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1 A sabedoria da Índia Capitulo I A Índia e Nós Pesadelo ou deslumbramento Aos olhos dos ocidentais, a civilização hindu apresenta-se sob duas perspectivas violentamente contrastantes. A primeira, inteiramente negativa, mostra um quadro de desolação econômica e abominação social - superpovoamento, fome, epidemias, miséria crônica, injustiças em massa, atrasos técnicos, superstições etc. Sob esse ponto de vista, a Índia é um permanente escândalo, um tumor purulento no flanco da humanidade "em marcha para o progresso". Fala-se dos ossuários vivos que são Bombaim e Calcutá, dos milhões de leprosos, da sina abjeta dos intocáveis, das desigualdades intoleráveis, do obscurantismo exacerbado que substitui a instrução para a multidão de analfabetos, sem esquecer a condição das mulheres, sinônimo de servidão medieval. Corno poderia a Índia ter alguma coisa de importante ou de útil para nos ensinar, visto ser tão dramaticamente incapaz de resolver seus problemas mais prementes? Outra perspectiva, outro olhar: a essa paisagem de pesadelo contrapõe-se um cenário feérico, um conto das mil e urna noites, saturado de clichês. É a "Índia fabulosa", a "Índia misteriosa", com suas legiões de swamis, de iogues, de gurus, de vacas sagradas, de elefantes reais, de marajás turísticos, imenso bazar espiritual, fervilhante de deuses, de faquires, de grandes sábios possuidores de um notável senso do show-business internacional. Esta versão esplendorosa e um pouco teatral destila urna pesada mistura de exotismo tropical, de exibicionismo folclórico, de cobiças de toda espécie, onde se encontram, ao mesmo tempo, uma necessidade de liberação sexual disfarçada em tantrismo, um delírio de poder através do álibi da ioga e uma infantilidade bastante patética, bizarramente vestida com ornamentos místicos e devocionais. A Índia do pesadelo econômico e social existe realmente, tanto quanto existe a Índia dos traficantes de poderes sobrenaturais e dos escroques espirituais. Porém o essencial está bem distante disso. Uma falência geral Há cerca de vinte anos se vê, no Ocidente, uma extraordinária abundância de revistas e publicações, bem como uma proliferação de movimentos e de seitas ligados a um vasto e vago domínio onde se acotovelam, misturados, magia, astrologia, ocultismo, parapsicologia, esoterismo, simbolismo e espiritualidade orientais. É claro que esse amálgama, profundamente abusivo, provoca confusões e irradia, para o grande público, uma imagem inteiramente simplificada e estereotipada, onde os fundamentos do hinduísmo se apresentam pura e simplesmente escamoteados. A sociedade ocidental contemporânea está dominada por uma insatisfação bastante obsessiva que se assemelha muito a uma confissão de derrota e impotência. O paradoxo histórico é que, a despeito das flutuações e das crises, vivemos na primeira civilização conhecida onde a

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A sabedoria da Índia

Capitulo I A Índia e Nós

Pesadelo ou deslumbramento Aos olhos dos ocidentais, a civilização hindu apresenta-se sob duas perspectivas violentamente contrastantes.

A primeira, inteiramente negativa, mostra um quadro de desolação econômica e abominação social - superpovoamento, fome, epidemias, miséria crônica, injustiças em massa, atrasos técnicos, superstições etc. Sob esse ponto de vista, a Índia é um permanente escândalo, um tumor purulento no flanco da humanidade "em marcha para o progresso". Fala-se dos ossuários vivos que são Bombaim e Calcutá, dos milhões de leprosos, da sina abjeta dos intocáveis, das desigualdades intoleráveis, do obscurantismo exacerbado que substitui a instrução para a multidão de analfabetos, sem esquecer a condição das mulheres, sinônimo de servidão medieval. Corno poderia a Índia ter alguma coisa de importante ou de útil para nos ensinar, visto ser tão dramaticamente incapaz de resolver seus problemas mais prementes?

Outra perspectiva, outro olhar: a essa paisagem de pesadelo contrapõe-se um cenário feérico, um conto das mil e urna noites, saturado de clichês. É a "Índia fabulosa", a "Índia misteriosa", com suas legiões de swamis, de iogues, de gurus, de vacas sagradas, de elefantes reais, de marajás turísticos, imenso bazar espiritual, fervilhante de deuses, de faquires, de grandes sábios possuidores de um notável senso do show-business internacional.

Esta versão esplendorosa e um pouco teatral destila urna pesada mistura de exotismo tropical, de exibicionismo folclórico, de cobiças de toda espécie, onde se encontram, ao mesmo tempo, uma necessidade de liberação sexual disfarçada em tantrismo, um delírio de poder através do álibi da ioga e uma infantilidade bastante patética, bizarramente vestida com ornamentos místicos e devocionais.

A Índia do pesadelo econômico e social existe realmente, tanto quanto existe a Índia dos traficantes de poderes sobrenaturais e dos escroques espirituais. Porém o essencial está bem distante disso.

Uma falência geral Há cerca de vinte anos se vê, no Ocidente, uma extraordinária abundância de revistas e publicações, bem como uma proliferação de movimentos e de seitas ligados a um vasto e vago domínio onde se acotovelam, misturados, magia, astrologia, ocultismo, parapsicologia, esoterismo, simbolismo e espiritualidade orientais. É claro que esse amálgama, profundamente abusivo, provoca confusões e irradia, para o grande público, uma imagem inteiramente simplificada e estereotipada, onde os fundamentos do hinduísmo se apresentam pura e simplesmente escamoteados.

A sociedade ocidental contemporânea está dominada por uma insatisfação bastante obsessiva que se assemelha muito a uma confissão de derrota e impotência. O paradoxo histórico é que, a despeito das flutuações e das crises, vivemos na primeira civilização conhecida onde a

Andres
por Patrick Ravignant

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abundância e a prosperidade tornaram-se inegáveis realidades cotidianas. As mais carentes de nossas grandes cidades beneficiam-se de um contexto material principesco, se comparadas aos deserdados do Terceiro Mundo. E, entretanto, as tensões, as ansiedades, o mal-estar chegaram ao auge: drogas, alcoolismo, barbitúricos, violência, ódio racial são sintomas flagrantes e provas de que a verdadeira felicidade, a paz interior, não depende absolutamente de condições exteriores.

A falência clamorosa e geral das ideologias e dos sistemas religiosos, filosóficos e políticos e a desconfiança, mais e mais alastrada e justificada face a todos os proselitismos teológicos e morais, a todos os militantismos de direita e de esquerda, constituem outra fonte de frustração e de angústia existencial profunda. O relativismo científico caminha lenta, mas seguramente no inconsciente coletivo, tomando cada vez mais difícil a adesão incondicional a uma verdade dogmática e cada vez menos críveis as antigas pretensões à objetividade intelectual.

Porém o mais chocante, sem dúvida, é a impossibilidade de as velhas doutrinas transformarem o nosso modo de consciência, aclararem a nossa percepção do universo, mudarem esquemas inertes em experiência viva, abstrações rígidas em realidade dinâmica.

O infinito atrelado De fato, há duas espécies de motivação, radicalmente diferentes, que nos impelem para a cultura e a espiritualidade hindu.

Muitos ocidentais têm um apetite de dominação universal, de controle integral do destino e do universo, que não mais pode ser satisfeito com os sucessos tecnológicos e científicos, por mais espetaculares que sejam. O sistema solar poderá ser visitado, o mistério dos buracos negros elucidados, os êxitos médicos multiplicados, fontes de energia insuspeitas exploradas, sem que, no entanto, sejam suprimidos os medos, o sofrimento, os conflitos, a solidão, o desespero da separação e da morte, tão torturantes numa ultramoderna torre de aço e de vidro quanto numa cabana de terra batida.

Revoltados contra a servidão e as limitações de nossa condição humana e aspirando a um estado sobre-humano, muitos acreditaram encontrar, na Índia, as receitas de uma onipotência e as fórmulas de uma onisciência que lhes permitiriam desenvolver faculdades extraordinárias, dons paranormais que os elevariam ao posto de demiurgos.

Esses, em geral, erram de guru em guru, de ashram em ashram, de seita em seita, com uma avidez pueril e vulnerável, sempre aguardando o aparecimento do mestre infalível, do grande instrutor, da revelação divina e da iniciação suprema. Põem nisso, geralmente, um ardor inquieto, esperando indefinidamente a recompensa miraculosa com a mesma fé incessantemente esgotada e renovada - de um apostador da loto. As falaciosas promessas de absoluto em pílula, poção ou figuras mágicas são típicas da mentalidade ocidental, que acredita poder atrelar o infinito, colocar uma focinheira no nada, empacotar a verdade em embalagens congeladas.

Mais raro são aqueles que vão ao essencial da mensagem da Índia - além da superfície gangrenada e mutável, além mesmo da brilhante explosão de uma cultura incrivelmente rica e diversificada.

A dimensão da interioridade Para um moderno ocidental, o que é verdadeiramente desconcertante no ensino tradicional da Índia é menos a profusão ritualista e multicolorida que satisfaz ao seu gosto pelo exotismo e pelo

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bizarro do que a dimensão de interiorização, em completo contraste com o barulho, a violência, a atividade a todo preço, a perseguição febril aos bens e prazeres, a necessidade desesperada de afirmação pessoal, a impossibilidade de ser sem ter, fazer ou parecer, isto é, uma vida incessantemente projetada, arrastada, precipitada para o exterior.

Se alguma coisa da Índia pode interessar-nos verdadeiramente, é esta interiorização, despojada de seu folclore e restituída à sua vocação universal, num caminho onde poderiam ser reconhecidos, ao mesmo tempo, um discípulo de Sócrates, um monge cristão ou um místico sufi.

Uma felicidade não-dependente De que se trata?

Visto de fora, o hinduísmo aparece como uma massa de tal forma extravagante, confusa e complicada de mitologias, doutrinas, asceses, práticas religiosas heteróclitas e contraditórias, termos sânscritos quase intraduzíveis, que se afigura impossível discernir nesse magma alguma coerência, alguma convergência, um fio condutor simples e único ligando os contornos tortuosos dessa trama desordenada.

Entretanto esse elemento existe; ele está nos centros dos ensinamentos mais diferentes e constitui o objetivo último de disciplinas espirituais completamente díspares. É a busca de uma felicidade não dependente de circunstâncias favoráveis ou não, felicidade inimaginável, para além de toda expressão, correspondendo a um modo de consciência libertado dos apegos e dos medos, livre da ditadura dos contrários (belo-feio, bem-mal, gosto-não gosto etc), desembaraçado das angústias do ego, das limitações do tempo e do vir-a-ser, dos imperativos da relatividade.

Esse estado, cujo conteúdo desafia qualquer definição ou descrição, foi batizado de Libertação (moksha). Reúnem, na realidade vivida, aquilo que os budistas denominam Despertar ou Natureza do Buda, e os cristãos, Reino dos Céus.

Essa felicidade libertadora não tem nada de profundamente estranho, longínquo ou inacessível. Ao contrário, constitui o fundamento de nossa natureza: está para o nosso ser físico, emocional e mental como a água, em geral, está para um determinado rio ou o ouro para uma jóia específica. Simplesmente está encoberta, oculta pela incessante agitação de suas próprias formas - o conjunto dos processos biológicos e psicológicos pelos quais estamos sujeitos à mudança e à relatividade.

Esse estado é próprio de todo ser vivo, quaisquer que sejam suas origens, destino, nível cultural, opções filosóficas ou crenças religiosas. Aparece espontaneamente, como conseqüência de uma transformação interior que é mais ou menos rápida, mais ou menos difícil, às vezes heróica, segundo os indivíduos, avanço progressivo cujas etapas e métodos variam consideravelmente de uma pessoa para outra.

Esse trabalho sobre si mesmo não requer absolutamente um estágio de dez anos num ashram de Bengala ou numa gruta do Himalaia. Um ponto capital do ensino hinduísta é, justamente, que qualquer pessoa pode operar essa transformação, seguir esse itinerário (Sadhana), onde está e como é, sem ter, necessariamente, que desorganizar o quadro de suas atividades e obrigações familiares, profissionais etc.

Não são suficientes alguns sinais exteriores _ crânio raspado, túnica açafrão, votos de pobreza e castidade - para ascender à Libertação e ao Despertar. É infinitamente mais sutil e mais simples.

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Ninguém se converte ao hinduísmo, e mesmo as profissões de fé são apenas acessórios bastante vazios de sentido, uma vez que se limitam a exprimir opiniões e crenças, em vez de manifestar uma experiência interior.

É claro, a existência que levamos em nossa civilização de hiperconsumo e de acumulação neurótica não favorece um encaminhamento "espiritual", e é preciso constatar que a maior parte dos cristãos ig nora completamente, hoje em dia, a dimensão interior da vida religiosa, reduzida mais e -mais a uma espécie de catecismo socializante e moralizador.

Quem, afora alguns monges, dá um conteúdo realmente vivo, íntimo, cotidiano a expressões como "presença em si mesmo e em Deus", "morte do Homem Velho" ou "o Reino de Deus que existe dentro de vós"? Que cristão, de qualquer Igreja, aspira a poder dizer, como São Paulo: "Não sou mais, é Cristo que vive em mim"?

Deus tornou-se, para nós, objeto de teorias e de hipóteses, de afirmações definitivas ou de contestação radical, às vezes de emoções violentas, positivas ou negativas.

De fato, temos apenas idéias sobre Deus, ao passo que a Índia tradicional, como a Idade Média cristã, procura viver em Deus, mergulhar em Deus, ser Deus.

Acima das incompatibilidades teológicas, das distorções semânticas e dos abismos culturais, há um reencontro imenso no seio do inefável, no início de um silêncio que é também uma perfeita experiência.

O único realismo autêntico Para o ocidental interessado no hinduísmo, não apenas como curioso ou esteta, uma grande questão vem à mente: como passar seriamente à prática sem ir à Índia para seguir com assiduidade o ensino direto deste ou daquele mestre qualificado? Como conciliar, em seguida, essa prática, a realização pessoal desse ensino, com as mil obrigações e lutas cotidianas, os aborrecimentos, as tensões, os conflitos muitas vezes insolúveis, enfim, toda essa atividade avassaladora que deixa tão pouco espaço para o recolhimento e a meditação? Como atingir essa paz, essa serenidade, esse centro imutável de nós mesmos, se temos constantemente a cabeça, o coração e o corpo trabalhados, atormentados, perturbados por barulhos lancinantes, vibrações convulsivas, ecos de cataclismas - contínuo leilão do terrorismo, do sadismo, da megalomania, da demência organizada, da iminência do apocalipse?

Quando nos lembram, de uma ou de outra forma, o ensino ligado ao hinduísmo, pensamos geralmente: sem dúvida, isso é admirável à beira do Ganges, mas sejamos realistas; há dívidas a pagar, impostos que aumentam, filhos para criar, perigo de desemprego, concorrência cada vez mais dura - tantos desejos não-satisfeitos, medos não-apaziguados! Que significa isto de que me falam, felicidade não-dependente, consciência transformada, Libertação?

Entretanto, é bem disso que se trata, não à beira do Ganges, mas no meio de todos os problemas e condicionamentos próprios da sociedade ocidental contemporânea. Em última análise, não será a busca da eternidade o único realismo autêntico, pois que a morte é nossa única certeza?

A necessidade do pluralismo Neste domínio do trabalho sobre si mesmo, da transformação interior, dos processos do Despertar ou da Libertação, a tradição hinduísta reuniu, no curso de milênios, uma soma de conhecimentos,

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de experiências e, digamos, de competência pedagógica sem equivalência no resto do mundo, o que não minimiza, absolutamente, o espírito e a amplitude das outras tradições.

A Índia soube, ao mesmo tempo, especializar e diversificar ao extremo sua abordagem e seus caminhos, não excluindo nenhum aspecto da vida, englobando todas as energias e todas as aspirações tão bem que podem cohabitar, com mútua tolerância e profunda harmonia, ascetas mendigos habituados às mais terríveis austeridades e discípulos tântricos que utilizam o desejo, as emoções eróticas e os impulsos sensuais como catalizadores do Despertar ou como alavanca para a mutação espiritual.

No Ocidente, o misticismo cristão relegou à sombra, ou mesmo à dissidência ou a clandestinidade, qualquer iniciativa de transformação interior. Na Índia, a efusão emocional representa apenas um caminho a mais, entre outros. Mas nenhuma abordagem seja ela religiosa ou metafísica, ativa ou contemplativa, pretende possuir sozinha as chaves do Reino: a necessidade do pluralismo e da diferença é aqui respeitada ao extremo. Não tem o Absoluto todos os aspectos - mesmo os mais contraditórios?

Dito isso, será necessário morar na Índia para seguir certos ensinamentos?

A viagem Fazemos parte, hoje em dia, de uma cultura planetária, onde as diversas tradições se interpenetram e se sobrepõem cada vez mais estreitamente. Até os anos imediatos ao pós-guerra conhecíamos o Oriente apenas através de alguns trabalhos de erudição ou de relatos de viajantes e exploradores. Essas obras eram, às vezes, notáveis (por exemplo, as de Alexandra David-Neel), mas tinham apenas um caráter de informação geral: podia suscitar um interesse apaixonado, motivar expedições à China ou ao Tibete. Não eram, em absoluto, uns manuais completos de ensino: era necessário viajar para o local, procurar tal swami, roshi ourimpotché, compreender e assimilar seu ensinamento, o que poderia consumir anos de aventuras e esforços. Tal foi o papel de pioneiros como John Blofeld, nos EUA, Douglas Harding, na Inglaterra, Jean Herbert, Arnaud Desjardins e Jean Klein, na França, e Karlfried Graf Dürkheim, na Alemanha etc.

Esses, e alguns outros, são bem mais que simples amantes do exotismo. Tendo sabido integrar o essencial das grandes perspectivas tradicionais do Oriente - vedanta, ioga, budismo, taoísmo, sufismo - sem, contudo, renegar suas origens e raízes ocidentais, realizaram em si mesmos essa transformação interior que, por sua vez, lhes permitiu ensinar ao mesmo tempo através de séries de publicações e por uma transmissão direta, mais personalizada.

Por outro lado, a expansão das trocas internacionais ou as vicissitudes do exílio levaram mestres zens, hindus, tibetanos ou sufis a se estabelecerem em diversos países do Ocidente, onde organizaram grupos de trabalho e comunidades facilmente acessíveis. A viagem para um Oriente, aliás, cada vez mais ocidentalizado, não é mais, para um discípulo do vedanta ou do tantrismo tibetano, uma condição sine quanon.

O guru e o físico A palavra guru, sem dúvida, está hoje em dia terrivelmente comprometida: exala um cheiro forte de sectarismo e escândalo.

De fato, como reconhecer, entre a multidão de mistificadores, charlatães ou escroques, os guias espirituais verdadeiramente qualificados? Este é um campo em que as armadilhas são inúmeras e

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as fachadas extraordinariamente pomposas. Todos os critérios conhecidos podem ser falsificados, invertidos. O verdadeiro sábio prefere, muitas vezes, calar-se ou mesmo esconder-se sob aparências simples e banais.

Mas o sucesso popular não é, necessariamente, sinônimo de mentira e desonestidade. Desconfiemos de sistemas e apriorismos.

De um modo mais geral, devemos perguntar-nos se a função de guia ou guru é, antes de mais nada, indispensável, a que corresponde realmente, e se não constitui muitas vezes, na perspectiva mesma de uma consciência libertada, mais um paradoxo e um obstáculo que um auxílio verdadeiramente eficaz.

Outro elemento contribuirá, certamente, para familiarizar mais e mais os pesquisadores espirituais ocidentais com as abordagens tradicionais do Oriente. Trata-se das recentes perspectivas abertas por certos trabalhos científicos pioneiros, sobretudo no domínio da astrofísica e da física nuclear.

A visão de uma realidade global, única, de um todo indissolúvel onde o observador não pode mais permanecer separado do objeto reservado nem o experimentador do experimento, desemboca nas intuições fundamentais dos antigos rishis védicos e dos primeiros sábios taoístas. Voltaremos a tratar desse assunto mais longamente.

Modelos ocidentais e orientais A Índia espiritual continua, sob muitos aspectos, exemplar, desde que se desfaça um certo número de mal-entendidos e contra-sensos difíceis de evitar para um ocidental desatento. Antes de mais nada, é conveniente manejar as generalizações com prudência: não esqueçamos que se trata de um continente mais povoado que a Europa, com uma prodigiosa disparidade geográfica, étnica e lingüística.

Na Idade Média as nações européias tinham, de Brest a Moscou, de Edimburgo a Nápoles, de Hamburgo a Bizâncio, um símbolo comum que era um vivo e grande traço de união: a cruz do Cristo. Nela comungavam peregrinos e cavaleiros, e também camponeses, mercadores e até malfeitores, da Inglaterra, de Flandres, da Provença ou da Hungria. À sombra dessa cruz encontravam-se figuras de santos e santas que representavam, aos olhos de todos, o estado mais invejável e o mais maravilhoso destino possível, a salvação eterna assegurada.

Na civilização hindu há algo bastante comparável, algo que a sociedade ocidental medieval poderia talvez compartilhar, mas que foge completamente dos esquemas e critérios da sociedade ocidental contemporânea: é a veneração e a devoção com que a Índia, unanimemente, cerca os sábios, os homens e mulheres que em vida ascendem à suprema Libertação - consciência do Despertar e da Eternidade.

No Ocidente, os modelos que elevamos ás nuvens e com os quais procuramos febrilmente identificar-nos são imagens de poder, de gloríola, de avidez: estrelas de espetáculos, vedetes políticas, milionários, play-boys internacionais, superespiões. Trata-se de valores puramente exteriores, teatrais, quantitativos, mensuráveis em curvas de popularidade, em número de bens, de títulos, de conquistas amorosas.

O sábio e o santo quase desapareceram de nossa cultura como modelos, ao passo que representam infinitamente mais aos olhos da maioria das crianças hindus, que um ministro, um P.D.G. ou um ator célebre. Aliás, vêem-se comumente dirigentes políticos e poderosos desse mundo prosternarem-se aos pés de um desses "libertados-vivos" (Jivan-Mukta), considerados, às vezes,

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como verdadeiras encarnações divinas - como foi o caso da santa bengali Mâ Ananda Mayi, falecida em 1982.

O mistério do sábio As pessoas diante das quais se vem tocar o solo com a testa não têm nenhum título, nenhuma função honorífica, nada que as distinga, à primeira vista, de milhões de outras. Não dirigem nenhuma igreja oficial, nenhuma seita, não toma parte de nenhuma ação social, não detêm nenhum recorde, não executaram nenhum feito excepcional - tangível, verificável. Não são guias nem oradores, e, no entanto atraem massas consideráveis, milhões de homens e mulheres que vêm, simplesmente, receber o darshan, isto é, simultaneamente, a visão, a graça e a bênção do sábio ou do santo.

No Ocidente compreendemos facilmente o fervor inspirado por um João Paulo II, um Martin Luther King ou um Gandhi, que se engajaram em lutas, que se empenharam pessoalmente, encarnaram um ideal. Compreendemos também o efeito carismático deste ou daquele pregador.

O prestígio incontestado de um Ramana Maharshi nos parece bem mais misterioso. É um homem que nada fez de especial (alguns anos de recolhimento e isolamento não têm nada de original na Índia), que falou pouco e pouco escreveu, e cuja existência, vista de fora, parece insignificante e monótona.

Ora, esse homem simples, inteiramente desprovido de qualquer ambição ou pretensão e que, de resto, jamais fez coisa alguma para estimular ou desencorajar o ardor de seus discípulos, tomou-se, por si só, objeto de culto e peregrinação consideráveis. Em seu caso não houve visão celeste, revelação divina ou um rosário de milagres: somente uma presença inesquecível, um olhar, um sorriso, uma evidência de ser que também pode ser chamada de plenitude, amor, eternidade.

Uma transformação radical De fato, o Ocidente sempre esperou, de seus mestres do pensamento, receitas absolutas, respostas definitivas, a equação última que permitiria tudo entender e tudo explicar - como a criança espera de sua mãe a mamadeira salvadora.

Enquanto nossos filósofos nos abastecerem com sistemas apetitosos, nos saciarem com teorias excitantes, brilhantes, nós nos deixaremos encantar e até mesmo hipnotizar. O que o filósofo é, sua vida e seu modo de ser, pouco nos interessa. Que ele seja um homem psicológica e nervosamente abatido, a arrastar uma existência em contradição com seus próprios princípios, isso não nos atinge absolutamente. Para nós, os problemas pessoais de um Kant, um Hegel, um Bergson ou um Sartre está fora de questão. O que desejamos é um truque, o truque que nos permitirá agarrar, fixar, aprisionar a verdade, definitivamente. Pouco importa quem nos ensina o truque, se Jeová, Lúcifer, o Grande Manitu, Freud, o K.G.B., Coluche ou a Samaritana.

O Oriente sabe, há milhares de anos, que não há resposta absoluta formulável, que a verdade não pode ser aprisionada em conceitos ou apreendida intelectualmente, mas sim vivida, realizada, percebida através de uma experiência interior direta, implicando uma transformação radical do nosso modo de consciência habitual.

A verdade não é uma questão de idéia: ela pertence ao domínio do ser e da experiência vivida.

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Perder nossas limitações Portanto, na Índia, é essa questão de transformação interior e de realização pessoal que se sobrepõe a tudo. Um libertado-vivo (Jivan-Mukta) é alguém que realizou. Sua eloqüência, sua habilidade intelectual, seu nível de conhecimento e de cultura são absolutamente secundários. Sabe-se que as palavras e os conceitos são apenas sinalizações a indicar o caminho, mostrando um mapa mais ou menos preciso e detalhado: cada um deve, em seguida, explorar o território e descobrir o tesouro. "A palavra é um dedo que aponta para a lua", diz um provérbio zen; "só os imbecis é que olham para o dedo”.

Como não pode ser traduzido em imagens e esquemas, nem reduzido a formas mentais, o essencial brota de uma experiência íntima, só comunicável por aquela espécie de certeza ou evidência que se impõe no contato com os seres transformados - os libertados ou despertos. Mistura de simplicidade, de transparência, de não-dependência e de disponibilidade, de extrema espontaneidade e extrema presença em si mesmo, de inefável serenidade mas, também de contínuo deslumbramento, tal é a impressão global da maioria dos testemunhos, mais inesquecíveis que discursos ou tratados geniais.

É preciso salientar que essa realização não é, em absoluto, uma busca de originalidade ou de afirmação pessoal, não está a serviço de nenhum ideal, por mais sublime que seja. Como veremos, não se trata de procurar uma vantagem qualquer, seja ela o paraíso, mas de perder nossas limitações, nossa ignorância, e dissipar as projeções mentais que nos ocultam o esplendor do Real, impedindo-nos de aderir ao instante eterno, aqui e agora, e que obscurecem a felicidade da nossa imutável e verdadeira natureza.

Uma verificação experimental De certa forma, o pesquisador espiritual da Índia está bastante próximo do pesquisador científico. Ambos têm em comum a experimentação. A diferença é que o campo de experimentação do pesquisador científico pertence ao mundo exterior, ao passo que o pesquisador espiritual é, ao mesmo tempo, o pesquisador e seu próprio campo de experimento.

Em ambos os casos, porém, a verificação direta, a certeza vivida, demonstrada, excede consideravelmente as proposições teóricas.

A confiança ilimitada que o discípulo deposita em seu guru (e que é uma condição para o sucesso) não tem nada de fanatismo ou fé cega. É bastante comparável, efetivamente, ao tipo de relação que se estabelece entre o estudante e seu professor de física ou de química: enquanto ele próprio não realiza a experiência, o estudante não tem nenhuma prova real de sua validez. É obrigado a acreditar em falas alheias e relatos de segunda mão.

De uma maneira mais geral, não pensamos em questionar as afirmações e as capacidades de nossos técnicos e especialistas, pois não estamos absolutamente qualificados para avaliar a autenticidade de sua competência. Desse ponto de vista, o domínio científico e técnico é provavelmente aquele que apresenta no Ocidente, por exigências comuns de realizações concretas, um maior número de pontos comuns com a filiação tradicional da espiritualidade hindu.

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Saberíamos reconhecer o Buda? Há milênios que os hindus têm sob os olhos, a cada geração, esses homens e mulheres libertados, que constituem provas vivas muito mais convincentes que as fórmulas de catecismo ou as histórias de santos desaparecidos há séculos.

Não temos, em nossas periferias e campos, Frâncicos de Assis, Teresas de Ávila ou Mestres Eckart que possam trazer-nos o testemunho direto e a convicção imediata. Quando falamos de um sábio, de um desperto, é quase sempre através de livros, de artigos, de relatos não-comprováveis deste ou daquele viajante. Saberíamos reconhecer o Buda? Nosso inconsciente está carregado de clichês pueris, veneráveis velhinhos com longa barba branca, seres imaculados banhados por uma luz sobrenatural, dividido entre o jejum, a levitação e o êxtase.

O libertado-vivo pode ter, num primeiro contato, uma aparência absolutamente banal, corriqueira. A consciência do despertar não produz nenhum sinal exterior que o diferencie - não tem auréola ou terceiro olho dissimulado numa ruga da testa. Ela não impede a fome, a sede, o sono, o ranger de dentes, as dores de estômago, se bem que esses diversos sintomas não sejam mais percebidos como antes.

Uma felicidade absoluta No decorrer do tempo, a Índia apresentou inúmeras técnicas de transformação interior, adaptáveis a todas as formas de sensibilidade, a todos os tipos de desenvolvimento e compreensão: físico, emocional, intelectual, ativo ou contemplativo.

No centro de uma disparidade às vezes desconcertante, essas práticas têm todas um fundo comum que dividem, aliás, com todas as grandes tradições - staoísmo, budismo, sabedoria de Sócrates e de Epicteto, místicos muçulmanos e cristãos: ser livre é libertar-se do que foi adquirido, de toda posse, de todo apego, de todo haver, não somente no domínio material, mas também em planos mais sutis, emocionais, culturais, intelectuais - preconceitos, paixões, opiniões. Essa entrega, esse abandono à vontade divina é uma profunda adesão à espontaneidade, à indizível mobilidade do real, uma vigilante presença na eterna transparência do instante atual. É acompanhada por uma desaparição do sentimento do ego - angústia do isolamento e da separatividade -, aquilo que a tradição cristã denomina "morte do Homem Velho" ou, às vezes, "segundo nascimento".

Para os que viveram essas transformações e realizaram esse despertar o novo estado aparece como extremamente simples, natural, evidente, trazendo menos soluções e respostas definitivas que um desaparecimento das perguntas. É, mais ou menos, como uma cura após longa doença povoada de febres e pesadelos. O Buda mesmo, aliás, apresentava-se não como filósofo ou profeta, mas como um médico capaz de curar o sofrimento: "Vim apenas para ensinar duas coisas: as causas do sofrimento e os meios de suprimi-lo”.

No fundo, o que a tradição hinduísta propõe é a procura mais rigorosa, mais científica e, às vezes, mais heróica da felicidade - uma felicidade sem contrários, uma felicidade sinônima de absoluto.

Capítulo II

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Dados de Base A visão progressista Fundamentada num conjunto de projetos racionalistas e de sonhos científicos visando uma denominação ilimitada do universo, a civilização ocidental é basicamente progressista. Suas esperanças e seus valores supremos estão sempre situados num futuro mais ou menos hipotético. Seja no plano político, econômico, moral ou mesmo religioso, amanhã é o grande álibi, o argumento irrefutável. Quaisquer que sejam as ideologias e as opções, de direita ou de esquerda, crentes ou não-crentes, por todo lado afirma-se a esperança, se não a certeza, de que amanhã será intrinsecamente melhor do que hoje e que é necessário sacrificar o presente ao futuro - o futuro da democracia liberal avançada, do bem-estar tecnológico, do paraíso socialista, do governo mundial unificado ou do além consolador.

Trata-se de uma concepção onde a História é valorizada sobremaneira - até mesma divinizada e onde o Tempo é arvorado em absoluto, incluído numa finalidade teológico ou econômico à qual tudo deve ser imperiosamente submetido. O esquema geral é "quanto mais você se reprime hoje, mais você falará amanhã; quanto mais você é infeliz hoje, mais você será feliz amanhã", pois amanhã é essencialmente melhor do que hoje. Assim, as angelicais promessas do futuro justificam todos os infernos do presente.

Esse progressismo (já existente na noção bastante temporal de um Messias ou de um fim do mundo exclusivamente histórico) inteiramente submetido ao culto do deus Tempo consagra tanto o passado quanto o futuro. Basta observar o entusiasmo das comemorações, a exaltação das memórias, a exumação de acontecimentos esquecidos.

Para nossa civilização progressista, o passado aparece como uma lição, o futuro como um ideal, o presente como um problema. Em outras palavras, a realidade vivida aqui e agora é sentida negativamente, enquanto as sombras fantasmagóricas do ontem e do amanhã são aceitas como as únicas dignas de todos os esforços e dê todas as lutas. Despoja-se violentamente o presente em nome de espectros passadistas ou de brumas utopistas e procura-se, nos dois casos, violentar o real e negar a vida. Conhecem-se as monstruosidades legitimadas por uma tal acepção - campos de concentração, torturas, gulags.

Essa glorificação do futuro projeta, evidentemente, soluções exteriores no tempo e no espaço: amanhã estarão suprimidos os desconfortos, os conflitos, os sofrimentos, graças à magia da modernidade triunfante, que tomará sobre os ombros, integralmente, todos os problemas físicos ou psíquicos longevidade, segurança, bem-estar material, harmonia para todos, assegurados do nascimento à morte.

A busca da eternidade As civilizações tradicionais - como aquela em que está imerso o hinduísmo - têm outra preocupação: atingir a eternidade, perceber a realidade temporal atrás da máscara do tempo, o imutável no centro da incessante mudança, o sem-nome, o sem-forma além dos nomes e das formas.

O Ocidente tem, muitas vezes, tendência de confundir posição tradicional com tradicionalismo.

O tradicionalismo reivindica, como principal virtude, uma escrupulosa e incondicional fidelidade aos dogmas, ritos e catecismos ancestrais. É uma posição monolítica e rígida que geralmente se transforma numa mística passadista e absoluta, que baseia a verdade em simples argumentos de anterioridade.

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A posição tradicional prende-se ao que não pertence a nenhum tempo, passado ou futuro, a essa realidade interior que não muda e que está, portanto, além de toda crença, de toda prática particular, sem, contudo negá-las. Essa eternidade não depende de pontos de vista ou de opiniões contestáveis, tributárias de condições culturais específicas e mutáveis; depende apenas de uma experiência direta, indescritível, que cada um deve viver em si mesmo.

Eis por que, contrariamente ao tradicionalismo, a posição tradicional nada tem de estreitamente formalista ou dogmático. Mesmo dentro de uma rigorosa observação de costumes e ritos, é essencialmente branda, aberta e tolerante.

O poder libertador do mito No Ocidente, apesar de já ter passado o tempo em que as Igrejas e as seitas guerreavam furiosamente entre si, cada uma continua persuadida de que é a única depositária da verdade. Essa atitude é inevitável no quadro da visão estritamente histórica e temporal que é, geralmente, a do cristianismo. Se Deus se manifesta a alguns privilegiados, santos ou profetas, e encarna-se, para sempre, em um ponto preciso do espaço e do tempo, através de um único indivíduo, a minúcia dos relatos adquirem enorme importância.

A Índia preocupa-se menos com exatidão histórica ou com fatos objetivos do que com mitos.

Inscrevendo-se, por definição, à margem de toda realidade material exterior, o mito oferece uma narrativa maravilhosa, um itinerário simbólico: seu poder libertador é proporcional à sua faculdade de adaptação, à sua capacidade de despertar ressonâncias profundas em homens e mulheres de épocas, culturas e sensibilidades completamente diferentes. Ao contrário da "verdade" dogmática ou histórica, a verdade do mito nada exclui e nada rejeita. Não pretende fornecer uma resposta completa ou definitiva, mas, antes, os segredos dinâmicos de um entendimento mais sutil e de interrogações essenciais: "O que, em mim, assemelha-se a tal deus, monstro ou herói, a tal espaço mágico, encantado ou infernal?"

Desse modo o mito se torna fator de comunhão e de identidade, enquanto o dogma, artigo de fé, mais separa do que une.

A tolerância Na Índia, o termo tradicional aplica-se sobretudo, a um modo de filiação e de transmissão que não mudou desde a origem dos tempos védicos. A originalidade, a novidade, a virtuosidade dialética, tão importante para os intelectuais ocidentais, são aqui secundárias. Ao contrário, parece capital adaptar a cada época, a cada grupo, a cada personalidade as grandes intuições e certezas eternas.

O resultado é uma diversidade prodigiosa e uma tolerância fundamental em face de outras solicitações espirituais: budismo, islamismo, cristianismo.

O proselitismo e o espírito missionário são inteiramente estranhos à mentalidade hindu. Os missionários católicos ou protestantes que proclamavam: "Jesus é o filho de Deus!" ouviam, geralmente, a resposta: "O senhor tem razão, Krishna também!" Aliás, é freqüente encontrarem-se imagens de Cristo piedosamente expostas entre figuras dos grandes avatares e de divindades milenares. Certos movimentos, como o dos Sikhs, representam uma verdadeira fusão entre o islamismo e o hinduísmo.

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Acresce ainda que, a despeito de discussões filosóficas - às vezes muito veementes ou mesmo virulentas, opondo os representantes de diversas correntes hinduístas e budistas em intermináveis combates oratórios -, a Índia jamais conheceu o equivalente das cruzadas ou das guerras de religião, sendo as perseguições apenas episódios raros e marginais, enquanto em diferentes épocas grandes soberanos, como Ashoka ou Akbar, instituíram a tolerância, o diálogo, o respeito mútuo como verdadeiro sistema de governo.

Os seis pontos de vista ortodoxos A Índia admite seis grandes caminhos ou perspectivas (darsanas) que oferecem diferentes pontos de vista, desenvolvimento e interpretação das escrituras santas. Essas darsanas são chamadas ortodoxas na medida em que reconhecem a autoridade dos Vedas e do conjunto dos textos sacros fundamentais. Os seguintes sistemas são tradicionalmente admitidos: niaia, vaisesica, sânquia, ioga, mimansa e vedanta. O jainismo e o budismo não estão aí incluídos, apesar de seu papel e influência terem sido consideráveis na história espiritual da Índia onde contam, ainda hoje, com milhões de adeptos.

As darsanas constituem, em suma, modos de abordagem ou de esclarecimento mais complementares que divergentes, mais ou menos como se, para um mesmo território, fossem desenhados diferentes tipos de mapas': rodoviário, fluvial, ferroviário, geológico etc. Os desenhos não se relacionam entre si, apesar de serem do mesmo local, visto de múltiplos ângulos. As seis darsanas tratam da mesma realidade última e universal sob óticas diferentes, cujas aparentes contradições ligam-se simplesmente à diversidade dos itinerários prospectivos: por exemplo, ponto de vista cosmológico do sânquia, ponto de vista religioso da ioga, ponto de vista metafísico do vedanta.

O religioso e o não-religioso De maneira geral e paralelamente, os caminhos religiosos e não-religiosos não são, aqui, absolutamente exclusivos e incompatíveis.

Na busca do absoluto, inefável e inatingível (Brama), a Índia sempre admitiu as boas razões de duas atitudes complementares e opostas: a da efusão devocional e mística (Bhakti) e o puro conhecimento metafísico (Jnana), perfeitamente ilustrado pelo Advaita Vedanta, ou vedanta não-dualista.

Simplificando: pode-se chamar a via metafísica de negativa; é o célebre "Neti, Neti". O absoluto não é passível de redução a nenhuma forma; a nenhum esquema, a nenhum conceito: não é isto nem aquilo, não é a soma dos dois nem algum dos dois, não é nada imaginável ou acessível, seja pelos sentidos, seja pelo psiquismo.

Inversamente, pode-se denominar a via devocional de afirmativa, na medida em que proclama a onipresença do absoluto e se extasia diante do espetáculo desse absoluto manifestado por toda parte.

De resto, fórmulas como "o absoluto (Brama) não está em lugar algum" ou "o absoluto está em toda parte" são ainda muito relativas. O vivido na experiência libertadora e na consciência do Despertar ultrapassa e engloba, ao mesmo tempo, a negação e a afirmação.

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É claro que os libertados-vivos (Jivan Mukta), os despertos como Shankara, Ramakrishna, Ramana Maharshi ou Má Ananda Mayi, transcendem, com sua realização interior, qualquer espécie de classificação.

Este livro se consagra mais particularmente à pesquisa do puro conhecimento através da experiência metafísica, especialmente o Advaita Vedanta. Outras duas obras desta mesma coleção evocam, respectivamente, as diversas formas da ioga e os "loucos de Deus" da mística devocional.

Um templo gigantesco Quando se aborda o hinduísmo, é importante precisar, com clareza, o sentido e a extensão de certos termos que se é obrigado a empregar freqüentemente e cujo significado é bastante ambíguo.

É o caso, entre outros, da palavra espiritualidade, que se encontra a todo o momento.

Trata-se de um vocábulo que mesmo os hindus utilizam com circunspecção, na medida em que ele habitualmente implica uma rigorosa e desprezível demarcação entre “mundo profano" e "mundo sagrado", como se houvessem certos aspectos privilegiados da vida e do universo que merecessem pertencer ao domínio espiritual, no meio de uma massa de elementos grosseiros, relegados ao plano oneroso e miserável do mundo material.

É assim que o entendemos no Ocidente, onde o espiritual designa um meio um tanto ou quanto fechado, misterioso, separado da vida, bastante triste no seu conjunto, terrivelmente sério e destituído de humor.

Na concepção hindu, o espiritual abrange e engloba a totalidade da existência em suas manifestações mais elementares, em suas funções mais naturais, em seus impulsos mais secretos. Nesse sentido, o espiritual é aquilo que dissolve as antinomias e novas categorias, do gênero sagrado/profano ou divino/não-divino.

A natureza inteira é sentida como um gigantesco templo: das menores partículas às mais longínquas galáxias, a integralidade do cosmos é um lugar santo. Os edifícios religiosos são apenas evocações, representações simbólicas, assim como as danças rituais são apenas o eco e a mímica da eterna dança de Shiva, a prodigiosa e infinita sarabanda criadora do espaço-tempo, com suas torrentes de energia, seus milhares de sóis engendrados e destruídos, sua miríade de espécies e criaturas em incessante metamorfose.

De fato, não há uma sensação, uma emoção, um pensamento, uma ação, que não seja espiritual, pois o Brama - o absoluto - está em tudo, em todo lugar, sempre, e os seres, as coisas, os acontecimentos transitórios, perecíveis, fugazes - são as múltiplas manifestações, atividades, disfarces e representações dessa realidade única.

O guru Outra palavra-chave do hinduísmo, hoje em dia muito malcompreendida e desacreditada, é guru.

Personagem eminentemente tradicional, o guru representa em toda a civilização da Índia um papel essencial e idêntico, através das diferentes correntes religiosas e metafísicas.

No Ocidente, a imagem que se tem do guru (inspirada na prática de certas seitas) não é, absolutamente, lisonjeira: escroque ou iluminado, vivendo faustosamente às custas de vítimas

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crédulas, abusando de adolescentes desorientados, facilmente manipuláveis e reduzidos por ele à condição de verdadeiros escravos, esse charlatão merece, aos olhos do grande público, um tribunal correcional.

É verdade que a condição de guru pode ser usurpada, no Oriente como no Ocidente, por pessoas pouco escrupulosas, ávidas de exercer um poder físico e psíquico sobre seus semelhantes. Sempre existiram falsos médicos, sacerdotes indignos, tiranos domésticos.

Para compreender a verdadeira natureza do guru e sua vocação bastante específica, é necessário lembrar que, ao contrário do que se passa conosco, a transmissão do ensino não tem, na Índia, nenhum caráter livresco. O essencial não está nem na erudição, nem na soma de conhecimentos acumulados, nem no brio intelectual, mas na realização pessoal, no trabalho de transformação interior. A verdade não pode ser fixada em sistemas, aprisionada em textos ou proposições dialéticas, mas deve ser realizada e percebida pela própria pessoa, no mais íntimo de seu ser. E o saber livresco é, nesse sentido, uma ajuda de bem pouco valor. Quando muito pode suscitar uma reflexão ou estimular certas interrogações. Mas o processo de mutação interior, que é a conduta espiritual propriamente dita, implica uma tal revolução e uma tabula rasa das velhas maneiras de sentir, de pensar, de julgar e de reagir, que se torna necessário, para bem levar a cabo um tal empreendimento e liberar tais energia, uma fonte de ajuda e de inspiração intensa, direta, ao mesmo tempo prática, viva, personalizada, inteiramente adaptada aos problemas e à sensibilidade de cada um.

É aqui que intervém o guia qualificado, quer dizer, aquele (ou aquela) que, tendo realizado essa transformação interior e resolvido suas próprias contradições, estando livre dos mecanismos constrangedores do desejo e do medo, tendo atingido, no centro de seu ser e de todas as coisas, uma paz sem limites, uma serenidade inabalável, para além de toda compreensão, pode ajudar os que, prisioneiros de suas angústias, procuram tateando nas trevas.

É claro, a consciência do despertar - a imersão no absoluto - é incomunicável. Mas o guru pode transmitir uma experiência, indicar as etapas de seu próprio caminho, ensinar os diversos modos práticos que o prepararam para o derradeiro desfecho. Esses modos estão, evidentemente, ligados à sua personalidade, intimamente ajustados às suas tendências, aptidões, limites e condicionamentos. Cada pessoa deve, portanto, achar o guia, o mestre cujo modo de ensino corresponde ao seu próprio temperamento, às suas opções, motivações e linhas de força mais profundas.

A procura do guru pode ser longa e fastidiosa. Não basta reconhecer e venerar o brilho e a autoridade de um desses despertos para tornar-se seu discípulo. Os laços que se formam entre um buscador e seu guia é infinitamente mais sutis, mais íntimos, mais fundamentais. Trata-se, ao mesmo tempo, de morrer e renascer, e aqui o guru aparece ora como cirurgião, ora como parteiro. A imensidade do resultado final implica, às vezes, processos draconianos e necessita, por parte dos discípulos, de um conjunto de disposições de espírito e de coração: ardor, perseverança, coragem, sinceridade, lucidez. Não há lugar para o amadorismo ou meias-medidas, nem para complacências ou equívocos. A sanção é imediata e a única vítima é a própria pessoa.

Os itinerários são, portanto, infinitamente diversos, e o guru adapta seu ensino não somente ao acaso de cada discípulo, mas a cada fase, a cada etapa, a cada momento.

A uma mesma pergunta feita por dois interlocutores diferentes o sábio pode muito bem fornecer respostas divergentes, mesmo violentamente contraditórias, pois nenhuma pergunta pode ser isolada de quem a apresentou, de seu contexto e de suas motivações específicas.

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De fato, jamais o guru executa o trabalho no lugar de seu discípulo. Não lhe fornece nenhuma receita infalível, nenhuma fórmula mágica: ajuda-o a percorrer um certo caminho, indicando-lhe os perigos e os atalhos, os melhores desvios, as armadilhas e os becos sem saída a serem evitados; ensina-o a utilizar-se das armas que lhe permitirão abater o dragão que guarda o templo. Mas é o discípulo, e só ele, quem deve caminhar, combater, transpor o umbral supremo.

A confiança As relações com o guru não estão subordinadas a nenhuma regra. Podem estender-se por anos ou mesmo por toda uma vida, podem ser espaçadas ou regulares, tanto quanto podem reduzir-se a um pequeno número de encontros, de excepcional intensidade: tudo depende da maturidade do discípulo. Às vezes é suficiente uma única entrevista, ou mesmo uma simples troca de olhares, para provocar um verdadeiro abalo interior de onde procede a uma evidência e que estabelecerá uma certeza envolvendo e incluindo a totalidade do ser em níveis bem mais profundos e decisivos que uma simples convicção intelectual. O encaminhamento espiritual de Arnaud Desjardins junto a seu guru Swami Prajnanpad durou nove anos, ao passo que Shri Nisargadatta Maharaj conta que se encontrou com seu guru um pequeno número de vezes.

É necessário, da parte do discípulo, uma confiança de um gênero bastante especial, aquela que inspira as empresas mais audaciosas. Não se trata de acreditar cegamente nas asserções do mestre e depois fixar-se tranqüilamente em posições teológicas ou filosóficas, mas de fazer a teoria transformar-se em prática, converter as palavras do guru em atos, em novos modos de consciência e comportamento. É como um tratamento médico: a mais essencial das receitas não passa de um pedaço de papel. Não é ela que cura, mas a constância e a vontade do doente em segui-Ia. Se este questiona seus termos ou negligencia algum detalhe, a eficácia do tratamento estará comprometida.

Este problema da confiança é primordial. O Ocidente admite e até louva a fé que se tem em uma crença ou numa opinião; mas desconfia profundamente da fé que é dedicada a um ser de carne e osso, como se nisso existisse um culto malsão, perigoso ou mesmo indecente e escandaloso.

As imagens de multidões prosternadas aos pés de certos sábios, no Oriente, ofuscam o grande público europeu e americano, que vê aí apenas idolatria e obscurantismo.

Entretanto, cotidianamente damos provas de confiança radical na competência de nossos especialistas em inúmeros campos onde o menor erro técnico pode desencadear conseqüências trágicas e irreparáveis - mutilações, doenças, morte. A vida seria possível se, constantemente, tivéssemos que duvidar do concessionário que nos vende o carro, do químico que manipula os medicamentos etc.?

À sua maneira, o guru é igualmente um especialista competente, mas sua especialidade é o absoluto, a eternidade - o meio de passar de um estado de ignorância, de ilusão, de confusão, de dispersão mental, de excitação emocional a esse estado de liberdade interior, de pura consciência e de felicidade que é nossa verdadeira natureza original.

Um comprometimento total Num célebre versículo do Upanishad, o discípulo, dirigindo-se ao guru, diz sob forma de oração:

"Do irreal conduza-nos ao real, das trevas conduza-nos à luz, da morte conduza-nos à imortalidade". Em outros termos, faça com que vejamos o ser imutável e autêntico atrás das

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aparências enganosas, faça com que saiamos de nosso sono obscuro, desperte-nos para o puro conhecimento, a realidade última e inalterável, nós que nos debatemos no transitório e no perecível.

A saudação ao guru - que os hindus chamam pranam -, que tanto choca os ocidentais, não se destina a um homem ou uma mulher enquanto indivíduos, mas a uma consciência transformada, inteiramente estabelecida em Brama, definitivamente morta para todo impulso ou projeção egoísta, para toda emoção de medo ou avidez, para todo conflito e separatividade.

De fato, é diante de seu próprio Eu realizado (Atman), manifestado, visível que o discípulo se prosterna, ou diante de uma prefiguração viva de sua própria realização espiritual a ser atingida. O ritual exprime e concretiza, de certo modo, o reconhecimento de uma realidade indestrutível e presente que engloba e transcende, ao mesmo tempo, a pessoa do discípulo e a do guru. É um ato que simboliza a dádiva completa do discípulo, seu comprometimento integral no caminho da libertação. Pois, nessa aventura interior que na Índia é chamada Sadhana, não pode haver comprometimento parcial e condicional – do contrário se tornaria uma paródia, uma caricatura, alguns trejeitos a que se chamaria oração, algumas encenações que se denominariam ioga e estados um tanto nebuloso que se tomariam por meditação.

A transparência do guru Seguidamente se diz que, quando o guru e o discípulo estão juntos, não há duas pessoas, mas apenas uma: o discípulo.

Se conseguir verdadeiramente libertar-se dos medos, das frustrações, dos arrebatamentos emocionais, das projeções do inconsciente, o sábio não está mais dominado por critérios e julgamentos subjetivos, escravizado aos poderosos mecanismos das simpatias e antipatias, do "gosto-não gosto". Seu ego desapareceu, o que não significa, absolutamente, que ele se torna invisível e se desfaz no éter (ele está, ao contrário, admiravelmente presente), mas sua consciência não está mais identificada com os processos físicos e mentais, todos eles relativos e fugazes - corpo, sensações, emoções, idéias -, pois seu ser é um com todas as coisas e todas as criaturas através de suas flutuações, diferenças e contradições.

O guru compreende que, fundamentalmente, não é outro senão o discípulo, pois que o percebe em sua última e infinita realidade, sem separação, sem dualidade, a não ser aquela que o próprio discípulo projeta e da qual resultam todas as suas angústias.

O guru vê o discípulo tal como ele é: manifestação instável do ser total e único. O discípulo, cuja percepção está deformada por seus julgamentos, emoções, simpatias e antipatias, pelas projeções de seu inconsciente, têm do guru uma visão fragmentária, falseada pela intensidade de seus receios, de suas obsessões, de suas perguntas múltiplas e contraditórias. É através desse espelho deformante de sua mente que ele interpreta o comportamento do sábio: "Ele me aprecia, me rejeita, me ignora, prefere um outro" etc. E segue os ensinamentos de um guru quase inteiramente imaginário.

Tal é justamente, um dos objetivos essenciais de toda orientação espiritual: conseguir dissipar as camadas de névoa fantasmagórica que envolve todos os nossos contatos e experiências a fim de ver simplesmente o que é.

Cada um de nós vive num mundo particular, inteiramente fechado e subjetivo, herdado de imagens residuais do passado, de medos recalcados, de sonhos desfeitos, de frustrações

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acumuladas. É como uma contínua miragem, um filme terrivelmente trepidante e barulhento cujo turbilhão de seqüências recobre e escurece a transparente realidade do instante presente.

O que vemos não é tal ser, tal acontecimento, mas a opinião que deles temos, os desejos e medos que nos inspiram, as lembranças felizes ou infelizes a eles associadas. Nenhuma circunstância é, em si mesma, boa ou má, nenhum indivíduo é, em si mesmo, belo ou feio, admirável ou infame. Enquanto o mundo revelar-se a nós através desse filtro de julgamentos e qualificações, desse caleidoscópio emocional, não viveremos na realidade, mas nas projeções de nosso próprio ego, ávido e ansioso.

Esse universo, aque chamamos orgulhosamente "nossa personalidade", que consideramos como nosso mais precioso tesouro, cuja contestação por outra pessoa parece-nos insuportável, é, na realidade, uma prisão que nos mantém implacavelmente fechados em nós mesmos, sem abertura ou comunicação, pois dialogamos apenas com o eco deformado de nossas próprias solicitações e lamúrias.

O guru conseguiu evadir-se das masmorras do ego e acordou para o mundo real, fazendo malograr a ditadura do eu e do meu. Ex-prisioneiro, conhecendo bem a planta da prisão, seu regulamento administrativo, as horas de ronda, os momentos e as zonas de menor vigilância, a altura dos muros e a profundidade dos fossos, pode facilitar a evasão de outros cativos.

Psicoterapia e espiritualidade Existe um certo parentesco entre um guru e um psicoterapeuta, na medida em que qualquer trabalho de transformação interior necessita de uma verdadeira limpeza do inconsciente: nenhum resultado espiritual durável pode ser obtido com a repressão e o recalque, que extravasam numa compensação neurótica que beira a histeria.

Mas o papel do psicoterapeuta consiste apenas em ajudar seus semelhantes a se sentirem um pouco melhor ou um pouco menos mal no interior da prisão; pode-se sempre melhorar as condições do encarceramento, até mesmo criar um conforto macio e uma rotina tranqüilizadora. O psicoterapeuta raramente toma conhecimento da função e da realidade alienante do ego, do qual ele nem suspeita possa alguém libertar-se.

Para o guru, sentir-se um pouco melhor ou um pouco menos mal em sua cela é bastante ridículo. Tanto o psicoterapeuta quanto o guru devem ter um conhecimento profundo e detalhado do espaço mental. Mas o primeiro mostra esse conhecimento procurando tornar o local suportável, enquanto o segundo convida-nos a sair do labirinto, a desertar definitivamente desse lugar de tormentos.

Outra diferença capital está no fato de que, quaisquer que sejam sua escola e seu método, o psicoterapeuta não é absolutamente obrigado a ter resolvido seus problemas e suas contradições pessoais, o que, com certos pacientes, torna muitas vezes inevitáveis uma implicação pessoal, impressões e reações negativas. Em resumo, o psicoterapeuta não está pessoalmente ao abrigo das perturbações e delírios que trata nos outros. Ao passo que o guru - se é verdadeiramente qualificado.- cortou definitivamente, no fundo de seu ser, o nó górdio das tensões, conflitos e angústias. As emoções, desejos e medos do discípulo o atingem ou lhe dizem respeito tanto quanto o relato de um pesadelo ou terrores noturnos feito por uma criança atinge a seus pais. Sua imperturbável neutralidade, sua perfeita transparência interior permitem-lhe ouvir com uma paciência e disponibilidade sem limites, porque nada esperando nem admiração, nem gratidão, nem vantagens de qualquer espécie -, o dom que ele faz, totalmente livre e gratuito, merece apenas o nome de amor.

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A ausência de ambição Esse aspecto deve ser destacado porque constitui, se não um critério, pelo menos um indício sério de autêntica realização interior. O verdadeiro guru nada faz para aumentar o número de seus discípulos, nem mesmo, aliás, para ter discípulos. Absolutamente indiferente à censura e ao elogio, ao ódio e à adulação, está livre de qualquer noção separadora, a começar precisamente pela de guru e discípulo. O guru só existe aos olhos do discípulo. Aos olhos do sábio há apenas uma realidade única, que se manifesta por uma infinidade de vibrações físicas e psíquicas.

No Ocidente, conhecemos alguns homens e mulheres que as circunstâncias tornaram célebres sem que tivessem, eles mesmos, qualquer ambição a esse respeito. Mas centenas de sábios e de santos, cujo comportamento e ensino foram igualmente notáveis, continuam para sempre no anonimato. Qualquer comparação nesse domínio seria absurda. Shri Nisargadatta Maharaj, a quem um visitante perguntou o que pensava de Shri Babaji, respondeu: “Mas que idéia, perguntar-me isso. Pode-se perguntar ao espaço de Bombaim o que ele pensa do espaço de Poona? Os nomes são diferentes, mas o espaço não. A palavra”.

Babaji é apenas um endereço. Quem vive nesse endereço?"

O paradoxo do guru Existe algo que poderíamos denominar 'paradoxo do guru e que Krishnamurti denunciou com um rigor impiedoso e uma acuidade notável.

Sua grande crítica é que todo mestre espiritual, qualquer que seja sua própria liberdade interior, apenas acrescenta mais condicionamentos aos anteriores, substitui as antigas dependências por novas. A Libertação é uma rejeição de toda imagem, de todo valor admitido, de todo esquema preestabelecido. Como se pode atingir a adesão ao real - ou seja, ao puro desconhecido, ao inatingível instante presente - com essa fixação em doutrinas, técnicas, rituais, disciplinas, e num indivíduo sobre o qual seriam projetados fatalmente as obsessões e os sonhos? A característica da ignorância é deixar-nos obnubilar por noções mortas e estereotipadas - psicológicas, religiosas, morais -, de olhar sempre com os olhos do passado, que nos impede de ver a vida tal como ela é. Não é apegando-nos desesperadamente aos conceitos de espiritualidade, de divindade, de despertar que poderemos recuperar-nos e despertar efetivamente. É alguma coisa que devemos conseguir sozinhos, sem intermediários, sob pena de errar de imagem em imagem, de alienação em alienação. "Se encontrardes o Buda, matai-o!", diz um provérbio zen.

Digamos desde já que seria bastante tolo pretender, aqui, justificar ou condenar quem quer que seja. A questão, aliás, não está colocada nesses termos. Querer explorar tal ou qual proposição de Krishnamurti para estabelecer uma tese "antiguru" seria, de qualquer maneira, basicamente contrária ao ensino mesmo de Krishnamurti.

O importante é a atitude interior: todo método pode conduzir a uma rotina e a um entorpecimento. Mas a ausência de método pode igualmente ser considerada um método. Krishnamurti é considerado por muitos como uma autoridade venerável, apesar de ter sempre rejeitado toda espécie de autoridade, a começar pela sua. E entre seus seguidores ouve-se constantemente: “Krishnaji diz... Krishnaji pensa..."

No fundo, o problema não é decidir se é necessário ou se não é necessário um guru, pois isso significa permanecer na periferia mais superficial das coisas e contentar-se em julgá-las pelo lado de fora. O problema é eminentemente pessoal, particular, irredutível a generalizações.

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Para desembaraçá-los de falsos conceitos “, diz Nisargadatta Maharaj”, eu vos fornecerei outros conceitos, que são como uma agulha, com a qual podeis extrair um espinho do pé. Mas, se deixardes a agulha no pé no lugar do espinho, o que ganhastes?

Uma vez que meus conceitos cumpriram seu papel, é necessário rejeitá-los. Jogai fora o espinho e a agulha." (Nisargadatta Maharaj, Sois, Les Deux Océans)

O aprendizado da não-dependência A Libertação (Moksha) caracteriza-se por um estado de não-dependência absoluta, difícil de ser compreendida - ou mesmo admitida - pela imensa maioria de indivíduos cuja existência é, do primeiro ao último momento, uma trama de dependências físicas, materiais, afetivos e culturais. Dependência de uma família, de um meio, de bens emocionais, de uma situação adquirida, de bens acumulados, de uma imagem a sustentar, de preconceitos e hábitos inextirpável, de secretas angústias e terrores ocultos; dependência de certos princípios, do que se deve e do que não se deve fazer, de ter ou não ter, de parecer ou não parecer; dependência do que se quer obstinadamente conquistar ou conservar.

O sábio é aquele que compreendeu que, ao despojar-se de tudo, até mesmo de seu próprio ego, desembaraçou-se ao mesmo tempo de todos os fardos que o oprimiam, consentindo em uma total não-dependência relativamente a tudo o que antes governava sua vida, reduzindo-a a um cego encadeamento de ações e reações - como se conseguisse desintoxicar-se de hábitos perversos e inúteis, que os outros homens consideram vitais e indispensáveis.

Em seu novo estado, seu principal papel como guru consiste em guiar seus semelhantes – aqueles que o solicitam com ardor e seriedade - da dependência para a não-dependência. É uma missão pedagógica comparável à dos pais que ensinam seus filhos a usar progressivamente suas próprias asas.

Aqui, o guru ajuda o discípulo a conduzir uma transformação interior no fim da qual ele não terá mais necessidade de qualquer espécie de ajuda, portanto, antes de mais nada, não terá mais necessidade de seu guia. Resumindo, pode-se dizer que o guru ensina o discípulo a desembaraçar-se dele para melhor juntar-se a ele, pois é necessário que o guru e o discípulo desapareçam como tais para serem um na realidade última de todas as coisas.

O guru interior Na Índia a devoção ao guru tem fundamentos e prolongamentos que ultrapassam de muito a própria pessoa do instrutor, mesmo se ele for um libertado vivo, um autêntico Jivan Mukta. O guru de carne e osso, cujo ensinamento se segue, é considerado como a simples manifestação física, a expressão concreta, exterior, de um Guru interior (ou Sad Guru) que é, no discípulo, como uma fonte intuitiva de suprema sabedoria e de quem o guru de carne e osso é apenas um poderoso reflexo projetado no mundo dos fenômenos. As palavras que alargam e fecundam a consciência do discípulo repercutem numa consciência latente, adormecida, porém presente. Para que tenham um poder transformador e libertador, é necessário que provenham, não de uma boca exterior, mas do âmago mais profundo daquele que escuta - do coração mesmo de seu ser.

Esse guru interior, cada um de nós o traz consigo, e é ele que se exprime cada vez que uma palavra de sabedoria nos toca ou esclarece, mesmo por uma fração de segundo.

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Mas temos em nós tantas outras vozes teimosas, febris, clamorosas, que procuram fazer ouvir seus gemidos, seus pedidos de socorro, suas exigências, que acabam abafando, com sua constante dissonância, esse canto calmo e doce que em nós murmura nos confins do silêncio.

Muitas vezes o papel do guru exterior é simplesmente o de fazer cessar o ruído e dizer: "Agora escutai! Escutem, dentro de vosso ser, cantar a eternidade...”

A graça do guru Há um outro aspecto determinante, sem o qual todo caminho espiritual- toda Sadhana - toma-se uma distração intelectual ou uma efervescência emocional. É o que os hindus chamam de "a graça do gum".

"No verdadeiro ensino, que já não requer o recolhimento fora do mundo", escreve Arnaud Desjardins, "é o mundo inteiro que se torna mosteiro ou ashram é o mundo inteiro, a cada 24 horas, que é considerado a graça do guru operando (00')' O mais hábil, o mais eficaz, o mais genial dos gurus não poderia criar para mim, em seu eremitério ou mosteiro, condições mais frutíferas, mais proveitosas, mais habilmente difíceis que aquelas que a vida me proporciona (...). Se minha determinação é suficientemente grande, não tenho necessidade do sino ou do gongo do mosteiro, não tenho necessidade de roupas, não tenho necessidade de perceber o guru a 5 ou 25 metros para pôr em prática seu ensino, e a vida no século torna-se ainda mais útil que no eremitério. Desperto pela manhã num mosteiro amplificado à escala do planeta, e a partir daí tudo o que me acontece é a graça do guru. Todo esse universo não é senão a graça do guru operando para ajudar-me a progredir. Posso dizer de tudo: foi meu guru que o quis para mim, para o meu bem. Essa fadiga vai me permitir progredir, esse mal-estar vai me permitir progredir, essa má notícia vai me permitir progredir. Esse contratempo, essa inquietação, tudo o que acontece eu recebo como a graça do guru operando. “(Amaud Desjardins, A ia Recherche du Sai, La Table Ronde)”.

Essa situação que assimila cada circunstância da vida a uma prova libertadora, a uma possibilidade de Despertar, desejada e proposta pelo guru, confundese com os grandes arrebatamentos do misticismo cristão: "Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus", “Seja feita a Tua vontade, e não a minha"

Numa tal abertura, não resta o menor lugar para qualquer medo ou qualquer recusa: tudo é bênção, tudo é amor divino, tudo é Brama.

Capítulo III Perspectivas Metafísicas Somente o absoluto é real O tema filosófico central da cultura ocidental gira em torno de um certo número de questões que podem ser formuladas da seguinte maneira: De onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos aqui? Quais são o sentido e a finalidade da existência?

No Oriente, particularmente na Índia, a interrogação de base é bastante diferente: O que 'é real? O que é a realidade? O mundo é real? Sou real?

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No Ocidente, a minha realidade enquanto indivíduo e a do universo que me cerca não são seriamente tratadas - a não ser em alguns exercícios de acrobacia puramente intelectual. Nesse ponto o desenvolvimento do hinduísmo é de uma exigência e de um rigor extremo.

A primeira observação é que as teorias mais grandiosas e os sistemas mais hábeis são bastante irrelevantes, pois o pensamento que os concebe é um instrumento relativo e limitado. Ora, o intelecto não pode ser dissociado do indivíduo, ele próprio tributário de uma certa posição no espaço e no tempo, de critérios subjetivos e de múltiplos condicionamentos, psicológicos, sociais etc.

A questão inicial não é, portanto, o que é necessário pensar, mas quem pensa, quem está atrás de todo pensamento.

A dificuldade está em que a resposta seja ela qual for, será ainda forçosamente Um pensamento, portanto subjetiva e não-confiável. Assim, não se pode conceber e formular a verdade objetiva. Mas essa constatação pertence ao formulável e ao concebível.

Pode-se sair desse círculo vicioso?

É necessário abordar o problema de outro modo.

Que é que não pode ser desmentido ou contradito por nada? Que é que é inalterável e imutável, cuja validade não pode ser posta em dúvida em qualquer lugar, época ou circunstância? Que é que é dotado de uma realidade estável, permanente, invariável?

De fato, somente o Absoluto responde a tais exigências. O que confirma que somente o Absoluto é verdadeira e totalmente real. De modo recíproco, o real só pode ser o Absoluto.

Eis aí uma proposição bem surpreendente e até mesmo, à primeira vista, extravagante, na medida em que parece escarnecer do senso comum mais elementar e das bases da experiência corrente.

Somente o Absoluto seria real? Todos os fenômenos relativos que compõem ao mesmo tempo minha própria vida, a de milhões de seres que me rodeiam e o conjunto do cosmos seria sem consistência, ilusórios? Mas se me machuco sinto dor se caio do alto da torre Eiffel morro. Isso não é bem real?

À medida que formos aprofundando o ponto de vista da Índia vedântica faremos tábula rasa de todas as idéias preconcebidas, de todos nossos hábitos de pensamento, de nossas certezas mais enraizadas. A perspectiva em que se situa o vedanta não-dualista varre o que sempre aceitamos como evidente e irrefutável.

Dito isso, nunca será demais lembrar que seu objetivo liga-se não a um saber, a uma doutrina, a uma construção mental, mas a uma experiência vivida, a uma percepção direta, a uma consciência transformada, completamente diferentes de nossa maneira usual de consciência.

Como voltar à fonte? Em sua pesquisa sobre a natureza da realidade (ou sobre o Eu, em sânscrito Atma Vichara), os sábios da Índia julgam necessário partir do ponto preciso em que estamos, neste mesmo momento, para tentar atingir progressivamente a fonte - a origem de nosso ser e de todas as coisas.

Uma simples observação mostra que, ao nível do mundo manifestado, todos os fenômenos inscrevem-se e desenvolvem-se dentro de uma tripla dimensão, espaço, tempo e causalidade. É um quadro universal, do qual não escapa nenhum processo físico ou psíquico. Todo

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acontecimento implica necessariamente uma localização no espaço, uma sucessão temporal, e resulta fatalmente de um encadeamento de causas e efeitos.

Essas três categorias - espaço, tempo, causalidade - parecem, à primeira vista, ter uma realidade própria, perfeitamente exterior a mim, que me condiciona estreitamente e me submete a angustiantes limitações materiais, biológicas e mentais: separação, isolamento, sofrimento, degradação e morte. Tal é, ao menos, o veredicto das aparências.

Levando mais longe suas investigações, bem depressa conseguiram os sábios da Índia desfazer essas aparências enganadoras.

O espaço O espaço, por exemplo, enquanto distância, volume ou direção referenciava, outra coisa não é senão um produto de minha própria avaliação, de minha própria escala de medidas, de relações, de comparações.

Um objeto não é em si mesmo nem grande nem pequeno. Só tem tamanho quando relacionado a alguma coisa, a algo determinado. Poderá ser imenso na ótica de um micróbio e ínfimo na de uma montanha. Qual é seu verdadeiro tamanho, sua dimensão intrínseca? Não os tem, ou os tem todos.

Em outras palavras, ele só se manifesta no espaço relativo, mensurável, através do meu olhar.

Isso não significa, absolutamente, que esse objeto não tenha existência fora de mim, mas sim que não possui forma definida exterior à minha consciência, dissociável de minhas estruturas mentais e sensoriais. Posso pretender que minha percepção é mais "justa", no absoluto, que a de um daltônico? A norma, nesse domínio, é apenas uma questão de estatística.

Essa relatividade aplica-se também ao tamanho e à forma do meu próprio corpo.

Avançando um pouco mais, se o espaço, enquanto conjunto de relações localizáveis e mensuráveis é tributário de minha consciência, então onde estou?

Quando digo estou em tal lugar, vou a tal outro, eu me projeto, de uma forma ou de outra, para fora de mim mesmo, como se fizesse parte do espetáculo.

Mas onde está aquele que observa, o espectador escondido tanto da paisagem quanto de meu corpo, de minhas sensações, de meus pensamentos?

De fato, posso situar apenas o que é abarcado pela minha visão, tal elemento relacionado com tal outro, mesmo quando se trata de uma galáxia longínqua, da mercearia da esquina, da caneta que escreve estas linhas ou do coração que sinto bater em meu peito. Mas a visão mesma, em relação a que posso situá-la? Ela está em todo lugar e não está em lugar algum. Onde estou eu, o espectador de onde procede a essa visão? Estou em todo lugar e não estou em lugar algum.

Uma objeção acode sempre ao espírito: o espaço existe fora de mim, portanto ocupo nele uma posição precisa, pois 'que ele existia antes do meu nascimento e continuará a existir após a minha morte.

Esta afirmação, que parece cheia de bom senso, é, na realidade, um enorme contra-senso. Implica, com efeito, a possibilidade, para mim, de ver o que se passa fora da minha presença, de estar quando não estou.

Sob qualquer ângulo que se examine o problema, acaba-se sendo forçado a admitir que o mundo fenomenal percebido como realidade exterior - o universo observável - é inteiramente dependente

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do observador. Os trabalhos da física quântica desembocaram numa perspectiva consideravelmente semelhante.

Onde estou? Voltemos à terra: estou em tal casa, em tal região, em tal continente, em tal planeta, tal sistema solar, ele mesmo em tal galáxia, ela mesma onde, com certeza? Qualquer que seja a natureza dos envoltórios sucessivos e a imensidade das escalas concebíveis finaliza-se sempre no infinito, quer dizer, na nossa própria consciência, o infinito não sendo nem visível nem mensurável.

O tempo A segunda questão é: quando eu sou?

Ainda aqui o bom senso intervém para soprar-me respostas do gênero estou em tal ano, tal dia, tal hora. O inconveniente é que, quanto mais exato quero ser, mais certo estou de enganar-me. Pois, no momento mesmo em que enuncio o instante - a hora, o minuto, o segundo - ele já passou e parece divertir-se comigo. Quando se pretende agarrá-la, o instante vivido torna-se essencialmente fugitivo, sempre ainda por vir e sempre já passado.

Posso então tentar situar-me relativamente a uma idade, numa progressão evolutiva ao mesmo tempo pessoal e histórica: vivo em tal seqüência de acontecimentos mundiais, em tal encruzilhada de minha vida, entre 'esta e aquela série de experiências.

Esse raciocínio é feito em termos de itinerário e de trajetória, como se o tempo fosse, de fato, espaço. Meu passado, o do cosmos, está tão para trás de mim quanto o futuro está para frente. Um não é mais, o outro não é ainda, e ambos existem apenas agora, na consciência que tenho deles neste mesmo instante.

O incidente de há cinco minutos não e tão nem mais perto nem mais longe, é tão passado quanto a Guerra dos Cem Anos, o fim dos brontosáurios ou a formação dos anéis de Saturno.

Á esta pergunta quando eu sou? há apenas uma resposta: eu sou agora, imediatamente, nem antes nem depois, apenas agora.

Mas e a memória, e as lembranças? Não serão elas uma prova da persistente realidade do passado? Perguntemos, de preferência, quando funciona a memória, quando surgem as lembranças: só há memória e lembranças no presente. As imagens do passado são apenas formas atuais de minha consciência.

Ao mesmo tempo inatingível e único real, este agora é imutável, idêntico, eterno: sempre houve, sempre haverá o agora, e nada além do agora. Pode se mesmo dizer que a criação inteira é apenas o jogo polimorfo, variegado, genialmente inventivo deste eterno agora, suas formas, seus corpos, seus semblantes infinitamente variados.

A causalidade Depois do espaço e do tempo, a causalidade.

Todo processo - químico, fisiológico, psicológico - desenvolve-se segundo um estrito encadeamento de causa e efeito que, do nascimento à morte, parece submeter à existência à férula de urna lei implacável. Tal é, pelo menos, a impressão que se tem quando se estudam os fenômenos fragmentariamente: derrubo um copo, ele cai e quebra-se; machuco um dedo, ele sangra; insulto um passante, ele replica; etc.

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Quando procuramos a causa exata de um fenômeno, esbarramos com sérias dificuldades. Por exemplo, no caso do copo que se quebra, qual é a verdadeira causa? Seria o peso do objeto? A fragilidade de seu material? As leis de atração terrestre? Ou, ainda, meu próprio desajeitamento?

Mesmo quando se isola e se favorece, um pouco arbitrariamente, tal ou qual fator, deve-se determinar de que processo ele é conseqüência e assim sucessivamente. Chega-se logo à origem das espécies e à formação do mundo.

De fato, nenhum fenômeno pode ser isolado de urna trama de interconexões, de um tecido de causas mútuas e interdependentes que se repetem ao infinito. O que quer dizer que um acontecimento não resulta de urna causa, mas de urna infinidade de causas, onde cada seqüência particular exprime e contém, de urna maneira específica e única, a totalidade da criação.

Nessa realidade global, onde tudo está inextricavelmente ligado, nós é que despedaçamos, fragmentamos, partimos essa imensidade movente e fluida em coisas, em categorias, em peças de construção mecânica. O que são, efetivamente, os encadeamentos de causas e efeitos fora da consciência que os descreve e os regulamenta?

"Não ternos necessidade da causalidade", escreve Alan Watts, "para explicar corno um acontecimento é influenciado por outro que o precedeu. Imaginemos que olho através da fresta de urna paliçada no momento em que urna serpente passa do outro lado. Jamais havia visto essa serpente antes, ignoro tudo a seu respeito. Através da fresta vejo primeiramente a cabeça, depois um corpo muito alongado e enfim a cauda. Depois disso a serpente faz meia volta e retoma no outro sentido. Vejo novamente a cabeça e, após um momento, a cauda. Se chamar a cabeça e a cauda acontecimentos, pensarei que o acontecimento "cabeça" é a causa do acontecimento "cauda", a cauda sendo o efeito. Mas, se eu olhar a serpente em seu conjunto, vejo urna unidade cabeça-cauda e seria completamente absurdo dizer que a cabeça da serpente é a causa da cauda, corno se a serpente começasse sua existência pela cabeça, a cauda aparecendo em seguida. É já sob a forma de um conjunto cabeça-cauda que a serpente sai de seu ovo; é exatamente da mesma maneira que todos os acontecimentos são um só e mesmo acontecimento. O que percebemos, quando nos referimos a acontecimentos diferentes, são as diferentes seqüências de um fenômeno contínuo.” (Alan Watts, L'Envers du Néant, Denoel)

Quem sou eu? Assim o espaço, o tempo e a causalidade aparecem como construções artificiais, corno a fragmentação arbitrária de urna realidade global, de um todo indissolúvel, onde a consciência do observador e o espetáculo observado são apenas um.

Corno o mundo não é separável da consciência que dele tenho, perguntar "Que é o mundo?" é urna maneira terrivelmente complicada e torcida de perguntar: "Quem sou eu?"

Eis a questão, ao mesmo tempo primordial e última, da qual todas as outras são apenas prolongamentos, casos particulares. Esse "Quem sou eu?" é uma das bases do ensino vedântico.

Uma observação mais atenta nos mostra que, no plano dos fenômenos fisiológicos e dos processos psíquicos, tudo se modifica incessantemente e nada é jamais perfeitamente idêntico. Ora, se não existisse em mim uma realidade idêntica e imutável, como poderia eu reconhecer a mudança e a diferença? São necessárias balizas fixas - ao menos relativamente - para detectar o movimento.

Quando penso''eu", tenho a impressão de saber perfeitamente de quem se trata; não é minha experiência a mais evidente e a mais imediata, minha certeza a mais íntima e a mais invariável?

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Um espírito bastante hábil pode conseguir fazer-me duvidar de mil coisas - da existência de Hitler ou mesmo do globo terrestre; de minha própria existência, jamais.

O problema é: Quem existe? Quem é esse eu cuja permanência e continuidade me parecem tão evidentes?

Por outro lado, meu corpo não é uma coisa isolada, separável do mundo físico que o rodeia. Ele é o ar que respira, o alimento que absorve, o calor que o banha, o solo que o sustenta, a terra sobre a qual ele anda e repousa, a luz do sol, a alternância dos dias e das noites, o ritmo das estações, o conjunto das energias e vibrações que ele recebe e assimila. Nesse sentido posso dizer que, de fato, é o cosmos inteiro que é o meu corpo, e não somente um pacote de vísceras e órgãos envolvido em um "saco de pele", para usar a bela expressão de Alan Watts, como se houvesse uma demarcação radical, uma verdadeira película de nada a isolar a superfície de minha epiderme do resto do universo.

Dizer" eu sou o corpo" é, portanto, uma enorme ilusão de ótica, uma perspectiva grosseiramente errada.

Os níveis sutis Consideremos agora níveis mais sutis – por exemplo, o do domínio emocional e afetivo: atrações, repulsões, simpatias, antipatias, toda a multidão fervilhante e contraditória de impulsos, pendores e paixões de toda espécie.

Ainda aqui todo processo passional está em contínua mutação. A emoção é, antes de tudo, um fenômeno movente e instável, condenado a desaparecer cedo ou tarde para ceder o lugar a emoções completamente diferentes ou mesmo oposto. O que outrora nos exaltava ou indignava pode muito bem deixar-nos hoje profundamente indiferentes, e inversamente. Aquele ou aquela a quem declaro hoje meu amor eterno pode inspirar-me amanhã uma aversão incoercível.

Onde está, em tudo isso, o eu inalterável?

Pertencerá ele ao plano mais abstrato das faculdades intelectuais e das idéias? Mas que pode haver de mais inconstante, disparatado e mesmo versátil que essa turbilhonante atividade mental, essa sucessão de opiniões e conceitos que se perseguem mutuamente?

Às vezes somos tentados a associar o eu e a memória (particularmente o gigantesco e obscuro território do inconsciente) como elemento fundamental de permanência e continuidade.

Mas as próprias lembranças estão em incessante flutuação, oscilando, baralhando-se, deformando-se com o tempo, ao arbítrio das circunstâncias. Jamais temos duas vezes a mesma lembrança. Pois, mesmo quando um acontecimento se grava em nós e de maneira definitivamente indelével, jamais pensamos nele dentro do mesmo contexto nem sob a mesma luz.

A evidência de ser Na sua essência intrínseca e imutável, que os hindus denominam Eu (Atman) para distingui-lo do simples eu dos psicólogos, o eu real não pode ser reduzido nem ao corpo, nem às emoções, nem aos pensamentos, nem à memória.

Como perceber, então, sua verdadeira natureza? Voltemos ao ponto de partida: a certeza de existir.

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Essa evidência de ser é independente de toda sensação, imagem ou pensamento particular, é anterior às palavras, aos conceitos, às formas, aos acontecimentos.

Acontece a qualquer um, quando está levemente adormecido, esquecer bruscamente quem é ou onde está sem que, entretanto, desapareça a certeza de existir - para além de um nome ou de uma posição determinada.

Essa consciência pura de ser insistimos, jamais variou. Hoje, ela é idêntica ao que era na primeira infância. É exatamente a mesma em todos os lugares e em qualquer circunstância. O que muda são as definições em que se procura encerrá-la. De uma certa maneira, esse simples "eu sou" não pode nem deslocar-se, nem envelhecer, nem alterar-se, nem ser afetado por nada. Está sempre aqui e agora, qualquer que sejam as aparências exteriores, os dados conjunturais desse aqui e desse agora.

Esse "eu sou", a raiz do meu ser, está além do tempo e do espaço, além da forma e do movimento. De resto, se eu não fosse, em minha realidade essencial, sem nome e sem forma, como poderia perceber os nomes e as formas?

Esse "eu sou", para além de qualquer qualificação e mutação perfeitamente neutra e estável, costuma ser associado à noção depuro espectador (Drg) ou depura testemunha (Sakshin).

Esse ser imutável, que está no fundo de todos os processos físicos, emocionais, intelectuais, de todos os fenômenos relativos, é freqüentemente comparado, pelos sábios da Índia contemporânea, à tela de um filme.

Claro, trata-se apenas de uma alegoria, mas bastante evocadora. Durante a projeção de um filme, as seqüências desfilam pela tela sem que esta seja vista. Ora, sem a tela não haveria imagem. Essa tela invisível é o suporte imutável, imaculado, indiferençável, o elemento de permanência e de continuidade que sustém a sucessão dos planos e das cenas. É o filme que dissimula a tela, que a subtrai aos nossos olhares, mas não pode nem afetá-la nem modificá-la. "Ela não é nem arranhada pelas balas das metralhadoras de um filme de guerra nem molhada no fim de um filme de naufrágio" (Arnaud Desjardins). Neutra, vazia, indeterminada, não pode ser assimilada a uma imagem particular; mas, ao mesmo tempo, inclui todas as imagens, agrega-se a todas as seqüências.

Outra analogia tradicional é a do espelho. Todos objetos são por ele refletidos, indistintamente. Essas imagens são apenas a superfície espelhada, e esta não é absolutamente alterada pelas cenas que nela se desenvolvem.

Como a tela ou o espelho, o Eu (Atman) sustém e engloba todas as formas particulares sem ser limitado ou subjugado por nenhuma delas.

Ele é o Eu que habita o mais profundo de cada individualidade.

Permanece sempre idêntico a Si mesmo e, entretanto, transparece através das múltiplas transformações do material.

Não nasce nem morre; não crê nem descrê.

Quando o corpo se transforma em pó ele não cessa de existir, tal como o ar contido no bojo de um cântaro incondicionável."

(Shankara, Le Plus Beau Fleuron de Ia Discrimination, 131, 134, Adrien Maisonneuve).

Este texto pode ser comparado com uma soberba passagem do Brihadaranyaka Upanishad (111, IV, 2):

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"Não podeis ver Aquilo que é o Vidente da visão; não podeis ouvir Aquilo que é o Ouvinte da audição; não podeis pensar Aquilo que é o Pensador do pensamento; não podeis conhecer Aquilo que é o Conhecedor do conhecimento. É o vosso próprio Eu que habita dentro de tudo o que existe, e tudo o que existe deve perecer - salvo ele".

O Brama O Eu (Atman) é, portanto, minha mais íntima realidade, o único que escapa à mudança e à morte.

Absoluto, inefável, indescritível, é irredutível a palavras e a textos, ultrapassa toda faculdade de percepção e entendimento. Ao mesmo tempo menor que o mais minúsculo entre os mais ínfimos e maior que o mais imenso entre os mais vastos, ele é propriamente incomensurável, e nenhuma escala de medida lhe pode ser aplicada.

Infinito, universal, ele é a última e única realidade, gerando e englobando ao mesmo tempo minha pessoa e a totalidade da criação. Enquanto tal, os hindus o chamam Brama Atman e Brama são idênticos, são a mesma realidade superior, considerada como centro e fundamento de minha existência individual (Atman) ou como centro e fundamento da totalidade dos mundos existentes e possíveis, manifestados ou não-manifestados (Brama).

Não-dualidade É a propósito de Brama que se costuma falar de não-dualidade. Diz-se ainda que ele é Um-Sem-Um-Segundo.

Todo esse universo que a Ignorância nos apresenta sob o aspecto da multiplicidade .

Não é outra coisa senão Brama, para sempre liberto de todas essas limitações que condicionam o pensamento humano.

Ainda que a jarra seja uma modificação da argila, ela não se diferencia da argila.

Em todas as suas partes a jarra tem a mesma natureza da argila.

Por que lhe dar o nome de jarra?

Esse nome é imaginário; não corresponde a nada de real.

Na única existência de Brama a idéia do universo é pura fantasmagoria.

Naquele que é o Absoluto - sem mudanças e sem formas - onde acharíamos traços de diversidade?

Na única existência, livre de noções tais como o que vê, o visto e a visão.

Na única existência que é o Absoluto - sem mudanças e sem forma - onde acharíamos traços de diversidade? (Shankara, op. cito 227, 228, 399, 400)

No plano do mundo fenomenal e relativo estamos profundamente imersos na multiplicidade, subjugados pelas duplas de contrários (Dvandas), preto-branco, grande-pequeno, ativo-passivo, positivo-negativo, união-separação, nascimento-morte, e igualmente finito-infinito, particular-universal, ou mesmo absoluto-relativo, unidade-multiplicidade.

O Brama não pode ter contrário, seja ele qual for, pois isso seria ainda limitá-lo. Ora, todo conceito, por vasto e indeterminado que seja, comporta forçosamente o seu contrário. Eis por que

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os hindus preferem o termo não-dualidade (Advaita) a unidade, que pode ser oposta à multiplicidade.

Tu és isso A expressão um-sem-um-segundo aponta igualmente para essa realidade suprema e indizível; impossível de ser dividida, circunscrita e percebida. Mas as próprias palavras "não-dualidade", "um-sem-um-segundo" pertencem ao domínio da linguagem e do relativo. "Quanto àquele que confunde as palavras com Brama, ele é todo poderoso, mas 'somente no domínio das palavras!" (Chandogya Upanishad, VII, I, 5).

O caráter inconcebível, onipresente e incomensurável de Atman-Brama é evocado em outra célebre passagem desse mesmo Upanishad. Trata-se de um diálogo durante o qual um pai instrúi seu filho:

“- Traz-me um fruto deste nyagrodha”.

- Ei-lo aqui, Senhor.

- Divide-o.

- Está dividido.

- Que vês?

- Algumas sementinhas, Senhor.

- Pois bem! Divide uma destas sementes. - Pronto, Senhor.

- Que vês?

- Nada, Senhor.

O pai continua.

- Meu amigo, esta essência sutil que escapa à nossa percepção, é em virtude dela que esta árvore, grande como é, se ergue. Crê em mim, meu amigo, esta essência sutil anima tudo; ela é a única realidade; ela é o Atman. Tu mesmo, Cvetaketu, tu és Aquilo. (VI, XII, C 2, 3).

"Todo este universo é Brama", "o Atman é Brama", "Tu és Aquilo”. - estas fórmulas fazem parte do que é denominado "as grandes palavras" (Mahavakya) dos Upanishads. Resumem e contêm em si todo o ensino do vedanta. Aquele que lhes percebe o verdadeiro sentido para além de uma estreita compreensão intelectual, quer dizer, que vive diretamente sua realidade imediata, dentro e na totalidade de seu ser, não tem mais necessidade de ler nenhum outro texto, nem, aliás, de se fazer nenhuma pergunta...

As vagas e o oceano Devemos sublinhar um ponto importante, sob pena de dar margem a confusões e contra-sensos que poderiam desfigurar completamente o próprio espírito mesmo desta trajetória.

Se Brama é sem dualidade, sem contrário, então não pode ser isolado, separado do mundo relativo e fenomenal, contraposto ao universo das aparências e da multiplicidade. Se há apenas uma realidade, perfeitamente indivisível, sem o menor lugar para dois, então Brama não pode ser outro senão os inúmeros processos - tomados, ao mesmo tempo, global e isoladamente - que aparecem, evoluem, misturam-se, transformam-se e depois desaparecem.

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Em outras palavras, nada do que fazemos, sentimos, pensamos, tememos, desejamos, tornamo-nos, nada disso é outra coisa senão Brama.

Uma das imagens tradicionais mais correntemente evocadas a esse respeito é a das vagas e do oceano.

Enquanto vaga - fenômeno individual, particular, limitado, relativo - surjo do seio da massa líquida para rolar durante algum tempo na superfície das águas e depois dispersar-me em espuma na beira da praia. Entretanto, essa vaga não é outra coisa senão o oceano.

Enquanto vaga estou fadado à mudança e ao desaparecimento.

Enquanto oceano - consciência da realidade total e indivisível - sou também a totalidade das vagas existentes ou tendo existido, nascendo e morrendo em todo lugar, a cada instante. .

Assim o sábio, cuja consciência está firmemente estabelecida em Brama, sente-se simultaneamente como vaga e como oceano. Enquanto vaga tem sempre uma existência individual: bebe, come, dorme, pensa, age, sente dor ou prazer. Enquanto oceano é imutável, eterno, onipresente, onisciente, conhecendo " aquilo pelo qual a totalidade do universo é conhecido" .

Esse aspecto do vedanta não-dualista é fundamental, pois somos sempre tentados a reintroduzir uma dualidade, distinguindo e opondo absoluto e relativo, Brama e o mundo fenomenal manifestado, Atman e o processo individual perecível, ou, numa linguagem religiosa, sagrado e profano, divino e não-divino.

A esse respeito, embora vise a uma realização interior, a uma experiência metafísica, o vedanta não é absolutamente uma doutrina metafísica ou espiritual, na medida em que recusa toda idéia sobre a natureza de Brama. Eis por que não se poderia aplicar ao Advaita Vedanta nenhuma etiqueta filosófica monismo, idealismo, panteísmo etc.

O espírito e a matéria Outro ponto importante é que o Eu não tem relação com as noções de alma ou de espírito, que, submetidas ao tempo e ao dever individual, são consideradas, na maioria das correntes religiosas ou filosóficas do Ocidente, como distintas da transcendência e do absoluto.

"O Eu, enquanto tal, jamais é individualizado, e nem pode sê-lo, pois devendo ser sempre encarado sob o aspecto de eternidade e de imutabilidade que são os atributos necessários do Ser puro, ele não é, evidentemente, suscetível de nenhuma particularização que o faria ser outra coisa que não ele mesmo... Em face do Eu, todos estados de manifestação são rigorosamente equivalentes, podendo ser encarados de forma semelhante”. (René Guénon,L'Homme et Son Devenir Selon le Vêdanta, Editions Traditionnelles)

Nesse sentido, o que chamamos de espírito e matéria são apenas escalas de relação e modalidades de permuta que marcam diversas freqüências vibratórias, sem diferenças nem oposição, como na maioria de nossos sistemas espiritualistas. Os processos químicos, fisiológicos e psíquicos são, em suma, uma espécie de comprimento de ondas, manifestações mais ou menos sutis de um mesmo dinamismo inicial, de uma mesma energia primordial, da qual o Atman-Brama é, definitivamente, a única realidade indestrutível.

Do mesmo modo, o centro de uma roda, ponto matemático bem real apesar de imperceptível, é, ao mesmo tempo, o suporte, a origem e o fim único de todos os raios. Quaisquer que sejam a direção e a velocidade da roda, esse eixo continua perfeitamente fixo, idêntico a si mesmo.

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Por que a limitação? U ma pergunta nos ocorre espontaneamente: se minha verdadeira realidade é o Brama, absoluta não-dualidade, um-sem-um-segundo, como acontece que eu me sinta cativo da dualidade, acorrentado à multiplicidade em minhas menores percepções, emoções, pensamentos, a começar por esta sensação tão opressiva e limitativa do eu e do outro?

Voltemos à pura consciência de ser - eu existo, eu sou - sem nenhuma determinação ou definição de qualquer espécie.

Temos uma percepção desse estado nos momentos, geralmente muito breves e fugidios, em que, não tendo nenhuma ansiedade, nenhuma preocupação, nenhuma esperança particular, nenhum esforço a realizar, nada de especial para fazer, sentimos um profundo relaxamento, um abandono de todas tensões físicas, emocionais e mentais - por exemplo, quando estamos deitados numa praia, em férias, num belo dia de verão, o corpo em perfeita paz, repousado, os sentidos e o psiquismo abertos, pacificados, disponíveis, unificados na doçura do céu, no murmúrio da brisa e no marulhar das ondas, atentos mas sem nenhum constrangimento, no simples aqui-e-agora.

Nesses breves instantes as noções dualistas, separativas, tais como o eu e o outro ou o sujeito e o objeto, dissipam-se: há somente o presente, uma presença naquilo que é, uma plenitude sem nome nem forma.

Esse estado não dura muito, pois é quase imediatamente perturbado por uma massa de pensamentos redemoinhantes e turbulências emocionais.

Que processo estranho e perverso nos arranca a essa felicidade para nos precipitar novamente na inquietação, nos conflitos, na angústia do isolamento e da separação?

A identificação N o simples “eu sou", a pura consciência de ser, não há identificação com um nome, uma forma física,

Um sexo, uma idade, uma nacionalidade, uma profissão, uma posição familiar e social, tendências psicológicas. "Eu sou" não tem cartão de visitas, estado civil, mapa astral, domicílio, antecedentes, carreira ou projetos.

Nesse estado não há lugar para dois: Efetivamente, mesmo a expressão "eu sou" pode prestar-se a mal-entendidos, pois que ainda tem dois termos: "eu" e "sou". O verbo ser no infinitivo, sem sujeito nem artigo, seria, sem dúvida, mais apropriado. A dualidade aparece quando ser torna-se "eu sou um tal, eu sou tais sensações, tais emoções, tais imagens mentais". Quer dizer, quando ser é identificado a uma forma física limitada, a sensações agradáveis e desagradáveis, a seqüências psicológicas particulares, a coordenadas espaciais, a uma sucessão temporal, a um encadeamento de causas e efeitos.

Todos esses objetos de identificação, essencialmente mutáveis e relativos, são chamados eu e, quando opostos ao mundo exterior, o não-eu, o puro "eu sou" não-diferenciado, torna-se "eu sou eu", pessoa específica, perfeitamente diferenciada. O mecanismo da dualidade se pôs em marcha, inexoravelmente. O ser vai obstinar-se procurando tornar-se alguém, o que impele de identificação em identificação, de definição em definição, de projeto em projeto, de insatisfação em insatisfação. É uma tensão crescente, que se exacerba sozinha, pois quanto maior o esforço para ser alguém definido, quanto mais se é tomado por outro, menos se é realmente a própria

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pessoa. Com efeito, como tentar ser alguém sem comportar-se, inevitavelmente, por referência, comparação e mimetismo, identificando-se com um certo número de clichês, de dados exteriores preestabelecidos? Qualificando de estranho tudo o que não corresponde a esses clichês, constrói-se uma prisão de identificações na qual a própria pessoa se encerra viva.

Em outras palavras, querendo ser tal pessoa física, e nada, além disso, renuncia-se a todo o resto, ao infinito da realidade global, indissociável.

Aliás, o problema é que nunca se pode ser uma pessoa perfeitamente definida, primeiro porque as definições ou identificações são, elas mesmas, inúmeras, mutáveis, contraditórias, dependendo dos impulsos, humores, circunstâncias, em seguida porque não se pode ser isolado, afastado verdadeiramente de seu ambiente, o qual é, bem entendido, ilimitado.

Essa impossibilidade de definir-me e identificar-me completamente com o que quer que seja, definitivamente, precipita-me em uma espécie de corrida cansativa e delirante, muito semelhante à proeza tragicômica do cachorrinho que corre atrás de sua própria cauda.

Querendo ser eu, restrinjo-me a um eu qualificável, determinável, encontrável, a um eu exíguo, estreito, imobilizado e, finalmente, inclino-me para ser um outro, enquanto de fato já estou na origem do que tão desesperadamente procuro vir a ser. E todo esforço visando a tornar-me o que de fato já sou conduz-me implacavelmente a outra coisa - daí a frustração e o círculo vicioso.

Mas eu original, meu verdadeiro ser - o Eu – é a totalidade dos processos universais dos quais meu organismo e meu psiquismo são apenas um episódio vibratório, uma modulação passageira. Nesse sentido, não é tanto o Eu - meu eu real - que está dentro do meu corpo, mas antes o meu corpo é que está dentro do Eu receptáculo infinito de interconexões e mudanças, sem o qual esse corpo não seria sequer concebível.

Afirmar que sou a totalidade é afirmar que não sou nada de qualificável ou de identificável, pois que, a partir do momento em que me qualifico, por pouco que seja, deixo exatamente de ser tudo para tornar-me isto em particular.

Esse todo e esse nada encontram-se além das palavras, na experiência libertadora do Despertar.

Se refletirmos mais atentamente, toda a nossa existência aparece como uma série abundante de identificações. Eu (enquanto simples consciência de ser, sem nome e sem forma) identifica-se com desejos, temores, prazeres, dores, gostos, lembranças, julgamentos de valor, aparências e funções sociais, com imagens mais ou menos flutuantes e contraditórias refletidas por outros, submissões, revoltas, com uma certa idéia do que deve ser feito, sentido, pensado. Identifica-se com o carro que deve ser comprado, com o telefonema esperado, com a conquista amorosa projetada, com a melhoria dos negócios, com a viagem preparada há meses, com o saber acumulado, com as convicções políticas e religiosas. Tudo isso identifica-se com as pessoas, quer dizer, cada vez elas se assumem para comprar um carro, ter sucesso num namoro ou numa operação financeira, preparar uma viagem, afirmar suas crenças, mas também no cansaço, na raiva, na apreciação de um bom ensopado.

A fraude A cada um desses acontecimentos, persistentes ou fugazes, mas sempre transitórios, atribui-se uma realidade intrínseca, permanente e quase absoluta, mesmo quando se sabe, no íntimo, que se trata de peripécias evanescentes, jogos de sombra e reflexos na superfície do real.

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Quem nunca sentiu de repente, ao menos uma vez, intensamente, o caráter factício, enganador, quase ridiculamente cômico de toda essa agitação à qual se dá tanta importância, um valor tão definitivo e tão dramático? Quem não pensou, num brusco clarão ao mesmo tempo desconcertante e curiosamente libertador: "Nada disto tem 'valor'! A vida, a morte, eu, o mundo, os outros, tudo é fraude, embuste, mal-entendido. Todos fingem, brincam de esconde-esconde. Daqui a pouco alguém vai gritar 'Tempo', e aí veremos com que as coisas se parecem quando são verdadeiramente elas mesmas!”

De um certo ponto de vista, a abordagem vedântica nada mais é que essa reflexão levada às suas últimas implicações.

Há somente um O engano inicial está na ilusão de ótica - espécie de truque ou de miragem - que nos faz ver, sentir e pensar dois onde existe apenas Um.

Se houvesse realmente dualidade, se, por exemplo, o sujeito consciente e o objeto concebido fossem realmente distintos, se o espectador e o espetáculo estivessem realmente separados, a consciência mesma, tal como se manifesta, seria apenas uma vertiginosa regressão ao infinito, um absurdo "eu sei que eu sei que eu sei que eu sei..." Essa dualidade do sujeito e do objeto é como se eu me visse refletido infinitamente em dois espelhos colocados face a face, e considerasse essas imagens desdobradas como a única realidade que ela reflete.

Vejamos o que se passa em nossa experiência direta. Quando olho um objeto qualquer, se considero aquele que olha e a coisa olhada, então, certamente, há dualidade: eu e o mundo. Mas, se considero a visão, aquele que vê e a coisa vista não podem mais ser dissociados, salvo por uma operação mental estritamente arbitrária.

Paralelamente, cada visão é absolutamente única, assim como cada impressão, cada pensamento.

Unificada, única, uma, é assim que a realidade se revela em sua manifestação mais direta e mais próxima - muito próxima mesmo, e realmente muito evidente para ser percebida. É a história do homem que procura desesperadamente seu macaco, por toda parte, enquanto o animal não saiu de seu ombro.

Na realidade imediata, anterior aos cortes e às classificações do mental, não pode haver senão Um.

É uma ficção curiosa, uma perspectiva completamente deformante, que nos incita a considerar a multiplicidade de sensações, emoções e pensamentos como se pudéssemos ficar fora do momento atual uma só sensação, uma só emoção, um só pensamento de cada vez - e a multiplicidade dos seres como se pudéssemos ficar fora de nós mesmos, como se pudéssemos ser, ao mesmo tempo, uma multidão de consciências dispersas, fragmentadas, separadas. A realidade só se quebra quando se imagina poder ficar no lugar de muitos. Posso, por projeção, identificar-me com uma quantidade de objetos ou de seres diferentes; mas haverá sempre uma só consciência adotando e envolvendo essas inúmeras formas. E essa observação é válida para cada um de nós, pois os outros aparecem e desaparecem dentro da minha consciência, como eu mesmo apareço e desapareço na consciência deles; mas, na realidade imediata de cada um, o que há é apenas uma só e única consciência.

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Maya Essa falsa aparência - fraude ou mal-entendido - que produz o efeito de dualidade, que nos divide, nos projeta nas identificações ou nos conflitos, é chamada, na Índia, Maya. Este termo costuma ser impropriamente traduzido por “ilusão". A noção de Maya é mais sutil: não é nem completamente real, nem completamente irreal.

É Maya quem cria a aparente fragmentação do mundo fenomenal e relativo, bem como a prisão individual, o sentimento de limitação, de isolamento e de separatividade. Seu estranho e imenso poder, comparável a uma espécie de hipnose cósmica, consiste ao mesmo tempo em velar, ocultar a unicidade do real,

e em projetar sobre ele um universo de imagens semelhantes às miragens e aos sonhos.

A analogia tradicional mais freqüentemente lembrada a propósito de Maya é a da corda e da serpente.

Na volta de um caminho, na penumbra de um bosque, um viajante avista uma corda que ele toma, de longe, por uma serpente. O medo petrifica-o, suscitando toda espécie de impressões, emoções e pensamentos febris: como ultrapassar o animal sem ser picado? Como matá-lo de surpresa, para vender sua pele e transformar esse mau encontro em um bom negócio?

Todos os processos fisiológicos e psíquicos são assim solicitados, sobreexcitados por alguma coisa que não tem existência própria e que pode tomar formas monstruosas, proporções terrificantes. Essa serpente é apenas a corda vista sob uma luz falaciosa. Mas, do ponto de vista do viajante enganado, tudo se passa como se a serpente fosse bem real. Logo que ele se aproxima e põe a mão na corda - se tiver coragem para tanto -, verifica seu equívoco, reconhece que se trata apenas de uma corda inofensiva e ri de seu próprio medo.

Assim que Brama, um-sem-um-segundo, se desvenda, torna-se evidente que jamais houve outra coisa e rimos de Maya, que dissimula a única realidade sob a máscara da multiplicidade, que não é senão a unicidade dissimulada por uma perspectiva enganadora.

Mas, enquanto o erro subsiste, enquanto não estamos inteiramente estabilizados em Brama, pode-se afirmar que Maya não existe, pois que ela mesma não é senão Brama - tal como a serpente não é outra coisa senão acorda?

"É ela, Maya, quem projetou todo universo. “ Maya, a grande maravilha, escapa a qualquer descrição.

"Pois é percebendo o puro Brama, o um-sem-um-segundo, que se consegue destruir Maya”.

(Shankara, Le Plus Beau Fleuron de Ia Discrimination, 108, 109, 110)

Essa serpente imaginária, cuja visão oculta a realidade da corda mais ou menos como um reflexo impresso, exprime bem o poderio mágico de Maya, apelidada de a grande feiticeira. O termo sânscrito Ãdhyasa, que designa esse efeito específico, é dificil de traduzir; a palavra geralmente utilizada é "sobrepor": uma representação mentirosa substitui abusivamente, o objeto verdadeiro" sobrepõe-se" a ele.

Seria vão e inepto procurar a causa de Maya, pois que os processos de procura e de causa fazem, eles mesmos, parte de Maya: seria tentar morder sua própria mandíbula.

Os cinco envoltórios do Eu

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Com seu poder de obnubilação Maya persuade cada um de nós de que é uma entidade isolada, separada, ligada às limitações e aos condicionamentos do tempo, do espaço e da causalidade. Esse véu opaco e mentiroso, que dissimula e deforma aos nossos próprios olhos o nosso ser verdadeiro, a única realidade - o Eu -, aparece na abordagem vedântica como uma sucessão de invólucros ou revestimentos que os hindus denominam Koshas.

Esses envoltórios, em número de cinco, são como camadas cada vez mais sutis, estreitamente imbricadas, agregadas umas às outras como os graus de manifestação ou as freqüências vibratórias de um mesmo processo global.

O primeiro envoltório, mais grosseiro e pesado, diz respeito ao conjunto dos processos fisiológicos e bioquímicos. É chamado envoltório de alimentação (Annamayakosha), pois é o resultado das trocas da absorção, da assimilação e da eliminação entre nosso organismo e suas imediações. Sob esse aspecto tudo é alimento, pois o corpo desenvolve-se, mantém-se e renova-se consumindo alimentos sólidos, líquidos e gasosos, dos quais o ar que se respira é o primeiro de todos.

O segundo envoltório é o da energia vital (Pranamayakosha). É dele que se trata quando sentimos "estou em plena forma, estou fatigado, estou vazio etc." Ele governa as faculdades da sensação e da ação, tão intimamente ligadas à nossa vitalidade.

O terceiro envoltório aplica-se ao que os hindus chamaram mental (Manomayakosha) e agrupa nossas simpatias e antipatias, nossos impulsos emocionais, nossas tendências afetivas, bem como nossas opiniões, julgamentos subjetivos, reações pessoais e parciais frente aos seres e aos acontecimentos. É o domínio dos gostos, das paixões, dos preconceitos.

O quarto envoltório (Vijnanamayakosha) é o do intelecto superior, da visão justa e perspicaz, da faculdade de apreciação neutra e clara, do conhecimento purificado, luminoso, que os hindus chamam Buddhi. É ele que nos permite estabelecer as verdadeiras questões, desmascarar o poder hipnótico de Maya. É ele, por exemplo, que nos permite enunciar certas leis matemáticas: 2 + 2 = 4. É dele que procedem, sobretudo, as poucas certezas fundamentais universais não-dependentes de condições geográficas, históricas, econômicas, sociais, culturais: tudo muda, tudo é diferente, tudo é relativo.

Os julgamentos psicológicos ou estéticos, as opiniões políticas, as crenças religiosas, os sistemas filosóficos podem ser contestados, contraditos: é uma questão de habilidade dialética, de vivacidade intelectual, de determinação pessoal, de ponto de vista subjetivo dependente de um meio, de uma educação, de um pendor específico. É o envoltório mental, o Manomayakosha. Afirmações como tudo muda, tudo é diferente, tudo é relativo resultam de uma visão neutra e imparcial, idêntica em todas as épocas, sob todas as latitudes e em todas as línguas. É o/Buddhi Vijnanamayakosha.

O quinto envoltório é chamado envoltório de beatitude (Anandamayakosha). É também o envoltório mais fino, que constitui ao mesmo tempo a origem e o fim dos outros quatro, o germe inicial e o ponto de reabsorção última dos fenômenos físicos e psíquicos.

Numa classificação paralela e complementar os hindus associam o envoltório carnal ou de alimentação (Annamayakosha) com a noção de corpo grosseiro (Sthula Sharir), o envoltório de energia vital (Pranamayakosha), o mental (Manomayakosha) e o do intelecto superior (Vijnanamayakosha) com a noção de corpo sutil (Sukshma Sharir), e o da beatitude (Anandamayakosha) com a noção de corpo causal (Karana Sharir).

Anandamayakosha é esse incrível espaço interior de paz, de silêncio, de felicidade que se atinge quando se dissipa a rumorosa agitação de pensamentos, emoções, sensações, tensões e conflitos

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de toda espécie, algo como a esplendorosa serenidade do azul após a dispersão das nuvens ameaçadoras ou como o puro silêncio existente atrás e entre as vibrações musicais. Assim como as notas surgem do silêncio e nele se fundem, também a horda turbilhonante das sensações, das emoções e dos pensamentos irrompe sem cessar do seio dessa felicidade íntima para aí se dissolver - contínua perturbação, lancinante parasitagem que abafa, sob uma confusão de sombras febris, essa paz sem forma e sem medida.

Por mais fino e depurado que seja esse quinto envoltório, Anandamayakosha não está menos sub metido que os quatros outros ao vir-a-ser e à relatividade, uma vez que o denominamos e de certa maneira o situamos enquanto o Atman, o Eu, o absoluto, não pode ser nem denominado nem, aliás, diferenciado dos cinco Koshas e dos três corpos.

Digamos que no mundo fenomenal e relativo Anandamayakosha marca o derradeiro limiar do nosso entendimento, a suprema intuição daquilo que só pode ser vivido e realizado, e não conceituado ou formulado.

Notemos que o envoltório de energia vital (Pranamayakosha) liga o corpo grosseiro ao corpo sutil, enquanto o envoltório do intelecto superior (Vijnanamayakosha) liga o corpo sutil ao corpo causal.

Insistimos no fato de, aos olhos dos hindus, não existir nenhuma oposição fundamental entre espírito e matéria. Os cinco envoltórios e os três corpos são as manifestações, as modulações vibratórias de uma mesma energia universal.

Ainda uma vez, os processos físicos e psíquicos do mundo fenomenal não são coisas isoladas, articulando-se como rodas mecânicas, mas acontecimentos indissociáveis, dinamismos em perpétua interdependência e interação.

Os cinto Koshas ou cinco envoltórios do Eu Envoltório da alimentação Annamayakosha Corpo grosseiro

(Sthula Sharir)

Envoltório da vitalidade Pranamayakosha

Envoltório do mental Manomayakosha Corpo sutil

(Sukshma Sharir)

Envoltório do intelecto Vijnanamayakosha

superior

Envoltório da beatitude Anandamayakosha Corpo causal

(Karana Sharir)

Os três estados: vigília, sonho, sono profundo. Os três corpos estão ligados aos três grandes estados que compõem a nossa experiência corrente: o estado de vigília, o estado de sonho, o estado de sono profundo. .

No Ocidente, tendemos a considerar o estado de vigília como o estado mais real, do qual os outros não passariam de projeções, deformações ou regressões. O vedanta não atribui ao estado de vigília uma validade, uma credibilidade superior.

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O estado de vigília está diretamente ligado à percepção do mundo material e à dimensão orgânica. Desde os primeiros momentos do despertar identifico-me com este corpo particular, com esta forma tangível, encerrada no concreto e distante do universo exterior. Esse estado está estreitamente ligado às sensações físicas, agradáveis ou desagradáveis. Se tenho a menor dúvida belisco-me, dizendo: "Não estou sonhando... estou bem acordado..."

A vigília é o estado em que o sentido da individualidade se afirma com mais vigor e se manifesta mais completamente, pois está incessantemente e rudemente confrontado com a oposição do eu e do não-eu. É o terreno da penosa e angustiante rivalidade entre os imperativos da sobrevivência biológica e da natureza envolvente, hostil e perigosa. No estado de vigília temos, de início, a impressão de estar completamente escravizados à multiplicidade das aparências e à limitação das formas, tanto quanto às rigorosas regras do espaço, do tempo e da causalidade.

"No estado de sonho todo contato com o mundo exterior está momentaneamente cortado" (Shankara). Quem sonha é, ao mesmo tempo, aquele que imagina e a multidão de criaturas ou de objetos com que povoa seu mundo imaginário.

"Então, onde não há carros, atrelagem ou caminho, ele cria carro, atrelagem e caminho. Onde não há prazer, alegria ou deleite, ele cria prazeres, alegrias e deleites. Onde não há, realmente, lago, tanque ou rio, ele cria lagos, tanques e rios. É ele quem cria”.

“No sonho, perambulando de lá para cá,

Deus atribui-se formas diversas;

Às vezes, rindo, entretém-se com mulheres,

Às vezes tem visões terríveis."

(Brihadaranyaka Upanishad IV, 3,10-13)

É nossa mente que suscita e projeta uma série de seqüências onde são reproduzidos nossos desejos e nossos medos, nossas obsessões e frustrações secretas. Lembremos sobre esse assunto que, bem antes da psicanálise, a Índia destacou amplamente o papel capital do inconsciente no sonho.

Mas o vedanta não considera o sonho apenas uma mensagem codificada, um revelador dos impulsos e dos comportamentos dos homens. Enquanto estados, a vigília e o sonho são duas condições particulares, duas manifestações específicas do ser, e essa diferença não implica nenhuma superioridade: "De qualquer modo, o que é absolutamente real é o Eu, exclusivamente; é o que não pode perceber, de nenhuma maneira, toda concepção que, sob qualquer forma, se fecha na consideração de objetos externos e internos, cujo conhecimento constitui, respectivamente, os estados de vigília e de sonho, e que, assim, não indo mais além do conjunto desses dois estados, nos retém inteiramente nos limites da manifestação formal e da individualidade humana". (René Guénon,L'Homme et Son Devenir Selon le Vêdanta)

Se o estado de vigília está associado ao corpo grosseiro (Sthula Sharir), o estado de sonho está ligado ao corpo sutil (Sukshma Sharir), enquanto o estado de sono profundo depende do corpo causal (Karana Sharir).

Pode-se tentar urna análise científica do sono profundo, mas essa abordagem fica forçosamente no exterior: ela não pode atingir o conteúdo vivido do sono profundo, pois sua descrição efetua-se sempre no estado de vigília, em função de procedimentos e critérios inerentes à consciência de vigília. Pode-se descrever a noite em termos de dia?

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Em relação aos estados de vigília e de sonho, o sono profundo aparece primeiramente corno urna espécie de extinção, de vacuidade.

“O sono profundo é a suspensão de todo gênero de percepção”.

Aqui, o mental reveste urna forma extremamente sutil; continua em estado seminal.

O veredicto universal que se exprime assim: naquele momento não senti mais nada, confirma es ta maneira de ver. ',

(Sankhara, Le Plus Beau Fleuron de ia Discrimination, 121).

Essa reabsorção de toda atividade mental, essa desaparição do nome e da forma que caracterizam o sono profundo, não significa, entretanto, urna ausência de consciência, pois, ao acordar, conservamos desse estado urna espécie de lembrança negativa e feliz: "Corno dormi bem! Nada atrapalhou meu sono! Não vi nada, não ouvi nada, não senti nada, não pensei em nada..." Sem desejos e sem sonhos, quem dorme não está mais sujeito às determinações e às limitações: está em paz, unido na felicidade do indiferenciado. "Tudo é Um", escreve também Tchuangtsé. "Durante o sono, a alma não-distraída absorvese nessa unidade; durante a vigília, distraída, ela distingue seres di versos”.

Além do sono profundo É difícil para a cultura ocidental conceber e admitir a noção de urna consciência pura, desligada de todo pensamento, com certeza por causa do famoso "Penso, logo existo", completamente distanciado da conduta oriental, que poderia afirmar: "Eu existo, embora pense”.

Na condição de sono profundo, a pura consciência - simples evidência de ser, sem identificação nem qualificação - não está mais velada, parasitada por alguma imagem particular. "Esse estado de indiferenciação, no qual todo conhecimento, incluindo também o de outros estados, está centralizado sinteticamente na unidade essencial e fundamental do ser, é o estado não-manifestado ou desenvolvido, princípio e causa de toda manifestação e a partir do qual esta é desenvolvida na multiplicidade de seus diversos estados, mais particularmente no tocante ao ser humano em seus estados sutis e grosseiros. Nesse estado, os diferentes objetos da manifestação, mesmo os da manifestação individual, tanto externos quanto internos, não são absolutamente destruídos, mas subsistem em princípio, estando unificados; por isso mesmo não são mais concebidos sob o aspecto secundário e contingente da distinção." (RenéGuénon, op.cit.)

Quando dormimos, portanto, a pura consciência já está identificada com o corpo e a mente. Mas essa identificação não está anulada; ela se recolhe ao estado de germe, de existência potencial. É uma plenitude sem dualidade manifesta, sem relação sujeito objeto, mas onde os pares de contrário estão sempre latentes, com suas tensões, seus conflitos, seus sofrimentos, que reaparecem nos sonhos e são ativados no momento do despertar.

Esse estado de sono profundo - que experimentamos todas as noites - prefigura, de certo modo, a consciência libertada do sábio, cujo ser, estabelecido e imerso em Brama, aderindo completamente ao eterno aqui-e-agora, é Um com a totalidade do real.

A não-dualidade, vivida e realizada pelo libertado-vivo através de todas as sensações, todas as atividades, todas as peripécias cotidianas da existência fenomenal, está aparentada a um quarto estado, que ao mesmo tempo sustém, impregna e transcende os três outros.Os quatros estados são:

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Estado de vigília (Jagrat Vaishvanara): sensações corporais e mundo físico; corpo grosseiro (Sthula Sharir);

Estado de sonho (Svapna Taijasa): universo imaginário, projeções mentais; corpo sutil (Sukshama Sharir);

Estado de sono profundo (Susupti Prajna): plenitude indiferenciada, reabsorção do ego; corpo causal (Karana Sharir);

Quarto estado (Turiya): consciência desperta, libertada (Moksha).

Esse "quarto estado" não é, propriamente falando, um estado, pois não se reduz a nenhuma palavra, a nenhum conceito e não pode ser concebido como um produto dos três outros, o que seria ainda defini-lo e limitá-lo. Não podendo ser submetido a nenhuma escala de medida ou de valores, também não se pode dizer que seja superior aos outros três. É a presença indizível e inalterável, da qual os três estados são apenas as manifestações, as formas relativas e mutáveis, como os 'três corpos e as cinco Koshas são as manifestações, as formas relativas e mutáveis do Eu.

A vida é um sonho Da chave dos sonhos às interpretações psicanalíticas, o Ocidente, já o dissemos, só está interessado nos sonhos para deles extrair ensinamentos e revelações concernentes ao estado de vigília.

Para o Oriente o que é importante, antes de tudo, é um estudo comparado sistemático dos estados de sonho e de vigília, que permita aprofundar e apurar a pesquisa fundamental sobre a natureza do real, dissipando um certo número de convicções erradas - a começar pela poderosa impressão de que o estado de vigília é "mais real" que o estado de sonho.

U ma tal afirmação não nos parece evidente senão na medida em que procede precisamente do estado de vigília. Mas no momento em que sonhamos sabemos perfeitamente que as seqüências do sonho têm o mesmo perfume da realidade.

Dizemos de bom grado: o mundo dos sonhos é subjetivo, ao passo que o universo que descobrimos ao despertar tem uma existência objetiva. Mas os acontecimentos percebidos através do filtro de nossa mente - gostos, lembranças, preconceitos, hábitos -e as estruturas de nossos órgãos sensoriais não têm forma própria fora daquela que lhes atribuímos. Enquanto forem um processo fragmentário de um todo indissociável, sua existência objetiva não passa de um embuste: traduz somente a nossa tendência a fracionar o real.

Uma outra observação mostra-nos que o sonho se dissipa com o despertar, quando são reencontrados, idênticos, o leito, o quarto, todo o contexto no qual adormecemos. Há no estado de vigília uma permanência e uma continuidade que faltam ao sonho.

Ora, examinadas um pouco mais atentamente, essa permanência e essa continuidade mostram ser apenas um engodo. Sabemos que as moléculas que sonhos és tu mesmo que és projetado sobre a tela de tua própria consciência, tu mesmo ainda que, na vida desperta, te projetas sobre a tela dessa mesma consciência. Compreende que é pura consciência e encontra, o mais depressa possível, o plano da suprema felicidade" .

(La Doctrine Secrete de Ia Déesse Tripura, traduzido por Michel Hulin, Fayard).

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O sonhador absoluto Sob esse aspecto nós mesmos somos o nosso sonho, uma seqüência fantasmagórica imaginada pela realidade sem nome e sem forma, do mesmo modo que o universo fenomenal, com seus inúmeros acontecimentos e criaturas, não é outro senão o único Brama-sem-um-segundo sonhando ser infinitamente múltiplo, diversificado, dividido.

Consideremos a questão sob outro ângulo. Se o meu ser essencial, o único autenticamente real, é absoluto, deve necessariamente revestir e produzir, por sua natureza infinita, todas as formas concebíveis e todos os mundos possíveis. Esquecer sua verdadeira natureza perder-se no Dédalo terrível do eu e do outro, da vida e da morte, da mudança e da diferenciação, em outras palavras, parecer ser outra coisa que não o um-sem-um-segundo, tudo isso intervém forçosamente num momento qualquer do desenvolvimento cósmico, assim como devem obrigatoriamente sobrevir o destino, as circunstâncias, o instante preciso que estou vivendo neste mesmo segundo. Isso quer dizer que sou o absoluto, não posso ser outra coisa senão o que sou exatamente - com a opressiva sensação de isolamento, de separação, de limitação e de angústia do meu fim inelutável. Como o absoluto seria o absoluto se não incluísse também, integralmente, essas experiências, incluindo a convicção de ser outra coisa além do absoluto?

Uma passagem de Alan Watts ilustra soberbamente essa afirmação: "Que aconteceria se eu tivesse o poder de sonhar cada noite o que desejasse? Começaria por satisfazer meus desejos mais evidentes: inventaria palácios, daria banquetes escutando música e apreciando bailarinas, faria amor como nunca e teria jardins luminosos perto de lagos ocultos por montanhas. Viriam depois longas conversas com os sábios e a contemplação de obras de arte admiráveis; ouviria e tocaria música, viajaria por todo o mundo, voaria pelo espaço e contemplaria as galáxias. Mergulharia no coração do átomo para ver redemoinhar os eléctrons. Mas gostaria de estimular um pouco a aventura sonhando, por exemplo, com uma perigosa escalada de montanhas ou ainda que salvo uma princesa das garras de um dragão, ou, ainda melhor, atirar-me-ia num sonho imprevisível onde não saberia nada do que me iria acontecer. Daí por diante minha audácia só faria aumentar. Poderia, então, sonhar com vidas completas, comprimindo setenta anos no espaço de uma noite, ou sonhar que não sonho absolutamente, que não despertarei jamais, que me perdi completamente nos labirintos do espírito. Por fim, seria acometido de tal angústia que o alívio do despertar seria mais maravilhoso que o mais maravilhoso dos sonhos.

Compreende-se então, perfeitamente, que meu eu profundo poderia imaginar minha situação particular atual e minha própria personalidade: o mesmo sucederia com todo o mundo, pois, em nossa hipótese, o eu profundo de cada um está no coração de todas as pessoas. Toda alteração, toda dualidade, toda multiplicidade fazem parte do jogo. A lição a extrair disso é que uma reflexão, partindo de meus sonhos mais ingênuos para explicar o universo e passando por uma tentativa de imaginar tão claramente quanto possível a natureza da beatitude eterna, vai encontrar-me desejando estar precisamente onde estou! Sem contar que todas as queixas contra os sofrimentos passados ou presentes podem ser varridas e transformadas em felicidade: basta acordar para achar que o eu profundo deliberadamente sonhou tudo isso e que é parte integrante do prazer que o eu experimenta eternamente”. (Alan Watts, Etre Dieu, Denoel)

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Ser - Consciência - Beatitude No limite extremo de toda conceituação e de toda formulação, a indizível realidade do Eu é tradicionalmente apresentada como puro ser (Sat), pura consciência (Chit) e pura beatitude (Ananda).

Essa trindade Sat-Chit-Ananda marca o último limite, além do qual as palavras e os pensamentos devem apagar-se para ceder o lugar à indescritível e imediata experiência do Despertar.

Quando essa espécie de terminologia é utilizada, temos geralmente a impressão de que se trata de dimensões estranhas e sobrenaturais, de esferas superiores e celestes, completamente acima do comum dos mortais e reservadas a umas poucas personagens extraordinárias. Não devemos esquecer que procuramos, ao contrário, uma realidade infinitamente próxima e íntima, e é a nossa experiência corrente que devemos explorar para procurar compreender a que correspondem expressões como Sat – Chit - Ananda - ser-consciência-beatitude.

Isso é Quando digo, “isso é um cachorro, isso é uma árvore, isso é uma casa, isso é um carro”, ou ainda, “isso é grande, isso é maravilhoso, isso é perigoso, isso é terrível", ou mesmo "sou jovem, sou velho, sou alegre, sou triste, estou em forma, estou doente, estou na França, estou na Índia", os verbos ser/estar dizem respeito a uma realidade idêntica e comum a todos os processos designados.

Pode-se afirmar que tudo é diferente, que tudo muda, que tudo é relativo, salvo esses verbos, com a condição de não lhes adicionarmos nenhum complemento, nenhuma qualificação: isso é, simplesmente. Quando aplicado a qualquer coisa definida - objeto, acontecimento, estado psicológico -, o verbo ser é arrastado no turbilhão das metamorfoses e da multiplicidade.

Para perceber essa retaguarda onipresente de todos os fenômenos, basta sublinhar o verbo ser: isso é a lâmpada, é a chuva, é a tarde etc. Quaisquer que sejam sua natureza ou dimensão, as coisas e as circunstâncias surgem rapidamente como as formas acidentais, ou melhor, como a desordenada agitação vibratória desse ser único e imutável - as vagas do oceano.

Este ser do vedanta (Sat) não tem relação com o conceito filosófico de ser, ao qual se opõe o conceito contrário e simétrico de não-ser. Nessa perspectiva o nada não tem sentido, pois, atribuindo-se a ele alguma realidade, dizendo que o nada "é", ainda se faz com que ele participe do ser. Não se pode excluir nada do ser, nem mesmo o nada.

Em termos de dualidade, o mais correto é falar em manifestado e não-manifestado. Nossa experiência é uma contínua passagem de um a outro, uma incessante aparição-desaparição de acontecimentos, emoções e pensamentos. O não-manifestado (por exemplo, o desconhecido, o inacessível, o indeterminável) não deve ser assimilado ao nada. Escapa, simplesmente, às nossas faculdades de percepção e entendimento. Mas ele é, como o manifestado.

O último sujeito Esse puro ser (Sat) não é dissociável da pura consciência (Chit). Na verdade, os dois termos são apenas um.

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Todos os fenômenos fisiológicos e psicológicos percebidos, sentidos, concebidos, imaginados são formas ou seqüências ao mesmo tempo do ser e da consciência.

Na Índia, essa consciência, que nada tem a ver com uma simples faculdade mental, costuma ser chamada de o Último Sujeito.

Partamos da observação mais imediata: todo processo consciente implica uma relação sujeito objeto: aquele que percebe, concebe, registra - o sujeito; e aquele que é percebido, concebido, registrado - o objeto. Quaisquer que sejam os meus pensamentos há sempre alguém que os pensa, uma espécie de eu - mesmo invisível, misteriosamente escondido, enrolado em espiral atrás de todos os outros eus. Assim que procuro agarrá-lo, já o vimos, sou arrastado numa fuga interior vertiginosa: eu penso que eu penso que eu penso, eu sei que eu sei que eu sei etc. Se não houvesse um eu fundamental, um eu mais eu que os outros, o eu de todos os eus, se não existisse o Último Sujeito, que não pode ser o objeto de nenhum sujeito, o desdobramento do sujeito não teria fim - eu penso que eu penso que eu penso... - e a experiência consciente, tal como a vivemos, seria impossível.

Toda tentativa de definir essa pura consciência, de identificá-la com o que quer que seja, é uma maneira de converter' o Último Sujeito em objeto mesmo quando o identificamos com o absoluto ou a transcendência.

"Como é possível que essa Consciência se revele? (...) Até o presente sempre houve uma distinção entre o sujeito e o objeto. Há o 'eu' e eu tomo consciência de alguma coisa. Mas quem toma consciência do sujeito? E, entretanto, esse sujeito é vossa realidade essencial. Se esse sujeito não existisse, não existiria nada. Mas como atingi-lo, esse sujeito em estado puro? Pois haveria ainda dois: eu, que procuro ter consciência de Deus em mim, ou do Reino dos Céus em mim, ou do Atma em mim. Seria ainda dualidade. Não será a experiência fundamental, na qual não há mais dualidade, não há mais um que conhece e um conhecido, mas unicamente a pura Consciência ou o puro Sujeito. Portanto, a tentativa de tomar consciência de alguma coisa outra que não eu, em um momento, deve cessar. Já não há consciência de outra coisa que não eu. Há o que os hindus chamam o Eu, eis tudo; e isso é a grande revelação, a realidade fundamental, o substrato, o fundamento de tudo aquilo que podeis perceber fora de vós e em vós." (Arnaud Desjardins, Le Vêdanta et I'Inconscient, La Table Ronde)

Esse Último Sujeito não pode ser submetido à dualidade, comportar o contrário, sem que imediatamente se torne objeto. Está, pois, além de todas as duplas de opostos a começar pelo eu e o mundo, o interior e o exterior etc.

Por outro lado, e este ponto é importante, o Último Sujeito não pode ser senão o objeto, senão a infinita diversidade dos objetos, pois isolá-lo ou diferenciá-lo seria ainda qualificá-lo, portanto reduzi-lo à condição de objeto.

"É no interior do Eu que se desenrola a imagem do universo. Onde mais poderia ela fazê-lo, dado que nada existe fora Dele? Na ausência da consciência pura nada pode existir, em lugar algum. A idéia mesma de um 'lugar' do qual a consciência estivesse ausente é contraditória”. (La Doctrine Secrete de Ia Dé esse Tripura, op. cit.).

A felicidade permanente O puro ser (Sat) e a pura consciência (Chit) são uma realidade única, inconcebível, perfeita: não se pode acrescentar nada a ela, não se pode nada retirar dela. É o Isso (Tat) da célebre fórmula: Tu és Isso.

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Diz-se também, dessa realidade, que ela é pura beatitude (Ananda).

Essa felicidade não tem comparação equivalente com os habituais prazeres e satisfações, pois trata-se de uma plenitude sem causa e sem objeto, de uma felicidade para além das contradições e da dualidade. Todos os nossos sucessos são forçosamente passageiros, frágeis; quanto mais intensos, mais o nosso medo de perdê-los suscita angústia e conflito. Não há um momento de prazer ou de exaltação ao qual não suceda um período de tensão, de frustração ou de aborrecimento. "Olhemos de mais perto. Enganados pela satisfação que os objetos nos proporcionam, constatamos que eles provocam saciedade e mesmo indiferença, satisfazem-nos em um momento, levam-nos à não-carência, devolvem-nos a nós mesmos, mas depois nos enfastiam: perderam sua magia evocadora. A plenitude que sentimos não se encontra neles; é em nós que ela habita; durante um instante o objeto tem a faculdade de suscitá-la, e concluímos falsamente que foi ele o artesão dessa paz. O erro consiste em considerá-lo uma condição sine qua non dessa plenitude.

Nesses períodos de felicidade ela existe por si mesma, nada mais que disso. Em seguida, referindo-nos a essa felicidade, nós lhe sobrepomos um objeto que, segundo nós, foi a sua causa. Portanto objetivamos a felicidade. Se verificarmos que essa perspectiva na qual nos engajamos não nos pode trazer senão uma felicidade efêmera, que é incapaz de assegurar-nos essa paz durável que se situa em nós mesmos, compreenderemos enfim que, no momento em que alcançarmos esse equilíbrio, nenhum objeto o terá provocado. O último contentamento, felicidade inefável, inalterável, sem motivo, encontra-se sempre presente em nós, estando apenas encoberto.”(Jean Klein, La Joie sans Objet, Mercure de France)

Essa pura beatitude, Ananda, não é outra senão o puro ser, Sat, e a pura consciência (Chit). Revela-se espontaneamente quando a dualidade se dissipa (amo-não amo, é necessário-não é necessário, é agradável-desagradável) especialmente no bem-estar integral do sono profundo.

É uma felicidade absoluta, que não tem começo nem fim e não depende de nenhuma circunstância exterior. É o estado próprio da realidade quando desapareceu a ilusão da separatividade, a angústia do eu e do outro.

"Um cosmos que não exprime fundamentalmente a alegria e a beatitude não poderia fazer outra coisa senão se auto destruir desde o início, pois não teria a menor razão para persistir em seu ser. Para conservar esse estado de beatitude, a consciência infinita deve empregar os meios criadores mais engenhosos a fim de suplantar a monotonia, combinando a ordem e o acaso de tal maneira que a ordem não se tome esclerose e o acaso caos.

Nesse sentido, nossa deidade hipotética manteria seu prazer criando a experiência da altenância. Essa sensação, entretanto, não deve tomar-se muito grande. Quando isso acontece, a surpresa transforma-se em frustração, o medo em pânico. No decorrer de tal crise, meu eu profundo deve ter o poder de lembrar que esse jogo é o seu, que a alternância é Maya. É então de outra maneira que ele acordaria, espantado com suas próprias dimensões cósmicas e eternas.”(Alan Watts, Etre Dieu)”.

A realidade ser-consciência-beatitude (SatChit-Ananda) é que eu sou, verdadeira e absolutamente, o que sou no mais íntimo de mim mesmo, aqui e agora e durante toda a eternidade; sou no sentido em que Cristo dizia: "Antes que Abraão fosse, eu sou!"

O incognoscível

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A grande questão, que não cessou de importunar ou mesmo torturar gerações de pesquisadores espirituais, na Índia e noutros lugares, é a de como obter o conhecimento desse incognoscível, como perceber o que está além de toda palavra, de todo conceito, de toda ação, além mesmo de mim e do outro, como executar o que está além de toda execução. Há aí um pungente paradoxo, quase um desafio absurdo, impossível de elucidar.

Como eu, ocidental deste fim do século XX, com meus problemas, meus condicionamentos, minhas emoções, com um sentimento geralmente exacerbado de minha própria pessoa, seus desejos e limites, como posso esperar atingir essa realidade que me dizem ser a minha, essa fabulosa promessa da qual estou tão desesperadamente distanciado em minha prisão de impulsos, medos e cobiças?

Os antigos textos são, a esse respeito, absolutamente claros e pouco encorajadores:

“O olho não chega até aí”,

O ouvido não chega até aí, nem a mente.

Não sabemos, não percebemos como se pode ensinar aqui.

Certamente, isso difere do conhecido.

Isso provém do desconhecido.

Imagina-o bem aquele que não tem idéia sobre ele;

Não o conhece, aquele que tem uma idéia dele.

Aqueles que compreendem não o conhecem;

Aqueles que não raciocinam conhecem - no.”

(Kena Upanishad, 1-3; 2-3, Courrier du Livre)

Em seus comentários, Shankara destaca, por sua vez, o paradoxo: - “Sendo Brama o Conhecedor absoluto, conhece todas as coisas, mas não pode tornar-se, ele mesmo, objeto de seu próprio conhecimento, do mesmo modo que o fogo pode' queimar todas as coisas, mas não a si mesmo. Por outro lado, não se pode dizer que Brama seja um objeto de conhecimento para outro que não ele mesmo, pois fora dele não há nenhum conhecimento (00') Aquele que pensa que Brama é compreendido não o conhece absolutamente. Brama é desconhecido para os que o conhecem e conhecido para os que o desconhecem" .

Tudo isso parece, à primeira vista, discussões intelectuais bastante estéreis e sofisticadas. O que se visa, no fundo, é demonstrar precisamente a impotência do intelecto na etapa decisiva da busca espiritual e metafísica.

A questão permanece, pois, inteira, mas de qualquer modo não receberá resposta formulável. Na verdade não receberá resposta alguma, na medida em que a própria questão desaparecerá como fumaça na absoluta transparência de Brama.

Capítulo IV Ser Deus

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Porquê Os pensadores ocidentais procuram sempre uma chave oculta, um significado e uma motivação suprema que expliquem a natureza das coisas, do universo e da humanidade. Mesmo proclamando que o mundo é absurdo, um simples produto do acaso, um acidente químico, ainda lhe atribuímos um sentido: negativo.

Aos olhos dos orientais, uma tal conduta é extravagante, pois não pode ter significado fora daquele que a concebe. Nenhuma idéia pode ser exterior e anterior ao espírito que a anuncia. A realidade original, de onde procede o conjunto dos fenômenos observáveis e das concepções possíveis, está, portanto, além do senso e do contra-senso, além de uma finalidade ou de uma ausência de finalidade.

Sobre isso os sábios da Índia estão muito longe dos filósofos e teólogos ocidentais, que durante séculos se obstinaram em elucidar o porquê da criação, como se a interrogação pudesse ser extraída e isolada da consciência que interroga. Chega-se assim a uma deprimente sucessão de perguntas e respostas, do gênero: "Por que o mundo existe? Porque Deus quis. Por que Deus quis? Porque Ele é Amor. Por que Ele é

Amor? Porque é Deus. Por que Ele é Deus?... Porque... "

As crianças têm uma grande predileção por essa espécie de diálogo ao qual os pais costumam pôr fim, irritados: "Vá brincar! Você compreenderá mais tarde!.. " Eles mesmos, claro, estão longe de compreender.

Para o vedanta, o porquê das coisas está necessariamente ligado à relatividade, quer dizer, às aparências e a Maya. No plano do absoluto não há mais por quê, pois não há mais um eu separado que possa fazer a pergunta.

Como o Um se torna múltiplo? O campo de investigações do pesquisador hindu refere-se mais à maneira como a inefável realidade do um-sem-um-segundo produz a dualidade, a multiplicidade, as diferenciações e as limitações do mundo fenomenal.

Na concepção judaico-cristã corrente, Deus constrói o universo, definitivamente, tal como um artesão amassa a argila para confeccionar um vaso ou como um supertécnico fabrica uma máquina hipercomplexa. Para o Oriente, a criação não tem nem começo nem termo definitivo, ou melhor, ela começa e termina indefinidamente, a cada segundo.

Certamente há ritmos e ciclos. Assim, nosso cosmos, que apareceu há alguns milhares de anos, deverá desaparecer um dia em conseqüência de uma dissolução geral, mas um outro processo cósmico virá substituí-lo e assim sucessivamente, até o infinito; esses períodos de manifestação e não-manifestação são comparáveis à alternância dos dias e das noites ou da vida e da morte.

Dito isso, o fundo do problema - como o Um se toma múltiplo? - diz respeito a uma realidade atual, absolutamente imediata e constante. Não se trata de um processo excepcional, que se teria produzido num passado hipotético, fabulosamente recuado (como o Gênese do Antigo Testamento), mas de alguma coisa que acontece sem cessar, imediatamente, no âmago de nosso ser e da manifestação inteira.

No seio mesmo da unidade primordial, da perfeita não-dualidade, ao mesmo tempo plenitude e vacuidade indescritíveis, surge um impulso criador, uma vontade de vir-a-ser, de tomar nome e forma. Esse impulso criador é o formidável poder, a prodigiosa energia que movimenta o espaço-

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tempo, acende a fornalha dos sóis, anima a efervescência vibratória da matéria, os turbilhões de átomos e galáxias e depois secreta a vida e difunde a inteligência.

O Senhor dos Mundos Esse insondável poder é chamado Ishvara. Simboliza o aspecto dinâmico e personalizado de Brama quando este é considerado o criador universal.

Ishvara é o senhor dos mundos, a origem e o fim, o alfa e o ômega, o germe inicial e o último ponto de reabsorção. Representa assim o ato - sonho ou jogo - pelo qual o um-sem-um-segundo suscita a dualidade.

Os poderes de Ishvara e de Maya são apenas um. É o limiar onde a absoluta perfeição, cessando de ser auto-suficiente, inventa, projeta, exprime. É o momento em que começa o diálogo do vazio e do pleno, do interior e do exterior, do centro e da periferia, em que os corpos celestes se atiram no abismo, perseguindo-se a si mesmos em círculos gravitacionais desenfreados, em que as células, dividindo-se infinitamente, tornam-se uma multidão de outras para serem ainda elas mesmas, em que a consciência, fugindo da paz de seu próprio silêncio imutável, identifica-se com miríades de eus ruidosos e contraditórios.

Ishvara é o "eu" do "eu sou", que se afirma em cada existência fragmentária, em cada criança que nasce, em cada criatura viva encadeada aos seus desejos e medos de entidade isolada.

Ascender a Ishvara é reencontrar a fonte, o denominador comum, a origem de toda vida e de toda manifestação. Ascender a Ishvara, o supremo Senhor, é ascender ao "eu" criador primordial e universal, além do qual somente há não-dualidade, Brama, sem eu nem outro.

Ishvara, o divino Eu cósmico, engendra neste instante e ao mesmo tempo milhares de sistemas planetários, de nebulosas, de campos eletromagnéticos e inúmeras combinações orgânicas e psíquicas que formam minha própria pessoa.

De certa forma, posso afirmar tranqüilamente que eu sou /shvara, com a condição de não reduzir o Senhor à fina película de lembranças e motivações a que chamo normalmente "eu".

A propósito, a maneira como me empenho para produzir, segundo após segundo, meu corpo, meus pensamentos, minhas emoções é tão misteriosa quanto à existência continuamente renovada do universo "exterior". Quando percebo a que ponto minha pessoa está indissoluvelmente ligada ao seu ambiente, devo começar a suspeitar que uma mesma energia compõe e engendra tudo.

Criador, preservador, destruidor Ishvara é, tradicionalmente, representado sob um triplo aspecto que exprime o ritmo temário de todo fenômeno relativo, de todo processo manifestado.

Com efeito, todo ser, objeto ou acontecimento submetido ao vir-a-ser deve ter um começo, um meio e um fim, um nascimento, um desenvolvimento e uma morte, uma aurora, um zênite e um crepúsculo. Essas três fases, universalmente observáveis, são simbolicamente representadas pelas seguintes divindades: Brama, o criador, Vishnu, o preservador, Shiva, o destruidor.

Trata-se de uma trindade, quer dizer, de um mesmo dinamismo global visto sob três ângulos complementares: o término de um ciclo é igualmente o início de um outro, toda criação implicando uma destruição, a substituição do antigo pelo novo; toda preservação pressupõe criação e destruição, produção e uso de energia. Esse ritmo ternário é perceptível no plano mais cotidiano e mais íntimo: por exemplo, inspiro, retenho o ar, expiro. Ele está no coração da sílaba sagrada AUM.

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A vogal A, que é o som mais espontâneo, mais aberto, traduz bem a fase inicial: é a primeira exclamação, o apelo primordial, o grito da criança que acaba de nascer.

A vogal U constitui um som intermediário, mais fechado, mais defensivo, feito à imagem de um mundo que se estabiliza e se preserva.

O M final exprime o declínio, o último suspiro do moribundo.

A sílaba AUM simboliza, globalmente, o conjunto da manifestação - como, aliás, os três estados vigília, sonho e sono profundo, e, mais' além, até mesmo o silêncio que sustém a sílaba, a realização do Eu.

Observe-se que, invertendo a sílaba AUM, obtém-se o MA, que em todas as línguas designa a mãe. Foneticamente, "Ma" está próximo de moi (me, mim) ou do inglês mine (meu, minha). Há também um parentesco fonético entre AUM, amém, alma, homem e am, do inglês I am, eu sou.

O Dançarino Divino Aos olhos dos hindus, a criação divina assemelha-se menos à obra um pouco estática de um ceramista ou de um escultor do que ao gesto de um dançarino.

As miríades de estrelas, de criaturas, de acontecimentos que formam a trama cambiante do mundo fenomenal são os incontáveis gestos maravilhosamente sincronizados, a extraordinária sarabanda eletromagnética do fabuloso dançarino com milhares de braços, de pernas e de rostos. Trata-se de uma criação contínua, a infinita coreografia executada pelo Senhor mesmo.

"Da mesma forma que o homem torna-se dançarino no momento em que começa a dançar, o Brama não-qualificado, não-manifestado, manifesta-se primeiro sob uma forma infinitamente sutil, depois um pouco mais grosseira, depois ainda mais grosseira, e todos os planos da criação começam a ser, ou melhor, a vir-a-ser, pois que tudo está em constante movimento. Se o dançarino se imobiliza em cena, não é mais um dançarino, torna-se uma estátua. Deus não cessa de dançar, caso contrário à criação pararia. O que é 'real' num espetáculo de dança? Não é a dança e nem mesmo o dançarino, mas sim o homem. Se a dança for suprimida, o dançarino será ao mesmo tempo suprimido, mas o homem que temos sob os olhos continuará. A idéia de que Deus possa desaparecer afigura-se incompreensível à mentalidade ocidental comum. Deus criador desaparece ao mesmo tempo em que sua criação. Se Deus cessa de criar, o Deus criador desaparece. Mas a realidade suprema, o não-manifestado, continua e não pode desaparecer”.(Arnaud Desjardins, Pour une Mort sans Peur, La Table Ronde)

Enquanto for uma sucessão de acontecimentos orgânicos e psíquicos, eu sou uma pirueta, um piscar de olhos, uma furtiva e minúscula figura executada pelo divino dançarino. A mão abre-se: eu nasço; ela traça alguns movimentos de acordo com uma cadência bem específica: cumpro meu destino; o punho fecha-se: eu morro. Esse gesto particular termina, mas a dança e o dançarino continuam. Enquanto gesto - minhas sensações, minhas emoções, meus pensamentos, minha história individual - sou apenas uma pulsação efêmera, imperceptível estremecimento. Enquanto dançarino, sou eterno, imutável, onipresente.

A dança não tem nenhum sentido, nenhuma finalidade - apenas o prazer gratuito de dançar, a satisfação maravilhada do dançarino.

Deus não é sério

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No Ocidente Deus é levado terrivelmente a sério, chegando mesmo ao trágico. Quando falamos dele, usamos um tom grave, enfático, às vezes ameaçador, com mímicas consternadas ou um ar de mártires. Entretanto, existem no misticismo cristão fórmulas como "um santo triste é um triste santo" ou "que meu júbilo permaneça". Mas nossa impressão geral no tocante ao domínio espiritual é compassiva, tensa, sinistra: quanto mais nos aproximamos de Deus, menos somos naturais, descontraídos, espontâneos. É preciso reprimir os impulsos, bater no peito e cobrir a cabeça com cinzas a fim de expiar o pecado original e fazer-nos perdoar pela paixão do crucificado.

Nossa primeira imagem do divino, aquela que assombra a nossa infância e incomoda o nosso inconsciente coletivo há gerações, é a visão de um Deus que sofre, que é torturado para a redenção dos nossos pecados. Face a esse Deus - Pai ou Filho -, estamos numa posição de criminosa culpabilidade.

Por outro lado, como criaturas, estamos vertiginosa e desesperadamente separados do criador.

Tudo isso não induz, absolutamente, a explosões de riso.

Se esse Deus onipotente e absolutamente sério constrói um universo bem distinto dele mesmo, sua obra é, então, uma catástrofe mortal e delirante, um encadeamento de fracassos, frustrações e horrores.

Na Índia as noções de alegria e humor divino são capitais. A própria criação é sempre comparada à brincadeira sem fim de uma criança enlevada. É o que os hindus chamam o Jogo (Li/a) do Senhor. "Se, como Dante sugere”, escreve Alan Watts, "os hinos que glorificam a Santa Trindade se assemelham ao riso do universo, qual teria sido a graça que o provocou?" (Etre Dieu)

O jogo divino Essa idéia de um jogo cósmico e metafísico é uma das chaves do hinduísmo. Do ponto de vista do Jogador, nada é definitivamente trágico. Mas, para que o deslumbramento nunca seja desmentido, para que o interesse pelo jogo se mantenha continuadamente, é necessário que haja risco, incerteza, renovamento, efeito de surpresa, possibilidade de ganho e perda, aparência de tensão e de conflito. Para que o jogo seja verdadeiramente apaixonante e convincente, é necessário que o jogador esqueça que está jogando, que se deixe levar pelo encanto e contradições da partida.

Essa Lila do Senhor é, portanto, igualmente Maya.

No fundo, porém, o jogador sabe perfeitamente que se trata de um jogo - o jogo do eu e do outro, o jogo da vida e da morte, do prazer e da dor, do bem e do mal, do conhecido e do desconhecido, do acaso e da necessidade. A qualquer momento o Jogador pode dizer: "Não há nada a temer, tudo isto é um jogo". Então seu semblante se ilumina e ele tem o sorriso do Buda, de Ramakrishna ou de Ramana Maharshi.

Mas, quando se absorve em seu jogo, o Jogador identifica-se com a partida - com as inúmeras partidas jogadas simultaneamente -, confunde-se com os milhares de acontecimentos, de objetos, de criaturas fugazes que formam a trama do mundo fenomenal.

"Minha majestade, ó sábio, é sem limites. Sem depender do que quer que seja, Eu, a pura consciência indivisa, fulguro sob a forma dos mundos infinitos. E, manifestando-Me sob essa forma, não infrinjo a Minha natureza de consciência estranha a toda dualidade. Minha majestade reside, antes de tudo, no cumprimento deste prodígio: suporte de todas as coisas, presente em

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todo lugar, continua retirada do mundo. Enganada por minha própria Maya, desconhecendo-Me a mim mesma, Eu transmigro desde os tempos imemoriais; depois, tornando-Me discípula de um mestre, reconheço-Me novamente. Embora eternamente livre, devo libertar-Me novamente sem cessar. E de novo Eu recrio, semelhante a ela mesma, a infinita diversidade do universo, sem recorrer a nenhum material. Tais são os múltiplos aspectos de Minha soberana majestade. A marcha do mundo inteiro, esse imenso desenrolar de acontecimentos, revela apenas uma ínfima parte dela." (La Doctrine Secrete de ia Déesse Tripura)

Um poder mágico ilimitado Essa perspectiva é um pouco difícil de compreender para um ocidental, na medida em que imaginamos sempre um Deus onisciente, onipotente, exercendo sobre o universo um controle total, um domínio absoluto, quer dizer, a imagem de um ego hipertrofiado ao infinito, de uma vontade inteiramente rígida e tensa, aferrolhada em seus próprios esquemas e princípios, encadeada no seu próprio imperativo de tudo regulamentar - o contrário de uma espontaneidade criadora, inebriada com suas próprias descobertas.

Considerando a questão sob outro ângulo, se tivéssemos um poder mágico limitado, a possibilidade de satisfazer instantaneamente aos nossos desejos mais sublimes, mais terríveis, incomensuráveis, com total certeza de cada resultado, não tardaríamos a defrontar-nos com a monotonia e o tédio. O que seria, em suma, bastante deprimente.

E, naturalmente, seríamos conduzidos sempre graças ao nosso poder mágico - a inventar obstáculos, armadilhas, engodos, ou seja, a suscitar o inesperado, o imprevisível, o incontrolável. Uma criança que brinca, por exemplo, de amarelinha ficaria mortalmente aborrecida se chegasse da primeira vez e sem errar à última casa. A ignorância da etapa seguinte, a incerteza do amanhã, os riscos de contratempos e de fracassos são as condições indispensáveis para manter o entusiasmo do Jogador e a atração pela partida.

É exatamente assim que se desenvolve a nossa existência. Noutras palavras, tudo se passa como se tivéssemos efetivamente esse poder mágico ilimitado de satisfazer aos nossos desejos e como se, para tornar mais interessante todo o processo, nos entretêssemos forjando uma rede incrivelmente sutil e ramificada de regras espaciais e temporais, de limitações orgânicas e psíquicas, um campo vibratório admiravelmente complexo de dados incontroláveis e parâmetros imprevisível, incluindo a hipótese de nossa própria destruição final.

Através da prodigiosa diversidade de partidas iniciadas, ganhas e perdidas, o Jogador permanece como tal, eternamente idêntico a si mesmo, guardando eternamente intacto seu potencial de surpresa.

O jogo do eu e do outro No plano do fenômeno humano e do processo individual, o Jogador joga para ser Eu, uma incalculável miríade de Eus que aparecem, desaparecem e reaparecem sob formas e situações incessantemente diferentes. Joga assim para ver-se a si mesmo através de inúmeras bocas, fazer-se amor através de inúmeros corpos, recordar-se de si mesmo, comover-se, pensar-se, imaginar-se através de inúmeros psiquismos, esquecer-se e apagar-se através de inúmeras mortes, para poder recomeçar-se através de inúmeros nascimentos.

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E todos esses eus que aparecem, tremulam e definham na superfície de seu ser, todos esses reflexos que se iluminam, piscam e se extinguem na luz de seu olhar não são outras coisas senão o seu ser, o seu olhar.

"Os brancos devem ganhar!” Essa perspectiva metafísica esclarece particularmente o lancinante problema do Bem e do Mal.

Na maior parte das teologias ocidentais, Deus é identificado (e por isso mesmo limitado) com o Bem absoluto, inocentado de todo mal, cuja responsabilidade recai apenas sobre a criatura, que escolhe livremente o caminho da mentira e do crime.

Esse ponto de vista acarreta paradoxos opressivos e intransponíveis: se Deus não "desejou" o mal, como pôde modelar um mundo imperfeito e criaturas corruptíveis? Ou então é preciso admitir que Deus não é esse soberano todo-poderoso, este mestre incontestável; é preciso supor que divide seu poder' com um dúplice maléfico, o Diabo - e ele deixa, é claro, de ser o Criador único de todas as coisas.

Encarada dessa maneira, a questão é insolúvel: a despeito das mais belas acrobacias escolásticas, os filósofos e os teólogos perderam o seu latim. E jamais alguém pôde responder ao terrível por quê de uma mãe prostrada diante do cadáver de seu filho. Se Deus é infinitamente bom, então sua obra é um miserável fracasso - malgrado os piedosos discursos sobre "as vias impenetráveis da Providência".

Tendo lançado a culpa exclusivamente sobre o homem (pecado original), a mentalidade religiosa egressa da Bíblia precipitou-nos, individual e coletivamente, numa espécie de cruzada encarniçada visando extirpar, a qualquer preço, o mal do universo. Um tal militantismo inspira comportamentos cada vez mais constrangedores, empreitadas cada vez mais totalitárias e neuróticas, que visam eliminar um dos aspectos do real a fim de conservar apenas o outro, como se pudesse existir o alto sem o baixo, a esquerda sem a direita, o branco sem o negro. "Somos os filhos, os aliados, os soldados do Senhor. O Senhor é inteiramente branco: exterminemos o negro!" É evidente que se pode dizer exatamente o contrário, e é o que fazem os satanistas: "O Senhor é inteiramente negro, o branco é uma ofensa, suprimamos o branco!"

"Em outras palavras, não joguemos o jogo do negro-e-branco, o jogo universal do alto-baixo, do anda-pára, do sólido-espaço e do cada um-todos, mas o jogo do negro contra o branco ou, mais habitualmente, do branco contra o negro. Então, não compreendendo que os pólos negativos e positivos do ritmo são inseparáveis, tememos que o negro ganhe a partida. Mas o jogo do '.branco-deve-ganhar' não é mais um jogo. É um combate - um combate perseguido por um sentimento de frustração crônica, pois agir assim é tão tolo quanto procurar conservar as montanhas livrando-se dos vales. Eis por que há milênios a história da humanidade se reduz a um conflito tremendamente fútil, a uma parada esplêndida de triunfos e de tragédias fundada sobre um tabu: o que se opõe resolutamente ao reconhecimento do fato de que o negro e o branco formam um par. Sem dúvida, não há outro exemplo de um nada que não vai a parte alguma com uma majestade tão fascinante." (Alan Watts, Le Livre de Ia Sagesse, Denoêl)

Para o vedanta, o antagonismo do Bem e do Mal é apenas um jogo de contrastes, uni efeito claro-escuro inerente à natureza essencialmente rítmica da manifestação. Por trás das lutas e das diferenças há a unidade fundamental do Jogador, o um-sem-um-segundo, o isso dos Upanishads.

O Bem sem o Mal é tão inconcebível quanto, no decorrer de um jogo qualquer, encarar a possibilidade de ganhar sem aceitar a possibilidade de perder. O único problema é a tendência

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que tem o Jogador de identificar-se com os ganhos e as perdas assim que, esquecendo que é o Jogador, se assume como tal ganhador ou tal perde dor. Notemos, entretanto, que mesmo esse esquecimento faz parte do Jogo.

O ator cósmico Que são, entretanto, o sofrimento inocente, a doença, a fome, a tortura, as violações, os massacres,

esse imenso grito ininterrupto de angústia que se eleva, desde a noite dos tempos, do coração da humanidade enlutada, dilacerada?

A resposta da Índia pode desconcertar-nos ou chocar-nos, mas a visão que ela nos propõe é a um tempo grandiosa e soberbamente coerente.

Nessa gigantesca fantasmagoria teatral que é o seu Jogo cósmico e metafísico, o Jogador divino compõe e interpreta ao mesmo tempo todos os papéis concebíveis, do rei, do mendigo, do mercador, da prostituta, do sábio, do louco, do amante, da amásia, do carrasco, da vítima, do ditador triunfante e da criança morrendo no incêndio, da vedete famosa e do canceroso incurável, do oficial alemão agonizando sob os escombros de Estalingrado e do resistente capturado pela Gestapo, do soldado israelense e do terrorista palestino, do chefe de Estado que é assassinado e de seu matador, do adolescente que espera seu primeiro encontro amoroso e do velho que não espera mais nada.

O Jogador interpreta todos esses papéis e o faz com perfeição, quer dizer, de uma maneira inteiramente crível, sem negligenciar o menor detalhe de encenação: guarda-roupa, acessórios, cenários, desde as mais longínquas galáxias até os menores átomos. Nesse drama com dimensões de infinito e de eternidade ele é ao mesmo tempo o autor, o realizador, o ator e o espectador, com milhares de corpos, semblantes, situações e réplicas. Mas através de todos esses papéis ele não cessa de ser ele mesmo. Assim como um ator na plena maturidade de sua arte sente um intenso prazer ao encarnar toda espécie de personagens, os mais odiosos e os mais desesperados, da mesma forma, é uma felicidade sem igual, uma satisfação extasiada para o divino Jogador revestir tamanha diversidade de formas e de disfarces mesmo atrozes, monstruosos ou débeis.

Sentidos como realidades absolutas, definitivas, nossos sofrimentos aparecem como a prova da iniqüidade do Criador ou do despropósito do mundo. Se os situarmos na mobilidade e interdependência rítmica de um jogo universal, poderemos despertar para outra consciência da vida e considerar com um olhar novo o que julgamos inaceitável.

Como fica a moral? Pode-se perguntar, então, como fica a moral: porque as leis, uma ética, sanções e recompensas? Se Deus é ao mesmo tempo o Bem e o Mal, por que fazer o Bem, e não o Mal? É um fato que muitas vezes foi censurado no vedanta não-dualista, essa ausência de conteúdo moral: nenhum critério, nenhuma motivação, nenhuma proteção.

Graves confusões podem nascer de uma compreensão incompleta ou deformada do ponto de vista hinduísta sobre essa matéria.

O que nós chamamos o Mal está essencialmente ligado ao sofrimento - aquele que sentimos e aquele que infligimos. Na raiz de todo sofrimento há conflito, contradição entre eu e o mundo,

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entre o que eu desejo e o que acontece. Volta-se a essa estranha ilusão de existir como "eu", distinto, como entidade isolada, separado.

Em outras palavras, a origem do mal é a Ignorância (Avidya) enquanto expressão psicológica de Maya.

Enquanto eu me identificar com processos físicos, emocionais ou mentais fragmentários e transitórios, estarei forçosamente lançado, perdido num universo ameaçador, obrigado a lutar ferozmente para manter e impor minha" integridade" individual. Donde a necessidade de conquistar um território, de acumular bens, de interpretar um papel, de afirmarme como um ego face a um ambiente suscetível de me machucar e me esmagar.

O Mal (ou seja, o sofrimento e os conflitos) é, portanto, uma conseqüência direta e inelutável do mal-entendido fundamental, do grande embuste que oculta a nossa verdadeira natureza: realidade única, totalidade indissociável.

A ignorância Abordando a questão um pouco diferentemente, deve-se observar que ninguém jamais fez o mal em plena lucidez, com perfeito conhecimento de causa. No momento todos estão sempre persuadidos de que sua ação constitui a única resposta, a única solução possível o que não exclui, evidentemente, nem as aflições, nem os remorsos e nem as crises de consciência.

Toda ação moralmente contestável apresenta-se ao seu autor não como uma vontade deliberada de prejudicar, mas como a escolha de um mal julgado relativo para evitar um mal julgado insuportável. Mesmo o ato mais bárbaro e mais monstruoso reveste, aos olhos do carrasco, no instante em que ele o comete, um caráter de legítima defesa ou de imperiosa necessidade. "Ou eu ou ele... não posso agir de outra forma..." O sentimento de culpa aparece geralmente mais tarde. Mas pode também surgir durante o ato, pois a pessoa está interiormente dividida, solicitada por motivações incompatíveis, por eus antinômicos.

Porém a Ignorância (Avidya) não causa somente o Mal - mentira, violência etc. Ela é também a origem do que é comumente chamado o Bem.

Todo altruísmo implica a busca de um prazer, ao mesmo tempo sutil e intenso, a identificação com um eu ideal, generoso e sublime que causa, acima de tudo, um considerável reforço do ego.

Na infinita rede de relações interdependentes onde se inscrevem nossos destinos, como saber objetivamente o que se deve ou não considerar como um bem para os nossos semelhantes? Um acontecimento considerado a curto prazo como desastroso pode revelar-se, com o passar do tempo, excepcionalmente benéfico - e vice-versa. Quem pode estar certo de que, ao aliviar uma miséria, não irá provocar indiretamente uma vicissitude mais feroz?

Se desejamos levantar uma ponta do véu da Ignorância, devemos, antes de mais nada, reconhecer essa impotência e esse mistério.

Livre do Bem e do Mal Diz-se do libertado-vivo (Jivan-Mukta) que ele está livre do Bem e do Mal. Pode-se deduzir daí que tudo lhe é permitido, sem freio nem lei de espécie alguma?

Desde que percebe seu eu real, seu ser profundo como idêntico ao ser de todas as coisas, ele cessa completamente de identificar-se com um ego separado, em rivalidade mortal com o universo. O

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que ele sentia antes como agressão, ferimento, ofensa, começa a parecer-lhe a modulação de uma sinfonia universal de que ele é, fundamentalmente, o compositor, o maestro e o intérprete. Ódios, invejas, intolerâncias, cóleras tomam-se, aos seus olhos, incongruências, absurdos; pois, se eu e os outros somos apenas Um, todo impulso destruidor equivale a querer mutilar-me a mim mesmo. Nestas condições, como desejar o "mal" a quem quer que seja? Meu pior inimigo acredita-se meu pior inimigo apenas porque ignora essa idêntica realidade que sustém e anima nossos respectivos vir-a-ser. Vou, portanto, tomar-me cúmplice dessa Ignorância que, aliás, é para ele, antes de tudo causa de sofrimento?

Estamos, assim, muito perto das palavras do Evangelho. Notemos a este respeito que a árvore fatídica do Gênese, aquela de que não se podia provar o fruto, é a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal.

O ser anterior à falta, vivendo no eterno aqui e agora da presença divina, é também anterior a toda dualidade, a toda separação, a toda oposição. Essa unicidade pode chamar-se Amor - o amor que só faz reconciliar e unificar todos os contrários.

Curado da estranha doença dualista, o sábio está em total adesão com aquilo que é. A paz e a felicidade que ele irradia são como um voto de ventura ilimitada para tudo o que vive e sofre. Mas os critérios do homem desperto nada têm a ver com os da mente comum. Ele sabe que a verdadeira alegria - aquela que permanece - não é, em nenhum caso, tributária de circunstâncias exteriores favoráveis ou desfavoráveis, que não poderia depender de uma satisfação parcial, de uma exaltação passageira, de um contentamento provisório; sabe que ela está além da fortuna e da miséria, da saúde e da doença, do êxito e do fracasso. Sabe também que somente essa alegria é inalterável e real, todo o resto estando condenado à mudança, à destruição e à morte. O único bem que ele pode desejar a seus semelhantes é o Bem Supremo, um bem que nada pode ofuscar ou interromper, nem a dor física, nem os golpes do destino, nem a decrepitude, nem mesmo a morte, pois que ele não está subordinado nem ao vir-a-ser nem às metamorfoses, um Bem sem contrário, quer dizer, além do Bem e do Mal. .

Consciente do caráter fantasmagórico dos sucessos e das tristezas, o libertado está em perfeita comunhão com todas as vibrações do cosmos, com todas as ondas de prazer e de sofrimento que rolam e marulham na superfície do Oceano. Mas sabe que as ondas são o próprio Oceano e que esse oceano é um infinito de beatitude.

Na ótica do vedanta, somente aquele que desperta alcança a felicidade, pois renunciou a possuir a felicidade.

Da mesma forma, somente ele alcança o bem, pois está livre de qualquer pretensão afazer o bem como ego isolado afirmando-se benfeitor do mundo.

O Bem não é alguma coisa que se possa fazer e impor, pois nesse caso pode-se cair no constrangimento e no mal. Somente a Ignorância - a grande ilusão do eu e do outro - é que deve ser dissipada. Então, o Bem-Além-do-Bem, Brama-Sem-Um-Segundo, revela-se espontaneamente em seu esplendor indivisível.

Mas cada um deve realizar esse despertar sozinho: transforma-te, e a realidade inteira se iluminará.

O Dharma A libertação (Moksha) não implica absolutamente um retiro, uma rejeição do mundo e da sociedade. O libertado não deixa de viver na trama dos fenômenos relativos e dos acontecimentos

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cotidianos. Não se retira obrigatoriamente para uma gruta ou um mosteiro. Ele bebe, come, dorme; trabalha, têm uma família, amigos, ócios, um conjunto de atividades que requerem escolha, decisões, linhas de conduta.

Uma das noções mais essenciais da cultura e da civilização hindus é a do Dharma.

"O sentido mais geral que os hindus dão à palavra Dharma parece ser 'ordem cósmica', com todas as suas conseqüências. A esse sentido se prende aquele em que Dharma representa a vida, sem a qual a ordem cósmica não pode existir, sendo que ela mesma não pode existir sem a ordem cósmica. Quando dessa significação universal se passa a aplicação individual, chega-se naturalmente a ver no Dharma aquilo que faz com que cada coisa esteja em seu lugar e represente seu papel na ordem cósmica, ou seja, a propriedade característica essencial de cada entidade”. (Jean Herbert, Spiritualité Hindoue, Albin Miche1)

Esse termo diz respeito, portanto, ao conjunto das leis que devem ser respeitadas, dos deveres, das obrigações, ao papel de cada um ao longo de sua existência.

Observar o Dharma é responder às situações com um comportamento adequado em função dos diversos dados históricos, sociais, profissionais, familiares, atávicos, psicológicos que compõem o ambiente de cada um, o encadeamento particular de causas e efeitos no qual se insere cada destino particular.

No seio do imenso concerto sinfônico universal, cada um de nós representa, enquanto fenômeno físico e mental relativo, uma variação sobre um mesmo tema. Esse tema deve ser executado fielmente, com os acompanhamentos harmônicos, o desenvolvimento rítmico e o tempo correspondente, sob pena de se cair na cacofonia.

Ainda uma vez, nossa existência é um papel, ou melhor, uma sucessão de papéis sobre a cena do grande drama cósmico escrito, realizado e interpretado pelo ator divino - nosso eu profundo. A justa resposta, a atitude adequada, o respeito ao papel e ao cenário consistem, antes de mais nada, em sentir-se em completa adesão com a situação vivida, quer dizer, não sabotar a peça mudando o diálogo e descaracterizando o personagem. Ora, é precisamente isso que fazemos sempre que não aceitamos a realidade, sempre que projetamos nossos desejos e temores sobre o simples desenrolar da vida, sempre que contestamos e negamos o que é. "Eu quero... eu não quero... É necessário... Não é necessário..."

A única liberdade A grande impostura, a armadilha infernal, é nos acreditarmos os autores de nossas ações como egos mutáveis e distintos.

A multidão de eus transitórios, físicos, emocionais e mentais que ocupa as diferentes seqüências do meu destino são uma sucessão de réplicas inseparáveis do conjunto do drama. Os papéis não podem decidir ser ou não ser o que são. Resultam de um encadeamento inelutável. No decorrer de um dia posso ser sucessivamente motorista, pedestre, apreciador de uma boa refeição, freguês de uma loja, leitor, amante etc. Nenhum desses desempenhos é deliberadamente escolhido como tal. Minha existência inteira é um mosaico temporal de papéis, de onde se destacam certas linhas gerais, certas figuras de conjunto. Há papéis menores, fugitivos, e papéis dominantes. Há papéis secretos, camuflados, que se escondem sob uma máscara ou disfarçam sua voz todas as personagens reprimidas e censuradas pelo inconsciente.

Enquanto mantiver a ficção de que sou eu quem decide, de que sou o autor de minhas ações e o dono do jogo, estarei mantendo a ficção de um ego distinto, de uma entidade isolada, separada,

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dotada de consistência e realidade próprias - daí as tensões, os conflitos, o implacável mecanismo dos desejos e dos medos.

Em suma, quanto mais eu me acredito livre, tanto mais sou subjugado pelos efeitos perversos de minha própria ilusão.

O despertado sabe que é absurdo e insensato pretender ter livre arbítrio enquanto fenômeno individual. Compreendendo e aceitando totalmente essa escravidão, ele atinge uma perfeita liberdade interior porque, em vez de desejar constantemente outra coisa, além, de outra maneira, deseja apenas o que é, tudo o que é.

Do seu ponto de vista, a noção de liberdade não tem um sentido fragmentário: um dedo não pode apontar para o céu se a mão pende para o chão. E devo seguir o movimento da grande mão histórica, econômica, biológica etc. de quem sou um dos inúmeros dedos. Se endureço, se resisto, tenho todas as possibilidades de entortar ou quebrar.

Ao contrário, desde que se revela a minha natureza essencial, desde que aparece claramente a minha identidade fundamental como o divino Jogador, todo esse universo - a começar por minha própria pessoa - torna-se o Meu Jogo, um jogo maravilhosamente livre e espontâneo. Fico inteiramente livre, como dançarino cósmico, nas figuras que invento a cada instante e na dança global, mas onde está minha liberdade, como gesto particular do dançarino?

"Quem, a não ser o sábio, é mais livre que o ator de teatro, inteiramente submetido ao texto escrito pelo autor e à encenação? O ego do ator fica provisoriamente nos bastidores. O ator não se identifica com a personagem que representa, está interiormente consciente dessa personagem, mas livre de seu próprio ego, com o qual se identifica inteiramente fora do palco. Por efeito dessa submissão completa ao texto e à encenação, por causa mesmo dessa submissão, ele vive durante duas ou três horas (por menor que seja o seu papel) numa extraordinária e maravilhosa liberdade. O ator não tem escolha, portanto não tem problemas. É levado pelo texto e pela encenação, e, como não tem preocupação de espécie alguma com o vir-a-ser - com a condição de ter decorado seu texto, sem falhas de memória! -, vive rigorosamente de instante a instante, na certeza de que o momento seguinte será fácil e harmonioso, pois que, parafraseando uma célebre fórmula do Islã, 'tudo está escrito '.

"O mesmo acontece com aquele que ultrapassou o plano do ego e da mente: para ele a vida desenrolase como uma peça de teatro, sua adesão à situação é total, de segundo a segundo, e é a própria situação que, de segundo a segundo, lhe assopra as réplicas e o desempenho, à maneira de um ponto de teatro. Todo receio, hesitação, dúvida, medo, apreensão desapareceram. O sentimento calmo e sereno do ator continua, apesar das vicissitudes do papel. No mesmo instante em que um ator está representando em cena sua traição, sua morte próxima, sua ruína, ele próprio continua perfeitamente sereno, ainda que seu desempenho emocione os espectadores. Do mesmo modo, o homem que ultrapassou o plano da motivação individual vive numa paz perpétua, em decorrência dessa adesão perfeita ao movimento geral do universo. E essa adesão é possível' Eu faço o que quero' torna-se 'eu quero o que faço'. Não há mais nenhuma apreensão quanto ao futuro, nenhum temor. Quaisquer que sejam as conseqüências dos atos elas são antecipadamente aceitas, porque não há nenhum medo, nenhum conflito." (Arnaud Desjardins, A ia Recherche du Soi)

Nem transe nem êxtase Qualquer que seja o seu Dharma - comerciante, vagabundo, príncipe, professor, prisioneiro, doente ou milionário -, o sábio o assume com alegria. Sabe que se trata de um papel concebido

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por seu eu profundo, que compõe e interpreta, ao mesmo tempo, todos os outros papéis, todas as outras formas do mundo manifestado.

Aliás, somente aderindo inteiramente ao seu Dharma - que é sua própria vida, de segundo em segundo - é que o pesquisador espiritual atinge a libertação final (Moksha).

A consciência do despertar costuma ser representada como um estado superior, extático. Imerso numa espécie de beatitude vegetativa, insondável, o sábio estaria afastado das sensações ordinárias, incapazes de falar ou de agir.

Diversas disciplinas de ascese, notadamente algumas formas de ioga, podem efetivamente comportar experiências desse tipo, que os hindus denominam Samadhi. "O Samadhi não é, como às vezes se acredita, a Libertação. É simplesmente um estado de consciência excepcional, no qual o homem está mais ou menos desligado da influência do mundo exterior e da obsessão do seu ego e onde pode, por conseqüência, dispor de meios de investigação superiores àqueles que normalmente utilizamos”. (Jean Herbert,

Spiritualité Hindoue)

Mas o verdadeiro objetivo do caminho vedântico nada tem a ver com transes ou visões celestes ou com a procura de poderes sobrenaturais. Esses fenômenos, que tanto fascinam os ocidentais, são consideradas armadilhas e situações difíceis, pois os estados extáticos e os talentos miraculosos arriscam exaltar o ego e reforçá-lo perigosamente.

Um estado particular, por sublime que seja, ainda está limitado no tempo, tributário de condicionamentos e fatores determinados. Como ilustração, os hindus contam a seguinte história: um dia um grande iogue pediu ao seu discípulo que lhe trouxesse água. Enquanto este se distanciava o mestre imergiu em profundo Samadhi. Assim que saiu do êxtase, vários séculos haviam decorrido. E ele pediu imediatamente: "Tenho sede. Onde está minha água?" Essas experiências grandiosas não seriam, de fato, um pouco irrisórias, já que depois se recai nos mesmos problemas, nas mesmas contradições?

Uma ficção lingüística e social A Libertação não é nem um estado especial nem uma experiência passageira. Não pode ser o objetivo de um plano ou de uma técnica, não é algo que se possa adquirir ou ganhar. É isso que torna terrivelmente paradoxal e quase desesperadora a posição do aspirante: como se pode desejar não desejar mais? É a quadratura do círculo.

Entretanto, algumas alegorias apontam um modo mais perfeito para a compreensão dessa finali dade. Por exemplo, a da nudez: todos estamos constantemente nus sob as nossas roupas. Não há necessidade de fabricar, de inventar a nudez, mas apenas de revelá-la. Não há nada a acrescentar ao que já é basta tirar a roupa; mas é necessário saber tirá-la. A criancinha firmemente enrolada por sua mãe durante o inverno é impotente diante de um fecho ecler, botões, colchetes, suspensórios etc. Na sua falta de jeito, impaciente, consegue apenas abafar-se ou apertar-se ainda mais.

Outra imagem: se eu sonho que sou um gato e se me perguntam, quando acordo, em que momento me tornei um homem, eu responderia, evidentemente, que jamais cessei de ser um homem, que simplesmente sonhei ser um gato. Mesmo se tive em meu sonho a intensa convicção de ser um gato, reconheço agora a minha verdadeira natureza e sei que jamais fui outra coisa. Eis por que os libertados-vivos não respondem a perguntas como: Qual é sua idade? Quando nasceu? De onde vem? etc. Despertados para o ser eterno e imutável que é a única realidade de todas as

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coisas, como poderiam ter nascido, ter uma idade, um domicílio, uma proveniência? Estão em todo lugar, em nenhum lugar e sempre - aqui-e-agora. Sua posição é análoga à do sonhador que sabe que está sonhando: quaisquer que sejam as peripécias do sonho, terríveis ou feéricas, ele as saboreia com deleite, e as seqüências não são para ele nada mais que o filme de sua própria mente.

Do mesmo modo, como o "eu" se tornou aos seus próprios olhos uma pura ficção lingüística e social, muitos indivíduos, na Índia, falam de si próprios na terceira pessoa. Notemos que é assim que se exprimem às crianças muito novas, num período da existência em que a identificação com o ego não é ainda soberana, em que o "eu" ainda não parasitou completamente a consciência de ser.

Na perspectiva do Jivan-Mukta, o desenrolar da existência normal não é percebido como "estou em forma, estou cansado, sinto, penso, faço", mas de preferência "ele tem tal sensação que aparece e desaparece, tal pensamento que se delineia e se desfaz, tal ação que terminou". Se continuar a usar o "eu" é por ser apenas uma convenção verbal despida de todo conteúdo intrínseco, o que denomina tradicionalmente" o estado sem ego" .

O libertado-vivo Definitivamente desperto para sua verdadeira natureza que é a fonte de toda manifestação, o sábio engloba ao mesmo tempo e ultrapassa as noções de ordem e caos, de senso e contra-senso. A realidade não tem necessidade nem de explicação, nem de justificação, nem de qualquer finalidade. Ela É, simplesmente; e esse ser inefável, perfeito, é auto-suficiente, sem perguntas, sem comentários nem teorias de qualquer espécie. Há na Libertação uma espécie de evidência imediata, indestrutível e absoluta, intraduzível em palavras. "É ISSO, é assim, Aum, Amém, Assim seja”. De fato, nenhuma fórmula pode exprimir o indescritível vivido no despertar.

A liberdade interior é, desde então, absoluta: estabelecida na eternidade do meu eu real, já não sou dependente das impressões agradáveis e desagradáveis. O medo da morte desaparece por inteiro, porquanto se torna claro que não posso, essencialmente, nem nascer nem morrer. Renunciando ao "eu" e ao "meu", renuncio a qualquer espécie de limitação e uno-me ao infinito, ao passo que a mente normal renuncia continuamente ao essencial para apegar-se a quimeras decepcionantes.

"Aquele que apaziguou em si toda inquietude relativa ao estado manifestado - que, apesar de dono de um corpo composto de partes, é ele mesmo sem partes.

Cuja mente está livre de todo temor - aquele é considerado um libertado-vivo.

A ausência de idéias como' eu' ou 'o meu', mesmo nesse corpo vivo

Que o segue como uma sombra - eis a característica do libertado-vivo.

Não se com prazer com a lembrança dos dias felizes do passado - não se atormentar com o futuro

Observar o presente com igualdade - eis as características do libertado-vivo. Seja o espetáculo agradável ou desagradável, guardar, em todas ocasiões,

A mesma atitude e a mesma tranqüilidade de espírito: eis a característica do libertado-vivo.

Honrado pelo justo ou perseguido pelo injusto, aquele que se mantém sempre

Na mesma equanimidade - aquele é considerado um libertado-vivo."

(Shankara, Le Plus Beau Fleuron de Ia Discrimination)

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Vista de fora, a Realização, que marca o desaparecimento das emoções, das paixões, pode parecer o cúmulo da monotonia, do tédio e da indiferença. Na verdade não é nada disso. Em íntima adesão com o instante presente, aqui e agora, o sábio percebe a vida como uma prodigiosa metamorfose, um jorrar de cada segundo. Já não vê o mundo através das projeções da mente e do inconsciente. Está perpetuamente aberto ao desconhecido, à espontaneidade do real. Portanto, é uma satisfação e um deslumbramento infinitamente renovados, e cada seqüência da manifestação relativa tem um sabor único e perfeito.

Livre de todo conceito e de toda referência o Jivan-Mukta não opõe mais o finito e o infinito, o relativo e o absoluto, a Ignorância e o Conhecimento, não opõe nem mesmo Maya e Brama, ou servidão e libertação. Ele mesmo não se vê nem como um grande sábio nem como um desperto, pois não há mais sujeito nem objeto - ninguém para identificar-se com o que quer que seja.

"Nunca nasci, não morro jamais; não há nenhuma atividade em mim, nem boa nem má, nem sagrada nem profana. Sou o puro Brama, vazio de todas as qualidades diferenciadoras limitantes, antagônicas. Como pode haver em mim alguma coisa que se assemelhe ao encadeamento ou à libertação?"

(Avadhuta Gîta, I, 59).

CAPÍTULO V A PRÁTICA Somos interessados? Após estes resumos gerais sobre o caminho do vedanta não-dualista, pode-se perguntar como a perspectiva libertadora que ele nos propõe pode ser realizada, efetivamente, pelos homens e. mulheres deste fim de século XX, no contexto da nossa civilização industrial - toda esta abordagem perdeu o sentido se não for posta em prática ou experimentada diretamente.

O problema é saber se as palavras dos Upanishads e de Shankara interessam apenas a alguns ascetas dos contrafortes do Himalaia ou se podem igualmente aplicar-se a nós, e como.

O modo de vida e de pensar de um ocidental moderno afigura-se como' o oposto da antiga sabedoria: obsessão dominadora, agitação patológica, hipertrofia do ego, necessidade exacerbada de poder e de prestígio, terror exagerado diante da doença, da velhice, da morte e, sobretudo, infantilidade geral que nos leva a procurar as soluções essenciais fora de nós mesmos, esperando fórmulas, receitas, sistemas políticos, econômicos, sociais, como a criancinha reclama a sua mamadeira.

Aliás, entre os imperativos do trabalho cotidiano, as longas horas de transporte, o embrutecimento audiovisual, um ambiente muitas vezes deprimente e um contexto social nervosamente arrasador, que disponibilidade verdadeira nos resta para uma busca espiritual, um roteiro de transformação interior?

Devemos ser bem claros aqui. Quaisquer que sejam a época e a civilização um tal caminho requer, de início, um desejo pessoal intenso e um empenho profundo que nada têm a ver com amadorismo ou simples curiosidade superficial. É um trabalho para toda uma vida e uma preocupação para cada momento. É inteiramente ridículo dizer: "Se eu fizer um pouco de ioga, ou de zen ou de vedanta, a vida será mais fácil etc. " Se esta busca não se tornar a própria existência, de segundo em segundo, transformar-se-á num devaneio estéril, fadado ao fracasso.

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É necessário que num momento se imponha à imperiosa necessidade de uma transformação interior radical.

Semelhante aspiração só pode resultar de uma convicção íntima, estritamente individual e específica, totalmente independente de idade, meio, situação ou nível cultural. "Um em mil Me procura, e um em um milhão Me encontra", diz o Bhagavad Gîta.

Um diagnóstico indispensável Uma constatação simples e quase banal, que age como estimulante para esse caminhar e que em todos os tempos mobilizou os pesquisadores espirituais, é que, por mais longe que cheguem nossas recordações, estamos sempre empenhados numa busca desvairada e decepcionante da felicidade. Nossas satisfações e alegrias não passam de minúsculos oásis de luz num sombrio deserto de tensões, conflitos e ansiedades. Quando nos sentimos em paz, o medo de perder as vantagens adquiridas e o desejo de novos ganhos vêm despertar outros temores, outras angústias. Mesmo quando não temos problemas urgentes, quando nossa existência se mostra particularmente favorecida, estamos ainda à mercê do "mal de viver", do tédio, das carências afetivas, tendo como pano de fundo a obsessão da solidão, da decrepitude, da morte.

Esse diagnóstico não é nada encorajador, mas é indispensável. Nada é possível enquanto não se está inteiramente persuadido do caráter falacioso e enganador das felicidades comuns, aquelas que se esperam dos acontecimentos exteriores, como se fosse possível apreender o curso da realidade mutável, deter e fixar definitivamente um momento agradável, uma experiência de exaltação.

O encontro frustrado É aqui que podem intervir esses grandes médicos da alma humana que são os sábios tradicionais e os mestres da Índia. Sua mensagem pode ser resumida brevemente: a felicidade é possível, mas não aquela em que se costuma acreditar.

Essa felicidade é inaudita, incomensurável, como jamais se ousou imaginar mesmo nos sonhos mais delirantes; é uma felicidade suprema, que nós trazemos dentro de nós mesmos, no âmago do nosso ser, que é nós mesmos, que é o fundo do nosso ser. E é justamente porque nos apegamos sem cessar às felicidades factícias, às satisfações ilusórias, que estamos perpetuamente afastados dela, subjugados por mecanismos dolorosos, arrastados numa ronda sem fim de frustração e avidez.

Cada instante de nossa vida é um encontro frustrado com esse deslumbramento sem limites, comparado ao qual os mais sublimes encontros amorosos não passam de mornas entrevistas. É necessário tomar consciência de si mesmo, ser conscientemente aquilo que se é realmente, agora e por toda a eternidade, para além dos nomes e formas transitórias, quaisquer que sejam o contexto social, as dificuldades ambientais, as provas e os acidentes do destino.

As condições exteriores coercitivas, como as de nossa civilização ocidental, podem ser extraordinariamente estimulantes se as encararmos como oportunidades imediatas para aplicar completamente o ensino. Desse modo, os habitantes de uma grande cidade industrial não são menos interessados nessa prática de sabedoria que os visitantes de um ashram em Benares.

O trabalho interior pode efetuar-se em qualquer momento, não importa onde, em todas as circunstâncias. Pode ser iniciado imediatamente, no lugar em que estamos e como estamos - no

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escritório, em férias, em casa, nos congestionamentos, cansados ou em forma, sob o impacto de uma notícia boa ou má. Para o pesquisador assíduo, as leituras, as conversas e os encontros decisivos se apresentarão sempre em tempo oportuno. Pode-se passar anos junto aos maiores sábios sem avançar um milímetro, do mesmo modo que basta uma pequena frase, um incidente aparentemente insignificante para provocar um estalo e subverter toda a nossa existência.

A vigilância Contrariamente a disciplinas como a Hatha Ioga ou às práticas devocionais, o vedanta não exige nenhum exercício físico experimental, nenhum rito mais ou menos fastidioso, nenhum período de isolamento prolongado, nenhum quadro especial. É a própria vida, a vida corrente, que é o objetivo da grande obra.

Nosso primeiro trabalho consiste em nos tornarmos vigilantes, quer dizer, conscientes, realmente conscientes tanto daquilo que nos cerca como daquilo que se passa em nós.

"O Eu não tem forma, e aquilo que chamamos a consciência de si é uma forma. Mas o que devemos compreender também, de um outro ponto de vista, é que a consciência de si é o caminho para a consciência do Eu. Essa consciência de si praticamente nunca está presente, e é por isso que a consciência do Eu não tem nenhuma oportunidade de revelar-se”. (Arnaud Desjardins, Au-Delà du Moi, La Table Ronde)

Basta um pouco de atenção para percebermos a que ponto estamos constantemente identificados com os objetos e acontecimentos exteriores, absorvidos por nossos pensamentos e devaneios ou distraídos, arrastados por uma seqüência implacável de reações emocionais que nos agitam e nos manipulam como cegas marionetes.

Essa vigilância, que os monges cristãos chamam "presença em si mesmo e em Deus" é esse olhar perfeitamente neutro, calmo, aberto, esse olhar de pura testemunha ou de puro espectador que me vai permitir discernir claramente e ao mesmo tempo o que se passa ao meu redor e a maneira como eu reajo. É o que, em mim, vê a vida em lugar de sempre "pensá-la" em função de meus critérios, meus preconceitos, minhas repulsas, minhas esperas, em suma, de meu ego.

Transparente e disponível, esse puro testemunho limita-se a constatar sem julgamento de valores, sem negativas nem complacências de qualquer espécie: eis tal ruído, tal notícia, tal encontro, eis tal emoção que se agita em meu peito, tal idéia que surge em minha consciência.

Não sendo mais continuamente devorado nem pelas coisas nem por minhas reações às coisas, adquiro um centro de gravidade. Ao mesmo tempo, testemunha global dos diferentes processos que compõem o meu ser físico, emocional e mental, eu me situo dentro de uma consciência unificada da realidade, em vez de me ver sacudido, dividido em uma multidão de impulsos anárquicos e contraditórios.

O grande problema é a extrema dificuldade em conservar essa vigilância, em manter-se duramente nessa posição de pura testemunha, que é um com tudo o que acontece, completamente aberta, desperta, presente no real, aqui e agora. É quase impossível lutar para implantar e conservar artificialmente esse estado de consciência, pois o esforço e a coerção provocam contrações que acarretam quase invariavelmente distrações ou cóleras.

À força de concentrar-me na necessidade da vigilância, acabo descurando tudo o mais, e eis-me de novo dividido, projetado, absorvido pela obsessão da vigilância.

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Efetivamente, é a corrente da vida que pode fornecer o melhor ponto de apoio. Trata-se de receber, com consciência simples e atenta, tudo o que a vida nos oferece - tanto o melhor como o pior. "Chega-se a ver como se reage aos acontecimentos e é a visão de nossas reações que fará crescer a consciência de nós. Pode-se ver a cada instante como se reage aos acontecimentos exteriores, que não se é neutro, que não se é um com a realidade, que não se está de acordo com tudo o que é. Isso pode ser visto, e de maneira quase contínua”. (Arnaud Desjardins, Au-Delà du Moi).

O deslumbramento Essa vigilância nos é bastante natural e torna-se espontaneamente muito aguda no momento em que nos defrontamos com um acontecimento excepcional - por exemplo, um acidente de carro, um encontro amoroso muito intenso, uma aventura incomum e apaixonante. São momentos dos quais conservamos uma lembrança indelével, porque então estávamos inteiramente despertos para o instante presente.

Nós sabemos muito bem que no meio de uma ação, se estamos verdadeiramente dentro dela, não temos tempo para experimentar dúvidas ou apreensões. Estamos unificados numa pura atenção consciente, em perfeita adesão e adequação com o desenvolver das operações em curso. É somente antes e depois que a mente projeta suas angústias, jamais durante.

Se cada momento da vida nos parecesse extraordinário, excepcional- incluindo tudo o que julgamos aborrecido ou sórdido -, exerceríamos naturalmente, espontaneamente, sem o menor esforço, uma constante vigilância, teríamos uma consciência desperta, unificada, que já não seria somente consciência de si, mas consciência do Eu, realização de Brama e libertação.

Ora, como não ficar confuso e deslumbrado com a simples comprovação de que há alguma coisa no lugar de nada! E que esta alguma coisa não é senão eu mesmo?

O trabalho sobre si mesmo Que é que, praticamente, nos impede de chegar a essa beatitude? Um certo número de mecanismos extremamente sutis e enganadores que nos mantêm numa ilusão todo-poderosa. Esses mecanismos devem ser compreendidos, reconhecidos e depois eliminados. É um trabalho ao mesmo tempo de exploração e de transmutação que dura, geralmente, vários anos (e não há nenhuma regra sobre o assunto) e que requer habitualmente a intervenção de um guia ou de um guru qualificado.

O ensino tradicional do vedanta comporta várias grandes linhas de trabalho sobre si mesmo, ao qual o discípulo deve consagrar um máximo de energia e de perspicácia. Trata-se de um empreendimento global, cujos diversos aspectos não podem jamais ser dissociados. A destruição do mental (Manonasha), a limpeza do inconsciente (Chitta Shuddhi) e a erosão dos desejos (Vasanakshaya) são as condições para o desaparecimento do ego e o aparecimento desse estado sem ego que caracteriza o libertado-vivo.

O ladrão de realidade O mental (Manas) é essa tendência incrivelmente poderosa que me faz ver o mundo unicamente em relação a mim, aos meus gostos, valores e apriorismos. O que eu vejo não é jamais o mundo, é apenas o meu mundo, porque sou incapaz de ter uma visão neutra das coisas. Percebo a

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realidade apenas através do filtro deformante do "gosto-não gosto, é preciso não é preciso" etc. Jamais o meu mundo coincide perfeitamente com o mundo, portanto jamais poderei me sentir plenamente feliz.

Libertar-se do mundo não tem sentido: não posso inverter o curso das estações ou ressuscitar os mortos. Mas posso livrar-me da idéia que tenho deles, da interpretação parcial, subjetiva, do comentário passional, incessante, aos quais estou preso, acorrentado como um forçado. Posso observar, em mim mesmo, a maneira pela qual meus desejos e temores projetam sem cessar suas sombras fantasmagóricas sobre o curso do real.

É claro que as simpatias e antipatias persistirão, mas compreenderei, pouco a pouco, o modo como funcionam, como colorem e desfiguram as coisas. Seu domínio diminuirá progressivamente até o dia em que a necessidade frenética de apropriação tenha desaparecido completamente, quando o meu mundo e o mundo tiverem cessado de opor-se, pois não haverá mais meus, eus, os meus, não haverá mais possessivos sobrepostos aos filmes dos fenômenos.

A mente é um ladrão de realidade, porque desvia e, de um ou outro modo, rapta ou escamoteia o momento presente. O passado não é mais, o futuro não é ainda, só existe o agora, este instante mesmo, que é absolutamente novo, diferente, de um frescor e paladar únicos. Ora, a mente nos faz perceber o instante presente apenas em relação ao passado, em relação ao conhecido, ao já visto, ao já vivido, do qual nos apropriamos, quer dizer, através de formas fantasmagóricas, espectros, resíduos de experiências desaparecidas.

Sem cessar esperamos, ou mesmo exigimos, do instante presente que corresponda a esquemas preestabelecidos, e essa expectativa absurda nos arranca à realidade específica do agora.

O mundo está sempre aqui e agora. Meu mundo é sempre passado. Os dois coincidirão somente se meu mundo tornar-se o mundo por meio de uma adesão incondicional ao instante presente, que é absolutamente neutro e absolutamente perfeito.

A mente só sabe julgar: isso é bom, isso é mau, isso deve ser feito assim, aquilo deve ser feito de modo contrário. Julgando eu divido, excluo, encolho-me e encerro-me nos limites exíguos de meus critérios e preconceitos: sou eu quem tem razão, todos os outros se enganam.

Destruir o mental é pôr fim a essa contínua divisão, a todas essas exclusões e limitações. É abrir-se para uma verdadeira compreensão, que tudo engloba, sem julgamentos, com uma visão inteiramente impessoal e disponível, purificada de todo impulso possessivo, de toda reação emocional; nada mais negando, essa visão é, desse modo, infinito.

A limpeza do inconsciente Esse empreendimento supõe, por parte do pesquisador, uma revisão radical e sincera de todos os condicionamentos, todas as opiniões, todas as influências, todos os automatismos herdados da educação, do ambiente e da experiência.

À primeira vista, esta parece ser tarefa titânica e quase impossível, que exige um trabalho em profundidade que os hindus denominam Chitta Shuddhi, limpeza do inconsciente.

Cada um de nós arrasta um imenso fardo de impressões residuais, de lembranças latentes, acumuladas desde o nascimento e, talvez, mesmo no decorrer de inúmeras vidas precedentes (ver La Réincarnation, nesta mesma coleção). Esses traços vivos e lancinantes do passado governam nossas atrações e repulsas. Seu papel é determinante no nível do funcionamento dos processos psicológicos. É o que a tradição hindu designa sob o termo de Samskara.

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O Samskara é a impressão antiga, dissimulada e persistente que faz com que eu goste de uma coisa e não goste de outra, que eu seja atraído por tal espécie de alimento, tal mulher, tal lazer, tal paisagem, tal literatura, tal opção política ou filosófica; é também o que me encaminha para tal estilo de vida ou profissão. É a parte a mais subjetiva, a mais profunda, a mais obscura do meu psiquismo.

Esses Samskaras são um permanente fator de dualidade. "Pois, assim como não estão em contato imediato com a realidade que lhes é exterior, não estão em contato imediato com sua realidade interior. São dois todo o tempo: eu, que amo ou que não amo, e essa emoção que me parece dolorosa, eu e esse desejo que me envergonha, eu e esse medo que me estraga a vida. Dois. O ser humano, normalmente, jamais assimila seus próprios fenômenos de modo neutro, impessoal e objetivo. Está todo o tempo envolvido, leva tudo para seu ego: meu medo, meu desejo e eu, que julgo meu medo ou meu desejo." (Amaud Desjardins,Le Vêdanta et l' Inconscient, La Table Ronde)

Estamos divididos contra nós mesmos, porque julgamos e recusamos o que está em nós, assim como julgamos e recusamos o que está fora de nós.

A grande reconciliação É preciso, primeiramente, ver o que é, quer dizer, romper os mecanismos de censura e repressão que relegaram para as profundezas do inconsciente os nossos inúmeros medos, desejos e frustrações de onde procedem a maior parte de nossos atos. Trata-se de ficar à escuta de nós mesmos, sem nada ocultar, sem nada abafar, acolhendo livremente mesmo as mensagens mais tenebrosas e as revelações mais inquietantes.

Em nós pulula uma multidão de pessoas sórdidas, violentas, torturadas, que se debatem numa vida larval e subterrânea, cativas de nossa própria censura. O vaidoso, o maníaco, a criança aterrorizada, o tarado sexual, o carrasco sádico, o covarde, todos esses e muitos outros formam um imenso clamor obstinado, um zumbido terrível, contínuo e vago de vozes interiores que pedem para falar, para se manifestar, a fim de poderem, enfim, voltar à paz do silêncio.

Habitualmente, ou abafamos essas vozes atrás de um muro de censura ou, quando a pressão se torna muito forte, nos deixamos levar, submergir por elas, em reações emocionais paroxísticas. A escuta calma, vigilante e amigável é uma atitude inteiramente diferente, é a grande reconciliação. Não se está mais identificado com tal ou qual personagem, mas situado no nível de testemunha central que os inclui a todos, os compreende e os reúne sem se submeter a nenhum. Ao mesmo tempo, e de uma certa maneira, é a humanidade inteira que englobo e que compreendo, pois reencontrei em mim e assumi todos os papéis concebíveis, os melhores como os piores.

Sei que minha realidade central - o olhar neutro, a pura testemunha - não é nenhum desses papéis, assim como o realidade central dos outros homens e mulheres não é nenhum dos papéis com que se disfarçam. Sei que essa realidade central -a deles e a minha - é idêntica, e é ela que percebo através de todas as máscaras e metamorfoses.

Ver nossas emoções, nossos sofrimentos, nossas angústias é, antes de mais nada, aceitá-las tal como são no momento, sem ficarmos enervados pelo medo, irritados pela ansiedade, exasperados pela cólera.

Se a tensão for completamente aceita, perfeitamente vivida aqui e agora, ela desaparece e torna-se plenitude. Se sou um com o conflito, um com a angústia - em outras palavras, se desisto de

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toda resistência e me abandono com todo o meu ser ao que é -, a dualidade desaparece e resta apenas a felicidade.

Na experiência corrente, passo meu tempo a opor a felicidade à infelicidade, o positivo ao negativo. Recusando o sofrimento, pretendo suprimir a "má" metade da existência, e com isso é toda a vida que me escapa, pois o real é indivisível. Aderir ao sofrimento no momento em que ele se me oferece, não por masoquismo, mas porque ele é a realidade deste momento, é viver a vida na sua totalidade. É necessário ver e compreender as recusas acumuladas para que seu tumulto e sua vociferação se dissipem. Então, o' eterno silêncio interior que estava recoberto por essa lancinante cacofonia será, enfim, audível.

A erosão dos desejos O desejo é o sintoma mais flagrante e mais agudo de nossa condição dualista. Há eu e o que eu desejo, aquilo de que eu quero me apropriar, anexar ao meu ser. Pretendo que o outro - objeto, situação ou pessoa - se torne eu.

Eis o erro fatal: o outro, enquanto outro, não pode ser eu, jamais será eu. A grande reconciliação da não-dualidade não consiste em recusar, negar a dualidade do mundo fenomenal, mas em vê-Ia, compreendê-la e aceitá-la. É reconhecendo no outro o direito de ser absolutamente diferente de mim, de existir totalmente fora de mim, que posso ser um com ele. Somente pela adesão à dualidade enquanto dualidade é que poderei chegar à não-dualidade.

Ora, o desejo visa sempre suprimir essa diferença, substituindo uma unidade mentirosa - eu, meu, o meu - pela dualidade dos fenômenos. O desejo coloca, sempre e abusivamente, o um no nível do dois e pretende fazer o mesmo com o absoluto e o relativo, o imutável e o mutável. Desejar apropriar medo que quer que seja já é negar a diferença, a mudança e a relatividade, pois recuso desde então ao objeto cobiçado uma existência e uma evolução próprias. Com essa recusa, que é uma recusa do real, eu me condeno a uma frustração sem fim e a uma insatisfação abrasadora, inextinguível.

Mas não basta estar intelectualmente convencido da inutilidade do desejo para vê-lo desaparecer como por encanto. É necessário uma evidência mais profunda e mais concreta, de preferência a do coração à da cabeça. Pois, a despeito dos raciocínios mais coerentes, os desejos estão sempre presentes, tão pressionantes e constrangedores quanto antes. Negar sua presença e ascendência é ainda mentir, dividir-se, simular a unidade quando há dualidade.

Portanto, é necessário partir do próprio desejo.

Um desejo plenamente satisfeito desaparece, porque é da natureza mesma do desejo, que é tensão, procurar o apaziguamento e a distensão.

Notemos que essa distensão em si mesma, por fugitiva que seja, nada tem a ver com o objeto da cobiça satisfeita. É uma maneira de ser que de modo algum depende, intrinsecamente, do exterior, e que reflete ou prefigura a grande felicidade essencial, livre de todo apego e de toda projeção.

Uma observação mais atenta nos mostra que nossos desejos nunca são, de fato, realmente satisfeitos de modo completo. É por isso que nunca conhecem o repouso, o silêncio definitivo ao qual aspiram.

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Não são satisfeitos porque não são vividos no momento. Minha mente sempre se interpõe entre meu desejo e sua realização, projetando suas imagens, suas expectativas, seus apriorismos, a idéia que ela tem do que deveria e do que não deveria ser a realização desse desejo.

O doce que saboreio não é um doce particular, específico, único, é antes a idéia que faço dele, um doce irreal, abstrato, onde a lembrança de doces passados, desaparecidos, combina-se para formar a imagem de um doce ideal e fantástico, cujo sabor impossível nunca coincide perfeitamente com o doce real. Meu doce não é jamais o doce.

Uma experiência vivida no presente é forçosamente nova, aberta ao desconhecido. Recusando esse caráter essencialmente novo e imprevisível da realidade, jamais poderei satisfazer verdadeiramente qualquer desejo. O ato completa-se sempre na divisão. Se eu aderir conscientemente, com todo o meu ser, ao próprio instante da satisfação, o desejo será satisfeito e desaparecerá. Não há mais eu que desejo e a coisa desejada, que nunca é perfeitamente o que eu esperava; há uma experiência total, unificante, e o ser é apaziguado.

E daí? É claro que nem todos os desejos podem ser satisfeitos. Não podendo realizar-se, certos desejos tornam-se fonte de frustrações dolorosamente persistentes. Nesse caso, é do próprio desejo que pode vir a solução.

Geralmente, temos em face do desejo impossível um comportamento de fuga: ou nos torturamos em devaneios estéreis sobre o objeto inacessível de nossa cobiça, ou nos atiramos insensatamente em atos de compensação. Mas o desejo propriamente dito, porque ele nos machuca, raramente ousamos olhá-lo de frente, assumi-lo, aceitá-lo como uma forma à parte, total, do nosso futuro.

Em primeiro lugar cumpre distinguir claramente o objeto de desejo do desejo propriamente dito. O objeto de nosso desejo é diferente de nós, absolutamente e para sempre, e como tal deve ser reconhecido. Mas, se aderimos ao nosso desejo, que não é outro senão nós mesmos, aqui e agora, ficamos reconciliados, reunificados. Plenamente aceito como tal, o desejo harmoniza-se e desaparece. Reaparecerá, sem dúvida, mas de forma cada vez menos imperiosa, cada vez menos perturbada. Sua satisfação ou não-satisfação tornar-se-ão mais e mais secundárias, até um momento em que meu ser ficará intimamente, inteiramente possuído pela evidência de que nenhum desejo pode, fundamentalmente, adicionar ou retirar o que quer que seja.

Então poderei dizer-me sem mentir: o desejo? E daí? O poder, o renome, o saber, o luxo mais refinado, as mais lindas mulheres - e daí? Os maiores talentos, a mais louca adulação - e daí? Se tudo isso acontecer ou não, o que tem a ver comigo, com o fundo do meu ser, que não tem forma e que jamais muda?

Então compreenderei que o único desejo a ser sentido realmente é um desejo de absoluto - tudo, imediatamente, inteiramente - e que ele não tem objeto, uma vez que eu já sou esse absoluto.

O desaparecimento do medo O avesso do desejo, sua expressão negativa, é o medo: medo de perder o que possuímos, medo de ser negado, ferido, suprimido.

Bem sabemos que a vida é uma contínua insegurança, que podemos, a qualquer momento, ser agredidos, mutilados, aniquilados - física e moralmente. Essa perspectiva desencadeia em nós uma recusa radical que nos deprime e nos tortura. Sabemos que a dor e a morte são inelutáveis,

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inseparáveis do prazer e da vida, mas alguma coisa em nós se revolta e grita: "Não! Eu não! Eu não!"

A ironia, bastante patética, é que quanto mais nos inquietamos com a obsessão da segurança, mais vivemos interiormente numa insegurança que não tarda a tornar-se patológica. Nossa civilização é uma ilustração notável disso. Podem-se multiplicar os regulamentos, as precauções, os seguros contra qualquer espécie de calamidade, mas haverá regulamentos, precauções, seguros de vida contra a mudança, o imprevisível, o incontrolável?

Somente aquele que com todo o seu ser aceita a insegurança conhece uma perfeita segurança interior.

O medo é um exemplo incontestável da maneira como funciona o mental, porque consiste essencialmente em projetar imagens fantásticas sobre o real e em escamotear o momento presente, imaginando horrores futuros que só existem na nossa cabeça.

Evidentemente, quando o medo aparece e me domina, repetir "isso é irreal, isso não existe, é uma projeção mental!" não me será de grande valia. O medo é, por definição, tolo, insensível a qualquer raciocínio. Ouve apenas o seu próprio clamor. Nem a evidência mais clara o convencerá.

O medo recusa a realidade do instante presente: é esta a sua natureza. Revoltando-me contra ele, acrescento a essa recusa inicial uma recusa ainda mais angustiante. Ao contrário, se eu aderir ao meu medo - como no desejo, pois ele é a minha realidade do momento, se aderir inteiramente, sem segunda intenção de libertar-me dele, isto é, se me tornar verdadeiramente um com o meu medo, sem dizer: "Eis um bom truque para me livrar dele!", ele se volatilizará imediatamente. Estarei plenamente no instante presente e o medo perderá, portanto, todo ponto de apoio e só poderá deixar de existir. Não haverá mais eu e meu medo, mas apenas aquilo que é, de segundo em segundo.

Livre do ego Essas diferentes práticas requerem muita perseverança, honestidade para consigo mesmo e perspicácia, pois a mente é prodigiosamente astuciosa. É especialmente muito hábil em recuperar as aspirações espirituais, pois, acima de tudo, é muito lisonjeiro para o ego imaginar-se livre, desperto, santo, sábio ou guru.

O ego não pode ser libertado, pois a libertação consiste justamente em ficar livre do ego. O ego se enraíza e se mantém apropriando-se da existência "meu, o meu, para mim". Esse possessivo é uma prisão onde encerramos os acontecimentos, os seres, as coisas. Podem-se libertar os prisioneiros, mas não se pode libertar a prisão. O carcereiro é o único detento verdadeiramente condenado à prisão perpétua. Em compensação, podem-se abrir as portas, e a prisão deixa simplesmente de existir como prisão. As portas estão abertas e a prisão desapareceu, pois já não há meu nem o meu. Enquanto eu disser: "A vida me pertence", eu a encerro nos estreitos limites do possessivo, meu corpo, minhas emoções, meus pensamentos, e encerro-me junto com eles. Ao dizer: "Eu pertenço à vida", abro-me para uma realidade sem limites e me vejo ampliado (o que significa também libertado) ao infinito.

O ego é a recusa do real, e uma das principais ferramentas dessa recusa é a comparação. Estamos sempre comparando, em qualquer ocasião, continuamente: tenho mais que ele, menos que aquele outro, isso é melhor, é pior, é grande demais, é peque no demais, dei mais do que recebi etc. Esquecemos sem cessar que cada coisa é única, irredutível a comparações, e que não há dois

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momentos idênticos. É porque negamos essa diferença que nos escravizamos à dualidade: o que é e o que deveria ser. Passamos ao largo do instante e de sua verdadeira natureza.

A revolução da aceitação De fato, a palavra-chave de todo trabalho interior é aceitação, a grande revolução do "sim àquilo que é" .

Isso é muito difícil porque afora alguns instantes excepcionais, vividos, aliás, como momentos de graça, toda a nossa experiência enquanto ego é uma gigantesca e infatigável recusa. Todos os nossos desejos e medos são engendrados pela recusa: quero que as coisas sejam de um modo que elas não são. E, quando tomamos conhecimento desse mecanismo infernal, nossa tendência é recusar a própria recusa, e continuamos no terreno do não.

A alternância que se opera nesse trabalho de transformação interior é a conversão do não em sim. Sim para o que é, sim, é assim, sim, eu aceito. Essa aceitação é a condição de uma consciência de si, dessa consciência desperta, unificada, central, que permite não mais nos identificarmos com formas passageiras e momentâneas de nós mesmos, não mais oscilarmos entre uma e outra impressão, não mais sermos engolidos, absorvidos por personagens contraditórias.

A aceitação não é sinônimo de tolerância ou de resignação. É só a partir de um reconhecimento claro, não egoísta, não comprometido, daquilo que é, que uma ação justa - a resposta adequada - se torna possível, porque então se podem apreciar, sem opinião preconcebida, os diferentes dados de uma situação.

Do mesmo modo, a aceitação é o desaparecimento das emoções.

A emoção diz sempre "não!" ao real, porque nela estamos inteiramente possuídos, incapazes de uma visão neutra, de uma posição de testemunha imparcial, que só faz unificar e reconciliar: tornamo-nos uma reação cega e violenta, opressora e oprimida, obstinada em quebrar coisas ou devorá-las. A emoção é o paroxismo do possessivo, do meu, do eu, o meu. É o mais negro cubículo da prisão chamada ego. "Não se vive mais num mundo real, mas num mundo inteiramente subjetivo. Estamos à mercê da emoção, incapazes de ver os fatos como eles são, levados por ela e suscetíveis de não se sabe que reação impulsiva e desastrosa para nós e para os outros. A emoção nos manipula como fantoches cujos cordéis são puxados por ela. É um estatuto de escravo." (Arnaud Desjardins, Un Grain de Sagesse, La Table Ronde)

Essas observações aplicam-se tanto às emoções agradáveis quanto às dolorosas. Mas o desaparecimento das emoções não significa absolutamente repressão ou endurecimento. Pois a emoção é ao mesmo tempo a matéria-prima do sentimento, e o caminho do coração é a estrada real que conduz à aceitação.

Não se trata de recusar a emoção, mas de transformá-la. Há emoções positivas e libertadoras, que possibilitam a participação no sofrimento alheio, o perdão das injúrias ou o choro sobre seu próprio egoísmo, sem falso pudor. Essas emoções também desaparecerão um dia, mas, enquanto esperam a libertação final, apontam para a aceitação; e é essencial não mentir, dizendo: "Não tenho mais emoções!" quando simplesmente o ego se fechou numa cidadela de orgulho e insensibilidade.

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O amor absoluto A aceitação é a alvorada do verdadeiro amor, do único sentimento que merece o nome de amor e que é o amor absoluto.

Este termo, amor, é excessivamente ambíguo. No sentido corriqueiro da vida corrente, designa antes de tudo um desejo. Amar significa, sobretudo, querer ser amado. Eu amo tal coisa ou tal ser, quer dizer, tenho necessidade dele, ele me faz falta.

Estamos no domínio das atrações e das repulsas. O que eu chamo amor pode mudar-se em rejeição e ódio se me sinto traído, escarnecido, isto é, se meu desejo é rejeitado ou negado, se o outro não é ou não é mais o que o meu ego espera. É necessário que eu seja retribuído, do contrário o "eu amo" torna-se "eu odeio". Todas as nossas paixões implicam, aliás, uma alternância amor-ódio, vem-vai, os dois sendo, às vezes, simultâneos.

Podemos imaginar um amor sem contrário, sem condição, um "eu amo" sem "eu não amo", um "eu te amo" que não signifique" ama-me", um dom total, um sentimento inalterável que já não distingue entre amigos e inimigos?

O que as mães sentem, nas horas seguintes ao parto, corresponde bastante razoavelmente a essa espécie de amor. Dessa bola de carne completamente vulnerável e dependente a mãe nada espera, nada exige, tudo aceita, tudo compreende, oferece-se inteiramente, incondicionalmente. Face ao recém-nascido ela não tem ego. É, aliás, especialmente por esta razão que os hindus divinizaram a condição materna (a um ponto que os ocidentais sequer imaginam), na medida em que ela representa o puro amor do libertado que se entrega sem nada esperar em troca.

Claro, esse caráter absoluto do amor materno é geralmente pouco durável, pois a mãe torna-se rapidamente irritada, cansada com o choro da criancinha que a reclama sem cessar. Bem depressa o ego retoma o controle: o recém-nascido torna-se meu filho, que deve se submeter de boa ou má vontade aos meus desejos, às minhas necessidades, aos meus hábitos. O sentimento materno oferece uma visão empolgante do que pode ser o amor do sábio, que nada espera, nada almeja, situando-se muito além de toda gratificação e frustração.

A essência da felicidade O Jivan-Mukta não é mais arrastado pelo turbilhão das reações. Não é mais identificado, submetido às formas passageiras e particulares de sua pessoa física e mental. Estabelecido numa consciência neutra, aberta, central, unificada, sabe que os outros não são, fundamentalmente, nenhuma das aparências mutáveis pelas quais se deixam momentaneamente absorver: alegria, tristeza, crueldade, generosidade etc. Percebe a identidade absoluta que está por trás de todas as diferenças, porque compreende, aceita e ama essas diferenças, essas aparências que mudam, essas formas particulares; ama-as pelo que elas são, intrinsecamente, sem nada desejar em troca.

O ego não pode amar, só pode reclamar: "Estou só, tenho medo, tranqüilizem-me! Dêem-me! Amem-me!" Somente aquele que está livre do ego pode dizer: "Amo com um amor sem motivos, sem objeto, com um amor sem medida e sem limites, porque purificado de todo laço e de toda possessividade".

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Anexos Alguns esclarecimentos complementares Neste livro esforçamo-nos por expor os temas essenciais da sabedoria hindu não-dualista, na perspectiva de uma aprendizagem pessoal, acessível tanto aos ocidentais quanto aos orientais. Devemos ressaltar o imenso trabalho feito, nesse sentido, por Arnaud Desjardins, que soube transmitir, adaptando ao Ocidente moderno, um ensino tradicional que amplamente inspirou e guiou nossas pesquisas.

Negligenciamos voluntariamente certos aspectos históricos e mitológicos, bem como certos ângulos técnicos do hinduísmo, que não nos parecem interessar diretamente à grande obra de transformação interior, essa realização completa sem a qual a estrita erudição é bastante derrisória. Os libertados-vivos estão longe de serem eminentes sanscritistas e não têm sequer um conhecimento profundo dos textos antigos. Aqui, a prática é infinitamente mais importante que a teoria.

Eis, portanto, um anexo em que agrupamos algumas informações que completam este volume.

Os textos O hinduísmo está assentado sobre um conjunto considerável de textos cuja composição se estende por cerca de dois milênios.

Os mais antigos, chamados Vedas, contêm quatro partes: Rig, Yajur, Sama, Atharva. Formamo Shruti, quer dizer, Revelação, resultante das instituições fundamentais dos sábios que viveram há mais de dez séculos antes de nossa era.

A origem histórica desses textos é tão incerta quanto controvertida. Os próprios hindus não se preocupam excessivamente com isso. Aos seus olhos os Vedas exprimem as verdades essenciais; tudo o mais é acessório. Em todo caso, concordem em reconhecer um papel de terminante à fusão da civilização dravídica (os primeiros ocupantes do subcontinente indiano, de pele negra) com a cultura dos conquistadores arianos, que invadiram o país em vagas sucessivas.

Dos Vedas procedem os Brahamanas e os Upanishads, que constituem um comentário sutil e despojado e procuram esclarecer o essencial da mensagem védica.

Contam-se mais de quatrocentros Upanishads chamados maiores: Chandogya, Brihadaranyaka, Mundaka, Mandukya, Kena, Katha, Isha, Prashna, Aitareya, Taittiriya, Shvetashvatara, Maha Narayana, Parama Namsa etc.

À Revelação (Shruti) junta-se a Tradição (Smriti), que reúne:

- diversos códigos, como as Leis de Manu;

- os Purunas, contos mitológicos e lendários, de uma licenciosidade maravilhosa;

- as grandes epopéias Ramayana e Mahabharata, incluindo o célebre Bhagavad Gita, que é objeto de uma devoção unânime;

- os Agamas, que regem os aspectos mais especificamente religiosos do hinduísmo - shaktismo, vishnuísmo e shivaísmo, ao qual se une o tantrismo do Cachemir;

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- vêm em seguida os textos mais recentes, de onde procedem as seis Darshanas ou pontos de vista ortodoxos (ver capítulo 2): Niaia, Vaisesica, Sânquia (Karika de Kapila), Ioga (Ioga sútras de Patanjali), Mimansa e Vedanta.

Vedanta significa' 'fim do Veda", no sentido de acabamento e chegada. "Os Upanishads mais importantes foram analisados e depois sintetizados numa coletânea de aforismos, os Brahma-Sutras ou Vêdanta-Sutras. Esse livro deu origem a cinco escolas que, conseqüentemente, expõem cinco nuances possíveis do Vedanta:

- Vedanta "dualista" de Madhwa;

- Vedanta da "diferença e não-diferença" de

Nimbarka;

- Vedanta do "caminho da não-dualidade pura" de Vallabha;

- Vedanta do "não-dualismo temperado" de

Ramanuja;

- Vedanta do "não-dualismo categórico" ou Advaita de Shankara. (Patrick Lebail, Sept Upanishads Majeures, Le Courrier du Livre)

O Advaita Vedanta de Gaudapada e de Shankara difundiu-se largamente na Índia, ao ponto de suplantar as outras interpretações dos Brama Sutras.

Outro texto importante, cujo autor é provavelmente contemporâneo de Shankara (VIII século), é o Yoga- Vasishta. Esse relato épico e mitológico, de uma riqueza romanesca fantástica, representa uma síntese das grandes correntes não-dualistas do vadanta e do tantrismo.

Na Índia, a tradição espiritual não é um domínio passadista e fechado. É, ao contrário, uma realidade móvel e emergente, que se perpetua e se renova de geração em geração. E textos recentes, como os de Ramakrishna, de Ramana Maharshi, de Ma Ananda Mayi ou de Nisargadatta Maharaj, pertencem hoje em dia à tradição advaítica tanto quanto as obras de Gaudapada ou de Shankara.

Algumas noções essenciais Contrariamente à cultura ocidental, a Índia nunca foi teatro de rivalidades, de divórcio entre a religião, a filosofia, a ciência, o direito, a psicologia etc. Existe, entre as noções mais abstratas, as instituições sociais e os aspectos mais práticos da existência, uma coerência e uma complementaridade fundamentais.

Eis alguns elementos indispensáveis para uma compreensão global do hinduísmo:

O karma Esta noção capital do hinduísmo está longamente desenvolvida na obra desta mesma coleção consagrada à reencarnação. Nosso destino é o fruto de nossos atos, ou seja, a projeção de nossos pedidos, o resultado direto de nossos desejos e temores mais obscuros. Essa ótica envolve uma responsabilidade individual ilimitada, pois somos ao mesmo tempo nossa própria vítima e nosso próprio benfeitor, segundo os mecanismos de autopunição, de autogratificação ou de bloqueamento ocultos em nosso inconsciente.

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As samskaras (impressões persistentes do passado) e as vasa nas (desejos latentes oriundos desse passado) trabalham continuadamente para ditar-nos e impor-nos uma seqüência sem fim de reações e impulsos que criam, sem cessar, outras samskaras e outras vasa nas. Prendem-nos, de uma maneira obsessiva, ao interminável cortejo fantástico de nossos predecessores, os de nossa existência atual (o adolescente, o menino, as crianças que viveram e desapareceram em nós) e àqueles de nossas inúmeras existências anteriores, dos quais revivem em nós os desejos não-satisfeitos, os temores não-apaziguados, as frustrações dolorosamente acumuladas.

O motor do karma é o apego ao fruto da ação, quer dizer, à possessividade. A liberação - aceitação do que é, adesão ao instante presente, realização da não-dualidade - é o fim do karma, pois ele é dualidade: eu e minha insatisfação, eu e minha avidez, eu e meu desejo de tornar-me outra coisa. É o final da ronda dolorosa dos renascimentos, pois, estabelecido em Brama, única e imutável realidade, sei que jamais houve realmente nascimento ou morte apenas um eterno aqui-e-agora.

Distinguem-se três espécies de karma:

o Samchitta Karma, que é o das impressões herdadas de um passado imemorial;

o Agami Karma, que é o das ações latentes que não chegaram à maturidade;

o Prarabda Karma, que modelou o corpo e as atuais condições da existência.

Para realizar-se o sábio destrói os dois primeiros e não é mais afetado pelo terceiro, mas deve assumir todas as conseqüências, que só terminarão com o desaparecimento do corpo físico. Shankara compara o Prarabda Karma à flecha lançada pelo caçador e de quem ele não pode mais deter o curso.

Purusha e prakriti Estes dois termos - verdadeiros pilares da filosofia Samkhya - foram impropriamente traduzidos por espírito e matéria. A visão hinduísta, que percebe o universo em termos de energia, de dinamismo, de campos vibratórios, está bem distanciada de uma tal interpretação. Prakriti diz respeito mais ao aspecto relativo e mensurável do conjunto do mundo fenomenal manifestado, ao passo que purusha é o princí pio eterno, imutável e inatingível que sustém a totalidade dos processos físicos e mentais, ao mesmo tempo cósmicos e individuais, físicos e mentais. Guénon liga purusha e prakriti a essência e substância, respectivamente: "É o Ser Universal que, relativamente à manifestação da qual ele é o princípio, polariza-se em 'essência' e em 'substância' sem que sua unidade íntima seja de modo algum afetada. Prakriti, portanto, não pode ser causa fora da ação, ou melhor, da influência do princípio essencial que é Purusha, que, pode-se dizer, é o 'determinante' da manifestação: todas as coisas manifestadas são produzidas por prakriti, de quem são as modificações ou determinações, mas sem a presença de purusha essas produções seriam desprovidas de qualquer realidade". (René Guénon, L'Homme et Son Devenir Selon le Vêdanta)

Os três gunas Trata-se de três condições ou modalidades fundamentais de manifestação, às quais estão submetidas todas as criaturas. Essas três qualidades primordiais estão em perfeito equilíbrio na não-diferenciação original de prakriti: "Desses três gunas, um, tamas, corresponde à escuridão, à inércia; à ignorância, à estupefação; outro, rajas, à ação, à força, à violência, à paixão, à dor; o

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terceiro, sattva, à bondade, à pureza, à luz, à harmonia, à inteligência, à alegria" (Jean Herbert, "Spiritualité Hindoue"). Quando o equilíbrio inicial entre os três gunas se rompe, há luta, rivalidade sem fim, o mundo se põe em movimento. "Então começa toda confusão inextricável e incessante de criação, conservação, dissolução, o desenrolar dos fenômenos do cosmos”. (Shri Aurobindo, La Bhagavad Gîta)

Artha, kama, dharma, moksha Em ordem de importância crescente, são os quatro objetivos possíveis do esforço humano. "Artha é a busca da perfeição no domínio material, kama no domínio sensorial, sensual e sentimental, dharma no domínio moral e mental. O quarto, moksha, que é o mais alto, é a libertação espiritual."

(Jean Herbert, Spiritualité Hindoue)

Os quatro ashramas Os hindus dividem a existência em quatro grandes etapas, que cada indivíduo deve percorrer sucessivamente desde que sai da infância:

- brahmacharya, que é o período durante o qual o adolescente se consagra ao estudo, sob a direção de um instrutor, o acharya ou guru;

- garhasthya, que é a fase durante a qual o indivíduo se desenvolve, aumenta o campo de sua experiência, ganha e distribui as riquezas, funda uma família; o ego deve desabrochar antes de desaparecer;

- vanaprastha, período em que, tendo abandonado todos seus bens materiais, o marido e a mulher vivem juntos como eremitas, meditando sobre as verdades eternas da tradição;

- sannyasa, que é a etapa suprema, a condição final do grande renunciante, errando e mendigando sua subsistência, livre de todo laço físico e mental.

Pode acontecer que certas pessoas, particularmente dotadas espiritualmente, saltem as duas etapas intermediárias e passem diretamente do brahmacharya para o sannyasa. Trata-se de caso excepcional. Em geral o homem deve primeiramente realizar-se, como individuo, sob pena de incorrer na censura, na frustração e numa caricatura de espiritualidade.

Vairagya É a renúncia. É o que permite atingir o estado de não-dependência absoluta em relação ao desejo, ao medo, às posses de qualquer espécie. As armadilhas são numerosas e temíveis. A renúncia pode tornar-se, ela própria, um fator de dependência aguda, seja pela obsessão dos bens abandonados, seja pelo orgulho espiritual: "Sou um grande asceta". A verdadeira renúncia implica um perfeito desprendimento em relação às situações: pode-se viver tão bem na fortuna e na glória quanto na indigência. Ela pressupõe igualmente que se renuncie a toda espécie de ambição espiritual e mesmo a todo desejo de libertação.

Kaivalya

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É a liberdade interior, a não-dependência do sábio realizado. É o único estado verdadeiramente adulto, no qual o indivíduo não depende mais de nada nem de ninguém. É a única condição não-egoísta, na qual não é mais necessário ser aprovado para compreender, nem ser amado para amar. O sentido de kaivalya aproxima-se igualmente do Um, do Único, do Solitário. Reconhecendo em toda manifestação as formas diversificadas de seu próprio Eu, o libertado-vivo está só, como se pode dizer do Absoluto que ele está só na indizível união de todas as coisas: não sente jamais a angústia do isolamento e da separação.

Sanatana Marga É a estrada para a eternidade. Designa-se, freqüentemente, com este termo o conjunto dos caminhos que compõem a espiritualidade hindu.

Os autores A Índia, que empresta uma importância decisiva ao contato direto e pessoal com o guru, preocupa-se bem pouco com a paternidade dos grandes textos tradicionais. O que interessa não é o que se pode ler sob a assinatura deste ou daquele autor, mas aquilo que se pode compreender e realizar. Essa tendência é, sem dúvida, ainda mais pronunciada no Advaita Vedanta do que nas manifestações devocionais, onde a adoração de um aspecto particular da divindade (Ishta) e a própria pessoa do guru representam um papel bastante preponderante.

Dentro dessa perspectiva, a história pessoal dos grandes representantes do não-dualismo vedântico parece anedótica e relativamente marginal. Contentamo-nos, pois, com a enumeração, de memória, de alguns nomes essenciais do período contemporâneo: Bhagavan Shri Ramana Maharshi, o sábio de Tiruvannamalai, Shri Krishna Menon, Shri Nisargadatta Maharaj, falecido em Bombaim em 1981, Shri Ma Ananda Mayi, falecida em 1982. Igualmente citaremos Shri Swami Prajnanpad, desaparecido em 1974. Foi o guia de Arnaud Desjardins, que hoje transmite o seu ensinamento. A Sadhana (caminho) que ele propõe está esplendidamente adaptada à mentalidade ocidental e à vida moderna pelo lugar, bastante considerável, que reconhece aos mecanismos do inconsciente e pelo intenso trabalho de esclarecimento das impressões residuais (samskaras) e das demandas latentes (vasanas), que constituem um dos pilares do seu ensino.

Krishnamurti sempre negou pertencer a qualquer corrente ou tradição. Sua obra salienta a necessidade de eliminar todos os esquemas, todos os condicionamentos. Para ele, o despertar consiste antes de mais nada em libertar-se do fardo da memória, dos traços do passado, do conhecido - portanto, de qualquer referência cultural -, a fim de podermos viver plenamente a realidade do momento presente. Krishnamurti sempre rejeitou qualquer espécie de filiação, mesmo com o Advaita Vedanta. Mas a essência mesma de seu ensino confunde-se com o profundo caminho de um Gaudapada ou de um Shankara.

Como o vedanta tem um caráter de universalidade, pode-se acrescentar a esses nomes os de mestres ocidentais contemporâneos, como Arnaud Desjardins e Jean Klein.

Conclusão Uma outra solução: Se o progresso é medido em termos de abundância e melhoria técnica, então a civilização ocidental moderna representa um notável êxito. Ao contrário, se ele se exprime em termos de felicidade, é necessário reconhecer que o estado de depressão latente e de tensão crônica em que vivem as sociedades hiperindustrializadas aparece mais como um formidável

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fracasso, ao qual não sabemos responder senão com uma agitação neurótica que aumenta incessantemente ou com um uso maciço de tranqüilizantes e neurolépticos.

O vedanta nos deixa entrever uma outra solução: ela depende apenas de nós.