a televisão é uma forma de vida

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18 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral ENTREVISTA A televisão é uma forma de vida RESUMO Nesta entrevista, Muniz Sodré, um conhecido teórico brasileiro da comunicação, fala sobre a situação do campo de pesquisa de mídia e indústria cultural no Brasil, e apresenta as principais temáticas do seu recente livro Antropológica do espelho. ABSTRACT In this interview, Muniz Sodré, a well-known Brazilian communication researcher, talks about the state of the art in Brazil of studies on the media and the cultural industry. He also talks about his most recent book Antropológica do espelho. PALAVRAS-CHAVE (KEY-WORDS) - Pesquisa (Research) - Comunicação (Communication) - Mídia (Media) UM DOS POUCOS AUTORES que pretende produzir uma reflexão crítico-cultural original sobre a comunicação no Brasil, Muniz Sodré desenvolve importante trabalho nessa linha de pesquisa. É um filósofo e cientista social que trabalha sob uma perspectiva inovadora: a cultura negra em relação à cultura de massa, levando em conta a ideologia. Autor de 21 livros entre ensaios e ficção, Sodré alterna sua produção teórica com trabalhos sobre mídia e indústria cultural e com ensaios sobre a cultura afro-brasileira. Dos seus livros na área da comunicação, destacam-se A comunicação do grotesco (1971), O monopólio da fala (1977), A verdade seduzida (1983), A máquina de narciso e Claros e escuros (1999). Nessa entrevista, o autor fala de sua posição teórica diante das teorias de comunicação, como por exemplo a teoria da recepção. Outro aspecto importante salientado por ele diz respeito à temática de o monopólio da fala, a separação radical entre falante e ouvinte. Para quebrar a forma instituída pela mídia, Sodré defende a política de promover a ambivalência no circuito comunicacional. O autor concedeu essa entrevista por telefone, de sua residência no Rio de Janeiro, em junho deste ano. Ele concluiu há pouco uma obra sobre teoria da comunicação: Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. O livro deve ser publicado até o final do ano, pela editora Vozes. RF – Como o senhor avalia os estudos em comunicação no Brasil? Muniz Sodré – A comunicação no Brasil está começando a constituir um campo próprio. Até agora, os estudos em comunicação têm sido muito dependentes de pesquisas estrangeiras. A prova disso Muniz Sodré Prof. Dr. da UFRJ

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Entrevista com Muniz Sodré

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  • 18 Revista FAMECOS Porto Alegre n 16 dezembro 2001 quadrimestral 19Revista FAMECOS Porto Alegre n 16 dezembro 2001 quadrimestral

    ENTREVISTA

    A televiso uma forma de vidaRESUMONesta entrevista, Muniz Sodr, um conhecido terico bra si lei ro da co mu ni ca o, fala so bre a situao do cam po de pes qui sa de mdia e in ds tria cultural no Bra sil, e apre sen ta as prin ci pais temticas do seu recente livro An tro po l gi ca do es pe lho.

    ABSTRACTIn this interview, Muniz Sodr, a well-known Brazilian communication researcher, talks about the state of the art in Brazil of studies on the media and the cultural industry. He also talks about his most recent book Antropolgica do espelho.

    PALAVRAS-CHAVE (KEY-WORDS)- Pesquisa (Research)- Comunicao (Communication)- Mdia (Media)

    UM DOS POUCOS AUTORES que pretende pro du zir uma reflexo crtico-cultural original sobre a comunicao no Brasil, Muniz So dr desenvolve importante trabalho nessa linha de pesquisa. um lsofo e cientista social que trabalha sob uma perspectiva ino va do ra: a cultura negra em relao cul tu ra de massa, levando em conta a ide o lo gia. Autor de 21 livros entre ensaios e c o, Sodr alterna sua produo terica com tra ba lhos sobre mdia e indstria cul tu ral e com ensaios sobre a cultura afro-brasileira. Dos seus livros na rea da co mu ni ca o, des ta cam-se A comunicao do gro tes co (1971), O monoplio da fala (1977), A ver da de seduzida (1983), A mquina de narciso e Claros e escuros (1999). Nessa entrevista, o autor fala de sua po si o terica diante das teorias de co mu ni ca o, como por exemplo a teoria da re cep o. Outro aspecto importante sa li en ta do por ele diz respeito temtica de o mo no p lio da fala, a separao radical entre fa lan te e ouvinte. Para quebrar a forma ins ti tu da pela mdia, Sodr defende a poltica de promover a ambivalncia no circuito co mu ni ca ci o nal. O autor concedeu essa entrevista por te le fo ne, de sua residncia no Rio de Ja nei ro, em junho deste ano. Ele concluiu h pou co uma obra sobre teoria da co mu ni ca o: Antropolgica do espelho: uma teoria da co mu ni ca o linear e em rede. O livro deve ser publicado at o nal do ano, pela edi to ra Vozes.

    RF Como o senhor avalia os estudos em comunicao no Brasil?

    Muniz Sodr A comunicao no Brasil est comeando a constituir um campo pr prio. At agora, os estudos em co mu ni ca o tm sido muito dependentes de pes qui sas estrangeiras. A prova disso

    Muniz SodrProf. Dr. da UFRJ

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    que nor mal men te nos trabalhos que se fazem aqui no Brasil h pouqussimas citaes de autores nacionais. Voc pega os trabalhos apresentados na Comps, na Intercom, muito raro voc ter autores brasileiros. E autores latino-americanos quase nenhum. E uma pesquisa de pouco tempo atrs, se no me engano realizada pela Unesco, mos trou que um dos autores de co mu ni ca o mais citados no mundo inteiro o Pla to, depois Aristteles. Mas voc nota que um campo amadurece, um campo cresce, quando as citaes, as referncias, as bases so dadas pela prpria lngua em que se produz, em que se trabalha. Eu acho que isso pode comear a mudar, porque j se constituiu uma certa massa crtica. E ao mes mo tempo h uma saturao da forma de re exo vinda do exterior, da Frana, dos Estados Unidos. Eu acho que a partir dessa proliferao das escolas de co mu ni ca o no Brasil pode surgir uma coisa pr pria, o que at agora no surgiu.

    RF Em Reinventando a cultura, o senhor faz uma anlise sobre as teorias de co mu ni ca o no mundo. Gostaria que co men tas se a respeito de sua crtica teoria da recepo, vista pelo senhor como uma pes qui sa ide a lis ta, onde tudo comunicao.

    Sodr A pesquisa de recepo foi in tro du zi da pelo grupo dos Estudos culturais. Mas, quarenta anos antes, uma pes qui sa do ra in gle sa, chamada Himmelwart, j acha va in su fi ci en te as pes qui sas de efeito de Stuart Hall, um dos nomes prin ci pais da que le gru po. Ela pesquisava com cri an as, mas no o que a televiso fa zia a elas. E sim o que as cri an as faziam com a televiso. Por tan to, no ab so lu ta men te nova a teoria da re cep o. Apenas ela tem o mrito de mos trar que os efeitos da te le vi so no so aqui lo que a prpria te le vi so pensa. Que h efeitos he te ro g ne os, di fe ren tes. Quer di zer, os mo dos de apro pri a o

    da men sa gem te le vi si va so di fe ren tes daquilo que a prpria te le vi so pensa. Acon te ce, no en tan to, que esse g ne ro de pesquisa tem como pres su pos to que a te le vi so um apa re lho trans mis sor de con te dos. Ora, em primeiro lu gar a te le vi so no um ve cu lo trans mis sor de con te dos. A televiso uma am bi n cia, multissensorial. A te le vi so no se di ri ge men te das pes so as. Ela se dirige ao corpo do in di v duo. O jornal se dirige mente. A rdio se di ri ge men te. A televiso, po rm, efe ti va men te ajuda mais a compor o am bi en te, aju da a fazer o que eu chamo de bios-me di ti co. Por qu? Por que a televiso cria um ambiente si mu la ti vo. Ela cria uma ou tra re a li da de e am plia sua prpria re a li da de, onde o in di v duo imerge. Ento no ape nas a questo do efeito de contedo que est em jogo. O que est em jogo ali uma administrao do tempo do sujeito, ad mi nis tra o das cons ci n ci as, a criao de uma vida vicria, substitutiva. Por isso eu no creio que a metodologia da teoria da recepo, ava li an do falas por meio da an li se de discurso, d conta dessa pro ble m ti ca. A teoria da recepo entende a te le vi so, entende me dium como se fosse jornal, rdio. um en ten di men to antigo, das d ca das de 30 e 40. Na televiso, porm, no se trata apenas de enunciados de discursos. S e trata, sim, de envolvimento mul tis sen so ri al. Minha cr ti ca ento teoria da re cep o que ela des co nhe ce o fato de que a televiso no um veculo transmissor de contedos. Para es tu dar a recepo efe ti va seria necessrio montar mtodos, re cur sos ao mesmo tem po tteis, corporais, para ver o que efe ti va men te acontece. E, mesmo as sim, essa pes qui sa me parece mui to tau to l gi ca. Est co la da demais ao prprio po der, prpria hegemonia da te le vi so. No que isso re sul ta? V se no a con rmao do mesmo pelo mesmo? Se no a con fir ma o do cir cui to co mu ni ca ci o nal? Qual a utilidade real na ve ri ca o dessa re cep o? Eu te nho

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    minhas d vi das com relao a isso.

    RF Por isso faz sentido, por exemplo, sua anlise sobre a concorrncia pedaggica. A questo da publicidade, por exemplo. Ou seja, no espao social organizado da fa m lia, a soberania do pai estaria dividida com a presena da televiso em casa. A criana no teria mais unicamente o pai como rival na disputa pelo sexo da me. Ainda per ti nen te essa anlise?

    Sodr Claro que muito pertinente. Ser que essa forma de vida, bios-meditico, subs ti tui a realidade tradicional? Ou ela amplia a realidade tradicional? Sem dvida ne nhu ma, ela uma ampliao, uma re a li da de que se agrega a outra. Mas a vocao dessa outra realidade am pli a da de con cor rer com a realidade tra di ci o nal em nome do mercado. Em nome da ressubjetivao das pessoas para torn-las melhores con su mi do ras, melhores su jei tos adequados ao mercado. Nessa res sub je ti va o, nessa con cor rn cia, a te le vi so assume um lugar de pai e me po de ro sos. Voc v que todas as funes da gran de publicidade, das mul ti na ci o nais, no para vender coisa ne nhu ma! Se vende mas na publicidade de va re jo. Quando uma companhia dessas anun cia pe tr leo ou ga so li na na grande pu bli ci da de, notamos que algo desnecessrio para o consumidor. Se voc tem carro, no pre ci sa de propaganda para comprar ga so li na. Ento essa pu bli ci da de existe porque um pouco como a me. Baudrillard falou nisso. A me pas san do a mo na cabea da cri an a: Olha, meu lho, eu estou aqui com voc. Sinta-se seguro. A publicidade tem uma funo de envolvimento sensorial, pa ter na li za o, de garantir ao sujeito de que alguma coisa no nvel macro, no nvel do consumo, est ve lan do por ele. E ao mes mo tempo est re ve lan do a onipotncia, o poder da em pre sa. Essa realidade mul tis sen so ri al po de ro sa. Concorre com as gu ras que tra di ci o nal men te exerciam poder sobre a

    cons ci n cia do sujeito, que era pai e me. A mdia tambm concorre sem d vi da ne nhu ma com a escola. Desde que o ho mem ho mem ele se relaciona com o ex te ri or atra vs de mediaes. Cada mediao dessas, a es co la, a famlia, como se fosse uma es fe ra com suas regras prprias. A lin gua gem tam bm, que a grande me di a do ra uni ver sal. Essas esferas domesticam o ho mem, dei xam o homem em casa. Hei de gger, por exemplo, diz que a linguagem a morada do ser. Cada esfera dessas uma morada do homem. A mdia, por sua vez, tam bm uma esfera. Ela no apenas ve cu lo, porque uma ambincia. uma es fe ra que pretende ser mais envolvente do que as ou tras. Pretenses de hegemonia, de trans for ma o. A educao uma esfera que est na base de toda a tica e vice-ver sa. No h educao sem tica e nem a tica sem a edu ca o. Ns nos educamos para a tica a partir dos princpios fundadores da so ci e da de. No entanto, na mdia a tica, os va lo res, as normas so comerciais. A mdia tem uma moralidade mercantil, mo ra li da de de vendedor, de comerciante.

    RF Qual seria a sua posio nas pes qui sas em comunicao?

    Sodr Eu no sou exatamente um pes qui sa dor no sentido clssico da expresso, por que as pesquisas em comunicao so um pouco a pesquisa de campo. Eu sou um ensasta, que tem a cultura como ob je to, tanto em sua forma industrial (a cultura do mass media) quanto a cultura nacional, na forma da cultura negra. A comunicao me interessa primeiro como um campo novo, relativo ao discurso das cincias sociais, e como objeto de re exo sobre a linguagem e sobre o relacionamento humano. Ento me coloco como um ensasta, debruado so bre a comunicao e a cultura.

    RF O sistema da televiso um dos te mas que mais d estudos para trabalhar

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    essa pro ble m ti ca da cultura de massa em re la o cultura tradicional. O senhor, ini ci al men te, partiu de uma anlise estrutural do seu cdigo, na dcada de 70, para che gar a uma anlise que privilegia esse mo vi men to de incluso e excluso da cultura ne gra na dimenso da organizao te ler re a lis ta. Ao afirmar que a mdia racista, por exem plo, percebemos o quanto im por tan te na sua obra a problemtica do mo no p lio da fala. O senhor a rma que o ver da dei ro ato po l ti co aquele capaz de que brar a forma ins ti tu da pelo mdium. Po de ria falar mais um pouco sobre isso?

    Sodr No universo da representao tra di ci o nal, a representao ainda tem uma li ga o com o referente colocado no real his t ri co, cujo discurso crtico era voltado para o primeiro plano. Tanto o livro como a im pren sa escrita so preos do pen sa men to crtico e da razo argumentativa. Com a chegada do audiovisual, rdio, ci ne ma, televiso, agora a internet, cons truiu-se um campo onde a representao no mais do mesmo tipo da re pre sen ta o tra di ci o nal, ou seja, do universo da es cri ta. Agora a representao apre sen ta ti va. Isso significa que o mundo e o seu u xo esto vin cu la dos e esto como que qua se presentes den tro de nossos olhos. A di men so crtica e a dimenso argumentativa desaparecem, en fra que cem nessa nova cons te la o da re pre sen ta o apresentativa. Ento j no h mais tantas exigncias his t ri cas da crtica quanto havia no pas sa do. Nem a ar gu men ta o domina o pri mei ro pla no. Es ta mos ago ra no regime daquilo que E. Vern cha mou de indicirio. A so ci a li za o com ges tos, nas exes, nos sinais. Tudo isso que compe o universo oral e que vem para a mdia eletrnica. No in di ci rio, no h li ne a ri da de discursiva, no h ar gu men ta o, no h princpio nem fim. H, sim, a es t ti ca das aparncias. Isso tudo incompatvel com o que ns en ten de mos como discurso crtico, como ar gu men ta o.

    A televiso en tra a. Entra nesse regime de visibilidade pblica, pontuada pelo in di ci rio. A te le vi so o grande m dium in di ci rio. Ela no precisa, no aposta na ar gu men ta o cr ti ca, no aposta nos con te dos, porque uma ambincia, uma forma de interao que como que cobre o social, ou tenta co brir grande parte do so ci al. A te le vi so uma forma de vida prpria. Te le vi so o suporte tcnico, mais o mer ca do e o ca pi ta lis mo transnacional. Essa for ma a pr pria ideologia da televiso. A ide o lo gia no est no que ela diz, no est nos con te dos, mas nessa forma capitalista mer ca do l gi ca que os contedos assumem. Por tan to, o es sen ci al da televiso a ma nei ra como ela organiza e como se or ga ni za. O essencial dela o cdigo, a sua pr pria for ma, essa aderncia sensorial a que ela con vi da as pes so as. Ora, sendo por tan to pri o ri ta ri a men te forma, sendo sen so ri a li da de, sen do esttica, os contedos so mi ni mi za dos, como que exterminados, so li qui da dos pela pregnncia desse envelope, desse in v lu cro que a televiso, o que tende a crescer com a internet. Quando McLuhan diz que o meio a mensagem, ele quer dizer exatamente isso. Que a men sa gem, portanto o contedo, est sub su mi do ao meio, forma. O que importa esse es prai a men to sen so ri al esttico da mdia, es prai an do a vida da gente, fazendo que a gente habite, more den tro dessa prtese cha ma da m dium. En to o verdadeiro ato poltico para quebrar essa forma do mdium seria o de con tra ba lan ar o poder dessa for ma por uma outra forma. Ns, socialmente, vi ve mos no in te ri or de formas, no interior de esferas me di a do ras. Ento, quais so as for mas da mo der ni da de? A democracia uma delas. Se gun do a escola. A famlia mo no g mi ca, nuclear, outra forma da mo der ni da de. As instituies normalmente so for mas me di a do ras. Portanto, con tra ba lan ar o poder da mdia investir na edu ca o, na tica, nas mediaes. Gramsci cha ma va isso de oci den ta li za o

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    da so ci e da de. Quer di zer, for ta le ci men to das ins ti tui es que cons ti tu em a sociedade civil. Ora, quan do a mdia aumenta o poder da sua pr pria forma sobre as outras formas tra di ci o nais, ela como que provoca, ela de sa a a so ci e da de a responder. Olha, eu sou real. Minha realidade est aqui. Porque a mdia est di zen do o tempo inteiro que a re a li da de ela. Ento, ela desa a as outras for mas, a famlia, os sindicatos, a escola, as ins ti tui es a gritarem sua prpria re a li da de. Por tan to, a verdadeira interveno po l ti ca na mdia a interveno que se faz com uma outra forma forte, que con tra ba lan a o po der dela.

    RF O senhor consideraria a temtica de O monoplio da fala de carter estratgico na sua obra?

    Sodr - Apesar da mdia ter mudado muito depois daquele ano em que foi publicado O monoplio da fala, em 1977, eu considero esse livro bastante atual. Porque esse texto no mudou com a interatividade tcnica. O monoplio de produo de discurso con ti nua na mo das grandes corporaes, das multinacionais. Apenas reabre a pos si bi li da de do sujeito dar uma resposta tcnica, atravs da multiplicidade de canais. Mas uma resposta nos termos do mercado em que a tecnologia decidem d pra voc. No um verdadeiro dilogo. Ento eu acho que o texto do monoplio da fala es tra t gi co sim.

    RF O senhor tambm no acharia um re du ci o nis mo epistemolgico privilegiar a te m ti ca de o monoplio da fala para es tu dar a comunicao?

    Sodr Eu acho que a comunicao no apenas mdia. Quando z esse livro, estava preocupado s com mdia. Eu estava pen san do apenas um dos aspectos do estudo da comunicao, que a veiculao me di ti ca. Mas a comunicao, sem dvida, diz respeito verdade dos relacionamentos

    en tre os indivduos. Portanto, do ponto de vis ta epistemolgico, eu realmente reduzi a o estudo da comunicao com a questo da mdia, da televiso. uma reduo do campo comunicacional, numa atitude de re e xo sobre o anti-humanismo da te le vi so. O que na verdade sempre est por trs pensar a humanidade no homem hu ma no, o que signi ca pensar a riqueza de sua existncia. Em Heidegger, pensar a aber tu ra do ente, do existente, para o ser, das possibilidades que tem de he te ro ge nei da de, diversidade, de explorao da di fe ren a. O que me chamou a ateno naquele momento era a reduo da cultura, do es p ri to pblico, da experincia humana a essa coisa chamada televiso, chamada mdia. Portanto, eu fui reducionista porque estava na verdade preocupado com o re du ci o nis mo que operava sobre a cultura. E acho que no me equivoquei. A televiso na ver da de, principalmente a Globo aqui no Bra sil, invadiu por inteiro a cultura, com um imenso poder na vida pblica. Molda e con di ci o na campanhas polticas. Nada dis so, depois de vinte anos do lan a men to de O monoplio da fala, mudou. E ago ra, junta-se a isso a internet, a te le vi so a cabo. A minha tese do monoplio da fala, do ca r ter redutor da mdia no espao cul tu ral, s se v con rmar.

    RF Em Samba, o dono do corpo, o senhor d continuidade a essa problemtica do mo no p lio da fala, o que tambm notamos em livros como A mquina de narciso, O social irradiado. Mas no Samba, o dono do corpo a gente percebe mais claramente a sua an li se a respeito das estratgias de re sis tn cia da cultura negra para evitar a trans for ma o ou a destruio da ex pres so artstica. Resistncias estas que no ta mos, por exem plo, nas rodas de samba, na prtica ri tu a ls ti ca do terreiro. Qual seria ento a sua ex pec ta ti va em relao so bre vi vn cia destas prticas comunitrias di an te dessa forma mediadora

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    dominante, que o senhor a rma em sua obra como des po li ti zan te, ho mo ge nei zan te, tecnonarcisista?

    Sodr Olha, no se trata de so bre vi vn cia. A sobrevivncia de certo modo a idia do resto, a idia do moribundo, que continua a viver apesar de sua doena, ape sar de ser ferido de morte. Na verdade, a cultura po pu lar, colocada no espao da ci da de, con vi ve com a cultura industrial por que ainda responde a exigncias profundas da psique coletiva, que a exigncia da fes ta. A festa a maneira como a sociedade, como grupo social, pe em jogo a sua pr pria iden ti da de. A festa, a mobilizao em termo de es pe t cu lo, a maneira da so ci e da de ter sua cara no espelho. O que eu va lho, como que eu sig ni fi co. A sociedade a ento pode brincar com sua identidade. Pode inverter papis. Pode, como no car na val, botar a ordem de cabea para baixo. A cultura popular res pon de a exigncia de fes ta com par ti ci pa o do povo. O que acon te ce que a mdia, que foi pro gres si va men te assumindo as fun es dessa festa, propicia apenas a par ti ci pa o cerebral, ape nas visual. As pes so as cam sentadas, ou em torno da te le vi so, do rdio, do ci ne ma, da internet. As pessoas participam sem corpo. s olho e crebro. A mesma re la o que se ti nha com o livro. No livro no tinha festa. A festa pas sou para o rdio, ci ne ma e de pois para a televiso. Ento a exi gn cia po pu lar, mas festa com par ti ci pa o. Por tan to eu acho que essas culturas po pu la res, tanto do pon to de vista ldico como re li gi o so, ainda ofe re cem opor tu ni da de do cor po in te grar-se como mo vi men to na festa. O cor po est dentro da festa. Enquanto que a m dia corta o corpo. A m dia o chamado corpo sem rgos. A m dia um corpo inerte.

    RF Como surgiu a idia de trabalhar o mito de narciso relacionando-o ao sistema da televiso?

    Sodr Eu sempre trabalhei muito perto dos psicanalistas. No s z muitos anos de anlise, como tambm sempre dei aulas em institutos de psicanlise, conferncias, principalmente com os escritos culturais de Freud. Isso uma coisa que no aparece mui to nos primeiros livros porque escrevo pou co sobre isso. Mas a verdade que sou um leitor entusiasmado de Freud. E gosto da psicanlise tambm, mas como teoria. S no me agrada o perodo lacaniano, que uma encheo de saco gigantesca. Mas Freud apaixonante. Foi ento a partir de minhas leituras psicanalticas que eu me in te res sei pela questo do narcisismo.

    RF Na poca do lanamento de seu livro A mquina de narciso era uma novidade essa idia de trabalhar o narcisismo em re la o tev?

    Sodr Eu tenho a impresso que aqui no Bra sil fui eu quem falou isso pela pri mei ra vez. E a idia no do narcisismo psi ca na l ti co. Eu no chamo assim. Trata-se de um narcisismo secundrio, que re a pro vei ta do pelo estrategista de consumo para fazer um culto ao eu. Eu havia lido o livro A cultura do narcisismo, de Chris to pher Lasch. A questo estava nos Estados Unidos. Depois de eu fazer A mquina de nar ci so, ele, se no me engano, lanou O m ni mo eu. um livro que aprofunda essa li nha, desse eu voltado para si mesmo, para ali sar a si prprio, que o eu nar c si co. S que eu chamei de tecnonarcisismo. Eu lhe digo que no tirei de ningum. O pr prio Bau dri llard no usa essa categoria. Quem est mais prximo disso mesmo Christopher Lasch.

    RF - Na sua opinio, essa proposta foi ple na men te trabalhada com sucesso ou ainda sente a necessidade de voltar ao tema?

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    Sodr Eu acho que a televiso, a mdia, constitutiva de subjetividades novas. Na ver da de, ela altera a prpria idia de sub je ti vi da de. Eu sinto que a psicanlise pode ter muito a dizer. No h dvida de que eu gostaria de voltar a esse assunto. Nesse meu prximo livro, chamado Antropolgica do espelho, que deve sair at o nal do ano, tem uma parte sobre a realidade vir tu al em que sou levado a examinar as al te ra es no conceito de subjetividade. Procuro mostrar como a mdia virtual, como a in ter net, como a rede, vem al te ran do a idia de subjetividade humana na fun o de sua sub je ti vi da de mais relacional, ou seja, me nos para dentro e mais para fora. Menos re exiva e mais epidrmica, mais sensorial, que como as pessoas se dispem nos con ta tos de rede mas tambm nos contatos me di ti cos. O sujeito deixa de ser in te ri o ri za do para ser mais relacional. Isso eu de sen vol vo nesse meu livro A an tro po l gi ca do es pe lho, em um dos captulos.

    RF Ento, fale um pouco sobre essa obra?

    Sodr Esse livro resume e amplia mi nhas posies sobre a mdia at agora. E ao mes mo tempo tem uma coisa que re al men te muito original. Que uma teoria da co mu ni ca o prpria. A teoria do bios-me di ti co. Eu parto de Aristteles, da tica de Ni c ma co. Aristteles fala de trs bios, que forma de vida. A forma de vida do co nhe ci men to, a forma de vida da poltica e a for ma de vida dos prazeres. A esses trs bios, trs bios que organizam a vida humana na cidade, vida humana sociabilizada, eu me dei con ta de que existe um quarto bios hoje, tra zi do pelo mercado, pelo ca pi ta lis mo trans na ci o nal, que o bios-virtual, ou bios-me di ti co. Isso signi ca uma outra es fe ra da exis tn cia, uma outra forma de vida. Ento, um pou co que relativizo, co lo co em suspeita todas as aplicaes que as

    cincias sociais faziam at agora sobre a m dia, por que elas tratavam a mdia como se fosse uma re a li da de no mesmo nvel do que as outras. To dos esses estudos da so ci o lo gia, da psi co lo gia, da antropologia fo ram in ca pa zes de revelar a natureza da m dia por que a tra tam como se fosse uma re a li da de ancorada na representao tra di ci o nal. Nes se meu li vro mostro tambm a ques to dos efeitos. Voc no pode ter re la o de causa e efeito entre a mdia e a so ci e da de em que ns vivemos. Porque so re a li da des, mo dos de vida de natureza di fe ren te. No pon to de interseco direta. Vou ento cri ti car as te o ri as dos efeitos, in clu si ve a te o ria do agenda setting, pra mostrar como que esse agen da men to se d. Vou tambm, a partir da, mostrar sadas, al ter na ti vas, como por exem plo a sada edu ca ci o nal. Mos trar no que a educao difere fun da men tal men te da mdia. Vou mostrar como a mdia feita de moral. A mdia uma moralidade. Ao con tr rio do que se pensa, a mdia no imo ral. Pode ser imo ral do ponto de vista do con te do. O ter ri t rio da mdia um ter ri t rio de ethos, de um ter ri t rio de mo ra li da de. Uma mo ra li da de de comerciante, que sur ge a partir dos cos tu mes, dos h bi tos, que onde a mdia efe ti va men te se po si ci o na. A partir da que eu vou fazer uma distino entre discurso edu ca ci o nal e dis cur so for ma ti vo, que a mdia. Depois, vou mostrar as al te ra es que a m dia, com a internet, produz sobre a sub je ti vi da de. Vou fazer isso mos tran do o que a re a li da de virtual. Vou con cluir que a mdia um novo tipo de conscincia. Com a re a li da de virtual, uma cons ci n cia que ex te ri o ri za, uma cons ci n cia ma qu ni ca, in te ri o ri za da. Pra chegar fi nal men te a di zer o que a ti ca e como que a mdia poderia se ar ti cu lar com a ti ca. E expor uma me to do lo gia co mu ni ca ci o nal. So cin co partes onde ex po nho isso. Por tan to, eu exponho as bases de uma te o ria da

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    co mu ni ca o.

    RF E qual a sua expectativa desse seu trabalho?

    Sodr Nenhuma. Eu no espero nada. As pes so as no universo da academia co me am a prestar ateno nas coisas que voc diz s depois de muito tempo. Voc presta aten o imediata ao francs, ao alemo. O bra si lei ro, ao tentar pensar de modo pr prio, di cilmente prestam ateno nele. Voc paga um preo ao tentar pensar so zi nho. Sou muito isolado. Mas no me quei xo, no. Eu acho que te nho uma relativa notoriedade. Acho que esse livro vai ter que de algum modo cir cu lar. Como os ou tros lentamente circulam nas escolas de co mu ni ca o. Eu no fao grande expectativa. simplesmente uma coisa que eu tinha de fazer. Esse meu livro Antropolgica do es pe lho, sem dvida ne nhu ma, uma posio original. Essa teoria no vem de ningum. Com cer te za absoluta. No nada se me lhan te a Bau dri llard. Espero que pelo me nos as pessoas reconheam isso e dis cu tam. Eu quero que as pessoas cri ti quem. Quan do eu z A m qui na de narciso, hou ve uma crtica na re vis ta do Sebrape, de um cara que hoje no me recordo o nome. Ele fez de dez a doze p gi nas de crtica muito bem-feitas. Discutiu so ci o lo gi ca men te o con cei to de or ga ni za o. Mas eu no sei mais onde que tenho isso. Eu espero que quando sair esse livro as pessoas le van tem ques tes, objetem. A teoria pro gri de a par tir da crtica.

    RF E quais foram os autores que tiveram uma influncia importante nesse livro An tro po l gi ca do espelho?

    Sodr Aristteles, sem dvida ne nhu ma. A tica de Aristteles. Outro autor Kant, com a razo prtica, fundamentos da me ta f si ca do distrbio. O resto leitura ins tru men tal. Mas do ponto de vista de

    em ba sa men to terico, foram Aristteles e Kant.

    RF Nesse sentido, McLuhan tambm no seria um referencial terico importante na sua teoria da comunicao? O senhor no seu texto dialoga com ele para fun da men tar, por exemplo, seu conceito de televiso. O que vocs tm em comum o fato de privilegiar o estudo do meio para gerar co nhe ci men to sobre a mdia. Fale um pouco sobre isso.

    Sodr O McLuhan v os meios de co mu ni ca o como extenses tecnolgicas do ho mem. O que acontece que a televiso tem que ser vista do exterior do mo vi men to da civilizao contempornea para a ci ber n ti ca. Eu acho que o McLuhan, embora no men ci o nas se a palavra ciberntica, pen sou den tro da ciberntica. A ciberntica est jun to com outra transformao fun da men tal da sociedade contempornea que a bi o lo gia. Tanto a ciberntica como a bi o lo gia, ou a tecnobiologia, se colocam sob o n gu lo da teoria dos organismos e da te o ria dos sis te mas. Ento com a ciberntica, a bi o lo gia, com a fsica contempornea, com aqui lo que Hegel chamava de esprito, o es p ri to objetivo, entendido como a cul tu ra. Mas a cultura feita de artifcios, de m qui nas, de artefatos. Esse esprito ob je ti vo se trans for ma em informao. O prin c pio con tem po r neo da co mu ni ca o resulta de uma trans for ma o do es p ri to objetivo. Uma trans for ma o da his t ria ma te ri a li za da. En to a informao uma espcie de valor entre o esprito, que d a pos si bi li da de de re exo, e as coisas, os objetos. Voc tinha na metafsica clssica esprito e ma t ria, re e xo e coisa, os ob je tos. Voc tem con tem po ra ne a men te es p ri to, in for ma o e ma t ria. Ento as m qui nas in te li gen tes, da mes ma maneira que os ar te fa tos da cul tu ra em geral, foram o pen sa men to a re co nhe cer o fato

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    de que o es p ri to, a re exo, aca bou se in ltrando, se co lo can do nas coi sas, nos objetos. Hoje, o pen sa men to em si mes mo, a conscincia, se ob je ti va nas m qui nas, nos objetos. A m qui na ento no um simples instrumento. N s fazemos as mquinas. Mas as m qui nas uma vez ga nhan do uma autonomia de trabalho com re la o ao homem, quan do se au to ma ti zam, elas passam a colocar pro ble mas, a pro ces sar juzos que j no de pen dem mais tanto do ponto de partida, do output ori gi nal humano. As mquinas, os meios de co mu ni ca o, so memrias ou so reflexes que se objetivaram, que se tor na ram ob je ti va das. No h um novo tipo a de on to lo gia. Com os meios de co mu ni ca o o que est em jogo a possibilidade de con so li da o das mquinas, dos ins tru men tos, como uma realidade prpria, ob je ti va. Quando se diz que existe a so ci e da de da informao, voc ao mesmo tem po diz que existe uma sociedade go ver na da por sis te mas, por memrias fora do ho mem como culturas ligadas a uma in te li gn cia ar ti ci al. E essa objetividade, que est fora da cons te la o da relao entre ho mem e mun do, uma forma envolvente. isso que eu chamo de bios-virtual, cuja va ri an te o bios-meditico, e que McLuhan cha ma va de for ma, chamava de meio. Ento di zer que o meio a mensagem indicar que a questo da m dia est ligada questo da civilizao con tem po r nea, que a questo da ob je ti va o do esprito por sistemas, por formas, por mquinas, que em certa me di da se au to no mi zam com relao ao pen sa men to hu ma no. nesse ponto a que eu acho que a frmula do McLuhan uma grande fr mu la de pensamento. Em ltima anlise, na informao, os con te dos, os signi cados s importam na me di da em que se adap tam forma. Por exem plo: a propaganda de que os Estados Uni dos so o melhor pas do mundo. Esse tipo de contedo s sig ni fi ca ti vo na medida em que junto com tudo isso vem o mercado, vem uma forma abs tra ta com

    relao re a li da de concreta das pes so as. O que importa mesmo essa for ma, esse mundo novo que se cria, essa am bi n cia, onde ns vivemos no interior de sis te mas. Ento preciso en ten der o meio com isso, com esse envalvointe, o mundo em tor no tec no l gi co, mer ca do l gi co. O meio esse em torno. No sim ples men te o apa re lho de televiso. esse em torno a nado com o sistema televisivo. A minha idia do bios-virtual essa e sem d vi da nenhuma parte dela est li ga da idia mcluhiana do meio a mensagem. McLuhan partiu de pen sa do res anteriores. Um deles o padre Tei lhart Te Shartin. Tudo que McLuhan disse, o padre Shartin disse melhor antes dele. o grande pen sa dor da tcnica, o grande cos m lo go da tc ni ca antes de McLuhan.

    RF O McLuhan era um otimista em re la o a essa tecnologia. Mas o senhor tem ou tra posio.

    Sodr Minha posio de um pes si mis mo ativo. Diferente de um otimismo um pou co delirante, festivo. Eu no espero nada do real tal como se apresenta. Mas tambm no espero nada do passado. O pro gres so tcnico corresponde ao mo vi men to do modo de produo capitalista e no la men to isso, no. Eu apenas no vejo isso como a chegada do paraso na Terra. A mdia uma compresso das pos si bi li da des de abertura cultural. Mas isso no sig ni ca de minha parte nenhuma his te ria anti-tecnolgica. Essa histeria re a ci o n ria, porque exprime um certo res sen ti men to da alma, da natureza contra o que o prprio homem produz que a tcnica. Mas existe, claro, o temor de que a aber tu ra humana se reduza pelo capital em sua expanso ili mi ta da. E no h dvida que os ins tru men tos da comunicao so ins tru men tos do ca pi tal. Meu pessimismo apa re ce diante da pro pa gan da que v isso como voltado para a fe li ci da de, para o bem humano. Eu no acho que se trata disso. Acho que isso

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    ape nas acompanha a lgica do movimento do modo de produo ca pi ta lis ta. Eu no es pe ro nada, mas ao mesmo tempo eu acom pa nho ativamente esse mo vi men to ca pi ta lis ta.

    RF A exemplo de Renato Ortiz, entre ou tros, poderamos a rmar que o senhor um autor que tambm produz co nhe ci men to original?

    Sodr No poderia fazer um juzo des ses so bre mim mesmo. S os outros podem afir mar. Sem dvida nenhuma, eu tento in cluir a forma negra de pensar e a forma po pu lar de pensar na minha reflexo aca d mi ca, eru di ta. Eu vejo o eruditismo do povo. Na arte popular h tambm a pre sen a do eru di to, a presena do complexo e h tambm pensamento. Esse pensamento pode estar na cano do Lupicnio, no sam ba de Noel, na composio de Caetano Ve lo so, Chico Buarque. Pode tambm estar no maracatu, no futebol. O pensamento para mim no o exer c cio da pura razo ar gu men ta ti va em ba ses aca d mi cas. O pen sa men to da verdade um fazer-mundo. fa zer o mundo acon te cer. deixar que as coi sas aconteam. Esse deixar que as coisas acon te am estar no mundo. fazer-mun do. Para mim, en to, todo o pen sa men to com interesse lo s co um pensamento vira-mundo. Ou seja, ele quer produzir acon te ci men to, que um rom pi men to do que est dado. Um acon te ci men to que avan a rom pen do coi sas. Voc avan a no mundo como um vira-mundo. Minha ma nei ra de pensar uma maneira viradora. No consigo sem pre isso. Eu no sou stricto sensu an tro p lo go nem socilogo, mas o que se chamava an ti ga men te de livre pen sa dor. S que es tou comprometido a pen sar a comunicao, a cultura. Ento eu apro vei to os materiais que me caem mo, que me parecem aju dar o pensamento. exatamente assim um pouco que eu

    tra ba lho. Eu fao leitura mais sistemtica de fi lo so fia, que gosto muito. N a verdade, minha grande inspirao sem pre foi Nietzsche. Tem duas metforas dele que gosto muito. a questo do pen sar como uma vaca ru mi nan do. Eu tambm gos to de ruminar as coisas. E depois a ques to do faro. Eu sou capaz de sentir chei ros a distncia. Tenho fenmenos es tra nhos com cheiro. Deve ser minha as cen dn cia indgena. Mas esse meu faro no ape nas fsico. Farejo coisas. Ni et zs che diz as sim: eu sou o primeiro que sen tiu a men ti ra como mentirosa. Nos meus ensaios, isso que voc chamou de ori gi na li da de coisa que eu farejei. Quando estou fazendo um trabalho, os autores vo me ca in do na mo quase que por acaso. Parece que Exu bota. s vezes a idia no ex clu si va men te mi nha, mas procuro uma ma nei ra singular de abord-la. Eu parto dos ou tros, mas eu gos to tambm de ter as minhas idias. Se al gum j falou muito daquela maneira, eu saio de baixo. Eu sou assim. No porque esteja querendo ser original. Mas eu no vou repetir argumentos de mais. Para mim, o mtodo o caminho de pois que voc pas sou por ele. Pearce diz que voc tem que inventar. Ele chama isso de abduo. D e p o i s que voc cria e acha o ca mi nho, da voc fala com mais segurana de seu pr prio mtodo. Mas se o mtodo um ca mi nho prvio, que os outros do para voc, voc vai apenas fazer coisa que a academia reconhece como pertinente, mas que no re ve la nada, no descobre nada. E a funo das cincias sociais ilu mi nar, revelar, es cla re cer para poder ter a crtica e o debate. No tenho nenhuma pre ten so de ori gi na li da de absoluta, porque eu leio os franceses e aproveito coisas dos franceses. Leio os ale mes, aproveito tam bm. Leio os ita li a nos e aproveito. E, quan do possvel, apli co esse conhecimento vida nacional. Se eu tiver alguma ori gi na li da de, a originalidade essa. Eu penso como um crioulo de ter rei ro, como um ne gro nag, mas com a lin gua gem, o jargo acadmico.

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    RF A sua relao do poder panptico de Foucault com a televiso, em O monoplio da fala, foi, sem dvida, uma anlise ori gi nal, uma das pioneiras na academia.

    Sodr Naquela poca, quando foi pu bli ca do o livro, em 1977, era sim uma no vi da de. A televiso um panptico in ver ti do. No o guarda, no centro, olhando para os pri si o nei ros. o contrrio. eu que fico olhan do para algum. O con tro la do quem olha. O panptico a se inverte. Eu es ta va na verdade movido pela idia de Fou cault, o panptico disciplinar. Mas apli can do isso televiso, damos con ta da in ver so. Nada nunca ab so lu ta men te novo. A gente sempre est partindo de uma idia, que reinterpretada e acrescida com outras leituras.

    RF Como surgiu essa questo da cultura negra na sua obra?

    Sodr Eu tenho antecedncia de ndio por parte de me e da parte de pai de negros. Vivencio diversos terreiros e pude ver o que estava se passando ali dentro. Eu per ten o efetivamente quele universo. En to eu procuro forjar minhas categorias, pen sar a partir de dentro desse universo, cujas pes so as na sua maioria no tiveram edu ca o formal no sentido de produzir esse dis cur so acadmico. Eu sou aba-xan g. Aba significa al gum que representa o terreiro em termos de dis cur so. Essa mi nha funo. Vou te dar um exemplo. Um tema que me in te res sa o da alegria. Como podemos ser ale gres? O que isso? O que a lacridade. Experiment-la sem ter que ne ces sa ri a men te pagar preos monetrios por ela. Esse gozo com a vida em si mes mo, a partir da dimenso sim b li ca, isso me interessa. O meu interesse pela cultura negra, pelo ter rei ro, que eu vejo nessa cul tu ra a pos si bi li da de de pen sar coisas des sa ordem. Pen sar a alegria de

    estar vivo. Pensar tambm a questo da vi o ln cia, da catstrofe, da in ve ja do outro, da cru el da de, da per ver si da de, questes que estamos cercados por elas o tempo todo. Eu acho que a civilizao ocidental cris t lida mal com todos esses aspectos. A psi ca n li se, por exemplo, tenta lidar, mas tenta recuperar isso para a ra ci o na li da de e no consegue. Eu gosto de psi ca n li se. Fiz an li se muito tempo. Respeito muito ainda hoje a teoria psicanaltica. Des con o um pou co da prtica.

    RF Em A verdade seduzida, por exem plo, Heidegger foi um suporte terico para fa lar sobre ser e aparente. O senhor v a a im por tn cia da cultura das aparncias no pro ces so de troca simblica, onde falante e ou vin te no esto separados por uma ins tru men ta li za o do real. Heidegger, a, co in ci de ou no com a forma negra de pen sar? Ele teria ajudado voc a trabalhar com a forma de pensar do negro? Fale um pou co dos aspectos da cultura ocidental que con ver gem com a forma negra de pensar.

    SODR Eu acho que dentro da cultura ocidental tem momentos de se pensar igual ao negro. Por exemplo: Schopenhauer, Spi no za. E Heidegger o grande lsofo. Em Heidegger tem a questo da crtica, en ten di da como observao, como dis tin o, como discernimento. Ele um lsofo que d ateno terra. Diferena entre terra e mundo. um lsofo que mostra a pre sen a dos deuses, a presena do trans cen den te. E ao mesmo tempo um lsofo que mostra tambm a importncia do tem po. na verdade um filsofo da tem po ra li da de e que oferece para a questo do ne gro no Bra sil a possibilidade de pensar na ou tra transmisso temporal para alm da his t ria, que a ancestralidade. Nisso, h algo em comum entre Heidegger e a cul tu ra ne gra: a questo da ancestralidade, que mui ta

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    prxima da concepo de an ces tra li da de dos nags. Quer dizer, as vozes que partem do pas sa do em que a histria de hoje as res pon de. Essa voz, para o negro, como um destino. Ele est constantemente res pon den do as mensagens do passado. H mui tos pontos em contato entre Hei de gger e a cultura bra si lei ra e por isso que ele me interessa mui to. Mas Heidegger ex clui a di men so da luta, que muito forte em Ni et zs che e que muito forte entre os negros. Nietzsche diz assim: fulano edu ca do de mais para lutar. O negro africano, nag, de ter rei ro, v como luta a prpria relao amo ro sa. Ele v o sexo masculino e fe mi ni no como princpios de luta, prin c pi os com ple men ta res em luta. Ento a luta tam bm fazer compreender com aes. Isso muito prprio do negro e isso est em Ni et zs che.

    RF Na dcada de 70, o senhor trabalhou em parte com o pensamento do es tru tu ra lis mo, mas ressaltando que esse mtodo no esgota o conhecimento da cultura. At que ponto o pensamento estruturalista foi til para o seu trabalho?

    Sodr Eu fui realmente um grande co nhe ce dor e amante do estruturalismo. Eu acho que o estruturalismo de Levy-Strauss, de Barthes, de Lacan, toda essa gente, cada um com seu modo de se dizer es tru tu ra lis ta, chamou a ateno para o que efe ti va men te me interessa muito, que a lin gua gem. A grande descoberta do es tru tu ra lis mo foi o papel central da linguagem na cons ti tui o do sujeito. Ajudou a tirar da cabea dos aca d mi cos a idia de que a lin gua gem um simples veculo e a colocou em pri mei ro plano, como aquela instncia agen ci a do ra que constitui o sujeito, que cons ti tui a vida social e que ns vivemos na lin gua gem a partir da linguagem. Para mim, essa foi a importncia do es tru tu ra lis mo.

    RF Percebemos na sua obra a

    pre o cu pa o em analisar a natureza do cdigo da cultura de massa. O cdigo j foi chamado de retrico-globalizante, de modelo, de cam po e, neste ltimo livro, que trata de uma teoria de comunicao, o cdigo de no mi na do de bios-meditico. Fale um pou co sobre isso.

    Sodr O bios o cdigo. a codi cao que se faz vida. como se fosse uma mem bra na que envolvesse os indivduos. Isso o bios. E os indivduos passam a circular, a se movimentar a partir das regras do c di go. S que eu no uso mais a palavra c di go. Eu peguei a palavra aristotlica bios. No lu gar de dizer o cdigo virtual, eu digo o bios-virtual. pra indicar bem que se trata de uma ambincia, de uma forma de vida e no de uma operao semitica manobrada por algum.

    RF Notamos na sua obra a in uncia da teoria crtica da Escola de Frankfurt, prin ci pal men te na dcada de 70. O senhor faz al gu mas objees a ela. Fale um pouco so bre isso.

    Sodr Sem dvida nenhuma, a Escola de Frank furt, de Adorno e Horkheimer, foi a que mais percebeu antecipadamente o que estava por trs da interveno da tc ni ca na cultura contempornea. Mas Adorno e Horkhei mer eram muito nostlgicos da cul tu ra elevada. Eu acho que eles no pen sa ram que o pensamento crtico depende de um distanciamento entre sujeito e ob je to. E prprio desse bios-virtual uma re du o, seno o acabamento, dessa dicotomia prpria da metafsica entre sujeito e objeto. E m Adorno e Horkheimer, no pen sa men to crtico clssico, ainda um pen sa men to da metafsica, uma montagem uni ver sal de sig ni ca es, que procede por di vi ses r gi das entre sujeito e objeto, entre natureza e cultura. Adorno ainda tri bu t rio dessa diviso, dessa metafsica clssica, que re pou sa va, ao mesmo tempo, sob o lao entre a ontologia monovalente e uma lgica

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    bi va len te das coisas: O verdadeiro no fal so, o falso no verdadeiro. No existe a um terceiro termo. Uma lgica de juno ou conjuno. Ou ou no . Essa lgica bivalente das coisas uma lgica que no d conta dos fenmenos culturais, como por exemplo os signos e os ins tru men tos da indstria cultural. Que no per mi te tam bm uma boa anlise das obras de arte e nem das transformaes dos cos tu mes. Ento essa diviso fundamental entre alma e coisa, esprito e matria, sujeito e objeto, a mquina e a liberdade do homem, deixa de lado a realidade onde h um ter cei ro dado, que o terceiro excludo. Ador no e Horkheimer e a teoria crtica clssica de pen di am dessa ontologia monovalente e des sa lgica bivalente. Adorno est do lado da alma. As coisas so dominadoras, ali e nan tes. E quando se coloca com o olhar da cultura elevada, ele responsabiliza as coi sas pela dominao que exercem sobre o homem e a partir da que constitui a sua teoria.

    RF por isso que Adorno e Horkheimer no admitiam, por exemplo, que a cultura popular tambm produzisse co nhe ci men to, produzisse arte.

    Sodr No admitiam porque no fundo a cul tu ra popular estava do lado da coisa, dos objetos. Eles eram platnicos, no sen ti do de que a idia universal que pro pri a men te o ente, enquanto que a matria, o ob je to, no constitui o ser. uma espcie de no-ser. Ora, as culturas populares es ta vam den tro dessa teoria crtica do lado do no-ser. Quan do, portanto, a matria passa a ser subs tan ci aliza da, as idias da cultura po pu lar so tambm consideradas como no-verdadeiras, como no-sendo. , por tan to, uma teoria crtica aristocrtica. Est ligada ao programa metafsico platnico-aris to t li co.

    RF Professor, e a semitica? At que pon to ela in uenciou a sua obra?

    Sodr Eu gosto da semitica. Fui aluno de Barthes. Para mim, ele foi o mais cri a ti vo em praticar a semitica. E praticar in ven tan do. Mostrava o mtodo, mas dizia ao mesmo tempo que esse mtodo era uma inveno dele. O reaproveitamento de Saus su re. Eu sempre gostei, me encantei com a semitica. E eu cheguei co mu ni ca o por via da teoria da linguagem, porque sempre fui voltado para a questo da lin gua gem. Primeiro pelo meu interesse por lngua. Eu aprendi sozinho. Nunca tomei curso, a no ser o alemo. Desde menino, eu falo ingls, francs, alemo, russo, ita li a no, espanhol. Recentemente, estudo rabe. Fui professor de latim. Falo iurub, que a lngua dos terreiros, um pouco do crioulo de Cabo Verde. Enfim, sou muito afeito a lnguas es tran gei ras. Hoje menos, mas era muito mais. Foi ento pelo interesse pela lngua que me in te res sei por lingstica. E da lin gs ti ca pas sei para a semitica. Mas no dou mais aula disso. Particularmente, no me in te res sa mais como um mtodo para estudo. No con fio mais nos re sul ta dos me to do l gi cos da anlise de discurso. Eu acho que a reflexo o caminho. Mas eu gosto par ti cu lar men te da semitica de Peirce. E tem gen te que faz coi sas criativas com a se mi ti ca de Peirce. Cito por exem plo um uru guaio, que muito ami go meu, chamado Fernando Antarsht. Mas a ten dn cia sem pre repetir um pou co o que Pe ar ce fez. En to, o que eu noto que a se mi ti ca, assim como a an li se de dis cur so, muito um fas c nio como m to do dos ou tros, muito a repetio me to do l gi ca.RF Um conceito que nos parece im por tan te na sua obra o de mito e nesse sen ti do Barthes um autor com in uncia de ci si va, principalmente ao trabalhar a ques to da identidade, no mesmo?

    Sodr Esse conceito me foi dado com o es tru tu ra lis mo, principalmente

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    com Bar thes. O seu livro Mitologias me im pres si o nou mui to. No s pela maneira como ele es cre via aqueles textos, mas tambm pelos ca mi nhos metodolgicos que ele indicava, mostrando como o mito era uma palavra evasiva. No era mais o mito das so ci e da des tradicionais. Mas um mito empurrado pela ideologia. O mito de Barthes era mais uma mitologizao do que um mito ori gi nal. A maneira como a eternizao da ide o lo gia invadia as guras da cultura bur gue sa pra convencer as pessoas da eternidade das signi caes burguesas. S que isto era muito provisrio em Barthes. Quando ele fala de mitos, ainda havia a conscincia des mis ti ca da, a conscincia esclarecida e momentos mitificantes da cultura bur gue sa. O problema que com a extenso da cultura de massa tudo tende a ser res sig ni ca do, mitologizado no espao pblico. Ento essa categoria perdeu a im por tn cia pra mim com a expanso da cultura in dus tri al. Mas eu passei a valorizar a ques to do mito doutra maneira. Ou seja, ver a ver da de nos mitos originrios, li ga dos s gran des cosmogonias na cultura ne gra. O candombl e o culto afro so sis te mas que vivem o mito. Mas no esse mito ide o l gi co, de ressigni cao. um mito de re ve la o originria do real. No um mito a ser desmisti cado, combatido. Mas um mito a ser compreendido. Vem da. Vem do estruturalismo e da minha vi vn cia na cultura negra.

    RF E Barthes parece mesmo ter uma in u n cia decisiva no seu texto quando ele trata sobre a negao do outro, dos mo de los de reconstruo mtica da iden ti da de. Isso importante na sua obra e est sen do cada vez mais, no ?Sodr Cada vez mais. Porque essa ques to tem uma contrapartida poltica. Eu no vejo as cincias sociais no interior do jogo poltico. No que as cincias sociais vo ser doutrinrias, partidrias. No isso. Elas s se justi cam na medida em que so capazes de responder, de atuar den tro da

    prxis e constituio da sub je ti vi da de e da identidade humana. Ento, as cincias da comunicao, a teoria da co mu ni ca o, interessam na me di da em que eu posso fazer uma crtica dos apa ra tos de po der, dos aparelhos de do mi na o, que es to colocados a pelo mer ca do, pelo capital transnacional. Para isso, eu tenho que ver quais so os pontos de exer c cio desse po der. E o ponto bsico a ques to da iden ti da de subjetiva.

    RF Ento fale um pouco sobre a sin gu la ri da de em relao identidade. A questo da perda de si no outro, a importncia da atitude tica para aproximao das di fe ren as, o que implica singularidade ativa e no receptor passivo.

    Sodr A singularidade um conceito que se ope ao de identidade. A iden ti da de de pen de de comparaes. O grande po der cul tu ral e simblico do Ocidente o poder de comparar. Em toda a comparao voc tem uma operao forte de poder. Porque quem sobrevive comparao o comparador. aquele que d o termo com pa ran te. Quem que tem o poder de fazer a comparao? Da dizem que todos os ho mens so iguais. Mas nessa frase quem diz que os homens so iguais mais poderoso do que os outros, porque ele quem faz essa comparao. Mas ns sa be mos que to dos os homens so diferentes. E no s pela cor, mas de cabea. Seu pai diferente de sua me, de seu irmo, di fe ren te de mim. E ao mesmo tempo se me lhan te, j que pessoa. No somos iguais nem de si guais. Somos simplesmente pes so as di fe ren tes que coexistem no espao. Ento por que comparar? Falar no mais for te, no mais sbio? No mais igual, no menos igual? En to a identidade o lu gar de po der sobre a conscincia, sobre a sub je ti vi da de. J a sin gu la ri da de no pre ci sa de com pa ra o, pois ela a aceitao do outro tal e qual ele se apresenta no seu mo vi men to, em sua ao.

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    Um exemplo nesse sentido pode ser em relao a sua me, a sua na mo ra da. A sua alegria interfere no outro. No fundo voc gosta de sua me pela ale gria que voc tem em relao a ela. Isso signi ca que ela tal e qual como se apre sen ta. Com os defeitos, as virtudes, feia, bonita, ve lha, nova, viva ou morta. Voc no a com pa ra com a me de seu ami go. Essa aqui a minha me. Voc no a ama pela sua iden ti da de, mas pela sua sin gu la ri da de, pela sua in com pa ra bi li da de em re la o a voc. nessa am bi va ln cia que voc cresce e que ela tambm se a rma como sua me. Ambivalncia luta. a pos si bi li da de das coisas j iden ti ca das mudarem um pouco de lugar.

    RF O senhor dialoga com diversos au to res para fundamentar seu trabalho de pes qui sa em comunicao. Baudrillard, Fou cault e Christhopher Lasch, por exemplo, teriam uma in uncia decisiva em al gu mas re exes. Estou certo? Quais seriam os ou tros?

    Sodr Baudrillard, por exemplo, foi para mim uma descoberta. Acho que um pen sa dor que no tem discpulos no sen ti do de que ele tem a sua verso, o seu chu te. Ele chuta muito. Criativo e chutador. Daquela forma e com aquele exagero, uma jogada dele. Ele um criador ra di cal. Ento possvel pegar o que ele diz e fazer daquilo um conceito para trabalhar. Porque ele mesmo nos autoriza isso. E pen sa men to criao, chute e suor. Desse modo, ele teve, sim, uma in uncia im por tan te no meu texto. Eu sempre fui leitor de Marx, que sugere recriao, me ensina a re cri ar. E tambm fui leitor de Freud. E Bau dri llard algum que passeava por esses autores, in ven tan do, criando. Barthes tam bm me in u en ciou bastante. Ele foi meu professor em Paris, a exemplo de Bau dri llard, que meu amigo at hoje. As gran des in uncias so Barthes e Baudrillard, sem dvida ne nhu ma.

    RF O senhor se considera um pensador de esquerda. Seria por causa disso que sua obra no faz uma abordagem culturalista, pois leva em conta a ideologia? Suas cr ti cas a Gilberto Freyre, por exemplo, atestam essa perspectiva terica.

    Sodr Por trs ou junto com todo o re per t rio cultural, de todo o enunciado cul tu ra lis ta, tem um enunciado poltico. Mes mo que a poltica representativa esteja em crise no Ocidente, o homem um animal po l ti co. As formas de socializao so for mas polticas. A poltica no s uma ques to partidria, a poltica dos cientistas po l ti cos. Poltica esse movimento de or ga ni za o das formas de vida, de re la ci o na men to com o Estado, de relacionamento dos as su jei ta dos com o poder. Portanto, eu acho que no possvel encarar a co mu ni ca o apenas a partir dela mesma. Partir des se movimento produtor disso que ns cha ma mos cultura. A comunicao tem que ser pensada a partir de fora. Ns podemos es tar dentro dela, mas tem um de ter mi na do momento em que preciso olhar ela de fora para poder ter um juzo crtico. E essa olhada de fora, essa deciso de criticar, uma deciso poltica. Para mim, a cincia da comunicao um estudo com interesse poltico e cientfico. Desse modo, sem d vi da nenhuma, minha abordagem no cul tu ra lis ta.

    RF Em A verdade seduzida, o senhor afir ma que a cultura de massa um subcampo da cultura burguesa. Isso, por exemplo, di ver ge do pensamento da Teoria Crtica. Essa sua posio parece ser bem coerente com seu pensamento, que valoriza a cul tu ra ne gra no sentido dela ser tambm capaz de produzir conhecimento. Ou seja, o se nhor faz questo de salientar que a cultura negra singular em relao cultura de massa. J o mesmo no se poderia dizer em relao cultura burguesa. Seria isso?

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    Sodr Essa re exo de 1983 e de l para c as coisas mudaram muito. Naquele mo men to, sem dvida nenhuma, a cultura de massa era um subcampo da cultura bur gue sa. Um momento em que a cultura de massa era muito ameaadora e era uma no vi da de. Neste momento, com a realidade virtual, esse subcampo se confunde com o campo da cultura burguesa. J no h uma distino to grande entre cultura burguesa e cultura de massa. Na rede, como na in ter net, a cultura dita elevada, ou a cultura complexa, pode conviver ciberneticamente com a trivialidade. Ento, essa distino cul tu ra elevada/cultura de massa deixou de ter a mesma relevncia que tinha vinte anos atrs. Por isso, hoje no se tem um grande interesse terico em fazer essa distino en tre campo e subcampo.

    RF Essa idia de campo e subcampo o senhor se valeu da metodologia de Pierre Bourdieu. At que ponto ele foi til para essa re exo?

    Sodr O Bourdieu para mim um ser ju rs si co. Ele faz aqueles grandes sistemas e que me lembra um pouco aqueles pin to res holandeses do sculo XVIII. Um fazia o ros to, outro a roupa e no nal o mestre as si na va o quadro que era vendido na grande sala burguesa. O Bourdieu me lembra mui to isso. a gura mais importante da so ci o lo gia francesa. Produz aqueles grandes li vros, com muitos pesquisadores, e no final ele assina. Faz aquelas explicaes de ta lha das dos aspectos da cultura, mas ningum consegue ler por inteiro. So livros muito tautolgicos. Mas sem dvida nenhuma, prin ci pal men te o Bourdieu da primeira fase, ele tem momentos importantes na so ci o lo gia. O Bourdieu da antropologia pr ti ca, o Bour dieu da violncia simblica. Essa his t ria dos campos me serviu me to do lo gi ca men te.

    RF Em Reinventando a cultura, o senhor realmente abandona essa dicotomia cul tu ra elevada/cultura de massa. Quando, por exem plo, sua anlise se detm obra de arte, notamos a problemtica a respeito dela, seja da cultura burguesa ou da cul tu ra po pu lar, gerar demandas fora da sis te ma ti za o do valor de troca da cultura de massa.

    Sodr Isso vale para qualquer obra que quei ra se reconhecer ou no como arte. E a pa la vra arte cada vez mais complicada. Eu acho que a obra de arte, como sa da do valor centrado no capital, ao mes mo tem po buscar no social qual a po tn cia mais alta do homem. O que no homem fica como potncia maior para alm do pre o do mer ca do. Como que o homem pode ter ex pe ri n cia de plenitude a partir de sua prpria autonomia. Como que ele pode celebrar os aspectos efmeros da vida dele, ver a eternidade na plenitude dele, gozar in con di ci o nal men te a vida sem as caues de pre o, do mercado, do valor.

    RF Nesse sentido, vale destacar a sua an li se no campo da literatura. Gos ta r a mos que o senhor comentasse um dos as pec tos focalizados na sua obra: o conceito de subjetividade, que entre outras coisas ser ve para ressaltar como trabalhada a ques to identitria na literatura de massa, na elevada e na popular. Exemplo: a des va lo ri za o de negros e ndios na literatura de Jos de Alencar e Monteiro Lobato.

    Sodr Para mim o romance foi a forma po pu lar encontrada pelo Ocidente para a r mar na histria o sujeito da conscincia. O con cei to de subjetividade depende das nar ra ti vas que a sociedade elabora sobre o que esse sujeito autnomo, consciente e se pa ra do do objeto. Portanto, h sub je ti vi da de na medida em que h narrativas so bre a sub je ti vi da de. Essas narrativas so a fi lo so fia pla t ni ca,

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    que reaproveitada pela nar ra ti va do cristianismo. o ro man ce, a po e sia. a difuso dos retratos da mo der ni da de. So todos os grandes textos que se re fe rem ao homem como uma sub je ti vi da de au t no ma, isolada. Portanto, a li te ra tu ra do Oci den te, principalmente a nar ra ti va ro ma nes ca, uma literatura voltada pra con so li da o da subjetividade, de uma sub je ti vi da de com uma vida interior a ser sondada pelos poetas, pelos analistas da alma, pelos psicanalistas. A literatura do Ocidente, en to, uma literatura de mons tra ti va da cons ti tui o do sujeito, feita por sujeitos even tu al men te geniais. uma exal ta o da grande subjetividade. Ora, isso no ocorre na cultura negra, nas cul tu ras tradicionais, porque o que est posto no primeiro plano o grupo, a coletividade. a subjetividade grupal, e no a mesma coisa da sub je ti vi da de individual. Nesse meu livro A teoria da literatura de massa eu mostro a diferena entre a literatura de con su mo e a literatura de grande alcance sim b li co, tendo no meio como di fe ren ci a do res os aparelhos de reproduo dos efeitos, que no caso da gran de literatura a escola. E mostrar que no caso de outras literaturas, de outros dis cur sos, h instrumentos ma te ri ais de re pro du o dos efeitos que no es to ne ces sa ri a men te ligados sub je ti vi da de. Por exem plo: a literatura dos escritos negros e tam bm a literatura de grande con su mo, onde tambm no tanto a sub je ti vi da de do au tor que valorizada, mas a subjetividade dos personagens. So tc ni cas tambm de produo de subjetividade, mas a partir dos contedos.

    RF Um aspecto da subjetividade que o senhor salienta e que est presente tanto na literatura de massa como na televiso diz respeito ao seu carter pedaggico para a constituio do sujeito.

    Sodr A televiso, assim como a li te ra tu ra de massa, pedaggica. A h um pon to em comum, sem dvida nenhuma. E cada vez mais ns estamos vivendo um

    pe da go gis mo pblico. Um pedagogismo po pu lar, que tenta o tempo inteiro ensinar coi sas s pessoas. J no v mais de sin te res sa da men te animais na televiso. Voc tem que saber como que aqueles animais se re pro du zem, vivem. No h mais uma con tem pla o distrada, desinteressada.

    RF Com a realidade virtual j teramos outro tipo de anlise em relao sub je ti vi da de.

    Sodr Os contedos da literatura de mas sa so da ordem do imaginrio, da or dem da fabulao mtica. Ao mesmo tem po, da or dem de uma pedagogia da cons ti tui o do sujeito. Enquanto que na re a li da de vir tu al, eu acho que ela supera a ques to do ima gi n rio. A realidade virtual esse ima gi n rio feito realidade. J no se trata mais de um lado o real e do outro o imaginrio, como no caso da literatura de massa. En to na realidade virtual o ima gi n rio se subs tan ci aliza. Voc entra nele, voc vive ele. Voc j no sabe mais o que real e o que imaginrio. O que est em questo a exa ta men te a indistino entre real e ima gi n rio.

    RF Notamos em seu texto, entre outros aspectos, trs linhas de fora para o estudo da cultura de massa: a questo do poder, da subjetividade e da identidade. A iden ti da de, por exemplo, o senhor trabalha em toda a obra. Notamos isso, por exemplo, quando trata da converso de falante/ou vin te para emissor/receptor. Nessa con ver so j te r a mos, de modo implcito, a pro ble m ti ca da identidade: ou se produtor ou se consumidor. Ou seja, o sujeito no tem ex pe ri n cia existencial com o cdigo. J em Claros e escuros, o senhor estuda a iden ti da de explicitamente: a identidade cul tu ral bra si lei ra. Como se d a evoluo de seu pen sa men to sobre a identidade no seu tex to?

    Sodr Essa questo da identidade que es ta va no receptor, ou se produtor ou se con su mi dor, eu mesmo no havia

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    per ce bi do isso dessa forma ... Mas o que voc est di zen do faz sentido. Isso luta, entendeu? E luta significa a possibilidade de os ter mos polares de uma relao terem va ln ci as diferentes no relacionamento. E na m dia, voc no tem peso diferente. A m dia est ali, esttica e imvel, falando com voc. Agora, eu me dou conta do seguinte: que a intelectualidade brasileira sempre teve de forte o pensamento sobre a iden ti da de. A identidade foi o campo de onde poderia ter nascido a loso a brasileira. Foi a nesse campo onde despontou gente como Afonso Arinos, Gilberto Freyre, Sr gio Buarque de Holanda, Caio Prado J ni or, Capistrano de Abreu. Foram autores que tentaram explicar a identidade na ci o nal. E a partir da produziram obras re ve la do ras sobre o Brasil, com perspectivas so ci o l gi cas, antropolgicas, histricas, psi co l gi cas. Mas eram obras que misturavam es sas dis ci pli nas. No se limitavam a uma ni ca pers pec ti va terica, o que resultava numa quase filosofia. No era filosofia por que as questes no tinham unidade na cons ti tui o e nem no campo do pen sa men to. Era um ensaio. A questo da iden ti da de na ci o nal sempre me interessou. Me interessou do ponto de vista do negro, que no res pon de a essa questo da identidade na ci o nal reflexivamente pela escrita, mas res pon de pela ao, pela liturgia, pela fes ta, pelo sagrado, que outro modo de res pon der. Respondeu com o corpo. No res pon deu com a cabea. E o corpo um ou tro tipo de pensamento. A corporalidade tem uma lgica prpria de pensar. E tudo isso parte da questo da identidade. Mas pensando agora no que voc diz, re tros pec ti va men te, eu vejo que a questo ... falante, ouvinte, tambm uma questo da mu dan a da identidade no sujeito ... Cabe a voc falar nisso .

    Nota

    Entrevista concedida a Paulo Cirne Caldas, Mestre em

    Co mu ni ca o - FAMECOS/PUCRS, em junho 2001.