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ANDRÉA DAS GRAÇAS FERREIRA FRAZÃO A SAÚDE NO INTERIOR DA AMAZÔNIA: UM DESAFIO À VIDA. Rio de Janeiro 1999

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Page 1: A SAÚDE NO INTERIOR DA AMAZÔNIA: UM DESAFIO À VIDA. · de conhecer um pouco da realidade da população pobre do interior da Amazônia. Esta experiência motivou-me a realizar

ANDRÉA DAS GRAÇAS FERREIRA FRAZÃO

A SAÚDE NO INTERIOR DA AMAZÔNIA: UM DESAFIO À VIDA.

Rio de Janeiro 1999

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MINISTÉRIO DA SAÚDE FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA MESTRADO EM SAÚDE PÚBLICA

A SAÚDE NO INTERIOR DA AMAZÔNIA: UM DESAFIO À VIDA

Autora: ANDRÉA DAS GRAÇAS FERREIRA FRAZÃO

Orientador: Prof. Dr. EDUARDO NAVARRO STOTZ

Dissertação de Mestrado apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, para obtenção do grau de de Mestre em Ciências na área de Saúde Pública.

Rio de Janeiro 1999

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"Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado,

mas nada pode ser modificado se não for enfrentado." (MARTIN LUTHER KING)

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DEDICATÓRIA

À minha mãe Luíza, pelo exemplo de coragem e perseverança.

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Aos meus avós, Nazaré e Antônio, que me permitiram chegar aqui.

À população de Mandiocal que luta diariamente pela vida.

AGRADECIMENTOS A Deus, eterno, invisível, mas real, na minha vida.

Aos meus pais, pela presença constante em todos os momentos.

Ao Inácio, pelo companheirismo nesta jornada.

Ao Prof. Eduardo Navarro Stotz, pela orientação constante, segura

e tranqüila que me permitiu trilhar com serenidade este caminho.

Aos amigos Márcia, Durvalina, Renata, Carlos e Sebastian que

dividiram comigo os prazeres e desafios do mestrado e com os quais,

certamente, construi uma amizade duradoura.

Aos amigos Andréa e Antônio Lopes, Luíza e Fernando, pelo apoio

na oportunidade dessa conquista.

À Universidade Federal do Pará, que possibilitou as condições

necessárias para a realização deste curso de Mestrado.

Aos funcionários da ENSP, principalmente: da Secretaria do

Departamento de Ciências Sociais, em especial à Edna Molinaro;

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Secretaria do Departamento de Endemias, Ambiente e Sociedade;

Secretaria Acadêmica e Biblioteca, pelo tratamento atencioso.

À população de Mandiocal, que me abriu seus lares e corações. RESUMO O objetivo desta dissertação é conhecer as representações sociais sobre

saúde, doença e tratamento dos habitantes de uma comunidade rural da

Amazônia. A pesquisa foi realizada entre os moradores da comunidade de

Mandiocal, no Estado do Pará, região Norte do Brasil.

Esta comunidade está dividida em dois núcleos religiosos; católicos em

maior número e mais antigos e pentecostais. Além de conhecer as representações

sociais de seus habitantes, pretendi saber, também, em que medida sistemas de

crenças religiosas constituem-se em variável de diferenciação ao tratamento dos

problemas de saúde em Mandiocal.

Para a coleta dos dados foram utilizados instrumentos da pesquisa

qualitativa; (observação participante e a entrevista), e entrevistadas oito pessoas

entre católicos e pentecostais. Seus depoimentos foram transcritos e analisados

de acordo com categorias previamente definidas.

Os resultados mostram que os principais meios de tratamento das doenças

na comunidade são o remédio caseiro e as orações à Deus. Mas há ênfases

diferenciadas entre católicos e pentecostais quando recorrem a tais meios,

principalmente em situações de impossibilidade de acesso imediato aos serviços

de saúde.

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PALAVRAS-CHAVE: Representação Social; Saúde; Doença; Tratamento;

Comunidade; Separação Religiosa.

ABSTRACT

The aim of this dissertation is to know the social representation about

health, disease and treatment of the rural community natives from Amazônia. The

research was realized with the residents of Mandiocal, in the State of Pará,

Northern region of Brazil.

This community is divided in two religious nucleus; the Catholics that are the

oldest, having the greatest number of members; and the Pentecost Christians.

Besides understanding the social representations of these people, I also studied

how religious faith systems create a variable differentiation to the treatment of the

health problems in Mandiocal.

To get all information's qualitative research instruments were used;

(observation and interviews with the natives), and eight people were asked among

Catholics and Pentecost Christian. Their answers were written and analyzed

according to categories previously defined.

The results show that the principal ways of treatment for the diseases in that

community are the domestic medicine and the prayers for God. But there are

different emphasis between Catholics and Pentecost Christians when they apply

for such ways, principally, when it's impossible to have the immediate access in

Medical services.

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Key Words: Social Representation; Health; Disease; Treatment; Community;

Religious Separation.

LISTA DE TABELAS, QUADROS E ANEXOS: Quadro 1- Significado de Comunidade .................. ...................................... 62

Quadro 2 - Separação Comunitária .................................................................. 63

Quadro 3 - Problemas de Saúde na Comunidade ............................................ 67

Quadro 4 - Causa das Doenças ....................................................................... 71

Quadro 5 - Demandas aos serviços de Saúde ................................................. 74

Quadro 6 - Tratamento (Formas) ..................................................................... 86

Quadro 7 - Tratamento (Diferenças) ................................................................ 87

Tabela 01 – Ocupações por faixa etária e sexo ................................................32

Tabela 02 – Prevalência de Desnutrição Crônica ............................................. 38

Anexo 01 – Mapa do Estado do Pará

Anexo 02 – As Escolas Pentecostal e Católica de Mandiocal

Anexo 03 – O Roçado

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 06

CAPÍTULO I - MANDIOCAL: O CENÁRIO DA PESQUISA

I. 1 - Caracterização da área estudada 10

I. 2 - Pressuposto e considerações metodológicas 12

I.3 - As técnicas utilizadas 13

I.4 - A coleta dos dados 15

I.5 - A análise das entrevistas 19

I.6 - Considerações teóricas 21

CAPÍTULO II - A PRODUÇÃO DA VIDA, AS OPINIÕES E CRENÇAS II.1. A produção da vida 29

II.1.1. O roçado e a trama das relações sociais 31

II.1.2 . A alimentação 36

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II.1.3 . A sociabilização, os ritos 39

II.2 . As opiniões e crenças 54

II.2.1. Perfil dos entrevistados e relações de parentesco 54

II.2.2. A fala dos entrevistados segundo as categorias de análise 59

CAPÍTULO III – SAÚDE, DOENÇA E TRATAMENTO NA COMUNIDADE: O PAPEL DA RELIGIÃO

III.1. As representações dos habitantes de Mandiocal 88

III.1.1. A Comunidade 88

III.1.2. Os problemas de saúde por categoria de análise 93

III.2. Um desafio a vida: Adoecer em Mandiocal 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS 111

BIBLIOGRAFIA 116

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INTRODUÇÃO

A apresentação de uma dissertação de mestrado representa a conclusão

de uma etapa no "caminho do conhecimento". Caminho este feito de desafios e

sonhos que realizam-se neste momento.

Esta dissertação é fruto de minha experiência em comunidades rurais no

Estado do Pará. No decorrer de minha formação profissional, tive a oportunidade

de conhecer um pouco da realidade da população pobre do interior da Amazônia.

Esta experiência motivou-me a realizar este trabalho que trata das representações

sociais sobre saúde, doença e tratamento de católicos e pentecostais moradores

da comunidade de Mandiocal -Pará.

Atuei nesta comunidade no período de 1993 a 1995 enquanto pesquisadora

de um programa de pesquisa e extensão coordenado pela Universidade Federal

do Pará e que na época desenvolvia atividades nas áreas de saneamento básico,

saúde e nutrição, educação e agricultura, relacionadas ao conjunto das

necessidades e aspirações das populações locais.

Atualmente a região amazônica tem sido foco privilegiado do debate

internacional sobre a proteção da biodiversidade no planeta. Entretanto, esta

discussão parece estar mais interessada no bem-estar das futuras gerações,

colocando em segundo plano soluções para as precárias condições de

sobrevivência às quais a maior parte dos habitantes da região está sujeita

atualmente.

Mitschein (1994) afirma que o processo de empobrecimento, ao qual a

maior parte da sociedade regional está confrontada, vincula-se diretamente à

dinâmica e às formas pelas quais as instâncias do Estado Nacional tentaram

transformar a Amazônia em um instrumento de atenuação dos problemas

decorrentes do processo de desenvolvimento no Brasil.

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A Amazônia, até os anos 50 constituía-se em uma espécie de “periferia não

integrada” (BECKER apud MITSCHEIN, 1994), no contexto da economia nacional,

capaz de oferecer soluções ao acelerado processo de inchamento dos centros

urbanos, principalmente da região sudeste, e a necessidade de geração de divisas

para manutenção de altas taxas de crescimento do produto interno bruto.

O II Plano de Desenvolvimento Nacional Amazônico-PDNA (1976), que

propunha um “modelo amazônico de desenvolvimento”, elaborado por instâncias

federais a partir da primeira explosão de preços do petróleo, reflete o tipo de

política adotada para a região privilegiando setores (mineral, madeireiro, pecuário,

pesqueiro empresarial etc) que, segundo seus idealizadores, detinham vantagens

e por isso poderiam contribuir significativamente para a geração de divisas e

desenvolvimento da região. (MITSCHEIN:1994)

Entretanto, estas intenções não se concretizaram; ao contrário, a região

cada vez mais sofreu os impactos de um processo de desenvolvimento que não

levou em consideração as especificidades locais.

Os habitantes das áreas rurais da Amazônia sentiram com maior

intensidade este novo desenho das políticas de "desenvolvimento", gerando como

conseqüência o seguinte dilema para estas populações: ou migrar para os centros

urbanos e as cidades maiores, com poucas perspectivas de trabalho; ou continuar

exercendo as suas tradicionais formas de reprodução, porém, sob condições

profundamente diferentes:

"Uma vez que a ocupação da região, caracterizada pela

transformação das florestas em pastagens, pela concentração e

especulação fundiárias, pelo aumento da pressão demográfica

resultante de migrações de outras unidades da federação, pelo

avanço da indústria madeireira, etc, minou as bases naturais da

sobrevivência dessa população, fazendo com que o

empobrecimento de crescentes segmentos sociais se tornasse

uma fonte própria da degradação ambiental, e essa por sua vez,

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aprofundasse o processo de empobrecimento. (MITSCHEIN,

1994: 27)

Dessa maneira, continua Mitschein, o modelo de "desenvolvimento

amazônico" é um exemplo paradigmático de como na América Latina "políticas de

modernização", concebidas a partir da racionalidade técnico-instrumental, e

dirigidas contra os modos de trabalho e vida que não se enquadram nesse

universo, implicam para amplos setores sociais na negação da prometida

"modernidade". (MITSCHEIN, 1994)

Os impactos destas políticas puderam ser observados também em relação

ao acesso à saúde que para as populações rurais parece estar longe de se

constituir em realidade. A ausência de políticas públicas que levem em

consideração as especificidades da região, expressam um contínuo processo de

precarização das condições de vida dessas populações.

Nesse sentido, acredito que conhecer a realidade de uma comunidade rural

amazônica, que apresenta semelhanças com outras comunidades, levando em

consideração fatores culturais pode representar uma contribuição às políticas

públicas futuramente implantadas na região.

Esta dissertação poderia ter abordado vários aspectos da vida das pessoas

em Mandiocal. Entretanto, para os fins dessa investigação, precisei delimitar meu

estudo, a fim de torná-lo factível nos prazos estabelecidos. Optei por realizar uma

pesquisa empírica, de caráter qualitativo, utilizando técnicas de observação

participante e entrevista com as lideranças da comunidade de Mandiocal.

O objetivo da investigação passou a ser o de conhecer as representações

sociais sobre saúde, doença e tratamento dos habitantes de Mandiocal.

Especificamente, pretendi:

a) Identificar o que os moradores de Mandiocal consideram como problemas de

saúde e quais suas causas;

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b) Caracterizar o comportamento dos moradores frente aos problemas de saúde;

procurei identificar quais problemas de saúde motivam os moradores da

comunidade a buscar assistência especializada em outros locais ;

c) Identificar aspectos relevantes da cultura, em especial da religião, na busca da

atenção à saúde pelos moradores da comunidade. Minha intenção foi conhecer

as diversas formas de tratamento das doenças, tendo como pressuposto a

existência de diferenças nas práticas de católicos e pentecostais.

A questão que me propus à responder neste estudo passou a ser, então:

Em que medida a religião constitui-se em variável de diferenciação ao tratamento

dos problemas de saúde em Mandiocal.

Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo descrevo

o cenário do estudo e abordo os aspectos metódicos da pesquisa. No segundo

capítulo apresento os dados coletados através das entrevistas e da observação

participante que inclui a descrição detalhada das atividades produtivas em

Mandiocal, da alimentação e do cotidiano dos núcleos pentecostal e católico.

O terceiro capítulo está subdividido em duas partes. Inicialmente discuto os

resultados da pesquisa, através da retomada de temas da observação participante

e da análise do depoimento dos entrevistados a partir dos referenciais teóricos

adotados para este estudo. No segundo momento descrevo o episódio de meu

adoecimento na comunidade durante a coleta dos dados. Por fim, apresento

minhas considerações finais sobre este estudo.

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CAPÍTULO I – MANDIOCAL: O CENÁRIO DA PESQUISA

I.1 – Caracterização da área estudada Este estudo foi realizado na comunidade de Mandiocal, localizada no

Estado do Pará, no município de Abaetetuba, região norte do Brasil.

Esta comunidade situa-se na microrregião do Baixo Tocantins, e o

deslocamento de Belém, capital do Estado do Pará, até a comunidade é feito

através de transporte rodo-fluvial. A viagem dura em média três horas: a saída de

Belém ocorre às 07:10 da manhã, no barco de uma empresa que faz a travessia

entre a capital e o porto do Arapari, com uma duração de 45 minutos; a viagem

continua de ônibus na PA-150, aproximadamente 50 km; depois de uma hora

chega-se à entrada do ramal; a partir daí, em mais uma hora são oito quilômetros

em estrada de piçarra (terra batida) até a comunidade.

Mandiocal é formada por pequenos agricultores independentes, com

relações sociais de produção e trabalho homogêneas, ou seja, plantam mandioca

para produção de farinha que é utilizada tanto para consumo familiar, quanto para

comercialização na sede do Município de Abaetetuba.

A comunidade é composta por aproximadamente 52 famílias, divididas em

dois núcleos com crenças religiosas distintas: catolicismo e pentecostalismo1. Há

um predomínio de famílias católicas, aproximadamente 40. No núcleo católico as

casas estão separadas em pequenas vilas, distantes entre si. Cada vila tem de

cinco a 12 casas, predominantemente de madeira.

No núcleo pentecostal, em comparação com o núcleo católico, o número de

famílias é pequeno, aproximadamente 12; as casas estão dispostas lado a lado,

1 A denominação pentecostal ali existente é a igreja Deus é Amor. Sua origem na comunidade é atribuída a um sonho de um dos moradores cuja missão, segundo ele, é igual a do profeta bíblico João Batista 'pregar no deserto'. No capítulo II descrevo mais detalhadamente as características principais desta igreja.

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(todas são de madeira) e, diferentemente da disposição das casas católicas,

localizam-se próximas umas das outras.

O surgimento de Mandiocal não pode ser precisado com exatidão. De modo

similar a outros agrupamentos populacionais do interior amazônico, a comunidade

foi-se constituindo ao longo do tempo sem registro histórico.

Entretanto, uma informante privilegiada com 87 anos de idade, nascida e

residente na comunidade, lúcida e com suas informações confirmadas pelos

demais moradores, assinala que seus pais nasceram e morreram em Mandiocal, o

pai com 85 anos e a mãe com mais de 100 anos, há algumas décadas passadas.

Esta informação permite inferir que a comunidade existe há mais de um século.

De acordo com dados coletados em 1991 por pesquisadores de um projeto,

no qual trabalhei, em Mandiocal, como na maioria das comunidades rurais da

Amazônia, a mão-de-obra familiar constitui-se na principal força de trabalho

produtivo. As crianças começam a trabalhar a partir dos 6 anos de idade, sendo

que nesta idade o trabalho está mais concentrado no plano doméstico, embora os

meninos dividam-se mais entre o sítio e o roçado (área da casa que inclui o

quintal). A partir dos 11 anos, os meninos abandonam definitivamente o trabalho

doméstico, enquanto as meninas passam a dividir-se mais entre o sítio e o roçado.

Essa situação permanece inalterada, a exceção dos homens que passam a

praticar o agroextrativismo integral após os vinte anos, notadamente quando

assumem a condição de arrimo de família. (MITSCHEIN, 1994)

A farinha de mandioca, um produto tradicional na região, em Mandiocal

parece ter resgatado, devido às vantagens da comercialização mais direta, sua

importância nas atividades produtivas das famílias da localidade.

Durante o período desta pesquisa a comunidade esteve discutindo a

implantação de uma fábrica de banana; a implantação e desenvolvimento desta

fábrica estão sob responsabilidade de algumas instituições da região.

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Com relação ao grau de escolaridade, os dados obtidos na época

revelaram que os membros desta comunidade estudaram no máximo até a 4ª

série primária. Este fato talvez seja decorrente do isolamento geográfico em que

vive esta comunidade, estando a sede urbana (Abaetetuba) mais próxima a 30

km de distância.

Esta pesquisa apontou ainda que os maiores problemas identificados pelos

moradores eram a falta de recursos financeiros, de atendimento em saúde e

saneamento, atendimento escolar deficiente e a falta de assistência técnico-

agrícola.

A comunidade não dispõe de energia elétrica, transporte regular, escola

secundária, sistema de tratamento e abastecimento de água e posto de saúde

para atendimento de primeiros socorros.

Também foram constatados problemas de falta de coesão no âmbito da

comunidade devido, principalmente, à divisão religiosa entre católicos e

pentecostais.

Durante o período de atuação na comunidade, observei que esta divisão

religiosa tornou-se ainda mais acentuada, pois, no decorrer da implementação das

ações do programa, o nível de participação dos pentecostais foi irrelevante em

relação aos católicos.

I.2 - Pressuposto e considerações metodológicas

As considerações precedentes, resultado da pesquisa que participei,

serviram-me como ponto de partida da reflexão. Assim, o pressuposto do qual

parti foi de que as pessoas residentes no núcleo católico detinham maiores

facilidades de acesso à saúde em relação aos moradores do núcleo pentecostal.

Por sua vez, os pentecostais adotavam uma postura de isolamento, tanto no que

se refere às discussões de âmbito geral da comunidade, quanto sobre saúde,

privilegiando relações sociais entre membros de mesma opção religiosa.

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A questão que pretendi responder consistiu em saber, então, em que

medida sistemas de crenças religiosas constituíam-se em variável de

diferenciação do acesso aos serviços de saúde nesta comunidade.

A pesquisa foi realizada em Mandiocal no período de julho a setembro de

1998. Adotei a abordagem das representações sociais, que acredito ser útil para

apreender a visão de mundo dos indivíduos sobre aspectos de seu cotidiano,

neste caso, especificamente sobre acesso à saúde, e constituem-se em

fundamento sólido para pesquisa porque :“preservam a dimensão social da

cognição." (BAKIRTZIEF, 1994:14).

I.3 - As técnicas utilizadas

Utilizei dois instrumentos da pesquisa qualitativa: a observação participante

e a entrevista.

a) A Observação Participante

MINAYO (1992) assinala que a observação participante pode ser

considerada parte essencial do trabalho de campo na pesquisa qualitativa. Esta

técnica de pesquisa permite ao observador participar do contexto, modificando e

sendo, ao mesmo tempo, modificado por este contexto.

Com a observação participante pretendi apreender diferentes aspectos da

interação social, através das atividades rotineiras e dos rituais da vida cotidiana

dos moradores, assim como os significados desses aspectos para a compreensão

dos problemas de saúde e doença e seu tratamento.

Além disso, esta ferramenta metodológica permitiu registrar o trabalho de

forma processual nos dois núcleos. Isto também possibilitou, quando necessário,

mudanças no decorrer da pesquisa.

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A observação participante é um momento que permite ao pesquisador

integrar-se, mais concretamente, com seu “objeto” de estudo, participar

ativamente de seu cotidiano, vislumbrando aspectos importantes da pesquisa.

A observação participante representou para mim, também, a possibilidade

de identificar pormenores das relações entre as pessoas, o que em outras

circunstâncias, talvez, passassem despercebidos.

Para CARDOSO DE OLIVEIRA, na observação participante os atos de

olhar e de ouvir são funções de observação muito peculiares, através dos quais o

pesquisador busca interpretar (compreender) a sociedade e a cultura do Outro 'de

dentro', em sua verdadeira interioridade. Este autor ainda chama a atenção, ainda,

para o fato de que "é no processo de redação de um texto que nosso pensamento

caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão "antes" da

textualização dos dados provenientes da observação sistemática". (CARDOSO DE

OLIVEIRA, 1996: 29).

b) A Entrevista

Novamente em Minayo encontro suporte para justificar a utilização da

entrevista enquanto técnica de coleta de dados qualitativos. Diz esta autora:

“O que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta

de informações para as ciências sociais é a possibilidade de a fala

ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores,

normas e símbolos (sendo ela mesma um deles) e ao mesmo

tempo ter a magia de transmitir, através de um porta-voz, as

representações de grupos determinados, em condições históricas,

sócio - econômicas e culturais específicas."(MINAYO, 1992 : 109-

110),

Optei por utilizar a entrevista porque me pareceu mais adequada para

conhecer o que as pessoas de Mandiocal pensam sobre sáude/doença, e também

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porque, através da fala, os entrevistados expressam situações vivenciadas

individualmente e coletivamente.

I.4- A coleta dos dados

O primeiro contato com a comunidade foi realizado em janeiro de 1998,

quando apresentei um esboço do trabalho que pretendia realizar algum tempo

depois. O fato de haver trabalhado com eles anteriormente ajudou, acredito, na

aceitação da pesquisa.

Ao retornar, em julho, fiz os primeiros contatos participando da reunião

mensal onde, novamente, apresentei e discuti com os moradores os objetivos do

trabalho que pretendia fazer. Os participantes lembraram que já haviam

concordado com o mesmo, e estavam satisfeitos com meu retorno. Também fiz

questão de esclarecer que, nesse momento, eu não estava ali como nutricionista

com a responsabilidade de fornecer respostas aos seus problemas de saúde,

queria integrar-me ao seu cotidiano e interferir o menos possível em suas rotinas.

Optei por iniciar as atividades com a observação participante, pois me daria

a possibilidade de conhecer “profundamente” as pessoas de Mandiocal, além

disso, eu teria oportunidade de ajustar o rumo da pesquisa se houvesse

necessidade.

Elaborei um cronograma de acompanhamento das atividades nos dois

núcleos, com o objetivo de observar os seguintes acontecimentos:

As práticas sociais ritualizadas: trabalho; cultos; festas (pessoais, familiares,

comunitárias, religiosas); eventos sociais e de trabalho (nascimento, doença,

morte, reuniões, mutirão, outros); alimentação.

A rotina da escola : dificuldades na aprendizagem; como a professora lida com

essas dificuldades; como o grupo percebe essas dificuldades; se o sucesso é

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destacado na aprendizagem; como os valores sociais são investidos na

aprendizagem.

Procurei perceber:

— As relações de reciprocidade entre as pessoas envolvendo doações mútuas

como pressuposto de uma possível hierarquização.

Decidi começar a pesquisa no núcleo pentecostal, onde as pessoas

mostraram estar contentes com minha presença, pois segundo elas era a primeira

vez que um pesquisador iria ficar morando na área. No núcleo pentecostal não

existe um local público, por esta razão fiquei na casa de um dos moradores, o que

foi extremamente proveitoso, tendo em vista que lá também funcionava a escola.

No núcleo católico fiquei na casa da moradora mais antiga do local, que

tornou-se uma referência importante sobre as pessoas e os acontecimentos

ocorridos na comunidade.

Em nenhum momento senti dificuldades de relacionamento com as

pessoas, ao contrário, todos com quem tive contato mostraram-se dispostos a

colaborar com o trabalho.

Durante os primeiros dias as pessoas acharam estranho que alguém

pudesse estar interessado em seu “mundo” social. Diziam que não havia nada de

importante em suas vidas que merecesse atenção, e sempre me perguntavam por

que havia escolhido o lugar para fazer o trabalho. Ao final de minha permanência

na comunidade, todos estavam ansiosos sobre os resultados da pesquisa, e a

todo momento indagavam quando aconteceria o retorno dos dados coletados e,

principalmente, das fotografias. Esta situação fez com que assumisse o

compromisso de enviar-lhes as fotos tão logo o trabalho estivesse concluído.

As entrevistas foram realizadas no mês de setembro, sendo ao todo sete

entrevistas livres, orientadas por um roteiro que constava das seguintes

perguntas:

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Bloco I: Trajetória Social do Entrevistado 1. Identificação do entrevistado: nome, apelido, idade, escolaridade, ocupação,

religião.

2. Onde você nasceu, seus familiares, parentes são daqui, de onde?

3. Você sabe como surgiu Mandiocal?

4. O que significa para você pertencer a esta comunidade? Como você se sente?

5. Para você o que significa pertencer a este núcleo (pentecostal ou católico)?

6. Como foi criada a escola? Quem era (m) a (s) pessoa (s) que estava (m) à

frente desse serviço?

7. Essa (s) pessoa (s) continua à frente desse serviço? Como é a relação dos

moradores daqui com essa (s) pessoa (s)?

8. Fale um pouco sobre a criação dos dois núcleos religiosos.

9. Você acha que existe separação entre os dois núcleos? Caso a resposta seja

afirmativa, isso é bom ou ruim, por quê?

10. Você acha que existem diferenças entre os dois núcleos em relação ao acesso

à saúde?

11. Se você pudesse escolher uma outra comunidade você o faria? Qual seria

essa outra?

Bloco II: Saúde e Religião

1- O que você acha que são problemas de saúde?

2- Quais problemas de saúde motivam você ou sua família a recorrer aos

serviços de saúde?

3- Quais problemas de saúde motivam as pessoas do seu núcleo?

4- Na sua opinião o que causa o aparecimento de doenças?

5- Como você e as pessoas do seu núcleo fazem para tratar as doenças?

6- Você acha que as pessoas do outro núcleo agem de maneira diferente para

tratar as doenças?

As sete entrevistas foram realizadas nas residências das pessoas. Procurei

não utilizar termos técnicos, e quando necessário explicitava ainda mais a

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pergunta e para que o entrevistado se sentisse mais à vontade recorri à linguagem

coloquial (como demonstra o roteiro acima).

As entrevistas foram gravadas e tiveram em média uma hora e meia de

duração sendo realizadas em dias e horários estabelecidos pelos entrevistados;

dessa forma, houve a necessidade de mais dois encontros com uma das pessoas

entrevistadas.

A seleção dos entrevistados foi feita da seguinte maneira: pessoas com

maior influência dentro da comunidade; pessoas mais idosas que pudessem

relatar fatos importantes ocorridos no passado; pessoas que participassem

ativamente das ações na vida da comunidade; pessoas que exercessem algum

tipo de liderança entre os pentecostais e católicos.

Obedecendo estes critérios entrevistei no núcleo católico, quatro pessoas,

sendo: duas que detêm maior influência; uma que é a pessoa mais idosa da

comunidade e outra que participa ativamente na vida da comunidade.

No núcleo pentecostal realizei2 três entrevistas: com uma das pessoas mais

influentes (também um dos mais idosos) e com duas pessoas que participam

ativamente na vida da comunidade

I.5- A análise das entrevistas

O primeiro passo foi a transcrição das entrevistas, enfatizando os

momentos de silêncio, os gestos, os ruídos, os risos, enfim, tudo que expressasse

momentos de emoção das pessoas entrevistadas em relação aos

questionamentos levantados.

2 A realização destas entrevistas com os pentecostais só foi possível porque conversei longamente com o pastor sobre os objetivos do trabalho e também pelo fato de anteriormente haver desenvolvido algumas ações de saúde no núcleo pentecostal.

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Para a análise foram elaboradas categorias de classificação previamente

estabelecidas, levando em consideração os objetivos do trabalho. Assim, nas

entrevistas procurei as seguintes categorias: problemas de saúde, causas,

demandas aos serviços de saúde e tratamento.

O primeiro objetivo específico da pesquisa foi o de identificar o que os

moradores consideravam como problemas de saúde e quais suas causas; as

categorias que englobam esse objetivo são problemas de saúde e causas.

A categoria problemas de saúde envolve um aspecto mais cognitivo da

representação ou aquisição de um conhecimento. Pineault & Daveluy assinalam a

importância de se identificar os problemas de saúde antes do estabelecimento de

programas sanitários:

"La definición social de la enfermedad es particularmente

importante cuando se trata de instaurar programas sanitários.

Algunas intervenciones puestas en funcionamento por los países

desarrollados en los países en vías de desarrollo han fracassado

al no considerar esta realidade". (PINEAULT & DAVELUY, 1990:

3)

Ao adotar a categoria causa minha intenção foi perceber, nos discursos, a

presença ou não de explicações para as causas das doenças relacionadas com

desígnios divinos. Segundo Rothman, o termo causa das enfermidades pode ser

conceituado como:

"Todo acontecimiento, condición o característica que tiene

um papel esencial en producir su ocurrência." (ROTHMAN, 1987:

15)

Outro objetivo foi caracterizar o comportamento dos moradores frente aos

problemas de saúde. A categoria utilizada aqui refere-se às demandas aos

serviços de saúde.

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Nesta categoria busquei identificar os principais problemas de saúde que

expressam necessidades ou se transformam em demandas dos habitantes de

Mandiocal. PINEAULT & DAVELUY conceituam o termo demanda como:

"A necessidade expresada equivale a la demanda de

cuidados y de servicios, a la necesidad sentida que finaliza en un

proceso de búsqueda de servicios. En efecto, algunos individuos

no recuren a los servicios aunque sientan una necesidad; outros

no perciben que tienen una necesidad aunque la tengan;

finalmente, algunos expresan esta necesidad, pero no

necesariamente vem esta demanda satisfecha o por lo menos en

la forma en que ellos esperaban." (PINEAULT & DAVELUY, 1990:

46)

O último objetivo foi identificar aspectos relevantes da cultura, em especial

da religião, na busca da atenção à saúde pelos moradores da comunidade. A

categoria que expressa esse objetivo é tratamento.

ALVES (1998) conceitua tratamento como: "ato ou efeito de tratar-se. É

também o processo de curar". (ALVES, 1998: 45).

Minha intenção foi identificar as diversas formas de tratamento das

doenças, tendo como pressuposto a existência de diferenças nas práticas de

católicos e pentecostais.

Durante o trabalho de campo percebi a necessidade de abordar os

possíveis motivos da divisão comunitária. Tendo em vista que, caso houvesse

diferenças significativas entre católicos e pentecostais no que tange ao

tratamento dos problemas de saúde, estas poderiam estar relacionadas com a

divisão. Portanto, fez-se necessário compreender os motivos dessa divisão e a

categoria que me pareceu iluminar esta abordagem foi comunidade.

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Comunidade é uma palavra de difícil conceituação, como já constataram os

estudiosos desse tema. O objeto comunidade pode assumir vários e diferentes

significados dependendo do arcabouço ideológico e teórico de quem o pensa.

Assim, optei por seguir o conselho de Norbert Elias:

"Ao invés de ficar nas tipologias rígidas comecemos a

estudar os processos históricos de mudança das relações sociais

entre os grupos intra e extra comunitários; e estudemos cada uma

das variáveis (características) do que consideramos propriamente

comunitário – relações de poder, interações e interdependências."

(ELIAS & SCOTSON , 1965 ).

Utilizei a palavra comunidade para definir a unidade territorial, sócio-

econômica e religiosa que tem por centro Mandiocal. (GALVÃO, 1954).

I.6 – Considerações teóricas Parti para o campo tendendo a acreditar que a divisão religiosa em

Mandiocal, entre católicos mais antigos e pentecostais em menor número, poderia

estar gerando problemas de acesso aos recursos de saúde disponíveis na

comunidade para os moradores do núcleo pentecostal, tendo em vista que tanto

estes recursos, quanto os responsáveis pelo mesmo encontravam-se no núcleo

católico e os moradores do núcleo pentecostal evidenciavam resistências

relacionadas com esse contexto comunitário.

Meu problema consistia em saber, como referido anteriormente, em que

medida sistemas de crenças religiosas constituíam-se em variável de

diferenciação ao acesso à saúde nesta comunidade.

A partir das descobertas do trabalho de campo, percebi que minhas

impressões iniciais haviam-se perdido, a realidade comunitária que eu pensava

existir era ilusória e completamente oposta às minhas expectativas.

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Inicialmente, descobri nunca haver existido um local público para realização

de procedimentos básicos de saúde; as pessoas que haviam sido treinadas pelo

projeto em 1994 em conjunto com a prefeitura de Abaetetuba mudaram-se para

outros locais e o agente comunitário de saúde que havia sido aprovado no

concurso realizado em 1997 entregou seu cargo.

Assim, procedi a uma releitura das falas e reinterpretação dos fatos,

redirecionando os rumos da pesquisa. A questão que me propus a responder

passou a ser, então: Em que medida a religião constitui-se em variável de

diferenciação ao tratamento dos problemas de saúde em Mandiocal?

Considero que este tema envolve múltiplos aspectos e para abordá-los

adotei como referenciais teóricos:

a) Religião e Saúde

A religião diz respeito a experiências humanas concretas. Toda religião

existe e opera numa sociedade concreta e específica; portanto, a religião está

também submetida a um conjunto de limitações geradas no universo desta

sociedade.

NOVAES, escrevendo sobre catolicismo e classes sociais no campo, afirma

que "as religiões se apresentam como as principais fontes doadoras de sentido

para a vida." (NOVAES, 1997: 5)

Autores que trabalham temas religiosos afirmam que as religiões progridem

mais acentuadamente entre populações pobres, constituindo-se em

“solucionadoras de problemas”, oferecendo uma oportunidade de inclusão à

sociedade secularizada. (MACHADO, 1996)

PIERUCCI & PRANDI (1996) ressaltam o fato de que um grande estudioso

de temas religiosos, Procopio Camargo, conseguiu vislumbrar até na teoria de

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Marx sobre o materialismo histórico possíveis aspectos positivos da religião, pois,

segundo este autor a consciência religiosa pode ser a expressão de uma situação

real.

"A religião não apenas exprime e legitima um mundo de

dominadores e exploradores, mas exprime também, com o

conceito de Deus e os conceitos conexos de sua perfeição e de

nossa perfectibilidade, o protesto da criatura oprimida contra a

miséria real". (PROCOPIO CAMARGO apud PIERUCCI &

PRANDI, 1996: 14)

Para PIERUCCI & PRANDI a consciência religiosa, portanto, não

funcionaria apenas como consciência que comprime o indivíduo em sua limitação

e dependência de forças superiores, mas funciona também como estrutura pós-

tradicional de consciência que mantém aberta ao indivíduo a perspectiva de

superar suas limitações e sua dependência. Neste sentido é uma consciência de

protesto, de crítica. De utopia. (PIERUCCI & PRANDI, 1996)

As alternativas religiosas se mostram capazes de recuperar o sentido da

vida para aquelas pessoas abandonadas pelo pacto secularizante, no qual a

ciência tem todas as respostas. (PRANDI, 1997)

PRANDI (1997), afirma ainda que numa sociedade problemática,

descontínua, heterogênea e fragmentada, a religião pode representar também um

enriquecimento das dimensões subjetivas, que consideram o sentimento de

pertencimento a um grupo, ou seja, uma forma de solidariedade em que todos se

protegem e ajudam, capaz de fornecer elementos de resistência aos menos

incluídos nos padrões de bem-estar e consumo da sociedade moderna.

Mas é diante da doença e da aflição que estas características integradoras

das religiões apresentam-se como fontes de bem-estar e segurança, oferecendo

aqueles que tem fé, a perspectiva da cura do corpo e da alma.

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MINAYO (1994), em um estudo sobre catolicismo popular, constatou que as

pessoas ligadas à fé cristã colocam em Deus a causa primeira do aparecimento

das doenças. Esta autora diz que para o catolicismo popular as doenças são

interpretadas como “bençãos - meios”, reordenadoras do universo pessoal ou

social em situação caótica.

A cura das doenças no catolicismo popular está vinculada:

“Ao fenômeno pelo qual as pessoas recuperam a saúde

física e mental, mas também serve para denominar a recuperação

da segurança, do bem-estar, da honra, do prestígio, de tudo aquilo

que seja reordenação do caótico, do imprevisível, do negativo em

termos religiosos - ideológicos ou pessoais, em relação a si

mesmo, aos outros e ao mundo". (MINAYO, 1994: 66).

RABELO (1993), em um trabalho sobre religião e cura, assinala que vários

estudos que analisam as terapias religiosas tratam a questão da cura como algo

que impõe ordem sobre a experiência caótica do sofredor e daqueles diretamente

responsáveis por ele. Na maioria dos casos, as terapias religiosas são abordadas

sob a perspectiva do culto enquanto campo organizado de práticas e

representações, ao interior do qual o especialista religioso manipula um conjunto

dado de símbolos religiosos, capazes de produzir a cura.

ALVES e SOUZA (1994), num trabalho sobre itinerário terapêutico, alertam

que as pessoas têm várias maneiras de resolver seus problemas de saúde. Para

estes autores, a escolha do tratamento é influenciada pelo contexto sócio -

cultural:

“Falar de processo de escolha é se referir a uma consciência

das possibilidades ao alcance e igualmente acessíveis ao

indivíduo. Assim sendo, torna-se necessário que o sujeito da

escolha ao fazê-la transforme seu ambiente social (que a todo

momento lhe impõe diversas alternativas) em um campo dentro do

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qual a escolha e a decisão tornam-se possíveis." (ALVES e

SOUZA, 1994: 14).

b) Representações Sociais

Privilegiei a abordagem das representações sociais porque realiza a

mediação entre uma epistemologia do “sujeito puro” e uma epistemologia do

“objeto puro”, centrando seu olhar sobre a relação entre os dois. (GUARESCHI,

1995).

VELLOZO (1994) ressalta que alguns dilemas têm marcado o debate sobre

as investigações balizadas na categoria de representações sociais, relacionadas à

interseção de diversas disciplinas como a sociologia, a antropologia e a psicologia.

Para muitos autores, a categoria das representações sociais expressa um

campo transdisciplinar. Para SPINK: “as representações sociais se apresentam

enquanto um campo transdisciplinar, situado na interface dos fenômenos

individual e coletivo”. (1993:300).

Adotei a definição proposta por Moscovici para quem as representações

sociais são:

“Entidades quase tangíveis. Elas circulam, cruzam-se e se

cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um

encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações

sociais estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as

comunicações trocadas, delas estão impregnados." (MOSCOVICI,

1978: 41).

Este autor enfatiza ainda dois postulados que devem ser levados em

consideração quando utilizamos as representações sociais: ancoragem e

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objetivação. A ancoragem relaciona-se com a inserção do que é estranho no

pensamento já constituído.

“É um processo psíquico, capaz de tornar familiar, situar e

tornar presente em nosso universo interior o que se encontra a

uma certa distância de nós, o que está, de certo modo, ausente.

(...)Ao tornar-se próprio e familiar, o objeto é transformado e

transforma. A bem dizer, ele deixa de existir como tal para se

converter num equivalente dos objetos (ou das noções) a que se

sujeitou pelas relações e os vínculos estabelecidos. Ou, o que

vem a dar no mesmo, se tornou um representante, por sua vez, e

passou a manifestar-se exclusivamente nesse papel."

(MOSCOVICI, 1978: 62-63).

A objetivação é vista, por MOSCOVICI, como uma operação formadora de

imagens, o processo que transforma idéias abstratas em algo concreto: “No real, a

estrutura de cada representação apresenta-se-nos desdobrada, tem duas faces

tão pouco dissociáveis quanto a página da frente e o verso de uma folha de papel:

a face figurativa e a face simbólica." (MOSCOVICI, 1978: 65)

Segundo o autor, a objetivação pode ser assim descrita:

Figura

"Representação ___________________

Significação

querendo dizer que ela faz compreender a toda figura um sentido

e a todo sentido uma figura (...) Os processos postos em jogo têm

por função destacar uma figura e, ao mesmo tempo, carregá-la de

um sentido, inscrever o objeto em nosso universo, isto é,

naturalizá-lo e fornecer-lhe um contexto inteligível, isto é,

interpretá-lo”. (MOSCOVICI, 1978: 65).

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GUARESCHI afirma que para MOSCOVICI a realidade da qual o conceito

das representações sociais deveriam dar conta:

“Era uma realidade que compreendesse as dimensões

físicas, sociais e culturais. E o conceito deveria abranger a

dimensão cultural e cognitiva; a dimensão dos meios de

comunicação e das mentes das pessoas; a dimensão objetiva e

subjetiva." (GUARESCHI, 1995:193).

Para BIRMAN:

“O real apenas se constitui como realidade pela mediação da

ordem simbólica que lhe confere consistência significativa, para

que possa ser compartilhada por uma comunidade social

determinada, dotada da mesma tradição histórica e linguística.

Isso implica dizer que a realidade é uma constituição

eminentemente intersubjetiva e simbólica, não existindo fora dos

sujeitos coletivos e históricos, que são ao mesmo tempo os seus

artífices, os seus suportes e os mediadores pela sua transmissão."

(BIRMAN, 1991: 08).

SPINK, a partir de JODELET, assinala que as representações sociais:

“São modalidades de conhecimento prático orientadas para a

comunicação e para a compreensão do contexto social, material e

ideativo em que vivemos. São, consequentemente, formas de

conhecimento que se manifestam como elementos cognitivos-

imagens, conceitos, categorias, teorias - , mas que não se

reduzem jamais aos componentes cognitivos. Sendo socialmente

elaboradas e compartilhadas, contribuem para a construção de

uma realidade comum, que possibilita a comunicação. Deste

modo, as representações são, essencialmente, fenômenos sociais

que, mesmo acessados a partir do seu conteúdo cognitivo, têm de

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ser entendidos a partir do seu contexto de produção." (SPINK,

1993; 300).

Minha intenção neste trabalho é identificar através da abordagem das

representações sociais as possíveis escolhas de tratamento aos problemas de

saúde em Mandiocal, caracterizando o papel desempenhado pela religião nas

idéias e comportamento de católicos e pentecostais frente a saúde/doença.

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CAPÍTULO II- A PRODUÇÃO DA VIDA, AS OPINIÕES E CRENÇAS. APRESENTAÇÃO DA PESQUISA EM MANDIOCAL

II.1- A produção da vida

Neste tópico apresento os achados da observação participante na

comunidade.

O início da observação participante ocorreu com minha fixação na

comunidade, no mês de julho/1998. Meu objetivo ao utilizar esta técnica era

conhecer aspectos do cotidiano das pessoas em Mandiocal que subsidiassem a

investigação e permitissem uma maior compreensão das idéias e comportamento

de seus habitantes.

Os primeiros dias de contato com qualquer grupo, obviamente, fornecem

pouca informação valiosa. Apesar de conhecer a maioria das pessoas com as

quais pretendia desenvolver a observação participante, elas poderiam não estar

totalmente à vontade na minha presença; era necessário, portanto, um processo

de familiarização.

Assim, nos dois núcleos, dediquei os primeiros dias simplesmente a

participar do cotidiano das pessoas. Assisti aos cultos pentecostais, às missas

católicas, participei de uma festa, joguei futebol com o time feminino, participei de

reuniões sobre a fábrica de banana, assisti ao plantio e colheita da mandioca e à

produção de farinha.

Procurei tornar-me amiga das pessoas com quem estava e, dessa forma,

tentei agir como se espera que um amigo aja naquele grupo, mas sempre

procurando observar a regra de evitar influenciar as ações do grupo.

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As minhas principais atividades de pesquisa enquanto observadora

participante nos dois núcleos incluíram o seguinte:

1- Acompanhamento da rotina escolar nos dois núcleos;

2- Participação nos cultos pentecostais, missas, festas e outros eventos;

3- Participação em reuniões comunitárias;

4- Acompanhamento do padrão alimentar;

5- Participação em atividades de lazer;

6- Acompanhamento das atividades produtivas.

Para coletar estes dados utilizei um diário de campo onde anotava

diariamente todos os acontecimentos; estas anotações economizaram um bom

tempo, principalmente na análise e sintetização dos dados para redação.

Durante o período que residi em Mandiocal observei um aumento do

desmatamento da área verde da comunidade, bem como o aumento da poluição

do rio que passa pela comunidade e é uma das principais fontes de abastecimento

de água das famílias, com conseqüências até para mim, ao contrair hepatite no

decorrer da investigação.

Enquanto pesquisadora é difícil verificar que o trabalho desenvolvido

anteriormente não conseguiu frear estes processos; enquanto amiga das pessoas

da comunidade angustiou-me profundamente a atual situação de Mandiocal.

Estes sentimentos certamente afetaram os dados coletados, mas é difícil

dizer como e quanto. Portanto, os resultados apresentados aqui têm todas as

limitações teóricas e práticas de uma nutricionista que está aprendendo a usar as

técnicas da pesquisa qualitativa.

A fim de tornar a apresentação dos dados mais dinâmica, optei por dividir o

relato entre os dois núcleos. Com relação à alimentação e às atividades

produtivas, por se tratarem de eventos que apresentam uma certa similaridade,

optei por descrevê-los de forma conjunta.

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II.1.1)- O roçado e a trama das relações sociais

Em Mandiocal, a principal atividade dos moradores é a produção de farinha

de mandioca, realizada no roçado que, segundo os moradores da comunidade, é

o espaço central para as atividades de cultivo de culturas temporárias. Esta

produção tanto serve para o consumo diário da família, quanto para

comercialização e aquisição de bens não produzidos por ela.

Com relação à propriedade, dados coletados pelo projeto, em 1991,

apontaram que a maioria dos produtores da comunidade não possui documento

legal de propriedade das terras ocupadas. Entretanto, os pesquisadores

ressaltaram na época que esse fato não gerou consequências negativas para os

moradores locais, tendo em vista que as terras eram devolutas no início do

processo de ocupação, permanecendo sem qualquer contestação até os dias de

hoje.

Os moradores conhecem e têm reconhecido os limites de sua propriedade,

assim como das áreas de roçado e das áreas coletivas. O tamanho da

propriedade pode variar de um hectare (área do sítio doméstico), a no máximo 30

hectares por família. A maioria das propriedades é inferior a seis hectares.

A família desempenha todas as atividades de cultivo, produção de farinha e

comercialização no município de Abaetetuba. A divisão das tarefas é feita de

acordo com a faixa etária e sexo; podemos observar melhor esta divisão na

seguinte tabela:

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Tabela 01: Ocupações desenvolvidas por faixa etária e sexo em Mandiocal- 1991

Faixa etária Sexo Ocupações

0 a 6 anos Masculino

Feminino

___

___

6 a 10 anos Masculino

Feminino

Cultivos; produção

de farinha;

atividades

domésticas

Cultivos; atividades

domésticas

11 a 20 anos Masculino

Feminino

Cultivo; produção

de farinha

Cultivo; produção

de farinha;

atividades

domésticas

Acima de 21 anos Masculino

Feminino

Cultivo; produção

de farinha;

comércio; extração

de madeira

Cultivo; produção

de farinha;

atividades

domésticas

Fonte: Projeto(1991)- Levantamento sócio - econômico de campo.

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As pessoas mais idosas da comunidade, com idade superior a 65 anos, são

dispensadas das atividades referidas acima, geralmente recebem aposentadoria3

e contribuem com as despesas da família.

A preparação do roçado tem inicio no período de julho a setembro, durante

o “verão” (quando a região tem menor quantidade de chuva). Após a delimitação

da área a ser cultivada, são feitas as tarefas de broca ou roçagem e derruba.

É comum nestas atividades a união entre as famílias dos agricultores, o

mutirão é uma forma comum de associação na comunidade, bem como a divisão

do roçado entre duas famílias que realizam, conjuntamente, a limpeza do terreno

e o plantio das espécies a serem cultivadas.

A broca é feita com o terçado (facão), atingindo a vegetação mais baixa em

volta das árvores maiores. Após a primeira limpeza do terreno, ocorre a derrubada

das árvores maiores com o machado, que ficam caídas sobre a terra. Em seguida,

a terra fica de “repouso” até novembro, quando é realizada a queimada. Com a

chegada do inverno é feita a limpeza do terreno, a coivara, com empilhamento

dos troncos das árvores que não foram totalmente destruídos pelo fogo e que são

passíveis de serem carregados.

O plantio da mandioca deve ser feito a partir do mês de dezembro em

diante. Para plantar a mandioca utiliza-se como semente o caule, chamado de

maniva. Devem ser plantados de 2 a 3 pedaços em cada cova de 5 centímetros de

profundidade, ou seja, o tamanho da enxada. A distância entre cada cova é de 2

palmos de largura e 6 de comprimento. No mesmo roçado podem ser plantadas

três qualidades de mandioca, e o cultivo é consorciado com produtos como milho,

abóbora e arroz.

3 Todas as pessoas da comunidade acima de 65 anos com quem conversei recebem aposentadoria no valor de um salário mínimo, que na época da pesquisa correspondia a R$ 130,00 reais.

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Durante o período de desenvolvimento da mandioca é realizada a capina,

que consiste na retirada do mato em volta do terreno. Esta atividade é realizada

duas vezes ao ano, quando o terreno é de capoeira, e uma vez, quando é mata.

A colheita da mandioca pode ser feita durante todo ciclo agrícola, pois este

produto pode ser estocado na terra por um período de dois anos sem apodrecer.

Muitas vezes os agricultores, devido às flutuações de preço do mercado, deixam

de colher as raízes para comercialização e só colhem o suficiente para produção

doméstica, o que é um recurso de sobrevivência deste grupo social.

O primeiro passo para colheita da mandioca é o corte dos arbustos; depois

arranca-se os tubérculos do solo com uma enxada ou com as mãos, o que exige

uma grande quantidade de esforço físico. Em seguida, ocorre a limpeza da raiz,

que é colocada em paneiros (cestos de palha) que vão transportar a mandioca até

o retiro (casa de farinha).

O processo de produção de farinha4 exige o aproveitamento de toda a mão-

de- obra familiar e utiliza instrumentos rudimentares. Após a colheita das raízes de

mandioca, uma parte é separada e colocada de molho no igarapé, durante três

dias, dentro de um paneiro.

No dia da produção da farinha (farinhada), todos os membros da unidade

familiar se reúnem em volta dos paneiros para descascar, ou raspar, a mandioca

dura que não ficou de molho; o instrumento utilizado é uma pequena faca. Após

esta primeira etapa, a mandioca é colocada em uma prensa manual movida por

uma roda. O objetivo é a retirada do líquido venenoso e a transformação dos

tubérculos em massa. Esta atividade exige a participação de três membros adultos

da unidade doméstica.

Enquanto uma mulher adulta coloca a mandioca na prensa, dois homens

acionam o rodete. Enquanto isso, membros da família descascam a mandioca

4 Utilizei como referência a descrição de Tatiana Lins e Silva (1977) em “Os curupiras foram embora: um estudo sobre alimentação e reprodução da força de trabalho entre camponeses paraenses”.

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mole que estava de molho. Ao mesmo tempo, algum homem adulto carrega a

lenha e prepara o forno. Este é de barro e apresenta a forma cilíndrica.

Simultaneamente, outro membro da unidade familiar deposita a massa da

mandioca seca num recipiente semelhante a um cocho de animal, para a lavagem.

A massa lavada é colocada no tipiti5 onde será comprimida duas vezes

mais. O líquido extraído cai dentro de uma vasilha através de uma peneira. O

caldo amarelo recebe o nome de tucupí e após uma fervura de vários dias é

aproveitado na dieta alimentar. Durante a passagem pela peneira, o tucupí

deposita um pó branco denominado de tapioca que será transformado em farinha

de tapioca ou polvilho, ambos utilizados para a preparação de alimentos: beiju,

mingau etc.

A mandioca mole, depois de prensada, é misturada com a massa de

mandioca dura. Após esta massa passar por todo processo anteriormente

descrito, vai ao tipiti. Na fase seguinte a massa é peneirada e colocada no forno.

Enquanto está sendo torrada é várias vezes passada na peneira. Finalmente, são

produzidos os grãos de farinha de mandioca que são passados várias vezes na

peneira, os grãos que não conseguem passar na peneira, porque são muito

grossos, são chamados de croeira e utilizados como alimento para criações

domésticas de animais (pato, galinha, porco). Cerca de 60% a 70% desta

produção é destinada à comercialização, o restante é consumido pela família, que

também envia alguma quantidade para seus parentes mais idosos, que porventura

residam em outras casas.

O produto final de uma semana de trabalho é uma saco de

aproximadamente 50 kg de farinha de mandioca, que é levado para o município de

Abaetetuba através do único meio de transporte disponível para este fim, um

caminhão que atende à comunidade uma vez por semana (todas as sextas-feiras).

O preço da passagem cobrado pelo dono do caminhão na época da pesquisa era

de R$ 2,00 reais por pessoa e R$ 2,00 reais por cada saco de farinha.

5 Instrumento cilíndrico, de origem indígena, tecido de talas de palmeiras

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Os produtores têm uma relação de freguesia com o mercado em

Abaetetuba, mas não do tipo “fiel”, ou exclusiva, ou seja: os produtores nem

sempre comercializam, ou são obrigados a comercializar, seu produto para o

mesmo/único comerciante. Dependendo do preço oferecido pela saca de farinha,

o produtor opta pelo que possibilita maiores ganhos. Os agricultores negociam

com os chamados “atravessadores”, que compram a farinha e revendem para

supermercados e feiras a um preço bem superior ao que pagam.

A produção era comercializada ao preço médio de R$ 25,00 reais nos

melhores períodos, podendo chegar a R$ 12,00 reais em tempos críticos. Esta

renda permite à família a aquisição de parte fundamental de seu consumo diário

(alimentação, vestuário, medicamentos). Geralmente a família complementa este

valor com a extração de madeira, atividade que vem decrescendo com o

desmatamento desordenado e também através de alimentos provenientes da

própria comunidade, como aqueles obtidos do rio (peixes) e mais raramente da

floresta (carne de caça e frutas).

II.1.2)- A Alimentação

A base alimentar em Mandiocal constitui-se principalmente de farinha de

mandioca, café, açaí, carne de caça, enlatados, ovos, aves (criações domésticas)

e eventualmente frutas no período de safra (acerola, cupuaçu, bacuri, jaca, manga

e banana).

O padrão alimentar consiste inicialmente, na parte da manhã, no café

ingerido puro, apenas com açúcar. Em seguida, há uma pequena merenda que

tanto pode ser na hora do café quanto algumas horas mais tarde, no intervalo do

almoço, esta merenda pode ser um mingau de farinha de mandioca, conhecido

como chibé (mistura de farinha com água), ou pedaços de peixe assado ou frito,

ou ainda sardinha em lata e também ovos fritos, todos estes alimentos misturados

com farinha.

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O almoço não tem um horário definido, e pode ser substituído pela

merenda, uma vez que, para as pessoas com quem conversei, a refeição mais

importante é o jantar; neste, a alimentação pode ser uma carne de caça, um peixe

maior, sem espinhas, ou de forma mais esporádica as criações do quintal, como

galinhas, porco e pato, acompanhados de vinho de açaí (fruta típica da região) e

farinha de mandioca.

A explicação das famílias para o privilegiamento do jantar como refeição

mais importante é porque dessa forma eles “não dormem com fome”.

As representações das pessoas em Mandiocal sobre estar alimentado e

estar em estado de privação estão relacionadas diretamente à possibilidade ou

não de acesso ao rio e à mata, à medida que estes fornecem a maior parte dos

alimentos consumidos.

As famílias residentes em Mandiocal apresentam sinais de deficiências

nutricionais, principalmente cálcio e fósforo, como perda precoce de parte da

arcada dentária, manchas na pele e queda de cabelos.

Tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo, a alimentação em

Mandiocal apresenta-se inadequada para suprir as recomendações nutricionais

necessárias para um bom desenvolvimento físico e mental de seus habitantes.

Em 1993, enquanto integrante da equipe de nutrição do projeto, realizei um

levantamento sobre o perfil antropométrico de crianças na faixa etária de zero a

onze anos completos, em quatro comunidades rurais, incluindo Mandiocal.

Os dados mostraram que a prevalência da desnutrição crônica,

comprometimento do índice altura/idade, encontrada nas quatro comunidades, foi

maior em Mandiocal.

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TABELA 02 : Prevalência de desnutrição crônica em quatro comunidades rurais do Pará. 1993

COMUNIDADE Nº DE

CRIANÇAS

RESIDENTES*

Nº DE CRIANÇAS

ESTUDADAS**

Nº DE CRIANÇAS

COM

DESNUTRIÇÃO

CRÔNICA

%

MANDIOCAL 74 63 28 44,4

PRAIA GRANDE 36 31 07 22,2

NOVO PARAÍSO 136 136 34 25,0

URUBUÉUA 138 121 40 33,1

*Dados referentes a 1991 (Projeto- Levantamento sócio - econômico de campo) **Dados referentes a 1993 (Pesquisa de Campo – Equipe de Nutrição) Vale lembrar que o retardo do crescimento linear se dá de forma lenta e

cumulativa, mediante a exposição prolongada a alimentação insuficiente e/ou

processos mórbidos crônicos. ( FRAZÃO E PEREIRA, 1993: 14).

Isto torna-se mais grave à medida que o principal meio de subsistência em

Mandiocal (produção de farinha de mandioca) não oferece boa rentabilidade de

mercado e o primeiro item a sofrer reduções é a alimentação.

Nos dois núcleos não existem diferenças em relação aos alimentos

consumidos, somente o porco não é consumido por algumas famílias do núcleo

pentecostal. Uma característica presente nos dois núcleos é a prática de repartir a

carne de caça conseguida por algum membro, onde os mais velhos são sempre

os primeiros a serem lembrados. Em seguida, caso haja quantidade suficiente, os

amigos mais próximos também receberão uma parte do alimento.

Em contrapartida, as pessoas mais idosas da comunidade, que em sua

maioria recebem aposentadoria, costumam comprar alimentos para as pessoas

mais próximas que com eles dividiram o produto da caça, havendo, assim, uma

forma de retribuição, o que demonstra um espírito de comunidade ali existente.

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Uma diferença constatada em relação à alimentação, refere-se ao

comportamento das famílias no momento das refeições: as famílias pentecostais

costumam fazer longas orações antes de todas as refeições, mas tal hábito não é

compartilhado pelas famílias católicas.

O desmame precoce também é uma realidade, depois dos dois primeiros

meses de vida as crianças começam a receber alimentação artificial, que inclui

mingau de farinha de mandioca e de massas como Maisena e Neston. As mães

alegam que precisam trabalhar na roça, algumas mulheres não têm

companheiros, o que aumenta ainda mais a necessidade de garantir o sustento da

família.

II.1.3)- A sociabilização, os ritos

a) O pentecostalismo

O pentecostalismo teve inicio nos Estados Unidos, se desenvolveu fora do

protestantismo tradicional que lhe deu origem e não resultou na organização de

uma única instituição que se encarregasse de promover sua unidade. Ao contrário,

cada denominação pentecostal tem sua forma de organização independente.

Segundo NOVAES (1985), os pontos característicos que permitem

classificar uma denominação como pentecostal é, sobretudo, o núcleo doutrinário

comum que dá maior ênfase em certos aspectos da doutrina cristã, como: crença

e atuação do Espirito Santo sobre os fiéis contemporâneos, busca de santificação

através do desprezo à sabedoria humana e aos valores do mundo, e a espera

pela segunda vinda de cristo, quando os crentes serão resgatados e os não-

crentes condenados.

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b) A Igreja Pentecostal Deus é Amor - IPDA

Antes de iniciar as atividades no núcleo pentecostal conversei em Belém

com um pastor da igreja Deus é Amor. Meu objetivo era conhecer as principais

características desta denominação. Apesar das leituras que realizei sobre o tema,

senti a necessidade de esclarecer certos aspectos acerca da origem e

organização da igreja.

A igreja Deus é Amor foi fundada em 1962, na cidade de São Paulo por um

paranaense chamado David Miranda. Miranda era católico e estudou somente até

o ginásio; vindo a São Paulo converteu-se em uma igreja chamada Jerusalém. Em

1962, com 26 anos de idade e estando desempregado, aproveitou a indenização

trabalhista para alugar um local na região de Vila Maria e inaugurou sua própria

igreja. (FRESTON, 1996)

Paul Freston escrevendo sobre a história do pentecostalismo no Brasil

afirma que a Igreja Deus é Amor tem acentuados traços de sectarismo; segundo o

autor a igreja conta com minuciosas regras de conduta que incluem proibições6

como:

"Brincadeiras de bolas para as crianças com mais de 7 anos; roupas vermelhas para homens; amigo secreto; jogos de qualquer espécie; uso de anticoncepcionais; saltos de sapatos de mais de três centímetros." (FRESTON, 1996; 127). ]

Segundo este autor, o apelo da igreja Deus é Amor é sobretudo aos muito

pobres. "A miséria é mais visível nos seus cultos do que nos de qualquer das

outras grandes igrejas pentecostais." (FRESTON, 1996: 128).

O encontro com o pastor em Belém durou aproximadamente 40 minutos,

nos quais o pastor enfatizou o objetivo da igreja que, segundo ele, consiste em

anunciar que o único caminho para libertação e salvação é aceitar Jesus Cristo como senhor da nossa vida. 6 De fato, em Mandiocal a maioria destas proibições é vigente.

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O pastor fez questão de ressaltar o caráter e a conduta moral de seus fiéis,

afirmando que é muito difícil a desobediência de seus fiéis às leis estabelecidas

por Deus e pelos homens.

Perguntei ao pastor se conhecia a comunidade de Mandiocal e a igreja lá

existente, respondeu-me que não, mas tinha certeza que era bem dirigida e

andava em conformidade com os mandamentos da bíblia. Relatei-lhe, então,

alguns dos problemas ocorridos entre os pentecostais e católicos na comunidade.

O pastor disse não poder emitir uma opinião acerca da situação, porém,

tinha convicção que os atos praticados pelos fiéis da igreja estavam em

conformidade com as orientações de Deus.

A igreja pentecostal Deus é Amor foi fundada em Mandiocal, na década de

70, a partir de um sonho de um dos entrevistados (João), que relatou-me estar

descontente com as mensagens de José, responsável pelas pregações da igreja

católica.

João contou-me que sonhou estar pregando no deserto e uma voz aparecia

e lhe dizia que esta era sua missão na terra: "pregar no deserto para aqueles que

precisam conhecer a palavra de Deus Nosso Senhor."

A partir desse momento a voz lhe ordenou que fundasse sua própria igreja

e pregasse a 'verdadeira palavra de Deus' para que as pessoas pudessem obter

libertação e salvação.

A visita de um comerciante evangélico da igreja Deus é Amor na

comunidade, aproximadamente no final da década de 70, reiterou o desejo de

João que optou pela doutrina desta igreja e fundou uma denominação da IPDA em

Mandiocal.

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c) O núcleo pentecostal

Acompanhei o cotidiano do núcleo pentecostal durante 20 dias, nos quais

dividi meu tempo da seguinte forma: oito dias acompanhando a rotina escolar; oito

dias acompanhando as atividades produtivas e quatro dias acompanhando

atividades de lazer, como aulas de violão e estudos da bíblia.

Iniciei as atividades acompanhando a rotina da escola pública de 1º grau

São Sebastião, que conforme depoimentos dos moradores locais, foi criada há um

ano através de um político da região interessado em conseguir votos. A escola

começou a funcionar em agosto de 1997 e foi implantada a pedido dos moradores

da área que estavam insatisfeitos com a distância que seus filhos eram obrigados

a percorrer (aproximadamente 2 km), para estudar no núcleo católico.

A professora responsável pelas disciplinas é contratada do município de

Mojú, reside em Abaetetuba, concluiu o segundo grau e afirmou ser evangélica;

entretanto, destacou o fato de não pertencer a uma única igreja ou denominação.

Tenho a impressão de que a professora talvez afirme ser evangélica para evitar

problemas com os moradores locais.

Conversei com a professora sobre o trabalho e também se seria possível

acompanhar algumas de suas aulas, deixando evidente, porém, que não haveria

qualquer interferência de minha parte. Ela foi muito gentil e colocou-se à

disposição para colaborar.

A escola tem no total 36 alunos distribuídos da seguinte forma: Manhã- 1ª

série com 18 alunos; Tarde- 2ª série com 15 alunos, 3ª série com 2 alunos e 4ª

série com 1 aluno.

A professora segue o programa municipal de educação, que usa a “cartilha

de Brasília”, isto é, materiais didáticos fornecidos pelo Ministério da Educação e

Cultura-MEC, e, assim, quatro disciplinas são ministradas: Estudos sociais (cujo

conteúdo refere-se à história do Brasil e seu desenvolvimento); Ciências (onde

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são apresentadas noções básicas de órgãos do corpo humano, importância dos

animais e vegetais, alimentação e higiene); Matemática (operações de soma,

diminuição, multiplicação e divisão); e, finalmente, segundo os alunos, a parte

mais difícil, a disciplina de Língua portuguesa, na qual os alunos são obrigados a

ler diariamente uma das lições constantes da cartilha distribuída pela Secretaria

Municipal de Educação.

A professora inicia as aulas saudando a turma com bom-dia, faz a oração

do pai nosso, pergunta às crianças se tomaram café da manhã, como foi o dia

anterior, se fizeram as lições de casa. A aula começa com ciências (tópicos sobre

o corpo humano, alimentação e higiene), com até 40 minutos; Estudos sociais

(História do Brasil, a descoberta e a missa, as guerras contra os países vizinhos);

Matemática (operações de soma, diminuição, multiplicação e divisão); e Português

(leituras de textos das “cartilhas do MEC”, tópicos de gramática e interpretação de

textos).

Durante o período que “frequentei” a escola pude observar que as crianças

têm uma certa dificuldade no aprendizado, a professora precisava repetir várias

vezes as informações e mesmo assim nem todas conseguiam absorver o que

estava sendo repassado. Talvez a utilização de materiais didáticos que não levam

em consideração a realidade local contribua para dificultar, ainda mais, o

aprendizado das crianças.

A professora, bastante paciente, estimula os alunos a superar suas

dificuldades, repete várias vezes os conteúdos das disciplinas, conversa

informalmente com os pais dos alunos, quando permanece na comunidade nos

finais de semana, promove sessões extra de leitura, procura utilizar uma

linguagem de fácil compreensão.

A falta de carteiras com encosto e o fato de que o quadro, utilizado pela

professora, precisa ser dividido no período da tarde entre os alunos que cursam

séries diferentes gera uma situação de desconforto e dificuldade para a

aprendizagem

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Os alunos que freqüentam a escola na parte da manhã são na maioria

crianças, com a única exceção de um adolescente de 14 anos. Observei que a

ausência da professora durante alguns minutos provoca muitas conversas entre

os alunos a fim de esclarecer dúvidas, quando o aluno adolescente é requisitado;

em contrapartida, por ajudar aos colegas, ele ressalta seu papel de “líder”,

solicitando aos alunos materiais para utilizar na escola (lápis, borracha, cola, lápis

de cor).

Esta atitude expressa um tipo de hierarquia informal, sendo fortalecido o

aluno mais velho, e também com melhores atributos físicos (maior e mais

robusto). O poder de “liderança” deste aluno é percebido pela professora que

reforça este comportamento, fazendo elogios ao aluno no que se refere aos

deveres escolares.

No período da tarde o entrosamento com os alunos ocorreu mais

rapidamente, talvez porque eu já conhecesse a turma formada por pessoas com

idade entre 15 e 60 anos. Observei uma grande motivação dessas pessoas para

aprender a ler e escrever, mesmo quando precisam enfrentar barreiras físicas,

como a dificuldade de visão e até mesmo obstáculos de ordem pessoal, como no

caso das mulheres, o ciúme dos maridos que, segundo elas, inventam tarefas

domésticas minutos antes de seu deslocamento para a escola.

Entre os membros deste grupo, existe uma certa ambigüidade de

sentimentos, os mais velhos sentem-se constrangidos por estarem aprendendo a

ler e escrever, segundo eles, “nessa época da vida"; os mais novos demonstram

entusiasmo com a possibilidade de concluir a 4ª série primária e, para alguns,

continuar os estudos em Abaetetuba ou Mojú.

Outra atividade que observei foram os cultos de oração, que são realizados

duas vezes na semana: quarta-feira, no horário de 19:30 até 23:00, e no domingo,

na parte da manhã, de 07:00 até 12:00, e no período da tarde, de 18:00 às 22:00.

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Os cultos obedecem a um certo padrão, iniciam com agradecimentos a

Deus, depois há o momento de louvor que dura aproximadamente uma hora, em

seguida o pastor lê o evangelho e prega sobre o mesmo. Finalmente, ocorre o

momento das ofertas, os pedidos de oração com grande entusiasmo emocional

(gritos, choro, pessoas de joelho, pessoas deitadas no chão) e as orações finais.

Durante o culto o pastor exalta o poder que a fé tem sobre a vida das

pessoas, afirmando que quem confia em Deus não precisa ter preocupações com

alimentação, saúde, dinheiro, porque tudo isso é dado por Deus. A única condição

imposta é a constante obediência aos mandamentos da Bíblia e tudo o que

acontece na vida dos fiéis é porque Deus permite (doenças, morte, nascimento).

Da mesma forma, aquelas pessoas que têm melhores condições de vida

são um sinal de que estão agindo conforme o que é determinado por Deus, por

isso são sempre abençoadas e servem de exemplo para que os outros também

façam o mesmo.

Durante a pregação a conduta dos fiéis também é valorizada, o pastor

lembra que aquele que “aceita Jesus como seu salvador” deve ter uma conduta

moral rígida, evitando beber, fumar, adulterar, ser um bom trabalhador e cumprir

com seus deveres cívicos, não transgredir as leis e sempre concordar com as leis

do governo estabelecido.

Durante os cultos as pessoas compartilham atitudes, ou seja, quando

alguém começa a alterar a voz, imediatamente outra pessoa passa a falar em

língua estranha, outro grupo repete aleluias e amém várias vezes. O pastor no

púlpito incentiva estas demonstrações de fé.

Um comportamento “desviante” para eles, como beber, fumar, pronunciar

palavrão, é também explicado pela influência de entidades do mal sobre a vida

daquela pessoa, que não teve fé suficiente para resistir às tentações.

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Os trajes de homens, mulheres e crianças são padronizados conforme as

regras da igreja; as mulheres só podem usar saias e vestidos abaixo do joelho e

blusas de manga, os homens só podem usar calças compridas e ter cabelo curto,

as meninas não podem usar bijuterias nem pinturas.

Os meios de comunicação também sofrem uma rígida censura, no núcleo

pentecostal existe um aparelho de som (à base de bateria) na casa de um dos

membros, entretanto só é permitido tocar músicas da igreja, não há televisão e

mesmo que houvesse não seria permitida sua utilização.

As crianças e adolescentes não praticam nenhum tipo de esporte, quando

perguntei ao pastor o porquê de tal proibição, ele informou que todo o tempo

disponível deve ser utilizado para conhecer e aplicar a palavra de Deus. Aos

sábados e domingos após as celebrações, as crianças e adolescentes aprendem

a tocar violão e a ler e interpretar a bíblia.

Os membros exercem um tipo de controle uns sobre os outros, quando

algum membro não segue as regras é imediatamente chamado pelo pastor e

pelos demais integrantes da igreja para ser “aconselhado”. Caso não siga as

recomendações será punido com afastamento temporário e se, ainda assim,

continuar desobedecendo as regras será afastado definitivamente.

Ser afastado das atividades da igreja implica, também, uma exclusão do

núcleo como um todo, significa não poder mais compartilhar uma roça de

mandioca e também não poder mais contar com a ajuda dos vizinhos nas

atividades produtivas. Esta punição, portanto, extrapola os limites da igreja e

interfere diretamente no cotidiano dessas pessoas. Talvez por isso os membros

obedeçam tão prontamente às regras.

Este comportamento também é justificado pela busca de afirmação da

identidade de ser crente. Regina Novaes em um estudo sobre os pentecostais da

igreja Assembléia de Deus em uma comunidade rural afirma que:

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"Ser crente da Assembléia de Deus é romper com a "religião de

família", fazer uma opção voluntária e exclusiva, ter entendimento

da religião, participar na organização da congregação e da

divulgação de sua fé, (...) ter contato direto com os poderes

sobrenaturais (dons do Espirito Santo) e adotar um estilo de vida

rígido (viver apartado das coisas do mundo). (NOVAES, 1985: 67)

Perguntei às pessoas se alguém havia sido afastado definitivamente da

igreja, apenas um caso foi mencionado e tratava-se, segundo meus informantes,

de alguém com “problemas de cabeça”(mentais), sugerindo que este indivíduo não

conseguia compreender a importância da obediência para conseguir ser aceito

pelo grupo.

Um dos membros da diretoria da igreja fez questão de esclarecer que esta

pessoa não estava totalmente abandonada, os irmãos faziam-lhe visitas

periódicas e ajudavam nas atividades produtivas, entretanto, ressaltou que caso

eu viesse a conversar com este ex-membro, não considerasse suas opiniões

acerca da igreja.

Obviamente, fui conversar com esta pessoa e, antes de entrar no teor da

conversa, quero esclarecer que não disponho de conhecimentos suficientes para

assegurar qualquer parecer sobre o estado mental desta pessoa. Entretanto,

pareceu-me tratar-se de alguém com problemas de lucidez.

A conversa foi num clima de alegria para a pessoa, pois segundo a mesma,

pessoas de fora não costumavam visitá-la. Não foi necessário fazer-lhe

perguntas: num tom de desabafo, contou-me que fora excluída da igreja porque

não concordava com as proibições impostas pelos membros, além disso defendia

uma maior integração entre pentecostais e católicos, chegando até a participar de

uma palestra sobre saúde no núcleo católico. Tal fato teria irritado os dirigentes da

igreja, que decidiram pela sua exclusão.

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No meio da conversa, percebi uma certa confusão de idéias, pois em

seguida a esta revelação, a pessoa começou a assobiar para um passarinho que

estava em uma mangueira e perguntou se eu conhecia algum tipo de comida para

pássaros.

Antes que eu pudesse dar a resposta, a pessoa voltou à conversa inicial e

contou que foi convidada para retornar à igreja, mas não sabia se aceitaria; depois

pediu-me desculpas mas estava com sono e iria dormir.

Ao sair de sua casa, dois membros da igreja estavam me esperando,

perguntaram-me sobre o conteúdo de nossa conversa, respondi que tínhamos

falado sobre pássaros. Eles novamente enfatizaram que a pessoa sofre de

problemas mentais e, portanto, eu não deveria considerar suas declarações à

respeito dos membros da igreja.

Registrei este fato porque expressa o rígido controle social no interior do

núcleo pentecostal e também a falta de acesso dos moradores a instituições de

saúde capazes de diagnosticar e tratar o problema acima referido.

Com relação à participação dos moradores desse núcleo na implantação da

fábrica de banana, todos com quem conversei foram unânimes em afirmar que

não estão interessados no projeto, porque este concentra-se no núcleo católico e

as pessoas envolvidas, com exceções, não são, nas palavras deles, “honestas e

de confiança.”

Observei, ainda, que as pessoas no núcleo pentecostal parecem estar

menos preocupadas com a saúde, não usam qualquer tipo de tratamento na água

(ferver ou colocar hipoclorito). Acredito ser esta atitude decorrente de sua crença

que se vive conforme a vontade de Deus e caso aconteça algum problema de

saúde, Deus providenciará tratamento e cura.

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d) O catolicismo

A igreja católica, a exemplo de outras comunidades rurais da Amazônia, foi

a primeira instituição religiosa fundada na comunidade. Sua origem é fruto de uma

promessa de Maria, a moradora mais antiga do local atualmente, à Nossa

Senhora do Perpétuo Socorro, em favor de seu filho José que havia sofrido um

acidente e estava prestes à amputar a perna esquerda.

Na maioria dos depoimentos e mesmo em conversas informais, as pessoas

atribuem o surgimento da comunidade de Mandiocal ao início da construção da

igreja católica.

Em Mandiocal predomina o catolicismo popular definido por MAUÉS como:

"conjunto de crenças e práticas socialmente reconhecidas como católicas, de que

partilham sobretudo os não especialistas do sagrado." (MAUÉS, 1995: 17).

Observei que dentre o conjunto de crenças e práticas partilhados pelos

moradores católicos de Mandiocal, têm relevância o batismo, as relações de

compadrio (resultantes tanto do batismo oficial, quanto dos batismos de fogueira7)

e a devoção aos santos.

O batismo é o requisito primeiro e indispensável para que alguém se defina

como católico; o nascimento de uma criança implica no seu batismo e não

havendo a possibilidade do batismo do padre, realiza-se o batismo de casa, no

qual qualquer um que sabe rezar pode batizar. O batismo resulta em relações de

compadrio, que são marcadas por consideração, ajuda e respeito. Outra dimensão

importante do catolicismo popular em Mandiocal é a devoção aos santos

considerados intermediários entre Deus e os homens, esta devoção manifesta-se,

também, em devoções particulares. (NOVAES, 1985)

7Batismo de Fogueira: prática comum nas festas juninas da região norte, na qual duas pessoas saltam juntas sobre as brasas da fogueira prometendo, geralmente, à algum santo de sua devoção uma relação de compadrio.

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e) O núcleo católico

A observação participante no núcleo católico também durou vinte dias,

divididos da seguinte maneira: oito dias de acompanhamento da rotina escolar,

juntamente com o acompanhamento de reuniões; participação na celebração das

missas; participação em uma festa de aniversário; oito dias de acompanhamento

das atividades produtivas e comercialização da produção no município de

Abaetetuba e quatro dias de acompanhamento das atividades de lazer, como

jogar futebol feminino e andar de bicicleta.

A escola São Luiz funciona no barracão comunitário e por ser mais antiga

apresenta alguma infra-estrutura com carteiras escolares de madeira. Está

dividida em dois turnos: Manhã- 1ª série com 30 alunos, 2ª série com 13 alunos, 3ª

série com 4 alunos e 4ª série com 2 alunos; Tarde- 2ª série com 3 alunos, 3ª série

com 4 alunos e 4ª série com 4 alunos. Nos dois períodos o quadro precisa ser

dividido entre as disciplinas das diversas séries, o que acarreta confusão e

dispersão para as crianças dificultando o aprendizado.

Esta escola foi criada, segundo os moradores, aproximadamente em 1970,

por ordem de um certo “Tenente Reis”, que, segundo relatos, na época era como

se fosse o prefeito de Abaetetuba e estava implantando escolas por toda região.

A professora informou que a merenda escolar é distribuída duas vezes no

ano e quando isto acontece o número de alunos chega a triplicar. Nesta escola

não constatei a presença de adultos, mas observei que cerca de 40% das crianças

estavam repetindo a série.

O primeiro contato com os alunos foi feito com minha apresentação pela

professora. Expliquei-lhes o motivo de minha presença e a primeira reação deles

foi de estranheza e acanhamento. Entretanto, durante o decorrer dos dias, (no 4º

dia aproximadamente), as crianças pareciam bem mais à vontade para conversar

comigo e até para fazer queixas em relação à professora.

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Observei que a professora tem uma certa dificuldade em lidar com os

alunos, já trabalha há muito tempo na escola e, como ela mesmo diz, “já não

tenho mais paciência para ensinar”; também não parece disposta a realizar cursos

de aperfeiçoamento, pois apesar de convidada a participar de um curso oferecido

pelo projeto em 1993, a professora alegou motivos de ordem pessoal para não

participar do curso. Apesar da boa vontade, a professora do núcleo católico

parece não estar mais conseguindo repassar um nível razoável de conhecimento

a seus alunos.

Dentre os alunos, dois se destacam pela facilidade de captar o conteúdo

das disciplinas e demonstram muita curiosidade durante as aulas. Os pais desses

alunos são pessoas que tiveram oportunidade de residir, ainda que por pouco

tempo, em outros locais, como Abaetetuba e Mojú. Além disso, surpreendi-me

com a mãe de uma dessas crianças porque, conversando com ela, pude perceber

que havia estudado além da 4ª série primária, e que conseguia dar respostas ao

filho mais eficazes em relação às respostas da professora.

O quadro da educação em Mandiocal não oferece perspectivas otimistas, o

grau máximo disponível é a 4ª série primária, a professora do núcleo católico tem

uma grande defasagem de conhecimento, a professora do núcleo pentecostal não

está disposta a permanecer na comunidade, tendo em vista que pediu sua

transferência para a sede do município, o que pode ocasionar até mesmo o

fechamento da escola. A merenda escolar na comunidade, que é um forte atrativo

para aumentar a freqüência dos alunos, tem sua distribuição negligenciada por

parte dos órgãos competentes.

Os pais dos alunos não parecem preocupados com esta situação. Em

conversas informais, ouvi as seguintes frases: “minha filha, se ele desemburrar e

souber assinar o nome dele, tá muito bom”; “olhe, a única coisa que eu quero é

que ele não fique como eu que não sei nem assinar meu nome, o resto que vier é

lucro."

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Sem qualquer pretensão de emitir juízos de valor sobre as pessoas,

somente quero enfatizar que se faz necessário a possibilidade de tornar

acessíveis, em Mandiocal, conhecimentos que vão além da 4ª série primária,

oferecendo aos moradores a oportunidade de ampliar e aprofundar suas

experiências.

Durante o período no núcleo católico, participei de uma festa na casa de um

dos moradores que estava comemorando o aniversário de sua filha. Observei que,

mesmo numa ocasião dessas, as pessoas se dividem em pequenos grupos de

maior intimidade; além do mais, aqueles que costumavam beber além do

recomendado eram constantemente advertidos.

Participei também das celebrações da missa realizadas aos domingos pela

manhã; estas celebrações eram conduzidas por integrantes do clube de jovens da

comunidade e dispunham de acompanhamento musical com pandeiros e violão.

A missa começa com a saudação e cânticos de boas-vindas; em seguida, o

ato penitencial: uma pessoa lê o evangelho e explica o que entendeu. Esta parte é

aberta ao público para dar sua opinião sobre o texto escolhido, a maioria das

pessoas fala alguma coisa relacionando o evangelho à sua própria vida. Na parte

final da missa ocorre o momento das ofertas e um ato simbólico de distribuição da

hóstia; após esta etapa são dados avisos de trabalho no decorrer da semana e de

visitas domiciliares a pessoas enfermas da comunidade.

Um dia antes de meu retorno a Belém houve um mutirão na comunidade

para construção de um novo telhado para a igreja; entretanto, em virtude de estar

doente, não pude acompanhar o desenvolvimento do trabalho.

O domingo é o dia de lazer dos habitantes de Mandiocal. Por esse motivo,

após a missa são formados times de futebol feminino e masculino para disputar

torneios com outras comunidades, ou simplesmente jogar entre si.

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Joguei futebol com o time feminino, não foi uma experiência muito

agradável, ao final do jogo estava exausta e com os joelhos doloridos. Mas, enfim

...

É comum também as pessoas formarem grupos para passear de bicicleta,

percorrendo o ramal de acesso à PA-150, estrada que liga a comunidade a

Abaetetuba e Mojú, ou também para visitar outras comunidades “próximas” a

Mandiocal.

Outra atividade que participei foram duas reuniões sobre a fábrica de

banana. Na primeira reunião estava presente um técnico do projeto apresentando

propostas de capacitação para o gerenciamento da fábrica. Observei uma grande

cisão entre os grupos, de um lado estão pessoas que sempre desempenharam o

papel de líderes da comunidade, de outro lado pessoas sem experiência, mas

extremamente comprometidas com o trabalho.

Este conflito implícito nas relações de disputa pelo poder na fábrica também

é verificado no dia-a-dia da comunidade, os grupos realizam reuniões e elaboram

estratégias de votação dos assuntos referentes à administração da fábrica.

As pessoas que lideram essas articulações, geralmente foram ou estão

ligadas a algum partido político ou liderança política local. Apesar disso, não

conseguem benefícios reais para a comunidade e tampouco conseguem o apoio

total do núcleo católico em torno de objetivos comuns.

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II. 2. As opiniões e crenças O objetivo desta parte é apresentar os entrevistados e analisar as suas

“falas”. Para identificar aspectos relevantes das representações sociais dos

habitantes de Mandiocal sobre saúde, doença e tratamento, procedi ao recorte

analítico dos depoimentos segundo certas categorias.

II.2.1- Perfil dos entrevistados e relações de parentesco

Foram entrevistadas sete pessoas, sendo cinco do sexo masculino e duas

do sexo feminino; a faixa etária varia dos 30 aos 87 anos, quatro entrevistados são

católicos e três pentecostais da igreja Deus é Amor. A seguir, apresento alguns

aspectos da trajetória social de cada um dos depoentes.

a) Grupo de entrevistados católicos

1- Maria

Pessoa mais antiga da comunidade, católica, seus pais deram inicio a

Mandiocal; cultiva nas pessoas um sentimento de respeito e devoção,

praticamente todas as pessoas na comunidade têm algum grau de parentesco

com ela, como filhos, genros, noras, netos, bisnetos etc. É também a pessoa

responsável pela elaboração e administração de remédios caseiros, sempre que

alguém necessita recorre a seus conhecimentos.

Além disso, possui o "dom" de benzer as crianças, o que a torna uma figura

ainda mais mística dentro da comunidade. Principalmente, porque tanto os

remédios caseiros, quanto a “benzeção” são os recursos imediatamente

disponíveis para uma possível cura das doenças.

Maria reconhece sua importância dentro da comunidade e quando

necessário utiliza sua influência para auxiliar um de seus filhos, José, em assuntos

que envolvem política e organização da comunidade.

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2- Eduardo

Agricultor, uma das lideranças da comunidade, católico. Estudou até a

quarta série primária. Participou de movimentos da igreja católica (CEBES-

Comunidades Eclesiais de Base), atuou em sindicatos, foi filiado a um partido de

esquerda na década de 80. Tem um bom relacionamento com as pessoas do

núcleo pentecostal, é uma das pessoas mais cotadas para assumir a gerência da

fábrica de banana que será implantada na comunidade.

3- Mário

Um dos coordenadores da comunidade, também é agente da pastoral da

criança, entidade da igreja católica e desenvolve trabalhos de catequese.

Juntamente com Eduardo é um dos mais citados para ocupar cargos na fábrica de

banana.

4- José

Agricultor, líder comunitário, foi durante muitos anos o principal porta-voz do

núcleo católico. Na década de 80 assumiu cargos em sindicatos no município de

Abaetetuba, participou de um partido de esquerda e de movimentos da igreja

católica.

Mantém relações estreitas com os políticos de Mojú e Abaetetuba.

Atualmente disputa com Eduardo cargos na fábrica de banana. Sua liderança no

núcleo católico fragmentou-se com o crescimento da influência do Eduardo. Além

disso, com os pentecostais não consegue manter um bom diálogo, situação essa

que piorou com a entrada do projeto na comunidade em 1991, quando, segundo

relatos, posicionou-se contrário à implantação do sistema de abastecimento de

água no núcleo pentecostal.

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2- Grupo de entrevistados pentecostais

1- João

Agricultor, trabalha também com extração de madeira, membro da igreja

pentecostal “Deus é Amor”. Uma das principais lideranças do núcleo pentecostal,

casado com uma das filhas de Maria, mantém uma relação de cordialidade com os

católicos, mas não aceita o papel de líder desempenhado por José. Esta

discordância foi um dos principais motivos do rompimento de João com a religião

católica e sua posterior inserção no pentecostalismo.

2- Francisco

Agricultor, pentecostal, trabalha também com extração de madeira. Na

igreja é uma das principais lideranças, principalmente entre os jovens,

desempenhando a função de professor da bíblia e de instrumentos musicais como

o violão.

3- Ester

Dona de casa, agricultora, alegre e comunicativa, desempenha uma forte

liderança entre as mulheres do núcleo pentecostal. Tem uma boa relação com o

núcleo católico, delimita muito bem as diferenças entre as duas religiões.

A seguir, apresento a genealogia de Maria, pessoa mais idosa da

comunidade, e com quem todos os entrevistados têm algum grau de parentesco:

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GENEALOGIA DE MARIA ∆ = Ο Pais de Maria Fundadores da comunidade Irmão de Maria Irmã de Maria ∆ ∆ = Maria é o ego Ο = ∆ ∆ Ο Mário ∆1 ∆2 Ο3 = ∆ João José Eduardo Ester Ο Ο ∆ ∆ Ο ∆ Ο Francisco

SIMBOLOGIA Ο Mulher ∆ Homem Ο Mulher falecida ∆ Homem falecido

Ego = Casamento Descendência

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II.2.2 - A fala dos entrevistados segundo as categorias de análise

As categorias utilizadas foram previamente delimitadas a partir dos

objetivos e tratadas de modo operacional nas perguntas do roteiro das entrevistas:

problemas de saúde, causas das doenças, demandas aos serviços de saúde e

tratamento. Mas o trabalho de campo fez “emergir” a necessidade da construção

de uma nova categoria a de comunidade. Através desta categoria foi possível a

aproximação da questão religiosa que separa a comunidade em dois núcleos.

a) Comunidade, uma categoria empírica

Duas questões no roteiro de entrevista contemplam esta categoria: 1)como

se sente fazendo parte da comunidade ; 2)existe separação entre os dois

núcleos?

Com relação à primeira pergunta, as respostas demonstraram um sentido

de pertencimento à comunidade fortemente religioso:

“É a terra onde eu vivi minha juventude, fortifiquei meu trabalho dentro da igreja." (Eduardo, católico)

“Foi onde eu conheci qual é o caminho da verdade." (João,

pentecostal)

“Foi onde eu comecei a ingressar na equipe de trabalho da igreja, (...) e desde esse dia até aí eu me senti real." (Mário,

católico)

“Eu fui nascido aqui e criado, né, a gente tá acostumado se sente bem.” (Francisco, pentecostal)

“Eu sinto muita alegria no meu coração, (...) alegria de ver a

igreja e o povo dentro da comunidade, só o que me deixa triste pra mim é que não é uma comunidade unida.” (Maria, católica)

As respostas também demonstram um sentimento de bem-estar, de

satisfação:

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“Eu me sinto feliz, pra mim é como ser uma família, foi onde

primeiro comecei a conhecer a luz da palavra de Deus.” (José, católico)

“Eu me sinto bem, não tenho do que reclamar." (Ester, pentecostal)

Em relação à segunda pergunta, os entrevistados manifestaram diferenças.

De um lado, a maioria afirmou a separação por motivos religiosos:

“É um tipo de separação religiosa entre os católicos e os crentes, porque os crentes têm uma certa lei que oprime eles. (...)

Eu não sei se porque a gente tem um consciente assim mais claro, né, e eles são mais pegados ao pé da letra e aí com isso eles se impõem de não querer participar com a gente.” (Mário,

pentecostal)

Tanto José quanto Maria, duas das principais lideranças do núcleo católico,

afirmaram com convicção que existe separação entre os núcleos:

“Porque qualquer coisa que a gente queira convidar eles acham dificuldade." (José, católico)

“Os católicos não acham que tem, agora eles acham (os

pentecostais) a separação, quase não se misturam com a gente.(...) É eles que quer se separar, quer que a igreja deles seja

melhor de Mandiocal." (Maria, católica).

Do lado pentecostal a separação também é enfatizada:

“A gente (pentecostais) não quer participar das coisa deles (católicos) lá, (...) a gente chega lá muitas vezes e eles já tão com

a bebida, aí querem que a gente reze lá pros santo dele, aí a gente já não quer porque sabe que não é o certo, né, aí já fica

olhando pra gente meio de lado, né, pra evitar dessas coisa nós acha melhor fica pro aqui mesmo no nosso canto pra não ter

polêmica." (Ester, pentecostal)

“Eu acho que não deveria, mas infelizmente existe (a separação), às vezes tanto da parte de lá, quanto da parte daqui, às vezes também da parte evangélica, já se acha melhor porque

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obedece a palavra e não quer mais ter amizade." (Francisco, pentecostal)

Por outro lado, existe uma exceção no núcleo católico que acredita não

haver mais separação:

“Não, eu acredito que hoje não tem separação, já teve (...) aquela diferença que tinha antes nem se fala naquilo mais."

(Eduardo, católico)

De fato, o sentimento de que existe uma separação é admita tacitamente,

mas com o intuito de superá-la:

“Porque eu acredito que: aí aquele [evangélico] que achar que tá querendo se separar, ou não considera [os católicos] eu acho que ele [evangélico] tá se julgando, né.” (João, pentecostal)

É interessante a ambigüidade de sentimentos, se por um lado todos

afirmam sentir-se bem fazendo parte da comunidade, consideram-se uma família,

por outro lado expressam também um profundo sentimento de intolerância com as

idéias e comportamentos das pessoas pertencentes ao outro núcleo.

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b)- As categorias analíticas prévias

b.1)- Problemas de Saúde

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Problemas de saúde são principalmente doenças graves que acometem a

população de Mandiocal:

“Mas pra mim, assim, problema de saúde é um derrame, um ataque do coração, uma malária, uma como é que chama... é

hepatite, às vezes até mesmo uma diarréia forte, né. Pra mim são isso, né." (Francisco, pentecostal)

Gravidade que se revela no sofrimento, na dor que afeta até a vizinhança:

“Um problema de saúde, pra mim, é o seguinte: quando a gente tá sentindo próprio a dor, ou a gente tá chorando, gemendo,

é um problema que abole, (grifos meus), até com os vizinhos, então é um problema que todos nós tem que deixar tudo pra cuidar nele, né, pra ver se a gente salva uma vida ou dá uma

saúde, né, enquanto a gente não alcançar a saúde, o problema tá persistindo." (João, pentecostal)

Também são problemas:

“Um acidente, um golpe, um tiro, é, ou por outra, se surgir assim uma doença que não tá aparecendo na gente, aí quer dizer que essa doença, por exemplo, apareceu através de uma grave

dor." (João, pentecostal)

São graves porque:

“Pode até matar mesmo, (..) não resolve com nada, nem com remédio caseiro, nem com médico, nem com oração, nada."

(Mário, católico)

O depoimento de Eduardo expressa o problema, como aquilo que falta para

ter saúde:

“Olhe, problema de saúde pra mim, eu vejo que aqui nós temos várias dificuldades, porque pelo menos nós não podemos ter uma saúde completa na comunidade. Mas nós tem de ter um

atendimento de emergência pelo menos, porque as vezes acontece, por exemplo, a pessoa sente uma dor e não tem

condições de chegar rápido em Abaetetuba, então pelo menos um

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primeiro socorro é importante, né, pra esses casos..."(Eduardo, católico)

Mas, por outro lado, há problemas que dependem do conhecimento e da

atitude das pessoas:

“É, pelo menos tem muitas coisas, muitas enfermidade que as vezes se a pessoa usar uma prevenção ele pode até mesmo

escapar.” (Francisco, pentecostal)

“E também, eu acho que a falta dum conhecimento na pessoa sobre o que é bom ou ruim pra saúde também é um

problema (...) é o maior problema." (Mário, católico).

E, finalmente, há problemas de saúde que estão relacionados com o meio

ambiente, como a água dos rios. A água, fonte da vida, é igualmente da doença e

da morte:

“Mas outra coisa que abala muito as crianças aqui é a diarréia, e tudo por causa dessa água que a gente bebe, agora vê, nós aqui somo tudo mal alimentado e pra complicar mais ainda a água que a gente bebe é ruim; assim quem pode gozar saúde, é

muito difícil." (Maria, católica)

“Essa água aqui que nós bebe, quando é tempo daquela doença é.... cólera, nós passa é muito aperreio por aqui, só a misericórdia de Deus mesmo pra livrar a gente de coisa pior."

(Ester, pentecostal)

O projeto implantou em 1993 quatro microssistemas de abastecimento de

água, três no núcleo católico, com maior número de famílias, e um no núcleo

pentecostal. Com o afastamento do projeto, em 1995, a administração dos

moradores locais não conseguiu manter o funcionamento dos mesmos.

Um dos principais motivos foram divergências quanto ao preço cobrado

para compra de óleo diesel para o motor, as divisões de tarefas entre as pessoas

(algumas pessoas acharam que estavam trabalhando muito em relação a outras),

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e também à própria dificuldade dos habitantes em lidar com os componentes do

microssistema.

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b.2) - Causa das Doenças

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Os últimos depoimentos aqui transpostos deixam claro que os problemas já

são relacionados a possíveis causas. Para os entrevistados, porém, há diferentes causas. Estas podem ser:

• O comportamento das pessoas:

“Essa causa aí começa pela gente mesmo, quando anda descalço, um descuido, às vezes até na água mesmo tomando

banho, beber água que não é pra tomar, ou em casa não tratar da água quando é do poço, não procurar o cloro pra tratar a água, o

maior problema é esse, principalmente com criança. " (Mário, católico)

Um comportamento cujo entendimento deve ser buscado no modo de vida

da pessoa, no medo de ficar doente, por exemplo:

“Se aparecer a doença, se não der logo providência, também é outra coisa, eu acho isso aqui a gente se torna também o culpado, né, omitiu o problema, (pausa) aí ao invés de cuidar logo pra curar ficar bom, de correr, aí a doença vai tomando conta, quando já não tem mais jeito que vai, aí já não tem mais jeito. né." (João, pentecostal)

A religião, paradoxalmente, não parece ter um papel significativo na

explicação da causa das doenças, ao contrário, dos sete entrevistados, apenas

uma referiu a religião como uma possível causa:

“Olhe aí pode ser várias coisa, né, mas que eu pense assim, eu acho que tudo acontece na vida da gente pela vontade de Deus. Então Deus não vai me dar um sofrimento maior que aquele que eu possa suportar, nós temo sempre que lembrar disso e não se desesperar.” (Ester, pentecostal)

A alimentação, ao contrário, esteve presente em todas as falas, os

entrevistados sempre mencionam o fato da alimentação em Mandiocal não

preencher suas demandas tanto do ponto de vista qualitativo, quanto quantitativo:

“Olhe, tem várias coisas pelo menos, a falta de alimentação pra nós aqui no centro é uma das causas precárias, como se diz assim, até perigosa, né." (Eduardo, católico)

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“A alimentação é muito importante, a gente mal- alimentado fica logo doente, às vezes a pessoa tem um intestino meio bronqueado, às vezes vai comer uma gordura, que realmente não tá adequado pra ele comer, aí que passa mal, né."(Mário, católico) “Eu acho que tem certas comidas, às vezes o sal, certos tipos de preparo de comida com muita gordura, às vezes tem comida que a gente come porque não tem outro jeito, mas a gente sente que não ficou boa a coisa, né; por exemplo, um porco, um pato, e por aí vai, né." (Francisco, pentecostal)

As pessoas assinalam a diferença entre alimentação e nutrição: “o nosso pessoal gosta de comer bastante, mas esquece

de comer verduras onde tem vitamina, ou proteína, e isso prejudica muito." (José, católico)

Outro aspecto que aparece em todas as falas, é a questão da água

consumida na comunidade. Todos são unânimes em afirmar que a água é uma

das principais causas de doença, e reconhecem sua importância como fonte de

saúde:

“Tem muitas coisas, né, mas uma delas que eu vejo logo assim é a falta da água boa pra nós tudo aqui beber, essa água do jeito que tá tem dado vários problemas, ih, nem queira saber, vira e mexe tem criança com diarréia das brabas, esse é o principal que eu vejo assim..." (Maria, católica)

“A água aqui também é uma coisa muito deficiente, nós tem que tomar banho nesse rio, tem que pegar pra beber, pra cozinhar, pra lavar, pra tudo..." (Ester, pentecostal) “Beber água que não é pra tomar, ou em casa não tratar da água quando é do poço, não procurar o cloro pra tratar a água, o maior problema é esse, principalmente com criança." (Mário, católico) “O problema da água nosso também é uma das causas, né,

quando a gente aqui tirava água direto do igarapé e não tinha aquele cuidado também se tornava perigoso adquirir uma doença, né, nós tinha o filtro mas não fervia a água, né, e no caso também nem existia hipoclorito;(grifos meus), existia mas aqui era difícil,

né, então nesse tempo a diarréia não saía das casas das famílias, era um pra cá, outro pra li, depois que começamos a ter um certo cuidado, ferver, colocar hipoclorito (grifos meus) na água, a coisa

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melhorou bastante, isso era um dos fatores que mais impressionava dentro da comunidade, né."(Eduardo, católico)

Esses depoimentos demonstram a absoluta clareza dos entrevistados em

relação às causas de adoecimento, ou seja, sua integração com conhecimentos e

práticas que vão além de suas experiências cotidianas. Este fato também pode ser

constatado no uso de termos técnicos como hipoclorito, registrado na resposta

acima.

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b.3) - Demandas aos serviços de saúde

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Um dos objetivos do trabalho é identificar quais problemas de saúde

transformam-se em demandas aos serviços de saúde disponíveis nos municípios

“próximos” à comunidade. Observei que a busca por assistência especializada só

se concretiza quando a doença alcança um estágio de gravidade que representa

risco de vida, ou então quando não há como resolver os problemas no âmbito da

comunidade, através de remédios caseiros:

“A gente corre primeiro com o remédio caseiro, depois com a agente de saúde lá de baixo, se não der resultado, ela dá o encaminhamento pra gente procurar assistência na cidade."

(Mário, católico)

Quando as sessões de cura pentecostais não oferecem um resultado

satisfatório, as pessoas procuram assistência:

“Uma dor muito forte, que não tem jeito com uma oração, aí a gente tem que correr porque então é a vontade de Deus que a

gente procure o socorro fora." (João, pentecostal)

A obra clássica de LOYOLA (1984), assinala a representação da doença e

da cura no universo evangélico, diz esta autora:

"Corpo e alma são inseparáveis nas representações dos

crentes. A partir do momento em que participa da igreja e segue

seus preceitos, o corpo se torna um instrumento da vontade de

Deus. (...) Estar doente é estar afastado de deus e a doença

inerente ao homem significa para eles perda da graça e da

harmonia com Deus; sob este ponto de vista, Deus não é a causa

mas tem o poder de provocar doenças. (LOYOLA, 1984: 78).

Em contrapartida, os católicos costumam procurar representantes de

religiões como a umbanda para resolver alguns problemas de saúde, mas

reconhecem que nem sempre esta alternativa é capaz de resolver o problema:

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“Muitos também levam no pajé, se é pro pajé resolve o problema, se não é não resolve." (Mário, católico)

“Até recentemente é... [eu tive] várias doenças, porque no

caso eu adoeci, foram três anos com problemas de dor (Eduardo sentia muitas dores na cabeça), eu recorri em Abaeté, em vários

hospitais públicos, clínicas, recorri até em Belém, em clínica particular, mas até hoje tô com problema." (Eduardo, católico)

A incapacidade dos serviços em resolver problemas de saúde, gera um

certo descrédito desta população nos meios tradicionalmente conhecidos das

ciências da saúde:

“Pra lhe ser franca eu não ando muito em médico, não, primeiro que eles passam tanto do remédio pra gente, a gente se entope daquelas química toda deles e quando vê não deu jeito, às

vezes até ainda faz é piorar." (Maria, católica)

A ausência de um local para tratar situações emergenciais é outro grave

problema na comunidade, muitas vezes as pessoas precisam se deslocar aos

municípios de Abaetetuba e Mojú, para realizar um curativo ou tomar

medicamentos injetáveis.

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b.4)- Tratamento

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No núcleo católico, há um privilegiamento dos remédios caseiros, enquanto

entre os pentecostais, as orações a Deus constituem-se, via de regra, na primeira

forma de tratamento. As diferentes ênfases, como é possível depreender dos

depoimentos, dependem de como se encara o poder de curar.

Para os católicos, diante de problemas mais simples:

“As pessoas procuram remédio caseiro com as pessoas mais idosas da comunidade, às vezes pega um bocado de folharada ferve, aí faz um banho, aí esse banho às vezes dá certo, quando não pega de novo um bocado de folharada ferve e toma, dá certo, a gente tem canso de ver um bocado de gente ficar bom assim, a gente já tem resolvido um bocado de problema assim. Pelo menos eu tenho problema de dor de cabeça, que eu acho que é de tanto pegar sol na moleira, eu não vou querer tomar uma pílula não, eu vou mandar fazer ferver um bocado de folha deixar esfriar, jogar na cabeça, aí então vai aliviando, eu sei que dá certo." (Mário, católico)

Maria explica como os remédios caseiros ajudam nos casos mais difíceis:

“Uma coisa aqui que se não cuidar com urgência é ferroada de cobra, escorpião, e centopéia mesmo, olha, minha filha dá um trabalho, eu aqui quando me procuram com essas coisa, eu digo logo, olha vocês tratem de correr pro médico, aí eu coloco copaíba socada com o sumo do jambú que é pra estancar o veneno pra ele não se espalhar pelo corpo, mas eu digo mesmo, vocês cuidem, cuidem que isso é muito grave." (Maria, católica)

As pessoas do núcleo pentecostal ressaltam que a fonte do poder está em

Jesus, “o médico dos médicos” :

“Nós, como evangélicos, temos que primeiro procurar Nosso

Senhor, né, é um dever, né, buscar o Senhor, segundo a bíblia nós temos advogado, Jesus disse Eu sou o Médico dos Médicos, né, eu sou o Senhor dos Senhores, então nós já sabemos que Ele

é o Médico dos Médicos, já curou vários enfermos, então geralmente, quem mora numa colônia dessas tem dificuldade de assistência médica, e geralmente qualquer coisa vombora pedir pro Senhor, quem sabe ele não vai resolver? E a maioria das

ocasiões ele resolve, como eu tenho visto várias pessoas

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aleijadas Deus curar, na hora, como eu fiquei cinco dias paralítico e levou um minuto pra Deus me curar, né.” (Francisco,

pentecostal)

Entre as formas de tratamento os católicos também citam a consulta com a

umbanda como um método eficaz para resolução de seus problemas, esta postura

é criticada pelos pentecostais.

“A gente corre com o pajé, olha aqui minhas crianças, um tempo desse foi obrigado mandar benzer aquele ali (aponta para o filho de cinco anos), já não era uma doença, era malcriação né, se jogava pelo chão, né, ele é meio brabo mesmo, a gente teve que

tratar aqui mesmo, né." (Eduardo, católico)

“Eles vão lá no pajé, no benzedor, eu não sei direito o nome e às vezes até esquecem de pedir primeiro pra Deus, eles não se

pegam com Deus como a gente não, eles tem lá essa coisas." (Ester, pentecostal)

Aqui aparece pela primeira vez, vinculado à ação dos pajés, do benzedor,

outro tipo de problema de saúde os encostos, o mau olhado, de causa

sobrenatural antes não referido. O poder do pajé está limitado àquele tipo de

problema, como diz Mário em sua fala: “Muitos também levam no pajé, se é pro

pajé resolver o problema."

Para os católicos, problemas dessa ordem têm uma evidência inegável tão

forte que podem levar à morte. A dimensão mágica que escapa ao controle

daqueles não iniciados, dos que não têm o poder de conhecer as regras que

comandam o mundo sobrenatural, aparece neste incrível e belo trecho do

depoimento de Maria que transcrevo abaixo:

Perguntada sobre a forma de tratamento adotada pelos católicos, Maria

narra um fato que aconteceu com ela há aproximadamente 11 anos, quando

obteve a cura para sua doença através de um pai- de- santo.

“Há muitos anos atrás eu sentia uma dor na barriga que olha não tinha ninguém que desse jeito, até que eu fui pra Belém, pra

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me operar da barriga. Quando eu tava já deitada na mesa só esperando a anestesia, o médico veio começou a me examinar, apalpava aqui, apalpava ali, e eu não sentia dor nenhuma, ele virou pra mim e disse assim: a senhora quer mesmo se operar, eu disse: doutor querer eu não quero mas se o senhor achar que é necessário (...)"

O médico consultou os três filhos de Maria que a acompanhavam, dois

queriam que ela fosse operada, o mais novo, porém, afirmou ao médico que sua

mãe só deveria ser operada se fosse realmente necessário.

Maria relata que o médico respondeu, então:

“Pois, olhe, você é quem tá certo, o sofrimento da mãe de vocês não é pra mão de médico; os outros dois filhos ficaram brabos, vocês têm que levar ela num curador e o mais rápido possível."

Retornaram para Mandiocal, nesta época a igreja estava sendo construída

em tijolos, os responsáveis pela obra estavam hospedados na casa de Maria que

ficava responsável pela alimentação destes. Entretanto com o agravamento das

dores, Maria solicita a um dos pedreiros que mande chamar sua esposa em

Abaetetuba para cuidar da alimentação dos trabalhadores.

O pedreiro atende o pedido de Maria e traz sua esposa para Mandiocal. Ao

chegar, a moça fica impressionada com o estado de saúde de Maria:

“Ela me olhou e disse, tia a senhora tá muito mal, o que é que a senhora tem.”

Depois de relatar que tratava-se de uma intensa dor na barriga, Maria é

aconselhada pela jovem a dormir com um camisão:

Ela disse assim pra mim: 'a senhora tem camisão?' eu disse que tinha; ela disse: 'pois então durma de camisão, que amanhã bem cedinho eu vou levar o seu camisão pra um macumbeiro lá em Abaeté.' Ela perguntou pro marido: 'tu deixa eu ir?' ele disse: 'e por que que não? Eu vou te deixar de madrugada na boca do ramal.' Pois foi assim, eu dormi com o camisão, quando foi de madrugada ela me acordou pedindo o camisão e saiu por essa

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estrada, quando foi anoitinha ela chegou e disse pra mim: 'olhe, tia, eu levei o seu camisão e ele disse que a coisa tá feia pro seu lado, que ele vai lhe colocar boa, mas que a senhora tem que ir amanhã mesmo falar com ele lá.'

No outro dia, bem cedo, partiram para Abaetetuba; Maria, foi acompanhada

da jovem que a levaria para a consulta, de seu filho Eduardo e também de um

neto. No meio do ramal, Maria avista um clarão e simultaneamente ouve o barulho

de carro se aproximando:

Quando faltava um pouco pra chegar na boca do ramal eu avistei assim uma luz, e vinha um barulho de carro: Eu disse pro meu neto: te afasta, meu filho, que vem um carro. Ele disse: "que carro, vovó, onde?"

Nesse momento Maria me olha fixamente e afirma:

"Isso eu conto pra qualquer uma pessoa, e é verdade por essa luz que me alumia, eu vi aquela luz e aquele barulho de carro, veio pra cima de mim, quando eu vi era uma borboleta grande, linda, veio pra cima de mim, eu fazia de tudo pra espantar ela (faz gestos com a mão em direção ao rosto), e aquele bicho em cima de mim, se atracando comigo. Eu dizendo pro meu neto: meu filho, me ajuda aqui. E ele me olhando "Ajudar com o quê, vovó, a senhora não tá levando nada."

Maria continua:

"Até que eu consegui espantar o bicho, de repente eu não tava mais sentindo dor, não sentia mais nada."

Eduardo pergunta então para a mãe:

"Mas não era a senhora que até antes não tava conseguindo nem andar?"

Ela responde:

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"É meu filho, eu acho que eu tô começando a melhorar. "

Ao chegar em Abaetetuba por volta das sete horas da manhã, Maria e a

jovem dirigiram-se à casa do curador. Foram recebidas pelo filho deste, que

informou que o pai só iria atendê-las às quatro horas da tarde, ambas ficaram

contrariadas. Maria respondeu então que não esperaria tanto tempo, pois perderia

o ônibus para a entrada do ramal de Mandiocal. O menino, então, foi conversar

com o pai, que decidiu atendê-las:

Maria diz que ele chamou sua acompanhante para conversar e ela ficou

aguardando. Quando a moça saiu disse para Maria:

"Tia, ele vai lhe atender já; ele acabou de chegar da sua casa, ele falou com a senhora, lhe abraçou, lhe beijou e a senhora não conheceu ele."

Maria retruca:

"Eu não sabia quem era, eu disse.

A jovem faz algumas revelações a Maria:

"Ele está louco pela senhora, foi na sua casa, foi na igreja, andou tudo por lá, mas lá nada vai pra frente, porque tem o seu nome e o dos seus filhos enterrado na porta da igreja, no cemitério, mas que ele vai lhe curar, mas só se a senhora der um presente pra ele, se a senhora der esse presente pra ele a senhora vai ficar boa de hoje pra amanhã." "Eu disse: que presente então ele quer; eu não trouxe nada. Fiquei, fiquei, aí ele veio e disse: 'olhe, sou eu mesmo que vou lhe atender, cheguei agora da sua casa, lá eu sei contar tudo, lá nada vai pra frente.'

Chega a hora da consulta. Maria é chamada para entrar e observa todos

os detalhes:

"A primeira coisa que tinha lá na porta dele era uma galinha pinica-pó ou galinha-pedrês, tava partida dentro de um prato cheio de sangue, era pra mim passar por cima daquilo, o prato cheio de sangue.

O curador diz: "Pode passar por cima disso".

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Maria continua: eu passei, mais adiante uma galinha preta do jeito da primeira, ele mandou eu passar de novo eu passei, e pro final uma galinha amarela. Ele disse: "passe, pode passar." Eu passei por cima de todas três galinhas, eu cheguei perto dele e disse: "bom-dia, como vai o senhor?

O curador faz revelações que impressionam Maria: "Olhe eu sou mulher, nós somos mulher todas duas, eu cheguei da sua casa, tive andando tudo por lá, lá não tem nada que vá pra frente, olhe a senhora tem uma saia que a senhora deu pra uma fulana, uma vizinha sua, e é esta saia que está acabando com a sua vida."

Maria lembra que as afirmações são verdadeiras:

"Eu me lembrei que quando chegou meu guarda-roupa, uma vizinha veio aqui (na casa dela), e me ajudou a arrumar as roupas que tinha na mala velha pro guarda-roupa, aí ela viu a tal da saia e disse: 'mas que saia linda, por que que a senhora não veste?' Era uma saia de florão."

Maria diz para a vizinha:

"Olhe, a senhora quer esta saia? a senhora pode ficar."

A vizinha respondeu: "eu quero."

Maria correlaciona os fatos:

"Eu me alembrei que eu tinha mesmo dado a saia, ela saiu com a saia, foi embora, quando foi uns quinze dias em diante eu comecei a sofrer, era frio e febre que eu sentia, de manhã eu estava encolhida na cama, quando o sol esquentava eu ia pro sol, quando o sol estava muito quente eu vinha pra dentro de casa."

O curador afirma que Maria encontrará a saia:

'Olhe, eu vou fazer a senhora enxergar a saia, agora a senhora não esbarre na saia e nem deixe ninguém tocar fogo nela.' "De fato com uns quinze dias eu via a saia, na casa de uma filha minha, eu fiquei olhando, tava no varal dela, eu disse minha filha quem foi que te deu esta saia?"

A filha responde e pergunta: "Mamãe, foi a fulana, por que?"

Maria responde: "não, por nada."

A filha fala: "a senhora sabe que eu tive me alembrando, e ainda disse pro fulano, essa saia parece com uma que a mamãe tinha?"

Maria lembra das recomendações do curador e responde à filha:

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"Eu disse, tá bom minha filha, eu só vou te pedir pra não meter fogo nesta saia."

A filha responde: "não, eu vou usar pra pano de chão."

Depois deste episódio o curador manda chamar Maria.

O curador pergunta sobre a saia:

"Ele me perguntou": 'viu a saia ou não? Eu lhe disse que eu ia buscar onde tivesse.' E afirma categoricamente: 'agora a senhora vai melhorar.'

De fato, Maria confirma sua cura:

"Quando foi três meses depois eu já tava na lida de novo, tava bem, minha filha."

Era, então, o momento da retribuição:

"Aí eu voltei lá pra dar o presente que ele queria. O presente era ensinar pra ele tudo que eu sabia de remédio de plantas, de oração e animais. "

Este depoimento revela as diversas formas de tratamento adotadas pelos

habitantes católicos de Mandiocal. Para Maria, assim como para os demais, não

existe oposição entre a prática religiosa católica e outras práticas religiosas como

a umbanda. Ao contrário, elas se complementam como partes integrantes de um

mesmo sistema religioso.

Neste sentido cabe salientar também que a medicina oficial constituiu-se

no primeiro recurso terapêutico utilizado por Maria. O estudo conduzido por Maria

Andréa Loyola enfatiza a integração dos diversos itinerários terapêuticos

presentes no cotidiano da população carente:

"Ao mesmo tempo em que não rejeita e mesmo reivindica

o acesso às terapias oferecidas pela medicina oficial, esta

população pode graças à existência dessa alternativa

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constituída pela medicina religiosa, mais próxima de suas

representações do corpo e de sua relação com o mundo

subtrair-se parcialmente à imposição da visão do mundo das

classes dominantes, veiculada pela medicina erudita, e

contrabalançar a relação de dominação e de possessão de si

mesma que resulta da prática médica oficial. Ela pode, inclusive,

afirmar sua própria identidade e reivindicar um saber próprio sobre

o corpo e a doença que chega mesmo a se contrapor às

interpretações médicas dominantes." (LOYOLA, 1984: 194-95).

EDUARDO GALVÃO estudando a comunidade de Itá na região amazônica

assinala que o caboclo8 da Amazônia se afirma como católico, porém, sua

concepção do universo está impregnada de idéias e crenças que derivam do

ancestral ameríndio. Essa maneira de ver o mundo, deriva da amalgamação de

duas tradições, a ibérica e a do indígena e representam as fontes básicas de

formação da religião do caboclo amazônico. (GALVÃO, 1954)

Neste sentido, acredito, ser útil a análise de GALVÃO sobre a formação da

identidade religiosa do caboclo da Amazônia; diz este autor:

"A maioria das crenças não católicas do caboclo

amazônico deriva do ancestral ameríndio. Foram, entretanto,

modificadas e influenciadas no processo de amalgamação com

outras de origem ibérica e mesmo africanas. A integração dessas

crenças no corpo da moderna religião do caboclo, não assumiu,

porém, a forma de "sincretismo" que se observa nos cultos afro-

brasileiros. (...) No vale do Amazonas, o pajé é um bom católico,

mas ele não mistura suas práticas com aquelas da igreja. A

"pajelança" e o culto dos santos são distintos e servem a situações

diferentes. Os santos protegem a comunidade e asseguram o

bem-estar geral. Seus favores e sua proteção obtêm-se através de 8 O termo caboclo é utilizado por Eduardo Galvão como denominação genérica para o habitante rural da Amazônia.

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promessas e orações que propiciam sua boa vontade. Contudo,

existem fenômenos que escapam à alçada ou ao poder dos

santos, (...) Nestes casos somente o pajé, que dispõe de poderes

e conhecimentos especiais é capaz de intervir com sucesso."

(GALVÃO, 1954: 6-7)

É interessante que a avaliação negativa feita pelas pessoas do núcleo

pentecostal àquelas outras católicas, porque vão em busca do recurso aos pajés

(reforçando assim a avaliação dominante de religiões como a umbanda,

caracterizando-a como marginal e ilegítima), encontre na resposta irônica dos

católicos, uma contrapartida, como se usasse o recurso ao depoimento para fazer

um comentário:

“Às vezes eles correm com a tia Maria pra fazer um remédio caseiro, mas a primeira coisa que eles corre é oração deles, e às vezes passa meses pra resolver o problema. (Mário, católico)"

Um aspecto importante é a característica mais “aberta” e “plural” da

compreensão e aceitação dos sistemas médicos entre os católicos:

“Olhe, nós aqui, católico, não é querer ser melhor que ninguém não, mas nós faz muito a prevenção da doença, tem a

vacina, o peso, essas coisa ajudam a prevenir o aparecimento das doenças, mas quando é preciso tratar, nós corre com o médico,

quando não é para médico nós vai numa pessoa que possa benzer, mas o que a gente usa muito aqui é o remédio caseiro,

essa minha mãe então vira e mexe tão aqui pedindo pra ela fazer um xarope, uma garrafada, puxar um pé, o que é possível pra nós resolver por aqui mesmo nós faz, o que não é a gente corre com

quem pode ajudar, né." (José, católico)

Os pentecostais também parecem apre(e)nder as vantagens de uma certa

relativização nas crenças sobre o poder da oração. O discernimento de João a

esse respeito é bastante claro:

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“Então quer dizer que aí, eu acho assim... aí ele (o católico) tem mais saúde do que sofrimento."

Resulta dessa compreensão, inclusive, uma crítica aos exageros da

postura religiosa; no depoimento de João existe um grau de ruptura com a idéia

dos demais 'irmãos de fé' pentecostais, que adotam uma postura de rejeição a

utilização de remédios prescritos por representantes da medicina oficial :

“Aquilo que Deus colocou também, nós tem que respeitar também, não é isso, porque o remédio não é coisa mal, a verdade é essa, que o remédio não é coisa mal, o remédio é pra curar, não é isso? (pausa) pra curar, como é que depois eu já vou dizer que não, então é algum tipo de crente que fala isso, então eu acho um erro falar isso, é um erro falar isso, porque aí é a medicina é pra essa finalidade, então eu sou a favor da substância, porque eu tenho recebido a cura de Deus, mas eu também tenho recebido a cura da medicina, né, então quer dizer que me acho bem nessa parte, então eu creio também que todos são assim, recorre ao remédio quando necessário, né. Agora, nós os crentes procuramos primeiro a cura de Deus, porque ele sabe tudo, até o momento da doença, vamos dizer assim, e também, né, da cura, então de primeiro lugar, a gente tem que procurar os pés de Deus, né, aí caso problema não haja solução, então nós corre pro remédio, que também é abençoado por Deus, né." (João, pentecostal)

PIERUCCI E PRANDI, escrevendo sobre religião e ruptura ressaltam a

importância do conceito de internalização da religião proposto por Procópio

Camargo em 1971. Para este autor as religiões se internalizam "quando as

pessoas assumem conscientemente um determinado comportamento religioso e,

no mesmo movimento, distinguem-se em oposição à religião tradicional."

(PROCOPIO CAMARGO apud PIERUCCI & PRANDI, 1996: 12).

No discurso de João observa-se um certo conflito em relação a prática

tradicional da igreja Deus é Amor, onde muitas vezes o remédio não é

reconhecido como um meio eficaz no tratamento das doenças. Há uma

reavaliação crítica e uma rejeição ao comportamento adotado por alguns membros

da igreja que vêem no remédio 'coisa mal.' Esta atitude sinaliza a perspectiva de

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mudanças possíveis, onde talvez diferenças e intolerância poderão ser

superadas.

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CAPÍTULO III- SAÚDE, DOENÇA E TRATAMENTO NA COMUNIDADE: O

PAPEL DA RELIGIÃO. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

III.1- As representações dos habitantes de Mandiocal

Como foi visto no capítulo anterior, em Mandiocal não existem grandes

diferenças em termos de renda, alimentação, escolaridade e atividades produtivas.

Todas as famílias têm algum grau de parentesco entre si. As relações com o

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mercado no município de Abaetetuba são caracteristicamente de "freguesia",

embora não exclusiva, e parece não haver, entre os moradores, competição na

colocação do produto. Os pentecostais, por exemplo, comercializam sua produção

em dias diferentes dos católicos.

Neste capítulo analiso e discuto as questões mais relevantes da vida na

comunidade, começando pela questão da separação entre os dois núcleos.

III.1-1. Comunidade O sentimento de pertencer à comunidade contrasta, como vimos, com a

realidade da separação religiosa (ver quadros 1 e 2). O sentimento comunitário

aparece reforçado na trama das relações sociais construídas no roçado, na

sociabilidade e nos ritos, nas doações que demarcam as relações intergeracionais

(compartilhamento da carne de caça com as pessoas mais idosas da

comunidade), bem como nas formas de retribuição na cura religiosa, tal como

ocorrida entre Maria e o pajé, que observei e registrei no capítulo II.

A separação religiosa catalizou os conflitos implícitos neste conjunto de

relações e, por assim dizer, permitiu a "sublimação" de impulsos egoístas, de

sentimentos depreciativos, de atitudes prepotentes. Mais ainda favoreceu o

deslocamento destes conflitos "para fora" do âmbito das relações familiares.

Através da observação participante descobri que após a construção da

igreja católica, na década de 70, José, filho de Maria, assumiu a liderança da

comunidade. Tal fato é lembrado por José:

“A comunidade surgiu porque eu e minha mãe começamos a pagar uma promessa pra Nossa Senhora do Perpétuo Socorro." (José, católico)

A autoridade de Maria firma-se sobre a fundação da comunidade e de um

milagre:

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“Quem deu início à comunidade de rezar missa (...) foi o José, porque eu tinha feito uma promessa pra Nossa Senhora." (Maria)

Neste mesmo período, José também começou a participar de um partido

político e movimentos sindicais. Num primeiro momento, a liderança de José

combinada com a autoridade de sua mãe, Maria, geraram conflitos de natureza

interpessoal entre membros da comunidade. Entretanto, é provável que o grau de

parentesco entre as famílias tenha se constituído num forte obstáculo para o

rompimento. Assim, as divergências políticas, ideológicas e mesmo pessoais,

teriam sido revestidas de uma conotação religiosa.

Emerge então a questão: por que teria assumido essa forma?

Em ambos os grupos, católicos e pentecostais, a religião esteve presente

tanto como elemento aglutinador, quando, por exemplo, da fundação da

comunidade a partir de uma promessa, quanto como elemento de separação, a

partir do sonho de João, e a fundação do núcleo pentecostal.

Uma primeira constatação é que na comunidade há o reconhecimento,

ainda que em alguns casos implícito, da separação; embora esta não seja

considerada uma coisa boa. O reconhecimento de que a comunidade está

"separada" em dois núcleos religiosos aparece na fala de um dos depoentes:

"Não, porque eu acredito que aí aquele que achar que tá

querendo se separar, ou não quer é, não considera, eu acho que ele tá se julgando, né. Porque nós (os pentecostais), pelo menos,

nós não pode dizer assim isso não presta, não, porque nós viemos de lá (do núcleo católico), né. Então o que nós devemos fazer

agora, pedir ao todo poderoso que dê a vitória pra eles, né, então quem conhece a verdade, esse deve amar ainda muito melhor,

então tem que suportar as coisas, porque como disse o apóstolo Paulo “eu me fazia de tolo pra ganhar o tolo”, e quando ele se encontrava com o sábio, ele se fazia de sábio pra encontrar o

sábio, né, então isto que é a maneira que a pessoa pode ser, eu acredito que nós não podemos ser separados. E aí vamos supor, por exemplo, na hora que é pra tomar sua cachaça, eu também não posso acompanhar ele, porque Deus diz assim “eu amo o pecador, só não amo o pecado dele; eu sou amigo do pecador,

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agora não sou amigo do pecado dele”, então, nós não podemos considerar que nós somos separados dessa maneira não porque se fosse uma coisa separada, né, Jesus não falava isso." (João,

pentecostal)

As razões da separação da comunidade e as raízes do conflito remetem a

um problema de “poder” na comunidade. Elias e Scotson, em um estudo sobre

comunidade, afirmam que esta não é mais uma estrutura simples, fixa e primitiva.

“Não é o espaço inquisitório onde só os 'Established'

dominam; nem é o paraíso das relações harmoniosas onde todos

são irmãos. A comunidade apresenta-se como uma figuração

complexa, dinâmica, onde acontecem processos de exploração,

conflito e cooperação." (ELIAS & SCOTSON: 1965)

O problema do “poder” toma a forma e a forma aqui é indissociável do

conteúdo religiosa, evolui como uma separação comunitária justificada em

termos religiosos.

"É um tipo de separação religiosa entre os católicos e os crentes porque os crentes tem uma certa lei que oprime

eles."(Mário, católico)

Elias e Scotson ressaltam a idéia de diferenciação dos grupos dentro de

uma comunidade:

“Reconhecer-se parte de uma comunidade com tradição e

vida própria é, ao mesmo tempo, delimitar e excluir. Ao afirmar

bondade se separa também aquilo que sai dessa definição,

construída culturalmente. E nesses processos, poderes simbólicos

e culturais são mais poderosos que os materiais e econômicos."

(ELIAS & SCOTSON: 1965)

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O sentimento de solidariedade, de pertencimento ao grupo, continua

presente, mas assume formas diversas de acordo com os interesses dos grupos:

“A solidariedade acontece no meio do egoísmo, a

comunalidade senso de pertencer a um grupo coeso e unido

é parcial e depende das configurações entre os grupos de poder

local."(ELIAS & SCOTSON: 1965)

A inserção em um determinado grupo não implica na ausência de conflitos.

No caso de Mandiocal muitas vezes o senso de comunalidade cede lugar à brigas

e desentendimentos, como por exemplo: a disputa entre os católicos pelos cargos

de chefia na fábrica de banana; o descontentamento de alguns católicos em

relação a liderança de Maria e seus filhos como fica claro no depoimento de Maria

sobre a cura para seu problema de saúde que, segundo o pajé, foi causado por

uma vizinha (católica) de Maria; a rejeição dos pentecostais em relação a trabalhar

na fábrica de banana porque será coordenada por pessoas do núcleo católico.

Apesar da existência de descontentes entre os católicos, a divisão da

comunidade é marcada pela separação e oposição entre católicos e pentecostais.

Segundo Elias e Scotson, neste contexto:

“Inventar e naturalizar um discurso de exclusão que imagina

os Outros como inferiores, preguiçosos, sem norma nem lei,

delimita o que é “bom” para “nós”. Desta forma se reforça a

bondade de pertencer ao grupo Established: as pessoas sentem-

se orgulhosas de serem boas, melhores que outras (os

Outsiders)."(ELIAS & SCOTSON: 1965)

A imagem dos católicos é associada a comportamentos negativos,

reforçando a idéia de separação entre “bons” e “maus”:

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"A bíblia diz que nós não temos nem que se assentar na roda dos escarnecedores, quem são os escarnecedores? Fala

claramente na palavra, os tomadores de bebida forte; quem é que bebe bebida forte? É o evangélico? Não. É esse, é aquele outro,

taí na nossa frente, e somos nós que chamamos eles de escarnecedores, de ímpios, e tudo mais? É a própria bíblia que

afirma; então, é claro que segundo a bíblia não pode haver separação, mas, por exemplo tem uma roda de gente ali bebendo,

eu não vou me sentar com eles, e eles já vão dizer que eu não sou mais amigo, então isso acaba criando um clima de

separação." (Francisco, pentecostal)

O estudo de caso de Mandiocal deixa evidente que as razões vinculadas à

dimensão do “poder” ou da “identidade do grupo” bloqueiam a transformação do

conhecimento em ação. É o que se observa nos depoimentos sobre a influência

da religião no acesso aos parcos serviços de saúde que o projeto prestou.

"Muitas vezes eu vejo as minhas noras, até que pensam de levar os filhos lá pra pesar, ver esse negócio de altura, mas elas

ficam com receio porque eles não aceitem que você não faça lá a reza deles, aí é o jeito ficar com as crianças aí às veze sem

vacinar, sem pesar, mas nós também não se preocupa muito com isso porque nós sabe que do nosso lado tá o médico dos médicos

que é Jesus, quer um médico melhor, não tem, né." (Ester, pentecostal)

Por que isso acontece? É que a separação inicial se aprofunda, as

lideranças locais se consolidam. Vale lembrar o papel que José desempenha no

núcleo católico, de interceder junto às organizações públicas de saúde em favor

dos moradores locais. Esta função pode ser cumprida devido à sua influência e/ou

atuação política, principalmente no município de Mojú onde mantém estreitas

relações com alguns vereadores.

Por se constituir no locus através do qual os moradores da comunidade

conseguem atendimento imediato, José utiliza este privilégio para reforçar seu

prestígio e sua contínua liderança.

O núcleo pentecostal prefere não aceitar este tipo de “ajuda”, ao contrário,

efetua sua integração aos serviços de saúde de maneira procedural, ou seja, os

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membros quando procuram atendimento seguem todos os procedimentos formais

para consulta, internação ou atendimento de emergência, ainda que isto signifique

maior tempo de espera.

III.1-2 – Os problemas de saúde por categoria de análise

O reconhecimento por parte dos habitantes de Mandiocal da existência da

separação religiosa produz, então, a seguinte questão: será que existem grandes

diferenças na opinião de católicos e pentecostais acerca de problemas de saúde,

causa das doenças, demandas aos serviços de saúde e formas de tratamento?

a) Problemas de saúde

As respostas que encontrei neste estudo demonstram que em relação a

problemas de saúde, católicos e pentecostais remetem a explicação do que é um

problema de saúde à sua possível causa .

"Falta dum conhecimento sobre o que é bom ou ruim pra saúde."(Mário, católico)

"Essa água aqui que nós bebe, quando é tempo daquela doença... é cólera, nós passa é muito aperreio por aqui."(Ester,

pentecostal)

Problema de saúde é um evento súbito ou uma doença grave (um derrame,

uma malária, uma hepatite, diarréia forte, algo que não resolve com remédio,

oração) mas também o que falta, dificulta e impede ter saúde, conforme

apresentamos no quadro 3 do capítulo II.

"Doença muito grave que não resolve com nada, nem com remédio, médico, oração, nada."(Mário, católico)

"Nós tem de ter um atendimento de emergência." (Eduardo,

católico)

É possível observar uma diferença entre católicos e pentecostais que

aparecerá mais demarcada nas formas de tratamento. Os católicos parecem mais

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abertos ao conhecimento científico e técnico oriundo de trocas e circulação de

conhecimentos. Eles afirmam esta conexão como um valor distintivo em relação

ao "fanatismo" dos pentecostais.

b) Causa das Doenças

Em relação às causas das doenças, os depoimentos revelaram as

seguintes opiniões:

“Essa causa aí, começa pela gente mesmo.” (Mário, católico)

“A bebida, os tóxicos, o próprio cigarro, o tabaco.” (Francisco,

pentecostal)

“É a falta da água boa pra nós tudo aqui beber, essa água do jeito que tá tem dado vários problemas.” (Maria, católica)

“Aparecer a doença se não der logo providência, também é

outra coisa.” (João, pentecostal)

As respostas dos entrevistados para as possíveis causas podem ser, no

nosso sistema classificatório, de ordem pessoal (comportamento), cultural (falta de

conhecimento), ambiental (água poluída) e econômico-social (falta de serviços e

recursos). Apenas um depoente relacionou o aparecimento de doenças à causas

sobrenaturais.

"Eu penso assim, eu acho que tudo acontece na vida da gente pela vontade de Deus, então Deus não vai me dar um sofrimento maior que aquele que eu possa suportar." (Ester,

pentecostal)

MINAYO (1988), num texto sobre a concepção popular da etiologia da

saúde –doença, afirma que os indivíduos elaboram discursos e práticas sobre

causa -efeito dos problemas de saúde a partir de suas experiências concretas:

“A observação do que acontece no dia-a-dia, a experiência

do cuidado e do tratamento das doenças, a tradição familiar e

grupal fornece às pessoas uma relação de causa-efeito que

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constitui seu estoque de conhecimentos entranhado e alimentado

pela prática. Essa sabedoria tradicional que explica e trata se

concretiza de forma muito particular na medicina caseira." (Grifo

meu). (MINAYO, 1988: 377).

Em suma, é possível depreender dos depoimentos que a religião não

aparece como causa dos problemas de saúde; ao contrário, as explicações estão

relacionadas ao comportamento pessoal, à falta de conhecimentos, à falta de

recursos econômicos e às condições ambientais.

c) Demandas aos serviços de saúde

Quando esses problemas transformam-se em demandas aos serviços de

saúde disponíveis em outros locais, como os municípios de Abaetetuba, Mojú e a

capital Belém?

A busca por assistência médica especializada é motivada por doenças

infecciosas e de veiculação hídrica; pelo momento do parto; doenças

desconhecidas; dores incontroláveis e contato com animais peçonhentos

"Uma cólera, por exemplo, tem caso aí que a gente tem que levar é depressa." (Ester, pentecostal)

"Eu recomendo pra qualquer uma que vá ter seu filho lá no

hospital."(Maria, católica)

"Quando aparece uma doença que a gente não conhece." (Mário, católico)

"Uma dor muito forte, que não tem jeito com uma oração."

(Francisco, pentecostal)

"Uma picada de cobra."(Eduardo, pentecostal)

A dificuldade de acesso dos moradores às instituições de saúde na região,

conduz a tentativa de resolver os problemas com os recursos disponíveis na

comunidade. Além do problema do acesso físico (deslocamento)aos serviços, uma

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vez lá, a espera demorada, a ineficácia do tratamento e o descaso dos

profissionais de saúde na hora do atendimento são fatores que contribuem

significativamente para esta atitude.

d) Tratamento

Neste momento, abordo o que considero ser o cerne deste trabalho. A

categoria tratamento responde a minha pergunta inicial:

A religião é uma variável de diferenciação no tratamento dos problemas de

saúde?

Aparentemente, pelo que se constata nos depoimentos, pessoas católicas e

pentecostais lançam mão dos mesmos recursos: remédios caseiros, orações e

medicina oficial.

Assim as principais formas de tratamento são:

Remédio caseiro:

“O que a gente usa muito aqui é o remédio caseiro.” (Eduardo , católico)

"Nós os crentes procuramos primeiro a cura de Deus, (...) aí caso o problema não haja solução, então nós corre pro remédio,

que também é abençoado por Deus, né." (João, pentecostal)

A importância da utilização de remédios caseiros como terapia alternativa,

também, foi demonstrada em estudos envolvendo sociedades industrializadas,

como por exemplo no estudo conduzido por Queiroz (1993) sobre estratégias de

consumo em saúde entre classes trabalhadoras no município de Paulínia- São

Paulo. Segundo este autor:

“A medicina caseira não contradiz nem se conflitua com a

medicina oficial, na medida em que, na grande maioria dos casos,

ela não se coloca como uma alternativa, mas apenas como um

complemento limitado. No entanto, muitos reconhecem que a sua

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terapia, embora lenta, é mais saudável, porque não envolve uma

intervenção drástica no organismo e não deixa sequelas”.

(QUEIROZ, 1993: 275).

De fato, em Mandiocal, a crença nos remédios caseiros advém tanto da

falta de opções quanto da ausência de sequelas proporcionada por tal método:

“Às vezes a gente vai na farmácia compra tanto remédio e não resolve o problema, então por isso eu acredito bem mais num

remédio caseiro, que é feito com fé, do que às vezes nesses remédios que têm tanta química e não resolve nada." (Mário,

católico)

Orações:

“A primeira coisa logo que nós faz é correr pra Jesus, porque ele é o primeiro que pode logo dar jeito na nossa situação aqui.”

(Ester, pentecostal)

"Eles [os pentecostais] fazem a oração deles lá, nós católicos fazemos isso também." (Mário católico).

A consulta com o médico:

“O jeito que tem é nós correr com o médico em Abaeté." (Eduardo, católico)

“Eu também tenho recebido a cura da medicina, né (...) eu me acho bem nessa parte, recorre ao remédio caseiro quando

necessário.”(João, pentecostal)

Um recurso utilizado somente pelos católicos é a consulta com a umbanda:

"A gente corre com o pajé" (Eduardo, católico)

"Eu fiquei boa foi num pajé" (Maria, católica)

Alves e Souza assinalam que a opção por um determinado tipo de

tratamento considera as possibilidades de escolha ao alcance dos indivíduos.

Essas decisões se fundamentam em atos intencionais e pressupõem uma forma

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de consciência de quem os realiza. O processo de escolha do itinerário

terapêutico está, portanto, referido a uma consciência das possibilidades ao

alcance e igualmente acessíveis ao indivíduo. Nesse caso continuam os autores, a

opção por um caminho está relacionada a elementos sócio-culturais presentes na

consciência do indivíduo. O itinerário terapêutico seria então uma ação humana

constituída por atos distintos que formam uma 'unidade articulada.' (ALVES &

SOUZA:1994).

Os autores propõem, então, duas questões para analisar o itinerário

terapêutico:

“Primeiro, o itinerário terapêutico é o resultado de um

determinado curso de ações, uma ação realizada ou o estado de

coisas provocado por ela. Estabelecida por atos distintos que se

sucedem e se sobrepõem um ao outro, o itinerário terapêutico é

um nome que designa um conjunto de planos, estratégias e

projetos voltados para um objeto preconcebido: o tratamento da

aflição. No curso dessas ações, fazem-se presentes interesses,

atitudes racionais, emotivas e circunstanciais. Segundo, o

itinerário terapêutico não é necessariamente produto de um plano

esquematizado, predeterminado. Só é possível falar de uma

unidade articulada no itinerário terapêutico quando o ator, ao olhar

para suas experiências passadas, tenta interpretá-las de acordo

com as suas circunstâncias atuais, com o seu conhecimento

presente."(ALVES & SOUZA, 1994: 15)

Através da análise e interpretação dos depoimentos, verifica-se que a

religião é uma variável no tratamento dos problemas de saúde em Mandiocal.

A religião faz variar as formas de tratamento entre católicos e pentecostais.

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Esta afirmação fica patente nos depoimentos de cada grupo, como

demonstrado a seguir, católicos e pentecostais delimitam muito bem as diferentes

formas de tratamento adotadas em Mandiocal.

Nos depoimentos das pessoas católicas sobre as formas de tratamento

dos pentecostais, existe o reconhecimento da diferença:

“Os crentes são muito pegado com a oração, eles rezam

tanto em cima da pessoa que às vezes acaba dando certo, agora eles nunca que vão consultar um pajé, isso não, é até um pecado

falar disso pra eles." (Mário)

“Eu creio que tem diferença, eles fazem logo a oração pra Deus (...) eles não vão mais precisar de ninguém." (Maria)

“Com o pajé eles não vão (...), eles fazem lá as orações

deles, né, pedindo pra Deus curar eles, pra eles isso é o principal." (Eduardo)

Existem também as críticas à esse comportamento:

“Eu não posso ficar só deitado esperando as coisas cair do céu, agora eles não têm esse negócio de ir em benzedor, essas coisas eles não tem não, tá certo, né, eu respeito, mas aqui a

gente tem que correr pra quem pode ajudar, né." (José)

E qual a visão dos pentecostais em relação às formas de tratamento

adotadas pelos católicos?

Os pentecostais criticam a procura por parte dos católicos da umbanda

como forma de tratamento:

“Tem pessoas que deixa de confiar em Deus, corre pro macumbeiro, pros adivinhões, né, não deixa nem Deus chegar.”

(Francisco)

“Eles vão lá no pajé, no benzedor, eu não sei direito o nome e às vezes até esquecem de pedir primeiro pra Deus, eles não se pegam com Deus como a gente não, eles têm lá essas coisas."

(Ester)

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Aprovam a busca pela medicina oficial:

“Alguém que se trata assim não é porque ele queira só gostar da medicina, não, é porque ele tem cuidado com a vida

dele." (João)

Os pentecostais assinalam que ao buscar a medicina, o católico evita

maiores sofrimentos:

“Mas certo é que o católico, ele, de vez em quando tá fazendo um exame, né, ele tá se cuidando, não é que ele esteja desprezando Deus, na verdade aquilo é pra se fazer, né, quer

dizer que com aquilo ele vai evitando sofrimento, aí quer dizer que ele tem mais saúde do que sofrimento." (João).

As formas de tratar os problemas de saúde em Mandiocal apresentam

diferenças significativas entre o núcleo católico e o núcleo pentecostal. Para os

pentecostais as orações a Deus constituem-se no primeiro e principal recurso

utilizado. Em relação à umbanda estes assumem uma atitude de intolerância,

acreditam que representa coisas negativas e quem se envolve com esta acaba por

atrair “maldições” para sua vida.

FERNANDES, em um estudo sobre as religiões populares assinala que:

"As diferenças fazem sentido e os sacerdotes de cada uma destas

tradições sabem por quê. As visões de mundo se fragmentam em

vários formatos. Há zonas de contato e de interpenetração. Igrejas

de padres são visitadas por pessoas religiosamente vestidas de

branco; pastores pentecostais são capazes de nomear as muitas

faces de Exu; personagens do candomblé declaram-se católicos.

Relacionam-se, mas não se confundem. Cada um deles é capaz

de traduzir as palavras e imagens dos demais com seus próprios

termos. (...) Os principais elementos são do conhecimento geral:

natureza, seres humanos, almas dos mortos, divindades positivas

e negativas, um Deus soberano. Com estes elementos básicos,

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um mundo comum é composto; mas o relacionamento entre as

partes varia segundo as diferentes visões, cada uma arrogando-se

o privilégio de reduzir as demais aos seus próprios termos."

(FERNANDES, 1982: 135)

Nos dois núcleos não há rejeição à medicina acadêmica. A reduzida

procura por esta alternativa advém das dificuldades de acesso a este recurso.

Em ambos os núcleos os entrevistados reconhecem a importância desta forma de

tratamento, entretanto, as pessoas no núcleo católico tendem a procurar mais

freqüentemente estes serviços. Uma possível explicação está relacionada com a

capacidade de um de seus membros, como citado no item referente a demanda,

em conseguir agilizar o atendimento.

Em Mandiocal, como na maioria das comunidades do interior da Amazônia,

a situação de saúde oferece poucas alternativas de tratamento que não sejam a

religião e os remédios caseiros. A eficácia desses métodos não é objeto da

presente discussão, contudo, é importante disponibilizar outros tipos de recursos

para o tratamento dos problemas de saúde em Mandiocal.

Para tanto, torna-se necessário conhecer as especificidades locais, ou seja,

considerar as diferenças e elaborar propostas que considerem os aspectos sócio-

culturais da vida desta população.

Estes depoimentos, ao expressarem a representação dos habitantes de

Mandiocal sobre saúde-doença, aparecem permeados de termos e explicações

técnicas, mesmo entre os pentecostais onde havia maiores possibilidades de

encontrarmos explicações de caráter mágico-religioso para a causa das doenças.

Ou seja, as opiniões acima sugerem uma apropriação e reestruturação dos

moradores de Mandiocal acerca das informações sobre saúde e doença.

MOSCOVICI (1978) assinala que o conhecimento é continuamente

transformado, adaptando-se as necessidades concretas dos indivíduos:

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“O que é recebido (...) é submetido a um trabalho de

transformação, de evolução, para se converter num conhecimento

que a maioria das pessoas utiliza em sua vida cotidiana. No

decurso desse emprego, o universo povoa-se de seres, o

comportamento impregna-se de significações, os conceitos

ganham cor ou se concretizam enriquecendo a tessitura do que é,

para cada um de nós, a realidade”. (MOSCOVICI, 1978: 51)

Cabe notar que termos como hipoclorito, noções de nutrição e outros

assuntos eram empregados em palestras e treinamentos pela equipe de saúde do

projeto. Torna-se evidente, então, o caráter de circularidade do conhecimento.

GINZBURG, citando BAKHTIN, define assim circularidade:

"Entre a cultura das classes dominantes e a das classes

subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento

circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo pra

cima, bem como de cima pra baixo." (GINZBURG, 1987: 12).

Para outros autores, contudo, haveria, a partir do século XIX, com a

consolidação do capitalismo, uma espécie de descontinuidade cultural. Daí

resultaria um discurso popular incoerente.

BOLTANSKI (1989), afirma, então, os limites da reinterpretação do discurso

científico pelas classes populares:

“Incapazes de emitir um discurso que reproduza o do médico

ou mesmo de repetir textualmente o discurso deste, os membros

das classes populares constróem com o discurso do médico um

outro, no qual exprimem quase que apesar deles próprios e, como

se verá, através do jogo das reinterpretações, suas

representações da doença”. (BOLTANSKI, 1989: 70).

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Certamente não observamos aqui, no caso de Mandiocal, a "incapacidade"

apontada por Boltanski. Ao contrário, quer na definição dos problemas, na

explicação das causas e no tratamento, constatamos que os moradores desta

longíqua e isolada localidade mostram-se "capazes" de assimilar e adequar o

discurso médico para o quadro de suas necessidades vitais.

VAISTMAN, em um artigo sobre a pluralidade de mundos entre mulheres

urbanas de baixa renda, assinala que:

"Mudanças culturais fazem parte de processos sócio-

econômicos, políticos e institucionais que afetam os segmentos de

forma diversa. Todavia, a mudança, além de diferenciação, pode

conformar similaridades, ainda que tangenciais, à medida que

produz novos universos comuns. Dos processos de modernização

emergem novos contextos prático-simbólicos, nos quais os atores

sociais interagem, disputam e compartilham situações, trocam

idéias, emoções, sentimentos, discursos, numa circulação

permanente de valores, idéias, imagens." (VAISTMAN, 1997: 307)

O compartilhamento de uma situação de isolamento e de escassez implica

na avaliação das práticas desenvolvidas pelas pessoas dos diferentes grupos. É

desta forma que o conhecimento "circula", como uma avaliação, isto é, uma

valorização baseada na comparação da eficácia.

No discurso de João, o núcleo católico detém vantagens no tratamento dos

problemas de saúde, porque sua concepção da etiologia torna as possibilidades

de enfrentamento maiores do que no núcleo pentecostal.

"O católico já conhece uma certa coisa, aí ele já não vai muito nessa coisa, aí quer dizer que ele trata com o remédio

mesmo, tem um sofrimento, ele já tá prevenido, aí toma aquele remédio, aí ele já manda pesar e tal, fazer um exame, tem um cuidado com a vida dele. Então, com isso, vamos supor, não é que ele só queira dar crédito pra medicina, quer dizer que é um cuidado, porque aí quem dera se a gente pudesse todo mês tá

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fazendo um exame né, quer dizer que aí a gente tava sabendo como é que tava a condição do corpo da gente, a saúde, se tinha algum problema, né, então muitas das vezes alguém que se trata

assim, não é porque ele queira só gostar da medicina, não, é porque ele tem um cuidado com a vida dele, né. Então, tem muito

evangélico que só confia na cura de Deus, e só passa pra medicina quando Deus não resolveu a situação dele (risos). Então eu acho essa diferença sim, observa né, essa diferença, mas certo é que o católico, ele, de vez em quando tá fazendo um exame, né,

ele tá se cuidando, não é que ele esteja desprezando Deus, na verdade aquilo é pra se fazer, né, quer dizer com aquilo ele vai evitando sofrimento, aí quer dizer que aí ele tem mais saúde do

que sofrimento." (João, pentecostal)

ALVES e RABELO (1998), escrevendo sobre representações e práticas em

saúde-doença, colocam que o mundo que os indivíduos partilham não é uma

realidade externa e impessoal. Na verdade, é fundamentalmente um mundo

familiar, onde os objetos existem independente de nossa perspectiva, vontade ou

conhecimento, sendo os nossos pontos de vista e os dos outros intercambiáveis.

(Grifo meu)

Para os autores, o modo de atuar no mundo cotidiano dependerá do

estoque de conhecimento dos indivíduos:

“Esse estoque de conhecimento, que utilizo para me orientar

na situação e resolver os problemas que se me defrontam, é

heterogêneo: comporta desde um conhecimento radicado no

corpo, não acessível discursivamente, até uma série de receitas

genéricas para lidar com um conjunto variado de situações. Assim

é aberto a retificações ou corroborações de experiências por vir,

ou seja, caracteriza-se pela fluidez e processualidade. A

configuração que o estoque de conhecimento assume a cada

momento é determinada pelo fato de que os indivíduos não estão

igualmente interessados em todos os aspectos do mundo ao seu

alcance, é o interesse prático que dita o que é relevante ou não na

situação." (ALVES E RABELO, 1998: 115)

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Em Mandiocal, católicos e pentecostais têm uma relação ambígua que ora

recusa, ora aceita, e até mesmo elogia a prática do outro grupo. ALVES (1998)

descreve essa ambigüidade afirmando que no processo de circularidade das

idéias estão presentes elementos de aceitação e recusa simultaneamente:

“Circularidade não significa, pois, identidade. A

interpenetração das idéias entre pessoas de diferentes grupos

implica a possibilidade de que estas sejam incorporadas ao seu

saber de diversas formas (aceitas, recusadas) e muitas vezes de

uma maneira ambígua (recusa na aceitação e vice-versa)."

(ALVES, 1998: 135)

O fato da religião constituir-se numa variável importante no tratamento dos

problemas de saúde em Mandiocal relaciona-se, também, a ausência da oferta de

serviços de saúde, principalmente de emergência. Realmente, falando como

pesquisadora, mas também como vítima, a vida das pessoas está entregue ao

Deus dará, parafraseando a música de Chico Buarque, e se Deus não der, não

dá pra se indignar.

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III. 2- Um desafio a vida: Adoecer em Mandiocal

Neste tópico descrevo meu adoecimento durante o período de coleta dos

dados na comunidade e sua inserção no trabalho serve para ilustrar a falta de

acesso desta população a recursos de saúde.

Ao iniciar o trabalho na comunidade conhecia as condições de vida de seus

habitantes, e minha preocupação centrou-se na questão da água disponível para

consumo, a qual sabia não apresentar condições aceitáveis de qualidade. Decidi,

por precaução, consumir água mineral adquirida em Belém, ainda na fase dos

preparativos de viagem.

Inicialmente, calculei que consumiria dois litros de água diariamente, como

tencionava ficar na comunidade aproximadamente cinqüenta dias, 20 garrafas de

cinco litros cada uma pareceram-me suficientes.

Como meu deslocamento para a comunidade foi feito de caminhão, não

tive dificuldade para transportar água e outros itens como café, açúcar, leite,

biscoitos, enlatados, produtos de limpeza e higiene pessoal, indispensáveis para

atender um nível mínimo de bem-estar.

Entretanto, o cálculo de consumo de água foi subestimado. O problema é

que o período de julho a setembro é o mais quente de todo o ano na região norte.

Faltando aproximadamente uma semana para a conclusão do trabalho, a provisão

de água mineral esgotou-se. Isto ocorreu num sábado, e o acesso aos municípios

de Abaetetuba e Mojú só seria possível na sexta-feira da semana seguinte. Eu

não tive outra escolha senão consumir a água retirada do rio Mandiocal, única

fonte disponível.

No domingo, após começar a consumir a água do rio, almocei carne de

jacaré-alemão, peixe típico da região. Neste mesmo dia, no período da tarde,

comecei a sentir fortes dores de cabeça e febre; de modo semelhante às pessoas

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na comunidade, associei os sintomas como tendo sido causados pela refeição

realizada na parte da manhã.

A primeira providência adotada por Maria em cuja casa estava hospedada,

foi me dar um chá de boldo com limão, pois, segundo ela, é muito bom pra limpar

o fígado e eu também acreditava tratar-se de algum problema de fígado causado

pela refeição.

Entretanto, os sintomas só foram aumentando, na segunda-feira a dor de

cabeça havia piorado, comecei a sentir também fortes dores no fígado, a febre

continuava.

Ainda assim, continuava acreditando, da mesma forma que Maria, que

estes sintomas haviam sido causados pela carne de jacaré-alemão, e continuei a

tomar os remédios típicos na comunidade para esses casos.

Maria fazia garrafadas, chás de ervas, de ouriço de castanha, de casca de

laranja, e de outras coisas que ela não revelava o nome para, como ela dizia, “não

assustar”. Eu acreditava que, por se tratar realmente de problemas causados pela

refeição do domingo, ficaria boa em pouco tempo com a ação destes remédios.

Mas, ao contrário, o quadro agravava-se a cada dia. Na terça-feira, como as

dores haviam aumentado e a febre persistia, comecei a ficar preocupada; se até

aquele momento eu achava que era só um problema simples de fígado ou

intestino, com a persistência dos sintomas indaguei-me sobre outros prováveis

problemas, como intoxicação alimentar. Mas ainda não cogitava qualquer relação

dos sintomas com a água.

Na quarta-feira as pessoas na comunidade, principalmente Maria,

demonstraram estar muito preocupadas com meu estado de saúde, eu não comia

nada, só bebia a garrafada e leite. Nem eu, nem ninguém na comunidade, tinha

idéia do que poderia ser a causa dos sintomas.

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Começaram a sugerir que eu fosse levada para Abaetetuba, mas como não

conseguia nem ficar em pé, por causa das dores na cabeça e no fígado, achei

melhor continuar na comunidade e esperar algum sinal de melhora.

A noite de quarta-feira foi a pior de todas. Estava extremamente angustiada.

Cheguei a pensar até que morreria ali mesmo, sem qualquer assistência, pois não

agüentava mais as dores e nem os remédios que a todo momento as pessoas

traziam.

Naquele momento, percebi o quanto é difícil, penoso, a situação daquelas

pessoas, desprovidas de alternativas que não sejam o remédio caseiro ou a

religião, pensei no desespero de uma mãe ao ver seu filho com diarréia, febre,

com pneumonia. Enfim, senti no corpo e na alma as conseqüências da falta de

acesso a outros tipos de recursos de saúde.

Na quinta-feira estava decidida a retornar para Belém, já não conseguia

mais tomar a garrafada. Desconfiei então que eu poderia estar com hepatite, e

fiquei apreensiva com a possibilidade de ser hepatite do tipo B, a mais grave.

Como um deslocamento malfeito poderia piorar ainda mais minha situação, decidi

esperar até a madrugada da sexta-feira, quando então o caminhão vinha à

comunidade buscar a produção agrícola da semana.

Na manhã de sexta-feira estava dentro de um ônibus com destino à Belém,

as dores estavam insuportáveis, mas, ainda assim, estava sentindo um certo alívio

com a viagem de volta.

No porto do Arapari expliquei minha situação para o gerente, este reservou

um camarote no navio e permitiu que eu ligasse para meus familiares em Belém

explicando a situação.

Ao chegar na cidade, fui imediatamente para um hospital onde fiquei

internada durante três dias e realizei exames de sangue e urina. Os resultados

apontaram tratar-se de hepatite tipo A.

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Lembrei que assim que cheguei na comunidade fui informada que duas

pessoas haviam contraído hepatite e estavam internadas em Mojú. Entretanto,

segundo os moradores, a doença teria sido causada por água contaminada

ingerida por essas pessoas, num torneio de futebol em outra comunidade.

Apesar da tristeza e agonia desta situação, foi importante perceber a

solidariedade das pessoas, o carinho, a preocupação dos moradores de

Mandiocal. Obviamente, eles também passaram momentos difíceis,

principalmente Maria. Por isso deixo registrada minha gratidão por todo esforço e

dedicação recebidos e que possibilitaram um desfecho feliz desta história.