a ritalina no brasil

Upload: dani-rosa

Post on 15-Jul-2015

437 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

A Ritalina no Brasil: Uma dcada de produo, divulgao e consumo

Cludia Itaborahy

Rio de Janeiro 2009

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

A Ritalina no Brasil: Uma dcada de produo, divulgao e consumo

Cludia Itaborahy

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Psgraduao em Sade Coletiva, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Cincias Humanas e Sade

Orientador: Prof. Dr. Francisco Ortega

Rio de Janeiro 2009

I88

C A T A L O G A O N A F O N T E U E R J / R E D E S I R I U S / C B C Itaborahy, Cludia. A Ritalina no Brasil: uma dcada de produo, divulgao e consumo / Cludia Itaborahy. 2009. 126f. Orientador: Francisco Ortega. Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. 1. Distrbio da falta de ateno com hiperatividade Tratamento Teses. 2. Medicamentos Utilizao Teses. 3. Divulgao cientfica Teses. 4. Psiquiatria Peridicos Teses. 6. Metilfenidato. I. Ortega, Francisco. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Ttulo. CDU 616.89-008.47:616-

085 ______________________________________________________________________________

Cludia Itaborahy

A Ritalina no Brasil: Uma dcada de produo, divulgao e consumo

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Psgraduao em Sade Coletiva, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Cincias Humanas e Sade

APROVADO EM: ________________________________________________________

BANCA EXAMINADORA:________________________________________________

____________________________________________________ Prof. Dr. Francisco Ortega (Orientador)- IMS/UERJ ____________________________________________________ Prof. Dr. Benilton Bezerra Jr. - IMS/UERJ ____________________________________________________ Prof. Dra. Cludia Passos - IMS/UERJ ____________________________________________________ Prof. Dra. Luciana Caliman- IP/UFES

Rio de Janeiro 2009

___________________________________________________________Agradecimentos

Eu no ando s, s ando em boa companhia... Agradeo a Francisco Ortega, pelo acolhimento no IMS, pelo convite para participar da pesquisa, pela parceria e principalmente pela confiana. Obrigada! Luciana Caliman, pela fora e incentivo desde os primeiros passos na pesquisa. Agradeo ao professor Kenneth Camargo Jr. e professora Cludia Passos pela participao na banca de qualificao, pela ajuda e dicas fundamentais. Ao professor Benilton Bezerra pela pronta aceitao do convite para a banca. s colegas da pesquisa Denise e Lvia, pela parceira e ajuda que s enriqueceram este trabalho e Cynthia Forlini, do IRCM. Rossano e Andria da Luz, pela ateno e pelos direcionamentos. s amigas do mestrado, Marcela Peralva e Vanessa Xisto, por compartilhar os momentos bons e ruins deste perodo, tornando-o muito mais leve. E amiga Marlia, por me ensinar muitas coisas importantes sobre a vida. Aos amigos Renata e Alan, por me cederem a tranqilidade de sua casa neste ltimo ano de mestrado. No tenho palavras para agradecer. E Helen, que acompanhou de perto os primeiros momentos deste mestrado. Vnita e Jean-Luc, pelos livros, pelas frias, pelo incentivo e amor. Ao grupo de superviso clnico-institucional GT9 e s amigas Ana, Luciana e Hevelini, sempre boas companhias. Aos amigos de Volta Redonda: ao Sr. Ayrton, sempre atencioso, meus agradecimentos especiais; Ccero e Davi, pela fora junto aos laboratrios, aos meus tios Flvio e Fabinho, e meu av Zez, por tudo. Agradeo tambm a Fbio Baylo e Vaninha. E agradeo especialmente minha famlia: meu pai, Francisco Wilde, e meus irmos: Renato, Goreti e Snia, pela pacincia cotidiana; e em especial a meu irmo Wilde, pela amizade e por compartilhar o momento de escrita da dissertao, tornando este perodo muito menos solitrio. E agradeo especialmente minha me, Eliana, minha maior parceira, patrocinadora e torcedora, que sempre me apia nas diferentes empreitadas da minha vida. Muito obrigada!

Os remdios no so para lucrar, so para as pessoas. George Merck

__________________________________________________________________Resumo

A Ritalina, nome comercial do metilfenidato, tem sido cada vez mais produzida e consumida no Brasil. Somente entre 2002 e 2006, produo brasileira de metilfenidato, cresceu 465%. Sua vinculao ao diagnstico de TDAH tem sido fator predominante de justificativa para tal crescimento. Entretanto, os discursos que circulam em torno do tema e legitimam seu uso tambm contribuem para o avano nas vendas. Estes discursos no esto despojados de atravessamentos sociais e so o objeto de estudo desta pesquisa. Este trabalho tem por objetivo fazer uma anlise das publicaes brasileiras sobre os usos da Ritalina, de 1998, ano em que o medicamento foi autorizado no Brasil, at 2008. Para tanto, realizamos uma busca em todos os peridicos de psiquiatria brasileiros indexados na base Scielo, assim como nos jornais e revistas direcionados para o pblico em geral com maior tiragem. Em nossa anlise, discutimos quais pontos so priorizados e quais so omitidos nos discursos sobre o metilfenidato no Brasil, e quais so seus possveis efeitos na prtica clnica com o paciente. Alm disso, as diferenas nas prioridades de informaes encontradas nos dois tipos de publicao, leiga e cientfica, tambm so discutidas neste trabalho.

Palavras-chave: metilfenidato, Ritalina, conhecimento pblico, divulgao.

_________________________________________________________________Abstract

The Ritalin, a commercial name for methylphenidate, has been more and more produced and consumed in Brazil. Only between 2002 and 2006, the Brazilian production of methylphenidate raised 465 per cent. Its bound to diagnosis of ADHD has been the main factor in order to justify such growth. However, the speeches which circulate around the subject and legitimize its use, also contribute for the sales advance. Those speeches are not freed of social points and they are the object of this research. This work intends to do an analysis of the Brazilian publications about Ritalin uses from 1998, when the medicine was authorized in Brazil, until 2008. For this purpose we made a search in all Brazilian psychiatric periodicals included in the site Scielo, as well as in the newspapers and magazines of greater circulation addressed for the public in general. In our analysis we have discussed which points are priorized and which ones are omitted at the speeches about methylphenidate in Brazil, and what are its possible effects at clinical practice with the patient. Furthermore, the differences in the priorities of information found at both kind of publication, lay and scientifical, are also discussed in this work.

Keywords: methylphenidate, Ritalin, public understanding, release.

_________________________________________________________________Sumrio

Introduo ....................................................................................................................................... 8 As produes cientficas: conhecimento pblico e articulaes privadas .................................13 A cincia como uma produo social ..................................................................................14 Articulaes entre os especialistas e o pblico: o campo da compreenso pblica da cincia ................................................................................................................................ 24 As pesquisas cientficas e seus entrelaamentos polticos, econmicos e sociais .............. 30 A Ritalina ........................................................................................................................................38 Usos e abusos do metilfenidato a questo do uso mdico............................................ 46 Usos e abusos do metilfenidato a questo do uso no mdico......................................54 All are candidates for Ritalin............................................................................................61 Grupos de apoio ao TDAH e as pesquisas sobre a Ritalina no Brasil .........65

Metodologia e anlise dos dados ...................................................................................................72 Metodologia da pesquisa emprica ......................................................................................72 As publicaes brasileiras sobre a Ritalina .........................................................................76 Categorias de anlise........................................................................................................... 81 Consideraes finais sobre os resultados das anlises .......................................................108 Concluso ......................................................................................................................................113 Referncias Bibliogrficas ...........................................................................................................116 Anexo 1- Publicaes sobre o metilfenidato no Brasil entre 1998 e 2008 ................................121 Anexo 2- ndice de grficos e tabelas ......................................................................................... 126

8

_______________________________________________________________Introduo

O metilfenidato, usualmente prescrito para crianas e adultos diagnosticados com o Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH), mais conhecido por um de seus nomes comerciais, a Ritalina1. Este psicoestimulante , sem dvida, o mais consumido no mundo, mais que todos os outros estimulantes somados. Segundo o ltimo relatrio da ONU sobre produo e consumo de psicotrpicos (ONU, 2008), sua produo mundial passou de 2,8 toneladas em 1990 para quase 38 toneladas em 20062. Isto se deve, segundo o relatrio, no somente a sua vinculao ao TDAH, mas principalmente devido intensa publicidade do medicamento voltada diretamente aos consumidores norteamericanos. O consumo nos EUA vem crescendo a cada ano, e hoje representa 82,2% de todo metilfenidato consumido no mundo. No Brasil, seguindo a tendncia mundial, o consumo tambm vem crescendo ao longo dos anos. No ano 2000, o consumo nacional de Ritalina foi de 23 kg (Lima, 2005). Em 2006, o Brasil fabricou 226 kg de metilfenidato e importou outros 91 kg (ONU, 2008). O metilfenidato chegou ao Brasil em 1998, e desde ento nunca foi feito um levantamento sobre as informaes produzidas e divulgadas sobre este medicamento em territrio nacional. A maior parte dos dados existentes e artigos sobre seu consumo referem-se aos EUA. Com isso, esta pesquisa visa contribuir para a compreenso da situao brasileira do conhecimento pblico do metilfenidato, atravs do levantamento de dados sobre sua divulgao, analisando de forma sistemtica as publicaes nacionais desde o incio de sua comercializao no Brasil. Assim, o objetivo desta pesquisa analisar as publicaes sobre o metilfenidato no Brasil desde sua regulamentao, a fim de verificar quais aspectos foram

1

Algumas vezes utilizamos o nome comercial Ritalina para nos referirmos ao seu princpio ativo, o metilfenidato, o que inclui seu similar, o Concerta. A Ritalina, por ser o nome mais conhecido do metilfenidato, foi privilegiada neste trabalho para se referir ao uso do estimulante.

Neste relatrio, os dados sobre o metilfenidato so apresentados separadamente dos outros estimulantes. A fabricao mundial declarada dos estimulantes do sistema nervoso central, de todas as anfetaminas e seus derivados somados, com exceo do metilfenidato, no alcanou 34 toneladas em 2006. (ONU, 2008)

2

9

enunciados e quais ganharam relevo nos diferentes veculos de produo e divulgao do conhecimento ao longo destes anos. Para tal anlise, pesquisamos as publicaes cientficas nos principais peridicos de psiquiatria brasileiros e os jornais e revistas nacionais destinados ao pblico em geral. Nossa pesquisa inclui as publicaes do perodo de 1998 a 2008. Os peridicos brasileiros de psiquiatria analisados foram a Revista Brasileira de Psiquiatria (RBP), o Jornal Brasileiro de Psiquiatria (JBP), os Arquivos de Neuropsiquiatria (ANP), a Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (RPRS) e a Revista de Psiquiatria Clnica (RPC). Os jornais no mdicos analisados foram os de maior tiragem nacional, sendo a Folha de So Paulo, o Jornal O Globo e o Jornal Extra, alm das duas revistas semanais de maior tiragem, a Revista Veja e a Revista poca. Nosso objetivo analisar como as informaes so apresentadas ou omitidas nos diferentes espaos discursivos, de que forma as publicaes cientficas sobre o metilfenidato so produzidas e como elas interagem com o que publicado nos meios de comunicao de massa, formadores de opinio pblica. Concomitantemente pesquisa emprica das publicaes sobre o metilfenidato, foram recolhidos materiais promocionais da Ritalina e do Concerta (similar) junto a representantes dos laboratrios fabricantes, Novartis e Janssen-Cilag, assim como material sobre os usos do metilfenidato no Brasil enviado diretamente pelos laboratrios a partir de contato telefnico. A Ritalina ficou conhecida nos ltimos anos por sua associao ao TDAH. Entretanto, este estimulante comercializado desde os anos 50 na Sua, na Alemanha e nos EUA. No incio, sua indicao era para pessoas idosas, para diminuir a fadiga. No havia nenhum diagnstico especfico para seu uso. Foi somente a partir de sua associao com o TDAH que suas vendas alavancaram e a Ritalina tornou-se o estimulante mais consumido no mundo. No Brasil, foram vendidas quase 1.150.000 caixas de metilfenidato somente em 2007.3 A associao da Ritalina ao TDAH faz com que nossa anlise da divulgao do medicamento no Brasil deixe de lado questes importantes sobre o transtorno, como sua histria e o debate sobre sua etiologia. Em nossa pesquisa, estas questes esto circunscritas aos resultados da pesquisas sobre o uso do metilfenidato. Este debate sobre o3

ANVISA, [mensagem pessoal]. Mensagem recebida em 16 de janeiro de 2009.

10

TDAH muito mais amplo, e foi trabalhado por outros autores, como Lima (2005), Caliman (2006), Dupanloup (2004), dentre outros. Nossa pesquisa visa analisar os discursos sobre o uso do metilfenidato, e o tratamento para o TDAH certamente o mais importante deles. Alm do tratamento do TDAH, o metilfenidato tambm indicado para tratamento da narcolepsia, um raro distrbio do sono. A narcolepsia quase no citada nas publicaes analisadas. Por ser um estimulante, derivado da anfetamina, o metilfenidato tambm tem sido utilizado por estudantes, profissionais e pesquisadores a fim de se manterem mais tempo acordados e concentrados na tarefa a ser realizada. O tema ganhou maiores propores no meio acadmico a partir dos artigos publicados em 2008, pela Revista Nature, sobre o uso do metilfenidato para melhoria do desempenho profissional4. Os artigos tambm tiveram repercusso nos jornais brasileiros de grande circulao. Alguns jovens tambm utilizam o medicamento para fins recreativos, misturando o estimulante a outras drogas. Este uso no mdico do estimulante considerado, em muitas publicaes, um uso perigoso, pelos riscos promovidos na utilizao de um medicamento sem aval de um profissional. De modo inverso, o uso mdico considerado seguro e eficaz. Esta diviso entre risco e segurana, promovida pela prescrio do medicamento, questionada em nossa pesquisa. Acreditamos que tanto em seu uso mdico quanto em seu uso no mdico existem usos e abusos. Alm disso, o presente trabalho discute algumas das implicaes do que produzido no Brasil sob a gide da cincia e que justifica o uso mdico da Ritalina. Para qu e para quem a Ritalina deve ser prescrita? Estas produes cientficas sobre o metilfenidato no esto despojadas de valores morais, menos ainda de valores econmicos. Estes valores sociais, culturais e econmicos presentes nas pesquisas cientficas sobre medicamentos sero nosso objeto de discusso no primeiro captulo. Discutiremos neste captulo o processo de produo cientfica e seu condicionamento cultura. Teremos como principal interlocutor Ludwick Fleck e seu pressuposto de que toda produo cientfica uma produo coletiva. Alm do carter eminentemente social da cincia, a teoria de Fleck nos ajuda a pensar as relaes existentes entre aqueles que produzem o

4

MAHER, B., 2008 e GREELY, H.; SAHAKIAN, B.; HARRIS, J. et al.,2008

11

conhecimento e o pblico em geral, atravs de seus conceitos de crculos esotricos e exotricos. A relao entre estas duas esferas de conhecimento, os especialistas e os leigos, discutida em um campo denominado Comunicao Pblica da Cincia, que se estabeleceu mais fortemente a partir dos anos 80. Algumas das teorias elaboradas neste campo, para dar conta desta relao entre especialistas e leigos na divulgao dos conhecimentos cientficos, so discutidas neste captulo. Encerraremos o primeiro captulo apresentando alguns dos atravessamentos econmicos que poderiam enviesar os resultados, mas que raramente so explicitados nas publicaes. No segundo captulo, apresentaremos o metilfenidato, sua produo e comercializao no Brasil. Neste captulo, discutiremos algumas questes que, embora relacionadas ao consumo do estimulante, raramente so apresentadas por aqueles que defendem seu uso. Um exemplo disso o uso prolongado do medicamento. Raramente encontramos argumentos que discutam seu uso em longo prazo, embora os efeitos colaterais mais graves sejam atribudos ao uso crnico do metilfenidato. Neste captulo discutiremos ainda alguns aspectos histricos e sociais que marcam seu consumo e prescrio atuais, e como a ampliao dos critrios diagnsticos para o TDAH tem expandido igualmente a base de usurios do medicamento. Discutiremos aqui os usos da Ritalina, seja ela prescrita ou no, e como estes usos se relacionam em uma busca pela melhor performance. Encerraremos este captulo apresentando os grupos brasileiros que pesquisam e publicam nos peridicos cientficos sobre o metilfenidato no Brasil. No terceiro captulo, apresentaremos nossa metodologia e os dados obtidos em nossa pesquisa nas publicaes brasileiras sobre o metilfenidato. Neste captulo destacaremos os principais pontos de discusso das publicaes e de que forma eles so expostos. No pretendemos comparar as publicaes cientficas com as publicaes no especializadas, analisando onde se encontra a verdade sobre o metilfenidato. De fato, os dois tipos de publicao privilegiam formas discursivas diferentes, e so direcionados a pblicos distintos. Em nossa pesquisa emprica, visamos analisar quais elementos so privilegiados nos diferentes espaos, quais foram excludos, que ressonncias o discurso da cincia encontra nas publicaes no especializadas e que semelhana o discurso leigo encontra no discurso cientfico.

12

No ltimo captulo, faremos nossas consideraes finais sobre a pesquisa e seus possveis desdobramentos. Esta pesquisa um dos frutos de uma parceria do Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ com o Instituto de Pesquisas Clnicas de Montreal (IRCM), sob a coordenao dos professores Francisco Ortega (IMS) e Eric Racine (IRCM), sobre os usos do metilfenidato, sua compreenso pblica e as perspectivas das partes interessadas.

.

13

________________________________________________________________Captulo 1 As produes cientficas: conhecimento pblico e articulaes privadas

A Ritalina, assim como todo medicamento e equipamentos para a sade, pertence a uma classe de produtos que se inserem em uma estranha fenda aberta entre os interesses comerciais da indstria farmacutica que visam seus lucros e as polticas regulatrias de sade que visam o bem estar da populao. Um elemento que tem sido utilizado cada vez mais para preencher este vazio conseqente, de uma lgica capitalista unida ao bem-estar comum, tem sido a produo cientfica a respeito da validade, utilidade e eficcia destes produtos. Estas produes acadmicas servem de base tanto para a indstria justificar suas vendas, como para as polticas de sade terem justificadas suas aes. Este trabalho parte do pressuposto de que as produes cientficas so produes culturais, entrelaadas por questes sociais, econmicas e polticas. E isto no invalida as pesquisas. Pelo contrrio, as pesquisas atuais em sade refletem preocupaes sociais muito srias e seus resultados tem trazido benefcios reais, ou pelo menos a sua possibilidade, na melhoria de uma qualidade de vida para a populao brasileira. Assim como a nossa pesquisa, as produes cientficas no so de modo algum fabricadas em campo neutro. Os pesquisadores no so pessoas que se destituem de seus pressupostos morais nem de seus afetos para se inserirem socialmente como cientistas. Os simples jogos de pergunta e resposta da cincia no partem de qualquer pergunta, nem buscam qualquer resposta. Reconhecer que nossas crenas cientficas fazem parte de um estilo de pensamento situado scio-historicamente, e que no possuem uma origem espontnea, no lhes tira a validade, mas sim seu carter de absoluto e natural. O sentimento de chover no molhado, ao afirmar o que muitos autores j vm dizendo, h dcadas, sobre a produo cientfica como uma produo cultural, se contrape com os argumentos encontrados nas publicaes pesquisadas sobre o metilfenidato. Afirmar que algo est comprovado em centenas de estudos com slida fundamentao cientfica tem encerrado muitos debates. Neste primeiro captulo da pesquisa iremos discutir como estas produes cientficas no esto desconectadas nem de um sistema cultural de idias, nem de um sistema comercial que muitas vezes no se conjuga com uma preocupao com a sade da

14

populao. No nos deteremos nas pesquisas sobre a Ritalina, as quais dedicaremos os segundo e terceiro captulos de nossa dissertao. Neste primeiro captulo, a discusso ser mais abrangente e tentar englobar as produes no campo da sade, na qual o uso do metilfenidato est inserido. Certamente, ao generalizar corremos o risco de apresentarmos opinies estigmatizadas. Contudo, nossa inteno aqui apresentar alguns entrelaamentos que compem a produo cientfica e que podem contribuir para a abertura do debate, sem que o cientificamente comprovado se configure como argumento final. Nesta primeira parte discutiremos o processo de produo do conhecimento cientfico em diferentes nveis da produo de pensamento. Ludwick Fleck ser nosso principal interlocutor neste campo. Em segundo lugar, discutiremos alguns esquemas elaborados para dar conta da comunicao pblica da cincia e suas propostas de melhoria na comunicao entre cientistas e o pblico em geral. Por ltimo, destacaremos alguns interesses polticos, econmicos e sociais presentes nas pesquisas cientficas em sade que nem sempre esto explicitados nas publicaes.

1.1 - A cincia como uma produo social Ludwick Fleck5, em sua anlise sobre as condies de emergncia da sfilis como uma doena-entidade, argumenta que as produes cientficas no esto dadas, no so fatos independentes de interpretao ou resultados de um desenvolvimento progressivo em direo verdade, muito menos se tratam de produes individuais. Para o autor, no possvel compreendermos a natureza do conhecimento, sem adotarmos um ponto de vista que possa incluir os fatos naturais como objetos de investigao epistemolgica, a partir de uma perspectiva sociolgica comparativa. O conhecimento, para Fleck, est para alm desta relao dual sujeito do conhecimento-objeto a ser conhecido. O processo do conhecimento no pode ser entendido como um processo individual, pois h que se levar

Ludwick Fleck foi um mdico polons nascido em 1886. A sua obra mais conhecida, Gnese e desenvolvimento de um fato cientfico, a qual me refiro de maneira mais extensa neste captulo, foi publicada em 1935 na Sua, onde era permitido aos judeus publicarem. Este livro quase no teve repercusso no momento de sua publicao. Somente a partir dos anos 60 sua obra se tornou mais conhecida. Fleck tem influenciado grandes pensadores contemporneos no campo da sade. Sua obra nunca foi traduzida para o portugus.

5

15

em conta o meio em que se conhece, o que j conhecido (o estoque de conhecimento) que, por sua vez, influencia o que se quer conhecer e como se conhece. Para ele, alm do indivduo e da realidade a ser conhecida, est tambm o coletivo, que um coletivo de pensamento6. Nenhum destes trs fatores do conhecimento indivduo, coletivo e realidade - devem ser tomados como entidades metafsicas, mas sim como objetos de investigao que possam incluir a histria. O conceito de coletivo de pensamento marca o carter social de toda atividade cientfica, assim como o prprio pensamento, que no pode ser localizado nos limites do indivduo.

Os Coletivos de Pensamento e os Estilos de Pensamento O coletivo de pensamento seria o portador dos conhecimentos produzidos, mas no seria a soma deles, seria algo que ultrapassaria o indivduo. Coletivo de pensamento definido por Fleck como uma comunidade de pessoas que trocam mutuamente idias ou que mantm interao intelectual 7. E embora um coletivo de pensamento seja composto de indivduos, ele abriga uma quantidade de conhecimento maior que a capacidade de um indivduo. No se deve confundir um coletivo de pensamento com um grupo fixo de indivduos, ou uma classe social. Este conceito mais funcional que substancial. Alm disso, um indivduo pode pertencer a vrios coletivos de pensamento. Existem coletivos de pensamentos transitrios, acidentais, que se formam e se desfazem facilmente, como, por exemplo, quando duas pessoas se encontram e trocam idias. Este coletivo de pensamento freqentemente volta a ocorrer quando estas pessoas se encontram novamente. Alem deste tipo, existem os coletivos de pensamento mais estveis e fixos que so formados em torno de grupos sociais organizados, como o caso da cincia contempornea. Os conhecimentos produzidos no coletivo de pensamento so sempre estilizados, ou seja, so norteados por um estilo de pensamento8 que direciona as perguntas e asO termo utilizado por Fleck, em alemo, Denkkollektiv. O termo foi traduzido para o ingls por Throught Collective. Os comentadores brasileiros de Fleck (Lowy, 1994, Camargo Jr., 2005; entre outros) utilizam o termo coletivo de pensamento.7 8 6

a community of persons muttually exchanging ideas or maintaining intellectual interaction. (p.39) No original, Denkstil. O termo foi traduzido para o ingls como thought style.

16

respostas, que exerce uma fora sobre o caminho lgico do pensamento e pelo qual tomamos um conhecimento como verdadeiro e no outro, ou seja, o estilo de pensamento diz respeito influncia mtua existente entre os conceitos de um sistema de idias, direcionando o modo de perceber e relacionar os objetos do conhecimento9. Neste sistema de idias, dentre outros sistemas de representao social, as conexes estabelecidas entre os conceitos s sobrevivem se a explicao para tais relaes for estilizada, ou seja, se ela estiver em conformidade com o estilo de pensamento prevalecente. O estilo de pensamento sempre consistente a partir de seu prprio ponto de vista. Ele contempla as pressuposies sobre as quais o coletivo constri suas teorias. Alm disso, o estilo de pensamento no algo que se escolhe, voluntariamente, como uma caracterstica opcional, mas funciona como uma coero do pensamento, formado no coletivo, como resultado do conjunto das foras sociais. Ele pode ser acompanhado por um estilo literrio ou tcnico, caracterstico de um dado campo de conhecimento, delimitando as formas de descrio e percepo dos fatos. Mesmo a simples observao est condicionada pelo estilo de pensamento e ligada a uma comunidade de pensamento. Para Fleck, quando afirmarmos que algum conhece alguma coisa precisamos de suplementos do tipo em um estilo de pensamento particular de um dado coletivo de pensamento, contextualizando assim toda e qualquer produo de conhecimento. O estilo de pensamento prevalecente no coletivo no consciente ou explcito, mas exerce grande influncia sobre o pensamento dos indivduos. Fleck diferencia dois elementos do conhecimento: um ativo e outro passivo. Todo elemento ativo do conhecimento corresponde a uma conexo passiva e inevitvel. Quanto mais ns penetramos em um campo de conhecimento, mais elementos ativos e passivos encontramos, e no somente passivos pois, se por um lado o estilo de pensamento exerce mais forte coero sobre o conhecimento, produzindo conexes inevitveis e passivas, por outro, maior a experincia individual do pesquisador para produzir um conhecimento ativo, como uma resistncia aos elementos passivos do coletivo. Estes dois elementos do conhecimento no podem ser separados completamente um do outro e esto relacionados

9

Existe um limite estilstico entre muitos, seno todos, os conceitos de um perodo baseados em sua influncia mtua. Ns podemos ento falar de um estilo de pensamento, o qual determina a formulao de cada conceito. Fleck, 1979, p. 9

17

com a insero em um coletivo de pensamento e a experincia do conhecimento produzida neste coletivo. Este estilo de pensamento, que coage mesmo a simples observao em um determinado caminho lgico, que vai produzir as conexes passivas do pensamento. J a experincia pessoal do pesquisador, esta que no aparece nos relatrios de pesquisa, mesmo inserida em um estilo de pensamento, pode produzir resistncia ao estoque de conhecimento para a produo de novas idias e conceitos sem, contudo, contradizer as bases que formam o sistema de opinio em questo.

A tenacidade dos sistemas de opinio e a intrnseca harmonia das iluses Os sistemas de opinies, formados por conceitos estilizados, se consolidam e se desenvolvem mantendo permanente resistncia s idias que o contradizem. Fleck nomeia esta tendncia como tenacidade dos sistemas de opinio. Segundo o autor, toda teoria passa por um perodo clssico primeiro, onde as excees so impensveis, visto que os fatos reconhecidos so somente aqueles que esto em conformidade com a lgica vigente. Mais tarde, quando as excees comeam a se tornar mais freqentes, pode-se, a princpio, silenciar diante das contrariedades, e, finalmente, realizar grandes esforos para que as excees sejam explicadas em termos que no contradigam o sistema. O objetivo sempre a busca por uma conformidade lgica entre a contradio que apareceu no desenvolvimento de uma teoria e o sistema de idias que compe a teoria.Na histria do pensamento cientfico no existe relao formal da lgica entre concepes e evidncias. As evidncias se adequam s concepes assim como as concepes se adequam s evidncias.10

Nesse sentido, analisando as diferentes concepes acerca da sfilis, Fleck cita exemplos de idias concomitantes e contraditrias, que compunham sua definio em uma conformidade lgica que no contradizia o sistema de idias vigente. Por exemplo, a idia da sfilis como castigo divino, necessrio para remoo do pecado, e a utilizao de umaIn the history of scientific knowledge, no formal relation of logic exists between conceptions and evidence. Evidence conforms to conceptions just as often as conceptions conform to evidence. (p. 27-28)10

18

teraputica, que era o uso farmacutico de uma pomada base de mercrio. Para combinar ambos os pontos de vista, o do pecado e o do mercrio, foi observado que algumas vezes, o mercrio no cura o pecado carnal, mas o torna pior. 11 Por fim, o ltimo estgio da tenacidade dos sistemas de opinio o que Fleck nomeia fico criativa, ou seja, a concepo de que as idias e as interpretaes esto de fato prontas, completas. Esta fico criativa garante, de certa forma, uma coeso perfeita das idias, conceitos e pressupostos. Ela garante uma harmonia das iluses, ou a intrnseca harmonia do estilo de pensamento.

As idias pr-cientficas na produo da cincia Quando se trata de um conceito cientifico estabelecido, no podemos conceber que nele esto contidas verdades completas, mas que tambm no esto contidos erros completos. Isto porque os conceitos no so formados espontaneamente, no surgem do nada. Os conceitos so marcados por uma histria que determina o desenvolvimento de uma idia e no de outra, e para Fleck, os conceitos so acessveis somente a partir de um estudo de sua histria. A formao de um conceito cientfico est relacionada a outras idias, no somente contemporneas a ele, mas igualmente, a idias pr-cientficas, ou proto-idias. Muitas vezes, o que fundamenta um determinado conceito no tem qualquer base em regras cientficas e, muito embora essas ligaes com o passado no se encontrem explcitas, elas compem grande parte do fato cientfico. Para Fleck, no existe dvida que um fato se desenvolve passo a passo a partir de proto-idias confusas, que no so nem certas, nem erradas. 12 O exemplo de sua pesquisa sobre a sfilis mostra que a histria do conceito da doena no corresponde descoberta de seu agente causador, mas que a idia da doena sfilis foi definida por vrios caminhos ao longo da histria, e cada definio selecionada

It was observed that of carnal scourge, it was observed that sometimes mercury does not cure the carnal scourge but makes it even worse. (p.5) And there is no doubt that a fact develops step by step from this hazy proto-idea, which is neither right nor wrong. (p.25)12

11

19

determinou algumas das concluses a que os pesquisadores chegaram. Para Fleck, a idia cientfica surge antes de a evidncia estar disponvel. Tambm hoje, o Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH) freqentemente definido como uma disfuno gentica e/ou cerebral, no entanto, os achados das pesquisas em gentica ou com mapeamento cerebral no so significativos para que tal afirmao seja comprovada. E, embora o diagnstico continue sendo clnico, a partir do discurso do paciente ou de terceiros, sua definio como um transtorno neural e gentico permanece freqente nas publicaes sobre o TDAH. O conceito atual de uma determinada idia no se constitui como nica soluo possvel e lgica, mas como a soluo entre as anlises e snteses possveis de determinado momento. Com isto, no se pode dizer que uma proto-idia correta ou falsa. O que a poucos anos atrs era visto como um evento natural aparece hoje como um complexo de artefatos. 13 Mesmo as atuais e sofisticadas tcnicas de pesquisa so resultados de um desenvolvimento histrico, assim como aquelas tcnicas que hoje so consideradas como ultrapassadas e, muitas vezes, descabidas, foram os melhores resultados possveis de um sistema de pensamento de um momento histrico, nem sempre distante.

Os crculos exotricos e esotricos dos coletivos de pensamento Existem, para Fleck, caractersticas comuns a todas as estruturas de coletivos de pensamento. A estrutura geral de um coletivo de pensamento consiste de muitos crculos com intercesses. Ele distingue o crculo exotrico e o crculo esotrico em cada coletivo de pensamento, cada um consistindo de membros do coletivo e formados em torno de todo um trabalho mental, uma idia artstica ou religiosa, etc. Esta distino muito importante para pensarmos a atual comunicao pblica da cincia, pois nesta concepo, uma comunidade de pensamento deixa de ser um bloco homogneo de idias.

What just a few years ago was regarded as a natural event appears to us today as a complex of artefacts. (p.26)

13

20

As relaes de poder que um crculo exerce sobre o outro, consciente ou inconscientemente, vo depender da posio em que ocupam os especialistas e o pblico em dado momento e contexto. E, segundo Fleck, este o primeiro contraste importante que compe a estrutura geral de um coletivo de pensamento: o especialista e o popular. No se trata aqui de relaes individuais, mas antes de relaes sociais, coletivas.Os crculos esotricos entram em relao com seus crculos exotricos como conhecido na sociologia a relao da elite com as massas. Se as massas ocupam uma forte posio, uma tendncia democrtica ser impressa nesta relao. A elite satisfaz a opinio pblica e se esfora em preservar confidncia das massas. Esta a situao na qual o coletivo de pensamento da cincia normalmente se encontra hoje. Se a elite ocupa uma posio forte, ela se empenhar em manter a distncia e isolar-se do pblico. 14

Tomando como exemplo a cincia moderna, o crculo esotrico formado pelos pesquisadores especializados, os experts. Aqui tambm esto includos os especialistas mais gerais. No crculo exotrico esto aqueles que possuem um conhecimento do que est sendo estudado, mas ainda so amadores, aprendizes. Aqui se est mais prximo da opinio pblica, e mais distante da criao do pensamento, alcanado somente a partir de uma relao esotericamente mediada. O crculo esotrico um crculo mais restrito, mas no homogneo, embora quanto mais especializado, mais coeso se torna o sistema de idias. A introduo ao crculo esotrico comparada a um ritual de iniciao, onde o aprendiz ser inserido ao estilo de pensamento e sua coero, ou seja, onde ele aprender a pensar dentro do sistema lgico de idias do coletivo de pensamento em questo. Nos crculos exotricos, do conhecimento popular, as provas que constrangem o pensamento tendem a desaparecer para dar lugar, segundo Fleck, a imagens vvidas, simplificadas e lcidas. Os crculos exotricos so alimentados pelos peridicos populares de cincia ou de divulgao. A linguagem dos crculos exotricos mais viva e maisThe esoteric circles thus each enter into a relation with their exoteric circles known in sociology as the relation of the elite to the masses. If the masses occupy a stronger position, a democratic tendency will be impressed upon this relation. The elite panders, as it were, to public opinion and strives to preserve the confidence of the masses. This is the situation in which the throught collective of science usually finds itself today. If the elite enjoys the stronger position, it will endeavor to maintain distance and to isolate itself from the crowd. (p. 105-106)14

21

prxima da emoo, e transmite o conhecimento com a certeza de uma auto-evidncia. Esta certeza o ideal de conhecimento para o especialista, e na cincia popular que ele busca, muitas vezes, suas garantias.Uma qualidade pictrica introduzida por um expert que quer tornar uma idia inteligvel aos outros ou por razes mnemnicas. Mas o que era inicialmente um meio [a means] para um fim, adquire o significado [the significance] de um fim cognitivo. A imagem predomina sobre as provas especficas e freqentemente retorna para o expert em seu novo papel. 15

A produo de conhecimento na cincia no um processo que se finaliza com a publicao de resultados ou concluses. Isso que retorna para o expert em seu novo papel, aps ser publicado ou transmitido, se inclui na forma em como as idias tambm so produzidas ao circularem pelos diferentes coletivos de pensamento, ou pelos diferentes crculos em um mesmo coletivo. A palavra impressa um instrumento importante para a circulao de idias dentro de um coletivo de pensamento como a cincia. Ela permite a conexo, tanto entre os diferentes coletivos de pensamento, como no interior de um mesmo coletivo. Segundo Fleck, as palavras sempre sofrem uma mudana, ou uma transferncia de significado, nas comunicaes intercoletivas, ou seja, os estilos de pensamento de cada coletivo adaptam as caractersticas das palavras segundo suas crenas, segundo seu sistema de idias. Para o autor, a comunicao nunca ocorre sem uma transformao e, na verdade, sempre envolve uma reconstruo [remodeling] estilizada, que corrobora intracoletivamente e produz intercoletivamente uma alterao fundamental.16 Dentro de um mesmo coletivo de pensamento existem diferentes modos de comunicao. No caso da cincia, a comunicao impressa ainda tem ressaltado valor. E o que concerne s publicaes das idias e conceitos para difuso de conhecimento dentro do crculo esotrico, onde se produz o conhecimento, Fleck diferenciou as publicaes dos peridicos cientficos dos livros de referncia [vademecum]. Alm destes, os manuaisA pictorial quality is introduced by an expert who wants to render an idea intelligible to others or for mnemonic reasons. But what was initially a means to an end acquires the significance of a cognitive end. The image prevails over the specific proofs and often returns to expert in this new role.(p. 117) Communication never occurs without a transformation, and indeed always involves a stylized remodeling, which intracollectively achieves corroboration and which intercollectively yields fundamental alteration. (p. 111)16 15

22

bsicos representam outro tipo de publicao cientfica. Estes servem como ferramenta para a insero do aprendiz ao crculo esotrico do coletivo de pensamento. Os jornais cientficos possuem um carter mais provisrio e pessoal que os livros de referncia, embora isto se encontre implcito nas publicaes. O carter pessoal destas publicaes sempre visto como um erro, sendo o mais freqente a utilizao do plural da modstia para explicitar as dvidas do pesquisador. E quando elas se apresentam como concluses provisrias explicitando as contradies do campo, as dvidas e as esperanas, as publicaes nos peridicos cientficos se ligam sempre ao conhecimento j estabelecido da cincia. Segundo Fleck, o objetivo sempre incorporar este conhecimento ao que j est estabelecido.Uma vez que uma afirmao publicada, ela constitui parte das foras sociais que formam conceitos e criam hbitos de pensamento. Junto com todas as outras afirmaes, ela determina o que no pode ser pensado de outra forma. 17

J os livros de referncia, que representam o conhecimento estabelecido, no podem ser vistos como uma coleo ordenada do que publicado nos diversos jornais cientficos, j que as publicaes cientficas nem sempre convergem em uma nica concluso. Os embates prprios do campo desaparecem nesta forma de publicao para dar lugar certeza.Os livros de referncia so construdos a partir de contribuies individuais atravs da seleo e arranjos ordenados como um mosaico de muitas pedras coloridas. Este plano de seleo e ordenamento fornecer o guidelines para as pesquisas futuras. Eles governam a deciso sobre o que conta como conceito bsico, que mtodos devem ser aceitos (...). Tal plano se origina da comunicao esotrica do pensamento - durante as discusses entre especialistas, atravs da aceitao mtua e do desentendimento mtuo, atravs das mtuas concesses e dos mtuos incitamentos obstinao. 18Once a statement is published it constitutes part of the social forces which form concepts and create habits of thought. Together with all other statements it determines what cannot be thought in any other away. (p.37) A vademecum is built up from individual contributions through selection and orderly arrangement like a mosaic from many colored Stones. The plan according to which selection and arrangement are made will then provide the guidelines for future research. It governs the decision on what counts as a basic concept, what methods should be accepted (). Such a plan originates through esoteric communication of thoughtduring discussion among the experts, through mutual agreement and mutual misunderstanding, through mutual concessions and mutual incitement to obstinacy. (p. 119-120)18 17

23

O conjunto de pressupostos que formam a base do sistema de idias de um coletivo de pensamento o que exerce mais fortemente a coero sobre o direcionamento do pensamento e das concluses do coletivo. Os fatos, tomados como coisas fixas e comprovadas fazem parte da cincia dos livros de referncia. Os sinais desconectados apresentados nos jornais cientficos seriam apenas predisposies para o fato. Mas no cotidiano, no conhecimento popular do crculo exotrico, que o fato se torna encarnado, perceptvel na realidade, muitas vezes sendo explicado atravs de figuras metafricas e retornando ao crculo esotrico como certeza. Os pressupostos de Fleck para a adequao do que j foi construdo para o estabelecimento de diretrizes norteadoras da verdade, servem igualmente para pensarmos a elaborao dos Relatrios de Consenso, onde os pesquisadores do crculo esotrico se renem para elaborao e assinatura de um documento que atesta a legitimidade de determinado saber, definindo por consenso, e no por provas cientficas, a melhor verdade possvel. 19 As definies assinadas nestes relatrios se tornam as verses oficiais do conhecimento discutido. Esta diviso entre manuais, jornais cientficos e livros de referncia nos crculos esotricos e as publicaes populares de divulgao da cincia nos interessa na medida em que podemos utiliz-la como ferramenta na anlise dos dados, concebendo as publicaes nos jornais cientficos como uma via, dentre outras, para a produo de sentidos, no sendo esta forma de publicao a nica base de conhecimento dentro de um coletivo de pensamento, e muito menos de outros coletivos. Alm disso, Fleck nos auxilia na concepo de um discurso que circula, se transformando nos diferentes meios de comunicao e que, um e outro, no esto desarticulados, pertencendo ao mesmo processo de produo de conhecimento. A interao dos conhecimentos produzidos e divulgados, assim como a interdependncia dos crculos esotricos e exotricos, se tornam essenciais para nossa concepo de uma comunicao da cincia, que se d a partir do intercmbio de informao entre muitos atores, em diferentes nveis, entrelaada com questes sociais e polticas. Alm disso, estes conceitos nos auxiliam pensar como a divulgao de pesquisas

19

Sobre Relatrios de Consenso e TDAH, ver Caliman, 2006.

24

mais locais se remetem a um conhecimento anterior e maior, o estoque de conhecimento do coletivo, que os resultados da pesquisa publicada podem fornecer.

1.2- Articulaes entre os especialistas e o pblico: o campo da compreenso pblica da cincia Os saberes produzidos pelo circulo esotrico da cincia no esto desarticulados, como vimos com Fleck, das informaes divulgadas no crculo exotrico. Existe atualmente um campo de estudos interdisciplinar que se dedica a pesquisar as interaes entre pblico e cincia, chamado Compreenso Pblica da Cincia20. Segundo Bucchi (2003), este campo se ocupa da percepo, da compreenso e das atitudes do pblico no especialista diante da cincia e da tecnologia, assim como das prticas cuja cincia utilizada, reinventada ou ignorada nos contextos no especializados. Alguns estudos se referem ao campo como Comunicao Pblica da Cincia. Os primeiros estudos referentes aos processos de interlocuo da cincia com o pblico surgiram nos anos 50, nos Estados Unidos, mas foi somente a partir dos anos 80 que tais estudos se constituram como um campo organizado de conhecimento (Bucchi, 2003; Bauer et. al., 2007). Anteriormente aos anos 80, a literatura que abordava a difuso da cincia para o pblico estava muito mais relacionada a uma legitimidade da verdadeira cincia e a decises de polticas pblicas. A partir dos anos 80, as atitudes do pblico comeam a ser destacadas nas pesquisas, mas com uma noo de dficit de informao do pblico sobre a cincia e modelos para super-la. Muitos estudos que tem ou tiveram como proposta analisar o conhecimento do pblico a respeito de determinado contedo cientfico partem de uma proposta de comunicao linear, onde o pblico recebe informaes distorcidas das produes cientficas, ocasionando freqentemente um entendimento errneo da informao. Esta viso da comunicao pblica da cincia conhecida como o modelo do dficit (Bucchi, 2003; Pitrelli et. al., 2006), fazendo referncia falta de informao do pblico acerca da cincia. Os autores que contrapem esta viso argumentam que, evidentemente, o

Desde 1992 existe um peridico, Public Understanding of Science inteiramente dedicado a este debate. Este peridico est disponvel no Portal Capes (www.periodicos.capes.gov.br)

20

25

conhecimento do pblico sobre a cincia se difere do discurso do cientista, entretanto, esta diferena qualitativa e no quantitativa. Bucchi (1996) diferencia uma narrativa cannica sobre a cincia e a mdia, de um modelo de comunicao pblica que pensa a difuso da cincia como um continuum. Segundo este autor, estes modelos podem funcionar apenas quando a comunicao rotineira e no apresenta problemas. Quando se trata de situaes problemticas, necessrio um modelo multivariado, que seja capaz de explicar qual o papel da comunicao pblica da cincia nestas situaes marginais. No modelo da narrativa cannica, os problemas entre a cincia e o pblico so devidos ao mau entendimento e interpretao das idias cientficas originais. Uma proposta desta corrente, segundo o autor, a comparao das idias originais com sua interpretao na mdia, ou o julgamento de experts a respeito da veracidade ou falsidade dos conceitos publicados na imprensa leiga. Os argumentos bsicos da narrativa cannica so a dificuldade de compreenso do pblico e que por isso, uma forma de mediao necessria. Este mediador, em geral o jornalista da cincia, freqentemente descreve as pesquisas atravs de metforas para uma melhor compreenso. Seria apenas uma questo de traduo, que se distingue da produo. Para Bucchi, termos como popularizao, disseminao, distoro, mediao fazem parte desta viso idealizada da comunicao pblica. O outro modelo de comunicao da cincia concebe-a como um continuum de vrios nveis. No h uma distino clara entre cincia e sua disseminao, mas sim uma diferena de graus de complexidade no estilo de comunicao que comea em um nvel intra-especialstico, inter-especialstico, pedaggico at o nvel popular. Este modelo de comunicao parece conceber a comunicao cientfica em uma trajetria linear, onde um conhecimento produzido com um alto grau de complexidade vai passando pelos nveis de divulgao, se tornando mais simples. Contudo, um pesquisador pode, por exemplo, comunicar sua pesquisa em diversos nveis ao mesmo tempo. Alm disso, esta trajetria no est imune a obstculos, e muito menos o nvel popular da comunicao da cincia ltimo ou decisivo. Muitas controvrsias podem aparecer, ou serem justificadas, no nvel popular. Os prprios cientistas podem fazer uso de informaes, principalmente imagens e metforas, que circulam na mdia popular.

26

Acreditamos que todas as duas formas de narrativa sobre pblico e cincia se inserem no que alguns autores chamaram de modelo do dficit. O mais importante aqui o pressuposto, no de uma linearidade ou de um continuum da informao, mas de que na comunicao da cincia ao pblico podem existir diversas prticas comunicativas, com objetivos e circunstncias diferentes. O modelo do dficit, que hoje criticado em quase todos os trabalhos que se referem ao Conhecimento Pblico da Cincia, foi precursor na colocao do problema da relao entre cientistas e pblico, chamando ateno de instituies polticas e cientficas para o assunto (Bucchi, 2003). Em um artigo que pretende revisar as principais questes do campo da Compreenso Pblica da Cincia dos ltimos 25 anos, Bauer et. al. (2007) afirmam que o modelo do dficit no pode ser confundido com o tipo de protocolo de pesquisa. Muitos crticos deste modelo o relacionam diretamente a pesquisas com metodologias quantitativas. Uma pesquisa de cunho qualitativo no garante que a viso do que cincia ou o que pblico no seja uma viso idealizada. Entretanto, a polmica gerada em torno do conceito de dficit, possibilitou a criao de protocolos alternativos de pesquisa, tais como a anlise do discurso. Bauer et. al. (2007) argumentam ainda que os modelos criados para superar o modelo do dficit tambm esto pautados em outros tipos de atribuio de dficit, seja da parte tcnica da cincia, seja dos meios de comunicao de massa, e com propostas especficas de superao da viso anterior da interao cincia-pblico. Os termos cincia ou pblico no so vistos, na presente pesquisa, como termos gerais. Cincia pode abranger diferentes campos de conhecimento que podem no se relacionar uns com os outros. Alm disso, o crculo esotrico da cincia no abrange todo o coletivo de pensamento. No caso da nossa anlise das publicaes sobre o metilfenidato, a viso do medicamento encontrada na totalidade das publicaes no se refere opinio de todos os psiquiatras brasileiros. Alguns profissionais, pela insero nos meios de comunicao ou por sua ligao aos laboratrios farmacuticos como palestrantes ou representantes, produzem e divulgam um conhecimento baseado em pressupostos que no so necessariamente compartilhados por outros especialistas. O conhecimento do pblico sobre determinados assuntos pode depender igualmente de muitos fatores. Algumas informaes podem ser ignoradas pelo pblico em geral

27

simplesmente por no apresentarem nenhuma aplicabilidade no cotidiano das pessoas, por exemplo. O pblico tambm pode interferir em decises de cunho estritamente cientfico, o que tem acontecido principalmente atravs de movimentos organizados. No somente o pblico ou a cincia no devem ser considerados como uma massa homognea, generalizvel; mas tambm, os meios de comunicao devem ser tidos como elementos passveis de anlise. Os jornais e revistas voltados para o pblico em geral esto implicados com obrigaes como, por exemplo, o direcionamento editorial do jornal. Para Pitrelli et. al. (2006) necessrio considerarmos a mdia em seu papel enquanto representante de uma arena cultural importante, onde o conhecimento cientfico no mediado, mas construdo. A mdia tambm seria constituinte do lugar onde a cincia conhece o pblico.21 As publicaes nos peridicos cientficos tambm so constrangidas por regras de um mtodo cientfico e por questes econmicas e polticas. Como comenta Camargo Jr. (1994) A produo do conhecimento cientfico pode analogicamente ser vista como outros tantos ciclos produtivos: h produtores, consumidores canais de distribuio, mecanismos de concorrncia e um mercado bem menos livre do que se alardeia. (p. 26) Segundo Star (1983), o trabalho cientfico perpassado por escolhas que decidem como o campo de investigao ser limitado, como as polticas locais, as contingncias materiais, o tempo, o financiamento e as regras de formatao. Estas contingncias devem ser conciliadas nas pesquisas para a publicao dos resultados. Este processo de conciliao, Star chama de simplificao do trabalho cientfico, j que as concluses cientficas publicadas no representam todos os detalhes do trabalho realizado. Existe, segundo ela, uma zona informal da pesquisa que no publicada. Para a autora, simplificao um mtodo de procedimento com os problemas do trabalho que, por causa dos recursos limitados, no pode ser manejado em sua total complexidade.22

21

(...) represent an important cultural arena, where scientific knowledge is not just mediated but constructed. (), as well as constituting the place where science meets the public. (p. 208)

Simplification is one method of proceeding with work problems which, because of limited resources, cannot be handled in their full complexity. (p. 211)

22

28

Apesar de no trabalharmos com a possibilidade de que uma publicao contenha a total complexidade de uma pesquisa, podemos notar que, de fato, os valores sociais e as questes econmicas, que muitas vezes esto fortemente presentes nas pesquisas, no so sequer mencionados, ou quando so expostos, no apresentam suas implicaes nos resultados apresentados. Ainda segundo a autora, as concluses cientficas publicadas tendem a apresentar resultados como fatos terminados, sem a meno da produo ou do processo de tomada de deciso a respeito de uma srie de componentes que interferem nos dados apresentados. Com isso, no se pode entender um trabalho cientfico simplesmente analisando seus resultados. Field e Powell (2001) defendem que poucas pessoas conhecem as pesquisas em andamento sobre temas que tem implicaes diretas em suas vidas. Segundo estes autores, os dados utilizados para informar o pblico sobre a cincia so apresentados como dados conclusivos e acabados. Para eles, o desafio de uma educao pblica da cincia criar mtodos efetivos e canais de comunicao que possam explicar s pessoas o prprio carter transitrio e circunscrito de algumas concluses cientficas, incluindo parte do processo da produo nos resultados. Em outro artigo sobre incerteza e trabalho cientfico, Star (1985) narra o exemplo dos neurofisiologistas ingleses do fim do sculo XIX que eram localizacionistas cerebrais. Estes pesquisadores que relacionavam cada funo mental a reas cerebrais foram ridicularizados por quase toda comunidade cientfica da poca. A eminncia alcanada posteriormente, no incio do sculo XX, se deu por um complexo conjunto de condies e de altos investimentos. Os localizacionistas tinham consigo os recursos da profissionalizao mdica e a posse dos principais meios de produo de conhecimento (jornais, postos de professores, etc.). Star, neste artigo, visa exemplificar como incertezas locais se transformaram em certezas globais. Alguns dos mecanismos de transformao de incertezas atribudos aos localizacionistas podem nos ajudar em nossa anlise dos dados. So eles: (1) a atribuio de certeza a outros campos de saber, tornando impossvel traarmos uma trajetria da incerteza (metodolgica, por exemplo) dos dados apresentados; (2) a substituio das falhas tcnicas por uma avaliao do processo (um exemplo tpico a atribuio do sucesso da operao, malgrado a morte do paciente); (3) a criao de tipos ideais, o que

29

exclui os achados locais; (4) a apresentao de anomalias e incertezas locais como algo que no invalida as evidncias em um nvel global; (5) a generalizao ad hoc dos resultados dos casos e, (6) a realizao de debates internos e debates pblicos incluindo questes epistemolgicas. Estes mecanismos apontados por Star (1985) certamente no so universais, mas podem contribuir para pensarmos como algumas idias atuais se tornaram evidncias amplamente aceitas, fatos irrefutveis, a partir de relaes polticas e econmicas presentes na produo das pesquisas. Esta transformao de incertezas locais para certezas globais importante aspecto da tenacidade dos sistemas de opinio apontado por Fleck, visto que um mecanismo que garante a estrutura do conhecimento. As prticas comunicativas que se referem Compreenso Pblica da Cincia esto presentes em todos os espaos de comunicao em que a cincia possa interessar, de alguma forma, como informao relevante: artigos e reportagens que divulgam pesquisas cientficas, o espao comercial das propagandas, sites informativos na internet, programas televisivos (no necessariamente ligados cincia), palestras de especialistas direcionadas ao pblico em geral, vdeos, etc. O fato de a maioria dos artigos que tratam das produes cientficas e suas articulaes com o pblico terem como objeto de estudo o material impresso sobre determinada temtica cientfica, porque, alm da relevncia de algumas publicaes como formadoras de opinio, este tipo de material nos permite analisar no somente um perodo mais extenso, mas tambm facilita os dados para anlise e discusso. Outra questo abordada nas publicaes referentes Comunicao Pblica da Cincia a presena da cincia nos espaos pblicos de veiculao de informao no somente no formato de reportagens. A cincia pode estar presente em propagandas, como estratgia de marketing, para respaldar e tornar confivel o consumo de determinado produto. Em uma pesquisa realizada na imprensa italiana (Pitrelli et. al., 2006) sobre a presena de informaes cientficas em propagandas veiculadas nos principais jornais italianos entre 2002 e 2003, foi verificado que das 6.542 propagandas veiculadas, 1.018 continham informaes de cunho cientfico. Destas, 69% correspondiam a informaes ligadas ao campo da sade e bem-estar. As informaes apresentadas como cientficas ligadas ao campo da fsica, qumica, astrofsica e matemtica somam 22% de presena no total das propagandas que se utilizam de informaes cientficas. Os autores afirmam que

30

as propagandas de bens tecnolgicos quase no se utilizam de informaes ligadas cincia para garantir a confiabilidade do produto. O mesmo no acontece com produtos ligados sade e ao bem-estar. Das propagandas de medicamentos analisadas, 96% apresentam informaes cientficas. Esta categoria foi a que teve maior ndice de uso da cincia na imprensa italiana, e a que apresentou maior quantidade de figuras e grficos que garantiriam a eficcia e a confiabilidade do produto venda. Do mesmo modo, o conhecimento produzido por uma especialidade cientfica pode ser comunicado aos pares, dentre outras formas, atravs de propagandas comerciais nos peridicos especializados. Esta categoria de publicidade no pode ficar restrita apenas s peas publicitrias, tanto para a classe mdica, quanto para o pblico em geral. Os medicamentos so produtos comercializveis, que tm rendido cada vez mais lucros. Algumas formas de tornar pblico o conhecimento cientfico se articulam com os interesses do investimento privado. E algumas questes derivam desta intercesso.

1.3- As pesquisas cientficas e seus entrelaamentos polticos, econmicos e sociais Conflito de interesses, fator de impacto e produo de pesquisas em sade As pesquisas cientficas esto, como vimos, subordinadas a uma srie de constrangimentos que afetam os resultados das pesquisas. O foco da presente pesquisa na produo e divulgao de conhecimento de um produto farmacutico torna necessria a discusso de alguns pontos ligados produo cientfica no campo da sade e de questes especficas, referentes produo cientfica ligada a indstria de medicamentos. As pesquisas esto socialmente estabelecidas como a principal instncia de produo de conhecimento cientfico. So as pesquisas cientficas que direcionam as tomadas de deciso mdicas e algumas das polticas pblicas do setor. As pesquisas em sade que so consideradas relevantes no meio acadmico so pesquisas que, em geral, tm como base mtodos quantitativos. Camargo Jr.(2008a) realizou uma busca com o termo qualitative researsh nas trs mais importantes revistas mdicas do mundo, entre 2004 e 2006, e nos mais de quinze mil artigos publicados no perodo nas trs revistas, nenhum resultado foi obtido. Segundo o autor esta tendncia em

31

valorizar a pesquisa quantitativa como a verdadeira cincia crescente, e tem reduzido cada vez mais o espao para pesquisas em sade que tem como base tcnicas qualitativas, vistas como sendo pesquisas de menor valor. Este tipo de prtica contribui para que tais pesquisas fiquem, muitas vezes, em uma posio de inferioridade diante das agncias financiadoras de pesquisa e dos editores de peridicos especializados. Esta tendncia das pesquisas no campo da sade converge com as polticas editoriais de qualificao dos artigos, atravs de dados quantitativos que avaliam a qualidade de um artigo ou peridico. o caso do fator de impacto que avalia os artigos mais importantes, ou seja, que tiveram maior impacto em seu campo, atravs de uma frmula que mede a quantidade de citaes recebidas de outros artigos indexados. Guimares (2007) fez uma anlise dos artigos brasileiros indexados na base de dados internacional ISI que tiveram maior impacto. Dos 248 artigos brasileiros que receberam mais de cem citaes, entre 1994 e 2003, 37 deles receberam mais de 250 citaes. Destes 37 artigos mais citados por seus pares, 25 destes so artigos do campo da sade humana. Para o autor, a discrepncia da presena do campo da sade em relao aos outros campos acontece principalmente pela forma como as pesquisas em sade se organizam, com participao considervel de pases em desenvolvimento como o Brasil, com seus pesquisadores e seus pacientes. Destes 25 com mais de 250 citaes referentes sade, 13 so ensaios clnicos multicntricos para o teste de novas drogas ou procedimentos ou metanlise de outros ensaios. Estes artigos tm uma mdia de 19 autores, e seis deles receberam financiamento da indstria farmacutica ou de equipamentos. Outros quatro artigos dos 25 com maior impacto se referem a consensos para a prtica mdica, e tm mdia de 23,5 autores. Alm do complicador de se utilizar um critrio quantitativo para anlise de uma categoria como impacto, relacionada qualidade de um artigo, existem problemas neste tipo de avaliao pela desconsiderao de fatores como o nmero de autores por artigo e a auto-citao. O fator de impacto tambm no considera o tamanho da comunidade cientfica, nem o fato de que um artigo pode ser citado por sua m qualidade.O mrito e/ou a relevncia das contribuies cientficas so consideradas a partir de uma categoria denominada, impacto, indicado pelo nmero de vezes que o artigo citado em peridicos indexados. Este impacto fortemente influenciado pelo modo como a pesquisa foi organizada: 1-grandes redes de pesquisadores com potencial para a captao de pacientes que se submetam a

32

protocolos padronizados; 2- remunerao dos pesquisadores por paciente captado; 3- sem garantia dos padres ticos de pesquisa. (Miguelote, 2008, p. 29)

Autores tm denunciado o atrelamento da produo cientfica a interesses comerciais23, e a maior parte destes artigos refere-se aos investimentos da indstria farmacutica no campo das pesquisas e o modo como esta participao est sendo feita. A produo de pesquisas que demonstrem cientificamente a eficcia do produto para as doenas as quais ele destinado se tornou campo privilegiado de debates e negociaes polticas e econmicas. A produo de conhecimento passou a ser uma das principais estratgias de marketing das indstrias produtoras de frmacos para a legitimao dos produtos. medida em que a produo econmica passou a depender da cincia como valor, a articulao entre a indstria farmacutica e a indstria do conhecimento configurou-se numa poderosa engrenagem sustentada por estratgias de marketing. Assim, a produo de conhecimento mdico, legitimado cientificamente atravs de pesquisas, alimenta a produo de artigos, garantindo, ao mesmo tempo, circulao de conhecimento e venda de medicamentos. (Miguelote, 2008, p.18)

Quando o interesse dos pesquisadores pode estar sendo influenciado indevidamente por interesses secundrios diz-se que existe conflito de interesses. O conflito de interesses est geralmente associado ao financiamento de pesquisas de produtos pelas empresas fabricantes. Para Alves e Tubino (2007), o potencial para o conflito de interesse pode ser direto, atravs de financiamento de partes interessadas, ou indireto, atravs de outras formas de promoo como consultorias, participao em sociedades, pagamento de viagens, etc. Os autores devem declarar se existem conflitos de interesse que possam direcionar os resultados das pesquisas em seus artigos. Isso, contudo, nem sempre acontece. A filiao a grupos de pesquisa patrocinados por laboratrios nem sempre declarada pelos autores. Para Goldim (2006),Mais importante que o interesse em si o possvel conflito entre o comprometimento assumido pelo pesquisador para com oCamargo Jr., 2008b; Miguelote, 2008; Guimares, 2007; St-Onge, 2006; Alves e Tubino, 2007; Goldim, 2006; alm de diversos artigos publicados no Jornal de Medicina PloS Medicine, um jornal de acesso livre na internet (plosmedicine.org); entre muitos outros.23

33

patrocinador e o da sua instituio de pesquisa, dos sujeitos da pesquisa e da prpria sociedade. (p.4)

Miguelote (2008) analisou o modo pelo qual a indstria farmacutica tem participado de algumas das pesquisas em sade no Brasil. Suas entrevistas com profissionais mdicos de um hospital universitrio, que realizam pesquisas financiadas pela indstria farmacutica, apresentaram alguns dados preocupantes. A autora denuncia o investimento da indstria, interessada no respaldo e na venda de seus produtos, em pseudopesquisas.(...) embora o discurso da indstria anuncie colaborao na produo de conhecimento mdico, esta colaborao no est comprometida com a sade pblica. Isso significa que a realizao de pesquisas no tem, a rigor, objetivo de pesquisa. Trata-se, portanto, de pseudopesquisa. (...) O discurso de prioridade sade e segurana dos consumidores, na verdade, dissimula o principal objetivo: promover a venda de medicamentos. (p.31)

Segundo ela, a maioria dos ensaios clnicos para testar novos medicamentos ou novos procedimentos, patrocinados pela indstria, feita a partir de protocolos que so elaborados e analisados pelo patrocinador. O pesquisador recebe a funo de recrutar pacientes. Os mdicos entrevistados afirmaram receber remunerao por paciente captado sem acesso anlise dos dados ou elaborao do artigo. Em algumas pesquisas, o valor pr-estabelecido e mensal.24 No estamos aqui afirmando que todos os ensaios clnicos so trabalhos forjados em benefcio de um produto, entretanto, o fato de pesquisadores estarem apontando para a possibilidade de enviesamento de resultados a favor de determinado produto, mesmo que seja em poucas pesquisas, suficiente para nos acautelarmos com relao a alguns resultados apresentados. Evidentemente, o investimento em pesquisas necessrio e mesmo fundamental, tanto do governo como de empresas privadas, contudo o controle dos resultados que merece uma maior ateno das polticas reguladoras do campo da sade. Acreditamos ser necessrio um maior rigor no controle de pesquisas que recebem patrocnio de empresas cujo produto est sendo pesquisado. Alm disso, uma contrapartida poderia ser exigida, como uma porcentagem do investimento em pesquisas sobre doenas negligenciadas, j24

Seus dados so corroborados por Guimares, 2007; Goldim, 2006; St-Onge, 2006.

34

que no fazem parte dos lucrativos investimentos da indstria farmacutica. Estes investimentos privados nas pesquisas em sade no Brasil no deveriam substituir em absoluto o papel da iniciativa pblica, que tem como obrigao fundamental primar pela qualidade das pesquisas cientficas nacionais, principalmente daquelas que afetam diretamente a sade da populao. Os interesses da indstria no se restringem participao na produo do conhecimento, mas incluem as diferentes formas de divulgao de seus produtos, que certamente, no fica restrita aos mdicos. Os laboratrios fabricantes de medicamentos tm patrocinado sites na internet e materiais de divulgao de diagnsticos para os quais seus produtos so indicados. A vinculao de medicamentos a diagnsticos faz com que grande parte da publicidade de medicamentos aparea sob a forma de divulgao de doenas e sua necessidade de tratamento medicamentoso. O PloS Medecine, um jornal de medicina com acesso gratuito na internet, tem denunciado atravs de numerosos artigos as estratgias da indstria farmacutica para alavancar suas vendas, atravs de variadas formas de apropriao dos resultados, seja expandindo a sua base de usurios para os novos medicamentos, realizando propagandas veladas, ou ainda, inventando doenas ou exagerando sobre seus riscos, o que na lngua inglesa denominado diease mongering (Moyniham e Henry, 2006), o que poderamos traduzir como mercador de doenas.

Propagandas de medicamentos A indstria farmacutica um dos segmentos mais lucrativos do mercado atualmente.25 Segundo Nascimento (2003), ela mais rentvel que a indstria automobilstica e que o ramo da construo civil. A maior parte de seu investimento est atrelada propaganda e publicidade. Segundo o autor, dados da CPI dos medicamentos de 2003 demonstraram que, no Brasil, 30% dos recursos da indstria farmacutica so investidos anualmente com publicidade, o que contabilizou aproximadamente 4,5 bilhes de reais em 2002.

25

Nascimento, 2003. Miguelote, 2008; St-Onge, 2006, Lima, 2005.

35

A propaganda de medicamentos vendidos sob prescrio mdica no Brasil restrita aos profissionais habilitados para a prescrio. Os mdicos so os nicos que, por direito, podem ter acesso s propagandas de medicamentos controlados, entretanto, um medicamento no divulgado somente atravs de artigos cientficos e da publicidade veiculada nos peridicos especializados. Outras formas de marketing so criadas para aumentar a comercializao de determinado medicamento. A publicidade de medicamentos controlados tem veiculao permitida nos meios de comunicao de massa somente nos Estados Unidos e na Nova Zelndia, contrariando um acordo na Conveno da ONU sobre drogas psicotrpicas de 1971, do qual estes dois pases tambm so signatrios26. Segundo Singh (2007), em 2001, a indstria farmacutica norte-americana gastou 2,7 bilhes de dlares somente com propagandas diretas aos consumidores. Este tipo de propaganda, em territrio norte-americano, foi apontado pela ONU (2007) como uma das causas do uso de metilfenidato bem maior nos EUA, em relao mdia de outros pases no mundo. Ainda em relao s estratgias de venda e expanso do mercado, Moynihan (2004) aponta para o uso de celebridades nos Estados Unidos pelas companhias farmacuticas no somente nas propagandas formais de medicamentos, mas tambm em programas de entrevista e em declaraes para revistas, como forma de marketing de venda. Segundo o autor, declaraes informais sobre medicamentos no esto submetidas legislao das propagandas formais, diretas aos consumidores. No caso do Brasil, as propagandas abertas ao pblico veiculadas na televiso, no rdio, jornais e revistas, so propagandas de medicamento cuja venda livre (venda sem receita mdica). Estas propagandas foram analisadas por Nascimento (2003) que verificou que, das cem peas publicitrias analisadas, absolutamente todas eram irregulares, com uma mdia de 4,13 infraes por anncio. Embora nossa pesquisa tenha como tema a compreenso pblica de um estimulante, que tem venda controlada e publicidade proibida ao pblico em geral, acreditamos que a pesquisa realizada por Nascimento (2003) tem acentuada importncia na compreenso de como alguns laboratrios esto (des)implicados com a sade pblica nacional e da situao de alguns setores de polticas nacionais e sua (des)implicao com a sade da populao.26

ONU, 2008; Singh, 2007; Miguelote, 2008.

36

Um outro estudo, realizado pela UFRGS, com 127 peas publicitrias destinados classe mdica, avaliou que nenhuma das peas analisadas cumpre integralmente as exigncias da legislao vigente. As maiores deficincias e omisses diziam respeito s informaes sobre contra-indicaes, cuidados, advertncias, reaes adversas e referncias bibliogrficas. Segundo os autores, em 73% das propagandas que apresentavam estes itens, a leitura era bastante dificultada pelo tamanho da letra: com fonte Times New Roman, tamanho cinco ou menor. (Dal Pizzol et. al., 1998) A venda controlada de medicamentos faz do mdico o principal, mas no o nico, foco de investimento em propagandas e material promocional para torn-lo familiarizado com o produto a ser prescrito. Existem denncias de presentes como viagens nacionais e internacionais para participao de congressos com hospedagem (Miguelote, 2008; Goldim, 2006), e at mesmo ingressos para partidas de futebol (Segato, 2007). A questo que se coloca como estes presentes interferem nas prescries, visto que grande parte dos medicamentos brasileiros possui similares venda, e os preos nem sempre so parecidos. A maior parte dos medicamentos apresentados como novos, nos ltimos anos, so o que conhecido na lngua inglesa como medicamentos mee-too, ou seja, medicamentos de imitao, que no apresentam mudanas significativas do que j existe. Sua produo visa consumidores j estabelecidos (Miguelote, 2008) ou estender a proteo das patentes (Nascimento, 2003). Alm disso, dos 40.000 medicamentos registrados na ANVISA em 2003, s 15.000 eram comercializados. Segundo Nascimento (2003), as empresas mantm uma reserva estratgica de registros, ou seja, mesmos produtos com diferentes nomes para burlar controle de preos que venham a ser implementados pelo governo. Existe uma srie de outras estratgias para dar visibilidade ao medicamento, e nem sempre direcionadas exclusivamente ao mdico. Como as propagandas de medicamentos controlados veiculadas na televiso aberta a partir da divulgao de doenas, com o nome e logotipo do laboratrio fabricante. Mesmo sem apresentar explicitamente o produto, apenas um converse com seu mdico, este tipo de propaganda uma forma de burlar a divulgao de produtos controlados no Brasil, como acontece com as propagandas sobre disfuno ertil produzida pela Pfizer, fabricante do Viagra.

37

Em seu artigo sobre a como a indstria farmacutica pode influenciar a prescrio de metilfenidato a partir de material elaborado para professores, Phillips (2006) apresenta algumas estratgias publicitrias disfaradas de educao profissional, como sites informativos produzidos pelos laboratrios voltados aos professores, linhas telefnicas para informao sobre o TDAH (Pergunte aos especialistas), apoio a associaes, com distribuio de kits contendo informaes sobre TDAH, etc. Segundo a autora, o professor tem hoje um lugar de auxiliar do mdico no diagnstico de crianas hiperativas, por se tratar de um distrbio do desempenho escolar, e com isso, parte importante da divulgao do tratamento para TDAH tem sido destinada aos professores. Ela afirma que, embora o argumento seja de atualizao profissional, estes programas de atualizao so sempre ligados aos produtos fabricados. O autismo e a dislexia, que tambm tm impacto na vida escolar, mas que no tm respondido a medicamentos especficos, no so temas de programas de atualizao para professores promovidos pelas indstrias. Estas formas de divulgao do medicamento promovem a imagem dos fabricantes como empresas preocupadas com a sade coletiva. Entretanto, esta articulao de mecanismos econmicos perversos com a produo e divulgao de conhecimento cientfico no campo da sade deveriam, ao invs, promover polticas regulatrias mais eficazes e uma maior discusso sobre a necessidade do consumo de alguns medicamentos.27

No estamos, de forma alguma, afirmando que medicamentos no so necessrios. O que defendemos a idia de que a necessidade, assim como a quantidade e o tempo de consumo, no determinada somente por fatores biolgicos. A prpria idia do biolgico como garantia da existncia de doenas enquanto entidades e da conseqente necessidade da interveno medicamentosa faz parte de um sistema de idias culturalmente aceito.

27

38

________________________________________________________________Captulo 2 A Ritalina

A Ritalina ficou conhecida no Brasil nos ltimos anos por seu uso proeminentemente em crianas diagnosticadas com Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH). Alm do uso para o tratamento do dficit de ateno em adultos e crianas, a Ritalina tambm indicada para tratamento de narcolepsia e para obesidade, com restries. Ela comeou a ser comercializada no Brasil, segundo a ANVISA, em 199828. Nome comercial do metilfenidato, a Ritalina um estimulante do sistema nervoso central, derivado da anfetamina. Embora seja um estimulante, o uso do metilfenidato aumenta o desempenho de funes executivas que auxiliam na realizao de tarefas escolares e acadmicas, alm de diminuir a fadiga. Alm da Ritalina, comercializada em caixas de 10mg, com 20 ou 60 comprimidos, e da Ritalina LA, com 20mg, 30mg ou 40mg (a nica que pode ser dissolvida na comida!) de 30 comprimidos cada caixa, existe no mercado nacional, desde 2004, um medicamento similar chamado Concerta, encontrado nas verses de 18mg, 36mg ou 54mg, sempre com 30 comprimidos em cada caixa. 29 A principal diferena apresentada entre o Concerta e a Ritalina o modo de absoro da substncia. Sendo o Concerta liberado no organismo mais lentamente, o paciente necessitaria ingerir o medicamento somente uma vez ao dia, diferente da Ritalina, prescrita em duas ou, menos freqentemente, em trs doses dirias. A Ritalina LA tambm uma formulao de liberao controlada. Estas formulaes de ao28

ANVISA- Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria [mensagem pessoal]. Mensagem recebida em 19 de agosto de 2008. Entretanto, encontramos um artigo de 1997, no Jornal Brasileiro de Psiquiatria (Almeida et. al., J. Bras. de Psiq., 46 (7): 377- 383, 1997), que cita o uso do metilfenidato em adultos no Brasil, afirmando que [o metilfenidato] acha-se disponvel no Brasil, atualmente como especialidade farmacutica. (p. 378). Entretanto, no encontramos outros dados sobre o uso do metilfenidato anterior a data informada pela ANVISA. Optamos por trabalhar com a data de 1998 fornecida pela Vigilncia Sanitria.

No mercado norte-americano existem tambm outros estimulantes que nunca foram aprovados no Brasil, como o Adderall, da Shire. Para o tratamento do TDAH, nos EUA e em outros pases, tambm utilizado o Strattera (Atomoxetina), da Eli Lilly, que no um estimulante. Este ltimo est indicado no site da ABDA (www.tdah.org.br) para tratamento de primeira linha para TDAH junto com o metilfenidato. O site informa que, embora no seja normalmente comercializado no Brasil, o Strattera pode ser comprado atravs de empresas de importao de medicamentos. A ANVISA nunca aprovou sua comercializao no pas.

29

39

prolongada so consideradas mais eficazes por diminuir o risco de abuso e facilitar a posologia. Segundo dados da ONU divulgados em 2008, as doses dirias determinadas para fins estatsticos do metilfenidato de 30mg/dia.30 No recomendado doses dirias maiores que 60mg/dia. A dose mdia diria, segundo a bula do medicamento, de 20 a 30mg/dia para adultos, sendo para crianas de seis anos ou mais, as doses devem ser de 5 a 10mg/dia, ministradas em doses separadas. Por ser um estimulante, no se recomenda o uso aps as 18h. O metilfenidato no indicado para crianas menores de seis anos no Brasil. Nos EUA, a prescrio deste estimulante para menores de cinco anos permitida. A Ritalina e a Ritalina LA so produzidas pelo laboratrio Novartis, e o Concerta produzido pela Janssen-Cilag. Segundo dados da ANVISA31, a Ritalina responsvel por 90% do mercado nacional.Tabela 1. Preos do metilfenidato Medicamento32

Menor preo encontrado R$ 13,68 R$ 41,04 R$ 178,77 R$ 187,71 R$ 139,50 R$ 165,77 R$ 246,41 R$ 347,04

Maior preo encontrado R$ 17,77 R$ 53,32 R$ 181,26 R$ 190,31 R$ 199,81 R$ 258,89 R$ 351,84 R$ 351,65

Ritalina 10mg/20 comp. Ritalina 10mg/60 comp. Ritalina LA 20mg/30 comp. Ritalina LA 30mg/30 comp. Ritalina LA 40mg/30 comp. Concerta 18mg/30 comp. Concerta 36mg/30 comp. Concerta 54mg/30 comp.

A comercializao de qualquer substncia controlada pela internet ilegal. Contudo, a Ritalina 10mg facilmente vendida a R$ 50,00, e a Ritalina LA de 20mg a R$As doses dirias determinadas para fins estatsticos (S-DDD) uma unidade de medida tcnica utilizada para fins de anlise estatstica e no uma recomendao de posologia. Sua definio no desprovida de certo carter arbitrrio. Certas substncias psicotrpicas podem ser utilizadas em diversos tratamentos ou conforme as diferentes prticas mdicas nos diferentes pases, outra dose cotidiana poderia ser mais apropriada. (ONU, 2002, p. 25, traduo nossa)31 30

ANVISA- Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria [mensagem pessoal]. Mensagem recebida em 23 de junho de 2008. A pesquisa de preos foi feita em farmcias da cidade do Rio de Janeiro e Volta Redonda, RJ, alm de busca na internet, entre novembro e dezembro de 2008. Nem todas as farmcias vendem o metilfenidato, segundo os farmacuticos, necessrio uma licena especial para a venda do medicamento.

32

40

175,00. O Concerta no foi encontrado no mercado ilegal da internet. Os principais pontos de venda na internet so fruns de discusso e sites que so freqentemente desativados e reativados em outros endereos. Os detalhes da compra so feitos por e-mail por envolver dados pessoais do comprador.33 Os medicamentos vendidos so principalmente estimulantes e antidepressivos, e nos fruns tambm so discutidas as melhores posologias e outras drogas indicadas para o problema apresentado. A Ritalina e o Concerta so medicamentos com tarja preta, ou seja, medicamentos que, alm da necessidade de prescrio mdica, podem causar dependncia. Em funo disso, a venda destes medicamentos controlada, e a receita fica retida na farmcia. A portaria 344 do Ministrio da Sade, de 1998, regulamenta a venda de medicamentos e substncias sujeitas a controle especial. A portaria estabelece listas diferentes de substncias controladas, e o metilfenidato pertence lista A3: Psicotrpicos: estimulantes do sistema nervoso central. Para que um mdico prescreva o metilfenidato no Brasil, necessrio o bloco amarelo de receita, disponibilizado na Vigilncia Sanitria. A receita amarela tem validade de 30 dias e fica retida na farmcia, que deve encaminhar s autoridades sanitrias relatrios mensais de venda, balanos trimestrais e anuais de compra e venda. Este tipo de regulao criticado por Calill (2001) e Carlini et. al. (2003) que corroboram suas opinies com questionrios respondidos por psiquiatras. A principal crtica o excesso de burocracia causado pela pelo uso de receiturios especiais e que esta prtica no eficaz no controle do uso de psicofrmacos. No caso especfico do metilfenidato, entre estas preocupaes, Carlini et. al (2003) afirmam que a venda com receita amarela pode ser estigmatizante, visto que a regulao semelhante a de medicamentos com alto ndice de dependncia, como morfina, meperidina (Demerol ou Dolantina), fentanila, etc., que tambm so prescritos com a mesma notificao A, de cor amarela. Segundo a Associao Mdica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina (2002), o metilfenidato uma anfetamina de uso mdico34, e pode causar dependncia, assim como

33

E-mails contactados a partir dos fruns de discusso da internet: [email protected] e [email protected]

As outras anfetaminas de uso mdico so a d-anfetamina, a metanfetamina-HCI, fenfluramina, pemolide, fenproporex, mazindol, dietilpropiona, anfepramona. Nem todas so comercializadas no Brasil. Existem tambm anfetaminas de uso no-mdico, sintetizadas em laboratrios clandestinos, conhecidas como ecstasy,

41

qualquer anfetamina. Esta indicao tambm encontrada na bula dos medicamentos, e nos diversos artigos sobre o metilfenidato. Entretanto, esta uma das questes mais controversas que encontramos nas publicaes, principalmente porque a maioria dos pacientes medicados com Ritalina so crianas e no h consenso sobre quando o medicamento deve ser suspenso. Alm disso, no se sabe ao certo como a Ritalina age no organismo. Somente sua eficcia em curto prazo na remisso dos sintomas reconhecida. Os autores que defendem o uso do medicamento afirmam que o metilfenidato no causa dependncia, e que somente seu uso abusivo pode ser prejudicial. comum encontrarmos referncias no somente sobre a impossibilidade do estimulante causar dependncia, mas tambm que uma criana com TDAH tratada desde cedo teria menos chances de se tornar um dependente qumico. Este e outros riscos mdicos e sociais so freqentemente associados ao desenvolvimento de um indivduo com TDAH no tratado. Estes riscos em potencial tornam o uso do estimulante imprescindvel. Os opositores ao uso da Ritalina afirmam que alm da dependncia fsica comumente encontrada no uso continuado do estimulante, existe a possibilidade de uma dependncia psicolgica e emocional, devido ao atrelamento do uso da Ritalina ao bom desempenho na realizao de tarefas. O risco de dependncia psicolgica tambm apontado na bula da Ritalina. Outra questo ligada ao risco de dependncia o uso continuado da Ritalina. No h um consenso mdico sobre a durao do tratamento. A ligao do uso da Ritalina ao diagnstico de TDAH acompanha a expanso dos critrios diagnsticos e da conseqente base de usurios, assim como a ampliao do tempo de uso. O TDAH, que at ento era considerado um transtorno prprio da infncia, tem sido cada vez mais pleiteado pelos especialistas como um transtorno que permanece na vida adulta. Segundo o Consenso Brasileiro de Especialistas sobre o diagnstico de TDAH em adultos35, a persistncia dos sintomas na vida adulta atinge em torno de 60 a 70% dos casos. Dupanloup (2004) se refere a esta extenso do diagnstico como uma cronificao do transtorno (p.173). Neste relatrio, o tratamento farmacolgico no citado, menos ainda a problemtica levantada sobre a necessidade e o tempo do uso de um medicamento para oice e crystal. (AMB e CFM, 2002) Mais adiante discutiremos a relao entre uso mdico e uso no mdico da mesma substncia35

No encontramos referncias quanto data do documento.

42

transtorno. Com isso, esta questo fica sem resposta: At quando, ou por quanto tempo, deve-se tomar o medicamento para suprimir os sintomas de hiperatividade, falta de ateno ou impulsividade? Ainda so desconhecidas as implicaes do uso prolongado do metilfenidato no organismo, principalmente no crebro da criana muito jovem. A informao encontrada nas bulas dos medicamentos, assim como nos artigos de psiquiatria, que ainda no h dados suficientes disponveis sobre o uso em longo prazo.O uso prolongado do metilfenidato (mais de quatro semanas) no foi sistematicamente avaliado em estudos controlados. Se o mdico decidir utilizar Concerta em pacientes com TDAH por perodo prolongado, a utilidade do medicamento em cada paciente individual deve ser periodicamente reavaliada, com perodos sem medicao para verificar a condio do paciente sem o tratamento farmacolgico (Concerta. Bula. Janssen-Cilag Farmacutica Ltda).

A discusso sobre os efeitos do uso prolongado do medicamento se refere a um tempo muito maior que quatro semanas. Embora no existam estudos que comprovem a eficcia e os efeitos do metilfenidato em longo prazo, podemos constatar que a indicao dos especialistas sempre favorvel medicao. Alm disso, as tentativas de avaliao deste uso prolongado tm sido criticadas pela dificuldade metodolgica em se avaliar o que , de fato, conseqncia do uso do medicamento. Neste momento, onde a ampliao dos critrios para diagnstico do TDAH e a permanncia do transtorno ao longo dos anos so defendidas com freqncia entre os mdicos e discutida em muitos artigos, incluindo adolescentes e adultos como usurios de metilfenidato, o debate sobre os efeitos de uma utilizao de longa permanncia e o risco de dependncia praticamente i