a solidão da mulher negra claudete alves da silva souza

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP Claudete Alves da Silva Souza A solidão da mulher negra – sua subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS São Paulo 2008

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feminismo negro

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC SP

    Claudete Alves da Silva Souza

    A solido da mulher negra sua subjetividade e seu preterimento

    pelo homem negro na cidade de So Paulo

    MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS

    So Paulo

    2008

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC SP

    Claudete Alves da Silva Souza

    A solido da mulher negra sua subjetividade e seu preterimento

    pelo homem negro na cidade de So Paulo

    MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora como exigncia

    parcial para obteno do ttulo de

    Mestre em Cincias Sociais, na

    rea de Antropologia pela

    Pontifcia Universidade Catlica

    de So Paulo, sob a orientao da

    Profa. Dra. Terezinha Bernardo

    So Paulo

    2008

  • Banca Examinadora

    ___________________________________________

    Professora Doutora Terezinha Bernardo

    ___________________________________________

    Professora Doutora Ana Virginia Santiago Arajo

    ________________________________________________

    Professora Doutora Eliane Hojaij Gouveia

  • Aos meus queridos filhos Kelly e Jefferson razes

    do meu existir e que me trazem diariamente a

    certeza de que o mundo no apenas branco e

    preto.

  • AGRADECIMENTOS

    Especialmente a Jesus, meu ajudador que me fortalece em todas as

    horas na batalha do existir.

    Negros Jorge e Bira com quem trilhei e trilho jornadas amorosas de

    cumplicidade e carinho.

    Professora Doutora Terezinha Bernardo, mestra querida, que se

    interessou pela minha causa e me propiciou uma orientao segura e brilhante

    convencendo-me que eu era capaz.

    A valiosa colaborao e sugestes das Professoras Doutoras Ana Virginia

    Santiago Arajo e Eliane Hojaij Gouveia por ocasio da Banca de Qualificao.

    Professores Doutores Carmem Sylvia de A. Junqueira, Edgar de Assis

    Carvalho, Marisa do Esprito Santo Borin, Dorothea Voegeli Passetti, Paulo Edgar

    Almeida Resende, cujos ensinamentos foram fundamentais.

    Todas as mulheres que fizeram parte desse estudo desnudando

    generosamente suas almas e contribuindo com os seus relatos para construir

    saberes.

    Aos professores Joo Galvino e Ana Maria Florentino de Macedo, pela

    sua dedicao e ajuda indispensvel.

    A todas as mulheres negras, parceiras de historicidade e guerreiras de

    sempre que bravamente continuam resistindo contra o processo de

    embranquecimento do pas.

  • RESUMO

    SOUZA, Claudete Alves da Silva. A solido da mulher negra sua

    subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de So Paulo

    Abordei neste trabalho a solido da mulher negra na dimenso afetivo-sexual, tendo

    como eixo central seu preterimento, enquanto pretendente ao mercado matrimonia,

    pelo parceiro da mesma etnia. Para o entendimento de tal fenmeno procurei buscar

    na literatura dados que dessem conta dessa realidade emprica, partindo da

    concepo scio-histrica desse sujeito e das implicaes a ela correlacionadas. A

    linha metodolgica utilizada foi a qualitativa, caracterizada pelo grupo focal e pela

    anlise do discurso, permitindo conhecer as representaes dessas mulheres. Os

    dados obtidos com a devoluo de 62 roteiros de entrevista nortearam a realizao

    do grupo focal, composto por 11 mulheres. A anlise dos dados mostrou que os

    sujeitos consideram que existe uma situao de desvantagem da mulher negra em

    comparao com a mulher branca no que concerne preferncia do homem negro

    na escolha de parceira afetiva e conjugal. Esta situao repercute com mais

    intensidade nas jovens negras, independente da classe social. O comportamento do

    homem negro foi percebido como resultado de uma desvalorizao social da

    populao negra do Brasil, de longa data, que vem estimulando os jovens negros a

    procurar clarear a famlia. A associao inter-racial foi vista como vantajosa para o

    homem negro, no sentido da sua ascenso social, e muito desvantajosa para a

    mulher negra pela tendncia observada da predominncia de pares inter-raciais,

    quais sejam homem negro-mulher branca. As participantes consideram que o

    preterimento da mulher negra acarreta solido e humilhao. Para enfrentar esta

    situao o grupo considerou que a educao formal um fator importante de

    resgate dos valores tnicos da raa negra, possibilitando a identificao de maior

    nmero de indivduos com estes valores.

    Palavras-chaves: Solido afetivo-sexual, matrifocalidade, etnia, identidade,

    preterimento.

  • ABSTRACT

    This work has as an aim to tackle the loneliness of the black woman in the affective-

    sexual dimension, having as a central axis her rejection while pretender to the

    marriage market by the partner of the same ethnicity. For the understanding of this

    phenomenon we looked for in the literature datas that could show this empirical fact

    starting from the socio-historical conception of this subject and the correlated

    implications. Thus, in addition to the Bibliographic research, the methodological

    line leds up qualitative technical piece, characterized by the focus group and by the

    analysis of the speech, allowing to know the representations of these women. The

    obtained datas with the devolution of 62 interview routes sent to 62 women guided

    the focus group realization. The datas analysis showed that women who joined the

    survey consider that there is a disadvantage situation of the black women compared

    to the white women regarding to the preference of the black men in the choice of

    the affective and conjugal partner. This situation affects more intensively on young

    black women, independent of the social class. The behavior of the black man was

    perceived as a result of a social devaluation of the black population from Brazil, from

    a long time ago, that is stimulating the young black men to seek "lighten" the family.

    The Inter-racial association was seen as beneficial to the black man, meaning its

    social climbing and very disadvantaged for the black woman, by the tendency

    observed between the inter-racials couples the couple black man-white woman as

    predominant. The participants believe that the exclusion of the black woman brings

    loneliness and humiliation. To face this situation, the group considered that the

    formal education is a rescue major factor of the black ethnic black, enabling the

    identification of a bigger number of people with thesevalues.

    Keywords: Affective-sexual loneliness, matrifocality, ethnicity, identity, rejection.

  • Claudete Alves da Silva Souza

    A solido da mulher negra sua subjetividade e seu preterimento

    pelo homem negro na cidade de So Paulo

    A tomada de conscincia da opresso ocorre,

    antes de tudo, pelo racial.

    Llia Gonzalez

    So Paulo

    2008

  • A Mulher Negra Guerreira est morta...

    Tributo Fnix Negra

    H poucas horas, enquanto lutava com a realidade de ser humana e no um

    mito, a mulher negra guerreira faleceu. Fontes mdicas afirmam que ela

    morreu de causas naturais, mas os que a conheceram sabem que ela morreu

    por ficar em silncio quando deveria ter gritado; por sorrir quando deveria

    ter liberado sua fria; e por esconder sua doena para no incomodar a

    ningum com sua dor. Ela morreu de overdose de gente em suas costas

    quando no tinha energia nem para si mesma. Ela morreu de tanto amar

    homens que no amavam a eles prprios e que a nica coisa que lhe davam

    em troca era um reflexo distorcido. Ela morreu por criar filhos sozinha e

    por no poder fazer todo o servio. Ela morreu por causa das mentiras

    sobre a vida, os homens e racismos que sua av contou sua me e sua me

    lhe contou. Ela morreu por ser sexualmente molestada quando criana e por

    ter que carregar a verdade consigo pelo resto da vida, trocando sempre a

    humilhao por culpa. Ela morreu de tanto ser espancada por algum que

    dizia am-la, e ela permitia que o espancamento continuasse para mostrar

    que tambm amava esse algum. Ela morreu de asfixia, cuspindo sangue por

    causa dos segredos que guardava tentando abaf-los em vez de se permitir

    a crise de nervos que lhe era de direito mas que s as mulheres brancas

    podem se dar ao luxo de ter. Ela morreu de tanto ser responsvel, porque

    ela era o ltimo degrau de uma escada sem apoios e no havia ningum que

    pudesse ampar-la. A mulher negra guerreira est morta. Morreu por causa

    dos tantos partos de crianas que ela na verdade nunca quis, mas que a

    moral estranguladora dos que a cercam obrigou-a a ter. Ela morreu por ter

    sido me aos 15, av aos 30 e um antepassado aos 45. Ela morreu por ter

    sido derrubada e tiranizada por mulheres no-evoludas que se diziam

  • sisters, companheiras. Ela morreu por fingir que a vida que levava no sculo

    XXI era um momento Kodak e no um pesadelo ps-escravido. Ela morreu

    por tolerar qualquer z man s para ter um homem em casa. Ela morreu

    por falta de orgasmos, porque nunca soube de suas reais capacidades. Ela

    morreu por causa dos joelhos dolorosamente comprimidos um contra o outro,

    porque respeito nunca fez parte das preliminares sexuais que lhe eram

    impostas. Ela morreu por causa da solido nas salas de parto e abandono do

    nas clnicas de aborto. Ela morreu por causa da comoo nos tribunais onde

    sentava-se, sozinha, vendo seus filhos serem legalmente linchados. Ela

    morreu nos banheiros com as veias irreversivelmente abertas pelo descaso

    geral e pelo dio que sentia por si mesma. Ela teve morte cerebral

    combatendo a vida, o racismo, os homens, enquanto seu corpo era arrastado

    para um matadouro humano para ser espiritualmente mutilado. E algumas

    vezes quando se recusou a morrer, quando apenas se recusou a entregar os

    pontos, ela foi assassinada pelas imagens fatais de cabelos loiros, olhos

    azuis e bundas chapadas, quando foi rejeitada pelos Pels, Djavans e

    Ronaldinhos da vida. s vezes, ela era arrastada para a morte pelo racismo

    e pelo sexismo, executada pela ignorncia hi-tech enquanto carregava a

    famlia na barriga, a comunidade na cabea e a raa nas costas. A

    escandalosa mulher guerreira sem voz est morta!!!!!! Ou Ela Est Viva, E Se

    Mexendo??????

    autora desconhecida.

  • SUMRIO

    Introduo........................................................................................................23

    1. Retrospectiva histrica...........................................................................36

    2. Afetividade e sexualidade da mulher negra..........................................56

    2.1 Identidade, etnia e gnero como categorias relacionais da

    solido......................................................................................................62

    3. A mulher negra, mercado matrimonial e preterimento afetivo.........69

    3.1 Solido e relao amorosa......................................................................75

    Consideraes Finais...................................................................................115

    Referncias Bibliogrficas...........................................................................119

    Anexos............................................................................................................129

    Anexo 1 Relatrio de Observaes..............................................................130

    Anexo 2 Roteiro de Entrevista......................................................................145

    Anexo 3 Transcrio das Entrevistas..........................................................162

    Anexo 4 Termo de Consentimento...............................................................185

  • 23

    INTRODUO

    So Paulo uma das cidades de maior diversidade tnica do mundo. So

    milhes de pessoas que vivem, convivem e do formas, formatos, atos e dinmica

    prpria para esta grande metrpole. Mais do que uma cidade, mesmo um imenso

    e inconcluso mosaico de culturas, manifestaes e interaes humanas que se

    complementam e se contrapem no eterno processo de manuteno e reproduo

    da vida. Cidade de encontros, desencontros, unidades e diversidades espraiadas e

    pulsantes nos consensos e contradies que marcam o seu cotidiano, onde a vida

    urbana impe dificuldades e inflige dramas sociais cor negra, pouco visveis aos

    olhares menos cuidadosos, porm insuportveis para quem sente e luta para

    transpor todas as barreiras histrico-culturais.

    O argumento central de Caldeira (2000) que a cidade assiste, ao longo

    da histria, alteraes segregadoras profundas. Essas alteraes apiam-se na

    atribuio de ameaas a alguns grupos que compem a populao, aliada

    descrena e desconfiana na capacidade de os poderes pblicos garantirem a

    segurana dos cidados. Essas so regras que organizam e separam, ao mesmo

    tempo em que definem o espao pblico e a sociabilidade caracterstica da vida

    moderna em um contexto de atividades criminosas e de segregao desmesurada.

    Em cidades fragmentadas por enclaves fortificados, difcil manter os princpios de acessibilidade e livre circulao, que esto entre os valores mais importantes das cidades modernas (...) uma cidade de muros em que a qualidade do espao pblico est mudando imensamente e de maneiras opostas quilo que se poderia esperar de uma sociedade que foi capaz de consolidar uma democracia poltica. (Caldeira, 2000:211-255).

    Neste imenso e complexo universo de coisas urbanas, repleto de

    parcelas e segmentaes humanas seccionadas ou delimitadas por um mundo de

    eventualidades, as situaes sadas de referncias sociais, polticas e econmicas,

    momentneas, espordicas ou no, marcam, sobremaneira, o ligeiro e o fugido

    fazer da polis atual. A partir de traos identitrios, oriundos de matizes histricos

    diferenciados, possuidores de efetivo lastro e onde as razes desse processo se

    deitam na prpria formao do estrato social, do qual faz parte a mulher negra,

    busco compreender, com o assumido risco de me defrontar com imprecises

    conceituais e metodolgicas, o que , efetivamente, a solido desta mulher na

  • 24

    cidade de So Paulo. Como foi a sua construo? Quais os elementos

    contemporneos de maior incidncia e influncia neste processo e como tais

    elementos se articulam na vivncia desta mesma mulher?

    Contudo, meu desafio , em meio a tantas adversidades impostas para

    esta mulher, buscar apreender da feminilidade negra a subjetividade predominante e

    definidora de sua auto-estima, comportamento e modelos relacionais que so,

    voluntariamente ou no, incorporados ao seu cotidiano. Em um recorte mais

    definidor, cabe indagar, na tentativa de entender o prprio impacto desta

    subjetividade, com todos os seus limites e na sua dimenso afetiva com implicaes

    diretas, concretas e perceptveis no encontro afetivo com o outro: como o mundo

    subjetivo da negra - centralmente influenciado pelo mito de que preta boa de

    samba e de cama, velho resqucio do perodo escravocrata - se manifesta na

    perspectiva da conformao de uma auto-percepo diferenciada, preservando sua

    autonomia e dignidade pessoal?

    Conforme cita Bordieu:

    A percepo do mundo social produto de uma dupla estruturao social: do lado objetivo, ela est socialmente determinada; do lado subjetivo, est estruturada porque os esquemas de percepo e de apreciao susceptveis de serem utilizados so produtos de lutas simblicas anteriores e exprimem de forma diferenciada o estado das relaes simblicas. (Bordieu, 1992:32).

    Assim, o desejo de tal investigao parte, principalmente, de anos de

    observao de tais fenmenos, oriundo do meu convvio e interlocuo com o

    cotidiano de lutas e desafios das mulheres negras, buscando compreender, alm

    das urgncias sociais, polticas e econmicas, temticas outras, digamos, pouco

    discutidas e refletidas, mesmo pelo movimento negro, tais como solido e afeto.

    A concepo que fundamenta tal investigao histrica e relacional

    fazendo um recorte afetivo e de gnero, uma vez que acredito que a mediao das

    relaes afetivas entre homem negro e mulher negra, alm de assentar-se na

    contextualizao desses eixos, implica tambm em uma perspectiva tnico-racial.

    Quando abordo solido, essas mulheres aqui apresentadas representam

    ser, ao mesmo tempo, sujeitos de um fenmeno antigo e objetos recentes de

    pesquisas e estudos, levando-se em conta os marcadores de sua historicidade e

  • 25

    etnia. Assim, esta pesquisa est delimitada ao entendimento das novas formas de

    sociabilidade num aspecto mais difuso do ser negra, da solido e da subjetividade

    destas mulheres na sua prtica cotidiana e na crtica social, isto , em todos os

    eventos passveis de uma leitura antropolgica.

    Nessa trajetria procurei avanar nas delimitaes e recortes necessrios

    a fim de garantir coerncia e profundidade a esta investigao. Outrossim, ressalto

    que, o que se pretende avanar epistemologicamente para adiante das simplrias

    categorias explicativas que buscam enquadrar a mulher negra em leituras

    generalistas, lineares e compartimentadas, onde as especificidades e os traos de

    maior singularidade aspectos essenciais para uma efetiva compreenso do ethos

    e do modus destas mulheres construrem sociabilidades desaparecem em

    perspectivas e abordagens excessivamente panormicas e que notadamente no

    garantem a compreenso devida e necessria para o tema em questo.

    Sabe-se, no entanto, que compreender os interstcios da solido da

    maioria das mulheres negras faz-lo, inicialmente, tendo-se em vista a

    compreenso do prprio modelo de sociedade, dado o seu processo de formao

    histrica, das fundaes onde se assenta tal organizao social, bem como do papel

    relegado para cada categoria tnica que compe e d densidade para o imenso

    universo de contradies e heterogeneidade que a cidade de So Paulo. Mais

    ainda, observar quais os papis historicamente reservados para esta mesma mulher

    nesta sociedade e quais os contornos e feies que estes mesmos papis foram

    assumindo ao longo do tempo.

    Ao debruar-se sobre o quesito solido, este projeto insere-se em uma

    compreenso de mundo. Admite, por assim dizer, preferncias sociais, polticas,

    culturais e tnicas. Concebe as relaes como o resultado de historicidades feitas e

    desenvolvidas, conscientemente ou no, pelo conjunto das pessoas, estas dotadas

    de preferncias diversas e que sero fundamentais para a conduo dessas

    mesmas relaes. Some-se a esta gama de influncias, circunstncias especficas e

    prevalecentes e que corroboram para a definio do real concreto, sujeito a mltiplas

    determinaes.

    A literatura existente contempla dados relativos a referncias conceituais

    sobre a solido nas mais variadas perspectivas como mostrarei a seguir, dentre elas

    a abordagem existencial-humanista desse evento da condio humana. Contempla

    tambm aspectos polticos, econmicos e sociais da evoluo histrica da mulher

  • 26

    negra em nossa sociedade. Poucos estudos, porm, mencionam as relaes

    afetivas inter e intra-raciais e as inmeras variveis que as compem. Na viso de

    Pacheco a produo bibliogrfica sobre a questo racial brasileira j existe h

    tempos, sendo que os primeiros estudos so oriundos do sculo XIX com o advento

    da introduo das teorias racistas ou cientficas no Brasil. A partir desse momento

    deu-se espao para vrios estudos investigativos sobre o tema nas Cincias Sociais

    at os dias atuais. Porm, ressalta a autora:

    Entretanto, se a discusso sobre raa mereceu ateno de vrios intelectuais e pesquisadores brasileiros (as) e estrangeiros (as) nas Cincias Sociais brasileiras, o mesmo no se pode dizer sobre a questo da afetividade e, muito menos, sobre a afetividade baseada em critrios raciais e de gnero. Poucas so as pesquisas que levam em considerao tal articulao, sobretudo no que toca a questo das escolhas de parceiros afetivos. (Pacheco, 2006:154).

    Ao estudar a solido da mulher negra subjetividade e preterimento - na

    cidade de So Paulo pelo homem negro, buscarei sistematizar esse conhecimento

    ao dar espao e voz a essa mulher para ouvi-la e tentar desvendar as suas

    representaes acerca das abordagens afetivo-relacionais do homem negro, no que

    tange escolha de uma companheira da mesma etnia para uma vida a dois,

    temporria ou definitivamente, e verificar o nexo causal dessa solido.

    Conforme Silva

    A situao da mulher negra no Brasil de hoje manifesta um prolongamento da sua realidade vivida no perodo de escravido com poucas mudanas, pois ela continua em ltimo lugar na escala social e aquela que mais carrega as desvantagens do sistema injusto e racista do pas. Inmeras pesquisas realizadas nos ltimos anos mostram que a mulher negra apresenta menor nvel de escolaridade, trabalha mais, porm com rendimento menor, e as poucas que conseguem romper as barreiras do preconceito e da discriminao racial e ascender socialmente tm menos possibilidade de encontrar companheiros no mercado matrimonial. (Silva, 2003:1).

    A compreenso do simblico concernente estrutura subjetiva da mulher

    negra, enquanto protagonista de relaes afetivo-sexuais, sua solido e suas

    possibilidades de unies estveis com o homem negro pois, o mirante privilegiado

    que utilizarei para, enfim, compreendermos as bases gerais deste universo feminino

    de medos, sonhos, lutas e esperanas. Qual o seu olhar sobre esse fato?

  • 27

    Os objetivos que norteiam esse estudo so:

    Identificar as implicaes decorrentes dos aspectos identitrios como fator

    limitador na construo de vnculos afetivos entre o homem negro e a mulher negra;

    Apresentar as interpretaes contidas nas expresses discursivas das

    mulheres negras sobre o seu olhar acerca de seus encontros e desencontros nas

    relaes com o homem negro, enquanto protagonista dessa relao;

    Analisar os discursos colhidos, luz de representaes sociais histricas,

    acerca do trnsito afetivo entre o homem negro e a mulher negra.

    A metodologia utilizada buscou revelar o compromisso com a cincia e

    com as possibilidades desta para ensejar mudanas sociais, e exige uma reflexo

    sobre qual a cincia que se est praticando e construindo em cada trabalho de

    investigao sobre o comportamento humano.

    A investigao tradicional, denominada por Danziger (1990) metodolatria

    produziu um saber orientado para a definio e a medio de entidades cristalizadas

    em contedos fixos. A adoo desta perspectiva produziu um conhecimento

    psicossocial fragmentado, constitudo por microteorias que no do conta da

    compreenso de um sujeito que , ao mesmo tempo, produto e produtor de sua

    histria.

    Por seu lado, a tcnica qualitativa est assentada sobre trs

    pressupostos:

    a) Implica que os participantes estejam em um dilogo: as pessoas se motivam

    atravs da comunicao e a motivao uma condio essencial do processo de

    informao;

    b) Valoriza os casos individuais e as amostras com um pequeno nmero de casos;

    c) Trata-se de uma epistemologia construtiva que acompanha a informao ao longo

    do seu processo de produo. (Banchs, 2002).

    A perspectiva qualitativa adotada nesse estudo traduz o compromisso

    com uma concepo de sujeitos as mulheres negras portadoras de uma

    combinao de ao, energia e inteno.

    Na perspectiva qualitativa atribudo ao investigador um papel ativo

    El lugar activo que otorgamos al investigador en la produccin del conocimiento en la epistemologia cualitativa, nos lleva a enfatizar el lugar de la comunicaccin y de lo interactivo en la construccin terica de la subjetividad humana. (Gonzlez Rey, 38).

  • 28

    Desta forma, o meu engajamento ao tema, longe de significar um entrave

    objetividade cientfica, prope-se a dar uma resposta necessidade de articulao

    entre a teoria, o dilogo entre autores e os sujeitos e o contexto em que a

    investigao se desenvolve.

    O conceito de representao social empregado em minha investigao

    apareceu pela primeira vez como um conceito sociolgico em Durkheim (1957, apud

    Queiroz, 2000) em oposio s concepes mais prestigiadas e difundidas, tanto no

    mbito da Psicologia como no da Lgica, acerca da origem inata do conhecimento.

    Durkheim defendeu a tese que no h nada no nvel da percepo que seja

    independente da dimenso social.

    A postura terica desse autor no deixa margem para a criatividade

    individual, nem a nenhuma forma de resistncia dominao social.

    O conceito de representao social foi refinado e revisto por Serge

    Moscovici (1976, apud Queiroz, 2000) em um estudo sobre percepes da

    Psicanlise em grupos sociais franceses. Em seu trabalho, criticou na psicologia

    cognitiva a despreocupao com as condies da produo do conhecimento. Na

    concepo deste autor, este conceito representa um sistema cognitivo que, ao

    ordenar o real, d significado ao relacionamento social e permite a comunicao

    entre membros de uma comunidade. No Brasil, a obra de Moscovici tem exercido

    forte influncia na Psicologia Social (id.Queiroz).

    Schtz foi um outro autor que contribuiu para a delimitao terica do

    conceito de representao social ao integrar as perspectivas de Weber (1864 -1920)

    e Husserl (1859 1938) focalizando como a subjetividade, socialmente orientada se

    constri e tipifica a realidade a partir da experincia cotidiana dos indivduos. (Schtz, 1973

    apud Queiroz, ibid., 365)

    A partir dos enfoques de Moscovici e de Schtz possvel definir

    representao social como um tipo de saber, socialmente compartilhado e

    negociado, contido no senso comum e na dimenso cotidiana, que permite ao

    indivduo uma viso de mundo e o orienta nos projetos de ao e nas estratgias

    que desenvolve em seu ambiente social.

    O tema subjetividade remete imediatamente Psicologia, tanto no senso

    comum quanto no mbito da produo cientfica. Desta forma recorri aos textos

    psicolgicos para trabalhar com este conceito. Molon relata que as temticas do

  • 29

    sujeito e da subjetividade surgiram com o nascimento da cincia moderna e suas

    emergncias estiveram vinculadas s condies que propiciaram o desenvolvimento das

    cincias sociais e humanas... e, principalmente, da Psicologia (Molon, 1999: 16). A

    conquista da legitimidade da cincia moderna afastou a Psicologia da Filosofia, com o risco

    de perder seu objeto especfico, pois ao restringir sua anlise ao observvel e ao

    mensurvel , excluiu de seu campo de investigao a subjetividade. Assim a

    subjetividade ficou identificada com a interioridade inacessvel, e o sujeito com a

    exterioridade observvel, o comportamento. Esta noo dicotmica de seu objeto

    marcou a evoluo do conhecimento psicolgico: objetividade e subjetividade, razo

    e emoo, indivduo e sociedade, excluso e incluso. Com isso, o sujeito da

    Psicologia oscila entre uma objetividade observvel e uma subjetividade inefvel. (ibd.: 17).

    Nos anos 1921-30, o psiclogo russo Lev Semionovich analisando a

    cincia psicolgica, crticou tanto as psicologias subjetivistas idealistas quanto as

    psicologias objetivistas mecanicistas e defendeu a unidade entre a psique e o

    comportamento, a unidade no a identidade, como bem lembra Molon, e a

    correlao entre fenmeno subjetivo e fenmeno objetivo. Para Vygotsky a

    constituio do sujeito rompe a separao entre objetividade e subjetividade na

    medida em que considera que todas as funes psicolgicas superiores - por

    exemplo, o pensamento, a conscincia, a vontade, a linguagem e os sentimentos-

    foram antes relaes sociais entre as pessoas. O sujeito , nesta perspectiva, um

    ser significante que tem o que dizer, pensar, sentir, tem conscincia do que est

    acontecendo, reflete todos os eventos da vida humana (Molon, op.cit.:140).

    Smolka, Ges e Pino (1993, apud Molon, op.cit), defendem a noo que a

    constituio do sujeito acontece, dialeticamente, no funcionamento interpsicolgico e

    deixam claro que esta constituio acontece pelo outro e pela palavra em uma

    dimenso semitica. Sendo a palavra e o signo polissmicos, a natureza e a origem

    deste processo implicam, necessariamente, o diferente e o semelhante. Assim a

    conscincia da prpria subjetividade aparece na relao eu-outro, na qual a

    alteridade aparece como fundamento do sujeito.

    A subjetividade precisa ser entendida aqui como uma construo que se

    processa no mbito das relaes dialticas entre o indivduo e a sociedade. Um

    pressuposto fundamental dessa pesquisa que os sujeitos entrevistados tm

    representaes coerentes em relao ao universo vivido e experimentado.

  • 30

    No presente trabalho, optei pela tcnica da anlise de discurso para a

    compreenso dos sentidos pessoais construdos pelos sujeitos acerca da vivncia

    de solido e da repercusso destes em suas vidas. Usando a tcnica preconizada

    por Spink (1994), procurei mapear o discurso a partir das dimenses internas das

    representaes: seus elementos cognitivos, a prtica do cotidiano e o investimento

    afetivo.

    Na realizao da pesquisa qualitativa, que se caracteriza, entre outros

    aspectos anteriormente mencionados, por utilizar uma variedade de tcnicas

    concomitantemente, foram utilizadas a observao direta, a entrevista estruturada e

    o grupo focal, organizadas em trs etapas sucessivas:

    Primeira Etapa - Partindo da literatura pesquisada que aponta o

    branqueamento da populao brasileira e a tendncia de formao de casais inter-

    raciais, realizei observaes diretas para verificar a ocorrncia do fenmeno no

    cotidiano da cidade de So Paulo. Observei a proporo de relacionamentos inter-

    raciais, especialmente homem negro e mulher branca, em situaes sociais

    pblicas. Para isto adotei a estratgia de levantar a freqncia de casais inter-raciais

    e verificar a proporo de ocorrncia de homens negros acompanhados de mulheres

    brancas, homens brancos acompanhados de mulheres negras e tambm observei a

    freqncia de homens negros acompanhados de mulheres negras.

    Locais escolhidos para a realizao da observao:

    Espaos religiosos: Igrejas evanglicas, catlicas e terreiros de religies de

    matriz africana

    Teatros

    Casas de espetculos

    Supermercados

    Maternidades

    Encontros de Hip-Hop

    Metodologia e critrios adotados nas observaes.

    O procedimento de observao foi realizado em bairros perifricos e de

    classe mdia da cidade de So Paulo. Alm de verificar a ocorrncia de casais inter-

    raciais, procurei inferir as idades aproximadas dos mesmos, tendo como base desta

  • 31

    inferncia a aparncia dos indivduos, como por exemplo, a postura corporal, a

    facilidade ou dificuldade de movimentao, a aparncia da pele, a cor dos cabelos e

    da barba. Enfim, procurei atravs destes marcadores externos da idade, fazer uma

    inferncia sobre a faixa etria aproximada dos casais observados.

    Para garantir uma amplitude de amostra dos casais inter-raciais nos

    cultos religiosos realizei as observaes em:

    Espaos Religiosos

    Igrejas evanglicas: Renascer em Cristo, Assemblia de Deus, Universal e

    Congregao Crist do Brasil. Assistimos em cada uma delas mais que 2 cultos em

    dias diferentes, tanto no meio da semana quanto nos finais de semana.

    Igrejas catlicas: Catedral da S, So Jos Operrio, Santa Cruz, Santa

    Margarida Maria, So Miguel Arcanjo e Nossa Senhora da Penha. Realizei

    observao em missas aos domingos, de manh e noite.

    Cultos de religies de matriz africana: Casa de Umbanda Boiadeiro, Ax

    Il Oba e Terreiro Caboclo Pena Verde. Nestes terreiros defini um local que

    facilitasse visualizar todos os indivduos que entravam. Nestes locais houve maior

    dificuldade para realizar o procedimento, uma vez que entre os presentes alguns

    eram assistentes e outros participavam da roda. Em alguns momentos s foi

    possvel observao aps o estabelecimento de um dilogo com os participantes,

    ao trmino da roda.

    Em todas estas visitas para realizar as observaes nos templos e igrejas

    permaneci sempre na ltima fileira de assentos ou em um local que possibilitasse

    visualizar a entrada dos casais. Com exceo da Congregao Crist, onde no foi

    possvel observar casais inter-raciais porque os homens participam dos cultos

    apartados das mulheres, as observaes foram bem sucedidas.

    Teatros

    Assisti aos espetculos chegando bem antes do incio das apresentaes

    e observando a entrada do pblico at 5 minutos antes do incio.

  • 32

    Casas de espetculos:

    Visitei duas casas de espetculos de classe mdia, a Citibank Hall e a

    Credicard Hall. Nestes locais adotei a mesma estratgia que empregada nos teatros.

    Supermercados:

    Procurei observar, nos finais de semana, supermercados de classe mdia

    e de periferia nos horrios matutino, vespertino e noturno. Para realizar a

    observao permaneci em um lugar que possibilitasse visualizar todos os caixas,

    mediante a expressa autorizao dos gerentes. Os alvos foram dois grandes

    supermercados: Carrefour e Po de Acar

    Maternidades:

    Realizei observao nos seguintes hospitais de regies de classe mdia e

    perifrica na cidade de So Paulo: Hospital e Maternidade Santa Joana, Pr-Matre

    Paulista S/A, Hospital Santa Marcelina e no Hospital do Servidor Pblico Municipal.

    Este ltimo foi escolhido porque embora esteja localizado em regio central da

    cidade atende a um contingente considervel de servidores que residem em bairros

    de periferia.

    O objetivo nas maternidades foi verificar a ocorrncia de mulher negra

    acompanhada, seja pelo pai da criana, seja por outro homem ou por qualquer outra

    pessoa. Observei tambm o comportamento do acompanhante com relao

    parturiente. Nos hospitais citados acima, as observaes foram realizadas nas

    recepes de internao e nas recepes de espera, onde vrias vezes foi possvel

    estabelecer um dilogo com os acompanhantes, pais ou no. Nas maternidades,

    observei a proporo de casais inter-raciais presentes: parturiente negra

    acompanhada de homem negro ou branco; parturiente branca tendo o homem

    branco ou o negro como acompanhante. Alm disso, anotei a proporo de

    mulheres negras entre as parturientes que no tinham um companheiro masculino.

    Nestes locais, delimitei um intervalo de tempo e anotei a freqncia de casais inter-

    raciais presentes no momento. As minhas observaes cobriram os 4 turnos de

    funcionamento dos hospitais: manh, tarde noite e madrugada. Obtive autorizao

    para realizar a observao, mantendo-se o sigilo quanto identificao das

    parturientes.

  • 33

    Movimento Hip hop1. Participei de vrios encontros e no encontrei

    casais inter-raciais. Vale destacar que nestes encontros a presena de jovens a

    tnica..

    Concluindo esta 1 etapa, observei em todos estes locais 1164 casais

    sendo 973 casais inter-raciais e 191 intra-raciais, dos quais ambos so negros.

    Dentre os casais inter raciais, 77% so formados por homem negro com mulher

    branca, 22% constitudos de homem branco com mulher negra e 1% de casais de

    asiticos com brancos ou negros. Constatei em todos estes espaos um percentual

    de 17 % de casais formados por homem negro com mulher negra.

    importante salientar que as observaes da 1 etapa tiveram um carter

    qualitativo, sem o compromisso de um tratamento estatstico das informaes.

    Segunda Etapa - a partir dos resultados das observaes constru um

    roteiro de perguntas e convidei 62 mulheres a responder. Estas mulheres faziam

    parte da minha rede de relacionamentos sendo: professoras de educao infantil,

    que participaram da luta sindical, alunas de curso de formao em educao

    superior, alunas de outros cursos universitrios,e trabalhadoras em geral.

    Tendo em vista que o roteiro de perguntas foi elaborado para colher

    informaes preliminares que orientaram a definio dos temas para o grupo focal

    no foi utilizado o corte pela zona de saturao e, sendo assim, todos os roteiros

    foram analisados.

    O roteiro elaborado para o grupo abrangeu os seguintes temas: significado

    e sentido da felicidade e da solido; identidade tnica e escolha de parceiro afetivo-

    sexual em funo da etnia. O resultado da anlise das respostas deste roteiro

    orientou a delimitao dos temas a serem explorados no grupo focal.

    Terceira Etapa - utilizao da tcnica do grupo focal, o qual foi composto

    por 11 mulheres negras na faixa da maturidade, definida entre 30 e 65 anos de

    idade.

    O encontro para aplicao da tcnica, com durao de uma hora e meia,

    ocorreu em um local neutro, na cidade de So Paulo. Foi conduzido por uma

    moderadora, acompanhada de uma auxiliar, responsvel por realizar anotaes. A

    1Hip hop um movimento cultural iniciado no final da dcada de 1960 nos Estados Unidos como forma de reao aos conflitos raciais e violncia sofrida pelas classes menos favorecidas da sociedade urbana. uma espcie de cultura das ruas. O hip hop como movimento cultural composto por quatro manifestaes artsticas principais: o canto rap (sigla de rythm-and-poetry), a instrumentao dos DJ ( sigla de disc- jockey), a dana breack dance e a pintura do grafite.

  • 34

    moderadora assistente social, com mestrado em administrao em gesto de

    recursos humanos, com larga experincia em facilitao de grupos.

    A tcnica do grupo focal tem sido uma das mais utilizadas e

    desenvolvidas na investigao acerca das representaes sociais. (Oliveira e

    Werba, 2000).

    Os grupos focais consistem de entrevistas que estabelecem uma forma

    de interao que propicia informaes e insights acerca do tema que se pretende

    investigar, os quais seriam difceis de serem obtidos de outra forma. A riqueza das

    informaes que a interao nestes grupos proporciona pode oferecer dados de

    qualidade superior ao que se obteria em situaes de entrevista individual.

    A coordenadora do grupo focal atuou de maneira a conduzir a discusso

    de forma livre, tendo o cuidado de manter as conversaes voltadas para o foco ou

    tema, evitando as disperses. As falas foram registradas em equipamento de udio

    MP3. O tratamento dos dados seguiu os seguintes passos:

    a) Transcrio das entrevistas

    b) Leitura flutuante do contedo gravado intercalando a escuta com a leitura do

    material transcrito, visando captar os temas focados, observando-se a construo

    dos conceitos, a retrica e a paralingustica e a emergncia de emoes.

    c) Retorno aos objetivos da pesquisa para que os dados categorizados fossem

    interpretados luz dos referenciais tericos.

    Temas focados:

    Sentido da solido;

    Relao entre a solido sentida e o preterimento da mulher negra pelo

    homem negro;

    Auto-identidade

    As representaes levantadas nos grupos focais foram interpretadas e

    mapeadas por meio do referencial metodolgico baseado em Thompson (1995),

    denominado Hermenutica de Profundidade. O processo constitui-se de trs fases:

    a) Anlise scio-histrica que investiga o fenmeno na dimenso espao-temporal,

    as suas inter-relaes sociais, institucionais e a estrutura social;

    b) Anlise formal discursiva que investiga as produes simblicas em si mesmas,

    por meio da anlise de discurso;

    c) Interpretao das formas simblicas luz dos referenciais tericos.

  • 35

    Escolha dos sujeitos

    Critrios para incluso no grupo:

    1- Ser mulher negra;

    2- Estar em atividade ocupacional, educacional ou de militncia social;

    3- Ter suficiente condio para uma efetiva comunicao em grupo.

    A partir da introduo do tema, o captulo 1 procurou evocar o contexto

    histrico da escravido no Brasil, partindo das referncias conceituais da categoria

    raa, na viso de autores estudiosos sobre o tema como Darwin (2000), Lvi-

    Strauss (1976), Frota Pessoa (1996), Gilberto Freire (1933) e Moutinho (2004); as

    teorias raciais e de embranquecimento da sociedade brasileira; as implicaes

    relacionadas poligenia e matrifocalidade, buscando analisar essas concepes

    atravs dos tempos e seus impactos no delineamento do perfil de seus

    protagonistas.

    O captulo 2 procurou investigar uma possvel correlao entre o

    fenmeno solido e o objeto central da minha pesquisa, qual seja, o preterimento da

    mulher negra pelo homem negro nas relaes afetivo-sexuais, buscando analis-la

    no s sob as diversas perspectivas na rea do conhecimento, mas tambm suas

    razes histricas ligadas dispora negra, discorrendo sobre fatos e cenrios que

    marcaram esse protagonismo, a partir de uma breve anlise do ambiente e suas

    implicaes. Tambm esto em foco questes identitrias, tnicas e de gnero

    como categorias relacionais da solido.

    O captulo 3 volta-se especificamente para o mercado matrimonial

    disponvel para a mulher negra e o seu preterimento afetivo-sexual a partir da

    anlise de dados quantitativos e qualitativos, tendo como pano de fundo os valores

    ligados a padres tnico-culturais e as escolhas afetivas que deles decorrem.

    Nas consideraes finais foi realizada a anlise dos dados constantes das

    entrevistas efetuadas, bem como a anlise dos discursos do grupo focal e suas

    construes acerca da solido como conseqncia do preterimento da mulher negra

    pelo homem negro na cidade de So Paulo.

  • 36

    1. RETROSPECTIVA HISTRICA

    Nenhum homem racional, bem informado, acredita que o negro mdio seja igual, e muito menos superior, ao branco mdio. E, se isso for verdade, simplesmente inadmissvel que, uma vez eliminadas todas as incapacidades de nosso parente prgnato, esse possa competir em condies justas, sem ser favorecido nem oprimido, e esteja habilitado a competir com xito com seu rival de crebro maior e mandbula menor em um confronto em que as armas j no so as dentadas, mas as idias. T.H.Huxley

    O presente trabalho no pode esquivar-se de, ao abordar questes

    identitrias da mulher negra, fazer algumas reflexes sobre o quesito raa e,

    evidentemente, sua evoluo histrica e desdobramentos polticos. No se trata

    apenas de uma retomada ou ratificao histrica pontual, mas sim de construir

    pontes e estabelecer conexes que nos permitam dialogar com o objeto da

    pesquisa.

    O conceito de raa, baseado na teoria da seleo natural, em muito

    determinou o pensamento de vrios tericos dos sculos XVIII e XIX. Neste cenrio,

    os pensadores partilhavam das idias do determinismo biolgico, entre eles Gould

    (1999), para conceituar raa, classificando os grupos humanos em categorias

    superiores e inferiores, civilizados, no civilizados, tendo o Homem caucasiano no

    pice da pirmide de superioridade. assim que a idia de raa se constituiu ao

    longo da histria e teve seu amparo nas cincias.

    Segundo Darwin (2000), as razes que deram origem ao homem e sobre

    as quais esse ser foi se constituindo tm, geralmente, o mesmo tipo que as outras

    espcies. Para este cientista, a partir do desenvolvimento de sua teoria

    evolucionista, a espcie animal portadora de uma oposio entre os seus

    membros. Esta oposio fixa na qual prevalece o mais forte. Esta concepo

    baseia-se na lei da seleo natural.

    Acerca da lei da seleo natural Frota-Pessoa refere:

    As raas no so entidades permanentes ou estticas. Elas representam estgios da evoluo em constante mudana. As tribos que conseguiram passar da frica, onde nossa espcie surgiu, para a Europa ficaram isoladas no novo ambiente, e com o tempo, constituram uma raa distinta, sob a ao da seleo natural. Os indivduos dessa raa que migraram mais para o norte acabaram

  • 37

    formando outra raa, e assim por diante. Persistindo essa tendncia de diferenciao crescente de raas cada vez mais distintas (raciao), a do Homo sapiens terminaria esquartejada em vrias espcies (especiao), que nunca mais trocariam genes, pois no poderiam produzir hbridos frteis. (Frota-Pessoa, 1999: 30)

    Segundo os vrios conceitos desenvolvidos ao longo dos anos, o termo

    raa incorpora um campo semntico e uma dimenso espacial e temporal. Lvi-

    Strauss, ao tecer suas crticas e observaes sobre os preconceitos e mitos raciais,

    relembra-nos, com nfase, alguns desses mitos, sustentados pela cincia. Dentre

    eles, o autor destaca:

    H variaes nas caractersticas fsicas externas transmitidas, total ou parcialmente, de pai para filho. E so grupos relativamente homogneos quanto a este aspecto, que constituem o que geneticamente chamamos de raas. Estas raas no apenas diferem na aparncia fsica: elas, no raro, possuem diferentes graus de desenvolvimento, algumas delas usufruindo todas as vantagens de uma civilizao adiantada, enquanto outras apresentam maior ou menor grau de subdesenvolvimento (Lvi-Strauss, 1970:11-12).

    Na mesma obra, o autor continua sua crtica a respeito dos mitos que

    foram sustentados cientificamente para justificar a supremacia de um povo sobre o

    outro. Desta forma o autor traz tona concepes fundamentadas j no Antigo

    Testamento.

    O Gnese contm passagens que, aparentemente, admitem a inferioridade de certos grupos a outros: Maldito seja Cana! Servo dos servos seja aos seus irmos (9:25), enquanto uma espcie de superioridade biolgica parece estar implcita na afirmao de que Jeov fez um pacto com Abrao e sua semente (id.:12).

    Essas idias se impuseram e formaram geraes pois, como sabermos,

    at o fim do sculo XVII, a Teologia e as Escrituras eram os fundamentos que

    garantiam a explicao dos outros. Essas duas instncias eram detentoras do

    privilgio da razo e da explicao.

    Tambm os gregos, h 2000 anos consideravam todos os homens que no

    fossem de sua prpria raa como brbaros e Herdoto conta-nos que os persas, por seu

    turno, consideravam-se muito superiores ao resto da humanidade (ibid.:12). Ainda

    memorizando os mitos, Lvi-Strauss (1970) afirma que para justificar a ambio grega

    de hegemonia universal, Aristteles (384-322 aC) formulou a hiptese de que certas raas

    so, por natureza, livres desde o bero, enquanto outras so escravas (id. opus). Para o

  • 38

    autor essa uma das hipteses usada no sculo XVI para justificar a escravido dos

    negros e amerndios, os escravos do Novo Mundo.

    Diferentemente de vrios outros estudiosos da teoria e do conceito de

    raa, Lvi-Strauss no atribui a Darwin a paternidade dessa odiosa e desumana

    teoria (ibid.: 16). Seu pensamento que:

    (...) com as sociedades de cor se tornando competidoras potenciais no mercado de trabalho e clamando por vantagens sociais consideradas como herana exclusiva dos brancos, eles tinham, obviamente, necessidade de alguma desculpa para justificar o extremado materialismo econmico que os conduzia a negar aos povos inferiores qualquer participao nos privilgios que eles prprios desfrutavam. Por essa razo, acolheram com satisfao a tese biolgica de Darwin e depois, por sua simplificao, distoro e adaptao, em conformidade com seus prprios interesses, transformaram-na no chamado Darwinismo Social (ibid.: 16).

    Nesse sentido a hierarquizao das sociedades ao longo do tempo no

    foi resultante, unicamente, de determinaes biolgicas, mas tambm de fatores

    polticos, econmicos, culturais e sociais.

    No sculo XIX (Gould, 1999), surgiram duas correntes tericas apontando

    a origem do Homem: a monogenia e a poligenia. Para a monogenia, pressuposto

    bblico, o Homem seria descendente de um nico Ado, ou um s tronco. Para a

    poligenia a origem do Homem seria resultante de vrias fontes em diversas regies

    da terra. Ao contrrio do Homem caucasiano, os homens provenientes das regies

    mais aquecidas, como a frica, eram tidos como raas inferiores. Desta forma, a

    teoria polignica foi muito respeitada, atraindo a ateno dos estudiosos europeus,

    destacando-se nessa linha Louis Agassiz (1807-1873) e Samuel G. Morton (1700-

    1851).

    No Brasil, entretanto, o conceito de raa era baseado em padres

    fenotpicos e scio-econmicos tais como riqueza e educao (Guimares, apud

    Pacheco, 2006). Por outro lado, as teorias racistas, fundamentadas na eugenia,

    depunham contra qualquer tentativa de unio afetivo-sexual entre as diferentes

    raas, acreditando na possibilidade da degenerao fsica, psquica e social desses

    povos (Pacheco, 2006). Com o abandono, no incio do sculo XX, dessa linha de

    pensamento, houve o fortalecimento da idia de um Brasil miscigenado que

    propiciaria o branqueamento populacional. Essa miscigenao era fruto do

    intercurso sexual e afetivo entre negros, ndios e brancos, presentes nas relaes

  • 39

    sociais do cotidiano. Essa proximidade, alm de suavizar as relaes, permitiu,

    segundo a tese de Freyre (1933) corrigir a distncia social (...) entre a casa grande

    e a senzala (apud Pacheco, 2006:161). Se para Freyre (1933) essa democracia

    racial era benfazeja, porquanto escamoteava conflitos e propiciava uma liberalidade

    das relaes, inclusive a sexual, tendo a negra e a mulata como objetos passivos e

    sensuais do senhor escravocrata, para outros autores, entre eles Giacomini (1988,

    apud Pacheco, 2006), seus crticos ferrenhos, sua viso da mulher negra, nesse

    processo histrico, estereotipada e no condizente com a realidade.

    Ao me debruar sobre a historicidade da mulher negra, vejo que sua

    trajetria, a partir da ruptura diasprica africana at a contemporaneidade, foi

    permeada pela solido. Tambm sempre foi demarcada por sucessivos revezes nas

    lutas de resistncia contra as polticas de dominao escravagista, de segregao e

    excluso social, de assuno unilateral de responsabilidades familiares, de

    encontros e desencontros dialgicos amorosos na convergncia do pertencer ou no

    pertencer, no direito do ser ou no ser. Seno, observe-se que essa mulher ao

    chegar ao Brasil, vinha de uma situao totalmente diferenciada, com um livre

    transitar dentro de uma condio de autonomia e reconhecimento cidado entre o

    pblico e o privado. Na sua frica, na organizao scio-econmica tribal, era-lhe

    facultada a liberdade de ir e vir do ponto de vista de sua mobilidade social e

    econmica, explicada pelo modelo de construo familiar polignico, que na viso de

    Pierre Verger (1954, apud Bernardo), traz s mulheres maior independncia do que

    no modelo monogmico. Tambm Lloyd corrobora essa viso as mulheres

    controlavam grande parte do suprimento alimentar, acumulavam dinheiro e negociavam em

    mercados distantes e importantes (Lloyd, 1965:67, apud Bernardo, 1998:.60). Quanto ao

    campo afetivo, na casa do esposo, seu papel materno de grande destaque pois

    alm de genitoras que so, tambm tm a misso de perpetuar a linhagem familiar do

    marido (id. opus)

    No Brasil, h uma quebra desse paradigma. Na qualidade de escrava seu

    trnsito de mercado limitou-se ao espao entre a senzala e a casa grande, em

    funes que reduziam seu corpo ferramenta de trabalho braal e matriz de

    reproduo de novos escravos, sendo consideradas pau para toda a obra.

    Afetivamente, surgem novos embates. Pacheco, com base em Giacomini,

    argumenta sobre a lgica da escravido, onde no bastava apenas a utilizao

    dessa mo de obra nas tarefas de lavadeira, ama-de-leite, cozinheira, arrumadeira,

  • 40

    mucama dos filhos da famlia branca, mas havendo tambm a apropriao de seu

    corpo nas obrigaes de propiciar prazer com as investidas sexuais dos senhores:

    A lgica da sociedade patriarcal e escravista parece delinear seus contornos mais brutais no caso da mulher escrava. A apropriao do conjunto das potencialidades dos escravos pelos senhores compreende, no caso da escrava, a explorao sexual do seu corpo, que no lhe pertence pela prpria lgica da escravido (Giacomini, apud Pacheco, 2006:163).

    Contrariando ainda a tese freyriana sobre a harmonia existente entre as

    relaes sociais do sistema patriarcal-escravista e retomando as desigualdades

    raciais, Llia Gonzles (apud Pacheco 2006) afirmou que, contrariamente ao que se

    sups, o racismo e o sexismo seriam as bases geradoras do sistema de opresso

    do escravismo e se perpetuaram depois da Abolio. Nesse sentido, h relatos da

    mobilizao e participao feminina negra nas lutas organizadas, contradizendo

    afirmativas de seu carter doce e submisso contra as opresses sofridas.

    O papel das mulheres negras em lutas organizadas contra a escravido as fugas, os motins, as rebelies e a formao dos quilombos demonstrava uma reao dita docilidade-cordialidade-submisso dos negros e das mulheres escravas contra a famlia patriarcal branca (Pacheco, 2006:163-164).

    Como referem Giacomini (1988) e Gonzales (1988) no Brasil de ento, o

    mito da cordialidade e do afeto nas relaes entre brancos e negras no se

    consolidou, havendo sim uma miscigenao forada, que foi construda atravs da

    violncia fisico-sexual e psicolgica praticada contra as mulheres negras como fruto da

    lgica do prprio sistema escravista (id.:164).

    Se, como se observa acima, o direito ao corpo lhe era negado, a essa

    mulher escrava tambm no era concedido o direito de formar e privar de uma vida

    familiar prpria, conforme observa Cunha a vida familiar ou privada se apresenta como

    uma contradio condio de escravo. Assim, no havia a possibilidade da coexistncia

    da escravido com a vida familiar (1985:42 apud Bernardo, 1988:60).

    Pinto (2004:36) recorrendo obra de Giacomini (1988) refere que as

    noes de privacidade e de vida familiar esto ausentes naqueles que no possuem

    nem a si prprio.

  • 41

    Giacomini diz:

    "Era o senhor que decidia sobre a possibilidade e qualidade da relao entre homem e mulher escrava, sobre se haveria ou no vida familiar, se casados ou concubinados seriam ou no separados, se conviveriam com os filhos e onde, como e em que condio morariam (Giacomini, 1988:37).

    A legislao da poca, Cdigos Civil e Penal, determinava que era

    permitido o casamento aos escravos porm, sem que isso resultasse

    em direitos civis: o direito de manter a famlia sob o mesmo teto, o direito dos pais sobre seus filhos menores. Na realidade, foi somente a partir de 1879 que uma lei brasileira, aplicada muito parcialmente, comea a proibir a separao das famlias escravas no momento da venda pblica (Alencastro, 2005:2).

    O Projeto de Lei do Ventre Livre passa a reconhecer como famlia a

    mulher e sua prole (Bernardo, 1988), dando ao homem to somente a importncia

    ligada produtividade.

    Ao serem alforriadas, antes dos homens escravos, ainda, por serem

    considerados elementos essenciais produo agrcola, as mulheres negras tinham

    por espao privado o canto alheio, na busca da sobrevivncia para comer e dormir.

    Suas condies de trabalho eram aquelas configuradas em funes de

    subordinao e de explorao econmica e sexual e que praticamente se

    assemelhavam continuidade do regime anterior e inexistncia de uma vida

    privada. Ao retornarem para a casa de algum parente, me ou tios, deparavam-se

    com a realidade dos cortios, alternativa de moradia coletiva possvel dentro de suas

    realidades. Dois autores colocam claramente essa realidade:

    os cmodos eram habitados por famlias inteiras, s vezes, com mais de seis pessoas. Ali dormiam, acordavam, cozinhavam, comiam, amavam, pariam, morriam. Ali viviam (Bernardo, 1998:58). Das jovens "negras" e "mulatas" que viviam nos pores e cortios em estado de "promiscuidade", a quase totalidade "se infelicitava" fora de qualquer compromisso de noivado ou perspectivas de casamento. Vrios informantes consultados por Fernandes indicaram que "as mes solteiras trabalhavam onde podiam, e quando no encontravam servio, tinham de recorrer mendicncia e prostituio ocasional" (Fernandes,1978:45, apud Domingues, 2006:5).

  • 42

    Essa condio excludente e de marginalizao a que o homem negro foi

    relegado imprime um novo contorno configurao familiar existente, fazendo surgir

    famlias matrifocais. Tpicas do Novo Mundo, ao contrrio das famlias polignicas da

    frica, sua caracterstica bsica ser chefiada por mulheres, o que outorga ao

    feminino a condio de centralidade e autoridade na assuno da permanncia e da

    guarda do lar, em contraposio ausncia definitiva ou flutuante da figura paterna -

    considerada tambm como itinerante o que confere ao masculino uma total

    fragilidade no papel de provedor, seja por excluso scio-econmica, pobreza ou

    migrao.

    Se as famlias matrifocais eram uma realidade na vida das mulheres

    negras, fato tambm a existncia de uma intensa liberalidade sexual na vida

    masculina.

    Desta forma, eram facultados aos homens, a qualquer tempo, mltiplos

    relacionamentos fora de seu casamento, sem que houvesse, necessariamente,

    perda de regalias ou prejuzo social. lcito supor, a partir dessas reflexes, que

    essa liberalidade sexual, tcita, do sexo masculino, remete quilo que Woortmann

    (1987, apud Praxedes, 2006) denomina de arranjos polignicos, entendidos como a

    existncia de mais de uma unidade domstica ou mais de uma famlia de me-

    filhos, significando a existncia de vrias famlias na medida em que o homem

    coabita de forma alternada em diversos lares, estabelecendo as condies para a

    matrifocalidade.

    Segundo Carneiro:

    As mulheres negras advm de uma histria diferenciada, marcada pela perda de poder de dominao do homem negro por sua situao de escravo, pelo exerccio de diferentes estratgias de resistncia e sobrevivncia. Enquanto a relao convencional de dominao e subordinao social da mulher tem como complementaridade a eleio do homem como provedor, temos o homem negro castrado de tal poder enquanto escravo e posteriormente alijado do processo de industrializao nascente. (1985:43).

    Encontramos, assim, mulheres forras e livres, na sua grande maioria,

    solitrias, muitas vezes mes solteiras, como eixo central de seus lares e que, por

    no terem casado, seja por escolha voluntria, seja por dificuldades sociais ou por

    preterimento do parceiro, no vivenciaram uma condio de acesso social ou de

    estabilidade amorosa.

  • 43

    Historicamente, h uma srie de consideraes que buscam explicar tal

    fato, ligadas a entraves econmicos, burocrticos, demogrficos e sociais no tocante

    escolha do cnjuge. Entretanto, situaes outras podem ter contribudo pela opo

    ao celibato dessas escravas alforriadas, como, por exemplo, os costumes africanos.

    Donas de tradies e de culturas distintas das europias, muitas naes africanas vivenciavam um sistema de filiao matrilinear, adotavam a poligamia e, sob diversos aspectos, possuam um outro modo de ver e de viver a relao com parentes e com os filhos. Desse modo, como afirma Lopes (1998), as mulheres solteiras com filhos, no eram problema entre as naes africanas, uma vez que o sangue e a linhagem eram transmitidos pela me, cabendo muito mais famlia da me a educao e a manuteno das crianas (Praxedes, 2006: 7).

    A literatura nos mostra que, ao longo do tempo, vrios estudiosos

    pesquisaram a matrifocalidade mantendo-se o princpio bsico desse fenmeno,

    porm com enfoques distintos. Entretanto, faz-se necessrio ponderar que, a

    despeito de controvrsias sobre a normalidade, ou no, dessa estruturao de

    famlias formadas por sujeitos negros e pobres, correramos o risco de sermos

    parciais, em funo de elementos histricos, se tomssemos como paradigma

    analtico, para efeitos de comparao, a famlia nuclear. importante ponderar que

    o estigma quanto anormalidade, assim considerada, era determinado

    marcantemente pelo olhar do viajante, o olhar do outro. Essa referncia que

    estabelece a diferena determinada por outros valores e atributos culturais,

    implicava em uma anlise parcializada na descrio dos fatos, trazendo sociedade

    uma representao negativa da configurao das famlias negras.

    Muitos autores enxergaram a matrifocalidade como uma condio

    patolgica. Ao estudarem o fenmeno brasileiro, mais especificamente na Bahia,

    pesquisadores americanos, como Melville Herskovits e Franklin Frazier (Pacheco,

    2006), acentuaram as controvrsias existentes na rea das Cincias Sociais acerca

    da origem da matrifocalidade. Enquanto para o primeiro, socilogo da Universidade

    de Harvard, tido como o precursor dessa corrente, que na dcada de 40

    permaneceu na Bahia por quase cinco meses, o foco tem raiz culturalista, ou seja,

    seu princpio advm de herana africana trazida pelos escravos e aqui retomada; o

    segundo autor advoga a tese de conotao racial sendo que a mesma seria

    resultante de uma anomia social da populao negra com o desajustamento das

  • 44

    redes familiares provocado pelo sistema escravista e continuamente com a

    constituio de um novo sistema competitivo (Pacheco, 2006:176). Blauner (1971)

    tambm considerou a escravido como causa principal para o que chama de

    famlias dirigidas por mulheres.

    Tomando So Paulo como locus (grifo meu) de anlise, Florestan

    Fernandes (1964:177), descreve como incompleta a famlia negra, tal como ela se

    apresentava nesta megalpole, nas trs primeiras dcadas do sculo XX.

    famlia incompleta, e de situao socioptica (...) ou ainda de falhas na socializao, como uma situao concreta qual os negros so levados devido ao baixo nvel de renda do marido. Nesta viso os negros no desejam viver uma situao matrifocal, mas no tm alternativa por fatores que esto fora da famlia. (...) A perspectiva que situa o conceito como patolgico est normalmente associada com a identificao da escravido e seus efeitos na organizao de parentesco negro como razo fundamental para a matrifocalidade (Zarur, 2005:1).

    Raymond Smith (1996, apud Lobo, 2006), desenvolveu um conceito de

    famlia matrifocal em que a presena masculina, como provedora, encontra-se em

    posio desvantajosa feminina, pois como fora econmica no consegue

    colaborar para o desenvolvimento do grupo familiar. Lobo diz

    Segundo o autor, existe uma co-relao entre o papel do pai-marido e o do homem no sistema econmico e no de estratificao social. Quando h uma tendncia de desqualificao do papel do homem pertencente determinada classe social no sistema econmico h, tambm, uma tendncia marginalizao do papel de pai-marido dentro do ncleo familiar. O autor sugere tambm que a baixa posio do homem negro na hierarquia local limita-o a empregos de baixa remunerao e requer que ele esteja ausente da casa e da localidade onde vive na maior parte do tempo. (Lobo, 2006: 18-19).

    Ao comparar esse modelo de estrutura familiar ao modelo nuclear

    considerado emblemtico pela sociedade, a autora recorre ainda a Smith (1996),

    que citando Monagan, (1960:354) afirma que:

    (...) tomar a famlia pela famlia nuclear problemtico por vrias razes. Primeiro, porque se est considerando apenas as conexes biolgicas e segundo, porque uma definio externa do que constitui famlia no pode ser imposta aos grupos estudados, sendo, portanto, problemtico o pressuposto de que a famlia vive ou deve viver junta (id. Op.:.17-18).

  • 45

    Lobo (2006) faz aluso a achados antropolgicos que demonstram a

    existncia de uma gama variada de dinmicas familiares, presentes na atualidade,

    reportando-se a autores tais como: Boyer, 1964; Little, 1975; Clarke, 1979; Smith,

    1996; Fonseca, 2004; Parreas, 2005, e conclui que:

    O mito de que as prticas familiares iriam coincidir com um nico modelo de conjugalidade que caracteriza a famlia nuclear e monogmica foi abandonado e as pesquisas sugerem, hoje, que no existe um padro universal de famlia (Lobo, 2006:17-18).

    Conforme os fatos sugeridos, a solido companheira inconteste de

    nossas protagonistas. Ao observar o sculo XIX, a cidade de So Paulo traz a

    existncia de mulheres ss em funo de maridos ausentes. Bernardo (1998),

    citando Dias aponta a permanncia desta situao nas primeiras dcadas do sculo

    XX, mostrando vrios exemplos de relatos dessa poca, quando resgata, de

    maneira brilhante, sobre a cidade de So Paulo, memrias negras, de cujos relatos

    selecionei dois exemplos que tipificam essa solido afetiva:

    Engraado, tenho 83 anos, nunca quis ter um companheiro, como se diz, para sempre. Lembro que tive vrios pretendentes, mas pensava assim: para qu? Fao tudo sozinha. D trabalho, mas mando em mim. Vou arrumar homem? Ainda tenho que cuidar dele. E no que com esta idade, tenho dois filhos que no trabalham, se separaram, trouxeram os netos e eu continuo cuidando de tudo? Mas filho e neto so da gente. (D. Flora, apud Bernardo, 1998:62) Quando viemos para So Paulo, veio minha me, eu e meus irmos. Meu pai ficou foi l, em Piracicaba. Ele nunca teve sorte. Ficou l. Eu sempre fui solteira, por duas razes: no queria ter filho preto, porque sofre muito, e tambm no gostava de homens da minha cor. Eu sempre trabalhei e economizei. (...) Eles entram na casa que da gente e pensavam que eram os donos. Ah, aqui no, queriam mandar e no tinham capacidade. (D. Francisca, id. opus).

    Na viso de alguns autores, a matrifocalidade ainda caracterstica em

    muitas famlias paulistanas, na medida em que:

    A constituio da famlia negra, nos moldes da famlia nuclear burguesa, ou monogmica, fenmeno historicamente recente e no totalmente consolidado, expressando antes um ideal de padro familiar a ser atingido naquilo que ele representa ideologicamente

  • 46

    como indicador de integrao social do que uma estrutura concretamente possvel, dado as precrias condies de existncia da populao negra (Carneiro, 1985: 43, apud Bernardo, 1998:66).

    A situao brasileira contempornea do mercado matrimonial, onde

    constata-se o preterimento da mulher negra pelo homem negro, tem razes

    histricas fundantes no modelo polignico africano.

    Weber (2002), ao fazer uma anlise de um tempo voltado para o mercado

    afirma que, antes de mais nada, a situao de classe uma situao de mercado o

    poder, inclusive o poder econmico, pode ser valorizado por si mesmo.

    Frequentemente a luta pelo poder tambm condicionada pela honra social que

    traz consigo (Weber, 2002:57). A condio de se conseguir status atravs da

    herana ou da aquisio de poder econmico.

    Nessa perspectiva, so observadas sucessivas demandas para reverter a

    condio de insero desvantajosa no mercado de trabalho e nas representaes na

    vida pblica e privada do povo negro, enquanto sujeito coletivo e individual, apesar

    de haver na sociedade brasileira a idia da dialtica racial ancorada na

    miscigenao e nas convivncias harmoniosas, como se a diversidade fosse uma

    pluralidade de um tipo especial e que os encontros das etnias no Brasil se dessem

    pela igualdade. Esta viso ideolgica, representando uma discriminao velada e

    uma forma de manuteno do poder. Os que sofrem a segregao revestida de

    diversas embalagens so sujeitos histricos, racionais, conscientes, que resistem.

    H na literatura inmeros relatos de resistncia dessa excluso por meio de formas

    especficas de organizao social. Dentre elas, porm, optei por uma que, como

    raras contempla o esforo da participao feminina contra o racismo, na tentativa de

    dignificar a auto-estima da mulher negra, procurando livr-la da peja de objeto

    sexual pela sua esttica, paradoxalmente negada, buscando restaurar sua imagem

    pblica pelo modelo da esttica eurocntrica dominante.

    Em um artigo sobre a Frente Negra Brasileira (FNB), que existiu em So

    Paulo, de 1931 a 1937, e tida como a maior e mais significativa instituio negra no

    combate ao racismo no perodo ps-abolicionista, chegando a reunir pelas

    estimativas de um de seus dirigentes, no seu auge de 25 a 30.000 filiados, Petrnio

    Domingues, professor do Departamento de Histria da Universidade Federal de

    Sergipe, evoca e recupera a participao feminina dentro da entidade, cerrando

    fileiras contra a discriminao e na luta pela superao dos percalos existentes no

  • 47

    cotidiano desse estrato populacional por melhores condies de vida e cidadania.

    H uma lacuna quanto aos registros histricos dessa participao enquanto agente

    da histria. Para o autor, tambm na FNB ocorre a mesma situao, mencionando

    que os estudos no so prdigos em relatar o seu pertencimento e feitos, nem lhe

    conferindo a devida visibilidade no movimento negro.

    A criao dessa organizao no foi aleatria. Segundo o autor, resultou

    de experincias diversas de formas organizativas dos negros no ps-Abolio. A

    FNB caracterizou-se por ser a entidade do movimento negro que mais adquiriu fora

    poltica durante as primeiras dcadas do sculo XX, conseguindo ser recebida em

    audincia pelo presidente da Repblica, Getlio Vargas, e pelo ento governador do

    Estado de So Paulo, Armando de Salles Oliveira. Tambm no mbito dos direitos

    civis conseguiu alguns avanos como a garantia de acesso de negros aos rinques

    de patinao e sua entrada na Guarda Civil de So Paulo, at ento proibidos.

    Artur Ramos observa que o "esprito associativo" do negro marcou sua trajetria no pas. Desde a escravido, esse segmento populacional desenvolveu diversas formas de organizao coletiva. At a Abolio, foram criados grupos ou associaes de carter religioso, cultural e socioeconmico representados por quilombos, confrarias, irmandades religiosas, caixas de emprstimos, etc., (apud Domingues, 2006). No perodo do ps-Abolio (transio do sculo XIX para o XX), os negros criaram diversas associaes em So Paulo: grmios recreativos, sociedades cvicas e beneficentes. A maioria delas possua estatuto e era conduzida por um presidente, auxiliado por uma diretoria escolhida atravs de eleies. As associaes negras mantinham uma ativa vida social, muitas delas se reuniam diariamente. A maioria tinha como eixo central de atuao garantir o lazer de seus afiliados, principalmente por meio dos bailes danantes. As associaes negras cumpriam, fundamentalmente, o papel de produtoras de uma identidade especfica, de um "ns", negros, em oposio a "eles", brancos (Domingues, 2006:2).

    Dentre as vrias associaes existentes na poca, algumas possuam

    uma diretoria composta de "damas", exemplo de O Kosmos e da Sociedade 15 de

    Novembro, e apenas quatro tinham uma formao especificamente feminina como a

    Sociedade Brinco das Princezas, o Grmio Recreativo Rainha Paulista, o Grmio

    Recreativo 8 de Abril e o Grupo das que no ligam importncia (Domingues,2006:2).

    Outro fato que merece destaque a viso machista do mercado de

    trabalho jornalstico da imprensa negra da poca, com reduzido espao de

    participao da mulher como redatora ou editora. O jornal Getulino, em um editorial,

  • 48

    assim se posicionava quanto ao papel social da mulher: "a mulher foi criada para me,

    para doce companheira do homem, e nesse sentido, a sua constituio fsica e moral para

    o completo desenvolvimento dessa misso" (Getulino, 02/09/1923:1 apud Domingues,

    2006:3).

    Continua o autor, citando outro rgo da imprensa paulistana

    O machismo ficava mais explcito em O Clarim da Alvorada, na medida em que se propagava uma concepo de famlia de modelo patriarcal: a grande obra da ao negra no Brasil deve comear pela famlia pois que ela a clula-me de toda a sociedade civil. E a famlia a unio do varo e a esposa com seus filhos, debaixo do governo do varo (O Clarim da Alvorada, 13/05/1927:3, apud Domingues, 2006:3).

    Igualmente a FNB, entre os seus vrios departamentos, possua o de

    Imprensa, que publicava o jornal da casa A Voz da Raa responsvel oficial pela

    divulgao dos ideais da entidade. Era marcante na linguagem jornalstica desse

    veculo, denotando a forte ideologia machista, a caracterizao de gnero, tais como

    as diferenciaes do sujeito no masculino e no feminino "frentenegrinos e

    frentenegrinas", "meus irmos e minhas irms negras", "senhores e senhoritas",

    "leitores e leitoras" (id. opus).

    O perfil do homem negro associado, ou seja, da grande "massa de cor,"

    era de desempregados, trabalhadores de cargos subalternos e servios braais e,

    em menor escala, parte de segmentos das camadas mdias negras (funcionrios de

    escritrios e profissionais liberais). A estes ltimos cabia assumir os postos de

    direo da organizao (Andrews, 1998:233, apud Domingues, 2006:3).

    O perfil da mulher frentenegrina era o perfil da mulher negra da poca,

    pobre, trabalhadora e sempre em posies subalternas e de explorao, cuidando

    concomitantemente de seus lares, sustentando o marido ou o amsio, arcando com

    os gastos domsticos. Na viso de Fernandes essa mulher era

    (...) como a artfice da sobrevivncia dos filhos e at dos maridos ou "companheiros". Sem a sua cooperao e suas possibilidades de ganho, fornecidas pelos empregos domsticos, boa parte da "populao de cor" teria sucumbido ou refludo para outras reas. Herona muda e paciente, mais no podia fazer seno resguardar os frutos de suas entranhas: manter com vida aqueles a quem dera a vida! Desamparada, incompreendida e destratada, travou quase sozinha a dura batalha pelo direito de ser me (...). Nos piores contratempos, ela era o "po" e o "esprito", consolava, fornecia o

  • 49

    calor do carinho e a luz da esperana. Ningum pode olhar para essa fase do nosso passado, sem enternecer-se diante da imensa grandeza humana das humildes "domsticas de cor", agentes a um tempo da propagao e da salvao do seu povo (Fernandes, 1978:211, apud Domingues, 2006:4-5).

    Nesse sentido, os dirigentes da FNB demonstraram uma grande

    preocupao com a mulher negra, tanto em entrevistas jornalsticas (Folha da Noite

    em 1931), quanto em reunies para busca de solues, bem como adotando ainda

    outras estratgias.

    Domingues relata:

    Marcelino Flix (2001) faz aluso ao Departamento de Colocaes Domsticas na FNB, que funcionava como uma espcie de agncia de emprego. Seu objetivo era conseguir servios domsticos cozinheira, passadeira, copeira e lavadeira para as frentenegrinas. Fernandes argumenta que, em virtude das frentenegrinas terem adquirido conscincia de seus direitos, muitas patroas passaram a evit-las. Em compensao, outras lhes davam preferncia, pois "sabiam que podiam confiar nelas, que era gente direita" (Fernandes, 1978:55). A Frente Negra da Bahia tinha como uma de suas metas criar uma nova imagem para a mulher negra, "da a institucionalizao de um quadro social feminino". Em entrevista concedida imprensa local, dizia-se: "devemos mesmo trabalhar pela formao da elite da mulher negra" (Bacelar, 1996:76, apud Domingues:5).

    . Apesar de suas agruras cotidianas no tocante militncia, a mulher negra

    cerrou fileiras no af de defender as demandas da negritude, constituindo-se em

    seu maior efetivo dentro da organizao. Porm, ao lanar um olhar mais acurado

    postura da FNB em seu posicionamento de gnero observo que as mulheres no

    tinham seu devido reconhecimento, consoante a ideologia machista da poca, que

    ainda prevalece na atualidade, ocupando funes subalternas, sem oportunidades

    de participar das instncias decisrias, prerrogativa totalmente masculina. No foi

    facultado a nenhuma delas tomar assento no "Grande Conselho" (instncia mxima

    da FNB), o que pode ser justificado pela concepo de que o papel social reservado

    "s meninas e moas" era o de "futuras esposas e mes", como prescrevia Arlindo

    Veiga dos Santos.

    As questes de gnero no casamento deveriam ser bem demarcadas. Um

    articulista do rgo da casa definia

  • 50

    O esposo d o po e o conforto; a esposa, Deusa do lar, d o beijo que encoraja e o carinho que revigora. [Em seguida, aconselhava que a mulher fosse] sempre fiel, dcil e carinhosa [para seu] esposo e defensor, [que] dar conforto e agasalho em seu terno corao (A Voz da Raa, 07/1936:3, apud Domingues, 2006 :6).

    Alm da "Sala Feminina", as associadas contavam com dois

    departamentos internos de cunho feminino: as Rosas Negras e a Cruzada

    Feminina, cujas atribuies eram substimadas pelos homens: as recreativas e as de

    assistncia social. Nas recreativas, de competncia do grupo As Rosas Negras, era

    dada grande nfase s atividades literrias, alm dos saraus danantes, com o

    intuito de elevar e refinar o padro intelectual do negro. Quanto ao grupo A Cruzada

    Feminina, este responsabilizava-se pela arrecadao de fundos para a assistncia

    social e aquisio de uniformes e material escolar, organizao do perfil biogrfico

    dos fundadores, aumento do nmero de assinantes do jornal, tendo porm como

    objetivo central dessa comisso fortalecer o campo educacional e cultural.

    Dentre as suas diversas aes, a frentenegrina procurou estabelecer um

    cdigo de conduta que norteasse o padro de comportamento dos negros, ditando

    as regras sociais a serem seguidas. Arlindo Alves Soares, seu presidente

    considerava que

    "grande parcela de negros" que compunham a populao brasileira eram "incivilizados" (A Voz da Raa, 17/03/1934:5), por isso, era necessrio incorporar o que foi denominado de "cdigo de civilidade". A entidade veiculou valores ticos, morais, culturais e ensinamentos de como o negro devia se comportar socialmente, tanto na esfera pblica quanto na privada. O jornal A Voz da Raa publicava "o que ns os pretos devemos saber" (Domingues, 2006:7-8).

    .

    Tambm as mulheres tinham sua conduta patrulhada com determinao

    de regras de etiqueta a serem observadas, recebendo todo o apoio necessrio. Em

    nota, Noemia de Campos prescrevia no jornal

    Minhas irms negras; ns, antes de usarmos, boina, sapatos sem meia, blusa sem mangas e brincos argolo, devemos primeiramente consultar com as nossas costureiras ou pessoas amigas, para ver-se nos fica bem, para no sermos vtimas do riso dos transeuntes e vergonha das nossas irms que sabem trajar-se bem (Id. 30/09/1933:3, apud Domingues, 2006:8).

  • 51

    Essas orientaes fizeram a mulher negra assumir uma atitude de altivez

    e modernidade, tanto quanto s brancas

    Rara era em S. Paulo, p. ex., a negrinha que ousasse usar chapu, de medo das chufas dos brancos (e especialmente das brancas!). Hoje so legies as que usam esta indumentria que nada em si mesma, porm define uma atitude social (Id. ib. op.).

    De maneira muito discreta o jornal A Voz da Raa props-se a discutir os

    problemas do feminino negro. Ao contrrio, Celina Veiga foi uma exceo. Ela

    procurou estimular o confronto entre a negra e a branca, com as armas de que

    dispunham civilizadamente. Dizia

    A mulher negra precisa hoje em dia enfrentar a mulher branca; para isso, temos as armas necessrias de combate, so as seguintes: tenhamos moralidade, amor aos nossos negrinhos; fazendo-lhes ver os deveres para com a Ptria; ilustrando a inteligncia e o aperfeioamento das artes e ofcios, para as quais sentimos vocao, e, principalmente, concorrendo em tudo e por tudo com a mulher branca, pondo a nossa inteligncia, o nosso preparo, a nossa atividade e o nosso patriotismo (Id. 11/05/1935: 2 apud op.:8).

    Uma preocupao que fazia parte da organizao quanto ao seu quadro

    de associadas era com o mercado matrimonial. O artigo "Brevirio da mulher"

    sanciona essa premissa, ratificando e recomendando normas de conduta pertinentes

    consecuo de um marido.

    A mulher no devia ser namoradeira, mas contrair relacionamentos amorosos com a perspectiva de casamento; "pecar mais por ser recatada que desenvolta, pois nada h que lhe assente to bem como o recato, considerado por toda gente prprio do sexo". Aquelas que "andam a pelas ruas, mostrando com excesso o que o pudor manda ocultar, (...) que se sentam em pblico pondo uma perna sobre a outra", deviam ser severamente censuradas. Afinal, essas mulheres podem agradar determinados homens, mas a maioria h de parecer pouco indicada para mes de seus filhos, motivo por que algumas senhoritas acham noivos, mas no maridos. [No final do artigo, uma advertncia para as mulheres] No esqueceis que o homem (...) costuma desejar com mais ardor justamente aquilo que menos acessvel se lhe mostra (Id. 06/1936: 3 apud op.:9).

    .

    A possibilidade de dar vez e voz s angstias femininas ocorreu somente

    na edio de nmero setenta do jornal com o lanamento de uma coluna especfica

  • 52

    intitulada de "Seo Feminina", que no pode ir avante, pelo fechamento da

    entidade.

    A transformao, em 1936, da entidade em partido poltico levou-a a ter

    pretenses de lanar candidatos para as eleies futuras. Porm, ideologicamente,

    seu projeto poltico era nacionalista, de vis autoritrio. Seu primeiro presidente -

    Arlindo Veiga dos Santos - era radicalmente contrrio democracia e

    constantemente fazia apologia do fascismo europeu. Com a vinda do Estado Novo,

    em 1937, e a implantao do regime ditatorial a FNB foi extinta, assim como todos

    os partidos polticos. Seu fechamento ocasionou um grande vcuo na

    representatividade do movimento negro em So Paulo, alm de uma sensao de

    orfandade aos seus associados.

    Ao olhar dessa maneira, os registros passados do movimento social de

    nossa interlocutora e, ao retom-la na contemporaneidade, vejo que os anos

    transcorridos no foram suficientes para alterar a imagem da mulher negra

    pejorativamente significada e perpassada de imposies eurocntricas. A despeito

    de todos os confrontos e embates travados para um legtimo reconhecimento de um

    pertencer igualitrio e cidado e para a preservao e no esvaziamento da herana

    simblica de seus antepassados, sua posio continua sendo uma vez mais de

    sujeito da histria, de sua prpria histria, buscando sempre ressignific-la nessa

    caminhada cotidiana de revezes e insucessos. De forma sistmica, a explorao

    sexual da mulher negra de pele mais clara, mulata tipo exportao, coloca-a

    continuamente no papel de objeto sexual. Os fatos falam por si, corroborados por

    Gonzles sobre as formas de representao desse feminismo negro.

    (...) padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o vis eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questo de raa nas hierarquias de gnero presentes na sociedade, e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem as mediaes que os processos de dominao, violncia e explorao que esto na base da interao entre brancos e no-brancos, constitusse em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, tambm revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma histria feita de resistncias e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graas dinmica de uma memria cultural ancestral que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo (Bairros, 2000:57 apud Carneiro, 2003:3)

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    A realidade contempornea das cidades derruba a tese da expanso da

    democracia social e racial, pois as relaes esto interditadas para alm das

    probabilidades conferidas na diversidade e na participao poltica, mas

    engendradas na construo sutil de mecanismos discriminatrios.

    Nas cidades brasileiras est em curso uma desvantajosa insero no

    mercado de trabalho para as mulheres negras. Essa fora de trabalho sofre com o

    maior ndice de desemprego e com os mais baixos salrios. Independente de a

    situao ter uma explicao histrica, como justificar a perpetuao da ausncia de

    equidade como questo atual? importante, mas no basta por si s uma releitura

    da herana de uma estrutura econmica baseada no trabalho escravo. Na verdade,

    existem discriminaes inaceitveis em relao mulher negra na aparente falta de

    clareza da relao indivduo/sociedade, o que mais uma vez a torna hierarquizada.

    Os maiores percentuais de vulnerabilidade da mulher negra no universo dos trabalhadores ocupados se explicam, sobretudo, pela intensidade de sua presena no emprego domstico. Esta atividade, tipicamente feminina, desvalorizada aos olhos de grande parte da sociedade, caracterizando se pelos baixos salrios e elevadas jornadas, alm de altos ndices de contratao margem da legalidade e ausncia de contribuio previdncia (DIEESE, 2005:5). Dados de 2006 da PNAD/IBGE revelam a existncia no Brasil, de cerca de 6,7 milhes de pessoas no trabalho domstico, deste total, 6,2 milhes so mulheres, ou seja, 93,2% e 6,8%, so homens. O maior contingente o das mulheres negras: as domsticas so 21,7% das mulheres ocupadas, ou seja, de cada 100 mulheres negras ocupadas no Brasil aproximadamente 22 so empregadas domsticas. A grande maioria das domsticas, cerca de 72,5%, no tem carteira assinada, desse contingente, 57,5% so negras (Silva, SNMT-CUT, 2008).

    No quesito salarial a diferenciao por raa e gnero tambm fato consumado

    dentro da categoria, com as seguintes distines segundo a renda mdia

    (PNAD/IBGE, 2006): homens brancos no servio domstico em torno de R$ 465,20,

    mulheres brancas R$ 351,34, enquanto a renda das negras foi de apenas R$

    308,71.

    Quando o assunto se refere ocupao de forma geral, para as mulheres

    negras a situao tambm se mostra desvantajosa. Em 2007, representavam 16,7%

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    da PEA e 15,8% do total de ocupadas, porm representavam mais da metade das

    mulheres desempregadas (22,3%), no municpio de So Paulo. No tocante a salrio,

    com base nos ltimos sete anos, as mulheres negras ocupadas no mercado de trabalho

    paulistano formam o grupo social que apresentou o menor salrio em relao s mulheres

    no-negras.

    Enquanto o rendimento mdio das mulheres no-negras somou em mdia R$ 1.288,00, as mulheres negras receberam 51% desse valor, R$ 660,00. Portanto, no caso das mulheres negras, por mais que o rendimento mdio de 2007 (R$ 664,00), seja o maior desde 2002, ele ainda baixo em relao ao padro de remunerao das mulheres no-negras ( DIEESE/SEADE in Todo Dia, Fev/08).

    Estudos oficiais apontam ainda que, alm da questo gnero e ocupao,

    h fatores relevantes ligados aos ndices de desenvolvimento humano e qualidade

    de vida. A expectativa de vid