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1 A responsabilidade civil e a hermenêutica contemporânea: uma nova teoria contratual? “A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas”. (Mário Quintana, Caderno H. São Paulo: Globo, 1998, p. 54). Felipe Peixoto Braga Netto ([email protected]) Procurador da República. Mestre em Direito Civil pela UFPE. Professor de Direito Civil da ESDHC. Procurador Regional Eleitoral substituto em Minas Gerais. Autor, entre outros, de “Responsabilidade Civil” (São Paulo: Saraiva, 2008) e Manual de Direito do Consumidor (Salvador, Juspodivm, 2 a edição, 2008). 1. Introdução: as múltiplas possibilidades de abordagem. 2. O estatuto epistemológico clássico: dogmas e permanências. 3. A crise do direito e os novos paradigmas metodológicos. 4. Do técnico ao ético: das filigranas formais aos conteúdos materiais. 5. Direito Civil: a ressistematização valorativa. 6. Código Civil de 2002: um novo marco para as obrigações? 7. O Código Civil de 2002 e os microssistemas: influências recíprocas. 8. Autonomia da vontade: redimensionamento qualitativo. 9. Responsabilidade contratual e extracontratual: superação da dicotomia. 10. A dimensão hermenêutica dos institutos civis. 10.1. A função social do contrato. 10.2. O ilícito funcional. 10.3. A desconsideração da personalidade jurídica. 10.4. A unificação das obrigações. 10.5. Os contratos de adesão. 10.6. A prescrição. 10.7. Os juros. 10.8. As cláusulas de não indenizar e o adimplemento substancial. 11. Conclusões: do texto ao contexto 1. Introdução: as múltiplas possibilidades de abordagem Este artigo compartilha reflexões. Seria inadequado, num sistema aberto e em construção, como o atual direito civil, propor, presunçosamente, respostas, modelos de interpretação fixos e rígidos. Mais adequado é sinalizar, teoricamente, as novas trilhas, os caminhos que o direito civil, profundamente renovado, começa a divisar. A chamada responsabilidade civil contratual é um tema central no direito civil contemporâneo. Aliás, tão central quanto problemático. É que, mercê de sua importância, sobre ele afluem diversas noções que os recentes estudos têm desenvolvido: relativização da autonomia privada, incidência direta da Constituição nas relações civis, eficácia normativa da boa-fé objetiva, ponderação de princípios, entre outras. São múltiplas, percebe-se, as possibilidades de abordagem. Seria inadequado, em obra coletiva, descer a minúcias em prejuízo do quadro geral. Optamos, portanto, conscientemente, por traçar um painel, amplo e abrangente, das mudanças pelas quais vem passando o direito civil e sua metodologia, e com isso buscar compreender em que medida a teoria dos contratos pode ser atingida, em especial no que tange à responsabilidade civil contratual. Também não estaria de acordo com nossos propósitos temáticos, nem o espaço a tanto consentiria, a análise, tópica e casuística, das regras relativas à responsabilidade civil contratual, reescrevendo, com alterações cosméticas, o que já constava do direito anterior.

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A responsabilidade civil e a hermenêutica contemporânea: uma nova teoria

contratual? “A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas”. (Mário Quintana, Caderno H. São Paulo: Globo, 1998, p. 54). Felipe Peixoto Braga Netto ([email protected]) Procurador da República. Mestre em Direito Civil pela UFPE. Professor de Direito Civil da ESDHC.

Procurador Regional Eleitoral substituto em Minas Gerais. Autor, entre outros, de “Responsabilidade

Civil” (São Paulo: Saraiva, 2008) e Manual de Direito do Consumidor (Salvador, Juspodivm, 2a edição,

2008).

1. Introdução: as múltiplas possibilidades de abordagem. 2. O estatuto epistemológico clássico: dogmas e permanências. 3. A crise do direito e os novos paradigmas metodológicos. 4. Do técnico ao ético: das filigranas formais aos conteúdos materiais. 5. Direito Civil: a ressistematização valorativa. 6. Código Civil de 2002: um novo marco para as obrigações? 7. O Código Civil de 2002 e os microssistemas: influências recíprocas. 8. Autonomia da vontade: redimensionamento qualitativo. 9. Responsabilidade contratual e extracontratual: superação da dicotomia. 10. A dimensão hermenêutica dos institutos civis. 10.1. A função social do contrato. 10.2. O ilícito funcional. 10.3. A desconsideração da personalidade jurídica. 10.4. A unificação das obrigações. 10.5. Os contratos de adesão. 10.6. A prescrição. 10.7. Os juros. 10.8. As cláusulas de não indenizar e o adimplemento substancial. 11. Conclusões: do texto ao contexto 1. Introdução: as múltiplas possibilidades de abordagem Este artigo compartilha reflexões. Seria inadequado, num sistema aberto e em construção, como o atual direito civil, propor, presunçosamente, respostas, modelos de interpretação fixos e rígidos. Mais adequado é sinalizar, teoricamente, as novas trilhas, os caminhos que o direito civil, profundamente renovado, começa a divisar. A chamada responsabilidade civil contratual é um tema central no direito civil contemporâneo. Aliás, tão central quanto problemático. É que, mercê de sua importância, sobre ele afluem diversas noções que os recentes estudos têm desenvolvido: relativização da autonomia privada, incidência direta da Constituição nas relações civis, eficácia normativa da boa-fé objetiva, ponderação de princípios, entre outras. São múltiplas, percebe-se, as possibilidades de abordagem. Seria inadequado, em obra coletiva, descer a minúcias em prejuízo do quadro geral. Optamos, portanto, conscientemente, por traçar um painel, amplo e abrangente, das mudanças pelas quais vem passando o direito civil e sua metodologia, e com isso buscar compreender em que medida a teoria dos contratos pode ser atingida, em especial no que tange à responsabilidade civil contratual. Também não estaria de acordo com nossos propósitos temáticos, nem o espaço a tanto consentiria, a análise, tópica e casuística, das regras relativas à responsabilidade civil contratual, reescrevendo, com alterações cosméticas, o que já constava do direito anterior.

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Escolhemos, então, como ponto de preocupação, as grandes questões que redefinem, de modo significativo, o direito civil atual, fazendo outras as suas feições, a ponto de que se um civilista, do século XVIII ou XIX, por aqui, em curva do tempo, aportasse, dificilmente lhe reconhecesse o domínio. Aliás, hoje, tratar de qualquer instituto jurídico é cuidar, em alguma medida, de hermenêutica. Mais relevante do que apontar alterações, pontuais, em regras jurídicas, é frisar a renovação, portentosa e marcante, da atividade de pensar, construtivamente, o direito. Nelson Saldanha já alertou que a interpretação não é algo externo ao direito, que a ele – tido como norma – vem se juntar1. A interpretação integra, em certo sentido, o próprio direito, sendo este o resultado de uma complexa atividade, no qual a norma, embora relevante, é apenas um ponto de partida. Este artigo, nessa perspectiva, busca sondar as conexões de sentido porventura existentes entre o direito civil atual – integrado pelo Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406, de 10/01/2002) – e o instituto da responsabilidade civil contratual. Mais além, indaga, em plano metodológico, as possíveis significações, no sistema das relações privadas, que o surgimento de um novo código pode assumir no início do século XXI. 2. O estatuto epistemológico clássico: dogmas e permanências A formação cultural do civilista, habituados que somos a lidar com dogmas e permanências, nos põe inquietos e mal-ajustados com o caráter ambíguo e avesso a racionalismos que caracteriza o sistema jurídico contemporâneo. Não deixa de ter certo sabor de obviedade a afirmação da existência de condicionamentos que impedem a percepção de fenômenos relativamente evidentes. Sob o prisma social, a repetição de certos padrões faz com que somente a muito custo aceitemos outros como legítimos. Sob o ângulo científico, a consagração de um paradigma, afasta, como discursos teoricamente descontextualizados, afirmações cujas pautas temáticas contornem, ou desviem, os percursos dogmáticos aceitos2. A história do direito civil – que em tantos aspectos se confunde com a própria história humana -, pródiga em conceitos, categorias e institutos seculares, criou, naturalmente, as condições propícias ao surgimento de padrões lineares e estáveis de pensamento, secundados por uma linguagem própria, auto-referente e monolítica.

1 “Não cabe falar do direito como algo completo, como um objeto inteiriço, ao qual se vem agregar a interpretação. Mais adiante, acrescenta: “a positividade da ordem jurídica não seria inteligível sem as significações que cabe ao jurista ao mesmo tempo manter e questionar (...) o jurídico, neles, está no conjunto de significações que se atribui a esta ordem, e que a tornam viva, relacionando-a com a consciência social”. (“O componente hermenêutico. Sobre a necessidade de repensar a noção de Direito”. Revista de Direito Civil. Janeiro-Março/1992, ano 16, nº 59, pp. 07/18, p. 09 e 14). 2 Thomas s. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 196/200.

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Essa estabilidade relativa atravessou séculos alimentando a convicção, oculta ou latente, de que as grandes unidades conceituais e epistemológicas permaneceriam, a despeito das mudanças, profundas e estruturais, com que cada época, historicamente situada, plasmou suas relações sociais3. O civilista, cioso da magnitude de seu saber, sempre foi alguém que olhava com certo desdém para as modificações sociais. Não lhe parecia possível que, fosse qual fosse a situação histórica, pudesse haver mudanças de rota significativas na sua ciência. Firmou-se, institucionalmente, um paradigma, normativo e científico, cujos postulados básicos eram capazes de sustentar, com sólidas estruturas formais, quaisquer embates existentes lá embaixo, no plano dos contatos sociais. Essa tendência à abstração e ao isolamento marcou, como nota típica, as manifestações dos últimos séculos - devendo ser referido, naturalmente, que semelhantes afirmações, porque amplas e peremptórias, carregam enorme grau de imprecisão e exceções pontuais. Grosso modo, porém, um certo formalismo característico, um certo dar de ombros com as especificidades sócio-culturais, timbrou, sob certo aspecto, o modo de ser do civilista clássico. Não deixa de ser curioso perceber como tais características, que se tornaram clássicas, contradizem, ontologicamente, as propostas, básicas e originárias, do direito civil, como o direito do homem comum, das relações sociais despidas de outras notas especializantes. Esses padrões mentais tendem a se reproduzir, sem uma reconsideração crítica das premissas adotadas. A questão, verdadeiramente provocadora, que os estudos recentes acenam, é a seguinte: está em curso, de fato, uma revolução metodológica no direito civil, ou um mero reajuste de rota, como tantos já havidos, próprios dos períodos de crise?4. A digressão é pertinente porquanto oportuniza a reflexão acerca das ferramentas metodológicas do civilista no século XXI. O modelo cognitivo, que ao civilista de hoje se põe, ostenta, naturalmente, um espectro temático insuspeitado para os séculos passados, caracteristicamente formais. Seria impertinente, nessa perspectiva, tratar, atualmente, qualquer tema a partir do estatuto epistemológico que a tradição nos legou. É imperioso, portanto – e é tarefa para esse início de século – construir modelos teoricamente mais atuais, que dêem conta de compreender, menos imperfeitamente, as hiper-complexas relações sociais. 3 Alguns juristas, ciosos do seu domínio, pugnam para que o direito civil reconquiste a centralidade perdida, retome “a posição condutora e paradigmática que lhe tem pertencido ao longo dos tempos na investigação da generalidade dos temas comuns aos vários ramos do direito”. (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 348). 4 Cabe indagar da novidade conceitual da noção da “era da informação”, ou, mais propriamente, em uma “sociedade informacional” (Karl Acham, Vernunftanspruch und Erwartungsdruck. Studien zu einer philosophische Soziologie. Stuttgart: Bad Cannstatt, 1989, p. 218. Apud. Willis Santiago Guerra Filho, Autopoeise do Direito na Sociedade Pós-Moderna. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 25/26). Cabe destacar, portanto, o “novum que vai além da mera novidade acidental”. Há quem refira, em âmbito epistemológico, o surgimento do sujeito reflexivo (Jesús Ibáñez, Nuevos avances en la investigación social. Barcelona: Proyecto a, 1998, p. 60).

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3. A crise do direito e os novos paradigmas metodológicos Virou lugar comum dizer que o direito civil está em crise. Talvez fosse mais apropriado dizer que a crise é algo intrínseco ao direito, nas complexas sociedades contemporâneas, e o inusitado – ou ingênuo – seria postular um direito linear, monolítico e estável, como uma espécie de contraponto à realidade com a qual interage. De toda sorte, é preciso redobrada prudência ao falar em crise. Trata-se de termo historicamente gasto, que pouco explica5. No direito, em particular, desde a Revolução Francesa, todos os períodos, sob algum aspecto, englobam ou traduzem crises. A tendência de projetar as características de uma época como características perenes torna o conceito de crise um conceito recorrente. É que, não tarda, os contextos sociais, renovando-se, indispõem-se com as categorias de pensamento próprias de outras épocas, surgindo paradoxos e perplexidades. A percepção, algo truística, da historicidade do fenômeno jurídico livra-nos desses abismos conceituais. O jurista deixa de buscar aparições ontológicas e passa a conviver, mais concretamente, com as realidades sociais de seu tempo, buscando conferir-lhes razoabilidade. Nessa perspectiva não há nada de novo em afirmar que as realidades sociais são outras, relativamente àquelas do passado. Nem mesmo em afirmar que, mudando o contexto, deve mudar o texto, a norma. No fundo, toda época se crê profundamente diferente da anterior, com a qual, em regra, não quer se identificar. Seria pertinente, a propósito, indagar da expressão pós-modernidade, cujo uso freqüente traduz uma polissemia irritante. Afinal, desabafa Paulo Rouanet, não é possível que um conceito signifique algo e ao mesmo tempo o seu contrário. O mesmo autor, em trecho que merece transcrição, analisa: “Dizer que somos pós-modernos dá um pouco a impressão de que deixamos de ser contemporâneos de nós mesmos. Seja como for, temos que aceitar filosoficamente o fato de que na opinião de grande número de pessoas, nem todas lunáticas, entramos na era da pós-modernidade”6. Atualmente, continua Rouanet, há uma clara consciência de ruptura. Como tal, pondera, o fenômeno merece ser levado a sério, por mais confusas que sejam suas manifestações. Resta saber se a essa consciência corresponde uma ruptura real. Nem sempre existe coincidência entre ruptura e consciência de ruptura. Menciona como exemplos, respectivamente, a Revolução Francesa e a dicotomia antiqui/moderni do século XIII, separados, segundo acreditavam, pela introdução do ensino da filosofia aristotélica nas universidades7.

5 Nelson Saldanha, Ordem e Hermenêutica. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 1. 6 Paulo Sérgio Rouanet, As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.229. 7 Paulo Sérgio Rouanet, As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 230/231.

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Sem embargo dos significados possíveis da expressão, é inegável que certas características, apontadas, pelos arautos da pós-modernidade, como notas típicas das complexas relações jurídicas atuais já as colocam em patamar diferenciado em relação àquelas historicamente consagradas. Expressivo da complexidade, para os padrões clássicos, das experiências contemporâneas, é a “contratualização da lei”, contraposta, em termos paradigmáticos, à crescente objetivação do contrato. Âmbitos setoriais, com interesses claramente definidos, negociam e aprovam “suas leis”. Lorenzetti menciona que na criação legislativa não há um ato de soberania estatal, mas o acordo prévio dos grandes grupos organizados. Em outros casos, pondera, a eficácia da lei depende exclusivamente do consenso social que alcance8. O curioso é que, na outra ponta, o contrato perde, progressivamente, as suas qualidades mais conhecidas. Josserand se queixou, algo desolado, que os contratos estavam se tornando menos e menos contratuais. A feição clássica, à moda da oferta e da aceitação, amplamente pensadas e amadurecidas, é algo que hoje – pelo menos como modelo precípuo – só nos chega como sombra de épocas passadas. A estrutura contratual contemporânea é de tal modo despersonalizada que já se cunhou, não sem significação, a expressão “contratos sem sujeitos”.9 Tais alterações redefinem os padrões cognitivos básicos. Não se trata de recondicionar, cosmeticamente, o instrumental dos séculos passados. Situações historicamente inéditas pedem modelos jurídicos atentos às suas particularidades. A questão tem contornos menos traumáticos para a geração que surge, em cuja bagagem conceitual já existe a crença, fundamental, na historicidade das categorias jurídicas. O contrato não é aquela figura, tornada clássica, do liberalismo. Ela é, apenas, uma forma possível de contrato, mercê dos condicionamentos históricos. Outras surgirão, e têm surgido, mais adequadas ao relativismo de nossos dias. Não existe, nessa perspectiva, figuras ontológicas, mas conceitos plasmados funcionalmente pelas realidades sociais10. 4. Do técnico ao ético: das filigranas formais aos conteúdos materiais O direito atual é o direito do heterogêneo e do plural. A heterogeneidade está na Constituição, como resultado multiforme de tendências díspares; a heterogeneidade está nos valores, nem sempre conciliáveis, a exigir ponderação; a heterogeneidade está nas fontes normativas, cambiantes, hierarquicamente indefinidas, sem um papel previamente estabelecido; a heterogeneidade, por fim – numa lista obviamente exemplificativa – está nos sujeitos de direito, que deixaram de ser a figura uniforme do citoyen para assumir a condição da pluralidade concreta: são múltiplos os sujeitos de direito, cada um – consumidor, possuidor, contratante – merecendo uma proteção diferenciada.

8 Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998, p. 58. 9 Carlos Alberto Ghersi, La posmodernidad jurídica. Ediciones Gowa Profesionales, 1995, p. 45. 10 Em sentido semelhante, Enzo Roppo, Il contrato. Bologna: Società Editrice Il Mulino, 1977, passim.

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O sistema jurídico, nos dias que correm, não é formado, apenas, por relações lógicas, claramente identificáveis. Há, também, por certo, relações valorativas, cujas cargas não são passíveis de isolamento, de mensuração precisa e objetiva11. Há uma percepção difusa, porém progressiva, da perda de certeza e de previsibilidade, como elementos chaves do sistema jurídico. Trata-se, goste-se ou não, mais de uma constatação empírica do que um juízo de valor. As decisões judiciais se valem, com uma intensidade cada vez maior, de elementos criativos que não estavam, senão potencialmente, no sistema jurídico. Vez por outra ganha corpo a crítica, recorrente, de usurpação, pelo Judiciário, das funções próprias do Legislativo. Trata-se, no entanto, de postura teórica claramente envelhecida12. A perda, pelo Legislativo, da centralidade sistêmica que passou a ostentar a partir da Revolução Francesa pode ser historicamente conectada, dentre outros múltiplos fatores, à natural evolução social, cuja complexidade não permite que o Estado, pela só edição de leis, tutele, adequadamente, os seus cidadãos. As constituições contemporâneas, ademais, impõem valores cuja concretização há de se dar, sobretudo, pela via judicial. Desde a clássica resposta de Hesse à Lassalle, acerca de força normativa da Constituição, a história das idéias, no cenário jurídico, conta com a percepção de o direito condiciona e é condicionado. Pretende alterar a realidade mas é, em larga medida, alterado por ela. Tal truística constatação é o resultado a que se chegou, após excessos sociologistas e positivistas13. Embora a ninguém surpreenda a tese da supremacia formal da Constituição, o fato é que a convivência, efetiva e freqüente, da normativa constitucional com as leis civis é algo recente, cuja “tecnologia” está em construção. A própria incidência direta da Constituição sobre as relações civis, conquanto indiscutivelmente possível, abre, operacionalmente, um campo fértil de dúvidas, em especial pela ausência de tradição de manejo que os operadores do direito, formados na escola axiomático-dedutiva, têm com as normas de teor semântico menos preciso. Há um curioso e inédito intercâmbio, em curso, entre os ramos do direito. As teorias e técnicas parecem perder a referenciabilidade unívoca a uma área, ou setor, do direito, ganhando espectros mais amplos de atuação. A convivência fecunda do direito civil com o direito constitucional faz com que este traga ao direito civil não apenas os conteúdos normativos fundamentais, mas também, inovadoramente, uma metodologia científica própria, desconhecida, até então, no direito privado. Os temas versados em sede constitucional – princípio da proporcionalidade, eficácia direta e em face de terceiros dos direitos fundamentais (Drittwirkungen), para ficarmos apenas nos exemplos paradigmáticos – são projetados, auspiciosamente, para as cogitações civis, renovando as ferramentas tradicionais dos civilistas. 11 Ota Weinberger, "Politica del diritto e istituzioni". Il diritto come istituzione, Neil MacComick e Ota Weinberger, Milano: Giuffrè, 1990, p. 287. 12 Giovanni Orrú, Richterrecht – Il problema della libertà e autorità giudiziale nella dottrina tedesca contemporanea. Milano: Giuffrè, 1988, p. 126. 13 Friedrich Müller. Discours de la Méthode Juridique. Paris: PUF, 1996, p. 169.

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Tal eficácia, que independe da interpositio legislatoris, evidencia, com cores nítidas, a força normativa dos direitos fundamentais, que iluminam e condicionam as relações civis, rompendo, decisivamente, com as velhas e esquemáticas noções de público e privado. Um dado fundamental, e pleno de significações, é que, mercê de peculiaridades históricas, os direitos fundamentais se afirmaram frente aos poderes do Estado. Hoje, com o caráter multilateral que lhes é próprio, a proteção, que deles surge, não se esgota, naturalmente, face ao Estado, mas se projeta frente a outros entes (empresas, fornecedores, sociedades despersonalizadas, etc). O direito civil, então, passa a ser regido por normas que não cabem nos códigos. Quer dizer, ainda que os códigos tragam, aqui e ali, princípios e regras que espelhem tal orientação, a natureza normativa dos direitos fundamentais torna impossível o aprisionamento, em numerus clausus, das possibilidades hermenêuticas deles decorrentes. Por certo, a percepção, em si inovadora, da eficácia dos direitos fundamentais nas relações particulares, não é uma panacéia para todos os males. O direito não tem poderes distributivos milagrosos, cabendo-lhe, quase sempre, a ingrata tarefa de distribuir recursos escassos. Os direitos fundamentais, nessa perspectiva, não pode resultar numa panresponsabilização, levando ao colapso do sistema jurídico. A incorporação, à técnica jurídica, de um novo instrumento, leva, num primeiro momento, a excessos juvenis, que o tempo se encarrega de corrigir. Não se trata, é bem de ver, de uma percepção estática, e sim dinâmica, porquanto insta o hermeneuta a construir pontes, janelas e vias de contato entre as matérias jurídicas, numa conexão intra-sistemática, sem prejuízo das conexões externas, que relacionam, dialeticamente, o direito à sociedade. Essa dinamicidade naturalmente indispõe-se com hierarquias rígidas, com escalas apriorísticas de valores, definidas ao largo dos conflitos concretamente configurados14. Além do mais, há uma preocupação, bastante oportuna, com a justiça concreta, e não com ideais abstratos, discursivos e solenes, que dominaram o cenário jurídico num passado recente. Uma teoria, aos olhos de hoje, será tão mais sofisticada quanto maior for o seu potencial de resolver, pragmaticamente, os conflitos sociais. Não que a chamada ciência jurídica tenha perdido, de todo, seu potencial especulativo e generalizante. Apenas se apurou, com novos contextos históricos, a feição do direito como prática social, em detrimento das especulações puramente lógicas, sem repercussão possível na realidade social. Houve, portanto, uma perda evidente da auto-referência que, de modo tão próprio, caracterizou o direito civil. Os intercâmbios normativos, entre setores antes isolados, passaram a ser cada vez mais comuns. Aliás, a metodologia jurídica – tema central durante

14 Raffaele de Giorgi, Scienza del diritto e legittimazione. Lecce: Pensa, 1998, p. 242 e seguintes.

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todo o século vinte15 – parece perder o pudor de contato com as demais ciências sociais, algo a todo custo evitado, séculos atrás. Os positivismos, de múltiplos matizes teóricos, tão exaltados no século XX, chegam sem força no século XXI. Ninguém mais crê, cegamente, nas potencialidades absolutas da lei, na desconsideração – como uma postura teórica possível – de conteúdos mínimos de ética e razoabilidade, na formulação e aplicação das leis. As posições jurídicas – antes absolutas, no auge do individualismo – são crescentemente moduladas. O proprietário, para o ser legitimamente, deve considerar os interesses do não proprietário; o credor do devedor; o fornecedor do consumidor, e assim sucessiva e reciprocamente. Lorenzetti menciona a passagem do “sujeito isolado” para o “sujeito situado”16. O paroxismo voluntarista conduziu a desvios e a injustiças intoleráveis para a mentalidade contemporânea. O pensamento clássico olvidou, conscientemente ou não, que a liberdade jurídica, sem a correspondente liberdade econômica, não passa de mera quimera17. Os juristas tardaram a perceber que a autonomia da vontade é um valor político, antes de ser um valor jurídico18. Os valores éticos penetram nas brechas dos seculares institutos civis, dissolvendo-lhes, pouco a pouco, o excessivo teor patrimonialista, e relativizando-lhes, progressivamente, o destacado acento formal. Há uma clara passagem, nos dias que correm, do técnico ao ético. A beleza formal das construções conceituais, patrimônio indiscutível da pandectística, teve seu espaço e importância, mas seria francamente despropositado que nós, ainda hoje, nos detivéssemos a discutir filigranas formais e não conteúdos materiais. O direito não perdeu sua dimensão técnica. Apenas acrescentou, a ela, outras dimensões, de maior importância. 5. Direito Civil: a ressistematização valorativa

15“O formalismo e o positivismo, apresentados, respectivamente, como o predomínio das estruturas gnoseológicas de tipo neo-kantiano e como a recusa, na ciência do direito, de considerações não estritamente jurídico-positivas, constituem o grande lastro metodológico do século vinte”.(Menezes Cordeiro, "Os dilemas da ciência do direito no final do século XX", prefácio à obra de Claus Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. XV/XVI). 16 Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998, p. 83. 17 Manuel de la Puente y Lavale, “Nuevas tendencias en la contratación moderna”. Revista Peruana de Derecho de la Empresa, n. 03. Lima, 1988, p. 10. 18 Alfred Rieg, “Le rôle de la volonté dans la formation de l’acte juridique d’après les doctrines allemandes du XIX siècle”. Archives de Philosophie du Droit. Paris: Sirey, 1957, t. 4, p. 126.

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O ocaso dos referenciais clássicos poderia sugerir, a um observador formado nos padrões mentais da era da segurança, que o timbre sistemático estaria afastado, peremptoriamente, do direito civil, reinando uma informe promiscuidade metodológica. Tal postura denunciaria mais o observador do que o objeto observado. Na verdade, se supormos uma sistemática fechada, à maneira dos oitocentos, como a única possível, certamente o pensamento sistemático estaria banido da experiência jurídica atual. O que importa investigar é se, de fato, o modelo axiomático-dedutivo exaure as possibilidades sistemáticas do pensamento jurídico; se exaurir, a escolha, um tanto radical, deve ser feita entre o anacronismo do sistema fechado e, na outra ponta, o pensamento tópico. Como opção a tais escolhas pendulares, teríamos a construção de um sistema cujas unidades de sentido seriam valorativas, e não lógico-formais. É o que parece ocorrer com o direito civil brasileiro atual. O direito civil não perde, está claro, sua capacidade de articulação interna; o que há é uma renovação qualitativa dessa articulação: ao invés de raciocínios more geométrico, rigorosamente matematizantes, ponderações abertas, suscetíveis a sugestões sociais. Os valores e princípios não se articulam num plano lógico. A unidade, que desenvolvem, é valorativa, e as hierarquias, se existem, são tópicas, fluídas e dinâmicas19. As regras, ao contrário, continuam a desempenhar importante função normativa, porém atuam segundo a lógica formal, estabelecendo, previamente, hipóteses e conseqüências, numa relação puramente condicional. O direito civil, nessa trilha, perdeu o caráter conceitual abstrato, porém não perdeu a sistematicidade funcional ou valorativa20. Os critérios de aferição se substancializam, ganhando em conteúdo o que deixam de cultuar em forma21. Não que os critérios clássicos tenham perdido, de todo, sua importância. Apenas prevalecem os critérios funcionais, nos quais a análise se faz à luz de valores e princípios, e não de regras. O que substancialmente define a nova feição do sistema civil são os eixos centrais do sistema, que deixaram de apresentar, como notas precípuas, os caracteres lógico-formais, e passaram a ostentar, como característica fundamental, a presença de certos valores, condicionadores da inteligência de qualquer de suas partes.

19 Sobre os princípios, precursoramente, Josef Esser, Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Trad. Eduardo Valenti Fiol. Barcelona: Bosch, 1961, p. 10/11. 20 Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. 81. 21 A propósito, vale referir a perspectiva de Atienza, para quem o raciocínio jurídico é um caso especial, altamente especializado e formalizado, de raciocínio moral. (Manuel Atienza, As razões do Direito. São Paulo: Landy, 2000, p. 203).

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Mais do que unidade formal, ao direito civil de hoje importa a unidade substancial. Quer dizer, é a presença de certos valores, básicos e fundamentais, que o unifica, e não um código, ou um conjunto de microssistemas. O que há, a rigor, é uma renovação axiológica no direito civil. Os estudos modernos convergem, auspiciosamente, no sentido de consagrar o princípio da dignidade da pessoa humana. A operacionalização, concreta e sensível, de tal consagração, será lenta, como soem ser as mudanças no direito. O que é alentador, além da aparente irreversibilidade do movimento, é a passagem de um nível retórico, puramente discursivo, para a busca de soluções técnicas e hermenêuticas que realizem, de fato, tal orientação. Ou seja: não se trata, nem seria concebível que se tratasse, de um discurso ingênuo, jusnaturalístico, à maneira do século XVIII. O que se quer é a elaboração de um direito substantivo que atinja, na realidade da vida, os seus propósitos. 6. Código Civil de 2002: um novo marco para as obrigações? Os códigos, grosso modo, são o marco da estabilidade e permanência. Firmaram-se, como modo de legislar, numa época em que a segurança era o valor-fim do ordenamento. Talvez por isso, a metodologia, a eles associada, é hermeneuticamente pobre, rasteira e exegética22. As codificações, pelas conexões lógicas que propiciam, oportunizam o surgimento de um tipo de pensamento marcado por nexos formais e conceituais, que afastam, como promiscuidade teórica, as concepções mais arejadas, mais sensíveis às sugestões sociais23. A questão, que deve prefaciar as discussões relativas ao novo Código Civil brasileiro, é fundamentalmente metodológica: como ocorrerá a inserção de tal lei no direito civil nacional? O novo Código é um instrumento prestante para veicular os valores e princípios constitucionais? Em que medida o direito civil é atingido, em sua essência, pelo advento de um novo Código? O ambiente contemporâneo mal disfarça uma certa desconfiança, um certo estranhamento com a figura dos códigos24. Seria pertinente regular, mediante grandes leis, relações sociais

22 Pontes de Miranda constatou a inércia mental que costuma acometer os juristas frente às novas codificações: “As codificações ossificam, dão rigeza oficial e arquitetônica às leis. O primeiro pendor dos comentadores é para a exegese literal, ou a distribuição das regras em proposições coerentes, lógicas, que nunca se podem atacar entre si, nem, sequer, premir”. (Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 70). Menezes Cordeiro, em perspectiva semelhante, pondera: "As codificações, essencialmente redutoras e simplificadoras, provocam, num primeiro momento, atitudes positivistas. Trata-se de uma conjunção facilmente demonstrada na França pós-1804, na Alemanha pós-1900 e em Portugal pós-1966". ("Os dilemas da ciência do direito no final do século XX", prefácio à obra de Claus Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. XIII). 23 Carlos David S. Aarão Reis, “A matematização do direito e as origens da parte geral do direito civil”. Revista de Informação Legislativa. Janeiro/Março – 1997, ano 34, nº 133, pp. 121/128, p. 124. 24 “O racionalismo marca, assim, a ciência jurídica moderna, cuja nota específica é a exatidão. Sua realização máxima são os códigos e as constituições: razão, direito e política. O pensamento sistemático invade a ordem jurídica”. (Francisco Amaral, “Racionalidade e Sistema no Direito Civil Brasileiro”. Revista de Direito Civil. Janeiro-Março/1993, ano 17, nº 63, pp. 45/56, p.47).

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tão caracteristicamente instáveis? Ou, por outra, a codificação seria um instrumento próprio dos séculos passados, anacrônico no século vinte e um, e antitético à chamada pós-modernidade? Tais indagações, no Brasil, em face ao direito civil, ganharam uma importância pragmática, porque o Código Civil de 2002, não sem severas críticas, passou a integrar nossa experiência jurídica. Seria equivocado supor que, com sua aprovação, teríamos de volta, no século XXI, à maneira de extemporâneos fantasmas, os dogmas e as discussões que se seguiram aos códigos dos séculos passados. O Código Civil de 2002 não terá, segundo cremos, o impacto metodológico, no sistema de direito civil, que os códigos civis, ao longo dos séculos, fizeram praça de ter. É que o novo Código encontrará padrões metodológicos mais céticos em relação às funções das grandes leis. A tentativa de exaurir, mediante regras, uma sociedade caracteristicamente instável e plural é vista como algo, para nós, anacrônico, a exemplo de insistir com as cartas num mundo de e-mails. As novas perspectivas, em verdade, decorrem menos do Código, e mais da reconstrução, constitucionalmente datada, dos paradigmas do direito civil. O Código tem o mérito extrínseco de, chamando luz ao direito civil, provocar novas soluções hermenêuticas, pautadas, espera-se, na normativa constitucional. Existe, por outro lado, o risco, sempre presente, do excessivo apego ao texto, das fórmulas, cômodas e redutoras, que esvaziam as potencialidades hermenêuticas da lei. O novo Código não olhará tanto para si. Haverá, se quisermos uma imagem literária, um déficit narcisístico em relação aos seus antepassados. Os novos civilistas se acostumaram a ler o Código como mais uma lei, entre tantas, todas, por óbvio, sujeitas aos conteúdos normativos da Constituição. É certo, até pela amplitude temática, que certa referencialidade não se lhe pode retirar. O que muda é o intercâmbio normativo de informações. De exportador contumaz, o Código talvez passe a importar, progressivamente, soluções de outros setores, algo impensável na sistemática clássica. Atualmente, mercê das opções valorativas básicas delineadas pela Constituição, nenhuma lei pode estabelecer uma nova ordem de valores, significativamente distinta da já existente até seu advento. Em relação aos códigos civis, é bem modesto o seu papel, se comparado com a função de centralidade que puderam ostentar durante séculos. Seus conteúdos normativos não podem, portanto, senão densificar, em regras, as normas que já estão, potencialmente dispostas, em forma de princípios, na Constituição. 7. O Código Civil de 2002 e os microssistemas: influências recíprocas Questão interessante, e correlata à acima referida, é a inserção do novo Código num sistema jurídico avesso a centralismos, refratário à disciplina das relações privadas num único instrumento normativo. O Código resgataria, em certo sentido, a centralidade perdida? Seria essa, em alguma dimensão, a sua proposta?

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Parece incorporado, ao aparato conceitual dos civilistas, a crença de que tanto mais avançada será uma lei quanto maior for sua potencialidade em exprimir a normativa constitucional25. O Código do Consumidor, nesse sentido, foi louvado não por seus valores intrínsecos, e sim pela forma com que traduziu, em sede legislativa, valores consignados na Constituição. Os intercâmbios normativos, entre, por exemplo, o Código do Consumidor e o novo Código Civil devem ser enxergados numa perspectiva constitucional. Se, em determinada matéria, o Código do Consumidor avançou, e tal avanço traduz uma opção valorativa da Constituição, cujo âmbito de aplicação pode ser estendido às relações civis, é natural e compreensível que tal disciplina tenda a ser aproveitada por aqui. A recíproca, outrossim, não é absurda. Nada impede que, em algum ponto, o Código Civil represente - em matéria da proteção da pessoa humana, por exemplo – um avanço normativo, a ser incorporado e acolhido nas relações de consumo. Pertinente, nessa trilha, o raciocínio de Paulo Lôbo, ao observar que os princípios adotados aproximam, mais do que afastam, os dois códigos. A tendência, analisa, é o desaparecimento progressivo da distinção dos regimes jurídicos dos contratos comuns e dos contratos de consumo, ao menos no que concerne a seus princípios e fundamentos básicos26. O curioso é que, buscando diferenças conceituais entre os sistemas – do Código Civil e do Código do Consumidor – encontramos semelhanças inesperadas, além das semelhanças visíveis, como a expressa previsão, em ambos, da boa-fé objetiva. É interessante perceber que, embora, sob a perspectiva da hierarquia formal das normas, não haja distinção alguma entre o Código Civil de 2002 e seus congêneres dos séculos passados, é inegável que o avanço na percepção da teoria das fontes evidenciou a necessidade de redimensionar a importância das matérias tratadas nos códigos, sujeitas, sempre, aos conteúdos normativos da Constituição. Bem por isso, deixou de ser natural que os códigos civis exportassem conceitos, categorias e institutos. O novo Código nasce sem pretensões exclusivistas, sem a ingênua ilusão de esgotar a normatização da vida social. A influência, que porventura exerça sobre os demais centros normativos do sistema jurídico, será recíproca, e não unidirecional, como no passado. O Código influenciará e será influenciado. Suas referências de sentido serão buscadas, progressivamente, na sociedade, cujas pautas de valor definirão, dialeticamente, o conteúdo das novas interpretações. O paralelo entre, de um lado, as relações de consumo, e, de outro, as relações negociais comuns, civis ou mercantis, perde, com o novo Código, o caráter de oponibilidade paradigmática. Ou seja, embora cada um dos regimes – o de consumo e o comum –

25 P. G. Monateri, Pensare il Diritto Civile. Torino: Giappichelli, 1999, p. 24/25. 26 Paulo Luiz Neto Lôbo, “Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil”. Revista de Direito do Consumidor. 42/187-195, abril-junho, 2002, p. 190.

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carregue especificidades, não são distinções substanciais, de valor ou conteúdo, mas apenas as necessárias adequações mercê das cores próprias de cada relação. A existência, nos contratos, de vantagens e desvantagens recíprocas, evidenciando certo equilíbrio material, é um sinal, mais ou menos claro, da impertinência da intervenção estatal, devendo o dirigismo ficar reservado àquelas situações que, mercê do desequilíbrio, uma das partes se mostre merecedora de tutela. O que ocorre, no atual direito civil, é que essa tutela é dinâmica, participa, ativamente, de qualquer relação jurídica obrigacional. Nas relações comuns, civis ou mercantis, a proteção não é prévia, não pende, antecipadamente, para um dos pólos da relação, como ocorre, conceitualmente, com o trabalhador e o consumidor. O que não significa que, configurando-se, em concreto, a situação merecedora de tutela, essa não se faça valer. Seria trágico aceitar que a proteção à dignidade da pessoa humana, por exemplo, seja substancialmente diferente pela inserção de uma relação no sistema de consumo ou no sistema das relações civis não-consumeristas27. A Constituição não tolera espaços neutros, vazios de proteção substantiva. 8. Autonomia da vontade: redimensionamento qualitativo Os contratos, estabelecendo, quase sempre, deveres recíprocos, limitam as esferas jurídicas dos contraentes. As ações e omissões, possíveis e vedadas, ganham nova cor com os contratos, surgindo direitos e deveres, pretensões e obrigações, que não existiam em lei. Essa esfera de ação, que o direito tradicionalmente assegurou às pessoas, ficou conhecida por autonomia da vontade, ou auto-regramento da vontade, como prefere Pontes. Esse espaço de auto-determinação da vontade variou, naturalmente, ao sabor das condições históricas, mas é sensível, há algumas décadas, um movimento de crescente restrição a possibilidade de se impor, livremente, regras, com pouca ou nenhuma intervenção estatal28. A discussão, que contemporaneamente se põe, indaga dos limites desse espaço deixado à vontade. Indaga-se, mais profundamente, se os limites deixaram de ser puramente quantitativos, passando a ser qualitativos, alterando, substancialmente, a forma de intervir nas relações negociais29. O que se percebe é que, pelos abusos a que deu causa, pela hipóstase a que os séculos passados a conduziram, a importância da autonomia da vontade, na dogmática contemporânea, foi redimensionada.

27 Gustavo Tepedino, “As relações de consumo e a nova teoria contratual”, Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 199/215, p. 211. 28 Como projeção do laissez-faire, laissez-passer, não faltou quem, coerentemente, mencionasse o laissez-contracter. (Jean Carbonnier, Droit Civil. Les obligations. Paris: PUF, 1976, p. 41). 29 Para Francisco Amaral, “o problema da autonomia privada, na sua existência e eficácia, é apenas um problema de limites”. Segundo o autor, a crise “é mais quantitativa do que qualitativa”. (“A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica”, Revista de Informação Legislativa. Abril a junho 1989, ano 26, número 102, Brasília: Senado Federal, pp. 207/230, p. 215 e 217).

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A relativização do princípio tem evidentes contatos com a responsabilidade civil contratual. Afinal, tem-se, aqui, um campo propício para abusos e subterfúgios de toda ordem. O desafio é encontrar um ponto ótimo, uma posição que equilibre, sem esvaziar, tanto a autonomia como a necessidade objetiva de equivalência material. Ao abandono da liberdade e da vontade, como valores precípuos do sistema de direito privado, correspondeu o recrudescimento da boa-fé objetiva, potencializando o agir socialmente correto, dentro dos padrões esperados, afastando as surpresas desleais e as condutas caprichosas, ainda que contratualmente resguardadas30. A vinculação ético-social do direito contemporâneo naturalmente desautoriza a religiosa reverência às disposições contratuais. Quem diz contratual, não diz necessariamente justo. O referencial de análise ganha uma dinamicidade que não tolera posições absolutas, à maneira do inflexível pacta sunt servanda. A consagração, no novo Código, dos institutos do estado de perigo (art. 156), e da lesão (art. 157), representam, pontualmente, a filosofia adotada pelo legislador de 2002, naturalmente refratária ao cortante individualismo dos séculos passados. O contrato, nessa nova visão, passa a ser operacionalmente permeável à incidência de valores éticos, culturais e sociais, ensejando, assim, uma saudável dialeticidade entre os conteúdos contratuais e os valores sociais. Ao recuo do formalismo, característico do direito privado liberal, corresponde o alargamento da noção de justiça material, como paradigma que deve iluminar as obrigações dinamicamente consideradas. Perde o contrato, nessa perspectiva, um referencial puramente interno, cujos liames interpretativos deveriam ser buscados tão-somente nas disposições objetivamente postas. Há uma passagem, no atual direito das obrigações (pós-moderno, como preferem alguns), da previsão à construção. As rígidas fórmulas, estáticas e apriorísticas, cedem espaço à elaboração, dialética e plural, de novos espaços de convivência, à luz de valores objetivamente discerníveis. A relevância jurídica de certos fatos passa a depender, cada vez menos, da previsão, escrita e formal, em leis e contratos, e mais da efetiva e substancial importância que ostentam para a convivência social. O direito passa a ser menos texto e mais contexto. Pertinente, portanto, pensar em “processo de objetivação” do contrato31, o que significaria, não o aniquilamento dos princípios clássicos (autonomia privada, pacta sunt servanda e relatividade subjetiva), mas sim a inclusão de novos princípios, próprios do Estado Social

30 A boa-fé objetiva é norma cogente, não cabendo, nesse ponto, a preocupação exposta por Antônio Junqueira de Azevedo, criticando a ausência de previsão, nesse sentido, do então projeto de Código Civil. (“Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”. Revista dos Tribunais. Ano 89, v. 775, maio 2000, pp. 11/17, p. 12). 31 Enzo Roppo, Il contrato. Bologna: Società Editrice Il Mulino, 1977, p. 265.

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(função social, boa-fé objetiva e equivalência material), a tornar mais complexa, e menos voluntarista, a feição atual do contrato32. Cabe ponderar que o declínio da autonomia privada não é, obviamente, absoluto. A vontade continua a ocupar lugar de destaque na ordem jurídica privada. A questão, bem focada, evidencia apenas o interesse do direito pela proteção de certos interesses para além do aspecto volitivo33. 9. Responsabilidade contratual e extracontratual: superação da dicotomia A divisão das fontes obrigacionais em contratuais, extracontratuais e atos unilaterais, embora conte com o timbre da tradição, merece ser repensada. Mais técnico é dizer que os direitos e deveres, as pretensões e obrigações, surgem dos fatos jurídicos. Nem mesmo como auxílio didático a discriminação atende aos propósitos imaginados, porquanto o direito positivo tende a borrar, progressivamente, os limites entre as responsabilidades contratual e extracontratual, criando regimes de responsabilidade próprios, em relação aos quais a divisão clássica não encontra lugar. É acesa a controvérsia em torno da expressão responsabilidade civil contratual. Mais técnica, porque mais compreensiva, é a expressão responsabilidade civil negocial. No entanto, para os propósitos desse artigo, não cabe ingressar na discussão, podendo persistir com a primeira, consagrada pela tradição. De toda sorte, a origem, contratual ou legal, da responsabilidade, tem certa importância, mercê da especificidade estabelecida em algumas regras jurídicas (constituição do devedor em mora, caracterização da culpa, solidariedade passiva), mas, grosso modo, a linha evolutiva aponta para a convergência das fontes. Os autores, em geral, costumam frisar a tendência à superação do dualismo, tido por impertinente e artificial. Pontes de Miranda, com a antevisão que lhe caracterizava a ciência, já diagnosticava em meados do século passado: “É possível, portanto, esperar-se que se apaguem as distinções entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade negocial, de modo que se crie, por sobre elas, mais solidamente, outro sistema, unitário, de reparação fundada na culpa ou em equilíbrio material de posições jurídicas”34. De lá para cá, tal tendência se intensificou, com os estudos sublinhando o despropósito da duplicação dos modelos de reparação. Os autores, conquanto reconheçam, em alguns pontos, caracteres específicos em cada um dos modelos, são veementes em apontar a ausência de razão jurídica para a manutenção da bipartição. Paulo Lobo anota a tendência à “superação atual da dicotomia responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual”35. Mosset Iturraspe tem a bipartição por 32 Paulo Luiz Neto Lobo, “Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil”. Revista de Direito do Consumidor. 42/187-195, abril-junho, 2002, p. 189. 33 Clóvis do Couto e Silva, A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 26/27. 34 Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 186. 35 Responsabilidade por vício do produto ou serviço. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 70.

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forçada, anti-natural e irrazoável, sublinhando a linha evolutiva no sentido da unificação36. Lorenzetti, por seu turno, também se junta àqueles que combatem o artificialismo da distinção37. Almeida Lopes aduz que a orientação da doutrina moderna e das leis mais recentes é pela unificação dos regimes, acrescentando que não existe, no direito português, uma distinção essencial de regimes entre as duas formas de responsabilidade. Ademais, pondera, a maior parte, pelo menos, das diferenças tradicionalmente admitidas não encontra qualquer justificação prática ou lógica38. É possível, portanto, tratar, de modo teoricamente mais amplo, a responsabilidade sem os rígidos espartilhos divisórios. Além das categorizações lógicas terem perdido boa parte de sua força explicativa, a experiência jurídica se orienta, atualmente, pela razão prática e pelo sistema aberto, em detrimento de modelos cognitivos excessivamente racionais39. É proveitoso que as responsabilidades contratual e extracontratual interajam, enriquecendo-se mutuamente, em ordem a possibilitar a gradual construção de um sistema unitário de responsabilidade. Mais pertinente se mostra bipartir as possibilidades reparatórias tendo em vista uma real e relevante diferença que sempre estará à base da reparação: o caráter precípuo da violação – se patrimonial ou extrapatrimonial. Afinal, como pondera Judith Martins-Costa, os danos à pessoa podem ter origem contratual ou não40. Tal enfoque, marcadamente axiológico, permite que se diferencie as ações ou omissões que ensejam reparações a partir do bem jurídico violado. Em outra oportunidade defendemos a idéia de que importa menos indagar se violado foi um direito absoluto (propriedade, direitos da personalidade), ou um direito relativo (como o são as relações jurídicas obrigacionais). Mais relevante é perquirir se violado foi um bem jurídico cujo valor de proteção é preponderantemente patrimonial, ou se violado foi um bem jurídico cujo valor de proteção é predominantemente extrapatrimonial41. Esse é um critério aberto, não formal, que se relaciona com um sistema jurídico cujas bases são essencialmente axiológicas, e não lógico-formais (CF, art. 1º e 3º). Tal sistema, ademais, procura realizar as prescrições constitucionais que impõem considerações normativas diferenciadas à pessoa humana.

36 Responsabilidad por daños. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, sem indicação do ano, t. I, p. 490. 37 Responsabilidad civil de los médicos. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, sem indicação do ano, t. I, p.360. 38 Direito das Obrigações. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 354. 39 Francisco Amaral, “Racionalidade e Sistema no Direito Civil Brasileiro”. Revista de Direito Civil. Janeiro-Março/1993, ano 17, nº 63, pp. 45/56, p. 53. 40 Judith Martins-Costa, “Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza de sua reparação”, A Reconstrução do Direito Privado, Judith Martins-Costa (org.). São Paulo: RT, 2002, pp. 408/446, p. 417. 41 Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, passim.

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Relativamente aos ilícitos não patrimoniais, cujos valores dificilmente podem ser adequadamente traduzidos em padrões monetários, deve-se tentar, de forma precípua, evitar que o dano ocorra, que o ilícito se perfaça. Caso ocorra, cumpre afastar a indagação de culpa, impertinente em se tratando de ilícitos não patrimoniais. No que se refere aos ilícitos patrimoniais, importa estabelecer meios que tornem efetiva a reparação, buscando-se, em princípio, o equivalente, e reservando, como subsidiária, a trilha das perdas e danos. Cabe mencionar, por fim, que não há, segundo cremos, identidade conceitual entre ilícito civil e responsabilidade civil. A doutrina, no entanto, tende a tratar, indistintamente, dos fenômenos, tomando o mais visível e freqüente – o ilícito civil que produz responsabilidade civil - como se esgotasse, na espécie, o espectro de possibilidades. A correta percepção da responsabilidade civil contratual, portanto – para usar a terminologia clássica -, deve partir desse ajuste inicial. Ao mencionar a responsabilidade civil que surge à luz da inexecução de um contrato, estamos em verdade referindo um efeito – o dever de reparar ou indenizar – de uma espécie de ilícito civil. Sob o ângulo da teoria geral do direito, a responsabilidade civil não tem a unidade temática que, por força dos estudos e monografias, passou a ostentar. A atenção, embora pragmaticamente justificada, não encontra eco no plano dos conceitos fundamentais. A responsabilidade civil, tecnicamente falando, é a relação jurídica – plano da eficácia, portanto – que resulta de um fato jurídico lícito ou ilícito. É preciso, nessa trilha, afastar a identificação dos conceitos de ilícito civil e responsabilidade civil. Tal superposição não traduz a realidade jurídica. Existem ilícitos cujos efeitos não importam em reparação ou indenização. A responsabilidade civil é efeito de uma espécie de ilícito, e não do gênero ilícito civil. Figure-se a hipótese de ingratidão do donatário. Trata-se de ilícito civil cujo efeito é a autorização, que o sistema jurídico outorga ao doador, de revogar, se assim lhe aprouver, a doação feita. Por outro lado, imagine-se um contrato de locação cujas cláusulas impeçam ao locatário receber, no imóvel, pessoas de determinada raça. Temos, aí, um ilícito invalidante, cujo efeito importará na neutralização do acordo firmado, sem prejuízo, obviamente, das repercussões penais, e mesmo de outras sanções civis. Por fim, como exemplo de ilícito caducificante, pode-se pensar em contrato de edição no qual o editor mutila, aleatoriamente, o conteúdo da obra dada à impressão. Semelhante conduta pode importar, a teor do conteúdo do acordo, em perdas de direitos, como resultado do ilícito praticado. As sanções civis, desse modo, não se resumem no dever de indenizar ou ressarcir, podendo também compreender: a) a autorização para a prática de certos atos pelo ofendido, b) a perda de certas situações jurídicas (direitos, pretensões e ações) ou c) a neutralização da eficácia jurídica (não produção dos efeitos jurídicos como sanção).

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10. A dimensão hermenêutica dos institutos civis A dimensão interpretativa assume, nos contratos, uma importância rara. A relativização da autonomia privada autoriza intervenções judiciais tendentes a reequilibrar a comutatividade perdida. Semelhante operação, naturalmente, dificilmente deixará de ser delicada, porquanto colidentes, na matéria, no mínimo dois princípios constitucionalmente protegidos: a autonomia da vontade, de um lado, e, do outro, a dignidade da pessoa humana ou a função social do contrato, por exemplo. É prudente sempre referir que não existe, no direito contemporâneo, conceito ou instituto jurídico fechado, hermético e estático. Toda categoria jurídica é, hoje, em alguma medida, permeável a mudanças de sentido resultantes do processo hermenêutico. Mesmo porque, observa ironicamente Perelman, a clareza da norma muitas vezes não passa de falta de imaginação do intérprete42. Aliás, o próprio direito romano, referencial obrigatório do direito clássico, teve suas grandes características firmadas no período da interpretatio, mercê de substanciais trabalhos hermenêuticos perspectivados embora a partir da práxis43. Cabe ainda analisar, concisamente, algumas inovações trazidas pelo novo Código, em ordem a oportunizar um vislumbre menos informe das modificações operadas. 10.1. A função social do contrato - A liberdade de contratar, na dicção do art. 421, será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Trata-se de explicitação louvável de norma implicitamente contida na Constituição Federal. O contrato, nessa perspectiva, é funcionalizado, assim como a propriedade e outros tradicionais institutos civis, o que lhes altera, profundamente, a feição, fazendo com que sirvam, dialeticamente, à sociedade, e não apenas – como redutoramente se pensou – ao titular do direito. A funcionalidade é um conceito pleno em potencialidades hermenêuticas. Serve, precisamente, como elemento auxiliar na construção e definição de standards de comportamento, apartando os possíveis e desejáveis dos vedados e intoleráveis. A funcionalidade, outrossim, pode atuar como importante contraponto a impedir os efeitos porventura nefastos da autonomia da vontade. As cláusulas contratuais são submetidas ao teste da inserção social, contextualizando-lhes o sentido, e daí resultando, à luz da ponderação de princípios constitucionais, sua adequação, ou não, à ordem jurídica brasileira. 10.2. O ilícito funcional - Dispositivo correlato ao art. 421, embora com efeitos para além do âmbito contratual, é o art. 187, cujo conteúdo normativo está assim disposto: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

42 Chaïm Perelman, Lógica Jurídica. Trad. Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 51. 43 H. F. Jolowicz, Historical Introduction to the study of Roman Law. Cambridge: University Press, 1952, p. 87.

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Cremos que tal norma não inova substancialmente o sistema jurídico44. O exercício, manifestamente excessivo, de um direito, já não era tolerado, mesmo antes de tal consagração legislativa. O dispositivo tem, contudo, o inegável mérito de impossibilitar extemporâneas recusas, evidenciando que os ilícitos civis não se esgotam na fórmula tradicional que reúne a culpa, o dano e o dever de indenizar. Toda utilização de um direito, portanto, que ultrapassar os limites do razoável, orçando pelo abuso, pelo perturbador, traz em si, de forma insofismável, a pecha da oposição aos valores que permeiam o sistema do direito civil brasileiro. Será, nesse contexto, contrário ao direito o ato ou a omissão que implicar um estorvo social incompatível com a dimensão do direito fruído. 10.3. A desconsideração da personalidade jurídica - Digno de nota, outrossim, é que a personalidade jurídica deixa de ser óbice à reparação civil, possibilitando o Código o afastamento tópico da personificação para que os bens particulares dos sócios ou administradores respondam diretamente (“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que o efeito de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”). Tal regra, cujo conteúdo não é inédito no ordenamento brasileiro, não constava, ainda, do elenco de normas civis, participando apenas do sistema de consumo e de algumas leis especiais. 10.4. A unificação das obrigações - Por outro lado, o novo Código unificou, legislativamente, as obrigações civis e comerciais. Tal tendência parece contar com a efetiva adesão da comunidade internacional, sendo pertinente, a propósito, mencionar as experiências, nesse sentido, do Canadá e da Holanda. Ademais, retoma-se, assim, a tradição brasileira, interrompida com o malogro legislativo do notável esboço de Teixeira de Freitas45. 10.5. Os contratos de adesão - Ademais, nos contratos de adesão, mercê das particularidades que encerra, o Código traz previsão expressa no sentido da invalidade da cláusula de renúncia antecipada do aderente a direito que resultar da natureza do negócio (Art. 424). 10.6. A prescrição - No que toca à prescrição, o novo Código, em dispositivo inédito, determinou que a prescrição da pretensão de reparação civil ocorrerá em três anos (art. 206, § 3º, V), excepcionando o prazo geral, de dez anos, previsto no art. 205. 10.7. Os juros - Cabe referir a mudança ocorrida com o art. 404, parágrafo único, alargando, em atenção às críticas doutrinárias, a limitação, estabelecida no art. 1.061 do Código de 1916, no sentido de que, nas obrigações de pagamento em dinheiro, as perdas e

44 Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 118. 45 Cláudia Lima Marques, “Cem anos de Código Civil Alemão: o BGB e o Código Civil Brasileiro de 1916”. Revista dos Tribunais. Julho/1997, Ano 86, v. 741, pp. 11/37, p. 20.

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danos consistiriam apenas nos juros de mora e nas custas, sem prejuízo da pena convencional. Mercê da nova regra, provado que os juros de mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar. No entanto, forte nas premissas metodológicas desenvolvidas, cremos que a ausência de semelhante regra não impediria ao juiz de conceder a indenização suplementar, se a tanto conduzisse o equilíbrio material das prestações. 10.8. As cláusulas de não indenizar e o adimplemento substancial - Embora ausentes da codificação, cabe mencionar, brevemente, pelas conexões jurídicas que propiciam, as cláusulas de não indenizar e o adimplemento substancial, intimamente ligados ao tema proposto. As cláusulas de não indenizar propiciam a liberação, contratualmente firmada, da indenização. Seria imprudente firmar posição, peremptória e absoluta, sobre tal cláusula. Será ora válida, ora nula, dependendo, fundamentalmente, de certos requisitos e circunstâncias, variáveis de acordo com a relação contratual. O que fica, desde logo, fora de qualquer dúvida, é que as cláusulas de não indenizar são cada vez menos simpáticas à mentalidade jurídica contemporânea. Cria-se, através dela, imunidades aos riscos, nem sempre conformes ao equilíbrio material das prestações. O sistema de direito civil não tem uma norma semelhante ao art. 51, I, do Código do Consumidor, que faz nula a cláusula contratual que impossibilite, exonere ou atenue a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza de produtos ou serviços, ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Em linhas gerais, pode-se dizer que são nulas as cláusulas de não indenizar que: a) exonerem o agente, em caso de dolo; b) vão diretamente contra norma cogente, às vezes dita de ordem pública; c) isentem de indenização o contratante, em caso de inadimplemento da obrigação principal; e d) interessem diretamente à vida e à integridade física e psíquica das pessoas naturais46. Por outro lado, uma adequada compreensão hermenêutica da responsabilidade civil pode evitar os incômodos da ausência, no novo Código Civil, de uma regra sobre a chamada substancial performance (adimplemento substancial). Ou seja: para aqueles casos nos quais o contraente adimple, de forma significativa, a sua obrigação, deixando de fazê-lo quanto à parte pequena, de escassa dimensão perante o todo da relação. Pois bem, em tais hipóteses não seria jurídico aceitar a abrupta resolução do contrato, pleiteada pelo outro contraente, ao argumento de sua inexecução. Mais adequado, conforme à boa-fé objetiva e à função social dos contratos, é entender possível uma indenização que repare os efeitos da

46 Antônio Junqueira de Azevedo, “Cláusula cruzada de não indenizar (cross-waiver of liability), ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os contratantes – Renúncia ao direito de indenização – Promessa de fato de terceiro – Estipulação em favor de terceiro”. Revista dos Tribunais. Ano 88, v. 769, nov. 1999, pp. 103/109, p. 105.

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inexecução parcial, perspectivada, obviamente, a partir da parcela cujo cumprimento inocorreu. 11. Conclusões: do texto ao contexto Seria imprudente, e de duvidosa utilidade, buscar, em ensaio doutrinário, padrões conceptuais uniformes para a responsabilidade civil contratual à luz do Código Civil de 2002. O progressivo intervencionismo estatal no direito das obrigações, aliado à técnica regulamentar dos princípios e cláusulas gerais, tornam o tema especialmente dinâmico, avesso a enquadramentos rígidos. Não só os espaços, para a autonomia privada, progressivamente diminuem, mas também a atividade, dentro desses espaços, passa a receber, de modo substantivo, a luz normativa da Constituição. O direito se coloca sob o signo do substantivo, despojando-se de articulações teóricas supérfluas, parnasianas. Os núcleos essenciais convergem, não à toa, para a pessoa, redefinindo, significativamente, as unidades hermenêuticas básicas. A lógica patrimonialista, que presidiu o raciocínio jurídico dos séculos passados, revela-se progressivamente desacreditada, sendo substituída por uma lógica axiológica, se é que ambas expressões podem andar juntas. O direito civil, embora lide, forçosamente, com patrimônios, não tem de ser, em suas linhas mestras, guiado por eles. É à pessoa, integralmente considerada, que deve reservar sua força de proteção. Essa a viragem que marca a nova etapa metodológica cuja construção é apenas iniciada. Ao direito privado são reservadas novas funções, substancialmente distintas daquelas clássicas, liberais e neutras. Os contatos civis, marcados, conceitualmente, por relações de coordenação, passam a receber a influência de valores comunitariamente significativos, ultrapassando, como esfera de proteção, o ângulo dos titulares dos direitos subjetivos civis. O esfacelamento dos diques entre os direitos público e privado, ambos, de igual modo, recebendo a luz da Constituição, provocou alteração significativa na compreensão metodológica: ao direito civil, como um todo – e não apenas a setores seus, como o sistema de consumo – cabe coibir abusos, reequilibrar posições, estabelecer limites. Não há mudança significativa quanto aos vetores principiológicos fundamentais: cabe sempre resguardar a dignidade da pessoa humana, procurar reduzir as desigualdades e promover a solidariedade. As camadas protetivas se acumulam, sem se excluírem reciprocamente. É dizer: à proteção da pessoa humana, em sua dimensão existencial, todos os setores do direito, com suas técnicas e instrumentos, são chamados a concorrer, formando, conjuntamente, uma multidimensionalidade protetiva47.

47 Acerca das alternativas dogmáticas possíveis para solução de conflitos entre direitos fundamentais, José Adércio Leite Sampaio, A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 726/728.

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Não há, portanto, exclusivismo normativo no que se refere à proteção da pessoa humana. Se pública, ou privada, a feição da proteção, pouco importa. Aliás, campo fértil, na matéria, são os instrumentos internacionais, progressivamente insertos, mercê dos processos de integração, nos direitos positivos dos Estados. Fenômeno típico da contemporaneidade é a fuga das teorias gerais, das amplas construções teóricas, dos modelos cognitivos com pretensões tematicamente alargadas. Tal ocorre com a propriedade, com a teoria dos negócios jurídicos, e ocorre, em especial, com a responsabilidade civil, seja contratual ou extracontratual. Tamanha é a percepção do fenômeno que Ludwig Raiser fala em “colcha de retalhos”, para aludir a disciplina, heterogênea e assistemática, da responsabilidade civil48. É algo fora de dúvida que os standards de responsabilidade variam. A construção, teórica e conceitual, de uma doutrina da responsabilidade civil contratual, tem evidentes limites operacionais. É inevitável uma dose de pensamento tópico, de construção caso a caso, de percepção concreta de diferenças e singularidades. Nesse aspecto, os princípios, por serem abertos e flexíveis, importam, enormemente, na solução dos conflitos. A definição da responsabilidade civil, em órbita contratual, dependerá, a rigor, menos das disposições contratuais do que das circunstâncias, concretamente configuradas, caracterizadoras de situações danosas cuja resposta normativa pode ser a responsabilidade civil, a bem do equilíbrio material. A responsabilidade civil contratual se “descontratualizou”. O contrato, na verdade, não é o paradigma precípuo da imputação da responsabilização. Claro, suas particularidades e disposições dimensionarão, em linha de princípio, os termos da discussão. Mas não são absolutos, peremptórios. Não são as cláusulas contratuais que ditarão o conteúdo material da relação jurídica contratual. Nessa trilha, perdeu significação a vontade, ainda que objetivada (Art. 112). O contrato não pode ser o reino do egoísmo, do puro interesse individual, sem pôr em grave risco a ordem social49. Portanto, mais do que conferir segurança à liberdade, o direito se preocupa em manter a relação materialmente equilibrada, sem distorções evidentes. Além das declarações de vontade, cabe tutelar a confiança e as expectativas legítimas socialmente estabelecidas. Vive-se, no cenário jurídico-doutrinário, uma re-análise dos pontos de partida. Uma teoria contratual, renovadas em seus valores, deve ter a Constituição como referência, e as demais normas como técnicas de operacionalização das opções valorativas básicas da Constituição. Não deixa de ser uma violência, simbolicamente grave, desprezar, em termos normativos, os valores fundamentais delineados, de forma clara, pela Constituição (CF, arts. 1º a 4º).

48 “Il futuro del diritto privato”. Il compito del diritto privato. Trad. Marta Graziadei. Milano: Giuffrè, 1990, p. 235. 49 Jorge Mosset Iturraspe, Justicia Contractual. Buenos Aires: Ediar, 1977, p. 79.

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Há, é claro, muito mais por dizer e por analisar. Nossa intenção foi propor enfoques, problematizando certos ângulos, de forma a evidenciar a importância rara que a hermenêutica vai desempenhar na construção do novo Código Civil50.

50 “A forma de realização da compreensão é a interpretação”. Hans-Georg Gadamer. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Rio de Janeiro: Vozes, 1998, 566.