a solidão da mulher negra claudete alves da silva souza
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feminismo negroTRANSCRIPT
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC SP
Claudete Alves da Silva Souza
A solido da mulher negra sua subjetividade e seu preterimento
pelo homem negro na cidade de So Paulo
MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS
So Paulo
2008
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC SP
Claudete Alves da Silva Souza
A solido da mulher negra sua subjetividade e seu preterimento
pelo homem negro na cidade de So Paulo
MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS
Dissertao apresentada Banca
Examinadora como exigncia
parcial para obteno do ttulo de
Mestre em Cincias Sociais, na
rea de Antropologia pela
Pontifcia Universidade Catlica
de So Paulo, sob a orientao da
Profa. Dra. Terezinha Bernardo
So Paulo
2008
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Banca Examinadora
___________________________________________
Professora Doutora Terezinha Bernardo
___________________________________________
Professora Doutora Ana Virginia Santiago Arajo
________________________________________________
Professora Doutora Eliane Hojaij Gouveia
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Aos meus queridos filhos Kelly e Jefferson razes
do meu existir e que me trazem diariamente a
certeza de que o mundo no apenas branco e
preto.
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AGRADECIMENTOS
Especialmente a Jesus, meu ajudador que me fortalece em todas as
horas na batalha do existir.
Negros Jorge e Bira com quem trilhei e trilho jornadas amorosas de
cumplicidade e carinho.
Professora Doutora Terezinha Bernardo, mestra querida, que se
interessou pela minha causa e me propiciou uma orientao segura e brilhante
convencendo-me que eu era capaz.
A valiosa colaborao e sugestes das Professoras Doutoras Ana Virginia
Santiago Arajo e Eliane Hojaij Gouveia por ocasio da Banca de Qualificao.
Professores Doutores Carmem Sylvia de A. Junqueira, Edgar de Assis
Carvalho, Marisa do Esprito Santo Borin, Dorothea Voegeli Passetti, Paulo Edgar
Almeida Resende, cujos ensinamentos foram fundamentais.
Todas as mulheres que fizeram parte desse estudo desnudando
generosamente suas almas e contribuindo com os seus relatos para construir
saberes.
Aos professores Joo Galvino e Ana Maria Florentino de Macedo, pela
sua dedicao e ajuda indispensvel.
A todas as mulheres negras, parceiras de historicidade e guerreiras de
sempre que bravamente continuam resistindo contra o processo de
embranquecimento do pas.
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RESUMO
SOUZA, Claudete Alves da Silva. A solido da mulher negra sua
subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de So Paulo
Abordei neste trabalho a solido da mulher negra na dimenso afetivo-sexual, tendo
como eixo central seu preterimento, enquanto pretendente ao mercado matrimonia,
pelo parceiro da mesma etnia. Para o entendimento de tal fenmeno procurei buscar
na literatura dados que dessem conta dessa realidade emprica, partindo da
concepo scio-histrica desse sujeito e das implicaes a ela correlacionadas. A
linha metodolgica utilizada foi a qualitativa, caracterizada pelo grupo focal e pela
anlise do discurso, permitindo conhecer as representaes dessas mulheres. Os
dados obtidos com a devoluo de 62 roteiros de entrevista nortearam a realizao
do grupo focal, composto por 11 mulheres. A anlise dos dados mostrou que os
sujeitos consideram que existe uma situao de desvantagem da mulher negra em
comparao com a mulher branca no que concerne preferncia do homem negro
na escolha de parceira afetiva e conjugal. Esta situao repercute com mais
intensidade nas jovens negras, independente da classe social. O comportamento do
homem negro foi percebido como resultado de uma desvalorizao social da
populao negra do Brasil, de longa data, que vem estimulando os jovens negros a
procurar clarear a famlia. A associao inter-racial foi vista como vantajosa para o
homem negro, no sentido da sua ascenso social, e muito desvantajosa para a
mulher negra pela tendncia observada da predominncia de pares inter-raciais,
quais sejam homem negro-mulher branca. As participantes consideram que o
preterimento da mulher negra acarreta solido e humilhao. Para enfrentar esta
situao o grupo considerou que a educao formal um fator importante de
resgate dos valores tnicos da raa negra, possibilitando a identificao de maior
nmero de indivduos com estes valores.
Palavras-chaves: Solido afetivo-sexual, matrifocalidade, etnia, identidade,
preterimento.
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ABSTRACT
This work has as an aim to tackle the loneliness of the black woman in the affective-
sexual dimension, having as a central axis her rejection while pretender to the
marriage market by the partner of the same ethnicity. For the understanding of this
phenomenon we looked for in the literature datas that could show this empirical fact
starting from the socio-historical conception of this subject and the correlated
implications. Thus, in addition to the Bibliographic research, the methodological
line leds up qualitative technical piece, characterized by the focus group and by the
analysis of the speech, allowing to know the representations of these women. The
obtained datas with the devolution of 62 interview routes sent to 62 women guided
the focus group realization. The datas analysis showed that women who joined the
survey consider that there is a disadvantage situation of the black women compared
to the white women regarding to the preference of the black men in the choice of
the affective and conjugal partner. This situation affects more intensively on young
black women, independent of the social class. The behavior of the black man was
perceived as a result of a social devaluation of the black population from Brazil, from
a long time ago, that is stimulating the young black men to seek "lighten" the family.
The Inter-racial association was seen as beneficial to the black man, meaning its
social climbing and very disadvantaged for the black woman, by the tendency
observed between the inter-racials couples the couple black man-white woman as
predominant. The participants believe that the exclusion of the black woman brings
loneliness and humiliation. To face this situation, the group considered that the
formal education is a rescue major factor of the black ethnic black, enabling the
identification of a bigger number of people with thesevalues.
Keywords: Affective-sexual loneliness, matrifocality, ethnicity, identity, rejection.
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Claudete Alves da Silva Souza
A solido da mulher negra sua subjetividade e seu preterimento
pelo homem negro na cidade de So Paulo
A tomada de conscincia da opresso ocorre,
antes de tudo, pelo racial.
Llia Gonzalez
So Paulo
2008
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A Mulher Negra Guerreira est morta...
Tributo Fnix Negra
H poucas horas, enquanto lutava com a realidade de ser humana e no um
mito, a mulher negra guerreira faleceu. Fontes mdicas afirmam que ela
morreu de causas naturais, mas os que a conheceram sabem que ela morreu
por ficar em silncio quando deveria ter gritado; por sorrir quando deveria
ter liberado sua fria; e por esconder sua doena para no incomodar a
ningum com sua dor. Ela morreu de overdose de gente em suas costas
quando no tinha energia nem para si mesma. Ela morreu de tanto amar
homens que no amavam a eles prprios e que a nica coisa que lhe davam
em troca era um reflexo distorcido. Ela morreu por criar filhos sozinha e
por no poder fazer todo o servio. Ela morreu por causa das mentiras
sobre a vida, os homens e racismos que sua av contou sua me e sua me
lhe contou. Ela morreu por ser sexualmente molestada quando criana e por
ter que carregar a verdade consigo pelo resto da vida, trocando sempre a
humilhao por culpa. Ela morreu de tanto ser espancada por algum que
dizia am-la, e ela permitia que o espancamento continuasse para mostrar
que tambm amava esse algum. Ela morreu de asfixia, cuspindo sangue por
causa dos segredos que guardava tentando abaf-los em vez de se permitir
a crise de nervos que lhe era de direito mas que s as mulheres brancas
podem se dar ao luxo de ter. Ela morreu de tanto ser responsvel, porque
ela era o ltimo degrau de uma escada sem apoios e no havia ningum que
pudesse ampar-la. A mulher negra guerreira est morta. Morreu por causa
dos tantos partos de crianas que ela na verdade nunca quis, mas que a
moral estranguladora dos que a cercam obrigou-a a ter. Ela morreu por ter
sido me aos 15, av aos 30 e um antepassado aos 45. Ela morreu por ter
sido derrubada e tiranizada por mulheres no-evoludas que se diziam
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sisters, companheiras. Ela morreu por fingir que a vida que levava no sculo
XXI era um momento Kodak e no um pesadelo ps-escravido. Ela morreu
por tolerar qualquer z man s para ter um homem em casa. Ela morreu
por falta de orgasmos, porque nunca soube de suas reais capacidades. Ela
morreu por causa dos joelhos dolorosamente comprimidos um contra o outro,
porque respeito nunca fez parte das preliminares sexuais que lhe eram
impostas. Ela morreu por causa da solido nas salas de parto e abandono do
nas clnicas de aborto. Ela morreu por causa da comoo nos tribunais onde
sentava-se, sozinha, vendo seus filhos serem legalmente linchados. Ela
morreu nos banheiros com as veias irreversivelmente abertas pelo descaso
geral e pelo dio que sentia por si mesma. Ela teve morte cerebral
combatendo a vida, o racismo, os homens, enquanto seu corpo era arrastado
para um matadouro humano para ser espiritualmente mutilado. E algumas
vezes quando se recusou a morrer, quando apenas se recusou a entregar os
pontos, ela foi assassinada pelas imagens fatais de cabelos loiros, olhos
azuis e bundas chapadas, quando foi rejeitada pelos Pels, Djavans e
Ronaldinhos da vida. s vezes, ela era arrastada para a morte pelo racismo
e pelo sexismo, executada pela ignorncia hi-tech enquanto carregava a
famlia na barriga, a comunidade na cabea e a raa nas costas. A
escandalosa mulher guerreira sem voz est morta!!!!!! Ou Ela Est Viva, E Se
Mexendo??????
autora desconhecida.
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SUMRIO
Introduo........................................................................................................23
1. Retrospectiva histrica...........................................................................36
2. Afetividade e sexualidade da mulher negra..........................................56
2.1 Identidade, etnia e gnero como categorias relacionais da
solido......................................................................................................62
3. A mulher negra, mercado matrimonial e preterimento afetivo.........69
3.1 Solido e relao amorosa......................................................................75
Consideraes Finais...................................................................................115
Referncias Bibliogrficas...........................................................................119
Anexos............................................................................................................129
Anexo 1 Relatrio de Observaes..............................................................130
Anexo 2 Roteiro de Entrevista......................................................................145
Anexo 3 Transcrio das Entrevistas..........................................................162
Anexo 4 Termo de Consentimento...............................................................185
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INTRODUO
So Paulo uma das cidades de maior diversidade tnica do mundo. So
milhes de pessoas que vivem, convivem e do formas, formatos, atos e dinmica
prpria para esta grande metrpole. Mais do que uma cidade, mesmo um imenso
e inconcluso mosaico de culturas, manifestaes e interaes humanas que se
complementam e se contrapem no eterno processo de manuteno e reproduo
da vida. Cidade de encontros, desencontros, unidades e diversidades espraiadas e
pulsantes nos consensos e contradies que marcam o seu cotidiano, onde a vida
urbana impe dificuldades e inflige dramas sociais cor negra, pouco visveis aos
olhares menos cuidadosos, porm insuportveis para quem sente e luta para
transpor todas as barreiras histrico-culturais.
O argumento central de Caldeira (2000) que a cidade assiste, ao longo
da histria, alteraes segregadoras profundas. Essas alteraes apiam-se na
atribuio de ameaas a alguns grupos que compem a populao, aliada
descrena e desconfiana na capacidade de os poderes pblicos garantirem a
segurana dos cidados. Essas so regras que organizam e separam, ao mesmo
tempo em que definem o espao pblico e a sociabilidade caracterstica da vida
moderna em um contexto de atividades criminosas e de segregao desmesurada.
Em cidades fragmentadas por enclaves fortificados, difcil manter os princpios de acessibilidade e livre circulao, que esto entre os valores mais importantes das cidades modernas (...) uma cidade de muros em que a qualidade do espao pblico est mudando imensamente e de maneiras opostas quilo que se poderia esperar de uma sociedade que foi capaz de consolidar uma democracia poltica. (Caldeira, 2000:211-255).
Neste imenso e complexo universo de coisas urbanas, repleto de
parcelas e segmentaes humanas seccionadas ou delimitadas por um mundo de
eventualidades, as situaes sadas de referncias sociais, polticas e econmicas,
momentneas, espordicas ou no, marcam, sobremaneira, o ligeiro e o fugido
fazer da polis atual. A partir de traos identitrios, oriundos de matizes histricos
diferenciados, possuidores de efetivo lastro e onde as razes desse processo se
deitam na prpria formao do estrato social, do qual faz parte a mulher negra,
busco compreender, com o assumido risco de me defrontar com imprecises
conceituais e metodolgicas, o que , efetivamente, a solido desta mulher na
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cidade de So Paulo. Como foi a sua construo? Quais os elementos
contemporneos de maior incidncia e influncia neste processo e como tais
elementos se articulam na vivncia desta mesma mulher?
Contudo, meu desafio , em meio a tantas adversidades impostas para
esta mulher, buscar apreender da feminilidade negra a subjetividade predominante e
definidora de sua auto-estima, comportamento e modelos relacionais que so,
voluntariamente ou no, incorporados ao seu cotidiano. Em um recorte mais
definidor, cabe indagar, na tentativa de entender o prprio impacto desta
subjetividade, com todos os seus limites e na sua dimenso afetiva com implicaes
diretas, concretas e perceptveis no encontro afetivo com o outro: como o mundo
subjetivo da negra - centralmente influenciado pelo mito de que preta boa de
samba e de cama, velho resqucio do perodo escravocrata - se manifesta na
perspectiva da conformao de uma auto-percepo diferenciada, preservando sua
autonomia e dignidade pessoal?
Conforme cita Bordieu:
A percepo do mundo social produto de uma dupla estruturao social: do lado objetivo, ela est socialmente determinada; do lado subjetivo, est estruturada porque os esquemas de percepo e de apreciao susceptveis de serem utilizados so produtos de lutas simblicas anteriores e exprimem de forma diferenciada o estado das relaes simblicas. (Bordieu, 1992:32).
Assim, o desejo de tal investigao parte, principalmente, de anos de
observao de tais fenmenos, oriundo do meu convvio e interlocuo com o
cotidiano de lutas e desafios das mulheres negras, buscando compreender, alm
das urgncias sociais, polticas e econmicas, temticas outras, digamos, pouco
discutidas e refletidas, mesmo pelo movimento negro, tais como solido e afeto.
A concepo que fundamenta tal investigao histrica e relacional
fazendo um recorte afetivo e de gnero, uma vez que acredito que a mediao das
relaes afetivas entre homem negro e mulher negra, alm de assentar-se na
contextualizao desses eixos, implica tambm em uma perspectiva tnico-racial.
Quando abordo solido, essas mulheres aqui apresentadas representam
ser, ao mesmo tempo, sujeitos de um fenmeno antigo e objetos recentes de
pesquisas e estudos, levando-se em conta os marcadores de sua historicidade e
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etnia. Assim, esta pesquisa est delimitada ao entendimento das novas formas de
sociabilidade num aspecto mais difuso do ser negra, da solido e da subjetividade
destas mulheres na sua prtica cotidiana e na crtica social, isto , em todos os
eventos passveis de uma leitura antropolgica.
Nessa trajetria procurei avanar nas delimitaes e recortes necessrios
a fim de garantir coerncia e profundidade a esta investigao. Outrossim, ressalto
que, o que se pretende avanar epistemologicamente para adiante das simplrias
categorias explicativas que buscam enquadrar a mulher negra em leituras
generalistas, lineares e compartimentadas, onde as especificidades e os traos de
maior singularidade aspectos essenciais para uma efetiva compreenso do ethos
e do modus destas mulheres construrem sociabilidades desaparecem em
perspectivas e abordagens excessivamente panormicas e que notadamente no
garantem a compreenso devida e necessria para o tema em questo.
Sabe-se, no entanto, que compreender os interstcios da solido da
maioria das mulheres negras faz-lo, inicialmente, tendo-se em vista a
compreenso do prprio modelo de sociedade, dado o seu processo de formao
histrica, das fundaes onde se assenta tal organizao social, bem como do papel
relegado para cada categoria tnica que compe e d densidade para o imenso
universo de contradies e heterogeneidade que a cidade de So Paulo. Mais
ainda, observar quais os papis historicamente reservados para esta mesma mulher
nesta sociedade e quais os contornos e feies que estes mesmos papis foram
assumindo ao longo do tempo.
Ao debruar-se sobre o quesito solido, este projeto insere-se em uma
compreenso de mundo. Admite, por assim dizer, preferncias sociais, polticas,
culturais e tnicas. Concebe as relaes como o resultado de historicidades feitas e
desenvolvidas, conscientemente ou no, pelo conjunto das pessoas, estas dotadas
de preferncias diversas e que sero fundamentais para a conduo dessas
mesmas relaes. Some-se a esta gama de influncias, circunstncias especficas e
prevalecentes e que corroboram para a definio do real concreto, sujeito a mltiplas
determinaes.
A literatura existente contempla dados relativos a referncias conceituais
sobre a solido nas mais variadas perspectivas como mostrarei a seguir, dentre elas
a abordagem existencial-humanista desse evento da condio humana. Contempla
tambm aspectos polticos, econmicos e sociais da evoluo histrica da mulher
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negra em nossa sociedade. Poucos estudos, porm, mencionam as relaes
afetivas inter e intra-raciais e as inmeras variveis que as compem. Na viso de
Pacheco a produo bibliogrfica sobre a questo racial brasileira j existe h
tempos, sendo que os primeiros estudos so oriundos do sculo XIX com o advento
da introduo das teorias racistas ou cientficas no Brasil. A partir desse momento
deu-se espao para vrios estudos investigativos sobre o tema nas Cincias Sociais
at os dias atuais. Porm, ressalta a autora:
Entretanto, se a discusso sobre raa mereceu ateno de vrios intelectuais e pesquisadores brasileiros (as) e estrangeiros (as) nas Cincias Sociais brasileiras, o mesmo no se pode dizer sobre a questo da afetividade e, muito menos, sobre a afetividade baseada em critrios raciais e de gnero. Poucas so as pesquisas que levam em considerao tal articulao, sobretudo no que toca a questo das escolhas de parceiros afetivos. (Pacheco, 2006:154).
Ao estudar a solido da mulher negra subjetividade e preterimento - na
cidade de So Paulo pelo homem negro, buscarei sistematizar esse conhecimento
ao dar espao e voz a essa mulher para ouvi-la e tentar desvendar as suas
representaes acerca das abordagens afetivo-relacionais do homem negro, no que
tange escolha de uma companheira da mesma etnia para uma vida a dois,
temporria ou definitivamente, e verificar o nexo causal dessa solido.
Conforme Silva
A situao da mulher negra no Brasil de hoje manifesta um prolongamento da sua realidade vivida no perodo de escravido com poucas mudanas, pois ela continua em ltimo lugar na escala social e aquela que mais carrega as desvantagens do sistema injusto e racista do pas. Inmeras pesquisas realizadas nos ltimos anos mostram que a mulher negra apresenta menor nvel de escolaridade, trabalha mais, porm com rendimento menor, e as poucas que conseguem romper as barreiras do preconceito e da discriminao racial e ascender socialmente tm menos possibilidade de encontrar companheiros no mercado matrimonial. (Silva, 2003:1).
A compreenso do simblico concernente estrutura subjetiva da mulher
negra, enquanto protagonista de relaes afetivo-sexuais, sua solido e suas
possibilidades de unies estveis com o homem negro pois, o mirante privilegiado
que utilizarei para, enfim, compreendermos as bases gerais deste universo feminino
de medos, sonhos, lutas e esperanas. Qual o seu olhar sobre esse fato?
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Os objetivos que norteiam esse estudo so:
Identificar as implicaes decorrentes dos aspectos identitrios como fator
limitador na construo de vnculos afetivos entre o homem negro e a mulher negra;
Apresentar as interpretaes contidas nas expresses discursivas das
mulheres negras sobre o seu olhar acerca de seus encontros e desencontros nas
relaes com o homem negro, enquanto protagonista dessa relao;
Analisar os discursos colhidos, luz de representaes sociais histricas,
acerca do trnsito afetivo entre o homem negro e a mulher negra.
A metodologia utilizada buscou revelar o compromisso com a cincia e
com as possibilidades desta para ensejar mudanas sociais, e exige uma reflexo
sobre qual a cincia que se est praticando e construindo em cada trabalho de
investigao sobre o comportamento humano.
A investigao tradicional, denominada por Danziger (1990) metodolatria
produziu um saber orientado para a definio e a medio de entidades cristalizadas
em contedos fixos. A adoo desta perspectiva produziu um conhecimento
psicossocial fragmentado, constitudo por microteorias que no do conta da
compreenso de um sujeito que , ao mesmo tempo, produto e produtor de sua
histria.
Por seu lado, a tcnica qualitativa est assentada sobre trs
pressupostos:
a) Implica que os participantes estejam em um dilogo: as pessoas se motivam
atravs da comunicao e a motivao uma condio essencial do processo de
informao;
b) Valoriza os casos individuais e as amostras com um pequeno nmero de casos;
c) Trata-se de uma epistemologia construtiva que acompanha a informao ao longo
do seu processo de produo. (Banchs, 2002).
A perspectiva qualitativa adotada nesse estudo traduz o compromisso
com uma concepo de sujeitos as mulheres negras portadoras de uma
combinao de ao, energia e inteno.
Na perspectiva qualitativa atribudo ao investigador um papel ativo
El lugar activo que otorgamos al investigador en la produccin del conocimiento en la epistemologia cualitativa, nos lleva a enfatizar el lugar de la comunicaccin y de lo interactivo en la construccin terica de la subjetividad humana. (Gonzlez Rey, 38).
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Desta forma, o meu engajamento ao tema, longe de significar um entrave
objetividade cientfica, prope-se a dar uma resposta necessidade de articulao
entre a teoria, o dilogo entre autores e os sujeitos e o contexto em que a
investigao se desenvolve.
O conceito de representao social empregado em minha investigao
apareceu pela primeira vez como um conceito sociolgico em Durkheim (1957, apud
Queiroz, 2000) em oposio s concepes mais prestigiadas e difundidas, tanto no
mbito da Psicologia como no da Lgica, acerca da origem inata do conhecimento.
Durkheim defendeu a tese que no h nada no nvel da percepo que seja
independente da dimenso social.
A postura terica desse autor no deixa margem para a criatividade
individual, nem a nenhuma forma de resistncia dominao social.
O conceito de representao social foi refinado e revisto por Serge
Moscovici (1976, apud Queiroz, 2000) em um estudo sobre percepes da
Psicanlise em grupos sociais franceses. Em seu trabalho, criticou na psicologia
cognitiva a despreocupao com as condies da produo do conhecimento. Na
concepo deste autor, este conceito representa um sistema cognitivo que, ao
ordenar o real, d significado ao relacionamento social e permite a comunicao
entre membros de uma comunidade. No Brasil, a obra de Moscovici tem exercido
forte influncia na Psicologia Social (id.Queiroz).
Schtz foi um outro autor que contribuiu para a delimitao terica do
conceito de representao social ao integrar as perspectivas de Weber (1864 -1920)
e Husserl (1859 1938) focalizando como a subjetividade, socialmente orientada se
constri e tipifica a realidade a partir da experincia cotidiana dos indivduos. (Schtz, 1973
apud Queiroz, ibid., 365)
A partir dos enfoques de Moscovici e de Schtz possvel definir
representao social como um tipo de saber, socialmente compartilhado e
negociado, contido no senso comum e na dimenso cotidiana, que permite ao
indivduo uma viso de mundo e o orienta nos projetos de ao e nas estratgias
que desenvolve em seu ambiente social.
O tema subjetividade remete imediatamente Psicologia, tanto no senso
comum quanto no mbito da produo cientfica. Desta forma recorri aos textos
psicolgicos para trabalhar com este conceito. Molon relata que as temticas do
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sujeito e da subjetividade surgiram com o nascimento da cincia moderna e suas
emergncias estiveram vinculadas s condies que propiciaram o desenvolvimento das
cincias sociais e humanas... e, principalmente, da Psicologia (Molon, 1999: 16). A
conquista da legitimidade da cincia moderna afastou a Psicologia da Filosofia, com o risco
de perder seu objeto especfico, pois ao restringir sua anlise ao observvel e ao
mensurvel , excluiu de seu campo de investigao a subjetividade. Assim a
subjetividade ficou identificada com a interioridade inacessvel, e o sujeito com a
exterioridade observvel, o comportamento. Esta noo dicotmica de seu objeto
marcou a evoluo do conhecimento psicolgico: objetividade e subjetividade, razo
e emoo, indivduo e sociedade, excluso e incluso. Com isso, o sujeito da
Psicologia oscila entre uma objetividade observvel e uma subjetividade inefvel. (ibd.: 17).
Nos anos 1921-30, o psiclogo russo Lev Semionovich analisando a
cincia psicolgica, crticou tanto as psicologias subjetivistas idealistas quanto as
psicologias objetivistas mecanicistas e defendeu a unidade entre a psique e o
comportamento, a unidade no a identidade, como bem lembra Molon, e a
correlao entre fenmeno subjetivo e fenmeno objetivo. Para Vygotsky a
constituio do sujeito rompe a separao entre objetividade e subjetividade na
medida em que considera que todas as funes psicolgicas superiores - por
exemplo, o pensamento, a conscincia, a vontade, a linguagem e os sentimentos-
foram antes relaes sociais entre as pessoas. O sujeito , nesta perspectiva, um
ser significante que tem o que dizer, pensar, sentir, tem conscincia do que est
acontecendo, reflete todos os eventos da vida humana (Molon, op.cit.:140).
Smolka, Ges e Pino (1993, apud Molon, op.cit), defendem a noo que a
constituio do sujeito acontece, dialeticamente, no funcionamento interpsicolgico e
deixam claro que esta constituio acontece pelo outro e pela palavra em uma
dimenso semitica. Sendo a palavra e o signo polissmicos, a natureza e a origem
deste processo implicam, necessariamente, o diferente e o semelhante. Assim a
conscincia da prpria subjetividade aparece na relao eu-outro, na qual a
alteridade aparece como fundamento do sujeito.
A subjetividade precisa ser entendida aqui como uma construo que se
processa no mbito das relaes dialticas entre o indivduo e a sociedade. Um
pressuposto fundamental dessa pesquisa que os sujeitos entrevistados tm
representaes coerentes em relao ao universo vivido e experimentado.
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No presente trabalho, optei pela tcnica da anlise de discurso para a
compreenso dos sentidos pessoais construdos pelos sujeitos acerca da vivncia
de solido e da repercusso destes em suas vidas. Usando a tcnica preconizada
por Spink (1994), procurei mapear o discurso a partir das dimenses internas das
representaes: seus elementos cognitivos, a prtica do cotidiano e o investimento
afetivo.
Na realizao da pesquisa qualitativa, que se caracteriza, entre outros
aspectos anteriormente mencionados, por utilizar uma variedade de tcnicas
concomitantemente, foram utilizadas a observao direta, a entrevista estruturada e
o grupo focal, organizadas em trs etapas sucessivas:
Primeira Etapa - Partindo da literatura pesquisada que aponta o
branqueamento da populao brasileira e a tendncia de formao de casais inter-
raciais, realizei observaes diretas para verificar a ocorrncia do fenmeno no
cotidiano da cidade de So Paulo. Observei a proporo de relacionamentos inter-
raciais, especialmente homem negro e mulher branca, em situaes sociais
pblicas. Para isto adotei a estratgia de levantar a freqncia de casais inter-raciais
e verificar a proporo de ocorrncia de homens negros acompanhados de mulheres
brancas, homens brancos acompanhados de mulheres negras e tambm observei a
freqncia de homens negros acompanhados de mulheres negras.
Locais escolhidos para a realizao da observao:
Espaos religiosos: Igrejas evanglicas, catlicas e terreiros de religies de
matriz africana
Teatros
Casas de espetculos
Supermercados
Maternidades
Encontros de Hip-Hop
Metodologia e critrios adotados nas observaes.
O procedimento de observao foi realizado em bairros perifricos e de
classe mdia da cidade de So Paulo. Alm de verificar a ocorrncia de casais inter-
raciais, procurei inferir as idades aproximadas dos mesmos, tendo como base desta
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inferncia a aparncia dos indivduos, como por exemplo, a postura corporal, a
facilidade ou dificuldade de movimentao, a aparncia da pele, a cor dos cabelos e
da barba. Enfim, procurei atravs destes marcadores externos da idade, fazer uma
inferncia sobre a faixa etria aproximada dos casais observados.
Para garantir uma amplitude de amostra dos casais inter-raciais nos
cultos religiosos realizei as observaes em:
Espaos Religiosos
Igrejas evanglicas: Renascer em Cristo, Assemblia de Deus, Universal e
Congregao Crist do Brasil. Assistimos em cada uma delas mais que 2 cultos em
dias diferentes, tanto no meio da semana quanto nos finais de semana.
Igrejas catlicas: Catedral da S, So Jos Operrio, Santa Cruz, Santa
Margarida Maria, So Miguel Arcanjo e Nossa Senhora da Penha. Realizei
observao em missas aos domingos, de manh e noite.
Cultos de religies de matriz africana: Casa de Umbanda Boiadeiro, Ax
Il Oba e Terreiro Caboclo Pena Verde. Nestes terreiros defini um local que
facilitasse visualizar todos os indivduos que entravam. Nestes locais houve maior
dificuldade para realizar o procedimento, uma vez que entre os presentes alguns
eram assistentes e outros participavam da roda. Em alguns momentos s foi
possvel observao aps o estabelecimento de um dilogo com os participantes,
ao trmino da roda.
Em todas estas visitas para realizar as observaes nos templos e igrejas
permaneci sempre na ltima fileira de assentos ou em um local que possibilitasse
visualizar a entrada dos casais. Com exceo da Congregao Crist, onde no foi
possvel observar casais inter-raciais porque os homens participam dos cultos
apartados das mulheres, as observaes foram bem sucedidas.
Teatros
Assisti aos espetculos chegando bem antes do incio das apresentaes
e observando a entrada do pblico at 5 minutos antes do incio.
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Casas de espetculos:
Visitei duas casas de espetculos de classe mdia, a Citibank Hall e a
Credicard Hall. Nestes locais adotei a mesma estratgia que empregada nos teatros.
Supermercados:
Procurei observar, nos finais de semana, supermercados de classe mdia
e de periferia nos horrios matutino, vespertino e noturno. Para realizar a
observao permaneci em um lugar que possibilitasse visualizar todos os caixas,
mediante a expressa autorizao dos gerentes. Os alvos foram dois grandes
supermercados: Carrefour e Po de Acar
Maternidades:
Realizei observao nos seguintes hospitais de regies de classe mdia e
perifrica na cidade de So Paulo: Hospital e Maternidade Santa Joana, Pr-Matre
Paulista S/A, Hospital Santa Marcelina e no Hospital do Servidor Pblico Municipal.
Este ltimo foi escolhido porque embora esteja localizado em regio central da
cidade atende a um contingente considervel de servidores que residem em bairros
de periferia.
O objetivo nas maternidades foi verificar a ocorrncia de mulher negra
acompanhada, seja pelo pai da criana, seja por outro homem ou por qualquer outra
pessoa. Observei tambm o comportamento do acompanhante com relao
parturiente. Nos hospitais citados acima, as observaes foram realizadas nas
recepes de internao e nas recepes de espera, onde vrias vezes foi possvel
estabelecer um dilogo com os acompanhantes, pais ou no. Nas maternidades,
observei a proporo de casais inter-raciais presentes: parturiente negra
acompanhada de homem negro ou branco; parturiente branca tendo o homem
branco ou o negro como acompanhante. Alm disso, anotei a proporo de
mulheres negras entre as parturientes que no tinham um companheiro masculino.
Nestes locais, delimitei um intervalo de tempo e anotei a freqncia de casais inter-
raciais presentes no momento. As minhas observaes cobriram os 4 turnos de
funcionamento dos hospitais: manh, tarde noite e madrugada. Obtive autorizao
para realizar a observao, mantendo-se o sigilo quanto identificao das
parturientes.
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Movimento Hip hop1. Participei de vrios encontros e no encontrei
casais inter-raciais. Vale destacar que nestes encontros a presena de jovens a
tnica..
Concluindo esta 1 etapa, observei em todos estes locais 1164 casais
sendo 973 casais inter-raciais e 191 intra-raciais, dos quais ambos so negros.
Dentre os casais inter raciais, 77% so formados por homem negro com mulher
branca, 22% constitudos de homem branco com mulher negra e 1% de casais de
asiticos com brancos ou negros. Constatei em todos estes espaos um percentual
de 17 % de casais formados por homem negro com mulher negra.
importante salientar que as observaes da 1 etapa tiveram um carter
qualitativo, sem o compromisso de um tratamento estatstico das informaes.
Segunda Etapa - a partir dos resultados das observaes constru um
roteiro de perguntas e convidei 62 mulheres a responder. Estas mulheres faziam
parte da minha rede de relacionamentos sendo: professoras de educao infantil,
que participaram da luta sindical, alunas de curso de formao em educao
superior, alunas de outros cursos universitrios,e trabalhadoras em geral.
Tendo em vista que o roteiro de perguntas foi elaborado para colher
informaes preliminares que orientaram a definio dos temas para o grupo focal
no foi utilizado o corte pela zona de saturao e, sendo assim, todos os roteiros
foram analisados.
O roteiro elaborado para o grupo abrangeu os seguintes temas: significado
e sentido da felicidade e da solido; identidade tnica e escolha de parceiro afetivo-
sexual em funo da etnia. O resultado da anlise das respostas deste roteiro
orientou a delimitao dos temas a serem explorados no grupo focal.
Terceira Etapa - utilizao da tcnica do grupo focal, o qual foi composto
por 11 mulheres negras na faixa da maturidade, definida entre 30 e 65 anos de
idade.
O encontro para aplicao da tcnica, com durao de uma hora e meia,
ocorreu em um local neutro, na cidade de So Paulo. Foi conduzido por uma
moderadora, acompanhada de uma auxiliar, responsvel por realizar anotaes. A
1Hip hop um movimento cultural iniciado no final da dcada de 1960 nos Estados Unidos como forma de reao aos conflitos raciais e violncia sofrida pelas classes menos favorecidas da sociedade urbana. uma espcie de cultura das ruas. O hip hop como movimento cultural composto por quatro manifestaes artsticas principais: o canto rap (sigla de rythm-and-poetry), a instrumentao dos DJ ( sigla de disc- jockey), a dana breack dance e a pintura do grafite.
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moderadora assistente social, com mestrado em administrao em gesto de
recursos humanos, com larga experincia em facilitao de grupos.
A tcnica do grupo focal tem sido uma das mais utilizadas e
desenvolvidas na investigao acerca das representaes sociais. (Oliveira e
Werba, 2000).
Os grupos focais consistem de entrevistas que estabelecem uma forma
de interao que propicia informaes e insights acerca do tema que se pretende
investigar, os quais seriam difceis de serem obtidos de outra forma. A riqueza das
informaes que a interao nestes grupos proporciona pode oferecer dados de
qualidade superior ao que se obteria em situaes de entrevista individual.
A coordenadora do grupo focal atuou de maneira a conduzir a discusso
de forma livre, tendo o cuidado de manter as conversaes voltadas para o foco ou
tema, evitando as disperses. As falas foram registradas em equipamento de udio
MP3. O tratamento dos dados seguiu os seguintes passos:
a) Transcrio das entrevistas
b) Leitura flutuante do contedo gravado intercalando a escuta com a leitura do
material transcrito, visando captar os temas focados, observando-se a construo
dos conceitos, a retrica e a paralingustica e a emergncia de emoes.
c) Retorno aos objetivos da pesquisa para que os dados categorizados fossem
interpretados luz dos referenciais tericos.
Temas focados:
Sentido da solido;
Relao entre a solido sentida e o preterimento da mulher negra pelo
homem negro;
Auto-identidade
As representaes levantadas nos grupos focais foram interpretadas e
mapeadas por meio do referencial metodolgico baseado em Thompson (1995),
denominado Hermenutica de Profundidade. O processo constitui-se de trs fases:
a) Anlise scio-histrica que investiga o fenmeno na dimenso espao-temporal,
as suas inter-relaes sociais, institucionais e a estrutura social;
b) Anlise formal discursiva que investiga as produes simblicas em si mesmas,
por meio da anlise de discurso;
c) Interpretao das formas simblicas luz dos referenciais tericos.
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Escolha dos sujeitos
Critrios para incluso no grupo:
1- Ser mulher negra;
2- Estar em atividade ocupacional, educacional ou de militncia social;
3- Ter suficiente condio para uma efetiva comunicao em grupo.
A partir da introduo do tema, o captulo 1 procurou evocar o contexto
histrico da escravido no Brasil, partindo das referncias conceituais da categoria
raa, na viso de autores estudiosos sobre o tema como Darwin (2000), Lvi-
Strauss (1976), Frota Pessoa (1996), Gilberto Freire (1933) e Moutinho (2004); as
teorias raciais e de embranquecimento da sociedade brasileira; as implicaes
relacionadas poligenia e matrifocalidade, buscando analisar essas concepes
atravs dos tempos e seus impactos no delineamento do perfil de seus
protagonistas.
O captulo 2 procurou investigar uma possvel correlao entre o
fenmeno solido e o objeto central da minha pesquisa, qual seja, o preterimento da
mulher negra pelo homem negro nas relaes afetivo-sexuais, buscando analis-la
no s sob as diversas perspectivas na rea do conhecimento, mas tambm suas
razes histricas ligadas dispora negra, discorrendo sobre fatos e cenrios que
marcaram esse protagonismo, a partir de uma breve anlise do ambiente e suas
implicaes. Tambm esto em foco questes identitrias, tnicas e de gnero
como categorias relacionais da solido.
O captulo 3 volta-se especificamente para o mercado matrimonial
disponvel para a mulher negra e o seu preterimento afetivo-sexual a partir da
anlise de dados quantitativos e qualitativos, tendo como pano de fundo os valores
ligados a padres tnico-culturais e as escolhas afetivas que deles decorrem.
Nas consideraes finais foi realizada a anlise dos dados constantes das
entrevistas efetuadas, bem como a anlise dos discursos do grupo focal e suas
construes acerca da solido como conseqncia do preterimento da mulher negra
pelo homem negro na cidade de So Paulo.
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1. RETROSPECTIVA HISTRICA
Nenhum homem racional, bem informado, acredita que o negro mdio seja igual, e muito menos superior, ao branco mdio. E, se isso for verdade, simplesmente inadmissvel que, uma vez eliminadas todas as incapacidades de nosso parente prgnato, esse possa competir em condies justas, sem ser favorecido nem oprimido, e esteja habilitado a competir com xito com seu rival de crebro maior e mandbula menor em um confronto em que as armas j no so as dentadas, mas as idias. T.H.Huxley
O presente trabalho no pode esquivar-se de, ao abordar questes
identitrias da mulher negra, fazer algumas reflexes sobre o quesito raa e,
evidentemente, sua evoluo histrica e desdobramentos polticos. No se trata
apenas de uma retomada ou ratificao histrica pontual, mas sim de construir
pontes e estabelecer conexes que nos permitam dialogar com o objeto da
pesquisa.
O conceito de raa, baseado na teoria da seleo natural, em muito
determinou o pensamento de vrios tericos dos sculos XVIII e XIX. Neste cenrio,
os pensadores partilhavam das idias do determinismo biolgico, entre eles Gould
(1999), para conceituar raa, classificando os grupos humanos em categorias
superiores e inferiores, civilizados, no civilizados, tendo o Homem caucasiano no
pice da pirmide de superioridade. assim que a idia de raa se constituiu ao
longo da histria e teve seu amparo nas cincias.
Segundo Darwin (2000), as razes que deram origem ao homem e sobre
as quais esse ser foi se constituindo tm, geralmente, o mesmo tipo que as outras
espcies. Para este cientista, a partir do desenvolvimento de sua teoria
evolucionista, a espcie animal portadora de uma oposio entre os seus
membros. Esta oposio fixa na qual prevalece o mais forte. Esta concepo
baseia-se na lei da seleo natural.
Acerca da lei da seleo natural Frota-Pessoa refere:
As raas no so entidades permanentes ou estticas. Elas representam estgios da evoluo em constante mudana. As tribos que conseguiram passar da frica, onde nossa espcie surgiu, para a Europa ficaram isoladas no novo ambiente, e com o tempo, constituram uma raa distinta, sob a ao da seleo natural. Os indivduos dessa raa que migraram mais para o norte acabaram
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formando outra raa, e assim por diante. Persistindo essa tendncia de diferenciao crescente de raas cada vez mais distintas (raciao), a do Homo sapiens terminaria esquartejada em vrias espcies (especiao), que nunca mais trocariam genes, pois no poderiam produzir hbridos frteis. (Frota-Pessoa, 1999: 30)
Segundo os vrios conceitos desenvolvidos ao longo dos anos, o termo
raa incorpora um campo semntico e uma dimenso espacial e temporal. Lvi-
Strauss, ao tecer suas crticas e observaes sobre os preconceitos e mitos raciais,
relembra-nos, com nfase, alguns desses mitos, sustentados pela cincia. Dentre
eles, o autor destaca:
H variaes nas caractersticas fsicas externas transmitidas, total ou parcialmente, de pai para filho. E so grupos relativamente homogneos quanto a este aspecto, que constituem o que geneticamente chamamos de raas. Estas raas no apenas diferem na aparncia fsica: elas, no raro, possuem diferentes graus de desenvolvimento, algumas delas usufruindo todas as vantagens de uma civilizao adiantada, enquanto outras apresentam maior ou menor grau de subdesenvolvimento (Lvi-Strauss, 1970:11-12).
Na mesma obra, o autor continua sua crtica a respeito dos mitos que
foram sustentados cientificamente para justificar a supremacia de um povo sobre o
outro. Desta forma o autor traz tona concepes fundamentadas j no Antigo
Testamento.
O Gnese contm passagens que, aparentemente, admitem a inferioridade de certos grupos a outros: Maldito seja Cana! Servo dos servos seja aos seus irmos (9:25), enquanto uma espcie de superioridade biolgica parece estar implcita na afirmao de que Jeov fez um pacto com Abrao e sua semente (id.:12).
Essas idias se impuseram e formaram geraes pois, como sabermos,
at o fim do sculo XVII, a Teologia e as Escrituras eram os fundamentos que
garantiam a explicao dos outros. Essas duas instncias eram detentoras do
privilgio da razo e da explicao.
Tambm os gregos, h 2000 anos consideravam todos os homens que no
fossem de sua prpria raa como brbaros e Herdoto conta-nos que os persas, por seu
turno, consideravam-se muito superiores ao resto da humanidade (ibid.:12). Ainda
memorizando os mitos, Lvi-Strauss (1970) afirma que para justificar a ambio grega
de hegemonia universal, Aristteles (384-322 aC) formulou a hiptese de que certas raas
so, por natureza, livres desde o bero, enquanto outras so escravas (id. opus). Para o
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autor essa uma das hipteses usada no sculo XVI para justificar a escravido dos
negros e amerndios, os escravos do Novo Mundo.
Diferentemente de vrios outros estudiosos da teoria e do conceito de
raa, Lvi-Strauss no atribui a Darwin a paternidade dessa odiosa e desumana
teoria (ibid.: 16). Seu pensamento que:
(...) com as sociedades de cor se tornando competidoras potenciais no mercado de trabalho e clamando por vantagens sociais consideradas como herana exclusiva dos brancos, eles tinham, obviamente, necessidade de alguma desculpa para justificar o extremado materialismo econmico que os conduzia a negar aos povos inferiores qualquer participao nos privilgios que eles prprios desfrutavam. Por essa razo, acolheram com satisfao a tese biolgica de Darwin e depois, por sua simplificao, distoro e adaptao, em conformidade com seus prprios interesses, transformaram-na no chamado Darwinismo Social (ibid.: 16).
Nesse sentido a hierarquizao das sociedades ao longo do tempo no
foi resultante, unicamente, de determinaes biolgicas, mas tambm de fatores
polticos, econmicos, culturais e sociais.
No sculo XIX (Gould, 1999), surgiram duas correntes tericas apontando
a origem do Homem: a monogenia e a poligenia. Para a monogenia, pressuposto
bblico, o Homem seria descendente de um nico Ado, ou um s tronco. Para a
poligenia a origem do Homem seria resultante de vrias fontes em diversas regies
da terra. Ao contrrio do Homem caucasiano, os homens provenientes das regies
mais aquecidas, como a frica, eram tidos como raas inferiores. Desta forma, a
teoria polignica foi muito respeitada, atraindo a ateno dos estudiosos europeus,
destacando-se nessa linha Louis Agassiz (1807-1873) e Samuel G. Morton (1700-
1851).
No Brasil, entretanto, o conceito de raa era baseado em padres
fenotpicos e scio-econmicos tais como riqueza e educao (Guimares, apud
Pacheco, 2006). Por outro lado, as teorias racistas, fundamentadas na eugenia,
depunham contra qualquer tentativa de unio afetivo-sexual entre as diferentes
raas, acreditando na possibilidade da degenerao fsica, psquica e social desses
povos (Pacheco, 2006). Com o abandono, no incio do sculo XX, dessa linha de
pensamento, houve o fortalecimento da idia de um Brasil miscigenado que
propiciaria o branqueamento populacional. Essa miscigenao era fruto do
intercurso sexual e afetivo entre negros, ndios e brancos, presentes nas relaes
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sociais do cotidiano. Essa proximidade, alm de suavizar as relaes, permitiu,
segundo a tese de Freyre (1933) corrigir a distncia social (...) entre a casa grande
e a senzala (apud Pacheco, 2006:161). Se para Freyre (1933) essa democracia
racial era benfazeja, porquanto escamoteava conflitos e propiciava uma liberalidade
das relaes, inclusive a sexual, tendo a negra e a mulata como objetos passivos e
sensuais do senhor escravocrata, para outros autores, entre eles Giacomini (1988,
apud Pacheco, 2006), seus crticos ferrenhos, sua viso da mulher negra, nesse
processo histrico, estereotipada e no condizente com a realidade.
Ao me debruar sobre a historicidade da mulher negra, vejo que sua
trajetria, a partir da ruptura diasprica africana at a contemporaneidade, foi
permeada pela solido. Tambm sempre foi demarcada por sucessivos revezes nas
lutas de resistncia contra as polticas de dominao escravagista, de segregao e
excluso social, de assuno unilateral de responsabilidades familiares, de
encontros e desencontros dialgicos amorosos na convergncia do pertencer ou no
pertencer, no direito do ser ou no ser. Seno, observe-se que essa mulher ao
chegar ao Brasil, vinha de uma situao totalmente diferenciada, com um livre
transitar dentro de uma condio de autonomia e reconhecimento cidado entre o
pblico e o privado. Na sua frica, na organizao scio-econmica tribal, era-lhe
facultada a liberdade de ir e vir do ponto de vista de sua mobilidade social e
econmica, explicada pelo modelo de construo familiar polignico, que na viso de
Pierre Verger (1954, apud Bernardo), traz s mulheres maior independncia do que
no modelo monogmico. Tambm Lloyd corrobora essa viso as mulheres
controlavam grande parte do suprimento alimentar, acumulavam dinheiro e negociavam em
mercados distantes e importantes (Lloyd, 1965:67, apud Bernardo, 1998:.60). Quanto ao
campo afetivo, na casa do esposo, seu papel materno de grande destaque pois
alm de genitoras que so, tambm tm a misso de perpetuar a linhagem familiar do
marido (id. opus)
No Brasil, h uma quebra desse paradigma. Na qualidade de escrava seu
trnsito de mercado limitou-se ao espao entre a senzala e a casa grande, em
funes que reduziam seu corpo ferramenta de trabalho braal e matriz de
reproduo de novos escravos, sendo consideradas pau para toda a obra.
Afetivamente, surgem novos embates. Pacheco, com base em Giacomini,
argumenta sobre a lgica da escravido, onde no bastava apenas a utilizao
dessa mo de obra nas tarefas de lavadeira, ama-de-leite, cozinheira, arrumadeira,
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mucama dos filhos da famlia branca, mas havendo tambm a apropriao de seu
corpo nas obrigaes de propiciar prazer com as investidas sexuais dos senhores:
A lgica da sociedade patriarcal e escravista parece delinear seus contornos mais brutais no caso da mulher escrava. A apropriao do conjunto das potencialidades dos escravos pelos senhores compreende, no caso da escrava, a explorao sexual do seu corpo, que no lhe pertence pela prpria lgica da escravido (Giacomini, apud Pacheco, 2006:163).
Contrariando ainda a tese freyriana sobre a harmonia existente entre as
relaes sociais do sistema patriarcal-escravista e retomando as desigualdades
raciais, Llia Gonzles (apud Pacheco 2006) afirmou que, contrariamente ao que se
sups, o racismo e o sexismo seriam as bases geradoras do sistema de opresso
do escravismo e se perpetuaram depois da Abolio. Nesse sentido, h relatos da
mobilizao e participao feminina negra nas lutas organizadas, contradizendo
afirmativas de seu carter doce e submisso contra as opresses sofridas.
O papel das mulheres negras em lutas organizadas contra a escravido as fugas, os motins, as rebelies e a formao dos quilombos demonstrava uma reao dita docilidade-cordialidade-submisso dos negros e das mulheres escravas contra a famlia patriarcal branca (Pacheco, 2006:163-164).
Como referem Giacomini (1988) e Gonzales (1988) no Brasil de ento, o
mito da cordialidade e do afeto nas relaes entre brancos e negras no se
consolidou, havendo sim uma miscigenao forada, que foi construda atravs da
violncia fisico-sexual e psicolgica praticada contra as mulheres negras como fruto da
lgica do prprio sistema escravista (id.:164).
Se, como se observa acima, o direito ao corpo lhe era negado, a essa
mulher escrava tambm no era concedido o direito de formar e privar de uma vida
familiar prpria, conforme observa Cunha a vida familiar ou privada se apresenta como
uma contradio condio de escravo. Assim, no havia a possibilidade da coexistncia
da escravido com a vida familiar (1985:42 apud Bernardo, 1988:60).
Pinto (2004:36) recorrendo obra de Giacomini (1988) refere que as
noes de privacidade e de vida familiar esto ausentes naqueles que no possuem
nem a si prprio.
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Giacomini diz:
"Era o senhor que decidia sobre a possibilidade e qualidade da relao entre homem e mulher escrava, sobre se haveria ou no vida familiar, se casados ou concubinados seriam ou no separados, se conviveriam com os filhos e onde, como e em que condio morariam (Giacomini, 1988:37).
A legislao da poca, Cdigos Civil e Penal, determinava que era
permitido o casamento aos escravos porm, sem que isso resultasse
em direitos civis: o direito de manter a famlia sob o mesmo teto, o direito dos pais sobre seus filhos menores. Na realidade, foi somente a partir de 1879 que uma lei brasileira, aplicada muito parcialmente, comea a proibir a separao das famlias escravas no momento da venda pblica (Alencastro, 2005:2).
O Projeto de Lei do Ventre Livre passa a reconhecer como famlia a
mulher e sua prole (Bernardo, 1988), dando ao homem to somente a importncia
ligada produtividade.
Ao serem alforriadas, antes dos homens escravos, ainda, por serem
considerados elementos essenciais produo agrcola, as mulheres negras tinham
por espao privado o canto alheio, na busca da sobrevivncia para comer e dormir.
Suas condies de trabalho eram aquelas configuradas em funes de
subordinao e de explorao econmica e sexual e que praticamente se
assemelhavam continuidade do regime anterior e inexistncia de uma vida
privada. Ao retornarem para a casa de algum parente, me ou tios, deparavam-se
com a realidade dos cortios, alternativa de moradia coletiva possvel dentro de suas
realidades. Dois autores colocam claramente essa realidade:
os cmodos eram habitados por famlias inteiras, s vezes, com mais de seis pessoas. Ali dormiam, acordavam, cozinhavam, comiam, amavam, pariam, morriam. Ali viviam (Bernardo, 1998:58). Das jovens "negras" e "mulatas" que viviam nos pores e cortios em estado de "promiscuidade", a quase totalidade "se infelicitava" fora de qualquer compromisso de noivado ou perspectivas de casamento. Vrios informantes consultados por Fernandes indicaram que "as mes solteiras trabalhavam onde podiam, e quando no encontravam servio, tinham de recorrer mendicncia e prostituio ocasional" (Fernandes,1978:45, apud Domingues, 2006:5).
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Essa condio excludente e de marginalizao a que o homem negro foi
relegado imprime um novo contorno configurao familiar existente, fazendo surgir
famlias matrifocais. Tpicas do Novo Mundo, ao contrrio das famlias polignicas da
frica, sua caracterstica bsica ser chefiada por mulheres, o que outorga ao
feminino a condio de centralidade e autoridade na assuno da permanncia e da
guarda do lar, em contraposio ausncia definitiva ou flutuante da figura paterna -
considerada tambm como itinerante o que confere ao masculino uma total
fragilidade no papel de provedor, seja por excluso scio-econmica, pobreza ou
migrao.
Se as famlias matrifocais eram uma realidade na vida das mulheres
negras, fato tambm a existncia de uma intensa liberalidade sexual na vida
masculina.
Desta forma, eram facultados aos homens, a qualquer tempo, mltiplos
relacionamentos fora de seu casamento, sem que houvesse, necessariamente,
perda de regalias ou prejuzo social. lcito supor, a partir dessas reflexes, que
essa liberalidade sexual, tcita, do sexo masculino, remete quilo que Woortmann
(1987, apud Praxedes, 2006) denomina de arranjos polignicos, entendidos como a
existncia de mais de uma unidade domstica ou mais de uma famlia de me-
filhos, significando a existncia de vrias famlias na medida em que o homem
coabita de forma alternada em diversos lares, estabelecendo as condies para a
matrifocalidade.
Segundo Carneiro:
As mulheres negras advm de uma histria diferenciada, marcada pela perda de poder de dominao do homem negro por sua situao de escravo, pelo exerccio de diferentes estratgias de resistncia e sobrevivncia. Enquanto a relao convencional de dominao e subordinao social da mulher tem como complementaridade a eleio do homem como provedor, temos o homem negro castrado de tal poder enquanto escravo e posteriormente alijado do processo de industrializao nascente. (1985:43).
Encontramos, assim, mulheres forras e livres, na sua grande maioria,
solitrias, muitas vezes mes solteiras, como eixo central de seus lares e que, por
no terem casado, seja por escolha voluntria, seja por dificuldades sociais ou por
preterimento do parceiro, no vivenciaram uma condio de acesso social ou de
estabilidade amorosa.
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Historicamente, h uma srie de consideraes que buscam explicar tal
fato, ligadas a entraves econmicos, burocrticos, demogrficos e sociais no tocante
escolha do cnjuge. Entretanto, situaes outras podem ter contribudo pela opo
ao celibato dessas escravas alforriadas, como, por exemplo, os costumes africanos.
Donas de tradies e de culturas distintas das europias, muitas naes africanas vivenciavam um sistema de filiao matrilinear, adotavam a poligamia e, sob diversos aspectos, possuam um outro modo de ver e de viver a relao com parentes e com os filhos. Desse modo, como afirma Lopes (1998), as mulheres solteiras com filhos, no eram problema entre as naes africanas, uma vez que o sangue e a linhagem eram transmitidos pela me, cabendo muito mais famlia da me a educao e a manuteno das crianas (Praxedes, 2006: 7).
A literatura nos mostra que, ao longo do tempo, vrios estudiosos
pesquisaram a matrifocalidade mantendo-se o princpio bsico desse fenmeno,
porm com enfoques distintos. Entretanto, faz-se necessrio ponderar que, a
despeito de controvrsias sobre a normalidade, ou no, dessa estruturao de
famlias formadas por sujeitos negros e pobres, correramos o risco de sermos
parciais, em funo de elementos histricos, se tomssemos como paradigma
analtico, para efeitos de comparao, a famlia nuclear. importante ponderar que
o estigma quanto anormalidade, assim considerada, era determinado
marcantemente pelo olhar do viajante, o olhar do outro. Essa referncia que
estabelece a diferena determinada por outros valores e atributos culturais,
implicava em uma anlise parcializada na descrio dos fatos, trazendo sociedade
uma representao negativa da configurao das famlias negras.
Muitos autores enxergaram a matrifocalidade como uma condio
patolgica. Ao estudarem o fenmeno brasileiro, mais especificamente na Bahia,
pesquisadores americanos, como Melville Herskovits e Franklin Frazier (Pacheco,
2006), acentuaram as controvrsias existentes na rea das Cincias Sociais acerca
da origem da matrifocalidade. Enquanto para o primeiro, socilogo da Universidade
de Harvard, tido como o precursor dessa corrente, que na dcada de 40
permaneceu na Bahia por quase cinco meses, o foco tem raiz culturalista, ou seja,
seu princpio advm de herana africana trazida pelos escravos e aqui retomada; o
segundo autor advoga a tese de conotao racial sendo que a mesma seria
resultante de uma anomia social da populao negra com o desajustamento das
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redes familiares provocado pelo sistema escravista e continuamente com a
constituio de um novo sistema competitivo (Pacheco, 2006:176). Blauner (1971)
tambm considerou a escravido como causa principal para o que chama de
famlias dirigidas por mulheres.
Tomando So Paulo como locus (grifo meu) de anlise, Florestan
Fernandes (1964:177), descreve como incompleta a famlia negra, tal como ela se
apresentava nesta megalpole, nas trs primeiras dcadas do sculo XX.
famlia incompleta, e de situao socioptica (...) ou ainda de falhas na socializao, como uma situao concreta qual os negros so levados devido ao baixo nvel de renda do marido. Nesta viso os negros no desejam viver uma situao matrifocal, mas no tm alternativa por fatores que esto fora da famlia. (...) A perspectiva que situa o conceito como patolgico est normalmente associada com a identificao da escravido e seus efeitos na organizao de parentesco negro como razo fundamental para a matrifocalidade (Zarur, 2005:1).
Raymond Smith (1996, apud Lobo, 2006), desenvolveu um conceito de
famlia matrifocal em que a presena masculina, como provedora, encontra-se em
posio desvantajosa feminina, pois como fora econmica no consegue
colaborar para o desenvolvimento do grupo familiar. Lobo diz
Segundo o autor, existe uma co-relao entre o papel do pai-marido e o do homem no sistema econmico e no de estratificao social. Quando h uma tendncia de desqualificao do papel do homem pertencente determinada classe social no sistema econmico h, tambm, uma tendncia marginalizao do papel de pai-marido dentro do ncleo familiar. O autor sugere tambm que a baixa posio do homem negro na hierarquia local limita-o a empregos de baixa remunerao e requer que ele esteja ausente da casa e da localidade onde vive na maior parte do tempo. (Lobo, 2006: 18-19).
Ao comparar esse modelo de estrutura familiar ao modelo nuclear
considerado emblemtico pela sociedade, a autora recorre ainda a Smith (1996),
que citando Monagan, (1960:354) afirma que:
(...) tomar a famlia pela famlia nuclear problemtico por vrias razes. Primeiro, porque se est considerando apenas as conexes biolgicas e segundo, porque uma definio externa do que constitui famlia no pode ser imposta aos grupos estudados, sendo, portanto, problemtico o pressuposto de que a famlia vive ou deve viver junta (id. Op.:.17-18).
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Lobo (2006) faz aluso a achados antropolgicos que demonstram a
existncia de uma gama variada de dinmicas familiares, presentes na atualidade,
reportando-se a autores tais como: Boyer, 1964; Little, 1975; Clarke, 1979; Smith,
1996; Fonseca, 2004; Parreas, 2005, e conclui que:
O mito de que as prticas familiares iriam coincidir com um nico modelo de conjugalidade que caracteriza a famlia nuclear e monogmica foi abandonado e as pesquisas sugerem, hoje, que no existe um padro universal de famlia (Lobo, 2006:17-18).
Conforme os fatos sugeridos, a solido companheira inconteste de
nossas protagonistas. Ao observar o sculo XIX, a cidade de So Paulo traz a
existncia de mulheres ss em funo de maridos ausentes. Bernardo (1998),
citando Dias aponta a permanncia desta situao nas primeiras dcadas do sculo
XX, mostrando vrios exemplos de relatos dessa poca, quando resgata, de
maneira brilhante, sobre a cidade de So Paulo, memrias negras, de cujos relatos
selecionei dois exemplos que tipificam essa solido afetiva:
Engraado, tenho 83 anos, nunca quis ter um companheiro, como se diz, para sempre. Lembro que tive vrios pretendentes, mas pensava assim: para qu? Fao tudo sozinha. D trabalho, mas mando em mim. Vou arrumar homem? Ainda tenho que cuidar dele. E no que com esta idade, tenho dois filhos que no trabalham, se separaram, trouxeram os netos e eu continuo cuidando de tudo? Mas filho e neto so da gente. (D. Flora, apud Bernardo, 1998:62) Quando viemos para So Paulo, veio minha me, eu e meus irmos. Meu pai ficou foi l, em Piracicaba. Ele nunca teve sorte. Ficou l. Eu sempre fui solteira, por duas razes: no queria ter filho preto, porque sofre muito, e tambm no gostava de homens da minha cor. Eu sempre trabalhei e economizei. (...) Eles entram na casa que da gente e pensavam que eram os donos. Ah, aqui no, queriam mandar e no tinham capacidade. (D. Francisca, id. opus).
Na viso de alguns autores, a matrifocalidade ainda caracterstica em
muitas famlias paulistanas, na medida em que:
A constituio da famlia negra, nos moldes da famlia nuclear burguesa, ou monogmica, fenmeno historicamente recente e no totalmente consolidado, expressando antes um ideal de padro familiar a ser atingido naquilo que ele representa ideologicamente
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como indicador de integrao social do que uma estrutura concretamente possvel, dado as precrias condies de existncia da populao negra (Carneiro, 1985: 43, apud Bernardo, 1998:66).
A situao brasileira contempornea do mercado matrimonial, onde
constata-se o preterimento da mulher negra pelo homem negro, tem razes
histricas fundantes no modelo polignico africano.
Weber (2002), ao fazer uma anlise de um tempo voltado para o mercado
afirma que, antes de mais nada, a situao de classe uma situao de mercado o
poder, inclusive o poder econmico, pode ser valorizado por si mesmo.
Frequentemente a luta pelo poder tambm condicionada pela honra social que
traz consigo (Weber, 2002:57). A condio de se conseguir status atravs da
herana ou da aquisio de poder econmico.
Nessa perspectiva, so observadas sucessivas demandas para reverter a
condio de insero desvantajosa no mercado de trabalho e nas representaes na
vida pblica e privada do povo negro, enquanto sujeito coletivo e individual, apesar
de haver na sociedade brasileira a idia da dialtica racial ancorada na
miscigenao e nas convivncias harmoniosas, como se a diversidade fosse uma
pluralidade de um tipo especial e que os encontros das etnias no Brasil se dessem
pela igualdade. Esta viso ideolgica, representando uma discriminao velada e
uma forma de manuteno do poder. Os que sofrem a segregao revestida de
diversas embalagens so sujeitos histricos, racionais, conscientes, que resistem.
H na literatura inmeros relatos de resistncia dessa excluso por meio de formas
especficas de organizao social. Dentre elas, porm, optei por uma que, como
raras contempla o esforo da participao feminina contra o racismo, na tentativa de
dignificar a auto-estima da mulher negra, procurando livr-la da peja de objeto
sexual pela sua esttica, paradoxalmente negada, buscando restaurar sua imagem
pblica pelo modelo da esttica eurocntrica dominante.
Em um artigo sobre a Frente Negra Brasileira (FNB), que existiu em So
Paulo, de 1931 a 1937, e tida como a maior e mais significativa instituio negra no
combate ao racismo no perodo ps-abolicionista, chegando a reunir pelas
estimativas de um de seus dirigentes, no seu auge de 25 a 30.000 filiados, Petrnio
Domingues, professor do Departamento de Histria da Universidade Federal de
Sergipe, evoca e recupera a participao feminina dentro da entidade, cerrando
fileiras contra a discriminao e na luta pela superao dos percalos existentes no
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cotidiano desse estrato populacional por melhores condies de vida e cidadania.
H uma lacuna quanto aos registros histricos dessa participao enquanto agente
da histria. Para o autor, tambm na FNB ocorre a mesma situao, mencionando
que os estudos no so prdigos em relatar o seu pertencimento e feitos, nem lhe
conferindo a devida visibilidade no movimento negro.
A criao dessa organizao no foi aleatria. Segundo o autor, resultou
de experincias diversas de formas organizativas dos negros no ps-Abolio. A
FNB caracterizou-se por ser a entidade do movimento negro que mais adquiriu fora
poltica durante as primeiras dcadas do sculo XX, conseguindo ser recebida em
audincia pelo presidente da Repblica, Getlio Vargas, e pelo ento governador do
Estado de So Paulo, Armando de Salles Oliveira. Tambm no mbito dos direitos
civis conseguiu alguns avanos como a garantia de acesso de negros aos rinques
de patinao e sua entrada na Guarda Civil de So Paulo, at ento proibidos.
Artur Ramos observa que o "esprito associativo" do negro marcou sua trajetria no pas. Desde a escravido, esse segmento populacional desenvolveu diversas formas de organizao coletiva. At a Abolio, foram criados grupos ou associaes de carter religioso, cultural e socioeconmico representados por quilombos, confrarias, irmandades religiosas, caixas de emprstimos, etc., (apud Domingues, 2006). No perodo do ps-Abolio (transio do sculo XIX para o XX), os negros criaram diversas associaes em So Paulo: grmios recreativos, sociedades cvicas e beneficentes. A maioria delas possua estatuto e era conduzida por um presidente, auxiliado por uma diretoria escolhida atravs de eleies. As associaes negras mantinham uma ativa vida social, muitas delas se reuniam diariamente. A maioria tinha como eixo central de atuao garantir o lazer de seus afiliados, principalmente por meio dos bailes danantes. As associaes negras cumpriam, fundamentalmente, o papel de produtoras de uma identidade especfica, de um "ns", negros, em oposio a "eles", brancos (Domingues, 2006:2).
Dentre as vrias associaes existentes na poca, algumas possuam
uma diretoria composta de "damas", exemplo de O Kosmos e da Sociedade 15 de
Novembro, e apenas quatro tinham uma formao especificamente feminina como a
Sociedade Brinco das Princezas, o Grmio Recreativo Rainha Paulista, o Grmio
Recreativo 8 de Abril e o Grupo das que no ligam importncia (Domingues,2006:2).
Outro fato que merece destaque a viso machista do mercado de
trabalho jornalstico da imprensa negra da poca, com reduzido espao de
participao da mulher como redatora ou editora. O jornal Getulino, em um editorial,
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assim se posicionava quanto ao papel social da mulher: "a mulher foi criada para me,
para doce companheira do homem, e nesse sentido, a sua constituio fsica e moral para
o completo desenvolvimento dessa misso" (Getulino, 02/09/1923:1 apud Domingues,
2006:3).
Continua o autor, citando outro rgo da imprensa paulistana
O machismo ficava mais explcito em O Clarim da Alvorada, na medida em que se propagava uma concepo de famlia de modelo patriarcal: a grande obra da ao negra no Brasil deve comear pela famlia pois que ela a clula-me de toda a sociedade civil. E a famlia a unio do varo e a esposa com seus filhos, debaixo do governo do varo (O Clarim da Alvorada, 13/05/1927:3, apud Domingues, 2006:3).
Igualmente a FNB, entre os seus vrios departamentos, possua o de
Imprensa, que publicava o jornal da casa A Voz da Raa responsvel oficial pela
divulgao dos ideais da entidade. Era marcante na linguagem jornalstica desse
veculo, denotando a forte ideologia machista, a caracterizao de gnero, tais como
as diferenciaes do sujeito no masculino e no feminino "frentenegrinos e
frentenegrinas", "meus irmos e minhas irms negras", "senhores e senhoritas",
"leitores e leitoras" (id. opus).
O perfil do homem negro associado, ou seja, da grande "massa de cor,"
era de desempregados, trabalhadores de cargos subalternos e servios braais e,
em menor escala, parte de segmentos das camadas mdias negras (funcionrios de
escritrios e profissionais liberais). A estes ltimos cabia assumir os postos de
direo da organizao (Andrews, 1998:233, apud Domingues, 2006:3).
O perfil da mulher frentenegrina era o perfil da mulher negra da poca,
pobre, trabalhadora e sempre em posies subalternas e de explorao, cuidando
concomitantemente de seus lares, sustentando o marido ou o amsio, arcando com
os gastos domsticos. Na viso de Fernandes essa mulher era
(...) como a artfice da sobrevivncia dos filhos e at dos maridos ou "companheiros". Sem a sua cooperao e suas possibilidades de ganho, fornecidas pelos empregos domsticos, boa parte da "populao de cor" teria sucumbido ou refludo para outras reas. Herona muda e paciente, mais no podia fazer seno resguardar os frutos de suas entranhas: manter com vida aqueles a quem dera a vida! Desamparada, incompreendida e destratada, travou quase sozinha a dura batalha pelo direito de ser me (...). Nos piores contratempos, ela era o "po" e o "esprito", consolava, fornecia o
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calor do carinho e a luz da esperana. Ningum pode olhar para essa fase do nosso passado, sem enternecer-se diante da imensa grandeza humana das humildes "domsticas de cor", agentes a um tempo da propagao e da salvao do seu povo (Fernandes, 1978:211, apud Domingues, 2006:4-5).
Nesse sentido, os dirigentes da FNB demonstraram uma grande
preocupao com a mulher negra, tanto em entrevistas jornalsticas (Folha da Noite
em 1931), quanto em reunies para busca de solues, bem como adotando ainda
outras estratgias.
Domingues relata:
Marcelino Flix (2001) faz aluso ao Departamento de Colocaes Domsticas na FNB, que funcionava como uma espcie de agncia de emprego. Seu objetivo era conseguir servios domsticos cozinheira, passadeira, copeira e lavadeira para as frentenegrinas. Fernandes argumenta que, em virtude das frentenegrinas terem adquirido conscincia de seus direitos, muitas patroas passaram a evit-las. Em compensao, outras lhes davam preferncia, pois "sabiam que podiam confiar nelas, que era gente direita" (Fernandes, 1978:55). A Frente Negra da Bahia tinha como uma de suas metas criar uma nova imagem para a mulher negra, "da a institucionalizao de um quadro social feminino". Em entrevista concedida imprensa local, dizia-se: "devemos mesmo trabalhar pela formao da elite da mulher negra" (Bacelar, 1996:76, apud Domingues:5).
. Apesar de suas agruras cotidianas no tocante militncia, a mulher negra
cerrou fileiras no af de defender as demandas da negritude, constituindo-se em
seu maior efetivo dentro da organizao. Porm, ao lanar um olhar mais acurado
postura da FNB em seu posicionamento de gnero observo que as mulheres no
tinham seu devido reconhecimento, consoante a ideologia machista da poca, que
ainda prevalece na atualidade, ocupando funes subalternas, sem oportunidades
de participar das instncias decisrias, prerrogativa totalmente masculina. No foi
facultado a nenhuma delas tomar assento no "Grande Conselho" (instncia mxima
da FNB), o que pode ser justificado pela concepo de que o papel social reservado
"s meninas e moas" era o de "futuras esposas e mes", como prescrevia Arlindo
Veiga dos Santos.
As questes de gnero no casamento deveriam ser bem demarcadas. Um
articulista do rgo da casa definia
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O esposo d o po e o conforto; a esposa, Deusa do lar, d o beijo que encoraja e o carinho que revigora. [Em seguida, aconselhava que a mulher fosse] sempre fiel, dcil e carinhosa [para seu] esposo e defensor, [que] dar conforto e agasalho em seu terno corao (A Voz da Raa, 07/1936:3, apud Domingues, 2006 :6).
Alm da "Sala Feminina", as associadas contavam com dois
departamentos internos de cunho feminino: as Rosas Negras e a Cruzada
Feminina, cujas atribuies eram substimadas pelos homens: as recreativas e as de
assistncia social. Nas recreativas, de competncia do grupo As Rosas Negras, era
dada grande nfase s atividades literrias, alm dos saraus danantes, com o
intuito de elevar e refinar o padro intelectual do negro. Quanto ao grupo A Cruzada
Feminina, este responsabilizava-se pela arrecadao de fundos para a assistncia
social e aquisio de uniformes e material escolar, organizao do perfil biogrfico
dos fundadores, aumento do nmero de assinantes do jornal, tendo porm como
objetivo central dessa comisso fortalecer o campo educacional e cultural.
Dentre as suas diversas aes, a frentenegrina procurou estabelecer um
cdigo de conduta que norteasse o padro de comportamento dos negros, ditando
as regras sociais a serem seguidas. Arlindo Alves Soares, seu presidente
considerava que
"grande parcela de negros" que compunham a populao brasileira eram "incivilizados" (A Voz da Raa, 17/03/1934:5), por isso, era necessrio incorporar o que foi denominado de "cdigo de civilidade". A entidade veiculou valores ticos, morais, culturais e ensinamentos de como o negro devia se comportar socialmente, tanto na esfera pblica quanto na privada. O jornal A Voz da Raa publicava "o que ns os pretos devemos saber" (Domingues, 2006:7-8).
.
Tambm as mulheres tinham sua conduta patrulhada com determinao
de regras de etiqueta a serem observadas, recebendo todo o apoio necessrio. Em
nota, Noemia de Campos prescrevia no jornal
Minhas irms negras; ns, antes de usarmos, boina, sapatos sem meia, blusa sem mangas e brincos argolo, devemos primeiramente consultar com as nossas costureiras ou pessoas amigas, para ver-se nos fica bem, para no sermos vtimas do riso dos transeuntes e vergonha das nossas irms que sabem trajar-se bem (Id. 30/09/1933:3, apud Domingues, 2006:8).
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Essas orientaes fizeram a mulher negra assumir uma atitude de altivez
e modernidade, tanto quanto s brancas
Rara era em S. Paulo, p. ex., a negrinha que ousasse usar chapu, de medo das chufas dos brancos (e especialmente das brancas!). Hoje so legies as que usam esta indumentria que nada em si mesma, porm define uma atitude social (Id. ib. op.).
De maneira muito discreta o jornal A Voz da Raa props-se a discutir os
problemas do feminino negro. Ao contrrio, Celina Veiga foi uma exceo. Ela
procurou estimular o confronto entre a negra e a branca, com as armas de que
dispunham civilizadamente. Dizia
A mulher negra precisa hoje em dia enfrentar a mulher branca; para isso, temos as armas necessrias de combate, so as seguintes: tenhamos moralidade, amor aos nossos negrinhos; fazendo-lhes ver os deveres para com a Ptria; ilustrando a inteligncia e o aperfeioamento das artes e ofcios, para as quais sentimos vocao, e, principalmente, concorrendo em tudo e por tudo com a mulher branca, pondo a nossa inteligncia, o nosso preparo, a nossa atividade e o nosso patriotismo (Id. 11/05/1935: 2 apud op.:8).
Uma preocupao que fazia parte da organizao quanto ao seu quadro
de associadas era com o mercado matrimonial. O artigo "Brevirio da mulher"
sanciona essa premissa, ratificando e recomendando normas de conduta pertinentes
consecuo de um marido.
A mulher no devia ser namoradeira, mas contrair relacionamentos amorosos com a perspectiva de casamento; "pecar mais por ser recatada que desenvolta, pois nada h que lhe assente to bem como o recato, considerado por toda gente prprio do sexo". Aquelas que "andam a pelas ruas, mostrando com excesso o que o pudor manda ocultar, (...) que se sentam em pblico pondo uma perna sobre a outra", deviam ser severamente censuradas. Afinal, essas mulheres podem agradar determinados homens, mas a maioria h de parecer pouco indicada para mes de seus filhos, motivo por que algumas senhoritas acham noivos, mas no maridos. [No final do artigo, uma advertncia para as mulheres] No esqueceis que o homem (...) costuma desejar com mais ardor justamente aquilo que menos acessvel se lhe mostra (Id. 06/1936: 3 apud op.:9).
.
A possibilidade de dar vez e voz s angstias femininas ocorreu somente
na edio de nmero setenta do jornal com o lanamento de uma coluna especfica
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intitulada de "Seo Feminina", que no pode ir avante, pelo fechamento da
entidade.
A transformao, em 1936, da entidade em partido poltico levou-a a ter
pretenses de lanar candidatos para as eleies futuras. Porm, ideologicamente,
seu projeto poltico era nacionalista, de vis autoritrio. Seu primeiro presidente -
Arlindo Veiga dos Santos - era radicalmente contrrio democracia e
constantemente fazia apologia do fascismo europeu. Com a vinda do Estado Novo,
em 1937, e a implantao do regime ditatorial a FNB foi extinta, assim como todos
os partidos polticos. Seu fechamento ocasionou um grande vcuo na
representatividade do movimento negro em So Paulo, alm de uma sensao de
orfandade aos seus associados.
Ao olhar dessa maneira, os registros passados do movimento social de
nossa interlocutora e, ao retom-la na contemporaneidade, vejo que os anos
transcorridos no foram suficientes para alterar a imagem da mulher negra
pejorativamente significada e perpassada de imposies eurocntricas. A despeito
de todos os confrontos e embates travados para um legtimo reconhecimento de um
pertencer igualitrio e cidado e para a preservao e no esvaziamento da herana
simblica de seus antepassados, sua posio continua sendo uma vez mais de
sujeito da histria, de sua prpria histria, buscando sempre ressignific-la nessa
caminhada cotidiana de revezes e insucessos. De forma sistmica, a explorao
sexual da mulher negra de pele mais clara, mulata tipo exportao, coloca-a
continuamente no papel de objeto sexual. Os fatos falam por si, corroborados por
Gonzles sobre as formas de representao desse feminismo negro.
(...) padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o vis eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questo de raa nas hierarquias de gnero presentes na sociedade, e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem as mediaes que os processos de dominao, violncia e explorao que esto na base da interao entre brancos e no-brancos, constitusse em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, tambm revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma histria feita de resistncias e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graas dinmica de uma memria cultural ancestral que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo (Bairros, 2000:57 apud Carneiro, 2003:3)
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A realidade contempornea das cidades derruba a tese da expanso da
democracia social e racial, pois as relaes esto interditadas para alm das
probabilidades conferidas na diversidade e na participao poltica, mas
engendradas na construo sutil de mecanismos discriminatrios.
Nas cidades brasileiras est em curso uma desvantajosa insero no
mercado de trabalho para as mulheres negras. Essa fora de trabalho sofre com o
maior ndice de desemprego e com os mais baixos salrios. Independente de a
situao ter uma explicao histrica, como justificar a perpetuao da ausncia de
equidade como questo atual? importante, mas no basta por si s uma releitura
da herana de uma estrutura econmica baseada no trabalho escravo. Na verdade,
existem discriminaes inaceitveis em relao mulher negra na aparente falta de
clareza da relao indivduo/sociedade, o que mais uma vez a torna hierarquizada.
Os maiores percentuais de vulnerabilidade da mulher negra no universo dos trabalhadores ocupados se explicam, sobretudo, pela intensidade de sua presena no emprego domstico. Esta atividade, tipicamente feminina, desvalorizada aos olhos de grande parte da sociedade, caracterizando se pelos baixos salrios e elevadas jornadas, alm de altos ndices de contratao margem da legalidade e ausncia de contribuio previdncia (DIEESE, 2005:5). Dados de 2006 da PNAD/IBGE revelam a existncia no Brasil, de cerca de 6,7 milhes de pessoas no trabalho domstico, deste total, 6,2 milhes so mulheres, ou seja, 93,2% e 6,8%, so homens. O maior contingente o das mulheres negras: as domsticas so 21,7% das mulheres ocupadas, ou seja, de cada 100 mulheres negras ocupadas no Brasil aproximadamente 22 so empregadas domsticas. A grande maioria das domsticas, cerca de 72,5%, no tem carteira assinada, desse contingente, 57,5% so negras (Silva, SNMT-CUT, 2008).
No quesito salarial a diferenciao por raa e gnero tambm fato consumado
dentro da categoria, com as seguintes distines segundo a renda mdia
(PNAD/IBGE, 2006): homens brancos no servio domstico em torno de R$ 465,20,
mulheres brancas R$ 351,34, enquanto a renda das negras foi de apenas R$
308,71.
Quando o assunto se refere ocupao de forma geral, para as mulheres
negras a situao tambm se mostra desvantajosa. Em 2007, representavam 16,7%
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da PEA e 15,8% do total de ocupadas, porm representavam mais da metade das
mulheres desempregadas (22,3%), no municpio de So Paulo. No tocante a salrio,
com base nos ltimos sete anos, as mulheres negras ocupadas no mercado de trabalho
paulistano formam o grupo social que apresentou o menor salrio em relao s mulheres
no-negras.
Enquanto o rendimento mdio das mulheres no-negras somou em mdia R$ 1.288,00, as mulheres negras receberam 51% desse valor, R$ 660,00. Portanto, no caso das mulheres negras, por mais que o rendimento mdio de 2007 (R$ 664,00), seja o maior desde 2002, ele ainda baixo em relao ao padro de remunerao das mulheres no-negras ( DIEESE/SEADE in Todo Dia, Fev/08).
Estudos oficiais apontam ainda que, alm da questo gnero e ocupao,
h fatores relevantes ligados aos ndices de desenvolvimento humano e qualidade
de vida. A expectativa de vid