 2.2.2 Função social como condição à propriedade 54 3 USUCAPIÃO COLETIVA DO ESTATUTO DA CIDADE 58
3.1 ASPECTOS MATERIAIS DESTACADOS 58
3.1.1 A usucapião especial coletiva e a inconstitucionalidade imaginada 64
3.1.2 Posse e intermediários 66 3.1.3 A composse inexistente 67 3.1.4 O termo inicial do prazo aquisitivo 67 3.1.5 A população de baixa renda 68 3.1.6 Identificação das áreas 69 3.1.7 Acessão e sucessão da posse 70 3.1.8 Condomínio especial 71 3.1.9 As obras de urbanização 71 3.1.10 Moradia e construções mistas 73 3.1.11 Imóveis públicos e restrições ambientais 74 3.1.12 Críticas à usucapião coletiva 74 3.2 ASPECTOS PROCESSUAIS: BREVES CONSIDERAÇÕES 77
3.2.1 Legitimidade ativa e competência 77
3.2.2 O registro 78
3.2.3 Litisconsórcio 79 3.2.4 A associação de moradores: substituta processual? 80 3.2.5 Usucapião coletiva em matéria de defesa 81 3.2.6 Procedimento sumário 82 3.2.7 Perícias, memoriais e plantas 83 3.2.8 Natureza da sentença e suspensão de ações 84 3.2.9 Frações ideais 85 3.2.10 Não propriedade de outro imóvel: ônus da prova 85 3.2.11 Justiça gratuita e assistência judiciária 86 3.2.12 O valor da causa 86 CONSIDERAÇÕES FINAIS 88
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS 91
15
RESUMO
Nesta Dissertação, que se insere na linha de pesquisa Constitucionalismo e
Produção do Direito, a dignidade é vista como dotada de natureza múltipla. É
princípio, direito e valor-amálgama dos postulados fundamentais. Por ser inerente ao
ser humano, é reconhecida nos ordenamentos jurídicos modernos, mas não criada
por eles. Não comporta exceção alguma, seja quais forem as circunstâncias, e
atribui obrigações positivas ao Estado e à sociedade no sentido de proporcionar as
condições necessárias à sua manutenção. Nesse contexto, o direito à moradia é um
dos elementos indispensáveis à realização da plenitude existencial, solidamente
respaldado na Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que dá feição popular à
ordem urbanística e contém instrumentos aptos à configuração de cidades
inclusivas. Uma dessas ferramentas é a usucapião especial coletiva, prevista no art.
10 daquele diploma. O instituto possibilita a aquisição da propriedade por população
de baixa renda sobre área superior a 250m², por meio de posse prolongada no
tempo (cinco anos). Pode ser peça-chave para a regularização fundiária de favelas e
assentamentos informais, promovendo o equilíbrio urbano, além de contribuir para a
derrocada da cultura do segregacionismo. São examinados diversos aspectos de
direito material e processual, como o termo inicial do prazo de aquisição da
propriedade, o conceito de população de baixa renda, o estabelecimento de um
condomínio especial, a atribuição de frações ideais aos moradores, a presença de
construções mistas, as necessárias obras de urbanização, a legitimidade ativa, a
tese de inconstitucionalidade do instituto, as principais críticas a ele dirigidas, o
procedimento aplicável e a necessidade de uma interpretação adequada à finalidade
social do instituto. Assim, a usucapião especial urbana coletiva prevista na Lei nº
10.257/2001 é um dos instrumentos ofertados pelo também chamado Estatuto da
Cidade para proporcionar segurança jurídica à população de baixa renda,
consolidando o direito à moradia, fortemente ligado à dignidade da pessoa humana,
considerada como princípio fundamental da República Federativa do Brasil.
Palavras-chave: Moradia; Dignidade; Usucapião; Estatuto da Cidade;
Regularização Fundiária.
16
RESUMEN
En esta Disertación, que se inserta en la línea de investigación Constitucionalismo y
Producción del Derecho, la dignidad se considera como dotada de naturaleza
múltiple. Es principio, derecho y valor-amalgama de los postulados fundamentales.
Como es inherente al ser humano, es reconocida en los sistemas jurídicos
modernos, pero no creada por ellos. No contiene ninguna excepción, ni bajo ninguna
circunstancia, y asigna obligaciones positivas sobre el Estado y la sociedad para
proporcionar las condiciones necesarias para su mantenimiento. En esse contexto,
el derecho a la vivienda es uno de los elementos esenciales para la plenitud
existencial, sólidamente respaldado en la Ley N° 10.257 / 2001 (Estatuto de la
Ciudad), que muestra rasgos de un orden urbano popular y contiene instrumentos
adecuados para el establecimiento de ciudades inclusivas. Una de estas
herramientas es la usucapión colectiva, prevista en el art. 10 de dicho Reglamento.
El instituto permite la adquisición de propriedad por personas de bajos ingresos en
área de más de 250m², a través de la posesión prolongada en el tiempo (cinco
años). Puede ser una clave para la regularización de la tierra en las favelas y
asentamientos informales, promover el equilibrio urbano y contribuir a la caída de la
cultura de segregación. Se examinan diversos aspectos de derecho material y
procesal, como el plazo inicial para la adquisición de la propiedad, el concepto de
población de bajos ingresos, la creación de una comunidad especial, la asignación
de fracciones ideales a los residentes, la presencia de edificios mixtos, las obras de
urbanización necesarias, la legitimidad activa, la tesis de inconstitucionalidad del
instituto, las principales críticas que a el se dirigen, el procedimiento aplicable y la
necesidad de una interpretación adecuada a la finalidad social del instituto. Así, la
usucapión urbana colectiva bajo la Ley N° 10.257 / 2001 es una de las herramientas
que ofrece el también llamado Estatuto de la Ciudad para proporcionar seguridad
jurídica a la población carente, consolidando el derecho a la vivienda, fuertemente
relacionado a la dignidad de la persona humana, considerada principio fundamental
de la República Federativa del Brasil.
Palabras clave: Vivienda; Dignidad; Usucapión; Estatuto de La Ciudad;
Regularización Urbana.
17
INTRODUÇÃO
Conhecer e ignorar não são fenômenos antagônicos. As comunidades
postas à margem da chamada cidade legal são conhecidas. Não são grupamentos
etéreos. Sabe-se bem onde estão. Para muitos, são pouco mais que uma cicatriz
indesejada no skyline, um impertinente talho no colo da cidade nobre. Afora isso,
paira a indiferença ou, pior do que ela, a falsa preocupação dos hipócritas.
Em quaisquer das mais triviais enquetes jornalísticas um convicto
entrevistado brindaria a repórter com um sim, sem pejo algum, às indagações sobre
o apoio à redução das desigualdades sociais ou à garantia de moradia digna a
todos. Na sequência, o mesmo interlocutor, já não tão enternecido, sairia pressuroso
para tratar de seus afazeres e interesses, sem perceber os casebres derredor,
porque aqui reina no mais das vezes a indiferença.
Esse estado de torpor repercute no âmbito jurídico. Foi assim quando se
engatinhava nas discussões sobre a função social da propriedade, vista como uma
extravagância. O advento do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001)2 como
inaugurador de uma nova etapa do Direito Urbanístico brasileiro, com matriz popular,
representa a oportunidade de reabrir as feridas da ortodoxia e, quiçá, avançar no
jogo de teses e antíteses.
Nessa linha, sustenta-se que a multiplicidade de instrumentos ofertados
pela legislação precisa ser mais conhecida pelos interessados/legitimados, a fim de
amplificar a eficácia de seu potencial humanizador, valendo-se da usucapião
especial urbana coletiva para a regularização fundiária. Esse instituto é o tema
central, uma ferramenta útil ao resgate da dignidade, na contramão do sistema
plutocrático criador de guetos.
O objetivo científico geral é o de identificar se a usucapião especial
coletiva prevista no art. 10 da Lei nº 10.257/01 pode atenuar a ineficiência estatal em
assegurar o direito à moradia e auxiliar na promoção da inclusão social.
2 BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em: 20 set.2015.
18
Tem-se como objetivos específicos conceituar a usucapião especial
coletiva do Estatuto da Cidade; destacar seus elementos principais, mormente os de
direito material; salientar a potencialidade do instituto para a promoção da dignidade
da pessoa humana; historiar resumidamente o direito à propriedade ao longo dos
tempos; estudar o aporte doutrinário espanhol como canal para enriquecer e facilitar
a resposta ao problema formulado nesta pesquisa; avaliar se a usucapião especial
coletiva do Estatuto da Cidade pode, por meio da regularização de situações de
posse fática e consequente (re)ordenamento urbano, promover o incremento do
direito à moradia sonegado; examinar se pode, por via reflexa, exponencializar o
princípio da dignidade da pessoa humana no contexto de um sistema político-
econômico marginalizador.
O objetivo institucional da presente Dissertação é a obtenção do Título de
Mestre, em dupla titulação, em Ciência Jurídica pelo Curso de Mestrado Acadêmico
em Ciência Jurídica – CMCJ vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Ciência Jurídica – PPCJ – da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI e
em Direito Ambiental e da Sustentabilidade pelo Curso de Máster em Derecho
Ambiental y de la Sostenibilidad – MADAS, da Universidade de Alicante - Espanha.
O problema nodal está em investigar em que medida a usucapião
especial coletiva pode remediar a inaptidão do Estado em assegurar o direito à
moradia, reduzindo os efeitos socialmente excludentes inerentes ao modelo
econômico adotado.
Para a pesquisa foram levantadas as seguintes hipóteses:
a) O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) inaugura uma nova fase do
Direito Urbanístico brasileiro ao fixar diretrizes gerais mais afinadas à regularização
fundiária e ao equilíbrio urbano.
b) A usucapião especial coletiva instituída no art. 10 do Estatuto da
Cidade (Lei nº 10.257/01) é instrumento de concretização de postulados
constitucionais, em particular do princípio da dignidade da pessoa humana, servindo
como elemento mitigador do déficit estatal em satisfazer o direito à moradia e outros
direitos sociais fundamentais.
19
Os resultados do trabalho de exame das hipóteses estão expostos na
presente Dissertação de forma sintetizada, como segue.
No Capítulo 1, as atenções são voltadas ao princípio do respeito à
dignidade da pessoa humana, entendida esta como um valor inato. É tida como
anterior à incorporação aos ordenamentos jurídicos modernos, reconhecida, mas
não criada pelo Estado. Está associada a ideia de que o homem é um fim em si
mesmo, insubstituível e insuscetível de ser utilizado como instrumento, seja qual for
o objetivo. Parte-se do pressuposto de que todos os homens são dignos, premissa
que não se sujeita a relativizações. O estabelecimento de exceções nesse campo
chancelaria o segregacionismo e a sonegação de direitos, como o de moradia, sob a
justificativa falaciosa de que estes seriam apenas titularizados por quem houvesse
conquistado a dignidade como condição. Observa-se, ainda no primeiro capítulo,
que o constitucionalismo do pós-guerra é notabilizado pela revolução da dignidade,
com foco na livre construção da personalidade após a tragédia bélica. A dignidade é
considerada em sua natureza plural, a um só tempo princípio, direito e valor,
verdadeira amálgama de postulados fundamentais como liberdade, igualdade e
solidariedade. Conjectura-se que sua relevância vai mais além de um dever de
abstenções à sua violação, para refletir na atividade interpretativa e para impor ao
Estado a obrigação de assegurar a todos as condições necessárias à existência
digna.
No Capítulo 2 o destaque é para direitos sociais como força motriz do
desenvolvimento da personalidade e das potencialidades individuais para
salvaguarda de um mínimo existencial. Flerta-se, logo, com o tema dos direitos
sonegados, em particular o de moradia, em um processo de marginalização perene,
conservador de castas. Reforça-se a emergência de postura estatal ativa,
expressada por direitos a prestações. O advento da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da
Cidade) é ponto central pela inauguração de uma nova ordem urbanística, com a
definição de diretrizes gerais entre as quais avulta a regularização imobiliária.
Augura-se maior preocupação com o equilíbrio urbano, com a construção de cidades
sustentáveis, a depender de planejamento, investimento estatal e participação
comunitária. Aborda-se, assim, a promulgação da Lei nº 10.257/2001 como
encetadora de um novo paradigma na legislação urbanística brasileira,
entretecendo-a com o direito social fundamental à moradia.
20
No Capítulo 3 ingressa-se no instituto jurídico-político da usucapião
especial urbana coletiva, sobretudo em seus aspectos de direito material, para
pressagiar o desafio da regularização fundiária. Aponta-se a função social da
propriedade como seu fundamento. A modalidade prevista no art. 10 do Estatuto da
Cidade é explorada em sua metaindividualidade, meio inédito de aquisição dominial
coletivo, voltado à comunidade carente. A suposta inconstitucionalidade dessa
modalidade aquisitiva, por não respeitar limites de área e extravasar o âmbito
individual, é examinada e submetida a interpretação constitucional apta a maximizar
a carga normativa da Carta Política. Mostra-se que entre os ocupantes não há
composse. As parcelas do imóvel não são ocupadas em conjunto, mas
individualmente, de forma desordenada, e por ficção jurídica o legislador vê como
uma unidade esse conglomerado habitacional desorganizado para permitir a
regularização. Trata-se, outrossim, da identificação do marco inicial de fluência do
prazo prescricional e da proposital amplitude do conceito de carência. A
possibilidade de acessio possessionis e de sucessio possessionis é outro tema
enfrentado, bem como a criação de condomínio especial indivisível. Os aspectos
processuais são foco de observações sintéticas, presas ao rito processual (sumário,
art. 14, Lei nº 10.257/2001) a ser seguido; à alegação de usucapião especial como
matéria de defesa com aptidão registral (art. 13); à necessidade de perícia; à citação
dos litisconsortes omissos (art. 47, parágrafo único, Código de Processo Civil); ao
necessário sobrestamento das ações possessórias e petitórias concernentes ao
imóvel (art. 11, Lei nº 10.257/2001); à concessão de assistência judiciária gratuita e
gratuidade da Justiça; e à intimação das Fazendas Públicas (art. 943, CPC).
O presente Relatório de Pesquisa encerra-se, em Considerações Finais,
com a síntese da esperada contribuição sobre o emprego da usucapião especial
urbana coletiva do Estatuto da Cidade como instrumento para a promoção do
princípio fundamental do respeito à dignidade da pessoa humana.
O Método utilizado na fase de Investigação foi o indutivo3; na fase de
Tratamento dos Dados foi o cartesiano.
3 “base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 205).
21
As técnicas de investigação utilizadas foram as do referente4, da
categoria, dos conceitos operacionais5, da pesquisa bibliográfica6 e do fichamento7.
O tratamento da matéria é feito sem a mínima ilusão ou pretensão de
exaurimento, mesmo porque incompatível com o produto científico elaborado.
As categorias8 básicas ou principais são: Direito à Moradia; Dignidade da
Pessoa Humana; Usucapião; Usucapião Especial Urbana Coletiva; Direito
Urbanístico; Regularização Fundiária e Princípios Constitucionais. Os respectivos
conceitos operacionais são apresentados em rol anexo.
Há referências a legislações estrangeiras, mais amiúde à espanhola, não
como estudo de direito comparado, mas apenas como adminículo à exposição e
desenvolvimento das ideais centrais, por se as crer enriquecidas pelo aporte
ultramarino. A tradição ibérica presenteia-nos com um conhecimento sem amarras,
pleno de inventividade e avesso a moldes; auxilia-nos a romper as ataduras dos
saberes mumificados, tolhidos por fórmulas sacramentais. Perseguimos nesta
pesquisa, com certa dose de inveja e talvez sem muito êxito, um pouco da mescla
hispânica de leveza e conteúdo.
4 “explicitação prévia do motivo, objetivo e produto desejado, delimitado o alcance temático e de abordagem para uma atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, p. 211). 5 “definição estabelecida ou proposta para uma palavra ou expressão, com o propósito de que tal definição seja aceita para os efeitos das ideias expostas” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, p. 200). 6 “técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, p. 209). 7 “técnica que tem como principal utilidade otimizar a leitura na Pesquisa Científica, mediante a reunião de elementos selecionados pelo Pesquisador que registra e/ou resume e/ou reflete e/ou analisa de maneira sucinta, uma Obra, um Ensaio, uma Tese ou Dissertação, um Artigo ou uma Aula, segundo Referente previamente estabelecido” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, pp. 203/204). 8 “palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, p. 197).
22
CAPÍTULO 1
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DO RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
1.1 O VALOR INATO DA DIGNIDADE HUMANA
A dignidade da pessoa humana é imanente a essa condição e precede a
todo o movimento de incorporação aos ordenamentos jurídicos dos Estados
modernos. O entendimento dela como um valor intrínseco - e a consolidação desse
entendimento - veio a entranhar raízes nos sistemas constitucionais, não o inverso.
1.1.1 A virada kantiana
A dignidade como valor inato ao ser humano encontra nas doutrinas
cristãs um antecedente importante. A criação do homem como expressão de um ato
divino empresta-lhe essa qualidade. Segundo Ferraz Junior, parcela expressiva dos
constitucionalistas preconiza haver direitos ligados à condição humana que não são
adjudicados ou outorgados pelas Constituições, senão por elas reconhecidos e
garantidos. São desse quilate, por exemplo, o direito à vida e o direito à liberdade.
Tantos os positivistas mais ferrenhos quanto os jusnaturalistas aceitam-nos como
pilares do mundo jurídico e, por isso, também para aqueles existe ao menos a
postulação de princípios fundamentais9.
Ao concebê-la como relacionada à autonomia ética, Immanuel Kant teve o
mérito de livrar-se do viés religioso, secularizando-a. Em sua percepção, a
racionalidade do ser humano, sua autonomia volitiva, é o lastro da dignidade. Dá-se-
lhe um status moral, do qual decorre o direito de ser respeitado, oponível erga
omnes.
Não é nosso escopo, neste produto científico o estudo aprofundado da
filosofia de Kant. Calha comentar, entretanto, que o filósofo considerava relevante o
estabelecimento de princípios a priori, tal como nas leis da natureza, também às leis
9 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007, pp. 526/527.
23
morais. O sistema de conhecimento a priori, fundado apenas em conceitos, é
chamado metafísica. A filosofia prática que tenha por objeto a autonomia da vontade
pressupõe uma metafísica dos costumes. Se a metafísica da natureza cuida dos
princípios universais a esta [à natureza] aplicáveis, a metafísica dos costumes liga-
se à identificação de princípios morais universais. Pode-se falar, assim, em leis
práticas incondicionais, de cunho moral, que são imperativos (mandamentos)
categóricos (incondicionais). Por força deles, determinadas ações são objetivamente
necessárias, quer dizer, são necessárias por si, independentemente do fim que por
meio delas se pode alcançar. Para o autor de Crítica da Razão Pura, “o princípio
supremo da moral é, portanto: age de acordo com uma máxima que pode valer ao
mesmo tempo como lei universal” 10.
A dignidade surge como prerrogativa apriorística. A racionalidade do ser
humano torna-o sujeito de direitos e deveres, do que também deriva a prerrogativa
da autodeterminação. Desde que a ação seja universalizável, nada pode impedir a
sua prática, como expressão da autonomia da vontade11. O homem é um fim em si
mesmo e, diversamente das coisas, a que se pode atribuir um preço, é insubstituível
e de valor inestimável12. Sarlet reanima a concepção de que a dignidade da pessoa
humana desafia qualquer espécie de coisificação ou instrumentalização do ser
humano13.
Não se desconhece o pensamento de que a dignidade teria duas faces:
uma ontológica, presa à condição humana, e uma existencial, resultado de ações 10 KANT, Immanuel. Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Tradução de Joãosinho Beckenkam. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 29. 11 “A dignidade humana quer tutelar o ser racional como um fim em si mesmo. Isso significa açambarcar os projetos de um dado sujeito, independentemente de quais forem, pelo simples fato de que eles se originam daquele sujeito, ou seja, de que são produto de autodeterminação. Nessa ótica, a autonomia e a livre escolha possuem um valor intrínseco, desassociado dos possíveis frutos ou fins derivados que possam fornecer. Precisamente porque o ser humano é fim em si mesmo, e sua ação, por ser autônoma, possui um valor ínsito a ela mesma” (NETO, João Costa. Dignidade humana: visão do Tribunal Constitucional Federal alemão, do STF e do Tribunal Europeu. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 34). 12 Tem sido recorrente o uso da expressão “virada kantiana” para designar o resgate da importância de Kant no debate jurídico atual (BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Disponível em: ˂www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/a_dignidade_da_pessoa _humana_no_direito_constitutcional.pdf˃. Acesso em: 30/08/15), bem como a tendência de reaproximação do direito com a moral (ABREU, Pedro Manoel. Processo e democracia: o processo jurisdicional como um locus da democracia participativa e da cidadania inclusiva no estado democrático de direito. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 254). 13 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 45.
24
praticadas e por isso adquirida. A negativa de uma dignidade inata, entretanto,
resumida aquela a algo a ser conquistado, instila perigosa noção por leitura a
contrario sensu: nem todos os homens são dignos; somente o serão – e só então
merecerão ser tratados como tais – os que conquistarem esse valor por seus atos.
A visão kantiana não está imune a críticas. É inescondível sua remarcada
matriz antropocêntrica. Não confere dignidade a toda e qualquer vida, senão à
humana. O filósofo de Königsberg – atual Kaliningrado - não cogita atribuí-la a
outros seres; passa ao largo de elucubrações de conteúdo ecológico, algo de difícil
aceitação no cenário contemporâneo, de acesa preocupação com conceitos como o
de sustentabilidade14. Ainda assim, escusa-lhe o fato de que esse debate era
estranho à sua época e teve o mérito, de toda a sorte, de fornecer uma base
filosófico-conceitual não excludente à dignidade. Significa dizer que ao ver nela um
apanágio da condição humana, não permite o estabelecimento de exceções15.
Uma relativização do conteúdo da dignidade pode fornecer uma
pseudojustificativa teórica ao segregacionismo e à perseguição. Se nem todos são
dignos, estaria aberto o caminho para uma retórica legitimação da esterilização dos
“estranhos à comunidade” e para a execução de mentalmente incapacitados, inaptos
a conquistar e a ver reconhecida sua dignidade. Um exemplo desditoso do que o
estabelecimento de exceções nesse campo pode representar está na exposição de
motivos do Projeto de Lei sobre o Tratamento de Estranhos à Comunidade, de 17
março de 1944, bem ao gosto do discurso eugênico dos artífices do III Reich
alemão:
Os estranhos à comunidade, especialmente os fracassados e os inúteis, pertencem frequentemente às ralés, das que todos ou alguns de seus membros ocupam continuamente a polícia e os Tribunais, ou molestam a comunidade do povo. O Projeto possibilita, portanto, esterilizar aos estranhos à comunidade quando seja esperável que tenham uma
14 O conceito operacional de sustentabilidade adotado é o de Juarez Freitas: “é o princípio que determina, independentemente de regulamentação legal, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar” (FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direto ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 303). 15 Nessa mesma senda, Dapkevicius assere: “Los derechos humanos son los derechos fundamentales, inherentes, que ele hombre posee por el hecho de ser hombre, por su propia naturaleza y dignidad” (DAPKEVICIUS, Rubén Flores. Manual de derecho público: direito constitucional. Montevidéu/Buenos Aires: B de F Editorial, 2007, p. 315).
25
descendência indesejável. Serão os Tribunais da Saúde da Herança os encarregados de decidir quando é esperável uma descendência indesejável de um estranho à comunidade16 17.
Em paralelo mais correlato ao tema a ser desenvolvido, a fissura na
imanência do digno - em sentido oposto a Kant - poderia avalizar a inércia estatal
em proporcionar moradia a todos porque parcela da população não seria
merecedora, faltando-lhe a premissa da dignidade.
Uma vez mais em Sarlet, a derivação jusnaturalista tem virtude invulgar
porque estabelece como pressuposto de que o homem, tão somente pela condição
humana, a independer das circunstâncias, titulariza direitos que o Estado e a
sociedade necessariamente devem reconhecer e respeitar18.
Ao dissertar sobre o art. 10.1 da Constituição espanhola19, Yarza vê a
dignidade humana como um critério orientador da conceituação de qualidade de
vida, mas não aceita a recíproca como verdadeira. Como explica, a precariedade
das condições de vida, mesmo que em óbvia colisão com as exigência da dignidade
do ser humano, não suprime esta mesma dignidade. Ela não é mensurável por
critérios de qualidade externos. Em situações de manifesto desamparo – indigente,
16 CONDE, Francisco Muñoz. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu tempo: estudos sobre o Direito Penal no Nacional-Socialismo. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 126. 17 Para entender melhor essa trágica visão, se é que isso é possível: “Artigo I. Estranhos à comunidade. §1º É estranho à comunidade: 1. Quem, por sua personalidade ou forma de condução de vida, especialmente por seus extraordinários defeitos de compreensão ou de caráter é incapaz de cumprir com suas próprias forças as exigências da comunidade do povo. 2. Quem a) por uma atitude de rechaço ao trabalho leva uma vida inútil, dilapidadora ou desordenada e com isto molesta a outros ou à comunidade, ou por tendência ou inclinação à mendicância ou vagabundagem, ao trabalho ocasional, pequenos furtos, estelionatos ou outros delitos menos graves, ou em estado de embriaguez provoca distúrbios ou por estas razões infringe gravemente seus deveres assistenciais, ou b) por seu caráter associal ou encrenqueiro perturba continuamente a paz da generalidade, ou 3. Quem por sua personalidade ou forma de condução de vida revela que sua mente está dirigida à comissão de delitos graves (delinquentes inimigos da comunidade e delinquentes por tendência)” (CONDE, Francisco Muñoz. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu tempo: estudos sobre o Direito Penal no Nacional-Socialismo. Tradução de Paulo César Busato, p. 118). 18 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 48. 19 Artigo 10.1 – “La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social” (ESPANHA. Constitución Española de 1978, artículo 10.1. Disponível em: http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/titulos/articulos.jsp?ini=10&tipo=2. Acesso em: 20 set. 2015).
26
prostituta, encarcerado, enfermo – o ser humano não deixa de ser um fim em si
mesmo e de merecer respeito e consideração20.
1.1.2 A revolução da dignidade
O constitucionalismo do pós-guerra é remarcado pelo que Rodotà
denomina revolução da dignidade, exaltada no artigo 1º da Declaração Universal dos
Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas (1948), assim como nas
cartas políticas da Itália (1947) e Alemanha (1949). Os dois Estados, antes unidos
no totalitarismo, souberam caminhar até o homo dignus - também na nomenclatura
do professor da Universidade de Roma –, livre para construir sua personalidade21.
Sobre sua universalidade, escreve que ao se falar de dignidade, em um raciocínio
aproximativo, pode-se erigir uma afirmação de caráter geral: a dignidade pertence a
todas as pessoas. Serão ilegítimas quaisquer tentativas de tratar ou considerar
algumas vidas com não dignas ou menos dignas que as outras, como nas
legislações racistas. A dignidade assoma como alicerce da nova acepção da
cidadania, compreendida como patrimônio jurídico insuscetível de desvirtuamentos
em razão de condições da pessoa ou do local em que se encontre22.
A dignidade, tal como a compreende, vem amalgamar princípios
fundamentais consolidados como liberdade, igualdade e solidariedade, por meio
dela rejuvenescidos e reinterpretados. O homo dignus não se entrega a nenhum
princípio que se sobreponha à liberdade e à fraternidade e assim, de certa forma, as
redimensiona. As constantes interações entre os postulados fundacionais, que se
iluminam reciprocamente, emanam maior plenitude de vida e mais intensa dignidade
ao homem23.
Se há nela uma imanência à condição humana, o direito positivo -
gestado no âmbito estatal - pode encarecê-la e municiá-la, mas não a criar. Essa
dignidade, que é tratada como um conceito vago e impreciso, não é propriamente
um conceito de direito positivo, conquanto caiba ao Direito reconhecê-la e protegê-la
20 YARZA, Fernando Simón. Medio ambiente y derechos fundamentales. Madri: Tribunal Constitucional – Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2012, p. 20. 21 RODOTÀ, Stefano. El Derecho a tener derechos. Tradução de José Manuel Revuelta. Madri: Editorial Trotta, 2014, pp. 173/174. Título Original: Il diritto di avere diritti. 22 RODOTÀ, Stefano. El Derecho a tener derechos, p. 180. 23 RODOTÀ, Stefano. El Derecho a tener derechos, p. 186.
27
em grau máximo. Pode ser categorizada como valor intrínseco ao ser humano, mas
também como fundamento do Estado, do Direito e da Sociedade24.
Essa concepção, com o homem existindo como fim em si mesmo,
sublinha sua insuscetibilidade de ser tratado como meio, como instrumento para
determinados propósitos, por melhores que sejam. Para Britto,
[...] o desenrolar do tempo tem situado o gênero humano no centro do universo. Da proclamação de que ‘o homem é a medida de todas as coisas’ (Protágoras) ao ‘cógito’ de René Descartes, passando pela máxima teológica de que todos nós fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, o certo é que a pessoa humana passou a ser vista como portadora de uma dignidade inata. Por isso que titular do ‘inalienável’ direito de se assumir tal como é: um microcosmo. Devendo-se-lhe assegurar todas as condições de busca da felicidade terrena25.
A incorporação do valor da dignidade como princípio constitucional veio
dar-lhe maior concretude e vincular o intérprete e o Poder Público, que não podem
deixar de sopesá-lo como matriz exegética e de conduta.
Essa visão de imputação de um padrão de comportamento por força de
princípio constitucional é reforçada por Ávila. Para ele, se um determinado estado de
coisas deve ser buscado, somente pode ser atingido por meio de comportamentos.
São eles as necessidades práticas ou pressupostos sem cujos efeitos e progressiva
promoção não se concretiza o fim almejado. Os princípios firmam o dever de
empreender as condutas necessárias à realização daquele estado de coisas
objetivado. Por essa perspectiva, é elementar a conclusão de que os princípios
implicam comportamentos, ainda que por via indireta26, ou como prefere Alexy,
constituem-se em mandados de otimização, sujeitos à máxima da proporcionalidade,
“são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível
dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”27.
A reinterpretação a partir da dignidade remete-nos à defesa de
Zagrebelsky, à falta de expressão melhor, de uma dogmática jurídica líquida ou
fluida capaz de conter os elementos do direito constitucional hodierno, em toda a 24 MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à moradia. São Paulo: Atlas, 2011, pp. 128/129. 25 BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 20. 26 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 80. 27 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 588.
28
sua heterogeneidade, encadeados em uma construção necessariamente não rígida
que comporte as combinações derivadas da política constitucional. Cuida-se de
levar em conta a inevitável instabilidade das relações advindas do jogo pluralista
entre os atores políticos no campo da vida constitucional concreta. Repisa que a
dogmática constitucional deve ser um líquido onde as substâncias que vertem – os
conceitos – mantêm a individualidade e coexistem sem atritos destrutivos, ainda que
com certos movimentos ondulatórios, de todo modo insuficientes em qualquer caso
para que um componente isolado subjugue os demais28.
Costa Neto aborda a doutrina alemã, para quem a dignidade humana é
princípio constitucional supremo – ou de liberdade geral - e, concomitantemente, um
valor inviolável, forte o suficiente para impor ao Estado a obrigação de garantir todos
os pressupostos materiais necessários à existência e uma participação mínima nas
vidas social, cultural e política, bem como o desenvolvimento livre da personalidade,
o denominado mínimo existencial. No concernente ao contexto nacional, pondera:
[...] parece ser bastante razoável afirmar que, na Constituição Federal, a dignidade humana é sim um direito fundamental e que, como tal, está gravada de cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV, CF), conceito análogo ao da cláusula de eternidade (Ewigkeitslausel), prevista no art. 79, (3), do Grundgesetz. Esse é o caso porque a dignidade humana serve de alicerce para um dever de respeito e proteção ao ser humano ao qual corresponde um direito que é, a seu turno, como esclarece Jan-Ulf Suchomel (2010, p. 59), individual e ‘justiciável’ (justiziabel). É possível derivar da dignidade humana pretensões jurídicas pertinentes ao indivíduo, sem que seja necessária uma mediação infralegal, embora tal mediação, por vezes esteja presente. O direito ao mínimo existencial, por exemplo, é concretizado por meio de lei, mas é possível ingressar em juízo contra uma lei que, a pretexto de concretizar tal corolário da dignidade humana, não o faça de forma transparente, satisfatória e coerente. Nesse sentido, a dignidade humana funda reivindicações bastante concretas e, portanto, direitos subjetivos. Por outro lado, a dignidade humana é também princípio, pois, como escolha axiológica feita pelo legislador constituinte originário, ela perpassa, enquanto vetor objetivo, por meio de ‘pontos de irrupção’ ou ‘portas de entrada’ (Einbruchstellen) – como, por exemplo, as cláusulas gerais -, todo o ordenamento jurídico, inclusive o direito privado, o qual deverá ser interpretado, ainda que mediata e indiretamente, à luz dela. Como princípio, ela funda não apenas pretensões subjetivas e concretas, mas é uma garantia para toda a sociedade e, como tal, possui dimensão objetiva.
28 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, derechos, justicia. Tradução de Marina Gascón. 10. ed. Madri: Editorial Trotta, 2011, p. 17. Título Original: Il diritto mite. Legge diritti giustizia.
29
Com efeito, fez bem o constituinte brasileiro ao chamar a dignidade humana de fundamento da República Federativa do Brasil. Isso só pode significar que ela é, simultaneamente, direito fundamental e princípio e que, como tal, possui lugar de distinção na ordem jurídico-constitucional brasileira29.
Por reflexo de uma das máximas tópicas de interpretação constitucional, a
da unidade da Constituição, a dignidade capilariza-se por toda a Carta Política.
Schäfer elucida que por esse princípio interpretativo as normas constitucionais, sem
exceção, devem ser auscultadas de maneira a preservar a coerência interna do
sistema, a excluir leituras isoladas e estanques potencialmente causadoras de
perplexidades normativas: “A norma constitucional, sendo parte de um sistema, deve
ser aplicada tendo-se presentes o seu contexto e sua correlação com o conjunto” 30.
A positivação, rediga-se, é antes o reconhecimento de uma realidade
antropossocial do que o expressar de uma relação criador/criatura. Na ótica de
Grau, o Direito não se reduz ao direito objetivo codificado. As regras escritas e
sancionadas pelo Estado são a porção visível de um imensurável conjunto de
normas, “concebidas” e “vividas” no corpo social, às quais o intérprete autêntico – e
atento, diria – pode atribuir efeitos jurídicos31.
Assinala, assim, a distinção necessária entre o direito posto – aquele
produzido pelo Estado, conhecido como direito moderno ou formal - e um direito
subjacente, fruto de construção histórico-social (direito pressuposto), que exercem
influências recíprocas, retroalimentando-se.
1.2 O DESPERTAR DA DIGNIDADE HUMANA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas de 194832, editada no rescaldo da Segunda Guerra Mundial,
29 NETO, João Costa. Dignidade humana: visão do Tribunal Constitucional Federal alemão, do STF e do Tribunal Europeu, pp. 47/48. 30 SCHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos fundamentais: proteção e restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 118. 31 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 82. 32 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em: 20 set.2015.
30
reconhece a dignidade como atributo inerente à humanidade em seu art. 1º: “Todas
as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e
consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”33.
Conforme Sarlet, o princípio da dignidade da pessoa humana é um
conceito com contornos imprecisos, o que dimana da diversidade das sociedades
democráticas contemporâneas. De todo modo, em seus exatos termos,
[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar da possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como elemento integrante e irrenunciável da natureza da pessoa humana, é algo que se reconhece, respeita e protege, mas não que possa ser criado ou lhe possa ser retirado, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Não é, portanto, sem razão que se sustentou até mesmo a desnecessidade de uma definição jurídica da dignidade da pessoa humana, na medida em que, em última análise, se cuida do valor próprio, da natureza do ser humano como tal34.
É claro o papel dele como princípio fundamental estruturante e valor-guia
de todo o sistema, a quem empresta unidade axiológica35.
No que toca especificamente ao ordenamento nacional, Martins pondera
que a Constituição brasileira faz perceber que o valor fonte do sistema constitucional
é a dignidade da pessoa humana. É o que se infere do posicionamento topográfico 33 “A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada por meio da Resolução da Assembleia Geral da ONU 217 A (III), de 10 de dezembro de 1948, foi o marco jurídico-político que a comunidade internacional estabeleceu a fim de listar aqueles direitos considerados essenciais para garantir a inviolabilidade da dignidade do ser humano [...]. Os 30 artigos da Declaração de 1948 visam garantir a concretização de dois objetivos complementares: incrustar o respeito à dignidade da pessoa humana na consciência da humanidade e impedir o ressurgimento da ideia de transformar a pessoa humana em um objeto descartável” (ALMEIDA, Guilherme Assis de; APOLINÁRIO, Silvia Menicucci O. S. Direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 15). 34 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 102. 35 “ [...] na condição de princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa (höchstes wertsetzendes Verfassungsprinzip). Nesta perspectiva, verifica-se ampla convergência a respeito da noção de que a dignidade da pessoa humana, designadamente como princípio fundamental estruturante (o que não exclui sua condição de regra), confere e assegura uma certa unidade axiológica ou unidade de sentido ao sistema dos direitos fundamentais [...]” (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 107).
31
dos preceitos constitucionais respectivos já ao início do texto e como princípio
fundamental, mas também do vasto catálogo de direitos fundamentais instituídos36.
Para melhor compreensão, basta ter um pouco de familiaridade com a história
nacional e o contexto em que a Lei Maior veio a lume. Os movimentos da sociedade
civil organizada dispersaram a longa noite que se abatera sobre o país. Tratou-se de
procurar resgatar a dignidade vilipendiada pelo regime de exceção e situá-la como
elemento promotor da “unidade de sentido e legitimidade” ou “unidade axiológico-
normativa” da ordem constitucional superveniente37.
1.2.1 A natureza plúrima da dignidade
Não se cuida de uma oca abstração, mas de um conceito valorativo com
natureza plúrima, como princípio, direito, valor, fundamento e razão de toda a ordem
jurídico-constitucional38:
A regra maior da dignidade da pessoa humana deve constar de modo absoluto na Constituição de todo Estado que se considera de Direito, tendo em vista que tal regra fundamenta a relação entre o poder e os membros da sociedade política, no sentido de reconhecer o estatuto jurídico básico de cada homem que o Estado tem que respeitar. A dignidade da pessoa humana é pedra basilar das sociedades contemporâneas democráticas e, sob esse signo, constrói-se como fundamento e limite de toda atividade humana e estatal. A regra fundante da dignidade da pessoa humana reside no valor moral e espiritual inerente à pessoa, ou seja, todo ser humano é dotado desse preceito, e tal constitui o princípio máximo do Estado Democrático de Direito. A pessoa é colocada como o fim supremo do Estado e do Direito. A dignidade da pessoa humana não se resume, somente, em princípio norteador e fundante da República; ela é mais do que um princípio; ela é um metaprincípio, na lição de Jorge Miranda, que está acima e além dos demais princípios jurídicos. Sem sua proteção não há a possibilidade de existência da sociedade como entidade e, muito menos, de constituição do Estado39.
36 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2012, p. 61. 37 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental, p. 62. 38 LIBERATI, Wilson Donizeti. Políticas públicas no Estado constitucional. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 72/73. 39 LIBERATI, Wilson Donizeti. Políticas públicas no Estado constitucional, pp. 68/69.
32
É escusado dizer, portanto, que há um firme liame com a exaltação dos
direitos fundamentais, adotado o conceito operacional40 tecido por Ferrajoli, para
quem direitos fundamentais são “aqueles direitos que são atribuídos universalmente
a todos enquanto pessoas, enquanto cidadãos ou enquanto capazes de agir”,
imunes à disponibilidade política e de mercado, formulados como regra geral
atribuível igualmente a todos41. A alusão do jusfilósofo italiano à cidadania e à
capacidade de agir é obviamente em abstrato e, logo, ninguém está excluído da
titularização.
Na nota de Bonavides, a dignidade da pessoa humana deixou de ser uma
exclusiva manifestação conceitual do direito natural metapositivo, radicado ora na
razão divina ora na humana, para se converter em proposição autônoma, carregada
de teor axiológico e atrelada à concretização dos direitos fundamentais42.
É de rematado anacronismo negar a pluridimensionalidade dos direitos
fundamentais para tê-los como simples barreiras à atuação estatal, um direito à não-
violação. Mais do que isso, obrigam o Estado a sair de seu estupor e adotar todas as
medidas tendentes a proteger o conteúdo e a exponencializar a efetivação do direito
erigido ao grau de fundamentalidade.
Hesse sobreleva como fenômeno atrelado aos direitos fundamentais a
criação de um standard constitucional capaz de conferir unidade entre direito e
princípios, com certa carga homogeneizadora do sistema. Embora refletisse acerca
da realidade da Alemanha de seu tempo, a teorização cuidadosa do
constitucionalista permitiu que sua obra chegasse até nós preservando o frescor de
quando escrita. O doutrinador tedesco ressalta que os direitos fundamentais influem
em todo o Direito. São uma espécie de pauta imperativa à generalidade das
instâncias aplicadoras do Direito, a quem ao estabelecer, interpretar e pôr em prática
40 “definição estabelecida ou proposta para uma palavra ou expressão, com o propósito de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias expostas” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, p. 198). 41 FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Tradução de Alexandre Salim, Alfredo Copetti Neto, Daniela Cademartori, Hermes Zanetti Júnior e Sérgio Cademartori. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, pp. 92/93. (sem título original no exemplar utilizado). 42 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma Nova Hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 231.
33
as normas jurídicas jamais poderão descurar do efeito irradiador dos diretos
fundamentais43.
Nessa mesma perspectiva, adita-se que a concepção dos direitos
fundamentais como normas objetivas supremas do ordenamento jurídico é vital às
atividades do Estado. A vinculação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário
ecoa na obrigação (negativa) de abstenção de ingerências desestabilizadoras desse
rol de direitos e na obrigação (positiva) de envidar todos os esforços para que esses
direitos fundamentais realizem-se em sua plenitude, inclusive quando não conste
uma pretensão subjetiva dos cidadãos44.
Está incrustada nisso a emergência de uma teoria material da
Constituição, a reclamar postura ativa, a fim de transmitir a hegemonia do Estado à
sociedade. Com isso, os direitos fundamentais migram da dimensão subjetiva à
objetiva por meio de uma nova hermenêutica pós-positivista – é dizer, sobreposta ao
positivismo lógico-formal -, com forte traço axiológico, mirando ininterruptamente a
concretização.
É nesse diapasão a doutrina de Bonavides, para quem os direitos
fundamentais são a sintaxe da liberdade e marcam o maior êxito do
constitucionalismo do século XX, do qual são seu traço mais nítido e característico.
O espaço teórico abre-se, então, para o conceito do juiz social, comprometido com
uma teoria material da Constituição, com a legitimidade do Estado Social, com suas
flâmulas de justiça e com a universalização da eficácia e da aplicação imediata
desses mesmos direitos fundamentais. Coroam-se, assim, os valores da pessoa
humana no grau mais elevado de juridicidade, como titular e destinatária-mor de
todas as regras de poder45.
Segundo ele, a agregação da dimensão jurídico-objetiva trouxe a reboque
conquistas importantes, tais como a extensão dos direitos fundamentais a todo o
Direito Privado; sua ascensão à categoria de princípios; a eficácia vinculante ao três
43 HESSE, Konrad. Temas fundamentais do Direito Constitucional. Tradução de Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 39. 44 HESSE, Konrad. Temas fundamentais do Direito Constitucional. Tradução de Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho, p. 40. 45 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28.ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 622.
34
Poderes; a aplicabilidade direta e eficácia imediata; a dimensão valorativa
(axiológica); a eficácia inter privatos, além dos limites do Poder Público; a aquisição
de um caráter dúplice (subjetivo-objetivo); a construção conceitual da concretização;
o uso da proporcionalidade como princípio útil à hermenêutica concretizante46.
Häberle apregoa a necessidade de uma interpretação pluralista, pensada
para uma sociedade aberta e não para um modelo de sociedade hermética. Entende
que uma teoria da interpretação constitucional deve enfrentar com seriedade o tema
“Constituição e realidade constitucional”. Para isso, há de trazer subsídios das
ciências sociais e das teorias jurídico-funcionais, bem como primar pelo uso de
métodos interpretativos dirigidos ao atendimento do interesse público e do bem-estar
geral47.
Uma nova teoria da interpretação constitucional em que realçada a
importância da práxis e da realidade denota a preocupação com a efetividade:
Uma Constituição, que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública (Öffentlichkeit), dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos. Considerando a realidade e a publicidade (Wirklichkeit und Öffentlichkeit) estruturadas, nas quais o ‘povo’ atua, inicialmente, de forma difusa, mas, a final, de maneira ‘concertada’, há de se reconhecer que essas forças, faticamente relevantes, são igualmente importantes para a interpretação constitucional. A práxis atua aqui na legitimação da teoria e não a teoria na legitimação da práxis. Como essas forças compõem uma parte da realidade constitucional e da publicidade (kontitutionelle Wirklichkeit und Öffentlichkeit), tomam elas parte na interpretação da realidade e da publicidade da Constituição! [...] Limitar a hermenêutica constitucional aos intérpretes ‘corporativos’ ou autorizados jurídica ou funcionalmente pelo Estado significa um empobrecimento ou um autoengodo. De resto, um entendimento experimental da ciência do Direito Constitucional como ciência de normas e da realidade não pode renunciar à fantasia e à força criativa dos intérpretes ‘não cooperativos’ (‘nicht-zünftige’ Interpreten)48.
46 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, pp. 623/624. 47 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 12. 48 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, pp. 33/34.
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Ao censurar a insuficiência do juspositivismo, Dworkin entende que a
prática do direito é argumentativa e que interpretar é revestir uma norma de
significado, extraindo dela sua melhor luz; é retirar-lhe o máximo valor. Há nisso uma
concepção substantiva de legalidade, com interconexão dos elementos formal e
substancial. Propõe uma concepção do direito como integridade (law as integrity),
para além do convencionalismo49 e, em outro extremo, do pragmatismo:
A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo50. Nessa contextura, a tutela constitucional da moradia pode ser
depreendida dos arts. 5º, XXIII, 7º, IV, 23, IX, 170, III, 182, §2º, 183 e 191 da
Constituição da República Federativa do Brasil51 e a dignidade foi exalçada como
princípio fundamental, como se infere dos arts. 1º, III, 3º, III e 5º, §§1º e 2º, vindo a
ser incluída no rol de direitos sociais do art. 6º pela Emenda Constitucional nº
26/2000 com manifesto escopo de fazer esse valor/princípio espraiar todo o seu
conteúdo axiológico pela integralidade do sistema jurídico.
Já na ideação cética de Lassalle, em meados do século XIX, a
Constituição seria singelo somatório das vontades das classes que formatam a
sociedade tal como ela é: quem dispõe de poderio político, social ou econômico, isto
é, o governante a quem acodem exércitos, o nobre influente, o aristrocrata, o
detentor dos meios de produção. A simbologia da Constituição como folha de papel
expressa a negativa em sua tese de qualquer força transformativa da Carta Política,
49 “ [...] o convencionalismo difere do direito como integridade exatamente porque o primeiro rejeita a coerência de princípio como uma fonte de direitos. O segundo a aceita: o direito como integridade supõe que as pessoas têm direitos – direitos que decorrem de decisões anteriores de instituições políticas, e que, portanto, autorizam a coerção – que extrapolam a extensão explícita das práticas políticas concebidas como convenções. O direito como completude supõe que as pessoas têm direito a uma extensão coerente, e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente sobre seu significado. Isso é negado pelo convencionalismo: um juiz convencionalista não tem razões para reconhecer a coerência de princípio como uma virtude judicial, ou para examinar minuciosamente leis ambíguas ou precedentes inexatos para tentar alcançá-la” (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 164). 50 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo, p. 264. 51 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 20 set. 2015.
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limitada a reproduzir fielmente o quadro de poder em um dado momento histórico52.
As interações entre o arcabouço constitucional e a realidade, em relação sinérgica,
como Hesse preconiza, podem a um só tempo beneficiar os diversos estamentos
sociais – inclusive os mais modestos e usualmente apartados do poder – e agregar
valor ao texto constitucional ou, na expressão do Ex-Presidente da Corte
Constitucional da então Alemanha Ocidental (RFA), dar-lhe maior força normativa53.
É apropriado o comentário de Dantas a respeito da crença de Hesse na
aptidão da Carta Política para influir na realidade, rejeitadas as concepções
monistas, que ou exaltam puramente o elemento normativo ou os aspectos fáticos. A
modulação das correntes antípodas resulta no reconhecimento dessa via de mão
dupla: a Constituição é em parte moldada pela realidade e em outra medida nela
interfere. É desarrazoado emprestar preponderância apenas à norma ou apenas ao
fato. À ação da “força determinante” de uma, reage a “força condicionante” do
outro54. O atendimento dos comandos impostos aos destinatários por disposição
voluntária energiza a pretensão de eficácia da Constituição e a transforma em força
ativa. Essa voluntariedade depende da internalização pela comunidade política de
algo muito maior do que a vontade de poder: a vontade de Constituição55.
52 “Os fatores reais do poder que regem cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições políticas da sociedade em questão, fazendo com que não possam ser, em substância, mais do que tal e como são” (LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Cultura Jurídica, 2001, p. 42). 53 Hesse não compactua da visão lassallista quanto à existência de uma Constituição real e uma Constituição jurídica – esta mero pedaço de papel -, o que equivaleria a despir o Direito Constitucional de seu valor como ciência jurídica: “Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik. Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão somente a miserável função – indigna de qualquer ciência – de justificar relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Não haveria mais como diferençá-la da Sociologia e da Ciência Política. Afigura-se justificada a negação do Direito Constitucional, e a consequente negação do próprio valor da Teoria Geral do Estado enquanto ciência, se a Constituição jurídica expressa, efetivamente, uma momentânea constelação de poder. Ao contrário, essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento se se puder admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição. Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional?” (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 11). 54 DANTAS, Miguel Calmon. Constitucionalismo dirigente e pós-modernidade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 257. 55 DANTAS, Miguel Calmon. Constitucionalismo dirigente e pós-modernidade, p. 258.
37
1.2.2 A emergência do pós-positivismo
De certa forma, as Constituições do pós-guerra passaram a exibir maior
preocupação com a edição de normas substantivas e incorporaram um rol de
direitos fundamentais. O chamado neoconstitucionalismo tem nelas seu referencial
histórico, com iniludível atribuição de normatividade aos princípios e agasalho de
uma hermenêutica aberta ao debate moral, a homenagear a ponderação de valores
como técnica interpretativa. Essa interpretação assentada na principiologia e
maximizadora dos direitos fundamentais é atenta à persecução de uma justiça
substantiva, à transformação da realidade social.
Galvão conceitua neoconstitucionalismo como uma interpretação da
prática jurídica pela perspectiva dos juízes, em que a Constituição é reputada norma
substantiva, em cuja composição os princípios ocupam espaço primacial, “exigindo
do intérprete o manuseio de técnicas especiais, notadamente a ponderação”56.
Pontua que as características centrais dessa vertente são a valorização dos
princípios, a adoção de métodos hermenêuticos mais abertos, o recurso a juízos de
ponderação e o senso de constitucionalização do Direito, mecanismos utilizados
para interferência na realidade social57. O estudioso insiste que a matriz teórica
converge para a do constitucionalismo dirigente58, com diretrizes vinculantes e
imponíveis a todos os poderes constituídos.
Atienza censura a obscuridade do termo neoconstitucionalismo. Prefere
denominar pós-positivistas as tendências caracterizadas por uma concepção
constitucionalista do Direito, baseadas na unidade da razão prática (moral e
jurídica), atentas à necessidade de guiar a prática jurídica a um mínimo moral
(objetivismo moral), atribuidoras de um papel ativo à jurisdição, em que subsunção e
56 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O Neoconstitucionalismo e o Fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 59. 57 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O Neoconstitucionalismo e o Fim do Estado de Direito, p. 61. 58 Não se desconhecem as críticas de que o modelo de constitucionalismo dirigente cumpriu seu papel histórico e esgotou-se, desafiando a invenção de um novo paradigma afinado com as sociedades contemporâneas.
38
ponderação estejam bem balanceadas, e contempladoras de uma visão
argumentativa do Direito, equilibrada entre o formalismo e o ativismo59.
Com inventividade, Abreu recorre à simbologia das bandeiras da
Revolução Francesa para atribuir ao século XXI a agenda da fraternidade, tempo de
realizar o bem comum:
O individualismo e o abstencionismo ou neutralismo do Estado Liberal tiveram o condão de gerar imensas injustiças, e os movimentos sociais do século XIX e século XX, especialmente, demonstraram cabalmente a insuficiência das liberdades burguesas, possibilitando um nível de consciência quanto à necessidade da justiça social. Para Verdú, o Estado de Direito já não poderia justificar-se como liberal para enfrentar a maré social sem se despojar de sua neutralidade, integrando em seu seio a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. Nessa contingência, o Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, em Estado Social de Direito, comprometido em realizar a justiça social. O qualitativo ‘social’ retrata a correção do individualismo clássico liberal, afirmando-se os denominados direitos sociais com a realização de objetivos de justiça social60.
Há uma verdadeira obrigação do Estado de atuar em concreto para a
implementação do conteúdo constitucional, com efeito dirigente. Transformar a
realidade pela vivificação normativa é um imperativo. Não desenvolver um programa
amplo de habitação popular, v.g., é negar efeito normativo à Constituição, reduzida a
um discurso sedutor; desenvolvê-lo, por outro lado, não é manifestação da
benevolência ou da ideologia da elite política.
Dada sua fundamentalidade, as normas protetoras e promotoras
(prestacionais) não podem ser tidas, assim, como mero expressar de boas intenções
do legislador ou do estabelecimento de uma simples meta a ser alcançada – vida e
moradia dignas para todos -, de modo que a violação, menosprezo ou negativa de
universalização desse direito dá ensanchas à judicialização. Cabe a nota de que os
direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata – conforme a dicção do art. 5º, §1º,
59 ATIENZA RODRÍGUEZ, Manuel. Ni positivismo jurídico ni neoconstitucionalismo. Una teoria postpositivista del Derecho. Florianópolis/SC, Auditório do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (Pleno), 13/08/15. Palestra. 60 ABREU, Pedro Manoel. Processo e democracia: o processo jurisdicional como um locus da democracia participativa e da cidadania inclusiva no estado democrático de direito. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, pp. 107/108.
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da CRFB – e com esse status devem ser considerados os elencados no Título II, a
abarcar os direitos sociais.
Em especial quanto ao direito à moradia, visto como fundamental, está
imbricado ao direito a cidades sustentáveis, o que remete à regularização de
loteamentos informais e de favelas. Para Serrano, mais do que a simples produção
de unidades habitacionais, importa a produção de unidades munidas de
infraestrutura adequada. A conexão entre o direito à moradia e o direito a cidades
sustentáveis (art. 2º, I, da Lei nº 10.257/2001) pressupõe investimentos sobre a
terra. Aquele necessariamente reverbera as condições dos entornos próximo e
remoto. Logo, não pode prescindir da ocupação mais equânime do espaço urbano
como estratégia de reversão do apartheid socioespacial. O aparato legal trazido pelo
Estatuto da Cidade há de ser aproveitado para colar os fragmentos das “cidades
partidas” (Zuemir Ventura), a partir do acionamento dos mecanismos de gestão
democrático-participativa da política de desenvolvimento urbano61.
Devem ser considerados, ainda, outros elementos correlatos à dignidade
como supraprincípio62, a par da jusfundamentalidade, como a garantia do mínimo
existencial (padrão mínimo de vida/piso vital mínimo), reserva do possível – inapta,
entretanto, como justificativa do Poder Público para o descumprimento de ditames
constitucionais - e proibição de retrocesso social.
Nessa linha de raciocínio, diversos temas aparentemente estanques
demonstram ter um acréscimo de densidade quando entrelaçados. Dito de outro
modo, se perquiridos como pertencentes a uma mesma moldura, em uma
composição pictórica harmônica e equilibrada, revestem-se de maior significado.
Consistem nos pigmentos desse quadro de cidadania estampada, assim, o refalado
princípio da dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais - dentre os quais
o direito à moradia -, o neoconstitucionalismo ligado à sobrevinda de uma nova e
indispensável hermenêutica concretizadora, e mesmo a edição de diplomas de apoio
- contributos à construção de um novo direito urbanístico, inclusivo, plural e
participativo – como o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e a usucapião
especial urbana coletiva nele insculpida (art. 10), motes dos capítulos vindouros. 61 SERRANO JÚNIOR, Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalização e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, pp. 57/58. 62 MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à moradia, p. 131.
40
CAPÍTULO 2
DIREITO À MORADIA, ESTATUTO DA CIDADE E NOVO DIREITO URBANÍSTICO
2.1 O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À MORADIA E AS NOVAS LUZES DA CIDADE
Anotou-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é o esteio dos
direitos fundamentais, que simultaneamente dão-lhe solidez. É possível dizer que
mantêm uma relação simbiótica, em um círculo virtuoso.
Os direitos fundamentais são elementos nucleares do Estado
Democrático de Direito e, como visto, não têm apenas a função de barreiras à
interferência do poder estatal. Ao compelirem-no a ações realizadoras, exercem uma
segunda função, que é a de legitimá-lo e dar validade substancial ao ordenamento
jurídico63.
Dentre os direitos fundamentais estão direitos sociais64 como educação,
saúde, alimentação, trabalho, lazer, segurança e moradia65. Para José Afonso da
Silva, os direitos sociais são uma dimensão dos direitos fundamentais e significam
prestações entregues pelo Estado, enunciadas em normas constitucionais, para
melhoria das condições de vida dos mais fracos. Ligam-se à igualdade real, no
sentido de proporcionar as condições materiais para o gozo de direitos individuais,
como a liberdade66.
63 Alexy classifica os direitos fundamentais sociais em direitos a prestações em sentido estrito: “Direito a prestação em sentido estrito são direitos do indivíduo, em face do Estado, a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia também obter de particulares. Quando se fala em direitos fundamentais sociais, como, por exemplo, direitos à assistência à saúde, ao trabalho, à moradia e à educação, quer-se primariamente fazer menção a direitos a prestação em sentido estrito” (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, p. 499). 64 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 111. 65 Art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010). 66 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 1998, pp. 289/290.
41
Sem eles, os direitos sociais, resta comprometido o desenvolvimento da
personalidade e das potencialidades individuais. Contribuem, assim, para
assecuração do mínimo existencial67. Direitos sociais podem ser conceituados, para
Luño, em sentido objetivo, como o conjunto de normas por meio das quais o Estado
leva a cabo sua função equilibradora das desigualdades sociais; em sentido
subjetivo, tem-nos como a faculdade dos indivíduos de partilhar os benefícios da
vida social, a englobar direitos a prestações por parte de poder público, diretas ou
não68.
Tem-se na Comuna de Paris (1848) um importante antecedente histórico
de uma perspectiva de atuação estatal para interferir positivamente nas condições
de vida das pessoas, mas o constitucionalismo social foi mesmo alavancado pelas
Constituições do México (1917), da Rússia soviética (1918) – a URSS seria criada
em 1922, com o êxito bolchevique na guerra civil - e de Weimar (1919). A
proliferação dos direitos dessa espécie nos textos constitucionais somente ocorreu
após a Segunda Guerra Mundial.
2.1.1 A quebra do imobilismo: direito a prestações
Cruz historia que a doutrina constitucionalista inicial deixou a cargo dos
cidadãos a satisfação de suas necessidades materiais e no transcorrer das crises
econômicas, entre as quais sublinha a Segunda Revolução Industrial e a Grande
Depressão de 1929, fez-se evidente a necessidade de intervenção do Estado para
67 A discussão não é propriamente nova. Em meados do século XIX, Engels atacava a escassez de moradias e atribuía o fato a algo intrínseco ao capitalismo: “Mas de onde provém a falta da habitação? Como ela surgiu? Como bom burguês, o senhor Sax não pode saber que ela é necessariamente produzida pela forma burguesa da sociedade; uma sociedade que não pode existir sem falta de habitação quando a grande massa trabalhadora depende exclusivamente de seu salário, ou seja, da soma de meios indispensáveis à sua existência e reprodução; quando novos melhoramentos mecânicos etc., deixam continuamente sem trabalho massas de operários; quando violentas e cíclicas crises industriais, condicionam, por um lado, a existência de um numeroso exército de reserva de desempregados e, por outro lado, temporariamente deixam na rua grande massa de trabalhadores; concentrando-se nas grandes cidades num ritmo mais rápido que o da construção de casas nas condições atuais, de vez que para os mais ignóbeis pardieiros há sempre locatários; quando, finalmente, o proprietário de uma casa, na sua qualidade de capitalista, tem não só o direito mas também, em virtude da concorrência, de certo modo o dever de extrair da sua casa, sem escrúpulos, os aluguéis mais elevados. Numa sociedade assim, falta de habitação não é nenhum acaso: é uma instituição necessária; e juntamente com as suas repercussões sobre a saúde etc., só poderá ser eliminada quando toda a ordem social for inteiramente transformada [...]” (ENGELS, Friedrich. A Questão da Habitação. Tradução de Dainis Karepovs. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, pp. 38/39). 68 LUÑO, Antonio E. Pérez. Los Derechos Fundamentales. 11. ed. Madri: Editorial Tecnos, 2013, p. 182.
42
propiciar um mínimo de bem-estar à população. Pontua que “o Estado passou a ser
configurado, paulatinamente [...] como intervencionista ou, numa fórmula mais
ampliada, como um Estado Social e com função social, decidido a promover – ou a
impedir – determinadas ações sociais, culturais e econômicas”69.
As regras de mercado decerto não pareceram sólidas a um pensativo
Franklin Delano Roosevelt ao ter em seu país uma taxa de desemprego de 25% no
auge da crise, acompanhada por uma onda de suicídios em fazendas e indústrias
abandonadas. Não deve ter se fiado tanto da proverbial sabedoria do laissez-faire ao
implementar o New Deal, programa que combinava controle de produção e preços,
criação de agências regulatórias e principalmente pesados investimentos em obras
públicas. Não pôde deixar de perceber, da janela de seu gabinete, que a mão
invisível do mercado fazia um gesto obsceno a ele e aos trabalhadores
estadunidenses. Soa graciosa, assim, a fala dos arautos do Estado mínimo,
gendarme de forças hegemônicas, estas que nas crises cíclicas suplicam ao mesmo
Estado a salvação do sistema financeira para o bem de todos.
Enfim, sob o absenteísmo do Estado liberal e o intervencionismo do
Estado social estão os clássicos direitos de liberdade da primeira fase do
constitucionalismo - caracterizados pela imposição de deveres de não interferência,
em especial ao poder público – e os direitos a prestações, que exigem postura
estatal ativa para, mais à frente do âmbito formal, ganharem efetividade e
concretude70. Conforme Satrústegui, cuida-se de direitos não consistentes na
exigência de absenteísmo estatal ou na garantia de preservação de uma esfera
individual de autonomia, senão em direitos refletidos em um dar ou em um fazer71.
Fioravanti expressa bem esse status positivus. Disserta que depois das
amargas experiências bélicas do século passado mostrou-se insuficiente a
afirmação solene de direitos e liberdades nos textos constitucionais. A Constituição
não pode ser unicamente uma norma fundamental de garantia. Exige-se algo mais,
69 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011, p. 161. 70 GUERRA, Luis López; ESPÍN, Eduardo; MORILLO, Joaquín García; TREMPS, Pablo Pérez; SATRÚSTEGUI, Miguel. 9. ed. Derecho Constitucional: el ordenamiento constitucional. Derechos y deberes de los ciudadanos. Valência: Tirant Lo Blanch, 2013, p. 128. 71 GUERRA, Luis López; ESPÍN, Eduardo; MORILLO, Joaquín García; TREMPS, Pablo Pérez; SATRÚSTEGUI, Miguel. 9. ed. Derecho Constitucional: el ordenamiento constitucional. Derechos y deberes de los ciudadanos, p. 397.
43
capaz de restringir o risco de atentados àqueles, por ação ou omissão. Precisa-se
concebê-la como norma diretiva fundamental, a que todos os sujeitos politicamente
ativos, públicos ou privados, devem vergar-se72.
A classificação básica de direitos de primeira (civis e políticos) e de
segunda geração (sociais e econômicos) é ancorada nessa distinção entre direitos a
abstenções e direitos a prestações73. É rotineiro relacionar os direitos sociais aos
últimos e divisar fundamentos político-morais em boa parte deles, como os direitos à
educação, moradia e assistência médica, sob a tese largamente apoiada da
indivisibilidade e interdependência dos direitos sociais, civis e políticos74 75. Morales,
ao tempo em que critica a vagueza do termo, cita o interesse fundamental à vida
decente:
Los derechos sociales, para Fabre, consisten en la exigencia de los recursos adecuados para que las personas que carecen de aquellos puedan acceder a una educación adecuada, una vivienda adecuada, un cuidado médico adecuado y un ingreso mínimo adecuado. El argumento que desarolla Fabre para justificar la posibilidad de estos cuatro derechos sociales morales, entonces, parte de asignar un interés fundamental en vivir una vida decente a todas las personas, lo que a su vez se sustenta en los intereses de todos en la autonomia y el bienestar. Asume que todos los individuos tienen, en primer lugar, derechos morales a que se respeten estos intereses, es decir, derechos de no interferencia contra todos los demás, justificando en el valor moral de ser una persona que lleva una vida decente. Ahora bien, continúa Fabre, si las necesidades materiales no están satisfechas, las personas no pueden ser autónomas y alcanzar su bienestar, lo cual significa que aquellas no pueden vivir una vida decente76.
Como leciona Cruz, a intervenção do Estado no domínio social,
consagrada nas constituições contemporâneas, tem o efeito interpretativo de
72 FIORAVANTI, Maurizio. Los Derechos Fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. Tradução de Manuel Martínez Neira. 6. ed. Madri: Editorial Trotta, 2009, p. 128. Título Original: Appunti di storia delle costituzioni moderne. Le libertá fondamentali. 73 Canotilho subdivide o que denomina direitos a ações positivas em direitos a prestações fáticas e direitos a prestações normativas (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1.259). 74 MORALES, Leticia. Derechos Sociales Constitucionales y Democracia. Madri: Marcial Pons, 2015, p. 185. 75 Segundo Jorge Miranda, “dum prisma valorativo, dir-se-ia que os direitos pessoais se ligam à autonomia, à liberdade e à segurança da pessoa; que os direitos sociais decorrem de sua sociabilidade e têm em vista objetivos de promoção, de comunicação e de cultura; e que os direitos políticos se ajustam à ideia de participação” (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 126). 76 MORALES, Leticia. Derechos Sociales Constitucionales y Democracia, p. 202.
44
submeter os direitos dos indivíduos e a linha de ação do poder público a uma leitura
sob o valor da solidariedade77. A passagem para um modelo estatal regulador do
direito de propriedade, de início por meio da legislação infraconstitucional, depois
pelas Leis Fundamentais, implicou grande avanço em comparação aos primórdios
do constitucionalismo. A relativização do direito de propriedade e sua subordinação
à sua função social foram produto das necessidades sociais, representando de certa
forma um estímulo ao progresso material, à valorização do ser humano e à sua
interação criativa com a sociedade78.
Na fina intelecção de Bonavides, há uma tendência a que os direitos
fundamentais de segunda geração tornem-se justiciáveis. O argumento do caráter
programático da norma, iterativamente brandido como pretexto para a inércia, já não
é tão palatável. Os direitos sociais trouxeram a consciência de que há uma realidade
mais complexa e rica do que o solitário individualismo liberal, a reclamar participação
e densificação dos valores existenciais por esforço conjunto79.
O direito fundamental social80 à moradia é aqui destacado porque inserto
nas necessidades vitais, âmbito em que avulta a importância do advento da Lei nº
10.257/2001 (Estatuto da Cidade), adjutório na gestação de uma nova ordem
urbanística. Embora não se confunda com os direitos à propriedade e à posse, é
77 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional, p. 230. 78 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional, p. 232. 79 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 583. 80 “A categoria dos direitos de status positivus, também chamados de direitos ‘sociais’ ou a prestações, engloba os direitos que permitem aos indivíduos exigir determinada atuação do Estado, no intuito de melhorar suas condições de vida, garantindo os pressupostos materiais necessários para o exercício da liberdade, incluindo as liberdades de status negativus. [...] A expressão direitos sociais se justifica porque seu objetivo é a melhoria de vida de vastas categorias da população, mediante políticas públicas e medidas concretas de política social. Mas isso não o torna um direito coletivo. Enquanto direitos públicos subjetivos, os direitos fundamentais não são só individualizáveis; são também, e primordialmente, direitos individuais (dimensão subjetiva). As prestações estatais (dimensão objetiva) que realizam os direitos sociais podem ser de duas espécies. Primeiro, prestações materiais (na terminologia alemã, ‘ações fáticas positivas’ – positive faktische Hanlungen) que podem consistir tanto no oferecimento de bens ou serviços a pessoas que não podem adquiri-los no mercado (alimentação, educação, saúde etc.), como no oferecimento universal de serviços monopolizados pelo Estado (segurança pública). Segundo, podem ser prestações normativas (na terminologia alemã, ‘ações normativas positivas’ – positive normative Handlugen) que consistem na criação de normas jurídicas que tutelam interesses individuais [...]” (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2014, pp. 52/53).
45
intuitiva a relação com institutos como a usucapião coletiva prevista naquele diploma
e como a usucapião especial urbana (individual) estatuída no art. 183 da CRFB81 82.
Lê-se em Sarlet:
[...] em termos de efetivação da dimensão prestacional do direito à moradia, é preciso relembrar que na condição de direito positivo, também o direito à moradia abrange prestações fáticas e normativas, que se traduzem em medidas de proteção e de caráter organizatório e procedimental. Um bom exemplo disso é o assim chamado ‘Estatuto da Cidade’, que representou, apesar do lapso temporal bastante longo, uma resposta do legislador ao dever (prestação) de legislar nessa matéria, com fundamento na Constituição Federal. Com a edição do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10-07-2001), cuja principal meta é dar efetividade às diretrizes constitucionais sobre política urbana, estando a contribuir para a difusão de um verdadeiro direito à cidade, foi dado um passo significativo para dar vida efetiva ao direito a uma moradia condigna no Brasil. Além de uma série de princípios, o Estatuto da Cidade é rico em instrumentos que objetivam a realização prática do direito à moradia, destacando-se os seguintes: (a) as operações urbanas consorciadas [...]; (b) o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) [...]; (c) a usucapião coletiva das áreas urbanas ocupadas por população de baixa renda [...]83.
Ao enfatizar que o direito à moradia84 já podia ser caracterizado como
direito fundamental antes da Emenda Constitucional nº 26/2000, por
81 Art. 183, caput, CRFB: ”Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. 82 “Por seu caráter existencial e expressão do próprio direito à vida, o direito à moradia ocupa lugar similar ao direito à alimentação, e, portanto, integra aquilo que na esfera internacional tem sido designado de um direito a um adequado padrão de vida. No concernente ao seu conteúdo, impõe-se o registro de que o direito à moradia não se confunde com o direito de propriedade (e do direito à propriedade). Muito embora a evidência de que a propriedade também possa servir de moradia ao titular e que, para além disso, a moradia (na condição de manifestação da posse) acaba, por expressa previsão constitucional e em determinadas circunstâncias, assumindo a condição de pressuposto para a aquisição da propriedade (como ocorre no usucapião constitucional), atuando, ainda, como elemento indicativo do cumprimento da função social da propriedade e da posse, o direito à moradia, convém frisá-lo, é direito fundamental autônomo, com âmbito de proteção e objetos próprios” (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, pp. 343/344). 83 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 346. 84 O artigo 47 da Constituição da Espanha dispõe: “Todos los españoles tienen derecho a disfrutar de una vivienda digna y adecuada. Los poderes públicos promoverán las condiciones necesarias y establecerán las normas pertinentes para hacer efectivo este derecho, regulando la utilización del suelo de acuerdo con el interés general para impedir la especulación. La comunidad participará en las plusvalías que genere la acción urbanística de los entes públicos”. No comentário de Satrústegui, “su
46
fundamentalidade material, Pansieri sustenta a impossibilidade de esquadrinhá-lo
sem ter por perto o valor dignidade. O ponto de partida está em tê-lo como
componente do núcleo essencial da Constituição Cidadão de 1988 e da própria
dignidade da pessoa humana, princípio da República Federativa do Brasil. Pondera,
assim, que o direito à moradia sempre deve ser adjetivado com a dignidade.
Estabelece, nessa linha, as premissas necessárias à sua efetivação: a) segurança
jurídica; b) oferta da infraestrutura básica (água potável, energia elétrica, iluminação
pública, saneamento básico) para assegurar saúde, segurança e conforto; c) não
comprometimento da satisfação das necessidades básicas em razão das despesas
com a manutenção da moradia; d) garantia de condições efetivas de habitabilidade
da moradia para preservação da higidez física dos moradores; e) acesso à moradia
devidamente adaptado às pessoas portadoras de necessidades especiais; f) direito
à identidade e à diversidade cultural da população expresso no modo e na estética
construtiva85.
Glosaria que a segurança jurídica há de deixar de ser um mantra
para a preservação de interesses hegemônicos. É tempo de apregoar que todos a
merecem. À lista acima, agregaria a disponibilização de transporte público
adequado, priorizando-se as comunidades carentes, o que pressupõe perseverança
em abrandar o sentimento de superioridade da cidade nobre. Recorde-se a tímida
acolhida dos chamados formadores de opinião à iniciativa de oferta de linhas de
ônibus em morros e bairros pobres por administrações municipais brasileiras, com
repercussão inferior do que intervenções cosméticas em regiões mais abastadas.
Dito isso, a Lei nº 10.840/200486 é um bom exemplo de texto legal
contemplador de temas como moradia, zoneamento, ocupação e parcelamento do
solo, edificação, concessão de uso e congêneres. Instituiu, outrossim, um programa
especial de habitação popular. É verdade que o “Direito à Moradia está conectado contenido reside, más bien, en la obligación de los poderes públicos de llevar a cabo una política de vivienda, que viene calificada en la Constitución mediante dos rasgos distintivos: la regulación de la utilización del suelo de acuerdo com el interés general, para impedir la especulación, y la participación de la comunidad em las plusvalías que genere la acción urbanística de los poderes públicos” (GUERRA, Luis López; ESPÍN, Eduardo; MORILLO, Joaquín García; TREMPS, Pablo Pérez; SATRÚSTEGUI, Miguel. 9. ed. Derecho Constitucional: el ordenamiento constitucional. Derechos y deberes de los ciudadanos, p.401). 85 PANSIERI, Flávio. Eficácia e vinculação dos direitos sociais: reflexões a partir do direito à moradia. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 183. 86 BRASIL. Lei nº 10.840, de 11 de fevereiro de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.840.htm. Acesso em: 20 set. 2015.
47
com a pessoa, com os direitos da personalidade, fundado na garantia da dignidade
da pessoa humana. Enquanto a habitação vem sendo utilizada para se referir às
questões de cunho patrimonial ligadas ao morar”87. Ainda assim há nisso indícios de
um despertar para uma nova concepção do espaço urbano.
2.1.2 Ordem urbanística popular embrionária
A Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) estabeleceu diretrizes gerais
da política urbana, contribuindo para o delineamento – ainda incipiente - do Direito
Urbanístico brasileiro. A matriz necessária é ambiental, mantido, entretanto, um viés
antropocêntrico – melhoria das condições de vida dos habitantes da cidade. Na
percepção de Dexheimer, é um equívoco – uma ingenuidade, diria – esperar que a
sociedade urbana cunhada com o emblema da informalidade seja construída nos
exatos termos fixados pelo Estado como adequados. Existe nisso um pouco da
ambivalência do Direito, ora pretensamente represando as transformações sociais,
ora auxiliando a aperfeiçoar esses movimentos evolutivos, com o toque da proteção
ambiental e da latente democracia participativa. É por isso que advoga a relação de
simbiose entre o desenvolvimento do espaço urbano e o direito positivo88.
Ao dar relevo à primeira diretriz geral embutida no Capítulo I daquele
Diploma (direito a cidades sustentáveis, art. 2º, I), o especialista enfoca a
regularização imobiliária:
No inciso XIV (art. 2º) está posta a necessidade de regularização fundiária e urbanização das áreas ocupadas pela população de baixa renda. Uma vez mais a diretriz foi bem fixada, pois se sabe que a ocupação imobiliária irregular é causa de constantes conflitos jurídico-processuais entre proprietários e possuidores de áreas invadidas. Além disso, a ausência de políticas específicas destinadas a este segmento da população faz com que tais cidadãos vivam sem infra-estrutura adequada à satisfação de necessidades mínimas, o que ocasiona evidente baixa qualidade de vida. Além disso, locais esquecidos por programas de urbanização, onde não há serviços públicos essenciais, tendem a ser propícios à degradação ambiental (exemplo típico é a falta de tratamento de esgoto, contaminando rios, mares e lagos)89.
87 PANSIERI, Flávio. Eficácia e vinculação dos direitos sociais: reflexões a partir do direito à moradia, p. 25. 88 DEXHEIMER, Marcus Alexsander. Estatuto da cidade e democracia participativa. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 134. 89 DEXHEIMER, Marcus Alexsander. Estatuto da cidade e democracia participativa, p. 145.
48
A omissão estatal e a opção por um sistema em que se embute um
processo de seleção natural (darwinismo social) deve levar à compreensão de que
regularizar, sob o influxo de uma ordem urbanística popular a ser construída,
significa manejar inteligentemente as ferramentas ofertadas pelo Estatuto da Cidade,
mais sob o comando do real do que do ideal. Sundfeld exprime essa ideia com
virtuosismo: o objetivo não pode ser o crescimento puro e simples, mas o equilíbrio
urbano, divisando a cidade sustentável, finalidade que depende de planejamento e
participação comunitária. Textualmente,
O Estatuto afirmou com ênfase que a política urbana não pode ser um amontoado de intervenções sem rumo. Ela tem uma direção global nítida: ‘ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana’ (art. 2º, caput), de modo a garantir o ‘direito a cidades sustentáveis’ (incisos I, V, VIII e X). A cidade, como espaço onde a vida moderna se desenrola, tem suas funções sociais: fornecer às pessoas moradia, trabalho, saúde, educação, cultura, lazer, transporte etc. Mas, como o espaço da cidade é parcelado, sendo objeto de apropriação, tanto privada (terrenos e edificações) como estatal (ruas, praças, equipamentos etc.), suas funções têm de ser cumpridas pelas partes, isto é, pelas propriedades urbanas. A política urbana tem, portanto, a missão de viabilizar o pleno desenvolvimento das funções sociais do todo (a cidade) e das partes (cada propriedade em particular)90.
É coerente ao traçar paralelo entre urbanismo e pobreza, cujas relações
pendulares estão entre o desprezo mútuo e o conflito. Os segmentos populacionais
privados de acesso à propriedade são reduzidos ao fator econômico. O urbanismo
elitista deixa investimentos nesses setores em plano secundário, relegados a épocas
de bonança, como se não fossem primordiais, mas supérfluos. Ao tempo em que
ignora a pobreza, é também ignorado por ela, o que se expressa em ocupações de
glebas não urbanizadas, invasões de imóveis públicos, construções irregulares,
transações informais (“venda” de posse) e instalações de serviços por grupos
paraestatais. Enfim, é fonte do cisma entre cidade legal e cidade ilegal91.
90 SUNDFELD, Carlos Ari. O estatuto das cidades e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (org.). Estatuto da cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 54. 91 SUNDFELD, Carlos Ari. O estatuto das cidades e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (org.). Estatuto da cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001, p. 58.
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O tema também exsurge da Lei nº 11.977/2009 (alterada pela Lei nº
12.424/2011)92, que traz os conceitos operacionais legais93 de assentamento
irregular94 e de regularização fundiária. Com esta, na percepção de Souza, a posse
é legitimada e convertida em propriedade95, o que se traduz em segurança jurídica,
em inclusão social e no desabrochar do sentimento de pertença à comunidade.
Pensar os institutos e princípios do Direito não como águas paradas é
determinante para prevenir uma fatal incoerência do sistema perante a realidade
social:
É impossível cogitar-se validamente do direito sem pensar na sociedade sobre que atua e de que recebe o influxo. Direito e sociedade são realidades historicamente situadas, mutáveis e perfectíveis, em que de modo necessário se insere o homem, interagindo com seu semelhante na construção da vida cultural. Não há, pois, modo de compreender o direito senão em sua moldura histórica global. A cisão do discurso jurídico, levada a efeito pelo positivismo, luta em vão contra a realidade, impossibilitando a apreensão do significado do direito e amputando as virtualidades de sua aplicação em favor do homem e da sociedade em que vive, cuja permanência e evolução acham-se na dependência da ordem jurídica [...]96 97.
Um urbanismo comprometido com a sustentabilidade e com o respeito à
dignidade humana pressupõe, como dito, o uso do instrumental exibido pela Lei nº
10.257/2001, entre os quais avulta a usucapião especial de imóvel urbano, listada no
art. 4º, V, “j”, como um dos institutos jurídico-políticos disponíveis.
92 BRASIL. Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm. Acesso em: 20 set. 2015. 93 PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, p. 40. 94 Art. 47, VI, Lei nº 11.977/2009: “assentamentos irregulares: ocupações inseridas em parcelamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas urbanas públicas ou privadas, utilizadas predominantemente para fins de moradia”; art. 46, Lei nº 11.977/2009: “A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. 95 SOUZA, Sergio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação: análise comparativa e seu aspecto teórico e prático com os direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 296. 96 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do Direito e Contexto Social. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 91. 97 Há no Direito não só conservação, mas um potencial tão transformador quanto dependente de uma hermenêutica aberta à dialética social. Na lição de Atienza, “las relaciones entre el Derecho y el cambio social pueden examinarse desde dos perspectivas: los cambios jurídicos producidos por cambios sociales, y los cambios sociales provocados por cambios en el Derecho” (ATIENZA RODRÍGUEZ, Manuel. El Sentido del Derecho. Barcelona: Editorial Ariel, 2012).
50
Para compreender melhor a usucapião, em quaisquer de suas
modalidades, convém repassar alguns aspectos da etiologia da propriedade e da
consolidação de sua função social.
2.2 PROPRIEDADE: LEMBRANÇAS, CONTEMPORANEIDADE E PERSPECTIVAS
A gens grega tinha características comunais, centrava-se na
consanguinidade e buscava preservar em seu âmago os bens amealhados pelo
grupo, que veio a experimentar enfraquecimento gradativo com o nascimento do
Estado como garante da propriedade individual e da divisão da sociedade em
classes:
Toda a Ática ficou dividida em cem municípios (demos). Os cidadãos (demotas) de cada demos elegiam seu chefe – demarca – e seu tesoureiro, assim como trinta juízes dotados de poderes para resolver os assuntos de pouca importância. [...] O rápido desenvolvimento da riqueza, do comércio e da indústria prova como o Estado, já então definido em seus traços principais, era adequado à nova condição social dos atenienses. [...] Mas, com o progresso do comércio e da indústria, vieram o acúmulo e a concentração das riquezas em poucas mãos, e com isso o empobrecimento da massa dos cidadãos livres, aos quais só ficava o recurso de escolher entre: competir com o trabalho dos escravos, fazendo trabalho manual (o que era considerado desonroso, baixo, e era pouco proveitoso), ou converter-se em mendigos. Este último caminho foi escolhido. Como, porém, constituíam a maior parte dos cidadãos, os que assim fizeram, acabaram por levar à ruína todo o Estado ateniense98.
O sistema monetário, em igual medida, operou profundas modificações
nas pequenas comunidades agrícolas, arruinadas pelo peso das hipotecas, com
consequente concentração da propriedade territorial.
A gens romana era, nos primórdios, muito similar à grega quanto à
estrutura, aos direitos e às obrigações. A mantença de bens na mesma gens
também era uma das preocupações centrais. As novas instituições – como Senado,
embrião da nobreza gentílica, os patrícios - e a conquista de territórios iriam
reconfigurar a cena político-jurídica. As dissensões entre patrícios e plebeus são
apontadas como causa da débâcle do antigo edifício gentílico.
98 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. Tradução de Leandro Konder. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, pp. 130 e 132.
51
Para o pensador de Barmen, toda a história da república romana
desenvolve-se nesse embate das duas classes pelo acesso a empregos públicos e
para a conquista de quinhão na distribuição de terras do Estado romano. Essa
refrega culminará com a dissolução irreversível da nobreza patrícia para dar assento
a uma nova classe de grandes e endinheirados proprietários de terra, que
paulatinamente aglutinaram toda a propriedade rural dos camponeses arruinados
pela participação nas campanhas militares99 100. Como se lê em Grimal,
As intermináveis guerras das gerações anteriores haviam arruinado inúmeros pequenos proprietários, os quais, sempre ausentes, não puderam assegurar o cultivo de seus campos. Os ricos haviam aproveitado para comprar essas terras a preço vil e formar grandes propriedades. Ademais, o território das cidades italianas conquistadas não fora repartido entre os cidadãos. A parte menos fértil fora deixada nas mãos dos primeiros possuidores; o resto caíra no ‘domínio público’ do povo romano. Os nobres tinham se apropriado delas e ali mantinham rebanhos, que confiavam a bandos de escravos101.
A propriedade individual foi se consolidando. A fórmula jus utendi, fruendi
e abutendi102 chegou, assim, aos tempos modernos, como projeção da Lei das XII
Tábuas.
2.2.1 A propriedade usada e abusada
Por mais que se aponte a imprecisão existente em traduzir jus abutendi
como direito de abusar103 104, que embutiria contradição em termos, perdura uma
99 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado, p. 145. 100 É perspicaz a observação de Montesquieu a respeito das causas da decadência romana: “A grandeza do Estado gerou a grandeza das fortunas particulares; mas, como a opulência está nos costumes, e não nos bens, os dos romanos, que não deixavam de ter limites, produziram um luxo e uma prodigalidade ilimitados” (MONTESQUIEU. Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002, p. 78). 101 GRIMAL, Pierre. História de Roma. Tradução de Maria Leonor Loureiro. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 90. Título original: Histoire de Rome. 102 “En el Derecho Romano se entendía el instituto como una suma de derechos: el de usar de la cosa (ius utendi), el de percibir sus frutos (ius fruendi), el de abusar (ius abutendi), el de poseer (ius possidendi), el de enajenar (ius alienandi), el de disponer (ius disponendi) y el de reivindicar (ius vindicandi). Actualmente debe considerarse de acuerdo con el rol que en la sociedad cumple teniendo presente que, históricamente, el derecho de propriedad siempre estuvo em el centro de los conflictos sociales” (DAPKEVICIUS, Rubén Flores. Manual de derecho público: direito constitucional. Montevidéu/Buenos Aires: B de F Editorial, 2007, pp. 322/323). 103 “O jus abutendi compreende os direitos do proprietário que não se enquadram nas categorias precedentes [jus utendi e jus fruendi], ou, como nota Vareilles-Sommières, os correspondentes aos serviços da coisa que possam repetir-se, ou não, e os que a alteram, transformam ou destroem, inclusive os que a fazem sair do patrimônio do proprietário. Não se deve, pretende o mestre, traduzir
52
inteligência velada de um direito ilimitado, mascarado por expressões eufemísticas
como uso total ou pleno. É inevitável reportarmo-nos à amplitude que se lhe dava no
direito romano. Não apenas os bens móveis e imóveis eram suscetíveis de
apropriação. Os filhos e mulheres eram propriedade do pater familias, o que incluía
o direito de matá-los. Cretella Júnior destaca esse traço, conquanto ressalve alhures
uma lenta e progressiva alteração por conta do direito canônico e dos costumes:
No direito romano, a propriedade principia por ser um direito absoluto e exclusivo, que permite a alguém – o proprietário – utilizar a coisa como bem entender, inclusive de destruí-la, em virtude do jus abutendi. Não interessa ao romano dos primitivos tempos o que possa acontecer com a coisa, nem os danos que sua destruição possa ocasionar ao vizinho ou à coletividade. A propriedade tem um sentido personalíssimo, individualista. [...] Jus abutendi é o direito que tem o proprietário de abusar da coisa, dispondo dela como melhor lhe aprouver, inclusive destruindo-a, isto é, alterando-lhe a substantia rerum (incendiar casas, matas; abater árvores; matar animais ou escravos)105.
Parte do legado romano resistiu; isso explica a perenidade da máxima
“plena in re potesta” e do conhecido atributo de oponibilidade erga omnes. Basta ver
em Gomes a definição como direito complexo, perpétuo e absoluto, que conferiria ao
titular o poder de decidir se deveria usá-la, abandoná-la, aliená-la, destruí-la,
desmembrá-la ou limitá-la de qualquer forma, constituindo outros direitos reais a
terceiros. Teve-a, sob esse enfoque de poderes do titular, como o mais amplo direito
de utilização econômica direta ou indireta das coisas. O afamado estudioso insistia
que o proprietário gozava da faculdade de servir-se da coisa, de perceber seus
por direito de abusar o jus abutendi, porque, então, chegar-se-ia à proposição, contraditória e absurda, de que o proprietário teria o direito de praticar ato ilegítimo. As palavras latinas, considera ele, devem ser entendidas no melhor sentido, e visam apenas aos atos legítimos” (BESSONE, Darcy. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 232). 104 “Direito de dispor – ius abutendi – é a mais viva expressão dominial, pela maior largueza que espelha. Quem dispõe da coisa mais se revela dono do que aquele que a usa ou frui [...]. O Direito Romano empregava o verbo abutere para traduzir este atributo, o que conduziu muitos escritores, traduzindo-o literalmente, a reconhecer no proprietário o poder extremo de abusar da coisa. Mas é certo que o Direito Romano não concedia tal prerrogativa, fazendo ao revés conter o domínio em termos compatíveis com a convivência social. Muito mais patente é no direito moderno, este propósito de contenção, não só pela repressão ao mau uso da propriedade, como ainda pelas restrições em benefício do bem comum. Não pode também o abutere traduzir-se por destruir, porque nem sempre é lícito ao dominus fazê-lo, mas somente em dadas circunstâncias. Ao revés, a ordem pública opõe-se a que o titular do direito intente destruir a coisa, prejudicando terceiros, ou atentando contra a riqueza geral. No Direito Romano, mais adequadamente o abusus prendia-se à idéia de consumo, e abutere à de consumir” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 74). 105 CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, pp. 170/171.
53
frutos e de dar-lhe a destinação que lhe aprouvesse. Mais do que isso, exerceria
poderes jurídicos tão extensos quanto os que fossem passíveis de enumeração106.
A advocacia da propriedade como direito ilimitado, como dito, verteu dos
aquedutos romanos, abasteceu a Idade Média por meio dos glosadores, atravessou
a França pós-revolucionária, com seu Código Napoleônico107, e desaguou em
nossos tempos, incorporando-se ao discurso jurídico.
São comuns, rediga-se, as alusões da doutrina moderna a um direito
amplo, universal, irrestrito, em uma palavra, absoluto, ainda que seguidas de
referências em regra acanhadas à cogitação de uma função social108. Eis o
paradoxo: mesmo sob os eflúvios da função social - insuficientemente delimitada, é
verdade -, os manuais continuam a aferrar-se a uma definição de antanho, que
maximiza o direito de propriedade109.
106 GOMES, Orlando. Direitos reais. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, pp. 97/98. 107 O doutrinador português Menezes Leitão pondera que pelo art. 544 do Código Civil francês “o proprietário tinha assim um poder absoluto sobre a coisa em tudo o que não infringisse as leis ou regulamentos. Esta doutrina vem a ser, no entanto, atenuada em virtude do surgimento no espaço jurídico francês da doutrina do abuso de direito, a qual representou, ainda no liberalismo, o primeiro reconhecimento da existência de limites ao exercício dos direitos do proprietário. Posteriormente, foi-se ainda mais longe, passando a ser defendida a função social da propriedade, no sentido de que os poderes do proprietário se encontram limitados pela utilidade social proporcionada pelo bem. Essa posição tem sido defendida pela doutrina social da Igreja desde a Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, com raízes em S. Tomás de Aquino, e foi expressamente consagrada no art. 14º, nº 2 da Lei Fundamental da Alemanha, e no art. 42º da Constituição Italiana” (LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2013, pp. 167/168). 108 Não é o caso de Darci Bessone, de quem são hauridas prestimosas reflexões históricas. Para ele, a crítica marxista de que a propriedade irrestrita dos meios de produção desencadeia a segregação social chegou ao plano jurídico com León Duguit ao expor a tese de que a propriedade não deveria ser considerada “um direito subjetivo para converter-se na função social do possuidor da riqueza”. Essa construção de Duguit teria sido a pedra fundamental da teoria da relatividade dos direitos subjetivos de Josserand, para quem “cada direito subjetivo é instituído pelo legislador com vistas ao interesse geral ou social, não em homenagem às prerrogativas egoísticas de certo indivíduo”. Estaria aí, também, a base para a teoria do abuso de direito (BESSONE, Darcy. Direitos reais, p.58). 109 À falta de menção explícita à função social da propriedade na Constituição da República Portuguesa (1976), há quem apregoe tratar-se de uma expressão vazia, uma falácia argumentativa: “ [...] não se ignora que uma parte significativa da doutrina (ou dogmática jurídica) portuguesa, sobretudo juspublicística, defende, com mais ou menos ênfase e abundância de pormenores, a existência no nosso ordenamento [português] de uma ‘função social da propriedade privada’ como limitação ad intra das faculdades do proprietário. E também não se desconhece que a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, com destaque para a do Tribunal Constitucional, sufraga, amiúde, esta tese, em obter dicta constantes de arestos relativos a situações muito diversas. Todavia, e num juízo sumário – o qual, por óbvias razões de economia, é o único aqui possível -, pensamos que, salvo o devido respeito, se trata apenas de uma ‘muleta’ retórico-argumentativa que se destina a legitimar, no plano transjurídico, soluções que já resultariam, pura e simplesmente, de uma adequada ‘interpretação em conformidade com a Constituição, à luz dos princípios, valores e critérios que a informam, ou, então, a caucionar, sob o manto dessa ‘fórmula mágica’, medidas de política legislativa cuja constitucionalidade se mostra, no mínimo, duvidosa” (ABREU, Abílio Vassalo. Titularidade
54
No entanto, não há paralelo possível entre a propriedade e direitos
reputados inerentes à condição humana, como a dignidade da pessoa. É difícil
divisar naquela, como queriam os jusnaturalistas, um direito indissociável da
natureza do homem. Afinal, em muitas das sociedades primitivas a apropriação
individual de bens imóveis inexistia e disso não se pode concluir fossem seus
membros despojados da plenitude da vida. Ainda hoje em raras comunidades
silvícolas isoladas não há propriedade imobiliária individual. Seria temerário
excogitar que os integrantes desses grupamentos de matriz coletivista estejam
privados de um direito inato.
Merece atenção a assertiva de Venosa de que “a história da propriedade
é decorrência direta da organização política”110 (sem destaque no original). Na
mesma linha, em tópico sugestivamente intitulado “decisão política do Estado”,
Bessone pondera:
A partir do momento histórico em que se constitui o Estado, inseriu-se, entre as decisões políticas que lhe são privativas, a de instituir, manter, modificar, limitar, disciplinar a propriedade privada e, também, a propriedade pública111.
Santos compartilha esse ponto de vista ao polemizar que o Estado
Democrático de Direito não reconhece a propriedade privada. O ente estatal cria-la-
ía e lhe daria configurações quanto ao alcance, quanto a seus titulares e, por fim,
quanto à sua duração temporal. A garantia constitucional concedida pelo art. 5º, XXI,
da CRFB é restrita aos termos pelos quais o ordenamento jurídico criou e configurou
a propriedade. O pretenso caráter absoluto, exclusivo e perpétuo da propriedade
seria, assim, um mito conveniente112.
2.2.2 Função social como condição à propriedade
É nesse horizonte que o art. 5º, XXIII, da Constituição da República
Federativa do Brasil estabelece, logo após o inciso concernente ao direito de
Registral do Direito de Propriedade Imobiliária versus Usucapião. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 125/126). 110 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direitos reais. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 173. 111 BESSONE, Darcy. Direitos reais, p. 38. 112 SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. In: MEDAUAR, Odete; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de (org.). Estatuto da cidade: Lei 10.257, de 10.07.2001, comentários. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 203.
55
propriedade (XXII): “a propriedade atenderá sua função social”. Há harmonia com o
art. 170, III, da Carta Política, ao arrolar a função social da propriedade como um
dos princípios em que assentada a ordem econômica nacional. Também se rende
tributo a ela ao se facultar ao poder público municipal exigir do proprietário do solo
urbano seu adequado aproveitamento, com aplicação de sanções gradativas:
parcelamento ou edificação compulsórios; IPTU progressivo no tempo; e finalmente
desapropriação (art. 182, §4º, I, II e III, CRFB).
Os arts. 184, 185 e 186 da CRFB, por seu turno, abordam a função social
da propriedade agrícola. O último deles relaciona-a ao aproveitamento racional, ao
uso adequado dos recursos naturais, à preservação do meio ambiente, à
observância das disposições trabalhistas e a uma forma de exploração compatível
com o bem-estar de proprietários e trabalhadores. O art. 2º, §1º, “c”, da Lei nº
4.504/64 (Estatuto da Terra)113 sublinha a conservação dos recursos naturais como
pressuposto do atendimento da função social da propriedade. O vínculo entre função
social e meio ambiente, da mesma sorte, emerge do art. 9º, II, da Lei nº 8.629/93114,
que trata da reforma agrária.
No pertinente à propriedade urbana, o art. 182, §2º, da Constituição
Cidadã aponta que aquela “cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
A Lei nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade) - marco legal importante na
superação do conceito clássico de propriedade, definidor de diretrizes gerais da
política urbana – também fornece elementos para conceituar função social no art.
39115.
O art. 1.228, §1º, do Código Civil de 2002116 veio reforçar a necessidade
de exercício do direito de propriedade sob balizas econômicas, sociais e ambientais,
113 BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4504.htm. Acesso em: 20 set. 2015. 114 BRASIL. Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8629.htm. Acesso em: 20 set. 2015. 115 Art. 39, Lei nº 10.257/2001 – “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei”. 116 Art. 1.228, §1º, CC - “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservadas, de conformidade com o
56
ao passo que o §3º do mesmo preceito vedou ao proprietário os atos desprovidos de
“qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar
outrem”, aproximando-os do abuso de direito, equiparado ao ato ilícito (art. 187, CC).
Para Venosa, o juiz do século XXI deve ter por perto a função social de
todos os bens, sem negligenciar a proteção do proprietário. A justa aplicação do
direito de propriedade, como entidade social e jurídica, está na procura do equilíbrio
entre o interesse coletivo e o interesse individual117.
Como acentua Dexheimer, não se cuida de mera obrigação de não fazer,
isto é, de não causar dano com o uso do imóvel, mas conferir a ele um emprego
adequado ao corpo social, traduzido em prestações positivas. O direito de
propriedade somente tem o respaldo do ordenamento jurídico se observar a função
social. Esta é, portanto, condição para o exercício daquele, e não se confunde com a
vedação ao uso nocivo da propriedade. Seria cômodo ao proprietário, outrora
detentor de poderes absolutos, limitar-se a não exercer atividades que viessem a
prejudicar a sociedade e o meio ambiente. O que dele se reclama são atuações
positivas propiciadoras do cumprimento efetivo dessa função social condicionante de
seu direito118 119.
Lemus avalia que a propriedade está atada a um princípio de repartição
equitativa de benefícios e encargos. Como consigna,
Se trata de un concepto dominical que exige del titular del derecho, como miembro de la sociedad, la utilización del bien en el sentido que más convenga a la colectvidad, lo cual va más allá de un goce no dañino o socialmente neutro, aspecto este puramente negativo que no alcanza a merecer, por sí solo, la tutela constitucional. Un simple destino a la producción o al solo disfrute de los bienes económicos no puede hacer que se considere cumplida la condición que el texto constitucional
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas” (BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 20 set. 2015). 117 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direitos reais, p. 179. 118 DEXHEIMER, Marcus Alexsander. Estatuto da cidade e democracia participativa. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 105. 119 Na mesma esteira: “se anteriormente, no vigor do caráter absolutista da propriedade, os proprietários apenas não podiam utilizar suas propriedades de forma que prejudicassem a terceiros, agora, sob a égide da função social da propriedade são eles obrigados a utilizá-las de forma que beneficiem a comunidade. [...] A função social da propriedade é um componente do próprio direito de propriedade, fazendo parte da essência deste” (BLANC, Priscila Ferreira. Plano diretor urbano e função social da propriedade. Curitiba: Juruá, 2004, pp. 42 e 43).
57
impone. Se requiere efectivamente una coordinación de las actividades de los particulares, de forma tal que haga posible una mejor utilización de los recursos que se encuentran a su disposición. De ahí que no se considere suficiente cualquier resultado ventajoso para la colectividad (por ejemplo, incremento de la producción), sino sólo aquel al que acompañe el establecimiento de unas relaciones sociales más equitativas120.121 Dessarte, a função social da propriedade122 pode ser definida como o
requisito imprescindível ao amparo constitucional do direito correlato e por
conseguinte ao acesso aos institutos jurídicos hábeis à proteção do domínio (tutela
estatal), ligado ao uso do bem pelo proprietário de maneira economicamente útil à
sociedade, com obediência às diretrizes da política fundiária e a imperativos de
preservação ambiental, exploração racional, equilíbrio e justiça sociais. A partir disso
aventa-se que também a cidade123 deva cumprir uma função social124.
120 LEMUS, Manuel Medina de. Derecho Urbanístico. Barcelona: J.M. Bosch Editor, 1999, p. 171. 121 No Direito espanhol fala-se no caráter estatutário da propriedade imobiliária para significar que a lei e os planos de ordenamento urbanístico delimitam o conteúdo dela, a depender da destinação definida a uma determinada área pelo legislador e pelo gestor público em seu mister planificador. Interessa a consulta ao Real Decreto Legislativo 2/2008, que consolidou o texto da Ley de Suelo 8/2007. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2008-10792. Acesso em: 16 jan. 2016. 122 Para Lemus, “la función social de la propiedad delimitadora de su contenido puede entenderse como la contribución al bien común de la sociedad que debe seguirse de la existencia y ejercicio de la propiedad privada sobre los bienes, habida cuenta de la naturaleza y utilidades de estos, y de las circunstancias y necesidades sociales cambiantes, siempre sobre la base del reconocimiento, al menos, de un margen de libre determinación al propietario sobre el modo de efectuarse esse servicio al bien común, en cuanto vinculado al ejercicio de las facultades inherentes al derecho de propiedad” (LEMUS, Manuel Medina de. Derecho Urbanístico, p. 172). 123 Aristóteles, que já expressava preocupações com questões urbanísticas – “é importante que a distribuição dos edifícios no espaço da Cidade seja cuidadosamente pensada” - salientava a importância da cidade (polis), surgida para satisfazer as necessidades vitais, para propiciar o viver bem. Tamanha é sua magnitude na visão aristotélica que precederia ao indivíduo. É, assim, criação ligada à constituição do homem, animal político, destinado a viver em sociedade. (ARISTÓTELES. Política. Tradução de Pedro Constantin Tolens. 6. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001, pp. 48 e 57). 124 Em resolução aprovada em 25 de setembro de 2015 (Resolução 70/1), a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas traçou a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, com o estabelecimento de diversos objetivos, entre os quais o de número 11: “conseguir que as cidades e os assentamentos humanos sejam inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”. Disponível em: http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/70/1. Acesso em: 16 jan. 2016.
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CAPÍTULO 3
USUCAPIÃO COLETIVA DO ESTATUTO DA CIDADE
3.1 ASPECTOS MATERIAIS DESTACADOS
A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade ou de outro
direito real, pelo exercício possessório prolongado no tempo, de forma contínua e
sem oposição125. Inexiste vínculo obrigacional ou real com o proprietário anterior e
por isso eventuais gravames sobre o imóvel não se mantêm, a exemplo da hipoteca.
O direito real acessório sucumbe com a propriedade precedente.
Há aceso debate quanto aos fundamentos do instituto. Para alguns,
estaria na paz social. O exercício possessório por tempo expressivo dá aparência de
propriedade. A incerteza sobre a natureza da posse, é dizer, se é exteriorização do
domínio ou dele dissociada, seria nefasta à estabilidade social. Como afirmamos em
outra oportunidade, para que sejam espancadas as dúvidas a esse respeito e
consequentemente afastados os efeitos deletérios que dessas situações podem
emanar, o ordenamento jurídico, por meio da usucapião, empresta juridicidade às
situações fáticas amadurecidas e consolidadas pelo tempo126.
Para outros, o cerne está no abandono do bem pelo proprietário. A não
utilização da coisa por lapso temporal considerável equivaleria a uma renúncia tácita
ao direito.
Conforme Berdejo, a usucapião não é só atribuição e correlata extinção
do direito de propriedade. O instituto secular trata de sacrificar situações jurídicas,
porém não fáticas, quando a apatia do titular e o exercício prolongado no tempo
125 “A usucapião é a constituição facultativa do direito de propriedade, ou de outro direito real de gozo, a favor de quem detenha a correspondente posse, durante certo lapso de tempo, em determinadas condições, dentro dos limites previstos na lei e por via de triunfante invocação” (RODRIGUES, Fernando Pereira. Usucapião: constituição originária de direitos através da posse. Coimbra: Almedina, 2008, p. 12). 126 FREYESLEBEN, Luiz Eduardo Ribeiro. A Usucapião Especial Urbana: aspectos doutrinários e jurisprudenciais. 2. ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 22.
59
tornam mais respeitável o interesse do possuidor, titular aparente e ativo, do que o
do titular real127.
Terceira vertente enfatiza a função social da propriedade. Nenhum bem
imóvel pode ser um espaço ocioso. Bem improdutivo é desperdício de recurso
escasso, inação que se universalizada implicaria infligir privações a segmentos
sociais. O fundamento estaria, assim, em dar primazia ao emprego dos meios de
produção em proveito de todos. Embora utilize a expressão interesse público,
quando melhor seria interesse social, o português Pereira Rodrigues acerta ao
sublinhar que “a usucapião não pode ser vista como um ataque ao direito de
propriedade, mas antes como um tributo à posse”:
A justificação coerente com a natureza do instituto reside antes no interesse público, da comunidade, na certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre as coisas e dos respectivos titulares, sendo que, em muitas situações, o único meio de prova seguro, e até possível, residirá numa posse pública, pacífica e protraída no tempo. A circulação a que as coisas estão sujeitas sofreria um enorme bloqueio caso reinasse uma incerteza instalada sobre a sua existência e titularidade, incerteza que não pudesse lançar mão, como é o de invocar, com sucesso de prova, uma posse justificadora da titularidade do direito real de gozo. Deste modo, são razões de interesse público que conduziram à adopção da usucapião como meio de aquisição do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo, a cuja imagem se possua, à vista de todos, de forma não violenta e por tempo relevante128.
O interesse social é o fundamento básico. O conflito entre proprietário e
usucapiente soluciona-se em prol de quem conferiu sentido ao direito, que atribuiu
utilidade a ele, com proveito indireto de toda a sociedade. No comentário sagaz de
Silvério Ribeiro, “a sociedade não tolera direitos sonolentos, senão até o momento
em que não lhe surge do seio alguém que os queira acordar”129.
De maneira geral, pode-se dizer que os requisitos da usucapião dividem-
se em pessoais, reais e formais.
127 BERDEJO, José Luis Lacruz; REBULLIDA, Francisco de Asís Sancho; SERRANO, Augustín Luna; ECHEVERRÍA, Jesús Delgado; HERNÁNDEZ, Francisco Rivero; ALBESA, Joaquín Rams. Derechos Reales: posesión y propiedad. 4. ed. Madri: Dykinson, 2000, p. 151. 128 RODRIGUES, Fernando Pereira. Usucapião: constituição originária de direitos através da posse, p. 14. 129 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 167.
60
Quanto aos primeiros, é relevante observar se pela condição da pessoa
há causa impeditiva do fluxo da prescrição. Não flui o prazo entre cônjuges, na
constância da sociedade conjugal, entre ascendentes e descentes, durante o poder
familiar, entre tutelados ou curatelados e os respectivos tutores ou curadores (art.
197, CC) e em face de absolutamente incapazes (art. 198, CC).
Ao se falar em requisitos reais pensa-se de imediato em coisa hábil (res
habilis). Não só a propriedade pode ser adquirida por essa via, mas também outros
direitos reais, como a servidão e o usufruto, v.g. Os bens públicos não são passíveis
de usucapião, por vedação legal expressa. A Súmula nº 340 do Supremo Tribunal
Federal consolidou o entendimento de que “desde a vigência do Código Civil, os
bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por
usucapião”130. As terras tradicionalmente ocupadas pela população indígena são
inusucapíveis, porquanto de propriedade da União (arts. 20, XI, e 231, §2º, CRFB).
Restrições existentes sobre o bem não sobrevivem à usucapião. Não
pode ser oposta ao usucapiente, assim, a cláusula de inalienabilidade. A
constituição desta é tema alheio ao novo proprietário. É igualmente inócuo tratar-se
de bem de família. A proteção da impenhorabilidade não interfere na aquisição pelo
modo originário.
Nos requisitos formais, tem-se o tempo, a posse mansa, pacífica e
contínua e o animus domini. A posse, esse poder fático sobre a coisa, deve ser
exercida ininterruptamente e sem oposição. Obviamente a conotação que se há de
dar à palavra “oposição” é a jurídica. A oposição desprovida de calço, destituída de
fundamento, é absolutamente irrelevante para o direito e, por decorrência, não tem o
condão de fraturar o prazo prescricional131. O ânimo de dono é o desejo de possuir o
bem como se lhe pertencesse. O tempo necessário à aquisição varia de acordo com
a modalidade de usucapião invocada.
130 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula nº 340. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_301_400. Acesso em: 25 set. 2015. 131 FREYESLEBEN, Luiz Eduardo Ribeiro. A Usucapião Especial Urbana: aspectos doutrinários e jurisprudenciais, p. 43.
61
Antes de 1988 dispúnhamos basicamente da usucapião ordinária e da
extraordinária do Código Civil de 1916 (arts. 550 e 551, CC)132, da usucapião
especial rural (art. 1º, Lei nº 6.969/81) e da usucapião indígena (art. 33, Lei nº
6.001/73)133. A Constituição Cidadã e o Código Civil de 2002 vieram ampliar as
espécies até então catalogadas e, mais do que isso, privilegiar a qualidade da posse
exercida.
Em breve apanhado, a usucapião extraordinária reclama posse por
quinze anos, independentemente de justo título e boa-fé, com redução para dez
anos se o usucapiente houver estabelecido moradia no imóvel ou realizado obras e
serviços de caráter produtivo (art. 1.238, caput, e parágrafo único, CC). Há clara
valorização da posse qualificada, premiada com a minoração do prazo aquisitivo.
A usucapião ordinária exige os requisitos suplementares de justo título e
boa-fé, para conformar-se com posse por dez anos. O prazo é reduzido para cinco
anos se o possuidor houver adquirido o imóvel onerosamente, efetuado o registro,
com subsequente cancelamento pelo atual proprietário, e estabelecido moradia ou
feito investimentos de interesse social e econômico (art. 1.242, caput, e parágrafo
único, CC). Lembre-se que justo título é aquele que em princípio seria apto à
transferência do bem, como uma escritura de compra e venda, mas que por algum
vício não resulta no efeito transmissivo esperado. Boa-fé, de seu turno, é o
desconhecimento do obstáculo à aquisição dominial (art. 1.201, CC).
A usucapião especial rural (agrária, rústica ou pro labore) vinha regulada
na Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra)134 e passou a sê-lo na Lei nº 6.969/81135. O
art. 191 da Constituição estabeleceu o novo limite de 50 hectares para a área
usucapienda, situada em zona rural (critério de localização), tornada produtiva pelo
trabalho do possuidor – que não pode ser proprietário de outro imóvel rural ou
urbano - ou de sua família, tendo nela fixado moradia. O texto constitucional foi
132 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm. Acesso em: 25 set. 2015. 133 BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6001.htm. Acesso em: 25 set. 2015. 134 BRASIL, Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4504.htm. Acesso em: 25 set. 2015. 135 BRASIL, Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6969.htm. Acesso em: 25 set. 2015.
62
reproduzido no art. 1.239 do Código Civil em vigor. Uma vez mais é de fácil
constatação o prestígio à qualidade da posse.
A usucapião especial urbana individual configura-se por meio de posse
quinquenal de imóvel urbano não superior a 250m² para moradia própria ou da
família, exercida por quem não seja proprietário de outro imóvel. A modalidade
instituída no art. 183 da CRFB assemelha-se, em uma mirada superficial, a uma
usucapião extraordinária de prazo reduzido, pois tal qual esta inexige justo título
(título hábil a transferir o domínio, com aparência de válido e legítimo, mas que por
algum vício ou irregularidade não o transfere) e boa-fé (ignorância do vício ou
obstáculo à aquisição da propriedade). Se há congruências, as diferenças são
inescondíveis: tamanho e natureza da área usucapida, destinação que lhe seja dada
e propriedade de outro imóvel136.
A usucapião indígena permite ao silvícola, integrado ou não, ver
declarada a propriedade de área inferior a 50 hectares por ele possuída durante dez
anos consecutivos. As mudanças legislativas havidas, com a multiplicação das
modalidades aquisitivas e redefinições dos lapsos temporais, tornaram mínima a
utilidade do instituto.
A usucapião do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) volta-se aos remanescentes das comunidades dos quilombos,
provas vivas da resistência intrépida contra a opressão da sociedade escravocrata.
Reconheceu-se a propriedade dessas terras ancestrais, competindo ao Estado a
emissão dos títulos respectivos, em nome da associação da comunidade, com
cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, conforme o
Decreto regulamentador nº 4.887/2003137.
A usucapião urbana administrativa está prevista na Lei nº 11.977/2009138,
com as alterações promovidas pela Lei nº 12.424/11, que dispõe acerca da
regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. A lei é
136 FREYESLEBEN, Luiz Eduardo Ribeiro. A Usucapião Especial Urbana: aspectos doutrinários e jurisprudenciais, p. 26. 137 BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Acesso em: 25 set. 2015. 138 BRASIL. Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm. Acesso em: 26 set. 2015.
63
conhecida como Lei Minha Casa, Minha Vida, em alusão ao programa habitacional
do governo federal. O possuidor de baixa renda de imóvel urbano para fim de
moradia, em Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), pode ser beneficiado - após
demarcação a ser averbada (art. 56) e notificado o proprietário -, com a expedição
de título de legitimação de posse pelo poder público (art. 59). Decorridos cinco anos
do registro desse título, o beneficiário pode requerer ao oficial do Registro Imobiliário
a conversão em propriedade. Tudo dar-se-á na esfera extrajudicial, a representar
sensível simplificação do processo de regularização (art. 46)139.
A usucapião tabular é derivação da usucapião ordinária capaz de importar
convalescença indireta do registro imobiliário nulo. Assim, se o título for nulo, mas o
possuidor do bem por cinco anos houver estabelecido moradia ou realizado
investimentos de interesse social e econômico pode resistir à pretensão de
cancelamento da inscrição, na via defensiva, demonstrando sua boa-fé. Para
doutrina de ponta, essa eficácia sanatória do registro é reflexa: “O registro subsiste,
posteriormente, em razão de a propriedade ter sido adquirida pelo usucapião, e não
porque o próprio negócio levado a registro acarretou a transmissão da
propriedade”140. A modalidade emerge do art. 1.242, parágrafo único, do Código
Civil, combinado com o art. 214, §5º, da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos),
alterado pela Lei nº 10.931/2004141.
A usucapião pró-família foi criada pela Lei nº 12.424/11, que inseriu no
Código Civil o art. 1.240-A para reconhecer o direito à aquisição de imóvel urbano de
até 250m² àquele que possuir por dois anos, com exclusividade e para moradia, o
bem outrora compartilhado com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o
lar. Há grande polêmica em torno disso, porque o legislador reeditou a discussão da
causa do insucesso do relacionamento e estabeleceu algo próximo a uma pena civil
ao “culpado” pela ruptura conjugal.
139 Art. 46 - “A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. 140 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil.11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 365. 141 BRASIL. Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.931.htm. Acesso em: 26 set. 2015.
64
3.1.1 A usucapião especial coletiva e a inconstitucionalidade imaginada
Importa agora o recorte voltado à modalidade coletiva prevista no art. 10
do Estatuto142; a individual do art. 9º não trouxe direito novo, mas ratificou as linhas
gerais da usucapião pro morare do art. 183 da CRFB. Aquela tem um cunho
metaindividual até então não contemplado no ordenamento jurídico nacional. O
ineditismo está na forma coletiva de aquisição dominial e no foco na comunidade
carente. Apesar dessas notas distintivas, há derivação estrutural da usucapião
especial constitucional. Saule Júnior vai além para classificar a usucapião coletiva
como instituto de direito processual:
A admissão do Usucapião Urbano Coletivo é matéria processual e não material. O Estatuto da Cidade, atendendo ao comando das normas constitucionais da política urbana, buscou a melhor forma para o Usucapião Urbano atingir o grau máximo de sua eficácia143. [...] O artigo 10, como as demais normas do Estatuto da Cidade, é regulamentador das normas constitucionais da política urbana, na qual se inclui o Usucapião Urbano. O Usucapião Urbano coletivo é dirigido para atender à finalidade constitucional do Usucapião Urbano constitucional. Ou seja, para reconhecer juridicamente o direito à moradia, mediante a aquisição da propriedade urbana dos habitantes das cidades, que vivem em favelas e demais assentamentos informais consolidados para fins habitacionais. Portanto, o Usucapião Urbano Coletivo é um instrumento processual que confere eficácia ao direito material do Usucapião Urbano – o direito à moradia e o direito às cidades sustentáveis -, potencializa o cumprimento do princípio da função social da propriedade e das funções sociais da cidade144.
142 Art. 10 - As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. § 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas. § 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis. § 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. § 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. § 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes. 143 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p. 387. 144 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares, p. 388.
65
O primeiro tema a ser enfrentado é o de possível inconstitucionalidade,
aventada por doutrina de escol. Ao Estatuto da Cidade, norma infraconstitucional,
não seria dado instituir modalidade aquisitiva sobre área sem limites dimensionais e
de forma coletiva, em descompasso com a disciplina dos arts. 183 e 192 da CRFB.
Haveria também lesão ao princípio da isonomia porque o art. 9º do Estatuto
estabeleceu limites quanto à usucapião individual.
Não se vê, entretanto, qualquer amesquinhamento do texto constitucional.
É clara a convergência com a função social da propriedade (art. 170, II e III, CRFB),
a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e com o objetivo de erradicação da
pobreza e da marginalização (art. 3º, III). Para Fiorillo, desvela-se da mesma
maneira o propósito de tutela ambiental (art. 170, VI) e de homenagem à função
social da cidade. Prefere, por isso, a nomenclatura “usucapião ambiental
metaindividual”145.
O estabelecimento de uma espécie coletiva, criadora de um condomínio,
pode não resultar de uma leitura à risca do preceituado na Constituição, mas
consoa, portanto, com seus princípios estruturantes. A falta de imposição de uma
metragem limite não é o bastante para a pecha de inconstitucionalidade. A saída
está no emprego de interpretação constitucional conforme, por meio da qual se leria
que embora incidente em área superior a 250 m2, não seria atribuída a cada
possuidor fração ideal maior do que esta baliza146. A interpretação conforme é aqui
entendida como técnica interpretativa e mecanismo de controle de
constitucionalidade que orienta o hermeneuta a eleger entre as leituras possíveis da
norma aquela em maior harmonia com a Constituição, excluindo às que conduzam à
inconstitucionalidade147.
Ademais, não era defeso à lei ordinária disciplinar a usucapião com maior
elastério do que mera regulamentação, em que pese o contido na ementa do
Estatuto, definidor da regularização fundiária como uma das diretrizes gerais da
145 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 85. 146 Benedito Silvério Ribeiro, um dos maiores conhecedores da matéria, sugere alteração legislativa para acréscimo da expressão “não podendo, contudo, ser atribuída a cada possuidor área maior que 250 m2” ao §3º do art. 10, a fim de dissipar a controvérsia (RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 987). 147 BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional contemporâneo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 325.
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política urbana (art. 2º, XIV). Na ensinança de Moraes Salles, a matéria seria tratada
de modo mais apropriado na Lei Civil do que no Diploma Constitucional. Nenhum
óbice havia em deixar à Lei nº 10.257/01, mais do que essa atividade
regulamentadora dos arts. 182 e 183 da Constituição, para delinear nova
modalidade, sob a forma de usucapião coletiva de áreas urbanas com mais de 250
m2 (art. 10)148.
No que diz com os requisitos, a área deve ser urbana e superior a
duzentos e cinquenta metros quadrados. Impende seja a posse ininterrupta, sem
oposição e perdurar por cinco anos. É voltada para a população de baixa renda, em
casos de impossibilidade de identificação das áreas individualmente ocupadas.
Também há a vedação de propriedade de outro imóvel rural ou urbano.
3.1.2 Posse e intermediários
É perspicaz a observação de Silvério Ribeiro de que a menção a área
urbana ocupada, sem o uso da palavra possuída, de forma alguma isenta o
usucapiente de ter a posse direta da coisa por um lustro. O termo eleito pelo
legislador antes indica uma posse mitigada, com animus domini voltado à moradia149 150.
É evidente que esse poder fático sobre a coisa não pode ser exercido por
meio de prepostos ou intermediários e é restrito à pessoa física, pois a jurídica não
tem moradia, mas sede.
O estrangeiro com moradia na área usucapienda poderá ver declarado
seu direito à aquisição. Não pode receber tratamento diverso do brasileiro nato ou
do naturalizado. A restrição apontada na Constituição quanto à nacionalidade do
usucapiente concerne aos imóveis rurais, a teor do art. 190.
O incapaz em tese pode usucapir por essa modalidade, mas desde que
pelo representante legal ou assistente, porque sua posse não seria animus 148 SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de Bens Imóveis e Móveis. 6. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 322. 149 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 993. 150 Não se exige posse opinio domini - a que deflui da convicção do possuidor em sua condição de proprietário –, como afirmamos alhures acerca da usucapião especial urbana individual (FREYESLEBEN, Luiz Eduardo Ribeiro. A Usucapião Especial Urbana: aspectos doutrinários e jurisprudenciais, p. 26).
67
domini151. A situação, na prática, raramente surgirá. De ordinário, o representante,
no mais das vezes um familiar, exercerá a posse pro morare em nome próprio.
3.1.3 A composse inexistente
A ocupação do terreno por várias pessoas não configura propriamente
uma composse, mas posse múltipla. Não exercem elas o poder de fato sobre toda a
área, quer dizer, não possuem uma coisa em comum. As parcelas do imóvel não
são ocupadas em conjunto, mas individualmente, se bem que de modo
desordenado: não se consegue especificar com precisão o que cada um ocupa. Por
ficção jurídica, o legislador entendeu como uma unidade esse conglomerado
habitacional desorganizado, com o fito de permitir a regularização152.
3.1.4 O termo inicial do prazo aquisitivo
A convergência estrutural patenteia o vínculo com o disposto na CRFB.
Todavia, por contar com requisitos próprios, a contagem do prazo prescricional de
cinco anos tem por termo a quo a data em que o Estatuto da Cidade começou a
vigorar153:
[...] o início da contagem ocorre com a entrada em vigor do diploma normativo urbano que criou a usucapião especial coletiva de imóvel urbano, qual seja, a Lei nº 10.257, de 10.07.2001, o que se deu somente após noventa dias de sua publicação no Diário Oficial de 11.07.2001. Assim, os períodos anteriores a 09.10.2001, ainda que superiores a cinco anos, não poderão ser aproveitados para a usucapião em questão154.
Há franca inclinação dos tribunais por esse marco:
AÇÃO DE USUCAPIÃO. USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO URBANO. PREVISÃO NA LEI 10.257/2001. FORMA DE CONTAGEM DO PRAZO
151 LIMA, Marcio Kammer de. Usucapião coletivo e desapropriação judicial: instrumentos de atuação da função social da propriedade. Rio de Janeiro: GZ, 2009, p. 36. 152 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, pp. 998/999. 153 A respeito da usucapião especial urbana individual, Cordeiro esclarece: “concebe-se que o usucapião especial urbano é direito novo no ordenamento jurídico, e , portanto, não se aplica às prescrições aquisitivas iniciadas antes de sua vigência, uma vez que não há possibilidade lógica e jurídica de continuar-se um prazo que nem começou” (CORDEIRO, Carlos José. Usucapião Constitucional Urbano: aspectos de direito material. São Paulo: Editora Max Limonad, 2001, p. 155). 154 HORBACH, Carlos Bastide. In: MEDAUAR, Odete; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de (org.). Estatuto da cidade: Lei 10.257, de 10.07.2001, comentários. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 143.
68
LEGAL PARA A INCIDÊNCIA DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. SENTENÇA MANTIDA. O usucapião especial coletivo urbano foi instituído pela Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), como instituto autônomo daquele que prevê o usucapião especial de imóvel urbano, previsto originariamente no art. 183 da Constituição Federal, e regulamentado pela referida lei infraconstitucional. O prazo de cinco anos de exercício da posse deve ser contado a partir da vigência do Estatuto da Cidade, ou seja, noventa dias após a data de sua publicação (09.10.2001), de sorte que, sendo a posse reclamada na demanda, anterior à vigência da lei que instituiu o usucapião especial coletivo urbano, não há como acolher o pedido inicial155. Para quem considera não se cuidar de direito novo, porquanto “em tal
hipótese se estaria apenas reconhecendo coletivamente o que cada um dos
posseiros poderia legítima e individualmente realizar” 156, o marco inicial pode ser
anterior a 9/10/2001, início da vigência da Lei nº 10.257/01157.
3.1.5 A população de baixa renda
O conceito de carência para a finalidade do instituto foi adrede deixado
em aberto, a ser traçado pelo prudente juízo do intérprete autêntico, por critério de
razoabilidade. Ferraz discorre a respeito:
Não tendo a lei definido o que entenda por ‘população de baixa renda’, a substanciação dessa condição legal ficou delegada ao prudente arbítrio do juiz, na inspiração do logos del razonable e com a utilização dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelos arts. 126 e 127 do Código Processual Civil e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil158.
Nem sempre as tentativas de definição de critérios objetivos materializam
a justiça. Se o intuito central é o de respeitar a dignidade de estratos sociais
mantidos à margem do sistema, seria temerário utilizar outros parâmetros, como
índices do IBGE, a renda mínima em âmbito administrativo para atendimento jurídico
gratuito em escritórios-modelo de universidades ou o valor fixado em normas
correicionais para gratuidade de certos atos cartoriais extrajudiciais.
155 TJMG, Apelação Cível nº 2.0000.00.436552-0, Relator: Desembargador Maurício, j. 09/03/2005, pub. 02/04/2005. 156 GASPARINI, Diogenes. O Estatuto da Cidade. São Paulo: Editora NDJ, 2002, p. 87. 157 Há ponderações valiosas sobre o tema da fluência do prazo em CAMPOS, Stefanie Groenwold. Da usucapião coletiva urbana: a usucapião sob um enfoque social. Curitiba, 2006. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná. 86p. 158 FERRAZ, Sérgio. Usucapião especial. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (org.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001, p. 146.
69
A definição deve ser feita em cada caso e algo a ser considerado é o fato
de que, por regra de experiência, observando o que ordinariamente acontece, quem
não tem condições de adquirir imóvel para moradia e sujeita-se a viver em favelas e
cortiços desprovidos de saneamento básico e de outros serviços não o faz por
diletantismo ou excentricidade, mas por falta de poder aquisitivo159.
3.1.6 Identificação das áreas
A impossibilidade de identificação dos terrenos ocupados individualmente
é pressuposto específico. No caso de plena identificação e delimitação da área,
ainda que inserta em imóvel maior, o possuidor haverá de se valer da usucapião
individual160. Para Lima,
[...] a alusão à impossibilidade de identificação dos terrenos deve ser interpretada pelo critério teleológico, de modo a abarcar aquelas situações em que há posse materialmente certa, mas impossibilidade de identificação dos terrenos, no sentido de sua localização e descrição registrária, com ocorre no fenômeno das ‘favelas’, em que os moradores têm posse material certa de seus barracos, mas dado à desordem urbanística das vielas e a precariedade das construções, se sujeita a ocupação individual a constantes modificações qualitativas e quantitativas161.
É nesse sentido a jurisprudência:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL - APELAÇÃO - AÇÃO DE USUCAPIÃO URBANO COLETIVO - ILEGITIMIDADE PASSIVA DE PARTE DOS AUTORES QUE JÁ SÃO PROPRIETÁRIOS DE IMÓVEIS RURAIS OU URBANOS - VERIFICAÇÃO - ÁREAS USUCAPIENDAS INDIVIDUALIZADAS E DELIMITADAS - REQUISITO DA LEI 10.257/2001 - AUSÊNCIA - EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DO
159 “Não seria mesmo nenhuma heresia afirmar que as circunstâncias relativas ao local e às condições de moradia por si mesmas já dariam margem ao reconhecimento da situação de baixa renda. Cuida-se, no caso de presunção juris tantum, que só perdura até comprovação em contrário. Haverá exceções, é claro, mas será necessária a demonstração de que, apesar das condições locais de moradia, o possuidor não se insere na população de baixa renda. Em semelhante situação, a presunção cederia à prova em contrário” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao estatuto da cidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 129). 160 “ [...] como afirmado, trata-se de medida que busca regularizar a situação das ocupações urbanas, mais precisamente das favelas, onde é quase impossível localizar de forma geográfica a área de ocupação de cada interessado, já que, havendo tal possibilidade, desnecessária se torna a usucapião coletiva, cabendo a cada possuidor, individualmente, buscar a prescrição a seu favor” (SOARES, Ronnie Herbert Barros. Usucapião: especial urbana individual. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, p. 60). 161 LIMA, Marcio Kammer de. Usucapião coletivo e desapropriação judicial: instrumentos de atuação da função social da propriedade, p. 42.
70
MÉRITO - CABIMENTO - RECURSO NÃO PROVIDO. Para a propositura da ação de usucapião especial urbano a lei exige que o possuidor não seja proprietário de outros imóveis, urbanos ou rurais. A Lei 10.257/2001 estabelece que só na hipótese de impossibilidade de individualização dos terrenos ocupados por cada possuidor é que se faz possível a ação de usucapião especial urbana e coletiva, tanto que na sentença atribui-se fração igual para cada possuidor, que passam a deter o bem imóvel em condomínio indiviso. Restando individualizadas e delimitadas as áreas usucapiendas, mostra-se incabível a ação de usucapião especial coletivo [...]162. A menção a “áreas urbanas” (art. 10, caput, Lei nº 10.257/2001) atende a
critério de localização163. Não haverá descaracterização para efeito de usucapião
coletiva se a par do estabelecimento de moradia em perímetro urbano os
possuidores exercerem atividades agrícolas: o imóvel não será considerado rural
pela destinação. Assim, imagine-se assentamento na urbe originado de êxodo do
campo, para moradia dos grupamentos familiares, com preservação de alguns
labores próprios do campesinato, como pequenas hortas. Preenchidos os demais
requisitos legais, não se vê obstáculo algum à aquisição pela via comentada nessa
hipótese.
3.1.7 Acessão e sucessão da posse
É iniludivelmente admitida a acessão da posse (acessio possessionis) –
soma da posse do antecessor, preservada a continuidade - na usucapião coletiva
(art. 10, §1º), defesa na usucapião especial urbana individual:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. A usucapião especial de imóvel urbano, quando a ação é exercida individualmente, não admite a acessio possessionis. Inaplicável na usucapião não-coletiva o art. 10 da Lei 10.257/01. APELAÇÃO IMPROVIDA164. Acata-se também a sucessão da posse (sucessio possessionis) –
continuação da posse pelo herdeiro se residente no imóvel à época da abertura da
sucessão -, conforme art. 9º, §3º, do Estatuto.
162 TJMG, Apelação Cível nº 1.0086.07.019281-9/001, Relatora: Desembargadora Márcia de Paoli Balbino, j. 25/04/2013, pub. 14/05/2013. 163 LIMA, Marcio Kammer de. Usucapião coletivo e desapropriação judicial: instrumentos de atuação da função social da propriedade, p. 41. 164 TJRS, Apelação Cível nº 70009372145, da Comarca de Porto Alegre, Relator: Desembargador Luiz Roberto Imperatore de Assis Brasil, j. 14/12/2004.
71
A acessão permite que quem obteve a posse por força de um negócio
jurídico eleja aproveitar o período possessório anterior, com todas as suas
particularidades, ou iniciar nova posse, sem possíveis máculas apresentadas pela
anterior165. A rotatividade de possuidores na cidade clandestina impunha mesmo
fosse acatada a acessio pelo legislador166.
3.1.8 Condomínio especial
A sentença, de natureza declaratória (art. 10, §2º), implica
reconhecimento de um condomínio especial. Em regra caberá a cada possuidor uma
fração ideal igual à dos demais, ressalvada a celebração de acordo escrito em
sentido diverso (art. 10, §3º). Ao contrário do ordinário em condomínios, a extinção
somente poderá ocorrer por deliberação de no mínimo dois terços dos condôminos,
desde que realizadas as obras de urbanização (art. 10, §4º).
No mais, as decisões afetas à administração do condomínio são por
maioria de votos dos condôminos presentes, isto é, maioria simples (art. 10, §5º).
Carvalho Filho sugere a eleição de um síndico que convocaria a assembleia de
condôminos para submeter-lhes os assuntos de interesse comum167.
3.1.9 As obras de urbanização
Há quem advogue a tese de que essas obras haverão de ser feitas
exclusivamente pelos particulares. No entanto, é consabido que a implementação de
serviços infraestruturais como esgoto, energia elétrica, fornecimento de água,
calçamento, construção de canais de escoamento, imprescinde da atuação do poder
público, por maior que seja o engajamento comunitário.
Não fosse assim, seria despropositado ditame legal para fixação de
diretrizes – o que pressupõe recursos materiais e humanos – para a normalização
fundiária de assentamentos urbanos irregulares (arts. 41, I, e 42-A, V, do Estatuto).
Não faria sentido, do mesmo modo, a atribuição à União, e em conjunto com
Estados e Municípios, do mister de promover “programas de construção de moradias
165 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, p. 356. 166 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares, p. 390. 167 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao estatuto da cidade, p. 133.
72
e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico” (art. 3º, III, Lei nº
10.257/01)168.
No mais das vezes, esses loteamentos irregulares ou favelizados são
uma combinação de deterioração das condições de vida nos grandes centros
populacionais e de um êxodo rural malsucedido, guiado pelo canto da sereia da
nova vida citadina169.
Darcy Ribeiro já tentara nos explicar o processo de urbanização caótica
vivenciado pelo Brasil, com raízes mais antigas do que supúnhamos, marcado pela
travessia dos ciclos do ouro, do açúcar, da borracha e do café, passando por surtos
desordenados de industrialização. A desocupação do campo agravou-se pelo
latifúndio e pela monocultura, impelindo às cidades um contingente que nenhuma
delas era capaz de absorver. Estava preparada a receita para as ocupações
informais do solo, a competição selvagem por empregos, a formação de cinturões de
miséria e a proliferação da violência. O antropólogo, que viveu de perto os mais
significativos episódios da história recente, exibiu-nos uma rara radiografia dessa
deterioração urbana nacional:
A própria população urbana, largada a seu destino, encontra soluções para seus maiores problemas. Soluções esdrúxulas é verdade, mas são as únicas que estão a seu alcance. Aprende a edificar favelas nas morrarias mais íngremes fora de todos os regulamentos urbanísticos, mas que lhe permitem viver junto aos seus locais de trabalho e conviver
168 À luz da atuação urbanística espanhola, Berdejo anota: “planeada una urbanización, hay que ejecutarla, esto es, realizar las obras de infraestrutura y acondicionar los solares donde luego se va a construir. En la tradición de nuestro Derecho urbanístico, la ley venía regulando, a este fin, tres alternativas: una de actuación privada (denominada sistema de compensación), otra de actuación mixta (denominada de cooperación) y una tercera de actuación pública (expropiación). En la actualidad se tiende, en términos generales, hacia un sistema de cooperación, pero con un claro protagonismo de los entes públicos, de modo que la idea – que en otros momentos parecía prevalente – de la subsidiariedad de la gestión pública ahora se circunscribe a simplemente alentar y, em todo caso, a fomentar la participación privada” (BERDEJO, José Luis Lacruz; REBULLIDA, Francisco de Asís Sancho; SERRANO, Augustín Luna; ECHEVERRÍA, Jesús Delgado; HERNÁNDEZ, Francisco Rivero; ALBESA, Joaquín Rams. Derechos Reales: posesión y propiedad, p. 314). 169 Saule Júnior alvitra: “com relação à melhoria das condições habitacionais, de modo a conferir um padrão digno de vida às comunidades carentes, uma medida que deve ser adotada é a dos condomínios se associarem em cooperativa popular urbanizada para o fim de promoverem por si próprios (sistema de auto-gestão-mutirão) ou por terceiros, a construção, a reforma, ou ampliação de suas moradias, bem como a realização de benfeitorias e instalação de equipamentos urbanos e comunitários” (SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares, p. 392).
73
como comunidades humanas regulares, estruturando uma vida social intensa e orgulhosa de si170.
Na base disso está a omissão estatal em prover o indispensável a uma
existência digna aos seus. Essa letargia reside um pouco no desinteresse pela sorte
das camadas sociais desfavorecidas e um outro tanto por uma imposição inerente
ao sistema hegemônico. O mínimo que se pode esperar do Estado é que abrande os
males infligidos a essa parcela social expressiva como consequência de suas
escolhas político-econômicas. Não se trata de lhe irrogar um encargo pesado e
injusto, mas de oportunizar ao ente estatal expiar parte de suas culpas171.
3.1.10 Moradia e construções mistas
A existência de pequenos comércios ou construções mistas não é
empecilho à usucapião coletiva. O importante é que a área seja
preponderantemente utilizada para moradia, em exegese atenta à teleologia da
norma172.
Dessarte, “se um ou outro morador realiza atividade negocial em sua
moradia (v.g., pequenas vendas e botecos), temos de perceber que no mesmo local
também há moradia efetiva, que não será descaracterizada pela eventual prática
econômica”173.
170 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 204. 171 Ainda que enfocando em especial o contexto espanhol, Solé brinda-nos com uma análise criteriosa do crescimento da segregação espacial urbana, fundada na conexão entre classe, desigualdade e suburbanização. Aborda a crise ética do direito urbanístico, dominado pela leitura economicista que nega eficácia ao artigo 47 da Constituição da Espanha ou, na melhor das hipóteses, reduz-lhe à unidade habitacional. O preceito constitucional, para Solé, abarca o entorno e as relações intrínsecas ao meio ambiente urbano, reconhecendo o direito à cidade. O acesso a um habitat digno e adequado é, assim, fator de coesão social, inspirado na justiça social, com distribuição equanime dos custos e benefícios da cidade (SOLÉ, Juli Ponce. Poder Local y Guetos Urbanos: las relaciones entre el Derecho urbanístico, la segregación espacial y la sostenibilidad social. Barcelona: Fundació Carles Pi i Sunyer d’Estudis Autonòmics i Locals, 2002, pp. 102/103). 172 É irrepreensível a lição de Silvério Ribeiro: “Os imóveis que não se destinam a residências não podem, em princípio, ser objeto de usucapião coletiva. As favelas, no entanto, constituem um todo orgânico e devem ser consideradas como unidades, daí por que alguns imóveis comerciais não podem, desde que exista predominância de residência, impedir futura urbanização. Não é de afastar a viabilidade de usucapião coletiva, no caso em que poucos imóveis sejam utilizados para fins comerciais, uma vez que o benefício outorgado pelo legislador do Estatuto da Cidade deve ser visto no intuito de permitir que a grande maioria de moradores residentes na área usucapienda obtenha o título de domínio de suas frações ideais, para o fim de futura urbanização” (RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 998). 173 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, p. 379.
74
No atinente a templos, espaços livres e vielas, é lúcida a orientação de
Gasparini de que são usucapidas como áreas comuns do condomínio especial. Tê-
las como áreas públicas impeditivas da aquisição por esse meio importaria destituir
a usucapião especial coletiva urbana de quase toda a sua utilidade. Quer dizer,
leitura diversa tornaria anódino o art. 10 do Estatuto, relegado a cidades imaginárias.
3.1.11 Imóveis públicos e restrições ambientais
É escusado dizer que se o imóvel ocupado for público não se cogita de
usucapião, em quaisquer de suas modalidades, pela vedação do art. 183, §3º, da
CRFB. O art. 102 do Código Civil é textual: “os bens públicos não estão sujeitos a
usucapião”. Poderá haver, porém, concessão de uso especial para fim de moradia
(art. 3º, Medida Provisória nº 2.220/01174 e art. 4º, V, “h”, do Estatuto).
Ainda no campo das restrições, não caberá a usucapião coletiva se nem
sequer seja possível vislumbrar uma futura urbanização. É o caso de núcleos
habitacionais desorganizados situados em nascentes de rios ou em manguezais,
salvo se a degradação já havida for irreversível. Nessa cogitação, a negativa em
reconhecer o direito à moradia não teria a contrapartida da recuperação do bem
degradado. De acordo com Lima,
[...] a solução haverá de ser conquistada e iluminada pelo princípio da proporcionalidade, tudo para um adequado balanceamento dos interesses fundamentais em jogo. Assim, conquanto irredutível a restrição ambiental, se a degradação já se operou e o restauro revelar-se inviável ou extremamente custoso, a tutela ambiental cederá e o usucapião coletivo, como instrumento de realização do direito fundamental à moradia, poderá ser manejado175.
3.1.12 Críticas à usucapião coletiva
Por mais que não se pretenda esgotar o assunto, padeceria de
imperdoável lacuna esse estudo se não nos reportássemos às críticas à usucapião
coletiva, que não são poucas, nem amenas. Doutrinadores do mais alto quilate
consideram o instituto da usucapião como eminentemente individual, repugnando-
lhes à ideia de uma aquisição dominial coletiva. Seria também uma fonte de 174 BRASIL. Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2220.htm. Acesso em: 20 set. 2015. 175 LIMA, Marcio Kammer de. Usucapião coletivo e desapropriação judicial: instrumentos de atuação da função social da propriedade, p. 51.
75
perenização, uma espécie de oficialização das favelas. À Administração
representaria um enorme estorvo, posta diante de um problema insolúvel. A
regularização seria custosa e de quase impossível consecução. Não haveria como
provar a não propriedade de outro imóvel e os “favelados” poderiam conluiar-se com
terceiros e forjar testemunhos. As assembleias condominiais seriam, ainda, um palco
privilegiado para aproveitadores e farsantes176. A terrível Caixa de Pandora, nessa
linha de pensamento, seria o estopim para incontáveis e incontroláveis invasões,
além de sepultar o direito de propriedade.
Diverge-se respeitosamente desse ponto de vista. A usucapião especial
coletiva não é uma panaceia, mas de certo não é uma vilã urbanística. As gestões
compartilhadas, o associativismo, o cooperativismo e por que não os condomínios
podem ser motivo de cizânias, mas em primeiro plano são expressões da
democracia, dando a palavra a quem não podia usá-la. Esses espaços de
participação popular não são uma perniciosa abertura à plebe, senão um contrafluxo
à sonegação de direitos – inclusive à moradia - e à repetida transgressão ao
princípio da dignidade da pessoa humana.
A boa-fé é presumida, como princípio geral de direito. Não é apropriado,
por ideias preconcebidas, deduzir que as assembleias no condomínio especial
formado pelos moradores de loteamentos irregulares estejam sempre aquém em
civilidade em relação às reuniões em condomínios de luxo. O risco de falsos
176 “Pela simples leitura do preceito legal transcrito, observa-se, desde logo, a enormidade criada pelo legislador, para não se dizer a monstruosidade por ele praticada. Além de ampliar o contido no dispositivo constitucional regulamentado (o art. 183), que só versava sobre situações individuais de usucapião especial urbana, não aludindo, portanto, a casos de usucapião especial coletiva de imóvel urbano, o legislador criou um monstrengo difícil de ser digerido pelas administrações municipais, que estarão sujeitas, doravante, ao enfrentamento de problemas quase insolúveis, derivados da perpetuação de favelas que a tal usucapião coletiva irá gerar. [...] A verdade dura e crua é esta: deu-se início à perpetuação oficial das favelas deste País. Mas os problemas decorrentes da edição do art. 10 do Estatuto da Cidade não param aí. As enormes dificuldades que irão surgir para o Poder Judiciário processar e julgar ações de usucapião especial coletiva de imóvel urbano são fáceis de se imaginar. Como, por exemplo, produzir prova de que centenas ou quiçá milhares de favelados não são proprietários de outro imóvel urbano ou rural? Sabendo-se, por outro lado, como é flutuante a população das favelas, como evitar que indivíduos ali instalados há poucos dias ou meses, mancomunados com outros, tentem ‘demonstrar’, com ‘testemunhas’, que habitam o lugar há mais de cinco anos? Como reunir centenas ou milhares de favelados para deliberarem, por exemplo, sobre a extinção do condomínio dito especial nos termos do §4º do art. 10? [...] Conhecendo-se – como se conhece – o nível cultural das populações de baixa renda, num País em que, desgraçadamente, o número de analfabetos ou de semi-alfabetizados é elevadíssimo, será fácil avaliar como serão conduzidas essas assembléias, com toda a certeza presididas por aproveitadores e oportunistas e em detrimento da grande maioria dos condôminos [...] ” (SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de Bens Imóveis e Móveis, pp. 319 e 327).
76
testemunhos em demandas de usucapião coletiva não é maior do que o presente
em ações multimilionárias protagonizadas pela pretensa fina flor da sociedade
brasileira.
Em um clássico da sociologia, Sérgio Buarque de Holanda discorre
acerca de uma época tão distante e tão próxima:
Ainda quando se punham a legiferar ou a cuidar de organização e coisas práticas, os nossos homens de idéias eram, em geral, puros homens de palavras e livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações. Tudo assim conspirava para a fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria asfixiada. Comparsas desatentos do mundo que habitávamos, quisemos recriar outro mundo mais dócil aos nossos desejos ou devaneios. Era o modo de não nos rebaixarmos, de não sacrificarmos nossa personalidade no contato de coisas mesquinhas e desprezíveis. Como Plotino de Alexandria, que tinha vergonha do próprio corpo, acabaríamos, assim, por esquecer os fatos prosaicos que fazem a verdadeira trama da existência diária, para nos dedicarmos a motivos mais nobilitantes: à palavra escrita, à retórica, à gramática, ao direito formal. O amor bizantino dos livros pareceu, muitas vezes, penhor de sabedoria e indício de superioridade mental, assim como o anel de grau ou a carta de bacharel. É digno de nota – diga-se de passagem – o valor exagerado que damos a esses símbolos concretos; dir-se-ia que as ideias não nos seriam acessíveis sem uma intervenção assídua do corpóreo e do sensível [...]177.
Stefanie Groenwold Campos, em qualificada dissertação, adverte ser
forçoso interpretar e aplicar a usucapião coletiva em atenção à sua
metaindividualidade, em busca de concreção dos objetivos da lei. Renova que
parâmetros interpretativos adequados à usucapião individual “devem ser
temperados pela finalidade social do instituto ou até mesmo substituídos por outros,
voltados para a efetivação da regularização fundiária e urbanística das favelas e
assentamentos irregulares que proliferam nas cidades brasileiras”178.
Fornecer um instrumento para regularizar situações de fato, oriundas de
uma dinâmica social desigual, não significa oficializar as favelas, mas um refrigério
às duras condições de vida da população de baixa renda.
177 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 163. 178 CAMPOS, Stefanie Groenwold. Da usucapião coletiva urbana: a usucapião sob um enfoque social. Curitiba, 2006. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná. 86p.
77
3.2 ASPECTOS PROCESSUAIS: BREVES CONSIDERAÇÕES
A usucapião especial coletiva não é o elementar resultado da soma de
ações individuais. O objetivo precípuo de seu surgimento não foi o pragmatismo
processual. O eixo de análise é outro e reclama tratamento da processualística bem
afinado à sua matriz metaindividual. Pretendeu-se que houvesse benefício à
coletividade e pelo mesmo motivo a leitura do instituto depende dessa visão da área
como uma unidade, não como porções de terra usucapíveis individualmente.
A insistência em empregar fórmula processual não adaptada à feição do
instituto pode causar seu esvaziamento. Compreende-se perfeitamente, portanto, o
porquê da cuidadosa observação de Farias e Rosenwald: “com vistas para a
comunidade, o magistrado não contará o prazo de cinco anos de forma
individualizada e rígida para cada um dos possuidores, mas observará a área como
uma unidade que começou a ser ocupada há mais de cinco anos...”179.
3.2.1 Legitimidade ativa e competência
A legitimidade é do conjunto dos possuidores (art. 12, I) ou da associação
de moradores com autorização expressa dos representados (art. 12, III). Essa
autorização não precisa ser individual; pode ser concedida em assembleia
convocada com finalidade específica180. Não se perfilha o entendimento de que o
inciso I limita-se à usucapião especial urbana individual.
Também não se descarta a do Ministério Público – para além da
intervenção obrigatória do art. 12, §1º - por decorrência do art. 127 da CRFB181.
Farias e Rosenvald182 sugerem a via da ação civil pública, uma vez que o art. 53 da
Lei nº 10.257/2001 incluiu a ordem urbanística entre os bens sob tutela coletiva (art.
1º, VI, Lei nº 7.347/85)183. A relevância e capilaridade do Órgão exponencializaria a
aptidão socialmente transformadora da usucapião coletiva, inserta no contexto dos
objetivos institucionais.
179 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, p. 379. 180 LIMA, Marcio Kammer de. Usucapião coletivo e desapropriação judicial: instrumentos de atuação da função social da propriedade, p. 59. 181 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado, p. 89. 182 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, p. 381. 183 BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7347Compilada.htm. Acesso em: 22 set. 2015.
78
O juízo competente será o do local em que o imóvel estiver situado (forum
rei sitae), por força do art. 95 do CPC. A presença da União na ação de usucapião
não afasta a competência do foro da situação da coisa, conforme Súmula nº 11 do
Superior Tribunal de Justiça184.
3.2.2 O registro
O registro da sentença no Cartório de Registro Imobiliário dá publicidade
ao fato, surtindo efeitos erga omnes, e dele deverão constar as porções ideais
cabíveis a cada condômino. Não podem elas ser postas em nome do condomínio ou
da associação de moradores185. A justificativa é singela: pessoa jurídica tem sede e
não moradia.
A serventia extrajudicial não poderá recusar-se a registrar a sentença sob
a justificativa de irregularidade do parcelamento do solo ou da edificação (art. 167, I,
item 28, Lei nº 6.015/73186 c/c art. 55 da Lei nº 10.257/2001). A negativa seria
menoscabo à característica de que se reveste o instituto (instrumento de política
urbana e justiça social), visante à regularização de loteamentos, favelas e
agrupamentos populacionais similares, constituídos à margem das normas
urbanísticas.
Não se cogita de quebra de cadeia registral, é dizer, de violação ao
princípio da continuidade. A desvinculação com o registro anterior é uma
decorrência óbvia da marca da usucapião como modo aquisitivo originário187.
Esse instrumento também se coaduna com um imperativo de segurança a
comunidades carentes188. A declaração de domínio transmuda em de direito uma
situação fática e proporciona maior solidez jurídica aos moradores189.
184 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula nº 11. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp#DOC2. Acesso em: 25 set. 2015. 185 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.002. 186 BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6015original.htm. Acesso em: 20 set. 2015. 187 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, p. 346. 188 O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por meio do Conselho da Magistratura, mostrou estar atento a seu mister de garante da cidadania e promotor de justiça social ao instituir o Projeto Lar Legal, na forma da Resolução CM nº 11, de 11 agosto de 2008, posteriormente alterada pela Resolução CM nº 8, de 9 de junho de 2014. O projeto mira loteamentos ou desmembramentos que embora não autorizados na seara administrativa estejam em área urbana consolidada, integrada à cidade, em situação de irreversibilidade possessória, cuja regularização aproveite
79
3.2.3 Litisconsórcio
Foi dito que os possuidores detêm legitimidade ativa (art. 12, I). Como há
pluralidade de pessoas ligadas por idêntica situação de fato, trata-se de
litisconsórcio necessário190 191. Por outro lado, segundo Araújo, a decisão pode ser
diferente para cada possuidor, “com exclusão da área ideal dos compossuidores que
não demonstrarem sua posse e lapso temporal”192; logo, litisconsórcio simples, não
unitário. Benedito Silvério Ribeiro aventa a situação de recusa em litigar de alguns
moradores com posses situadas no interior da gleba, isto é, que não podem ser
destacadas do todo, em prejuízo da futura urbanização e resolve desta maneira a
questão tormentosa:
A solução para tal delicada questão é a da citação do possuidor omisso, para que venha integrar a lide, no polo ativo. Se comparecer ou anuir, a legitimação ficou atendida. Caso contrário, o juiz verificará se eventual procedência da demanda é inconveniente ao possuidor renitente ou, em outras palavras, se a recusa em litigar é justificada ou configura abuso de direito. Caso entenda justificada, o processo será extinto. Caso entenda injustificada, prosseguirá o feito, em situação semelhante à de suprimento de outorga de cônjuge193 194.
preponderantemente a pessoas de baixa renda (artigo 1º). A falta de outorga de escritura imobiliária à população afetada, que deu à área uma destinação social compatível, frustraria o acesso a linhas de crédito para investimentos e melhorias residenciais, perpetuaria a insegurança jurídica e obstaria o exercício do direito de propriedade em sua plenitude. 189 “A sentença, portanto, nada transfere, uma vez que a usucapião é modo originário de aquisição [...]. Serve, entretanto, como título para o registro no cartório de registro de imóveis, o que dará publicidade à aquisição, assegurará a continuidade do registro resguardando a boa-fé de terceiros e possibilitará o jus disponiendi por parte do prescribente” (SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de Bens Imóveis e Móveis, p. 324). 190 Salles discorda: “[...] muito embora seja recomendável que a propositura da ação de usucapião especial urbana coletiva seja feita, em litisconsórcio, por todos os possuidores de área nas condições previstas no art. 10 do Estatuto da Cidade, esse litisconsórcio será facultativo e não necessário. Não percamos de vista que nem sempre será possível obter a anuência de centenas ou de talvez milhares de possuidores para a propositura dessa ação em litisconsórcio, sendo lícito a um único interessado intentar a referida ação, decorrendo essa legitimação do disposto na primeira parte do inc. I do art. 12, ou seja, da expressão ‘o possuidor, isoladamente’. Nada impede, entretanto, que, no curso da ação, outros interessados sejam admitidos no polo ativo, ou seja, em litisconsórcio superveniente, nos termos do inc. I do art. 12 da Lei 10.257, de 10.7.2001, desde que demonstrem legitimidade para a demanda” (SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de Bens Imóveis e Móveis, p. 335). 191 O aclamado tratadista Silvério Ribeiro sustenta, como regra, ser necessário o litisconsórcio, mas facultativo caso haja recusa de ocupantes da lateral da gleba ou de outro espaço que possa ser destacado sem desfigurar o todo. Assim, é viável a usucapião coletiva, bastando destacar a área possuída pelos moradores renitentes (RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 996). 192 ARAÚJO, Fabio Caldas. O Usucapião no Âmbito Material e Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 263. 193 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 996. 194 É semelhante a resposta alvitrada por Carvalho Filho (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao estatuto da cidade, p. 135).
80
Nada impede o ingresso de morador após deflagrada a demanda judicial.
O art. 12, I, do Estatuto, em sua parte final, aceita a formação de litisconsórcio
superveniente. Explicitada a causa jurídica para a adesão à lide e juntados os
documentos pertinentes, é escusado dizer que necessária a abertura de prazo para
manifestação dos demais interessados195.
3.2.4 A associação de moradores: substituta processual?
No art. 12, III, do Estatuto aludiu-se à legitimidade da associação de
moradores “como substituto processual”, “desde que explicitamente autorizada pelos
representados”. Procede a crítica de que o legislador confundiu representação com
substituição processual. Não há legitimação extraordinária, porque incongruente
com a necessidade de autorização expressa196. Se é necessária a autorização, a
hipótese é de representação (art. 5º, XXI, CRFB). Tendo ou não a ação sido movida
pela associação, os possuidores devem ser listados na petição inicial, a bem do
contraditório e porque serão eles os beneficiados com as frações ideais.
É oportuno consignar que associação deve ser regularmente constituída,
mediante inscrição do ato constitutivo no respectivo registro (art. 114, Lei nº
6.015/73), nos termos da lei civil (arts. 45 e 53 e seguintes do Código Civil). Não são
legitimadas associações diversas, como religiosas, esportivas ou de lojistas197. Caso
ajuízem a ação de usucapião coletiva, a petição inicial haverá de ser indeferida (art.
295, II, do Código de Processo Civil198), com extinção processual sem exame de
mérito (art. 267, II, CPC). Se inadvertidamente recebida a peça inaugural, o
desfecho será a extinção por carência de ação (art. 267, VI, CPC).
Rediga-se que obrigatória a intervenção do Ministério Público para zelar
pela regularidade do procedimento e evitar prejuízos a terceiros ou algum dos
possuidores, sem prejuízo de ele próprio figurar no polo ativo (art. 127, CRFB)199.
195 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 996. 196 ARAÚJO, Fabio Caldas. O Usucapião no Âmbito Material e Processual, p. 264. 197 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao estatuto da cidade, p. 136. 198 BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm. Acesso em: 20 set. 2015. 199 “[...] não se arreda ao Ministério Público fiscalizar, na ação de usucapião, para que não se efetive usucapião coletiva em áreas de risco, como encostas, locais alagadiços e sem condições de drenagem, em zonas de mananciais e outras em que haja proibição legal. Deverá atentar para um
81
3.2.5 Usucapião coletiva em matéria de defesa
O art. 13 acata a invocação da usucapião especial urbana como matéria
de defesa, nada inaudito (Súmula nº 237 do Supremo Tribunal Federal200). A
dificuldade pressagiada está na parte final: “valendo a sentença que a reconhecer
como título para registro no cartório de registro de imóveis”. Aqui a louvável
preocupação com a economia processual pode enfrentar dificuldades pela
magnitude do litígio, em regra composto por número expressivo de partes.
Como o mandado ao Cartório tem de conter todos as informações
necessárias à lavratura do registro, o juiz deve valer-se dos poderes que lhe foram
outorgados pelo Estado à frente do processo, prefigurando a realização daquele ato.
Por esse motivo, mesmo arguida a usucapião por meio de exceptio proprietatis,
pode-se determinar o aditamento da peça por analogia com o art. 284 do CPC e a
juntada de croqui e de outros documentos relevantes, descabida a negativa de força
registral à sentença declaratória da usucapião em defesa com base na
complexidade201. É ressabido que a aplicação da lei há de ser procedida em atenção
a seus fins sociais e às exigências do bem comum (art. 5º, Decreto-lei nº 4.657/42),
podendo ser empregados, em caso de lacuna, a analogia, os costumes e os
princípios gerais do direito (art. 4º, Decreto-lei nº 4.657/42)202.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
apreciou arguição de inconstitucionalidade do art. 13 do Estatuto, rejeitando-a. A
Corte empregou interpretação do dispositivo conforme a Constituição no sentido de
que o registro é viável se forem cientificados da demanda as Fazendas Públicas, os
confinantes, o Ministério Público e eventuais interessados:
Arguição de inconstitucionalidade - Art. 13, da Lei nº 10.257, de 10/07/2001 (Estatuto da Cidade) - Incidente suscitado pela 19ª Câmara de Direito Privado – Referido artigo busca dar concretude a outros ideais constitucionais, como a função social da propriedade e a redução das
mínimo de resguardo de posturas, pelo menos no que concerne à reserva de área para passagem de pessoas, como ruas e vielas, evitando-se encravamento do imóvel” (RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 1.012). 200 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula nº 237. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=237.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas. Acesso em: 20 set. 2015. 201 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 979. 202 BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm. Acesso em: 22 set. 2015.
82
desigualdades sociais - Sentença que reconhecer a usucapião invocada em defesa poderá servir como título para registro no cartório de registro de imóveis, desde que observados os princípios do devido processo legal e da razoável duração do processo – Interpretação do Art. 13 da Lei nº 10.257 à luz da Constituição, não sendo o caso de acolher a arguição de inconstitucionalidade em prejuízo de outros princípios e ideais constitucionais – Não acolhimento – Improcedência da arguição, com atribuição de interpretação conforme203.
Em precedente vanguardista, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná
reconheceu a aquisição originária por meio de usucapião coletiva invocada em
matéria de defesa no bojo de ação de reintegração de posse movida por uma massa
falida em face de catadores de papel (trinta e duas famílias) que moravam há uma
década na área reclamada204.
3.2.6 Procedimento sumário
A exemplo do art. 5º da Lei nº 6.969/81205, que previa a marcha
processual pelo rito sumário para a usucapião especial de imóvel rural, o Estatuto
trouxe previsão explícita de processamento por esse rito na usucapião especial
urbana (art. 14). Não obstante, é provável que a prática forense, pela complexidade
de demandas desse naipe, impila à conversão ao procedimento ordinário, pela maior
amplitude cognitiva. Segundo Benedito Silvério, “não foi feliz na escolha do rito o
legislador, que se induziu pelo termo sumário, no pressuposto da celeridade. O
procedimento sumário é inapropriado para causas como as referentes a usucapião
de imóvel, dada uma série de providências que devem ser levadas em conta”206.
Não se tratando de usucapião especial de imóvel urbano, o procedimento
não será o comum sumário, mas o especial dos arts. 941 a 945 da Lei
Instrumental207.
203 TJSP, Arguição de Inconstitucionalidade nº 0191412-69.2013.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, Relator Designado: Grava Brasil, j. 26/02/14. 204 TJPR, Apelação Cível nº 917511-7, do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Relator: Desembargador Carlos Mansur Arida [voto vencido], Relator designado: Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea, j. 30/01/13. 205 BRASIL. Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6969.htm. Acesso em: 22 set. 2015. 206 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 973. 207 Aqui a menção ao procedimento especial restringe-se à localização topográfica, inserta no Livro IV do Código de Processo Civil, referente aos procedimentos especiais. Na verdade, a supressão da
83
Para Carvalho Filho, não se aplica à usucapião especial urbana o
disposto no art. 942 do CPC: não é imperativa a citação daquele em cujo nome
estiver registrado o imóvel, tampouco dos confinantes. Também não se exige, em
sua visão, a citação editalícia dos réus em lugar incerto e de eventuais
interessados208.
Por outro prisma, a intimação postal das Fazendas Públicas (art. 943,
CPC) há de ser procedida, a fim de prevenir eventual declaração de domínio sobre
área pública, inusucapível (art. 183, §3º, CRFB)209.
3.2.7 Perícias, memoriais e plantas
O Estatuto não torna cogente a feitura de perícia. No entanto, é prestadia
à futura urbanização:
A perícia, além de dar a descrição perimétrica da gleba, deve especificar os confrontantes, todos os serviços públicos existentes no local, vias de circulação, ocupantes e condições do local (área de risco, como encostas, mananciais, terrenos alagadiços, insalubres, com ou sem condições de drenagem, beiras de rios, mangues etc). É necessário que sejam também fixadas as frações ideais de cada um dos ocupantes210.
Saule Júnior tem por necessária e suficiente a apresentação de memorial
descritivo - com especificação das áreas ocupadas individualmente e das comuns -,
que em seu entendimento pode ser substituído por fotos de satélite211.
Ao contrário do estabelecido no art. 942 do CPC, não há referência à
obrigatoriedade de juntada de planta do imóvel no art. 183 da CRFB e no art. 10 do
Estatuto da Cidade. No tocante àquele Codex, se há julgados pela
indispensabilidade da planta, outros flexibilizam o ditame e admitem croqui. Na
modalidade em estudo, a juntada de croqui com certo detalhamento harmonizaria a
segurança dos atos judiciais com o viés social. A obtenção do croqui é bem mais
audiência de justificação prévia pela superveniência da Lei nº 8.951/94 – outrora prevista no antigo art. 942, I - , importou ordinarização do procedimento. 208 Silvério Ribeiro sustenta que deve haver convocação por edital de todos os interessados, para formação de título oponível erga omnes (RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 1.013). 209 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao estatuto da cidade, p. 142. 210 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 1.013. 211 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares, pp. 393/394.
84
simples do que a de uma planta, pelo rigor técnico desta. Os dados que por ela
seriam trazidos podem ser auferidos por perícia anterior à transcrição212.
3.2.8 Natureza da sentença e suspensão de ações
É indiscutível a natureza declaratória da sentença, afinada a essa
modalidade originária de aquisição. Uma vez mais na nota de Carvalho Filho, “o
registro da sentença tem o efeito de regularizar a cadeia sucessória de domínio de
imóveis urbanos. O efeito do registro é erga omnes e encerra a publicidade que se
dá a terceiros do fato jurídico relativo à aquisição do imóvel pelo usucapião”213 214.
O art. 11 traz o necessário sobrestamento de ações concernentes ao
imóvel usucapiendo, quer de cunho petitório, quer possessório, o que perdurará até
o trânsito em julgado da sentença215. Não acarretam a suspensão ações de outra
espécie porquanto em nada interferem na demanda coletiva216.
Serão sobrestadas as ações, note-se, se a ação de usucapião preceder-
lhes; se lhes for posterior não haverá obrigatoriedade, devendo o magistrado avaliar
o risco de decisões conflitantes. Já se decidiu que mesmo duvidosa a caracterização
de conexão o julgamento conjunto é apropriado, para evitar incongruências:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. DECLÍNIO DA COMPETÊNCIA FUNDAMENTADO NA OCORRÊNCIA DE CONEXÃO COM AÇÃO DE USUCAPIÃO. MANUTENÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ART.103 E DO ART.105, AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SÚMULA N.º 206 DESTE TRIBUNAL. 1. As normas de ordem pública e o interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental previstas no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) contemplam diversos instrumentos de política urbana, dentre os quais a
212 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 1.163. 213 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao estatuto da cidade, p. 132. 214 “A realização de um ato registral (matrícula, registro e/ou averbação) gera publicidade e, consequentemente, a ideia do conhecimento por todos. Também, garante a oponibilidade erga omnes aos direitos originados através do ingresso de um título no Fólio Real” (ERPEN, Décio Antônio; PAIVA, João Pedro Lamana. Princípios do registro imobiliário formal. In: DIP, Ricardo (coord.). Introdução ao direito notarial e registral. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p. 174). 215 Moraes Salles considera que “melhor teria sido se o art. 11 do Estatuto da Cidade houvesse determinado, ao invés do sobrestamento das ações petitórias e possessórias na pendência de ação de usucapião especial urbana, a reunião e processamento conjunto dos processos em apreço, evitando-se, assim, decisões contraditórias” (SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de Bens Imóveis e Móveis, pp. 330/331). 216 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao estatuto da cidade, p. 137.
85
legitimação da posse e a usucapião (art.4.º, V, “u” e art. 10). 2. O conceito de conexão inserto no art. 103 do Código de Processo Civil é mínimo, apenas revelando uma hipótese em que é reconhecida, dentre os quais podemos destacar o critério lógico, consistente na verificação da possibilidade de decisões conflitantes nos diferentes processos, circunstância que autoriza a reunião dos processos por conexão, ressaltando-se que tanto o juízo primevo quanto a 6.ª Vara Cível são Varas Regionais localizadas na Barra da Tijuca. 3. A demanda reivindicatória deve ser julgada no juízo competente para julgar usucapião coletiva, de modo a evitar decisões conflitantes, conforme previsto no art.105, do Código de Processo Civil. MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. RECURSO NÃO PROVIDO217.
3.2.9 Frações ideais
Convém reiterar que as frações ideais a serem atribuídas a cada
possuidor devem ser iguais, salvo acordo entre os moradores. Essa convenção não
pode ser verbal; obrigatoriamente há de ser escrita, obedecendo ao requisito formal.
É relevante a atuação do Ministério Público, como fiscal da lei, a fim de garantir a
regularidade do ajuste diferenciador.
3.2.10 Não propriedade de outro imóvel: ônus da prova
Outro ponto a ser considerado diz com o ônus da prova do requisito de o
usucapiente não ser proprietário de outro imóvel. A vedação não incide sobre quem
já foi proprietário. Limita-se ao período prescricional aquisitivo. Também não
configura fato impeditivo a titularidade de direito real diverso da propriedade, como o
usufruto. O art. 9º, caput, do Estatuto alude à propriedade de outro imóvel urbano ou
rural; a interpretação deve ser restritiva.
Salles reputa infactível exigir do usucapiente que anexe certidões dos
cartórios de registro imobiliário em um país de dimensões continentais. Competirá ao
réu a demonstração do contrário, como fato impeditivo do direito invocado pelo autor
(art. 333, II, CPC)218.
217 TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0008079-41.2015.8.19.0000, da Comarca do Rio de Janeiro, Relator Designado: Carlos Azeredo de Araújo, j. 30/06/15. 218 SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de Bens Imóveis e Móveis, p. 306.
86
3.2.11 Justiça gratuita e assistência judiciária
O art. 12, §2º, do Estatuto assegura aos autores os benefícios da
gratuidade da justiça e da assistência judiciária gratuita. É óbvia a relação do
preceito com a Lei nº 1.060/50219 e com o art. 5º, LXXIV, da CRFB. Entende-se que
a isenção de pagamento das custas processuais, ou mais propriamente sua
suspensão (art.12, Lei nº 1.060/50), depende de simples declaração. A presuntiva
carência é reforçada no mais das vezes pelo próprio contexto fático de moradia em
loteamento irregular. A gratuidade abrange os atos de registro do título no Cartório
de Registro Imobiliário, porém não aqueles posteriores a eventual extinção do
condomínio, obviamente. A propósito, acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do
Espírito Santo acertadamente reformou decisão indeferitória da gratuidade relativa à
serventia extrajudicial:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. BENEFÍCIOS DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. EXTENSÃO DA GRATUIDADE PERANTE O CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. RECURSO PROVIDO. 1. O artigo 12, da Lei nº 10.257⁄2001 (Estatuto da Cidade) ampliou o espectro protetivo da assistência judiciária gratuita no âmbito das ações de usucapião especial urbana, de forma a abranger, também, as serventias do registro imobiliário. 2. Deve ser reformada a decisão que indeferiu o pedido feito pelos agravantes no sentido de que seja oficiado ao Cartório de Registro de Imóveis da Comarca, a fim de que forneça certidão negativa com gratuidade. 3. Recurso a que se dá provimento220.
A benesse é aplicável do mesmo modo quando reconhecida a usucapião
arguida em matéria de defesa, por critério de razoabilidade. A população de baixa
renda não deixa de ter essa condição, quer tenha ajuizado ação de usucapião, quer
utilizado a exceptio domini.
3.2.12 O valor da causa
Como em todas as ações, também na de usucapião especial coletiva
deve ser atribuído valor à causa, requisito da inicial (art. 282, V, CPC),
correspondente ao valor venal do imóvel, por analogia com o art. 259, VII, do 219 BRASIL. Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L1060.htm. Acesso em: 20 set. 2015. 220 TJES, Agravo de Instrumento nº 11039001653, da Comarca de Cachoeira de Itapemirim, Relator: Arnaldo Santos Souza, j. 20/10/2004.
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CPC221. Se não houver valor considerado pelo poder público para fim tributário, os
usucapientes deverão indicá-lo com base em estimativa de mercado.
De tudo o que foi dito, não esqueçamos, entretanto, que as regras do
direito posto não se exaurem em si mesmas; dependem da atividade do intérprete, a
perseguir a sintonia fina entre subsunção e ponderação. Ela será decisiva para
alicerçar um espaço comunitário matizado pela solidariedade, não pela competição:
um novo modus convivendi que rompa com a cultura de proliferação de guetos
voluntários, pensados como espaços de conforto e isolamento de influências ditas
perigosas de categorias sociais vistas como subclasses descartáveis; enfim, que
derrube as muralhas da estratégica e desintegradora arquitetura do medo222.
221 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, p. 1.154. 222 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pp. 21 e 46.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em considerações finais, se o leitor colocar-se em um plano superior para
divisar a conformação capitular da modesta pesquisa empreendida poderá inferir
que a dignidade mereceu destaque no primeiro capítulo como valor inato ao ser
humano. A essa concepção ontológica repugna o pensar existencial da dignidade
como algo a ser conquistado e seu latente segregacionismo. É recorrente no texto –
e não por acaso – a simbologia de um valor-amálgama de outros princípios
fundamentais, como liberdade, igualdade e solidariedade.
Apregoa-se a exponencialização da efetividade de direitos fundamentais a
partir de uma teoria material da Constituição, com aceso traço axiológico, a reclamar
postura ativa do Estado, para além do positivismo lógico-formal, a depender também
de uma interpretação pluralista compatível com uma sociedade não-hermética. No
novo caldo de cultura jurídico-exegética o Brasil insere-se em um cenário
transnacional de concretização de direitos, indissociável de tutelas positivas.
No segundo capítulo, preconiza-se que o direito à moradia, como direito
fundamental social insculpido na Carta Política e coesamente atado ao princípio da
dignidade da pessoa humana, é um dos que demandam a elaboração de políticas
públicas concretizadoras. Se não se situa na primeira geração de direitos nascida
das revoluções burguesas do século XVIII, com ênfase à bandeira da liberdade,
vivifica-se como direito de segunda geração, fruto de um processo histórico
resultante das sublevações operárias e camponesas do século XX, sob o símbolo da
igualdade, além das fronteiras do indivíduo em sua carapaça egoísta.
O reclamo de ações estatais é nota distintiva importante entre as duas
gerações. O discurso do absenteísmo não serve mais em um Estado Social
Democrático de Direito como justificativa aceitável para a sonegação de prestações,
com o cinismo de uma previsão pro forma.
A relação estreita entre institutos como moradia e usucapião justifica o
breve resgate histórico da propriedade, então classificada como direito absoluto,
89
mesmo para fazer ver o quanto há de atavismo na resistência à sua submissão a
uma função social.
É na contextura de um novo direito urbanístico, de jaez popular e
gregário223, tendente a romper o componente marginalizador na legislação vigente,
que a Lei nº 10.257/2001 – composta por normas de ordem pública e interesse
social224 – emerge como provedora de instrumentos para reconfiguração do espaço
urbano.
O palco comunitário a ser construído, frisou-se à exaustão, demanda o
efetivo emprego das ferramentas ofertadas e investimentos infraestruturais pelo
poder público, a assumir sua parcela de responsabilidade no edificar de cidades
inclusivas.
O investimento em estruturas de amparo, com políticas bem coordenadas
e capazes de estimular o que há de melhor na humanidade, não necessariamente
desvirtua-se em emulação ao ócio, ao parasitismo ou ao proselitismo. Antes pode
amainar o ciclo de intolerância que se desenha aos olhos abrumados do mundo.
Não é trabalho vão disseminar o valor solidariedade, mesmo nos solos mais áridos.
Perseguir uma sustentabilidade tão distante quanto inabdicável é exceder o restrito
discurso ecológico para amplificar todas as vozes emudecidas em meio à algaravia
citadina. É aceitar a múltipla acepção do sustentável e incorporar todas as suas
dimensões, com a inauguração de uma ética transformadora para conter o impulso
autofágico da sociedade de consumo.
No terceiro capítulo enfrenta-se, finalmente, a disciplina legal da
usucapião especial coletiva do Estatuto da Cidade, seus fundamentos, o que há de
ineditismo nela, as derivações estruturais, os requisitos de tempo, metragem, perfil
da população beneficiada, o estabelecimento de um condomínio especial, a
223 Art. 2º - “A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”. 224 Art. 1º, parágrafo único - “Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.
90
legitimidade ativa, a acessão e a sucessão na posse, a natureza da sentença, a
aptidão para proporcionar segurança jurídica aos moradores e regularizar
assentamentos informais.
A investigação dos aspectos materiais e processuais da usucapião
especial coletiva expressa crença em sua potencialidade humanizadora e promotora
de inclusão social – sem ingênua desconsideração da iniquidade inerente ao
sistema hegemônico –, com necessária participação do cidadão na busca de
existência digna para si e para o outro, erigindo espaços urbanos ordenados e
socialmente equilibrados.
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