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alice gomes a umas que sou nas almas que fui helena frenzel ed - projeto quintextos - poemas -

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Page 1: a umas que sou nas almas que fui - rl.art.br · há uma em mim que se acomoda, ... que me levou o chão da minha. A velha angústia de sempre ... trago dentro do meu peito

alice gomes

a umas que sou nas almas que fui

helena frenzel ed - projeto quintextos

- poemas -

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1

almashá uma parte de mim que agradece à que desarruma

(uma parte de mim que obedece) à que se acostuma

a uma parte de mim.

há uma parte de mim que se habitua à que adormece

(uma parte de mim que tumultua) a que enlouquece

uma parte de mim.

há uma em mim que se acomoda, se empanturra,

se acautela, se engordura.

há uma em mim que se sujeita.

há uma em mim que se enoja, se esmurra,

se rebela, se procura.

há uma em mim que se respeita.

há uma em mim que boceja, atrofia,

desconversa, renuncia.

há uma em mim que não rejeita.

há uma em mim que lateja, repudia,

desgoverna, desafia.

há uma em mim que não aceita.

há uma parte de mim que não se importa,

uma parte de mim que grita e morde,

uma parte de mim que não suporta

uma parte de mim que vira e dorme.

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2

da bolha ao calo

estou cansada de fingir que acredito

em quem mente pra mim,

de dizer que está bem

o que pra mim está ruim,

de ser polida com quem diz que me ama,

mas nem me sorri,

de ser complacente,

de relevar os presentes que não recebi,

de sentir culpa por coisas que disse

ou deixei de dizer,

de odiar o que faço e sufocar meu prazer,

de suportar os pequenos entraves,

cotidianamente,

de permitir que o passado

me embace o presente,

de olhar no espelho

e não ver novidade,

de estancar os meus sonhos,

engolir as vontades,

de insistir no afeto

de quem não me merece,

de contar os dias que faltam

pro que não acontece,

de trocar o amor-próprio

pela submissão

de esperar por milagres

que nunca virão.

o meu medo maior

é que a bolha vire calo

e o que hoje machuca

um dia endureça.

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amor bandidoque mata e ressuscita

o que de pior habita

dentro de nós.

amor de desejos

lampejos ardentes

que trinca os dentes

mas não grita

a dor de amar sem amor.

amor sem respeito

que finca os cravos no peito

que fica, fingindo que vai

que não sai da cabeça

amor que enlouquece

que jura que muda

mas sempre amanhece

grudado, enroscado

nos restos de nós.

amor de devaneios

que busca no espelho

o instante partido

amor de olhares furtivos

por cima dos livros

que não foram escritos

amor proscrito

repatriado em perdões.

amor dos senões

amor das desculpas

amor que se culpa

do tempo perdido

amor indeciso

que junta e separa

amor das amarras

amor das chibatas

que fere, machuca.

amor que não quero

mas não sei arrancar.

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hoje nãojuro por Deus que eu te queria

fazer um poema de amor

mas, à minha revelia,

o coração, miúdo e mudo,

decidiu que hoje não...

amanheceu carrancudo

não quer riso, não quer sonho,

não quer volta nem milagre

só quer saudade sofrida

do que foi realidade.

perda por demais doída

faz dessas coisas com a gente

põe medo, tira a esperança

tranca portas, pede um tempo

vela em silêncio o fim de “um dia”

juro por Deus que eu te queria

aqui comigo pra sempre

dizer o que nunca te disse

(e hoje até que eu diria)mas meu coração, de repente,

resolveu que hoje não.

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o aconchego do voltarandei tão afastada de mim que por pouco não me perco.

tão outros fui por um tempo que quase me esqueço.

mas voltei.

e como é bom quando me volto para quem me espera

e me revejo.

e reaprendo coisas que desaprendo, às vezes.

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vã poesia

há dias na vida do poeta, em que a própria Poesia lhe cansa.

e não lhe há pior companhia que o mero jogo surdo de palavras vazias.

porque, antes do poeta, há o homem.

há dias reais, de carne e osso, e terra e náusea.

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o voltar

Saí da minha casa e fui morar na sua

e ela era tão fresca, e era tão bela!

que pena haver nela tantas portas

e nenhuma, nenhuma janela!

Nenhuma, nenhuma janela

que desse para o que sou

tantas portas, tantas portas abertas

nenhuma em mim se fechou.

Fui lá fora ver se via

o tempo de estar sozinha

do antes de haver outra casa

que me levou o chão da minha.

A velha angústia de sempre

me abraçou, enternecida

que saudade da minha janela

onde lamento, livre, a vida!

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só as fêmeas abortamsem pecado, sem empecilho,

nas surdinas nauseantes

quando a mãe mata seu filho

o pai já o matou antes:

- vai cadela! cria as crias

que o teu cão tem que partir

meu destino é a orgia

tua sina é o parir.

- fecha as pernas, vagabunda.

não mereces o prazer

és feita da coisa imunda

se não for pra conceber.

- feminina é a sociedade

cuide então dos meus meninos.

viva a santa impunidade

dos pecados masculinos.

- vai, sua tonta, paga o preço.

cuida da tua moral

já estou correndo o trecho

“lavou, tá novo” e coisa e tal.

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gota a gota

I

coração insubmisso

que tudo vê e nada

aprende

e mesmo assim ainda

acredita.

II

do que mais me mete

medo

o que me matará

é o fim do olhar curioso

pra aquilo que estiver

lá.

III

num oceano de falsas

palavras,

a verdade sempre está

lá,

numa gota.

IV

aos sábios, ditos

menores

aos menores,

intolerância

ah! inadequação

cotidiana!

quem dera escolher um

canto!

V

abrir picadas na noite

desbravar o amanhecer.

nos pés o sangue,

na boca a sede

no olhar a luz

renascer.

VI

assisti ao cortejo da

vida

com olhos de

forasteiro.

tudo deixo do que vi.

descrendo, querendo

crer

em qualquer coisa

que valesse a pena.

ao fim, só o fim

me iguala ao mundo.

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como as coisas funcionam

há, na justiça do mundo

dois pesos e três medidas:

a do alto, a do meio,

e a do fundo, a mais fedida.

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relíquiatrago dentro do meu peito

um amor já amarrotado

tantas vezes desdobrado

na intenção de ser feliz.

é que o destino não quis

que este amor tivesse jeito.

então, até por respeito,

por medo que se destrua

e nem mais isso eu possua,

hoje o conservo guardado.

melhor mantê-lo intocado

a arriscar vê-lo desfeito.

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amargura

o travo no canto da boca

num gozo indeciso.

gota de fel no trajeto

entre o gosto e o gesto

no alinhavo do riso.

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a passageira

- a vida? sim, conheci-a.

vi-a, certa vez, pela fresta.

fechei a porta, depressa,

pensei que desse coceira.

passado o susto, acenei-lhe,

já ia longe, ligeira.

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poeminha monossilábicona vez em que na tua tez

pus a mão

sem crer vi o céu

qual luz no breu

vi a paz.

e o que fui:

os véus, o fel,

os ais, os nãos,

os nós, o pó,

já não sou.

e o teu sim

que faz de mim o que quer

pôs fim à dor

me deu chão, me fez rei

me fez teu.

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alegrias e tristezas

sou alegre e sou triste

porque alegrias e tristezas acontecem

e sou capaz de senti-las.

por elas sou quem sou.

ainda não vivi tudo, apesar de umas.

ainda não morri toda, apesar de outras.

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© Alice Gomes, 2014.

a umas que sou nas almas que fui, Poemas, Edição Especial: Alice Gomes - Porto Velho, Rondônia, Brasil. 1a. Edição, Helena Frenzel Ed., Julho de 2014. (www.recantodasletras.com.br/autores/alicegomes)

Este volume é parte integrante do projeto Quintextos e não pode ser comercializado.

Copyright © 2014. Alice Gomes declara-se autora original dos textos reproduzidos neste volume e, assim sendo, detém sobre o(s) mesmo(s) todos os direitos autorais e assume total responsabilidade por tal declaração. Os textos aqui usados foram reproduzidos com sua gentil permissão.

A editora opta por não seguir, em textos de sua autoria, as novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Por este motivo, respeitou as escolhas ortográficas da autora e manteve o texto de acordo com o original. Os textos aqui reproduzidos não se referem a pessoas e/ou fatos concretos do mundo real e não representam, necessariamente, a opinião da editora.

Edição e imagens: Helena Frenzel.

Copyright © 2014 Todos os direitos sobre esta edição eletrônica estão reservados à editora: Helena Frenzel, St. Ingbert, Alemanha ([email protected])

Esta edição pode ser livremente distribuída sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR), desde que na íntegra e com os devidos créditos de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no todo ou em parte para gerar obras derivadas.

Obra disponível para baixar em: quintextos.blogspot.comxvi

créditos