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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FORMAÇÃO DE TRADUTORES
A tradução de referências culturais na dublagem
de “Everybody Hates Chris”
Gregório Magno Viana Oliveira
Maio/2011
GREGÓRIO MAGNO VIANA OLIVEIRA
A TRADUÇÃO DE REFERÊNCIAS CULTURAIS
EM EVERYBODY HATES CHRIS
Monografia apresentada como requisito
para a conclusão do Curso de
Especialização em Formação de
Tradutores da Universidade Estadual do
Ceará – UECE
Orientadora:
Profª. Drª. Vera Lúcia Santiago Araújo
FORTALEZA
2011
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central do Centro de Humanidades
O48t Oliveira, Gregório Magno Viana
A Tradução de referências culturais na dublagem de Everybody Hates Chris/Gregório Magno Viana Oliveira. – Fortaleza, 2010.
49 f. : enc. ; 30 cm.
Monografia (Especialização) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Curso de Especialização em Formação de Tradutores, Fortaleza, 2010.
Orientação: Prof. Pós-Dra. Vera Lúcia Santiago Araújo.
1.Tradução 2.Dublagem 3.Referências Culturais 4.Estrangeirização 5. Domesticação. I.Título.
CDD:418.02
Gregório Magno Viana Oliveira
A TRADUÇÃO DE REFERÊNCIAS CULTURAIS
EM EVERYBODY HATES CHRIS
Trabalho de Término de Curso
submetido à Coordenação do Curso de
Pós-Graduação em Formação de
Tradutores como requisito básico para a
obtenção do grau de Especialista em
Formação de Tradutores da
Universidade Estadual do Ceará.
Orientação:
Profª. Drª. Vera Lúcia Santiago Araújo
Aprovada em 30/05/2011
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Profa. Dra. Vera Lúcia Santiago Araújo (orientadora)
Universidade Estadual do Ceará
_______________________________________________
Profa. Ms. Maria da Salete Nunes
Universidade Estadual do Ceará
_______________________________________________
Profª. Ms. Sílvia Malena Modesto Monteiro
Universidade Federal do Ceará
Maio
2011
“Há apenas dois [métodos de tradução]. Ou o tradutor deixa o
autor em paz, tanto quanto possível, e move o leitor na direção dele;
ou deixa o leitor em paz, tanto quanto possível, e move o autor na
direção dele.”
Friedrich Schleiermacher
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar a tradução de referências culturais na
dublagem da série de TV americana Everybody Hates Chris, de Chris Rock e Ali
LeRoi. A série mostra um típico jovem negro americano crescendo na parte pobre da
cidade de Nova York nos anos 1980. Consequentemente, há muitas referências à cultura
daquela época de daquele local, o que representa um desafio para a dublagem, que não
dispõe de recursos que as modalidades escritas de tradução geralmente dispõem.
Primeiramente, descrevemos o procedimento de dublagem de filmes. Em seguida,
discutimos como a questão cultural é abordada dentro da tradução. A análise da
dublagem se baseou nas teorias de tradução propostas por John Catford, Eugene Nida e,
principalmente, Lawrence Venutti. Dessa forma, as ocorrências de tradução de
referências culturais foram classificadas em cinco categorias diferentes, todas variando
desde a estrangeirização até a domesticação.
PALAVRAS-CHAVE: tradução, dublagem, referências culturais, estrangeirização,
domesticação.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the translation of cultural references in the dubbing of the
American TV series Everybody Hates Chris, by Chris Rock and Ali LeRoi. The series
shows a typical young black American growing up in a poor New York City
neighborhood in the 1980s. Consequently, there are many references to the culture of
that time and place, which represents a challenge to dubbing professionals, which do not
have the same resources used in written translation. First, we describe the film dubbing
procedure. Then, we discuss how the cultural question is approached within translation
theories. The analysis of dubbing was based on the translation theories put forward by
John Catford, Eugene Nida and especially Lawrence Venutti. Thus, the occurrences of
cultural reference translation were classified into five different categories, all ranging
from foreignization to domestication.
Keywords: translation, dubbing, cultural references, foreignization, domestication.
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................................... 7
Capítulo 1: Fundamentação teórica ........................................................................................... 12
1.1 A dublagem ..................................................................................................................... 12
1.2 Os procedimentos tradutórios da dublagem ................................................................. 13
1.2.1 Preparação do roteiro ................................................................................................ 14
1.2.2 Escalação do diretor de dublagem e dos atores ........................................................ 15
1.2.3 A escolha dos dubladores ........................................................................................... 16
1.2.4 Gravação em estúdio .................................................................................................. 17
1.2.5 Mixagem ..................................................................................................................... 17
1.3 A questão cultural dentro da teoria da tradução .......................................................... 18
Capítulo 2: Metodologia ............................................................................................................. 23
2.1. Constituição do corpus ................................................................................................... 23
2.2. Análise da dublagem ...................................................................................................... 24
Capítulo 3: A tradução de referências culturais em “Everybody Hates Chris” ......................... 25
3.1. Tipo A (expressões mantidas como no original) ........................................................... 25
3.2. Tipo B (expressões substituídas por outras em língua inglesa) .................................... 28
3.3. Tipo C (uso de hiperônimos) .......................................................................................... 31
3.4. Tipo D (domesticação) .................................................................................................... 39
3.5. Tipo E (expressões não relacionadas) ............................................................................ 40
3. Considerações Finais .......................................................................................................... 47
4. Referências ......................................................................................................................... 49
7
Introdução
É grande o número de séries de TV americanas exibidas no Brasil. Uma
rápida pesquisa na programação das três principais redes de TV aberta do país
permite-nos constatar que, atualmente, nada menos que 42 séries estão em
exibição1. A razão para tal número é a audiência que as séries conquistam. O
sucesso delas, especialmente com o público jovem, é inegável. Legiões de fãs
seguem quase que religiosamente os episódios, assistindo-os avidamente e
aguardando com ansiedade o início de cada nova temporada. Fóruns online e
websites são criados para dar vazão à curiosidade e para manter os fãs atualizados
quanto às últimas notícias dos seus seriados favoritos. E ainda há a revolta e
indignação geral quando uma série é cancelada, tem sua transmissão interrompida
no Brasil ou quando algo (horário/frequência, dublagem, etc.) não agrada aos fãs.
A enorme popularidade dessas produções audiovisuais contribui de
maneira significativa para a assimilação de aspectos próprios da cultura dos Estados
Unidos. Mesmo que de maneira inconsciente, grande parte dos fãs acaba se
familiarizando com aspectos da cultura americana de tal forma que passam a
compreender e até a usar gírias, expressões, piadas e gestos dessa cultura. A
tradução serve, assim, de canal para essa transmissão cultural. Como afirmam
Martins & Salgueiro, “a prática tradutória colabora como importante ferramenta de
impulso para que as culturas não se limitem às suas fronteiras geográficas.” (p.2)
O impacto causado pela tradução, na verdade, vai além da simples
assimilação de elementos culturais do país de origem. Ele acaba influenciado a
maneira como um país é visto por outro, criando, para a cultura-alvo, uma imagem
da cultura-fonte. Nas palavras de Venuti (1995), “a tradução tem um enorme poder
na construção de identidades nacionais para culturas estrangeiras”2. (p.19)
Os filmes dublados, mais especificamente, acabam sendo um veículo
ainda mais eficiente nessa transmissão, como afirma Whitman-Linsen (1992): “no
que diz respeito ao impacto, não há dúvida de que a exposição do público a filmes
dublados é muito superior à de traduções escritas3.” (p. 10)
1 Das quais 34 são exibidas pelo SBT, 6 pela Record e 2 pela Globo.
2 Translation wields enormous power in constructing representations of foreign cultures.(Todas
as traduções não referenciadas neste trabalho são de minha autoria.) 3 As far as impact is concerned, there is no question that the exposure of dubbed films to the
public far outstrips that of translated written material.
8
A indústria da dublagem [...] é imensamente responsável pela maneira como
um país é visto por outro. [...] O que geralmente se ignora é que é a indústria
de dublagem que lida com esses filmes que, em última instância, faz a
filtragem cultural. A dublagem tem o poder de representar e deturpar,
distorcer, persuadir, e, em geral, dar uma tremenda contribuição (positiva ou
negativa) à imagem dos Estados Unidos no exterior.4 (WHITMAN-LINSEN,
1992, p. 11)
Apesar desse enorme impacto, poucos estudos abordam a importância
da dublagem nos intercâmbios culturais. Ainda segundo Whitman-Linsen (1992),
“não se menciona a dublagem em seu papel como mediadora de trocas
interculturais, em suas funções educativas, sua importância na promoção da
comunicação artística e sua contribuição à arte cinematográfica.5” (p. 10) Esse
papel, ao mesmo tempo em que é uma das contribuições culturais da dublagem,
constitui um dos seus principais desafios: como transmitir uma mensagem entre
culturas, em geral, bastante diferentes -- “transferir essa intenção artística de forma
que ela possa ser adaptada a um novo ambiente é um dos obstáculos à frente de
todos aqueles envolvidos no processo de dublagem.”6 (WHITMAN-LINSEN, 1992,
p. 15)
O que despertou o interesse para esta pesquisa foi a indagação sobre de
que forma esses aspectos culturais, muitas vezes tão específicos da cultura-fonte,
são traduzidos para o público da cultura-alvo. De acordo com Whitman-Linsen
(1992), “o filme tem uma expressão estética enraizada em um ambiente
culturalmente limitado, parte da função conotativa do filme”. Em outras palavras, o
ambiente cultural contribui para a construção do significado do filme como um
todo. Tal ambiente pode ser percebido não apenas pelas imagens, mas também
pelas falas dos personagens, que transmitem aspectos que muitas vezes são cruciais
para se entender as estórias e o contexto em que elas ocorrem. Muitas vezes,
contudo, tais aspectos são tão específicos da cultura-fonte que apenas alguém que
tenha razoável familiaridade com ela consegue perceber o significado de algumas
cenas em particular.
4 The dubbing industry […] is greatly responsible for the way one country is viewed by another.
[…] What is often overlooked is that it is the dubbing industry handling these films which ultimately does the cultural filtering. Dubbing has the power to represent and misrepresent, distort, sway, and in general make tremendous contribution (positive or negative) to America’s image abroad. 5 “Yet no mention is made of dubbing in its role as a mediator of intercultural exchanges, in its
educational functions, its importance in promoting artistic communication, and its contribution to cinematic art.” 6 Transferring this artistic intent so that it can be adapted to the new environment is one of the
highest hurdles facing all those involved in the dubbing process.
9
Isso traz a tradução para o primeiro plano, pois é através dela que a
maioria dos fãs pode ter acesso ao conteúdo dessas obras. Contudo, sabemos que a
tradução audiovisual, especialmente a dublagem, apresenta uma série de restrições,
como a necessidade de sincronismo com os movimentos labiais dos personagens na
tela e a impossibilidade de recorrer a explicações adicionais (como as notas de
rodapé nos livros). Consequentemente, é relevante analisar como essas traduções
são feitas, que procedimentos são adotados e, em especial como as dificuldades são
superadas.
Whitman-Linsen (1992) aborda o problema da transmissão de
referências específicas de uma cultura para outra, através da dublagem. Segundo a
autora, os tradutores geralmente adotam soluções variadas. Em geral, mantêm-se as
referências à cultura-fonte quando estas contribuem para a compreensão do meio
sócio-cultural (“milieu”) local. A disseminação do cinema americano pelo mundo
afora é tão abrangente que algumas expressões podem ser mantidas como no texto
de partida (Whitman fala de high school proms e drive-ins) sem nenhum prejuízo
para o conteúdo. A autora ainda argumenta que só há mudança no sentido estrito;
caso a noção de conteúdo também englobe as funções pragmáticas e contextuais
das falas, então o sentido é mantido (p.128-129).
Quando não há um correspondente na língua-alvo e o tradutor não quer
colocar a referência, por achar que não fará sentido para o público-alvo, geralmente
uma explicação explicitando o significado da expressão é colocada no texto.
Whitman (ibid.) é taxativa ao condenar essa como a pior solução possível,
principalmente quando a referência é usada para um efeito humorístico: “de todos
os crimes cometidos contra os espectadores de filmes dublados, esse é um dos mais
assombrosos.”7 (p. 131).
Quanto a referências mais explicitamente ligadas à cultura, Whitman
defende que, caso o público-alvo não tenha familiaridade com o referente, não faz
qualquer sentido deixá-las na versão dublada. Whitman afirma que o ideal seria
encontrar algum tipo de expressão semelhante na língua de chegada, algo que
suscite uma resposta parecida. Mesmo assim, ainda alerta certo risco:
O perigo em todas essas adaptações é que, justamente porque elas são re-
esculpidas para caberem na fôrma de um ambiente cultural estrangeiro, outro,
7 Of all the crimes perpetrated against viewers of dubbed films, this is one of the most
monstrous.
10
e substituir referências originais por outras conhecidas do novo público, as
associações podem ficar distorcidas e o teor do filme comprometido. (p.136)
No caso da dublagem de séries americanas para o Brasil, pode-se notar,
de maneira geral, que algumas das abordagens mencionadas são adotadas. Às
vezes, o tradutor usa uma expressão da língua de partida no texto traduzido,
deixando para o espectador a tarefa de decifrá-lo. Outras vezes, certas expressões
são substituídas por outras relacionadas à cultura brasileira. Há, ainda, ocasiões em
que o tradutor parece temer que o público, por desconhecer tais expressões, deixe
de captar a mensagem a ser transmitida e acabe ficando frustrado. Nesses casos, a
dublagem “apaga” tais aspectos. Essa estratégia acaba criando textos que
subestimam a capacidade de compreensão do telespectador, além de diminuírem a
representação da cultura-fonte através da língua-alvo.
A opção de se traduzir ou não tais traços, tão característicos de uma
cultura, quando se tenta transmitir a mensagem para um público de uma cultura
diferente pode determinar o modo como o país da cultura-fonte é visto pelo público
da cultura-alvo. Segundo Venuti (1995),
O objetivo da tradução é recuperar o outro cultural como o mesmo, o
reconhecível, até mesmo familiar, e esse objetivo sempre corre o risco de
uma domesticação integral do texto estrangeiro, geralmente em projetos
altamente inseguros, nos quais a tradução está a serviço de uma apropriação
de culturas estrangeiras para pautas culturais, econômicas, políticas
nacionais.8 (p. 18-19)
A omissão de certos traços culturais pode contribuir para a quebra de
paradigmas já estabelecidos e tidos como verdadeiros pelo público de outra cultura.
Assim, a tradução pode reforçar a visão estereotipada de uma cultura, ou, pelo
contrário, ajudar a estabelecer outra visão, mais justa e próxima da realidade.
Nosso questionamento busca, justamente, mostrar que atitude o tradutor
geralmente toma quando se depara com tais situações. Neste trabalho, analisaremos
a tradução de referências à cultura americana na dublagem brasileira da série de TV
norte-americana “Everybody Hates Chris”. Por meio da comparação da dublagem
com as falas originais em inglês, podemos notar que, muitas vezes, essas
referências só fazem sentido para o público americano e, portanto, perdem
significado quando traduzidas literalmente para o português. Nosso objetivo é
8 The aim of translation is to bring back a cultural other as the same, the recognizable, even the familiar; and this aim always risks a wholesale domestication of the foreign text, often in highly self-conscious projects, where translation serves an appropriation of foreign cultures for domestic agenda, cultural, economic, political.
11
verificar que soluções são adotadas com mais frequência pelo tradutor e se essas
soluções tendem a transmitir ou a omitir as referências à cultura americana.
Neste trabalho, pretendemos, portanto, verificar quais dessas
abordagens são adotadas com mais frequência na dublagem da série supracitada,
bem como, a partir dessa análise, identificar tendências da dublagem de referências
culturais em geral.
Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro,
conceituaremos o processo de dublagem, faremos um breve histórico do seu uso e
abordaremos seus objetivos, bem como analisaremos como a questão da
transferência cultural é abordada dentro das principais teorias de tradução. No
segundo capítulo, trataremos da metodologia da nossa pesquisa e dos
procedimentos técnicos do processo de dublagem. No último capítulo, tentaremos
demonstrar, através de exemplos, quais atitudes tradutórias são mais adotadas e de
que forma elas contribuem para a estrangeirização ou domesticação do texto de
partida.
12
Capítulo 1: Fundamentação teórica
1.1 A dublagem
A dublagem é o processo através do qual a voz de um ator/atriz,
gravada com sua imagem em um filme, é substituída pela voz gravada de outro(a),
o(a) dublador(a), em outra língua. Whitman-Linsen (1992) a descreve como “o
processo cinematográfico pelo qual uma voz é ‘colada’, depois do fato, a um ator
falante visível na tela”9 (p.12). Para Chaume (2004), “a dublagem consiste na
tradução e ajuste de um roteiro de um texto audiovisual e a posterior interpretação
desta tradução por parte dos atores, sob a direção do diretor de dublagem e os
conselhos do assessor linguístico, quando este existe”10
(p. 32). Esse processo
envolve uma série de procedimentos técnicos. Neste trabalho, apesar de
descrevermos brevemente certos aspectos técnicos, discutiremos mais
enfaticamente os aspectos teóricos desse tipo de tradução.
O principal objetivo da dublagem é tornar uma obra audiovisual
estrangeira acessível a um público que não domina a língua na qual a obra foi
produzida. Sabe-se, no entanto, que o processo já foi usado diversas vezes e em
vários países com o intuito de distorcer a mensagem original contida na película.
Esse foi o caso da Alemanha, da Espanha e do Japão, na década de 1930, onde os
regimes ditatoriais criaram leis que limitavam ou impediam a transmissão de filmes
estrangeiros (principalmente americanos), eliminando, na dublagem, tudo aquilo
considerado ofensivo para o regime. Diferentemente da legendagem, a dublagem
permite que conteúdos sejam adicionados ou omitidos sem que o espectador
perceba, pois trabalha com o apagamento da trilha sonora do texto de partida. O
suposto objetivo, nesses casos, era proteger a língua e o patrimônio cultural de cada
país. Contudo, a realidade revela o temor de que a difusão de produções
estrangeiras ameaçasse o totalitarismo desses regimes (CHAUME, 2004, p. 50).
Tais episódios mostram a influência da tradução audiovisual sobre as culturas dos
países onde ela é veiculada.
9 It is the process of cinematography by which a recorded voice is “glued”, after the fact, to a visible speaking screen actor.
10 El doblaje consiste en la traducción y ajuste de un guión de un texto audiovisual y la posterior interpretación de esta traducción por parte de los actores, bajo la dirección del director de doblaje y los consejos del asesor linguístico, cuando esta figura existe.
13
Nos primórdios do cinema, os grandes estúdios americanos abriram
filiais em vários países, onde atores locais eram contratados e as produções eram re-
filmadas, cena a cena. Essa prática, no entanto, mostrou-se demasiadamente
onerosa, e foi abandonada logo que a tecnologia possibilitou a substituição das
vozes originais da película por outras gravadas posteriormente. Como destaca
Whitman Linsen (1992), “a prática da dublagem que surgiu naquela época
sobreviveu até hoje, talvez com alguma mudança técnica, mas sem mudanças
conceituais significativas.”11
Atualmente, a dublagem é amplamente empregada em todo o mundo,
tendo, em muitos casos, preferência sobre a outra modalidade de tradução
audiovisual mais popular, a legendagem. Chaume (2004) destaca a popularidade da
dublagem de filmes estrangeiros em países como Espanha, França, Alemanha,
Áustria, Itália, Tailândia e Japão. As causas dessa preferência vão desde a presença
de uma língua dominante na cultura-alvo até o costume já estabelecido em cada
país. Cabe ressaltar, também, como fator importante na escolha da modalidade de
tradução audiovisual, o nível de letramento da população. Quanto mais baixo esse
nível, maior a resistência à legendagem.
No Brasil, podemos perceber que a dublagem é a modalidade de
tradução audiovisual por excelência na TV aberta. Raramente se vê alguma outra
modalidade sendo aplicada, exceto quando se trata de documentários ou entrevistas
concedidas em língua estrangeira, nos quais predominam o voice-over, a
interpretação simultânea ou consecutiva e a legendagem. Podemos afirmar,
portanto, que a dublagem goza de vasta aceitação e popularidade.
1.2 Os procedimentos tradutórios da dublagem
A dublagem é composta de vários procedimentos. Embora não haja
unanimidade, a maioria dos autores divide o processo em quatro ou cinco etapas.
Chaume (2004) faz um resumo dessas diferentes visões e apresenta as seguintes
etapas do processo de dublagem:
1. Compra do texto audiovisual estrangeiro;
2. Tradução (e eventuais adaptações) do texto original;
3. Adaptação da tradução inicial;
11
The practice of dubbing then emerged has survived until today, perhaps with technical, but no significant conceptual changes.
14
4. Dramatização;
5. Mixagem.
Chaume (2004) ainda afirma que, mesmo havendo discordâncias entre
os autores quanto ao número exato e à nomenclatura dessas etapas, “todos parecem
estar de acordo em, pelo menos, diferenciar a parte puramente técnica da parte
puramente tradutória e interpretativa.” (p. 63)
1.2.1 Preparação do roteiro
Na Europa, o roteiro de uma dublagem parte, inicialmente, da tradução
do roteiro original, que fica, geralmente, a cargo de um tradutor. Essa tradução
servirá de base para todo o restante do processo. Apesar dessa importância, esse
tradutor raramente tem acesso ao filme. Tudo o que ele tem em mãos é uma
transcrição dos diálogos, com apenas algumas indicações do que está acontecendo
na tela. Como se pode esperar uma tradução adequada se o tradutor não tem acesso
a informações vitais transmitidas através das imagens? Como o profissional vai
poder retratar, na tradução, informações extra-linguísticas, como tom de voz,
expressões faciais, movimentos corporais? E as informações linguísticas que
aparecem na tela na forma escrita, como cartazes, anúncios, manchetes de jornal?
(WHITMAN-LINSEN, 1992, p. 105-106). Muitas vezes, essas informações só
serão acrescidas à dublagem no momento em que os atores estiverem gravando suas
falas.
Além disso, essa tradução enfrenta outras dificuldades. Como foi
traduzido sem o recurso às imagens do filme, esse texto inicial não atende às
exigências fonéticas e linguísticas da dublagem. Chaume (2004) cita alguns
problemas que poderiam surgir caso a tradução inicial não passasse por uma
adaptação. Dentre eles, “problemas fonéticos que podem afetar a correta dicção dos
atores (cacofonias, palavras de pronúncia difícil, termos estrangeiros sem
transcrição fonética)”, bem como dificuldades causadas pelo “registro oral da
língua-alvo e as diversas sincronias exigidas pela dublagem.”
O ajuste desse texto geralmente é feito por um roteirista. De posse da
tradução inicial, esse profissional deve reescrever o texto de tal modo que haja
sincronia labial entre as falas originais e as traduzidas. Gilbert et al. (apud
CHAUME, 2004) dividem esse ajuste em duas fases: sincronização e adaptação. A
sincronização “consiste em fazer com que a duração e o movimento labial da frase
15
na língua de chegada [...] coincidam ao máximo com a duração e o movimento
labial da frase na língua de origem”, enquanto a adaptação “tem a ver com o estilo
do roteiro e com a oralidade dos diálogos”. O ajustador deve, assistindo ao filme,
verificar quais falas “encaixam” nos movimentos labiais dos atores, substituindo
aquelas que não atenderem a esse requisito. Também pode adaptar falas que não
soem naturais na língua de chegada.
Chaume (2004) diz que geralmente são feitos três tipos de ajuste:
a) O sincronismo labial, que é a combinação dos movimentos dos
lábios dos atores na tela com as vozes gravadas em estúdio. Alguns
teóricos chegam a defender a substituição de certos fonemas da
língua-fonte pelos mesmos fonemas na língua-alvo (vogais abertas;
consoantes bilabiais e labiodentais, por exemplo);
b) O sincronismo cinético, que consiste em ajustar a voz do dublador
com os movimentos corporais do personagem na tela. Chaume
(2004) exemplifica afirmando que um personagem que balança a
cabeça horizontalmente não pode emitir um “sim”, ou que outro que
leve as mãos à cabeça deve emitir uma exclamação apropriada
(p.73).
c) O isossincronismo, que se trata do ajuste da duração das vozes
gravadas às vozes originais. Tanto Chaume (2004) quanto Whitman-
Linsen (1992) afirmam ser esta a modalidade de sincronia a
responsável pela maior parte das críticas, pois nela qualquer erro —
como um personagem cuja fala continua a ser pronunciada mesmo
depois que ele fecha a boca, ou um que continua a mover os lábios,
mas cuja fala não se escuta mais — fica bastante evidente e causa
desconforto no público.
No Brasil, o processo é parecido, mas com uma diferença marcante. É o
tradutor o único responsável pela confecção do roteiro. Além de escrever todas as
falas, o tradutor brasileiro ainda faz o que se chama de espelho da dublagem. O
espelho serve como um guia para os atores e diretores de dublagem, pois para cada
lauda, ele indica quais os atores que gravarão naquele dia.
1.2.2 Escalação do diretor de dublagem e dos atores
Terminado o roteiro, então são escalados os atores e o diretor de
16
dublagem. Da mesma forma que um diretor cinematográfico, o diretor de dublagem
também deve conduzir a atuação dos dubladores, informando-os que tipo de
emoção deve ser expressa e aconselhando-os, quando necessário, quanto ao tom ou
ênfase de certas passagens. Porém, esse profissional também desempenha tarefas
específicas de sua função, como corrigir eventuais erros de pronúncia dos
dubladores, substituir, no roteiro, palavras de pronúncia difícil e escolher dublar
textos que aparecem escritos no original (cartazes, manchetes de jornal, etc.)
(Chaume, 2004, p. 75).
Além disso, cabe a esse profissional a tarefa de selecionar os
dubladores, de forma a tentar encontrar aqueles cujas vozes sejam parecidas com as
dos atores que vão dublar. Essa tarefa se mostra especialmente importante quando a
voz original é mantida em algumas partes do filme, como é o caso em musicais.
Tenta-se, portanto, evitar o estranhamento do público quanto à diferença entre as
vozes originais e a dublagem.
Muitas vezes, o diretor de dublagem não tem conhecimento da língua-
fonte. Apenas por meio do roteiro, ele pode conhecer o enredo do filme. Mesmo
assim, o diretor ainda tem vantagem sobre os dubladores, pois esses, muitas vezes,
nem mesmo a história conhecem. Gravam apenas suas falas, muitas vezes,
separadamente. É este o pensamento de Avila (apud Chaume, 2004) que afirma que
“a responsabilidade do todo o processo de dublagem recai sobre uma só pessoa, à
qual se denomina diretor”. (p.76)
1.2.3 A escolha dos dubladores
Os dubladores são profissionais cujas vozes gravadas substituirão as
vozes dos atores originais. Geralmente, são também atores. A legislação brasileira
exige o registro profissional de ator para dubladores.
Os critérios para escolha dos atores, nas palavras de Luyken (apud
CHAUME, 2004), são, muitas vezes, suas características vocais, como sotaque, tom
ou nasalidade, e sua nitidez na pronúncia, bem como sua capacidade de
interpretação. Também se valoriza muito a autodisciplina e a humildade, que
permitem repetir as sequências tantas vezes quantas necessárias, sem que, por causa
disso, o ator se incomode.12
12
Los criterios de selección de actores suelen ser sus características vocales, como el acento,
tono o nasalidad, y su nitidez en la pronunciación, así como la capacidad de interpretación.
17
Em países como o nosso, onde a dublagem é a principal modalidade de
tradução audiovisual na TV aberta, a identificação de atores estrangeiros com as
vozes de seus dubladores é tão significativa que a troca de dublador de um ator
conhecido pode causar rejeição do público ao filme (CHAUME, 2004, p. 78).
Para Kahane (apud Chaume, 2004), uma boa dublagem “faz
desaparecer todas as diferença entre personagem, protagonista e dublador. Perante o
público, quer-se confundir todas as fronteiras. A marca da boa dublagem é o
desaparecimento da fronteira. Aspira-se à verossimilhança, ao make believe total.”13
(p. 77)
1.2.4 Gravação em estúdio
Segundo Chaume (2004), os atores de dublagem são os encarregados de
dar vida à tradução, de encarnar os personagens. Além de terem a mesma
habilidade de interpretação de atores de teatro ou cinema, enfrentam um desafio a
mais: dar voz a outro ser, o ator que aparece na tela. Por isso, devem estar atentos
aos trejeitos, movimentos e até mesmo à respiração do personagem.
Outro desafio enfrentado pelos dubladores é o desconhecimento da
história a ser gravada. Muitas vezes, como já dissemos, os atores só têm acesso às
suas falas individuais, e as gravam separadamente, em estúdios e até mesmo em
períodos diferentes. Chaume (2004) argumenta que os dubladores, muitas vezes,
sequer têm uma noção global das falas dos seus próprios personagens. Aí entra a
figura do diretor, que pode, durante a gravação, fazer alterações no roteiro, de
forma a facilitar o trabalho dos dubladores e dar mais verossimilhança à cena.
1.2.5 Mixagem
Esta é a última fase do processo de dublagem. Nela, um técnico de som
combina as gravações das vozes dos atores (que podem estar em até cinco faixas
diferentes) em uma só faixa. Alguns efeitos sonoros também podem ser
acrescentados ou ressaltados, caso o diretor ou o próprio técnico julgue necessário.
Asimismo, se valora mucho la autodisciplina y la humildad, que permite repetir las secuencias
tantas veces como sea necesario sin que, por ello, el actor se sienta mal.
13 “(…) lo que se entiende por un buen doblage hace desaparecer toda diferencia entre
personaje, protagonista y doblador. Ante el público se quiere confundir toda frontera. La marca
de un buen doblage es la desparición de la frontera. Se aspira a la merosimilitud, al make
believe total”.
18
Além disso, as vozes gravadas podem ser manipuladas, para ajustá-las ao ambiente
da cena (que pode exigir vozes abafadas ou com eco, por exemplo).
1.3 A questão cultural dentro da teoria da tradução
A questão da teoria da tradução é bastante polêmica. A principal causa
disso é que não há apenas uma teoria da tradução, mas várias. Diversos estudiosos
já tentaram sistematizar essa atividade, uns com mais sucesso, outros com menos.
Três dos que mais se destacaram — e que serão de relevância para este trabalho —
foram John C. Catford, Eugene Nida e Lawrence Venuti. Neste trabalho,
analisaremos como cada autor abordou, dentro de sua teoria, a questão da tradução
de aspectos culturais específicos. Antes disso, no entanto, precisamos discorrer
brevemente sobre os principais postulados de cada teoria.
Catford define a tradução como “substituição de material textual em
uma língua por material equivalente em outra língua”. Sua teoria é centrada
justamente na busca por essa equivalência, muito embora não esclareça
suficientemente esse conceito.
Para este trabalho, o ponto de interesse da teoria de Catford é aquele em
que ele aborda a problemática da tradução de termos que, por serem muito
específicos de uma cultura, não possuem um equivalente na língua-alvo. De acordo
com essa teoria, tais termos são “culturalmente intraduzíveis”. É interessante notar
que, na tentativa de dar uma abordagem linguística à sua teoria, Catford esquece o
caráter cultural dessas traduções?
Em muitos casos, pelo menos, o que torna 'intraduzíveis' itens 'culturalmente
intraduzíveis' é o fato de o uso de qualquer equivalente de tradução
aproximado no texto da língua-alvo produzir uma colocação incomum na
língua-alvo. Falar de 'intraduzibilidade cultural' pode ser só mais uma
maneira de falar de intraduzibilidade colocacional: a impossibibilidade de
encontrar uma colocação equivalente na língua-alvo. E isso seria um tipo de
intraduzibilidade linguística. (CATFORD, 1965:101)14
Por outro lado, Nida, criador da teoria da equivalência dinâmica e
tradutor da Bíblia, afirma que traduzir consiste em “reproduzir na língua receptora
o equivalente natural mais íntimo da mensagem na língua-fonte”, causando, no
14
In many cases, at least, what renders 'culturally untranslatable' items 'untranslatable' is the
fact that the use in the TL text of any approximate translation equivalent produces an unusual
collocation in the TL. To talk of 'cultural untranslatability' may be just another way of talking
about collocational untranslatability: the impossibility of finding an equivalent collocation in the
TL. And this would be a type of linguistic untranslatability.
19
público-alvo, o mesmo efeito causado no público original. Segundo Carneiro
(2000), o objetivo de Nida é “descrever cientificamente ‘o processo de transferência
de uma língua para outra’” (p.63).
As supostas prioridades do processo de transferência, segundo Nida,
são:
1ª) o conteúdo tem que ser transferido a qualquer custo, com o mínimo de
distorção possível; 2ª) é importante transmitir a conotação e o impacto
emocional da mensagem; 3ª) podem-se também transportar elementos
formais, mas isso não é prioritário.
Apesar de recomendar “o mínimo de distorção possível”, Nida sugere
que uma boa tradução deva se basear no chamado “efeito equivalente”, ou seja, a
mensagem traduzida deve causar nos seus receptores o mesmo efeito que a
mensagem original causou nos seus (apud CARNEIRO, 2000, p. 75), mas sem usar
os mesmos termos da cultura-fonte. Ao invés disso, o tradutor deve recorrer a
termos próprios da cultura-alvo. A característica da tradução
seria a “completa naturalidade de expressão” e buscaria “relacionar o
receptor com os modos de comportamento relevantes no contexto de sua
própria cultura”, em vez de “insistir que ele compreenda os padrões culturais
do contexto da língua-fonte para que compreenda a mensagem”.
(RODRIGUES, 2000, p.75-76)
Ao tratar do léxico das línguas envolvidas, Nida aborda a questão de
elementos culturalmente diferentes e os divide em três grupos, dos quais os dois
últimos serão de interesse para nosso trabalho:
1º) termos para os quais há paralelismo nas duas línguas envolvidas; 2º)
termos que identificam objetos culturalmente diferentes, mas com funções
similares; e 3º) termos culturalmente específicos. (RODRIGUES, 2000)
Quanto ao segundo grupo, Nida sugere que o tradutor use “outro termo
que reflita a forma do referente, embora com função não equivalente, ou um que
identifique a função equivalente, à custa da identidade formal” (Nida apud
Carneiro, 2000, p.82).
Para exemplificar esse procedimento, sugere trocar, na tradução da
Bíblia, nomes de moedas antigas (talentos ou denários) por dólares, apenas
advertindo os tradutores para adequarem os montantes ao contexto. (Carneiro,
2000:83)
Contudo, Nida defende a manutenção de termos culturalmente
específicos (terceiro grupo), por considerar que certos termos estão de tal forma
20
“arraigados na própria estrutura de pensamento em que a mensagem foi construída”
(apud RODRIGUES, 2000, p. 81) que seria impossível retirá-los sem prejudicar a
transmissão do significado original. Mesmo assim, minimiza a dificuldade trazida
por tais termos ao considerar que “todos os povos reconheceriam que outros povos
podem ter comportamentos diferentes e notas de rodapé poderiam explicar essa
diversidade” (id. ibid.). No entanto, o que fazer no caso das traduções audiovisuais,
nas quais é impossível aplicar esse recurso? Como declara Whitman-Linsen (1992),
“nos filmes, as referências culturais não podem recorrer às notas de rodapé para
esclarecimentos, nem se pode acomodar explicações longas em movimentos labiais
visivelmente mais curtos na tela.”15
(p.126)
Voltando ao pensamento de Nida, Carneiro (2000) defende que
Nida mostra, com suas afirmações, acreditar ser possível que um assunto
possa permanecer intocado pela relação interlinguística e intercultural
desencadeada pela tradução. Além disso, parece crer na possibilidade de
espelhamento de uma cultura em uma segunda língua, relacionada a uma
cultura necessariamente diferente. (RODRIGUES, 2000:82)
Para Carneiro (2000), a primeira das questões levantadas pela maneira
como Nida trabalha a questão da “equivalência dinâmica” é
sobre se realmente seria unânime a noção de que uma tradução tem que ser
lida como se fosse um original, ou seja, se efetivamente a melhor maneira de
traduzir é gerar um texto que não lembre o leitor de que ele está lendo uma
tradução.
Como se pode notar, ambas as teorias abordadas acima acabam se
comprometendo no esforço de chegar ao conceito de equivalência. Carneiro (2000)
diz que, nas propostas de Catford e Nida, esse conceito se fragmenta. Isso acontece,
em parte, porque suas teorias deixam de lado um dos aspectos essenciais para a
compreensão da tradução: as culturas envolvidas. Como afirma Agra (2007),
uma língua natural é um sistema de representação do mundo e de seus
eventos e, para que ela possa dar conta disso, usa sinais cujos sentidos são
especializados em um cenário que revela uma cultura.
Isso significa dizer que o desafio do tradutor não é apenas achar a
“equivalência” entre termos das duas línguas, mas também considerar todo o
contexto em que a comunicação ocorre. Aí estão incluídos: o tempo e o local de
utilização da língua; o grupo social que a utiliza; a intenção do autor, entre outros.
15
Yet in film, cultural allusions cannot resort to footnotes for clarification nor can lengthy
explanations be accommodated in shorter visually perceived lip articulations on the screen.
21
Tanto Catford quanto Nida, contudo, parecem ter ignorado tais fatores.
Opondo-se às idéias de Catford e Nida, Venuti propõe o conceito de
“(in)visibilidade” do tradutor. Esse autor defende veementemente que o tradutor
tem sido desvalorizado e esquecido e que uma das causas está justamente na atitude
que esse profissional adota nas suas traduções. Na tentativa de aumentar a aceitação
de um texto estrangeiro, o tradutor tenta fazê-lo soar tão natural ao público-alvo que
pareça não ser uma tradução. Venuti (1995) argumenta que essa é a atual tendência
na tradução de textos para a língua inglesa, mas, como poderemos verificar, isso
também ocorre na tradução para o português. Como revela Venuti (1995),
“um texto traduzido [...] é considerado aceitável [..] quando é lido
fluentemente, quando a ausência de quaisquer peculiaridades linguísticas ou
estilísticas o faz parecer transparente, dando a impressão de que ele reflete a
personalidade ou intenção do escritor estrangeiro ou o significado essencial
do texto estrangeiro — em outras palavras, a aparência de que a tradução não
é, de fato, uma tradução, mas o ‘original’”.(p. 1)16
O grande problema, nesse caso, está em tentar retratar uma cultura
estrangeira nos termos e padrões da cultura local, dando aos leitores “a experiência
narcisista de reconhecerem sua própria cultura em um outro cultural.” (VENUTI,
1995, p.15). E, para conseguir esse efeito, o tradutor sacrifica o texto original,
reduzindo-o a representações já conhecidas e consagradas pelo público-alvo. A esse
processo Venuti denomina “domesticação”, “uma redução etnocêntrica do texto
estrangeiro para valores culturais da língua-alvo”.17 (p.20)
Uma tradução domesticada pode gozar de imediata aceitação junto a um
público monolíngue ou pouco exigente. Contudo, no caso de obras audiovisuais, a
discrepância entre o ambiente mostrado pelas imagens e os significados
transmitidos pela dublagem torna-se evidente. Como aceitar como crível, por
exemplo, dois adolescentes americanos que vivem na década de 80 fazendo
referências ao futebol brasileiro?
Um argumento que provavelmente pode ser utilizado em defesa da
domesticação é de que os termos estrangeiros não farão qualquer sentido para o
16
A translated text […] is judged acceptable […] when it reads fluently, when the absence of any linguistic or stylistic peculiarities makes it seem transparent, giving the appearance that it reflects the foreign writer’s personality or intention or the essential meaning of the foreign text—the appearance, in other words, that the translation is not in fact a translation, but the “original.”
17 an ethnocentric reduction of the foreign text to target-language cultural values.
22
público-alvo, deixando-os “a ver navios” em passagens que supostamente deveriam
causar algum tipo de reação. Na verdade, como já comentamos, essa é a ideia
defendida, até certo ponto, por Whitman (1992). No entanto, essa mesma autora
alerta para os riscos dessas adaptações, em alguns casos, quando afirma, por
exemplo, que “o problema inerente à dublagem é que se corre o risco de derramar
um molho sem gosto sobre filmes de forte sabor sociocultural.”18
(p.136)
Venuti (1995) também alerta para os perigos da domesticação. Em sua
opinião,
Ao produzir a ilusão de transparência, uma tradução fluente disfarça-se de
equivalência semântica verdadeira, quando, na verdade, inscreve o texto
estrangeiro com uma interpretação parcial, [...] reduzindo-o, senão
simplesmente excluindo, a diferença que a tradução é convidada a
transmitir.19
(p. 21)
Cary (apud WHITMAN-LINSEN, 1992) também segue a linha de
pensamento de Venuti, enfatizando o dilema sofrido pelo tradutor, ao indagar: “Ao
fazer uma tradução, devemos nos ‘prender’ ao original ao ponto de atingir o leitor
(ou ouvinte ou interlocutor) com uma transmissão deliberadamente ‘fiel’, ou
devemos ‘naturalizar’ nossa versão para torná-la mais aceitável?”20
(p.108)
À decisão de manter uma versão deliberadamente ‘fiel’, Venuti (ibid.)
dá o nome de “estrangeirização”. É o oposto da domesticação. Ou seja, mantém-se
os termos tal e qual estão no original, dando assim uma maior representação à
cultura-fonte através da língua-alvo. A estrangeirização, torna o texto “um lugar
onde um outro cultural se manifesta — embora, obviamente, uma alteridade que
nunca pode se manifestar em seus próprios termos, apenas nos da língua-alvo”
(BERMAN apud VENUTI, 1995, p. 20). “Uma tradução estrangeirizadora dá
significado à diferença do texto estrangeiro, mesmo que apenas perturbando os
códigos culturais que prevalecem na língua-alvo.” (id.ibid.)
18
The problem inherent in dubbing is that it runs the risk of ladling a nondescript gravy over
films of pungent socio-cultural flavor. 19
By producing the illusion of transparency, a fluent translation masquerades as true semantic equivalence when it in fact inscribes the foreign text with a partial interpretation, […], reducing if not simply excluding the very difference that translation is called on to convey.
20 Doit-on, en traduisant, ‘coller’ à l’original au point de heurter le lecteur (ou l’auditer, ou l’interlocuteur) par une transmission délibérément ‘fidèle’, ou doit-on ‘naturaliser’ sa version pour la rendre mieux acceptable ?
23
Capítulo 2: Metodologia
2.1. Constituição do corpus
Para este estudo, escolheu-se a série americana “Everybody Hates
Chris”, produzida por CR Enterprises e 3 Arts Entertainment. É uma série cômica
inspirada na adolescência do humorista Chris Rock. A história se passa entre 1982 e
1987 no bairro de Bedford-Stuyvesant, Brooklyn, Nova York. O humorista narra
sua infância em primeira pessoa e, ao mesmo tempo, é retratado como adolescente
(terceira pessoa). Os outros personagens desse centro narrativo são: sua mãe
Rochelle, seu pai Julius, seus irmãos Drew e Tonya, e seu amigo de escola Greg
Ulliger. A série retrata os preconceitos dos quais Chris era vítima (principalmente
na escola, onde ele era o único negro) e as dificuldades enfrentadas por uma família
negra e pobre nos EUA dos anos 1980.
A escolha dessa série deu-se pelas seguintes razões: 1) é uma série que
retrata a cultura de um grupo étnico/social específico dentro da cultura geral
americana. Esse fato nos fez vislumbrar a possibilidade de encontrar referências
culturais para as quais não haveria equivalentes em português, o que, por sua vez,
nos fez indagar qual(is) estratégia(s) seria(m) usada(s) pela dublagem para superar
essa dificuldade; 2) a série é transmitida no Brasil por uma rede de TV aberta (a
saber, Rede Record), o que a faz ter uma audiência potencialmente grande; 3) o
humor da série agrada públicos de todas as faixas etárias e, embora sua temática
seja voltada para o público juvenil, a série também pode ser apreciada por crianças
e adultos. Finalmente, por constatarmos que a dublagem é a categoria de tradução
audiovisual predominante na TV aberta brasileira, decidimos analisar a versão
dublada dessa série, trabalho feito pelos estúdios VTI21
.
Inicialmente, pretendíamos assistir a todos os episódios das duas
primeiras temporadas, pois consideramos que a análise conjunta de temporadas
dubladas por estúdios diferentes poderia influenciar a imparcialidade da pesquisa.
Iniciamos o trabalho, portanto, assistindo aos episódios da primeira temporada, em
ordem crescente. Porém, após assistirmos aos 13 primeiros, notamos que o exíguo
tempo para a conclusão do trabalho não permitiria que víssemos todos os episódios
pretendidos. Portanto, além dos treze primeiros episódios da 1ª temporada,
21
Apenas 1ª e 2ª temporadas; a dublagem das duas temporadas seguintes ficou a cargo do estúdio ArtSound.
24
incluímos o vigésimo-primeiro, pois, ao assistir casualmente, notamos uma
ocorrência digna de análise, bem como três outros episódios da segunda temporada.
Estes últimos foram selecionados aleatoriamente (com exceção do 6º, por também
termos notado ocorrências dignas de análise ao assistir à série casualmente).
Ao final do trabalho, 14 episódios haviam sido assistidos, dos quais
foram extraídas 42 ocorrências de tradução de referências culturais.
2.2. Análise da dublagem
A análise das ocorrências de tradução foi feita da seguinte maneira:
primeiro, assistíamos ao episódio original, com legendas em inglês. Ao notarmos
qualquer ocorrência de referência cultural específica, a mesma cena era vista no
episódio dublado correspondente. Em seguida, decidíamos como classificar cada
tradução (em um dos cinco tipos que veremos mais adiante). Após isso, tomava-se
nota dos tempos e dos personagens envolvidos. Finalmente, os diálogos eram
transcritos e escrevia-se um breve resumo da cena, para ajudar na contextualização.
25
Capítulo 3: A tradução de referências culturais em “Everybody Hates Chris”
Ao analisarmos a dublagem da série, podemos notar que algumas
referências culturais permanecem no texto de chegada. Isso geralmente ocorre
quando os fatos ou pessoas a quem se referem são também conhecidos no Brasil,
embora haja algumas que o público provavelmente desconhece. Entretanto, muitas
referências culturais são alteradas e acabam não refletindo a cultura-fonte (norte-
americana). Além disso, nem sempre ocorre o mesmo tipo de alteração. Ou seja, em
certas ocasiões, o tradutor tenta encontrar uma expressão semelhante na nossa
cultura; em outras, a tradução faz referência a algo completamente diferente.
Baseados nessas diferenças, classificamos as traduções em cinco tipos:
A) as expressões são mantidas como no texto de partida, acrescentando-
se, eventualmente, uma explicação;
B) a expressão é substituída por outra, mais amplamente conhecida,
apesar de ainda pertencer à cultura inglesa;
C) apaga-se a expressão do texto de partida, colocando-se, em seu
lugar, um hiperônimo;
D) tenta-se substituir as expressões por correspondentes na cultura
brasileira;
E) substitui-se as expressões por outras que têm pouca ou nenhuma
relação com o texto de partida.
Apesar de mencionarmos as traduções dos tipos A e B, interessa-nos,
aqui, descrever principalmente os tipos C, D e E, por considerarmos que, além de
serem mais recorrentes, contribuem para a domesticação do texto de partida e,
consequentemente, com toda uma desvalorização da cultura-fonte, como já
discutido anteriormente.
3.1. Tipo A (expressões mantidas como no original)
Apesar das várias ocorrências de domesticação, detectamos algumas
ocasiões em que referências potencialmente incompreensíveis aos telespectadores
brasileiros são mantidas quase que na sua totalidade (traduções do tipo A). Tal tipo
de tradução ocorre, por exemplo, sempre que algum dos personagens faz menção a
Kunta Kinte, personagem principal do livro “Roots: The Saga of an American
Family” (1976), de Alex Haley, que conta a história de um negro desde seu
26
nascimento na África, sua captura e venda como escravo para os Estados Unidos,
até a vida dos seus descendentes. Em 1977, a rede de TV ABC produziu e
transmitiu uma minissérie homônima baseada no livro, o que ajudou a popularizar a
imagem do afro-descendente americano. O personagem é mencionado em dois
episódios da série Everybody Hates Chris, como descrito a seguir.
O exemplo 1 mostra a primeira ocorrência desse tipo de tradução. No
sexto episódio da primeira temporada, intitulado “Everybody Hates Halloween”,
Chris lembra a época em que saía com os irmãos para pedir doces (“trick or
treating”) no feriado. Ao relembrar a fantasia que estava usando, Chris (narrador)
comenta:
EXEMPLO 1 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates Halloween) TEMPO: 00:32 – 00:36 TIPO: A
ORIGINAL DUBLAGEM
(If you think that's bad, you should've seen the year I was Kunta Kinte’s foot.)
(Se achou isso um mico, devia me ver no ano que imitei Kunta Kinte, de “Raízes”)
A referência ao pé de Kunta Kinte deve-se ao fato de, no livro, o
personagem, após ser capturado em sua quarta tentativa de fuga, ter que escolher,
como punição, ser castrado ou ter o pé cortado. Ele escolhe a segunda opção, que é
executada por seus captores. Como se pode notar, a dublagem manteve a referência
parcialmente, e ainda acrescentou uma explicação.
No décimo-primeiro episódio da primeira temporada, intitulado
“Everybody Hates Christmas” Caruso, o bully da escola onde Chris estuda (e da
qual este é o único aluno negro), faz um comentário preconceituoso depois de
derrubar o personagem principal no corredor. A dublagem, apesar de omitir a
primeira referência (tipo D), deixou a segunda.
EXEMPLO 2 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 11 (Everybody Hates Christmas) TEMPO: 01:24 - 01:26 TIPO: A
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso (para Chris): Happy Kwanzaa22
, Kunta Kinte.
— Feliz Natal, Kunta Kinte.
Duas ocorrências da tradução do tipo A estão presentes no sexto
episódio da segunda temporada (“Everybody Hates the Buddy System”). Após ver
Caruso espancando Chris, o Sr. Evans, diretor da escola, convoca-os para uma
conversa. Ironicamente, ele libera Caruso e tentar convencer Chris de que este é o
22
Festival de cultura afro-americana que vai de 26 de dezembro a 1º de janeiro.
27
responsável por tal tratamento. O narrador, em seu comentário, faz referência a
Rodney King (1965-), afro-americano que, em 1991, foi espancado por policiais em
Los Angeles. O incidente foi filmado por um cidadão e o vídeo foi transmitido
centenas de vezes não só nos EUA, mas em todo o mundo, causando indignação
geral do público. A referência é preservada na tradução.
EXEMPLO 3 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates the Buddy System) TEMPO: 01:19 - 01:26 TIPO: A
ORIGINAL DUBLAGEM
Mr. Evans: Have you ever considered the possibility this is your fault? Chris (narrador): That's what they said to Rodney King.
— Já considerou a hipótese de ser sua culpa? — (Foi o que disseram ao Rodney King.)
O outro caso ocorre quando Chris e Caruso, que foram obrigados a ficar
sempre juntos durante uma excursão da escola a um museu, acabam perdendo o
ônibus de volta. Eles discutem como vão chegar novamente à escola. Caruso insiste
em dizer que ele deve dar as ordens e faz referência ao filme “Silver Streak” (“O
Expresso de Chicago”), comédia estrelada por dois atores: um branco (Gene
Wilder) e um negro (Richard Pryor). A dublagem foi praticamente literal.
EXEMPLO 4 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates the Buddy System) TEMPO: 10:40 – 10:45 TIPO: A
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso: Gene Wilder made all the decisions in Silver Streak. Richard Pryor just followed orders.
Gene Wilder tomou as decisões em O Expresso de Chicago. Richard Pryor obedeceu ordens.
Mais uma ocorrência de tradução do tipo A pode ser encontrada no
décimo episódio da primeira temporada. Na cena, Rochelle, a mãe de Chris, está
fofocando para Julius, pai do personagem, que finge estar prestando atenção. As
referências também foram mantidas integralmente.
EXEMPLO 5 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 10 (Everybody Hates Greg) TEMPO: 06:38 – 06:51 TIPO: A
ORIGINAL DUBLAGEM
Rochelle: Julius, you are not gonna believe this. But you know that girl Jody Watley that used to be on Soul Train? Well, I heard she's leaving the group Shalamar and starting a new group with Ashford & Simpson.
Julius, você não vai acreditar, tá? Mas, sabe aquela tal de Jody Watley que cantava no Soul Train? Bom, eu soube que ela largou o conjunto Shalamar pra montar uma banda com Ashford & Simpson.
28
3.2. Tipo B (expressões substituídas por outras em língua inglesa)
Nas traduções do tipo B, o tradutor, provavelmente por temer que o
telespectador não compreenda a referência original, adota uma expressão da língua
inglesa, porém, mais amplamente conhecida. Embora as expressões adotadas
geralmente não tenham relação com os originais, mantém-se o sentido, de certa
forma. Além disso, passa-se a falsa impressão de que o texto continua
estrangeirizado.
Aqui também temos que considerar as restrições inerentes ao processo
de dublagem, como a exigência de sincronismo labial e a duração das falas. Em um
ou outro caso, esses fatores podem ter sido decisivos no momento da tradução.
Podemos constatar esse tipo de tradução nas seguintes passagens. No
episódio “Everybody Hates Food Stamps” (1ª temporada, episódio 9), Chris discute
com seu melhor amigo, Greg, e ambos acabam desfazendo a parceria para a
apresentação de um trabalho na Feira de Ciências da escola. Ao comentar a briga, o
narrador compara essa separação ao fim da dupla britânica Wham!, formada por
Andrew Ridgeley e George Michael. A dupla fez bastante sucesso tanto na
Inglaterra quanto nos EUA, desde 1982 até ser desfeita em 1986. O tradutor da
dublagem provavelmente considerou a dupla pouco conhecida no Brasil e, portanto,
optou por usar uma banda bem mais conhecida.
EXEMPLO 6 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 09 (Everybody Hates Food Stamps) TEMPO: 00:26 – 00:31 TIPO: B
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): It was like Andrew Ridgeley leaving Wham!
(Era como se o Mick Jagger fosse largar os Stones.)
Temos outra ocorrência desse tipo de tradução no décimo-primeiro
episódio da primeira temporada (“Everybody Hates Christmas”). Chris chega
bastante animado à escola, pois está imaginando o presente que vai ganhar no
Natal. De repente, Caruso derruba-o e pisa em cima dele, sarcasticamente
desejando um Feliz Natal. O texto de partida, no entanto, faz referência ao
Kwanzaa, festival de cultura afro-americana que vai de 26 de dezembro a 1º de
janeiro. Esse feriado foi criado na década de 1960 com o propósito de ser uma
alternativa dos negros ao Natal, considerado pela comunidade afro-americana uma
29
celebração de brancos cristãos. Devido ao fato de ser pouco conhecido no Brasil, o
tradutor preferiu retirar a referência, usando simplesmente “Natal” em seu lugar.
EXEMPLO 7 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 11 (Everybody Hates Christmas) TEMPO: 01:24 - 01:26 TIPO: B
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso (to Chris): Happy Kwanzaa, Kunta Kinte.
Caruso (para Chris): Feliz Natal, Kunta Kinte.
Vale ressaltar que, na terceira temporada, um dos episódios retrata
exatamente o Kwanzaa (“Everybody Hates Kwanzaa”, 10º episódio).
No mesmo episódio, temos mais uma referência a grupos musicais. Ao
comentar o otimismo exagerado de Greg, Chris (narrador) afirma que seu amigo
ainda crê no retorno de que Al B. Sure!, nome artístico de Albert Jason Brown III
(1968-). Esse cantor, compositor e produtor americano chegou a fazer bastante
sucesso no final da década de 1980, mas sua carreira apenas declinou desde então.
O tradutor preferiu, neste caso, usar uma referência bem mais célebre.
EXEMPLO 8 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 11 (Everybody Hates Christmas) TEMPO: 14:41 - 14:43 TIPO: B
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): I always liked that Greg was so optimistic. To this day, he still thinks Al B. Sure! is gonna make a comeback.
(Eu gostava do Greg ser tão otimista. Até hoje ele acha que os Beatles vão gravar mais um disco.)
Em uma mesma conversa, no décimo-terceiro episódio da primeira
temporada, há duas ocorrências. A situação é a seguinte: Chris se prepara para tirar
a foto do anuário da escola. Sua mãe lhe presenteia com um blusão que custou
trinta e cinco dólares. Ao chegar à escola, Chris tira o blusão e guarda em seu
armário. Pouco antes da hora de bater a foto, porém, ele percebe que o blusão foi
roubado. O primeiro suspeito é Caruso, com quem ele se encontra no vestiário
pouco depois. Logo que vê Chris preocupado com o sumiço do blusão, Caruso o
chama de “Scatman”, em referência a Benjamin S. Crothers (1910-1986), cantor,
dançarino, ator e músico afro-americano. Na dublagem, no entanto, seu nome é
trocado pelo de Louis Armostrong, bem mais conhecido mundialmente. Em
seguida, ainda no mesmo diálogo, Caruso usa, com Chris, o apelido “Nipsey”,
referência a Julius Russel (1918-2005), comediante negro conhecido por sua
participação em game shows desde a década de 60. Na dublagem, tal referência é
substituída por “Shaft”, detetive negro personagem principal do filme e minissérie
homônimos, transmitidos na década de 1970. Embora este termo não tenha
30
qualquer relação com o original, essa substituição talvez tenha sido influenciada
pelo lançamento, no ano 2000, de uma nova versão do filme, estrelada por Samuel
L. Jackson.
EXEMPLO 9 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 13 (Everybody Hates Picture Day) TEMPO: 09:26 – 09:47 TIPO: B
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso: What's wrong, Scatman? (…) Chris: That shirt cost U$ 35. And I want it back. Caruso: I don't have it, Nipsey.
— Fala, Louis Armstrong! (…) — Aquele casaco custou 35 dólares, e eu quero ele de volta. — Eu não tô com ele, Shaft.
Na segunda temporada, temos outra ocorrência do tipo B. No sexto
episódio (“Everybody Hates the Buddy System”), Chris e Caruso estão embarcando
em uma excursão da escola ao museu. Ao notar a hesitação de Chris, Caruso o
chama de Bubbles, uma referência ao chimpanzé que foi adotado como animal de
estimação por Michael Jackson de 1986 a 2003. O narrador comenta tal
comparação dizendo que se sentiria mais seguro no rancho Neverland, propriedade
que foi a residência de Michael Jackson de 1988 a 2008. Na dublagem, preferiu-se
usar uma referência a outro chimpanzé, mais conhecido: Cheeta, de Tarzan. O
narrador, em seguida, ao invés de “no rancho Neverland”, menciona “no colo do
Michael Jackson”. Nesse caso, apesar de conseguir manter um pouco da
comicidade, perde-se o elo cômico entre a fala de Caruso e o comentário do
narrador.
EXEMPLO 10 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates the Buddy System) TEMPO: 06:08 – 06:14 TIPO: B
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso (to Chris): Come on, Bubbles. Chris (narrador): Right now, I'd feel safer at the Neverland Ranch.
— Vam’bora, Cheeta! — Naquela hora, eu me sentiria mais seguro no colo do Michael Jackson.
No episódio “Everybody Hates Christmas”, o narrador pondera sobre
como as pessoas só pensam em fazer caridade no Natal, enquanto assegura que
muita gente também tem fome no Dia do Presidente, feriado nacional americano
comemorado na terceira segunda-feira de fevereiro. Como não temos um dia do
Presidente no Brasil, o tradutor preferiu usar outro feriado americano, que tem um
equivalente no Brasil: o Dia da Independência.
31
EXEMPLO 11 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 11 (Everybody Hates Christmas) TEMPO: 02:44 – 02:52 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): It’s funny how most people only think of feeding the needy during Christmas. I’m sure there’s a lot of hungry people during President’s Day.
(Engraçado como tem gente que só pensa em alimentar os famintos na época do Natal. Eu tenho certeza de que tem gente com fome no Dia da Independência também.)
No vigésimo-primeiro episódio da primeira temporada (“Everybody
Hates Jail”), a professora de Chris avisa a turma de que eles vão fazer uma
excursão a Washington, a capital dos EUA. Caruso diz para Chris se preparar para
ir no fundo do ônibus, e o chama de “Birmingham”. Essa é uma referência à cidade
do Alabama onde Martin Luther King Jr. liderou protestos pelos direitos dos negros
americanos. Os protestos atraíram a atenção do mundo todo em 1963 e resultaram
no fim da segregação e na subsequente Lei dos Direitos Civis de 1964.
Na dublagem, o tradutor omite “Birmingham” (uma referência que
passaria despercebida para a maioria dos espectadores), mas menciona Martin
Luther King. Tal procedimento acaba, de certa forma, validando a tradução, pois
mantém, ainda que parcialmente, a referência do texto de partida.
EXEMPLO 12 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 21 (Everybody Hates Jail) TEMPO: 00:48 - 00:51 TIPO: B
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso (para Chris): Prepare to sit in the back [of the bus], Birmingham
23.
Caruso (para Chris): Você vai sentar no fundo, Luther King.
Os diversos apelidos racistas que Caruso usa com Chris fazem
referência, na maioria das vezes, a elementos muito próprios da cultura americana.
Por isso, não são mantidos na dublagem, sendo, ao invés disso, substituídos por
termos igualmente pejorativos do português brasileiro. Analisaremos algumas das
traduções desse tipo mais adiante (tipo E).
3.3. Tipo C (uso de hiperônimos)
As traduções do tipo C são caracterizadas pelo uso de hiperônimos,
palavras de sentido mais genérico. Geralmente esses hiperônimos ocorrem quando
a referência é tão específica da cultura fonte que, além de não fazer sentido na
língua-alvo, muitas vezes não tem uma expressão que exerça a mesma função na
cultura-alvo. Portanto, tal tipo de tradução geralmente tem um efeito positivo.
23 Referência aos protestos de Birmingham, Alabama, liderados por Martin Luther King Jr. em 1963.
32
Outra situação em que o tipo C é utilizado, como já vimos no tipo B,
ocorre quando os aspectos técnicos — a necessidade de sincronismo, em particular
— forçam o tradutor a simplificar o texto de chegada. Alguns exemplos mostram
como os aspectos técnicos, e não apenas os estritamente linguísticos, podem
efetivamente influenciar as escolhas na tradução audiovisual.
Logo no primeiro episódio da série, podemos constatar várias
ocorrências de traduções desse tipo. Em uma das primeiras cenas, a família de
Chris está se mudando para Bed-Stuy (um bairro de Nova York) num furgão
dirigido pelo pai de Chris, Julius. Ao perguntar se podem parar no McDonald’s, o
pai pergunta se eles têm dinheiro para McDonald’s. Na dublagem, essa referência é
substituída simplesmente por “lanchonete”. Tal substituição é, a nosso ver,
desnecessária, pois a cadeia de fast food é conhecida mundialmente. O diálogo é
apresentado abaixo:
EXEMPLO 13 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 1 (The Pilot) TEMPO: (01:38 - 01:45) TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
- Dad, can we stop at McDonald's? - You got some McDonald's money? - Julius, the kids have to eat. - They ain't gotta eat McDonald's.
- Pai, dá pra parar na lanchonete? - Tem dinheiro pra lanchonete? - Julius, ele têm que comer. - Mas não tem que ser em lanchonete.
Um pouco mais adiante, Chris, como narrador, afirma que ele era a
única pessoa negra em um dos ônibus que pegava para chegar à escola e ressalta
como as pessoas recusavam-se a sentar ao lado dele. Na cena, Chris está sentado e
há um assento vago ao seu lado. Ao oferecer o assento a uma mulher grávida, esta
recusa e ainda parece irritada. O narrador, então, em seu comentário, usa, de forma
genérica, o nome de O. J. Simpson. Este famoso jogador de futebol americano foi
acusado de assassinar a esposa (que era uma mulher branca) e o amante dela em
1995. O caso ganhou notoriedade internacional e terminou com a absolvição de
Simpson.
Na dublagem, o termo “O. J.”, que fora utilizado no texto de partida
com o significado “negro que namora mulher branca”, foi substituído por “negão”,
como se pode verificar na transcrição das falas.
33
EXEMPLO 14
TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 1 (The Pilot)
TEMPO: 08:12 - 08:15 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): If you think she's mad now, wait 'til her daughter brings home
O.J.24
(Tá furiosa, minha filha? Espera até tua filha levar o negão pra casa.)
Durante seu primeiro encontro com Caruso, Chris tenta intimidá-lo
dizendo que é de Bed-Stuy e que pode “trazer metade da Marcy” para a escola.
“Marcy” é uma referência a Marcy Project (ou Marcy Houses), conjunto
habitacional construído em Bed Stuy pela prefeitura de Nova York nos anos 1950.
Na década de 1980, era considerado um dos bairros mais perigosos da cidade, pois
sofria com altos índices de violência e consumo de crack. Era nessa vizinhança que
Chris morava.
A dublagem resolveu substituir essa referência pela palavra “gangue”,
que não causa estranheza no telespectador.
EXEMPLO 15 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 1 (The Pilot) TEMPO: 09:03 - 09:09 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (para Caruso): I don't play that. I'm from Bed-Stuy, boy! I'll bring half of Marcy up in here!
— Chris (para Caruso): Eu não amarelo! Sou da Bed-Stuy, moleque! Eu trago uma gangue inteira pra cá!
Ao comentar seu primeiro encontro com Caruso, o narrador faz
referência a DMX, nome artístico do rapper americano Earl Simmons (1970-). O
tradutor poderia ter deixado o nome do cantor, mas preferiu usar “hip-hop”.
EXEMPLO 16 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 1 (The Pilot) TEMPO: 10:02 - 10:10 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador) :Oh, he got away with calling me “nigger” that day. But later in life he said it at a DMX concert, and almost got stomped to death.
(É, naquele dia ele me chamou de “neguinho” e se safou. Mas tempos depois ele foi a um show de hip-hop e quase foi pisoteado até a morte.)
Ocorrência similar pode ser encontrada no epidósio 11 da primeira
temporada (“Everybody Hates Christmas”), no qual Chris reflete sobre a
intolerância do pai de Greg no que diz respeito à música.
24
O.J. Simpson (1974-), famoso jogador negro de beisebol.
34
EXEMPLO 17 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 11 (Everybody Hates Christmas) TEMPO: 02:26 - 02:29 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): Years later, Greg
played some Ice Cube25
and his own father shot him.
(Anos mais tarde, o Greg começou a curtir funk e o próprio pai deu um tiro nele.)
Um caso em que a tradução do tipo C foi bem sucedida ocorre no
quinto episódio da primeira temporada (“Everybody Hates Fat Mike”). Rochelle, ao
voltar do trabalho, encontra a casa completamente bagunçada. Julius finge estar
dormindo no sofá e pergunta o que vai ser o jantar. Indignada, Rochelle pergunta se
ela se parece com a Florence dos Jeffersons. Essa é uma referência à série de TV
“The Jeffersons”, transmitida pela CBS de 1975 a 1985 que retratava a vida de uma
família de negros americanos de classe média alta. Florence Johnston era a
empregada da família.
A referência obviamente não seria entendida pelo público brasileiro,
pois a série não foi transmitida no Brasil. O tradutor, acertadamente, simplificou a
fala de Rochelle, trocando “Florence dos Jeffersons” por “doméstica”.
EXEMPLO 18 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 05 (Everybody Hates Fat Mike) TEMPO: 18:20 - 18:23 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Rochelle: Do I look like Florence from The Jeffersons?
Rochelle: Por acaso eu tenho cara de doméstica?
Outro exemplo desse tipo de tradução ocorre no episódio “Everybody
Hates Food Stamps” (1ª temporada, 9º episódio), no qual Chris explica que sua mãe
sempre tentava economizar ao fazer compras, evitando os produtos de marcas
famosas. Ao invés de deixar o nome das marcas, o autor refere-se a elas de maneira
coletiva (“coisas para o café da manhã”, “quando chegava a vez do sabão”, etc.). As
falas da versão americana remetem a cereais (Fruit Loops, Cheerios, Frosted
Flakes), biscoitos (Oreos, gingersnaps26
, Chips Ahoy!) e sabonetes (Zest, Dial,
Coast, Camay).
EXEMPLO 19 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 09 (Everybody Hates Food Stamps) TEMPO: 00:26 – 01:11 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): So instead of Fruit Loops, Cheerios or Frosted Flakes, we
— (Então, quando ela ia comprar coisas pra o café da manhã, o que ela escolhia era...)
25
Nome artístico de O’Shea Jackson (1969-), rapper, ator, roteirista e produtor americano. 26
Gingersnap, na verdade, não é uma marca de biscoito, mas um tipo (biscoito de gengibre).
35
got… Chris: “Cereal”? (…) Chris (narrador): And instead of Oreos, gingersnaps or Chips Ahoy, we got… Drew: “Cookie”? (…) Chris (narrador): When it came to soap, instead of Zest, Dial or Coast, we got… Chris: Camay?
27
— Chris: “Cereal”? (...) — (Quando ela chegava na seção mais gostosa do mercado, ela comprava...) — Drew: “Biscoito”? (...) — (Quando chegava a vez do sabão, ela passava direto pelas marcas famosas e comprava...) — De coco?
Ainda sobre marcas, no episódio “Everbody Hates the Part-Time Job”
(1ª temporada, 12º episódio), há uma cena em que o xarope Robitussin é
mencionado várias vezes. Na dublagem, em todas as ocorrências, o nome do
produto é substituído por “xarope”.
EXEMPLO 20 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 12 (Everybody Hates the Part-Time Job) TEMPO: 12:17 – 12: 45 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): Going to the doctor was serious business, because usually if something was wrong with one of us, my parents thought they could fix it with Robitussin. Drew: I burned my finger! Rochelle: Let me see, boy. Let me see. Now, take some Robitussin. Julius: Looks like her tooth broke off. Rochelle: I'll go get the Robitussin. Rochelle: What? Tonya: Momma, Chris just got hit by a car! Rochelle: Oh, my God! I'll go get the Robitussin.
— (Ir ao médico era uma parada séria porque, em geral, se a gente ficava doente, meus pais achavam que ia curar a gente com um xaropinho.) — Ai, mãe! Puxa, eu queimei meu dedo! — Deixa eu ver, menino. Deixa eu ver. Toma um xarope!
— Parece que o dentinho dela caiu.
— Eu vou buscar o xarope. — O que foi? — Mamãe, o Chris foi atropelado! — Ai, meu Deus! Tá, eu vou pegar o xarope!
Voltando ao nono episódio, encontramos mais uma referência a grupos
musicais. Na cena, Chris e Greg estão na escola, discutindo sobre o tema de sua
apresentação para a Feira de Ciências. Quando Greg sugere que eles façam um
trabalho sobre as placas tectônicas, Chris (narrador) diz que pensava que esse fosse
o nome original do Wu Tang Clan, grupo nova-iorquino de rap formado em 1992.
Diferentemente das outras ocasiões em que há referências musicais, desta vez, o
nome da banda originalmente mencionada não é substituído pelo de outra mais
conhecida. Ao invés disso, temos uma referência genérica ao tipo de música que a
banda toca.
27
Sabonete produzido pela Procter & Gamble desde 1926.
36
EXEMPLO 21 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 09 (Everybody Hates Food Stamps) TEMPO: 00:26 – 00:31 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): I thought “Plate Tectonics” was the original name of the Wu Tang Clan.
(Pensei que “Placa Tectônica” fosse o nome de um grupo de rap estourando por aí.)
O tipo C mostra-se bastante útil, pois permite que o tradutor transmita
seu sentido geral. Contudo, como já ressaltamos, tal tipo de tradução é, às vezes,
utilizado desnecessariamente. Constatamos vários casos em que o tradutor tinha, à
sua disposição, um correspondente na língua portuguesa. Um desses casos ocorre
no primeiro episódio. Ao relembrar que seus irmãos foram matriculados numa
escola perto de casa, onde a maioria dos alunos era de negros, e ele tinha sido
matriculado numa escola predominantemente branca do outro lado da cidade, Chris
comenta o tipo de educação recebida lá: “Não era uma educação do tipo
‘Harvard’”. A dublagem, no entanto, preferiu “Não era educação de primeira”. Tal
substituição parece-nos ter sido motivada pela restrição de tempo, pois não seria
possível fazer a mesma construção em português sem alongá-la, o que não poderia
ser sincronizado com os movimentos labiais do ator na tela. Este é um dos
exemplos em que os aspectos técnicos foram fator decisivo para a tradução.
EXEMPLO 22 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 1 (The Pilot) TEMPO: 03:44 - 03:45 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): Not a Harvard-type education...
(Não era educação de primeira...)
No nono episódio, Chris fala para Greg que, sempre que ele liga a TV,
sua irmã quer assistir aos “Care Bears”. A dublagem, estranhamente, omitiu a
referência a essa série bastante conhecida do público brasileiro, dando preferência
ao termo genérico “desenho animado”.
EXEMPLO 23
TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 09 (Everybody Hates Greg)
TEMPO: 02:12 – 02:18 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris: At least you get to watch a game. Every time I turn on the TV my sister wants to watch the Care Bears.
Pelo menos, você consegue ver o jogo. Toda vez que eu ligo a TV, minha irmã quer ver desenho animado.
No mesmo episódio, Chris (narrador) afirma que “o Atari era o
Playstation de 1982.” Aqui, novamente, o tradutor poderia muito bem ter mantido o
nome do jogo, visto que o console de videogame da Sony é bastante popular no
37
Brasil. No entanto, a dublagem preferiu uma expressão mais abrangente.
EXEMPLO 24 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 09 (Everybody Hates Greg) TEMPO: 02:26 – 02:29 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): Atari was the PlayStation of 1982.
(Atari era a tecnologia de ponta em 1982.)
Ainda no episódio “Everybody Hates Greg”, Greg convida Chris para
jogar videogame na sua casa. Quando Chris está prestes a ir embora, o pai de Greg
chega, e Greg impede Chris de sair, afirmando, amedrontado, que seu pai o proíbe
de receber visitas enquanto estiver sozinho. Nesse momento, o narrador compara o
pai de Greg a Ike Turner (1931-2007), que foi marido da cantora Tina Turner de
1962 a 1978. Ela o acusou de espancá-la violentamente várias vezes, o que rendeu a
ele a fama de homem violento. O dublador, no entanto, deve ter julgado esse fato
desconhecido do público brasileiro, pois omitiu essa referência, substituindo-a por
uma expressão de sentido vago. Mais uma vez, a dublagem favorece a
compreensão, em detrimento da comicidade da fala.
EXEMPLO 25 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 09 (Everybody Hates Greg) TEMPO: 09:03 – 09:06 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): Greg looked at me like his father was Ike Turner.
(Greg me olhou como se o pai dele fosse o maior monstro.)
Na segunda temporada, no episódio em que Chris se candidata a
presidente do grêmio escolar (“Everybody Hates the Class President”, 2º episódio),
ele e Greg estão com dificuldades para conseguir votos. Então, discutem como
podem ser iguais ao DiPaolo, um dos alunos mais populares da escola. Quando
Chris fala que ele é burro como uma porta, Greg retruca que, apesar de ser burro,
DiPaolo é querido pelas pessoas, Chris (narrador) comenta que isso foi o que
disseram sobre Fabio. Ele se refere a Fabio Lanzoni (1959-), ator e modelo italiano
conhecido nos EUA. Na dublagem, essa referência foi substituída, como podemos
ver abaixo.
EXEMPLO 26 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 02 (Everybody Hates the Class President) TEMPO: 06:44 - 06:50 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Greg: He might be dumb, but people like him. Chris (narrador): They said the same thing about Fabio.
— Pode ser burro, mas gostam dele. — Dizem a mesma coisa das modelos e das manequins.
Em outro episódio (“Everybody Hates the Buddy System”, 2ª
38
temporada, 6º episódio), o tradutor generalizou duas referências de uma só vez.
Devido às suas desavenças, Chris e Caruso são chamados à sala do diretor. Chris
acusa Caruso de odiar pessoas negras, e este se defende dizendo que gosta de vários
artistas e celebridades negras. Chris, então, contesta a validade de tal afirmação
dizendo: “Só por que você assiste ao Soul Train, isso não te faz o Don Cornelius.”.
“Soul Train” foi um programa musical da TV americana transmitido de 1971 a
2006. Em geral, apresentava artistas negros. Don Cornelius (1936-) foi seu produtor
e primeiro apresentador.
Nesse caso, a dublagem simplificou bastante a fala do personagem,
eliminando as referências a ícones musicais dos Estados Unidos, Mais uma vez,
parece-nos que a duração da fala traduzida não combinaria com os movimentos
labiais do ator.
EXEMPLO 27 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates the Buddy System) TEMPO: 01:24 - 01:26 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (para Caruso): Just because you watch Soul Train, don't make you Don Cornelius.
Só porque gosta desses caras, você não vira o rei do Soul.
Finalmente, no mesmo episódio, ao ser convidado por Greg para jogar
videogame na casa dele, Chris comenta que as coisas não tem nenhum problema, ao
que o narrador comenta, ironicamente, que “isso é o que as pessoas diziam quando
estavam embarcando no Amistad.” Esse foi um navio negreiro cubano que, em
1839, após motim dos escravos, foi parar na costa leste dos Estados Unidos, sendo
capturado por autoridades americanas. A situação dos escravos ganhou notoriedade
com o julgamento do caso pela Suprema Corte, que, após dois anos, decidiu que os
escravos deveriam ser libertados e conduzidos de volta à África.
Apesar de o nome da embarcação mencionada ter se tornado célebre
após um filme homônimo, dirigido por Steven Spielberg, ter sido lançado em 1997,
o tradutor preferiu eliminar essa referência e usar um termo mais comum.
EXEMPLO 28 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates the Buddy System) TEMPO: 05:46 - 05:51 TIPO: C
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris: I mean, it can't get any worse. Chris (narrador): That's what people said while they were boarding the Amistad.
— Pior do que isso não pode ficar. — (A rapaziada dizia isso quando embarcava nos navios negreiros.)
39
3.4. Tipo D (domesticação)
Dos tipos de tradução vistos até aqui, o tipo D traz as traduções mais
domesticadas, pois os termos originais são substituídos por palavras e expressões da
língua da cultura-alvo que, em tese, teriam a mesma função que eles. O que causa
mais estranheza é o fato de que o tradutor, com o intuito de representar o sentido do
texto original com palavras da cultura-alvo, acaba aproximando-o demasiadamente
desta. Assim, o visual indica jovens americanos da década de 1980, mas o áudio
incoerentemente os mostra fazendo referências à cultura brasileira.
Dois casos nos pareceram dignos de destaque. No segundo episódio da
segunda temporada, Chris convida DiPaolo a ser seu vice na chapa para presidente
do grêmio escolar. Tentando soar mais convincente, Chris argumenta que eles
podem ser como Bobby Jones e Henry Bibby, jogadores que faziam dupla no
Philadelpia 76ers, time de basquete da NBA, na década de 1980. DiPaolo, então,
pergunta se eles podem ser como Kevin McHale e Dennis Johnson, dos Celtics, time
rival dos 76ers. Na dublagem, essa passagem foi completamente domesticada, pois
o tradutor procurou fazer referência a desportistas igualmente famosos, só que no
Brasil. O texto traduzido mostra-se incompatível com o ambiente em que vivem os
personagens, como podemos verificar na transcrição do diálogo mostrada a seguir.
EXEMPLO 29 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 02 (Everybody Hates The Class President) TEMPO: 10:37 - 10:41 TIPO: D
ORIGINAL DUBLAGEM
DiPaolo: Vice president? Chris: Yeah, with me. We can be like Bobby Jones and Henry Bibby on the Sixers
28.
DiPaolo: Can we be like Kevin McHale
and Dennis Johnson on the Celtics29
?
— Vice-presidente? — É, comigo. A gente podia ser tipo Pelé e Tostão na Copa de 70. — Dá pra ser Toninho Cereso e Serginho da
última Copa?
Em outro episódio (“Everybody Hates the Buddy System”), mais uma
vez o tradutor recorre a “Pelé” para substituir o nome de um famoso desportista
americano. Na cena, Julius presenteia Drew com uma camisa de hóquei do jogador
Wayne Gretzky (1961-). Porém, o nome do jogador está grafado incorretamente nas
costas da camisa (“Gritzky”). Chris (narrador) então diz que, no ano seguinte, seu
irmão ganhou uma camisa dos Yankees com o nome “Mezzie Mackson” escrito nas
28
Bobby Jones e Henry Bibby foram jogadores de basquete do Philadelphia 76s nos anos 80. 29
Kevin MacHale e Dennis Johnson jogavam basquete no Boston Celtics, o principal rival do 76ers.
40
costas. Isso é provavelmente uma corruptela do nome de Reggie Jackson, jogador de
beisebol que integrou a equipe do New York Yankees de 1977 a 1981. A dublagem
substituiu o nome errado do jogador por “Pilé”, em uma óbvia referência ao jogador
de futebol brasileiro.
EXEMPLO 30 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates the Buddy System) TEMPO: 15:05 – 15:10 TIPO: D
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): The next year, Drew got a Yankees jersey that said “MEZZY MAXIN”.
(Um ano mais tarde, o Drew ganhou um uniforme com “PILÉ” escrito nas costas.)
Finalmente, temos mais uma ocorrência de domesticação que envolve as
modalidades esportivas preferidas nos dois países: o futebol americano, nos EUA, e
o futebol, no Brasil. No Dia de Ação de Graças, o pai de Chris mobiliza toda a
família no preparo da ceia. Chris o compara a um jogador de futebol americano em
ação (“quarterback running player”), enquanto a tradução faz menção a uma figura
altamente popular no Brasil.
EXEMPLO 31 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 8 (Thanksgiving) TEMPO: 04:05 - 04:10 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrator): Because my father really wanted to impress his brother, my dad was cooking like a quarterback
30
running player.
Chris (narrador): Como meu pai queria mesmo impressionar o seu irmão, cozinhava igual a técnico da seleção na Copa do Mundo.
Nota-se aqui uma enorme disparidade entre o ambiente da cultura-fonte
com a fala traduzida para a cultura-alvo, pois os americanos não são grandes fãs de
futebol, nem dão muita importância a grandes competições mundiais como a Copa
do Mundo (com exceção das Olimpíadas).
3.5. Tipo E (expressões não relacionadas)
Finalmente, há várias cenas em que as alusões feitas pelos personagens
nem fazem sentido nem têm um “equivalente” na cultura de chegada. Isso leva o
tradutor a usar, na dublagem, termos e expressões que não têm qualquer relação de
significado com os originais. Tal procedimento, muitas vezes, compromete não só o
aspecto cômico do texto, mas também pode prejudicar a construção de sentido pelo
telespectador. Consideramos que, em grande parte dos casos, poderia ter sido feita
30
Uma das posições em um time de futebol americano.
41
uma tradução do tipo B ou C.
Todavia, ressaltamos, mais uma vez, a possibilidade de interferência de
aspectos técnicos, que, muitas vezes, sobrepõem-se às questões meramente
linguísticas. No caso específico das traduções do tipo E, parece-nos que um fator
decisivo foi a restrição de tempo de pesquisa para a tradução. Embora não saibamos
que tempo era dado ao estúdio para a conclusão de todo o processo de dublagem,
podemos especular que, no caso de uma série de exibição diária, esse prazo não era
bastante longo. Essa restrição pode fazer com que o tradutor, sem tempo para
pesquisar a fundo o significado de certas expressões, acabe preferindo usar algo que,
mesmo não mantendo relação com o original, caiba no contexto e não prejudique a
compreensão geral da obra audiovisual. Os exemplos seguintes poderiam ter sido
influenciados por essa restrição.
Logo no primeiro episódio, por exemplo, temos duas ocorrências desse
tipo de tradução. Em ambas, Caruso, o valentão da escola, se dirige a Chris usando
referências a celebridades negras de maneira pejorativa. Por exemplo, em seu
primeiro dia de aula na escola Corleone, Chris conhece Caruso. Após pisar no pé de
Chris, Caruso o chama de “Bojangles”, numa referência ao famoso sapateador negro
Bill Robinson (1878-1949). A referência é completamente apagada da dublagem,
como se pode constatar abaixo. Perde-se, também, a referência ao sapateado feita
por Chris.
EXEMPLO 32 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 1 (The Pilot) TEMPO: (08:34 - 00:08:43) TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso: Nice shoes, Bojangles. Caruso: Pisante bacana, pixaim!
Chris: Bojangles? That's not what your mother called me when I was tap dancing in her drawers last night.
Chris: Pixaim? Sua mãe não me chamou assim quando eu pisei na cama dela ontem à noite.
No outro caso, no horário do intervalo, Caruso ameaça agredir Chris
depois da aula, e o insulta chamando-o de “Satchmo”. Esse era um dos apelidos do
jazzista americano Loius Armstrong (1901-1971). A dublagem usa um apelido até
mais pejorativo, mas sem nenhuma ligação com o astro da música.
42
EXEMPLO 33 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 1 (The Pilot) TEMPO: 11:47 - 11:51 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso (to Chris): After school, Satchmo.
Caruso (para Chris): Depois da aula, neguinho.
Pelo menos neste segundo caso, o tradutor poderia ter usado o próprio
nome do artista, ao invés do apelido, já que este se tornou mundialmente famoso.
Isso tornaria esta uma tradução do tipo B.
No quarto episódio da primeira temporada (“Everybody Hates
Sausage”), Chris arremessa uma pilha contra Caruso, mas acaba quebrando o vidro
da porta da escola. Quando o diretor chega e pergunta quem fez aquilo, Chris tenta
se esconder, mas todos os alunos em volta apontam para ele. Como narrador, então,
ele se pergunta “onde esse pessoal estava quando atiraram no Tupac?” Ele se referiu
ao rapper americano Tupac Amaru Shakur (1971-1996), que foi assassinado a tiros
em uma rua de Las Vegas, sem que ninguém identificasse os assassinos. Na
dublagem, prefere-se usar uma gíria que significa “delator”.
EXEMPLO 34 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 04 (Everybody Hates Sausage) TEMPO: 09:35 - 09:39 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): Now, where were these guys when Tupac got shot?
(Pô, só tem X9 nessa escola!)
Outra ocorrência em que a tradução não tem nenhuma relação com o
texto original ocorre no quinto episódio (“Everybody Hates Fat Mike”). Caruso, ao
avistar Chris e Greg chegando juntos à escola, chama-os de Tenspeed e Brownshoe,
dupla de detetives formada por um branco e um negro, protagonistas da série de TV
homônima transmitida pela rede ABC em 1980. Como a série é totalmente
desconhecida do público brasileiro, o tradutor eliminou a referência. Pelo menos
nesse caso, julgamos que a manutenção dos termos originais seria menos prejudicial
para o sentido.
EXEMPLO 35 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 05 (Everybody Hates Fat Mike) TEMPO: 16:44 - 16:47 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso: Hey, it's Tenspeed and Brown Shoe.
Caruso: Aí, é o Ligeirinho e o Queimadão.
Duas desses casos ocorrem em uma mesma cena do episódio
“Everybody Hates the Laundromat” (1ª temporada, 8ª episódio), um logo após o
43
outro. Chris avalia o quanto é difícil conseguir uma máquina vaga na lavanderia,
comparando à frequência das turnês da cantora britânica Sade Adu (1959-). A
dublagem prefere fazer referência à dificuldade em se conseguir um ingresso para a
festa do Oscar.
EXEMPLO 36 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 08 (Everybody Hates the Laundromat) TEMPO: 10:24 - 10:40 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): At the Laundromat, empty washing machines come around less than a Sade tour.
Chris (narrador): Na lavanderia, máquina de lavar vazia era mais rara do que ingresso pra festa do Oscar.
Logo em seguida, quando uma máquina fica livre, Chris e uma mulher
correm ao mesmo tempo para tentar usá-la. Como a mulher é mais rápida, o
narrador comenta que ela não fica devendo nada ao Terrell Owens, jogador de
futebol americano conhecido pela sua velocidade. Na tradução, usa-se o personagem
Ligeirinho (“Speedy Gonzales”), personagem de desenho animado da Warner Bros.
EXEMPLO 37 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 08 (Everybody Hates the Laundromat) TEMPO: 10:24 - 10:40 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): Terrell Owens ain't got nothing on her.
O Ligeirinho ia comer poeira!
Ainda na primeira temporada, Chris vai pela primeira vez ao trabalho do
seu pai. Ao chegar lá, ela fica surpreso com a agitação e o barulho do lugar. No
texto original, o narrador diz que se sentiu como um garoto Amish em Las Vegas.
Os Amish fazem parte de um grupo de comunidades cristãs norte-americanas
conhecidas pelo estilo de vida simples e por se recusarem a utilizar tecnologia
moderna (energia elétrica, telefones e automóveis, por exemplo). Em contraste, Las
Vegas é uma cidade famosa pelas ruas agitadas, onde funcionam vários hotéis e
cassinos, com suas fachadas sempre iluminadas e coloridas. O dublador tenta
reproduzir o mesmo efeito trocando Amish por africano tribal.
EXEMPLO 38 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 12 (Everybody Hates the Part-Time Job) TEMPO: 10:40 – 10:42 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): I felt like an Amish kid in Vegas.
Eu me senti um africano da tribo visitando Las Vegas.
Mais uma vez, achamos que o autor subestimou o conhecimento do
telespectador, ou, ao invés disso, negou-lhe a possibilidade de ficar curioso e, assim,
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tentar obter informações sobre os Amish.
Outro exemplo desse tipo de tradução acontece quando o narrador se
refere ao do-rag, uma peça de tecido usada principalmente por afro-americanos para
cobrir o cabelo. Aqui, o tradutor poderia ter usado “bandana”, pois os acessórios são
muito similares. Ao invés disso, optou pelo termo “fraldão”.
EXEMPLO 39 TEMPORADA: 1ª EPISÓDIO: 09 (Everybody Hates Greg) TEMPO: 08:13 – 08:17 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Chris (narrador): I thought I'd see George Bush in a do-rag before Tonya got in trouble.
(Pensei que ia ver o presidente usando fraldão antes de ver a Tonya levar uma bronca.)
Na segunda temporada, o narrador compara Chris e Caruso a duas
gangues rivais, as mais conhecidas dos EUA: Os Crips e os Bloods. Embora a
referência, de fato, pudesse soar incompreensível aos ouvidos brasileiros, o tradutor
poderia ter optado simplesmente por “gangues de rua”, utilizando uma tradução do
tipo C. Entretanto, optou-se por uma comparação bem mais simples, como podemos
conferir na transcrição das falas.
EXEMPLO 40 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates the Buddy System) TEMPO: 03:04 - 03:13 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Mr. Evans: Chris, you and Caruso are going to be buddies. Chris (narrador): Just like the Crips and the Bloods.
— Chris, você e Caruso serão grandes parceiros. — (Igualzinho a cão e gato!)
Aqui, mais uma vez, Caruso utiliza, de maneira pejorativa, uma
referência a uma celebridade negra. Desta vez, ele chama Chris de Bohannon,
referindo-se a Hamilton Bohannon (1942-), músico afro-americano que se destacou
como uma das figuras mais prominentes da disco music americana nos anos 70. A
tradução, contudo, apagou totalmente a referência.
EXEMPLO 41 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 06 (Everybody Hates the Buddy System) TEMPO: 08:48 – 08:52 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Caruso (to Chris): Listen, Bohannon, relax.
— Ah, relaxa, manezão!
Mais uma vez, o episódio que retrata o Dia de Ação de Graças traz uma
passagem domesticada. Ao saber que Julius mandou Chris ao mercado para comprar
macarrão com queijo, Rochelle diz que vai ser tão difícil quanto achar velas no
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Hanucá. Isso porque, neste feriado de origem judaica, acende-se uma vela a cada
dia, por oito dias consecutivos, que podem cair entre o final de novembro e o final
de dezembro. Ao julgar a referência incompreensível para o público brasileiro, o
tradutor simplifica exageradamente a fala da personagem, excluindo do público a
possibilidade de conhecer mais um detalhe da cultura americana.
EXEMPLO 42 TEMPORADA: 2ª EPISÓDIO: 8 (Thanksgiving) TEMPO: 07:51 - 07:57 TIPO: E
ORIGINAL DUBLAGEM
Rochelle (to Julius): You sent Chris to look for macaroni and cheese on Thanksgiving? That's like trying to find candles on Hanukkah!
Rochelle (para Julius): O Chris comprar macarrão com queijo no Dia de Ação de Graças? É o mesmo que procurar uma agulha num palheiro!
Nos 14 episódios assistidos (11 da 1ª temporada e três da segunda),
foram encontradas 42 ocorrências de tradução dignas de análise. A quantidade de
ocorrências para cada tipo de tradução aqui estabelecido foi o seguinte:
Tipo A (manutenção do termo original): 5 ocorrências;
tipo B (substituição por termo mais conhecido em língua inglesa) por: 7
ocorrências;
tipo C (uso de hiperônimos): 16 ocorrências;
tipo D (substituição por correspondente na cultura-alvo): 3 ocorrências;
tipo E (substituição por termo não-relacionado): 11 ocorrências.
Os episódios nos quais encontramos os maiores números de ocorrências
foram:
Episódio 6 da 2ª temporada (The Buddy System): 8 ocorrências, a maioria
delas contendo apelidos que Caruso usa para ofender Chris. Como os dois
passam praticamente todo o episódio juntos, era previsível que os apelidos
preconceituosos (e vinculados à cultura americana) fossem bastante
utilizados;
Episódio 1 da 1ª temporada (The Pilot): 7 ocorrências. Esse número também
é compreensível, pois este é o episódio que apresenta a série e seus
personagens ao público. Tais personagens e a situação em que se encontram
são descritas através de frequentes referências à cultura-fonte;
Episódio 9 da 1ª temporada (Food Stamps): 7 ocorrências. Nesse caso, todas
fazem referência às marcas dos produtos mencionados no início do
episódio;
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Episódio 11 da 1ª temporada (Christmas): 5 ocorrências, todas relacionadas
ao Natal.
Como se pode notar, a situação específica vivida pelos personagens em
cada episódio obriga estes a fazer uso de expressões que, por sua vez, podem
definir o tipo de tradução a ser utilizado com mais frequência.
Finalmente, podemos apresentar os tipos de tradução mais frequentes
através do gráfico abaixo. Fica facilmente perceptível a predominância do tipo C
(uso de hiperônimos) em relação aos demais. Nossa suspeita é de que a facilidade
em se trocar um termo específico por outro mais genérico tenha influenciado uma
utilização tão frequente. No entanto, seria necessário obter informações diretamente
dos responsáveis pela tradução para confirmarmos tal hipótese.
De qualquer maneira, após termos ciência das dificuldades inerentes ao
processo de tradução e, mais especificamente, das minúcias envolvidas no
procedimento de dublagem, consideramos satisfatório o resultado geral obtido. Os
tradutores e dubladores conseguiram retratar, na medida do possível, a cultura-fonte
e, ao mesmo tempo, manter o efeito cômico dos termos e expressões. Na nossa
opinião, o sucesso da série, por si só, reflete também o sucesso da dublagem.
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3. Considerações Finais
Neste trabalho, tivemos como objetivo analisar a dublagem da série de
TV norte-americana “Everybody Hates Chris”. Nossa principal preocupação foi
identificar ocasiões em que as falas dos personagens contivessem referências
específicas à cultura americana. Em tais ocasiões, procuramos verificar que
abordagem foi tomada pelo tradutor em busca de uma solução. Terá o tradutor se
aproximado mais do espectador brasileiro, afastando-se do texto original em inglês?
Ou terá o profissional seguido o caminho inverso?
O que pudemos verificar foi que, na maioria dos casos, houve algum
tipo de domesticação, seja motivada por aspectos linguísticos, seja por aspectos
técnicos. O tradutor preferiu ora utilizar referências conhecidas do espectador, ora
mudar o referente, adotando outro, de identificação considerada mais fácil. Nesses
casos, nem sempre o referente foi relacionado à cultura brasileira, mas um
pertencente à cultura americana/britânica. Exemplos de alterações desse tipo foram
“Birmingham Luther King” ou “Al B. Sure! Beatles”. Em outras ocasiões,
pode-se observar um apagamento da referência do texto de partida e sua
substituição por termos genéricos. Esse foi o caso em “MacDonald’s
lanchonete”, “Florence from ‘The Jeffersons’ doméstica”, “O.J. negão” e “a
DMX concert um show de hip-hop”, entre outros.
Houve ocasiões, contudo, em que as referências não foram apenas
apagadas, mas também substituídas por termos ou expressões que não reservam
qualquer associação com o texto de partida. Esse foi o caso nas seguintes ocasiões:
“Bojangles Pixaim”, “Satchmo neguinho”, “find candles in Hannukah
achar agulha num palheiro”. Nesses casos, temos que considerar a dificuldade em
utilizar as expressões do texto de partida, embora defendamos que alguma outra
solução poderia ter sido encontrada. Será que adotar termos gerais, como nos casos
do parágrafo anterior, não teria sido mais adequado?
Outro exemplo de estratégia domesticadora foi a troca de elementos
culturais americanos por correspondentes da cultura brasileira: “quarterback
running player técnico da seleção na Copa do Mundo”; a troca dos nomes dos
jogadores de basquete (Bobby Jones, Henry Bibby, Dennis Johnson, Kevin
McHale) por famosos jogadores brasileiros (Pelé, Tostão, Toninho Cereso e
Serginho); e a troca do nome de Reggie Jackson (na corruptela “Mezzie Mackson”)
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por Pelé (“Pilé”).
Finalmente, houve exemplos em que o texto de chegada trouxe
elementos completamente diferentes daqueles encontrados no texto de partida.
Nesses casos, temos que considerar a possibilidade de interferência causada pelas
várias restrições impostas a esta modalidade de tradução, como o sincronismo, a
duração das falas e o tempo para se pesquisar os significados dos termos originais.
Podemos concluir, enfim, que a dublagem parece ter a intenção de
facilitar a compreensão por parte do espectador. Porém, na tentativa de retratar a
cultura de partida de maneira mais simples para o público alvo, acaba por esconder
essas referências do público brasileiro, fazendo com que os elementos culturais
estrangeiros não sejam mostrados para o mesmo.
No entanto, como já mencionado nas traduções do tipo E, temos que
lembrar que o processo de dublagem, talvez mais do que qualquer outra modalidade
de tradução, sofre influências de vários profissionais, desde o tradutor, até o técnico
de mixagem, passando pelo roteirista, diretor de dublagem e atores. Portanto,
recomenda-se precaução e bom-senso ao se avaliar uma tradução. Devemos ter em
mente todo o processo, e não apenas o produto final.
Reconhecemos, finalmente, que a dublagem, pelo simples fato de ser
uma modalidade de tradução, já apresenta inúmeros desafios. As escolhas lexicais,
estilísticas e até filosóficas constituem, por si mesmas, grande parte da dificuldade
em se traduzir — sem mencionar a simples necessidade constante de pesquisa.
Além desses, comuns às outras modalidades, outros desafios se apresentam
especificamente à dublagem. Como vimos, o primor pelos aspectos técnicos, a
necessidade da sincronia e uma interpretação convincente sempre serão requisitos
de um bom trabalho de dublagem. Cabe ao tradutor, bem como aos outros “atores”
envolvido nesse processo, estar ciente de suas atribuições e encarar tais desafios
como um estímulo em busca da excelência.
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4. Referências
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Linguistics. Oxford: Oxford University Press, 1965.
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Cláudia Seligmann. Bauru, SP: Edusc, 2007.
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E. J. Brill, 1964.
RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e Diferença. São Paulo: Editora
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VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility: A History of Translation.
Londres: Routledge, 1995.
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MACHADO, Arlindo. Todos os filmes são estrangeiros. In: Revista Matrizes,
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Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos, 2003. Disponível em
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