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As panelas na telinha da TV A Cozinha Maravilhosa da Ofélia, o culinário televisivo na década de 1980 Amanda Tiemann Araújo 1 RESUMO A proposta central desta pesquisa consiste em realizar um estudo histórico do programa culinário A Cozinha Maravilhosa da Ofélia, buscando a compreensão das suas representações da dona de casa, como também entender como deu-se sua persistência durante três décadas, como único culinário de seu modelo televisivo nas redes de canal aberto. Busca-se também entender as relações entre cozinha e dona de casa, frente ao avanço do debate acerca dos direitos e liberdade da mulher, ao aumento de maior contingente de mulheres, principalmente da classe média urbana, ingressando no mercado de trabalho e diante da crise econômica no decorrer da década de 1980, gerando altos níveis de inflação e sucessivos arrochos salariais, corroendo o poder de compra da média dos orçamentos domésticos. PALAVRAS-CHAVE: culinário televisivo, dona de casa, cozinha, Ofélia Anunciato. INTRODUÇÃO Nos últimos anos a cozinha na televisão foi ampliada e transformada. A quantidade e a diversidade de programas culinários cresceram nas grades das emissoras, tantos os de produção nacional quanto os reexibidos ou versões de culinários norte- americanos e europeus, sejam em emissoras abertas, sejam em canais por assinatura; embora haja preponderância nestes últimos, inclusive a TV a cabo conta com canais exclusivamente dedicados à culinária. 1 Aluna Regular de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras - Campus Assis

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As panelas na telinha da TV – A Cozinha Maravilhosa da Ofélia, o culinário

televisivo na década de 1980

Amanda Tiemann Araújo1

RESUMO

A proposta central desta pesquisa consiste em realizar um estudo histórico do programa

culinário A Cozinha Maravilhosa da Ofélia, buscando a compreensão das suas

representações da dona de casa, como também entender como deu-se sua persistência

durante três décadas, como único culinário de seu modelo televisivo nas redes de canal

aberto. Busca-se também entender as relações entre cozinha e dona de casa, frente ao

avanço do debate acerca dos direitos e liberdade da mulher, ao aumento de maior

contingente de mulheres, principalmente da classe média urbana, ingressando no

mercado de trabalho e diante da crise econômica no decorrer da década de 1980,

gerando altos níveis de inflação e sucessivos arrochos salariais, corroendo o poder de

compra da média dos orçamentos domésticos.

PALAVRAS-CHAVE: culinário televisivo, dona de casa, cozinha, Ofélia Anunciato.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos a cozinha na televisão foi ampliada e transformada. A

quantidade e a diversidade de programas culinários cresceram nas grades das emissoras,

tantos os de produção nacional quanto os reexibidos ou versões de culinários norte-

americanos e europeus, sejam em emissoras abertas, sejam em canais por assinatura;

embora haja preponderância nestes últimos, inclusive a TV a cabo conta com canais

exclusivamente dedicados à culinária.

1 Aluna Regular de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UNIVERSIDADE

ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras - Campus

Assis

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Até os anos de 1990, a cozinha na TV brasileira era conduzida geralmente por

culinaristas, visando o público feminino, principalmente donas de casa, exibidos no

período da manhã ou na parte da tarde. Há mais de uma década, o protagonismo

feminino nos culinários televisivos brasileiros passou a ser dividido por chefs,

gastrônomos e cozinheiros, bem como por alguns atores ou personalidades masculinas

com pendores à cozinha, tornando-se dublês de culinaristas,o mesmo ocorrendo com

atrizes e destacadas profissionais mulheres em outras áreas. Seguindo tendência da TV

norte-americana, o público-alvo dos culinários no Brasil não está mais restrito às

mulheres, dado que homens e crianças são buscados como audiência, inclusive

programas do gênero já são produzidos privilegiando o público de ambos os segmentos.

Chefs, gastrônomos e culinaristas ou dublês destes, tanto mulheres quanto homens, ao

atuarem na TV ganham status de celebridade, concorrendo com atores, jornalistas e

apresentadores de programas de auditório.

A diversidade de formatos dos programas do gênero2 culinário exibida

atualmente pela TV brasileira, seguindo similares norte-americanos, pode ser notada no

enfoque em gastronomias/culinárias3 consideradas exóticas ou dietas especificas, na

mescla de cozinha com tour turístico, talk show,4, competições e reality show5.

Programas exibidos em vários horários da grade de programação das emissoras,

inclusive o noturno. Telejornais, programas infantis, desportivos, de saúde, rurais e

2 Gênero televisivo é um conjunto de características comuns que identificam programas de TV, estes

unidades de um todo, materializado na grade de programação de uma emissora.É classificado na

observação dos conteúdos, das técnicas de produção, estratégias de mercado e do público-alvo projetados

ao programa. O formato televisivo é identificado quanto à forma e ao tipo de produção que são

empregados a um gênero de programa, embora uma nomenclatura possa servir para definir formato ou

gênero, como, por exemplo, entrevistas. Um formato se associa a um gênero, assim como este se liga a

uma ou mais das seguintes categorias: entretenimento, informação e educação. Cf. Souza, 2004, p.22-54. 3Culinária é o cozinhar para o alimentar diário e cotidiano, mais própria do ambiente doméstico, ligada à

ordem do privado; gastronomia é o cozinhar para fruir, abrangendo um conjunto de teorias e práticas

dirigido à satisfação do alimentar-se em todas as suas possibilidades, notadamente empreendido por chefs

e executado em restaurantes. Cf. Oliveira, 2016, p. 255. 4O talk show é um formato televisivo produzido com o intuito de criar um espaço onde um indivíduo ou

um grupo de pessoas juntam-se a fim de discutir ou conversar sobre temas e eventos diversos, mediado

por um ou mais apresentadores, geralmente lembrando conversa informal. Cf. Souza, 2004, p.105-107. 5 O reality show constitui um formato televisivo onde os acontecimentos não são guiados por um roteiro

pré-estabelecido, mas, sim, por fatos reais e espontâneos emergidos no decorrer do programa, mas

amplamente editados pela equipe de produção, o que pode dota-los de sentidos diferentes aos que os

participantes projetaram e dar rumos ao desenrolar da competição ou ao cotidiano focalizado. Os

participantes são pessoas reais, comuns ou consideradas celebridades, e não personagens seguindo enredo

ficcional. Tende ao voyeurismo, baseado na ideia da TV como dispositivo de visão permanente e na

transformação das câmeras de TV em câmeras de vigilância. Cf. Souza (2004, p.109-111).

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revistas eletrônicas da televisão brasileira têm ampliado ou incorporado quadros

culinários em suas edições.

O aparente paradoxo do crescimento de programas culinários justamente quando

as pessoas dispõem cada vez menos de tempo para a cozinha, como demonstram o

aumento na oferta e vendas de pratos congelados industrializados e das redes de

fastfood6, pode ser compreendido com base em fatores históricos da alimentação

humana e a elementos culturais e midiáticos da sociedade atual.

Para além da necessidade de sobrevivência, a alimentação tem sido tratada pela

História pelo foco do fascínio que a preparação e modos de alimentação exercem nas

sociedades. Assim, a alimentação é caracterizada como mais um elemento simbólico de

manutenção e dinâmica de uma cultura, principalmente nos pratos típicos de regiões e

os de festividades religiosas, cívicas e sociais. O fascínio humano pelos modos de

alimentar-se e preparar a comida deve-se ao fato de as relações culturais entre homem e

alimento serem cruciais desde os primeiros registros de atividades da humanidade. Os

historiadores Montanari (2008), Armesto (2004) e Franco (1998) concordam que o

alimento se tornou cultura desde que o homem aprendeu maneiras de cozinhá-lo,

transformando-o em comida, logo, sem contentar-se com a forma dos alimentos como

providos pela natureza, e que o uso do fogo, em torno do qual se reunia o grupo, à

preparação do alimento estreitavam laços coletivos. No começo da humanidade, as

relações entre a alimentação e o coletivo estavam atreladas a questões de sobrevivência,

depois, à formação de diferentes civilizações, mais tarde, da nacionalidade, classe social

e ao gênero. Montanari (2008, p. 14) aponta também a escolha da comida como um

elemento constituidor de cultura:

Comida é cultura quando consumida, porque o homem,

embora podendo comer de tudo, ou talvez justamente por

isso, na verdade não come qualquer coisa, mas escolhe a

própria comida, com critérios ligados tanto às

dimensões econômicas e nutricionais do gesto quanto

aos valores simbólicos de que a própria comida se

6FastFood, em tradução livre "comida rápida", é um tipo de comida que pode ser preparada e servida de

forma rápida, geralmente alimentos gordurosos e calóricos. Comida encontrada em lanchonetes, muitas

das quais frequentemente integradas a redes franqueadoras, bem como em barracas, carrocinhas, trailers.

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reveste. Por meio de tais percursos, a comida se

apresenta como elemento decisivo da identidade humana

e como um dos mais eficazes instrumentos para

comunicá-la.

Carneiro (2005, p.72) aponta que os alimentos são capazes de revelar as

tradições de uma civilização/sociedade, desde a sua eficiência produtiva e reprodutiva

na obtenção, conservação e transporte dos gêneros de primeira necessidade e os de luxo,

até a natureza de suas representações políticas, religiosas e estéticas. Santos (2011,

p.110) aponta que a cozinha além de reproduzir e reafirmar vários aspectos da vida

social e coletiva, nela também se dá o intercâmbio entre diversos modos alimentares:

Há na cozinha a intimidade familiar, os investimentos

afetivos, simbólicos, estéticos, sociais e econômicos. A

cozinha se reafirma, portanto, como um espelho da

sociedade, um microcosmo da sociedade, uma imagem

da sociedade. Em vez de falar em cozinha, é melhor falar

em cozinhas, em suas pluraridades, porque elas mudam

e se transformam face às influências e aos intercâmbios

entre as populações, aos novos produtos e alimentos,

graças às condições sociais, às circulações de

mercadorias e aos novos hábitos e práticas alimentares.

De acordo com Santos (2005, p. 11), os alimentos não são apenas meros

alimentos, existe envolta do ato de se alimentar um contexto que vai desde o campo

nutricional ao campo histórico, comer é uma ação social, ela não implica somente nos

componentes benéficos que determinado alimento deve ter, o comer está ligado a

costumes, usos, condutas, tradições que são particulares de cada cultura ou classe social.

Retomando Montanari, Santos explica que há uma ritualidade no processo que

acompanha a comida desde seu cultivo, seleção e preparo, e acultura em um sentido

mais complexo molda toda uma seleção alimentar, e cria normas que proíbem ou

permitem alimentos de serem consumidos; atos que consistem em uma série de

idiossincrasias alimentares que fazem parte de uma cultura mercantilizada, assim, o

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consumo é tomado previamente nas estruturas sociais e se efetiva de acordo com a

renda, classe, gênero e estilos de vida. Nesta direção, Santos (2005, p.21) concluí que:

“Os hábitos e práticas alimentares de grupos sociais, práticas estas distantes ou recentes

que podem vir a constituírem-se em tradições culinárias, fazem, muitas vezes, com que

o indivíduo se considere inserido num contexto sociocultural que lhe outorga uma

identidade, reafirmada pela memória gustativa".

Voltado para a renovação dos estudos históricos sobre o político, Rémond (1996,

p. 449) iguala a alimentação à política como elemento de identificação de uma

coletividade: “O político é uma das expressões mais altas da identidade coletiva: um

povo se exprime tanto pela sua maneira de conceber, de praticar, de viver a política

tanto quanto por sua literatura, seu cinema e sua cozinha”. Em estudo histórico sobre a

cozinha na TV, Collins (2009, p.5) aponta que programas culinários televisivos se

constituem em ótimo barômetro social. Segundo a autora, estudos de culinários da TV,

além de permitirem conhecer visões sobre modos e hábitos alimentares de uma

sociedade em determinado momento, permitem conhecer e refletir sobre aspectos da

transição da mulher do lar para o mundo do trabalho formal, da transformação da

culinária como atividade doméstica à atividade de lazer, da passagem do cozinhar na e

pela TV como categoria de programa instrucional para a do entretimento.Com o passar

do tempo, o cozinhar, hábito que parte da cultura e tradicionalismo de cada sociedade,

passou a tema/assunto da mídia, desde o livro, passando pela impressa, cinema e rádio,

até a televisão. Ao veicular som e imagem no conforto do lar, a TV potencializaria a

mercantilização do tema/assunto alimentação/comida no âmbito da comunicação

social,não sem recursos a promover a espetacularização dele. Logicamente, coisa

possível pelo fato de a TV poder mais facilmente induzir seu público, no caso em tela, à

compra de ingredientes e utensílios para a preparação da comida e desta mesma, além

de lugares e espaços para o seu consumo.

O atual crescimento de culinários no vídeo pode ser explicado por elementos

culturais em desenvolvimento na sociedade. Primeiramente, há uma maior preocupação

das pessoas com a alimentação saudável, decorrente de certa desconfiança generalizada

dos alimentos processados industrialmente. Quadro que aumenta o interesse por

informações nutricionais e conhecimentos culinários, os quais a TV procura suprir em

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sua programação. Soma-se a isto a maior participação de homens na divisão do trabalho

doméstico com a mulher, com certa preferência deles pelos afazeres com as panelas,

como uma extensão do hábito de muitos deles se envolverem com a preparação de

alimentos para festividades ou como hobby, bem como é crescente número de homens,

assim como o de mulheres, que tem optado por morarem sozinhos, portanto, às voltas

com preocupações com sua alimentação. Situações que prendem aquele público mais

facilmente frente aos culinários televisivos. Historicamente agregadora da família e de

amizades, a mesa tem sido revalorizada por parte crescente da população dos grandes

centros, assim, se não no dia-a-dia, dado o pouco tempo para se dedicar às refeições

domésticas, a preparação de alimentos e as refeições compartilhadas são buscadas, ao

mesmo tempo, para reforçar laços de parentesco e sociabilidade para a fruição dos

convivas. Estes desejosos em conhecer e/ou oferecer variedades de pratos, acabam por

engrossar a audiência dos culinários (BUENO, 2016, p.63-65; REIS, 2015, p.11-21;

TUCHERMAN, 2010, p.314-323). Há uma particularidade brasileira em relação ao

fenômeno, qual seja: ampliação de possibilidades para novas incursões culinárias e

gastronômicas, principalmente entre pessoas da classe média, devido à maior

importação de alimentos e bebidas com preços relativamente acessíveis, dada certa

estabilidade econômica vivida pelo país nas últimas décadas; condição que eleva o

interesse do público em aprender preparar receitas ou consumir pratos que incluem

ingredientes pouco ou nada comuns na media das cozinhas.

Evidentemente, o aumento no número de culinários televisivos também se deu

por conta de fatores próprios ao universo televisivo. Primeiramente, deve-se considerar

que o avanço da tecnologia na produção dos conteúdos televisivos também chegou aos

culinários, melhorando a captação e geração de imagens dos alimentos e pratos, cada

vez mais esteticamente exibidos por enquadramentos bastante sofisticados das câmeras.

Expediente que ajuda seduzir e prender mais eficientemente a audiência. A adoção do

gênero culinário por formatos mais próprios à categoria do entretenimento, geralmente

os mais populares atualmente, como acima destacado, elevam a audiência e a

diversidade de público, além do chamariz que muitos dispõem por serem apresentados

por gastrônomos, chefs e nutricionistas renomados, bem como por personalidades da

mídia e demais espaços sociais. Sem desconsiderar que o sempre presente interesse

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publicitário com a TV também pesou para o fenômeno, uma vez que foi visto e vendido

como forma de ampliar a vitrine eletrônica a marcas de alimentos, bebidas, utensílios

domésticos e ao seu comércio (OLIVEIRA, 2016, p 245-246); inclusive, no caso do

Brasil, produtos importados passaram a patrocinar diversos culinários televisivos,

principalmente os da TV a cabo.

É preciso destacar que programas culinários brasileiros são um dos que mais

promovem a interface TV e internet. O detalhamento da receita em termos de porções e

procedimentos com ingredientes previamente exigidos à elaboração do prato, elementos

cruciais ao formato até há pouco tempo consagrado aos culinários, não são mais levados

à telinha da TV, posto se encontrarem disponíveis, como dito várias vezes durante as

diferentes edições, em sites dos programas hospedados nos portais de suas emissoras,

além de que muitos contam com plataformas móveis para a reprodução de seu conteúdo.

Mas, tal como no passado, os culinários televisivos nutrem a interface com o mercado

livreiro, uma vez que “estrelas” e “astros” atuais da cozinha na TV continuam

alimentando um antigo filão editorial, ou seja, o de livros de culinária e receitas,

inclusive quase sempre com obras na lista das mais vendidas.

Longe do cenário atual da programação culinária na TV, porém, não sem legar

elementos de forma ainda mantidos no gênero, relativizando em muito o caráter

inovador pretendido pelos seus produtores, como mostrado nos parágrafos abaixo, os

primeiros culinários televisivos surgiram na interface do mercado editorial dedicado à

culinária e programas femininos televisivos. Ambos os conteúdos compreendidos no

amplo processo de segmentação da mídia impressa, justamente iniciado, na segunda

metade do século XIX, para atender demandas instrucionais, informativas e, mesmo, de

entretenimento das mulheres, principalmente donas de casa; prática englobada pelas

mídias eletrônicas no século seguinte (MIRA, 2003, p.32-35). Nesta direção, a mídia

impressa reservava espaço em suas publicações de livros, jornais e revistas aos

interesses das mulheres em cuidar de si e do lar, assim, ao lado de temas como beleza,

moda, comportamento e cultura tinha-se o da culinária, posto que à mulher, no papel de

esposa e mãe, era atribuída a responsabilidade por atuar diretamente ou gerir o trabalho

na cozinha.

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As representações da mulher ligadas à mídia geralmente remetem a

hierarquias e costumes sociais, principalmente no Ocidente, pois é possível encontrar

raízes da estrutura histórico-social do papel da alimentação e o da mulher por conta de

suas ligações relativas à sobrevivência das famílias (SIQUEIRA, 1995, p.44). À mulher,

assim como ao homem, são atribuídos papéis sociais pré-estabelecidos, baseados na

ideologia machista. A ela se impõe a obrigatoriedade de ficar em casa cuidando do lar e

dos filhos, enquanto o marido trabalhava para prover o sustento doméstico, se

ocupando, entre tantas outras atividades, com o comprar, selecionar, administrar e

preparar a alimentação familiar, ou, dependendo da classe social da família, comandar o

trabalho para tanto. Apesar de alterações pontuais neste quadro no decorrer do século

XX, principalmente no após Segunda Guerra,manteve-se uma quase obrigatoriedade da

mulher com a cozinha pelo menos até os anos de 1970. Na década seguinte, o debate de

questões ligadas à emancipação da mulher em diversas áreas sociais, e principalmente a

ampliação do número de mulheres trabalhando fora de casa, levam a algumas mudanças

no papel social esperado e no campo do direito da mulher. Fenômeno que reflete nos

meios de comunicação, os quais procuraram atender às demandas da “nova mulher”.

Parte considerável dos produtos televisivos oitentistas voltados para o público feminino

inovou em conteúdos para atender aos novos padrões conquistados ou ainda

reivindicados pelas mulheres (PINSKY, 2013, p. 475-494). Contudo, os culinários

televisivos, naquela década, continuavam voltados quase que exclusivamente às donas

de casa. Ainda que programas do gênero pudessem considerar a jornada dupla do

trabalho feminino, eles seguiam ou reforçavam a visão social generalizada de

responsabilidade da mulher com a casa, sobretudo, a cozinha. Coisa em parte entendida

em razão de que a relação comida/ser humano e suas ordens sociais de gêneros serem

bem concretas e se manterem na longa duração e baseada na ideologia machista,

fixando-se na ordem de costumes e comportamentos,onde as alterações e mudanças

tendem a serem lentas.

Quantos dos primeiros avanços na operação da TV no Ocidente, logo após a

Segunda Guerra Mundial, os culinários televisivos eram quadros a compor programas

femininos, sendo que estes enfocavam iguais assuntos que há muito tempo a imprensa

dirigia às mulheres, o mesmo fizera o rádio, cuja programação feminina, oferecida

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desde a segunda metade dos anos 1920, contemplava culinários radiofônicos. Embora

os culinários da TV fossem produzidos com vistas a instruir e informar à dona de casa

no preparo da alimentação familiar, as receitas eram de pratos mais elaborados, dado as

telespectadoras pertencerem mais amplamente à classe média urbana, cujos domicílios

dispunham mais freqüentemente de televisores. Segmento social tomado, por produtores

de TV e anunciantes, como mais propícios a gostos considerados refinados.

Emissoras de TV, na Inglaterra e nos EUA, não demoraram em oferecer

programas culinários autônomos. A emissora pública BBC, em 1946, trazia ao vídeo

Cookery, apresentado pelo cozinheiro Philip Harben, com exibição semanal de dez

minutos cada edição. Quase década depois, exibia Chez Bon Viveur, conduzido pela

chef Fanny Cradock, a qual, conhecida pela sua coluna culinária em jornal desde 1950,

seguiria por mais de década divulgando a culinária francesa e pratos exóticos. Embora

os culinários da BBC fossem mais formatados à categoria educativa/instrucional, eles,

como tantos outros programas da emissora, não deixavam de lado o entretenimento,

geralmente contido no enfoque de curiosidades sobre alimentos, pratos e culinárias,

muitas vezes de origem estrangeira. Nos EUA, país cuja operação da TV se deu pela via

comercial, o primeiro culinário levado ao vídeo, também em 1946, foi I Love ToEat,

apresentado pelo chef James Beard, focado em receitas de pratos franceses e chineses.

Em 1948 e 1949, a CBS transmitia To The Queen’s Taste, conduzido pela inglesa Dione

Lucas, chef e proprietária de restaurantes, inclusive, o seu nova-iorquino Le Cordon

Bleu servia de cenário às edições do seu programa, exibido ao vivo. Na década de 1950,

a chef inglesa conduziria ainda Dione Lucas Show, porém, exibido na grade da

programação noturna, aliás, como fariam depois alguns dos seus concorrentes. Mudança

que assinala a busca em ampliar a audiência dos culinários, visando, além da atenção da

típica telespectadora do gênero, a de mulheres que começavam a trabalhar fora de casa,

bem como homens e demais membros do lar, rumo à interface entre programa de gênero

feminino para gênero familiar (COLLINS, 2009, p. 25-35).

Dentro desde quadro surgiria um culinário televisivo que se tornaria um ícone

do gênero nos EUA. Tratava-se do The French Chef, conduzido por Julia Child, que

exibido pela WGBH, emissora pública de Boston e retransmitido por várias partes do

país pela rede pública PBS. Curiosamente, o programa de Child foi pensado a partir de

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aparição dela na telinha para divulgar seu primeiro livro de culinária francesa, dado ter

causado boa impressão ao público em geral e a curiosidade deste em vê-la em ação. O

culinário dela permaneceu no vídeo no período 1963-1973, tornando a cozinha francesa

mais conhecida dos norte-americanos. Ainda que tivesse formação de chef, Child

apresentava as receitas de maneira menos formal dos que suas antecessoras ou mesmo

contemporâneas, com direito a pequenos e calculados erros, chistes, caras e bocas

(COLLINS, 2009, p.40-55). Estava aberto o caminho para que os culinários televisivos

transitassem em via dupla: a instrucional/educativa e a do entretenimento; coisa que

geraria mais audiência e avançaria exponencialmente a partir dos anos 1990, processo

com liderança dos culinários televisivos norte-americanos.

Contudo, na década de 1980 e na seguinte, o número de chefs e gastrônomos

homens à frente de culinários na TV era superior ao de mulheres no desempenho de

iguais profissões7. Ainda mantido e bem mais frequente na TV brasileira a partir dos

anos 2000, tal quadro pode ser explicado em termos de que os culinários apresentados

por homens que tiram seu sustento da gastronomia, geralmente com carreira de sucesso,

servem, ao mesmo tempo, para reforçar o caráter de entretenimento ao gênero,

apresentando conteúdos distantes da realidade das refeições diárias e, assim, nutrindo

experiências de fruição como desejada por parte da audiência, e para ampliar ainda mais

a audiência entre o público masculino. Situação que, além de ampliar o leque de

produtos e marcas a serem consumidos pelos telespectadores, atendendo aos interesses

dos anunciantes, contribuía, em parte, a desexualizar o ato de cozinhar. Composição

televisiva a reproduzir diferenças no trabalho de homens e mulheres na cozinha

profissional. Como aponta Romanelli (2006, p.334), a adesão dos homens à arte de

cozinhar mostra que eles a exercem em ocasiões especiais ou em grandes restaurantes

com preparo requintado, ficando o preparo de alimentos e refeições no cotidiano uma

tarefa feminina; enfim, situação que garante ao homem conviver com a cozinha sem

perder sua masculinidade. Collaço (2008, p.145) considera a participação feminina

bastante considerável, porém: "A cozinha de todo dia, considerada uma tarefa quase que

obrigatoriamente feminina, estendeu-se ao universo das relações de trabalho.

Restaurantes de caráter mais popular para atender refeições cotidianas incorporam

7Segundo observação dos poucos dados sobre programas culinários contidos no site oficial da PBS, rede

publica de TV operada nos Estados Unidos, e no da BBC, atuante no Reino Unido.

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maior número de mulheres, ao contrário de restaurantes que servem refeições mais

elaboradas, onde a maioria dos chefs é masculina".

A televisão brasileira, com emissões regulares iniciadas em 1950, mediante

inauguração da TV Tupi, de São Paulo, restringiu também a culinária a programas

femininos durante sua primeira fase de operação. Com o funcionamento de mais

emissoras ao longo dos anos 1950 e 1960, principalmente no eixo São Paulo e Rio de

Janeiro, a oferta de femininos cresceu no vídeo, exibidos na parte da tarde. Sempre

voltados ao molde de mulher padrão e pré-estabelecido pela sociedade, eram programas

que buscavam ensinar como agir e o que fazer para ser a mulher ideal, que exercia seu

papel de esposa, mãe e dona de casa.8Nem sempre a culinária contava com quadro fixo

nos programas femininos, sendo Revista Feminina, exibido pela TV Tupi, ocupado com

moda, arte, divulgação de eventos culturais, assuntos médicos, entre outros, o primeiro a

abrir espaço para um quadro de culinária, sob a condução da culinarista Ofélia

Anunciato, a qual permaneceu no posto entre 1958 e 1968.

Quando do seu inicio em Revista Feminina, Ofélia já era uma veterana no ramo

culinário e não era propriamente uma caloura na televisão. Com interesse e prática na

cozinha desde a infância, ela ainda jovem se tornara conhecida no meio culinário, o que

lhe possibilitou assinar coluna sobre culinária no jornal Tribuna de Santos, atividade

que a levou a estrear programa de culinária na TV Santos, afiliada da TV Paulista, na

primeira metade do ano de 1958. Coisa possível após ela impressionar no vídeo ao

ensinar uma receita de tender à Califórnia, prato ainda muito pouco usual no cardápio

brasileiro de festas de final de ano, considerado refinado à época; informação que dá

pistas sobre a origem social da então típica telespectadora de culinários. Em 1968, a

culinarista passava a conduzir programa próprio, intitulado de A Cozinha Maravilhosa

da Ofélia e exibido pela TV Bandeirantes, emissora paulistana, então, recém-inaugurada

e de propriedade de João Saad. Ofélia manteve-se à frente de seu programa, sempre

exibido com o mesmo nome e pela mesma emissora, até 1998, ano do seu falecimento;

8Neste quadro ganha destaque O Mundo É das Mulheres, pioneiro no gênero, lançado em 1955 pela TV

Record, de São Paulo, e apresentado por Hebe Camargo; seguido, logo depois, por Clube do Lar,

conduzido por Jane Batista, na TV Paulista; Cinco Pras Cinco, com Ilka Soares e Lídia Matos, e

Consultório Sentimental, ambos exibidos pela TV Rio; Boa Tarde, com Edna Savaget, na carioca TV

Continental;Chá das Cinco, apresentado por Azziza Perligeiro, e Revista Feminina, com Mariza Thereza

Gregori, respectivamente, veiculados pela Tupi carioca e a paulistana.

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entrando para história da TV brasileira como o culinário por mais tempo exibido, o que,

por certo, ajudou as boas vendas dos 14 livros de culinária da autoria de Ofélia.

O programa de Ofélia foi projetado e se manteve sempre como um culinário

formato para o instrucional, onde o passo a passo da receita didaticamente apresentado é

valorizado, com roteiro centrado nos procedimentos desenrolado na bancada de

preparação dos alimentos, disposta em cenário reproduzindo uma cozinha. Seu formato

focalizava Ofélia sempre em primeiro plano, exibindo as habilidades dela com as

receitas. Sua exibição era diária, no horário da manhã, o que evidencia o seu público-

alvo: donas de casa que não trabalhassem fora do lar. Contingente significativo de

mulheres, principalmente nas famílias de classe média, nas primeiras duas décadas de

existência da televisão no Brasil, mas com crescente diminuição nas décadas de 1980 e

1990. Porém, fenômeno demográfico não suficiente para que A Cozinha Maravilhosa

da Ofélia deixasse de ser produzida naquelas duas décadas.

O culinário televisivo de Ofélia resistiu à concorrência de vários congêneres que

se revezavam em diferentes emissoras - quase todos tendo A Cozinha Maravilhosa da

Ofélia como modelo de formato - e mesmo às pontuais inovações do gênero. A própria

TV Bandeirantes se destacou neste papel. Em 1971, a emissora inovava duplamente ao

exibir o semanal Zeloni Forno e Fogão, primeiro culinário televisivo a ser conduzido

por um homem e um ator, Otello Zeloni; programa findado em 1973 com a morte do

apresentador. Uma década depois, levava ao ar o culinário Silvio Lancellotti, homônimo

ao do jornalista e gastrônomo que o apresentava, cuja formação na área lhe propiciara

um programa mais voltado à gastronomia, assim como, aliás, seus muitos livros de

receitas, mas, o apresentador recheava de entrevistas as edições de seu programa,

realizadas enquanto elaborava os pratos. O elemento masculino exibido em A Cozinha

Maravilhosa da Ofélia ficava por conta da participação eventual de renomados mestres

da culinária ou chefs, como, por exemplo, Luciano Boseggia, Sergio Arno, Alencar de

Souza, Manuel Andrade, Mao Hun Tseng, entre muitos outros. Expediente que, de certa

maneira, reforçava a visão generalizada de que receitas refinadas eram próprias de

homens no desempenho dos papéis de chef ou gastrônomo.

A produção de A Cozinha Maravilhosa da Ofélia quase nada recorria a

elementos de entretenimento, quando muito exibia um bate-papo da culinarista com

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convidados, procurando, assim, manter o caráter instrucional do programa e o

atendimento às demandas culinárias de seu típico público. E mesmo na década de 1980,

quando as mulheres se viam às voltas pela efetivação de seus direitos e liberdades, o

culinário de Ofélia continuou com a mesma orientação e formato adotados desde o seu

início; embora ao longo dos anos pudesse ter incorporado algumas pontuais alterações

no cenário e roteiro. Mas foi, também, na década de 1980 que A Maravilhosa Cozinha

passou a ser assistida em diversas regiões do país, uma vez que a TV Bandeirantes

passava a funcionar como cabeça de rede, ou seja, sede produtora de conteúdo

retransmitido por emissoras próprias ou afiliadas espalhadas pelo Brasil. Coisa possível

à emissora da família Saad, assim como demais outras, por conta dos bons resultados

colhidos na busca pelo aperfeiçoamento da qualidade técnica das transmissões

televisivas, processo que, iniciado com o regime militar, se deu mediante participação e

incentivos de órgãos oficiais da área de telecomunicações, extensivos também a busca

por mais profissionalismo na produção de conteúdos e ao crescimento de domicílios

com televisores (MATTOS, 2002, p. 78-162). Contudo, a Rede Globo de Televisão

recebia tratamento privilegiado, dada a sua proximidade com a ditadura militar.

Posicionamento que a possibilitou, em muito, a instituição do seu chamado “Padrão

Globo de Qualidade”, isto é, um conjunto de regras a guiar as operações televisivas da

rede e buscar modernizar a estrutura e dinâmica da produção de conteúdos, elevando

tanto o nível quanto a estética deles. Quadro que em operação serviu como uma barreira

à concorrência mais firme de outras redes, pois, ao mesmo tempo, gerava mais

audiência à rede de Roberto Marinho e justificava o direcionamento de mais benefícios

oficiais a ela, o que, por décadas, garantiu a Globo posição quase hegemônica no ramo

televisivo brasileiro (BUCCI, p. 236-237). E foi na operação do seu padrão de qualidade

que a Globo modernizaria o gênero feminino na TV brasileira.

Se, de um lado, a proximidade da Rede Globo à ditadura militar resultava num

jornalismo político submetido aos ditames daquele regime, o que significava, entre o

final da década de 1970 e parte da seguinte, não focar ou muito pouco focar, conforme

as circunstâncias e os interesses dos governos militares, manifestos e ações de entidades

profissionais, religiosas, culturais e midiáticas em prol da retomada da democracia na

vida política nacional, as greves de trabalhadores frente à constante política de arrocho

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salarial, principalmente as dos metalúrgicos do ABC paulista, as reivindicações

doschamados “novos movimentos sociais”, compreendendo, entre outros, associações

de bairros e clubes de mães, organizados em torno da conquista de melhorias na

periferia urbana e contra a carestia de preços da cesta básica, dados os altos índices

inflacionários, bem como comícios da Campanha das Diretas Já. De outro lado, a

direção da Rede Globo não impediu que programas de entretenimento ou mesmo alguns

jornalísticos enfocassem questões sociais, culturais e de comportamento debatidas pela

sociedade brasileira da época; o que, por vezes, gerou alguma tensão pontual da rede

com governantes da ditadura militar, porém, nada que realmente ameaçasse à concessão

televisiva de Marinho (BUSETTO, 2010, 170-173). Foi assim que a Rede Globo

lançava em abril de 1980, e manteria no vídeo por mais seis anos, o feminino matinal e

diário TV Mulher, voltado para novas demandas das mulheres, mesmo as donas de casa,

enfocando, assim, temas como direito da mulher, seu posicionamento em relação à

sociedade e seu lugar no mundo profissional. O programa integrava vários quadros,

sendo alguns deles inovadores para o gênero - “Serviço de Proteção às

Telespectadoras”, “Direito da Mulher”, “Bolsa de Mercadorias”, “Comportamento

Sexual”, “Turismo” e “TV Homem”-, outros constante em femininos televisivos desde

os anos 1950 - como estética, moda, saúde e culinária, além de entrevistas.

O quadro culinário do TV Mulher era intitulado “Panela no Fogo” e apresentado

pela jornalista Marilu Torres Travesso. Inicialmente, ela trazia ao vídeo receitas dos

principais restaurantes de São Paulo, portanto, dando ao quadro uma feição mais

gastronômica. Depois, inclusive a pedidos de telespectadoras, o quadro passou a enfocar

receitas de pratos mais populares e do dia-a-dia, mediante a apresentação do passo a

passo de como cozinhá-lo9; enfim, a direção do programa percebia os limites de

inovação, dada que a audiência era grandemente de donas de casa que não trabalhavam

fora do lar, coisa possível até pelo horário de exibição do programa. Em termos de

cozinha, as telespectadoras do TV Mulher preferiam um quadro de culinária ao invés de

gastronomia, muito provavelmente demandavam por receitas mais rápidas e práticas

que pudessem ser executadas no preparo cotidiano da alimentação familiar, bem como

fossem economicamente viáveis à média dos orçamentos domésticos, corroídos pela

9 Segundo informação contida no site http://www.memoriaglobo.globo.com; acessado em 20/10/2016.

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política salarial de arrocho e alta inflação. Enfim, elas talvez esperassem um quadro

culinário no TV Mulher aos moldes de A Cozinha Maravilhosa da Ofélia, o que permite

entender, em grande parte, a tão prolongada exibição do programa da culinarista. É

possível cogitar que o formato e o conteúdo do culinário de Ofélia estavam mais

afinados às demandas das donas de casa frente à necessidade de equacionar nível de

alimentação e o cada vez mais aviltado orçamento doméstico, situação somente

revertida a partir da segunda metade da década de 1990, além de se verem com a visão

social generalizada da obrigatoriedade da mulher com a cozinha do lar, mesmo quando

trabalhando fora dele. E não foi por acaso que as donas de casa foram chamadas a

atuarem como “fiscais do Sarney”, isto é, a fiscalizarem supermercados que, assim

como a indústria, promoviam o desabastecimento de alimentos e demais produtos da

cesta básica em reação à política de congelamento dos preços implantada, em 1986,

pelo Plano Cruzado, durante a presidência de Sarney (RODRIGUES, 1999, p. 37).

FINALIDADES

Esta proposta tem como objetivo central a análise histórica de edições do

culinário televisivo A Cozinha Maravilhosa da Ofélia exibidas na década de 1980.

Busca-se conhecer e compreender historicamente quais representações sobre a relação

cozinha e dona de casa, em momento em que esta se via ainda envolta pela visão

generalizada de que a preparação da alimentação familiar era de sua obrigação,

justamente quando o Brasil, ao mesmo tempo, vivia séria crise econômica, resultando

em arrochos salariais, e altos índices de inflação, aviltando o valor de compra da renda

familiar, e experimentava o crescimento do debate e algumas alterações no que dizia

respeito aos direitos e à liberdade da mulher.

Objetivo que exige o conhecimento e análise os seguintes elementos de

produção e exibição de A Cozinha Maravilhosa da Ofélia:o posicionamento do

programa na grade de programação da TV Bandeirantes durante a década de 1980, bem

como o espaço dirigido ao gênero culinário na televisão brasileira no período;horário de

exibição e duração das edições;agentes envolvidos na concepção, direção e execução do

programa, inclusive a participação de assistente da culinarista no vídeo; a existência de

equipe de pesquisa para a apresentação do conteúdo culinário; recursos tecnológicos na

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geração dos audiovisuais, os enquadramentos das câmeras; receitas apresentadas, tanto a

recorrência das dedicadas a pratos tradicionais da cozinha brasileira, e sua

regionalidade, e a estrangeira quanto das voltadas para novos pratos ou adaptações

daqueles há muito tempo conhecidos, bem como comentários, observações e dicas da

culinaristas sobre a aquisição, preparo dos pratos, de alternativas para substituir

ingredientes de receitas originais; edições especiais, notadamente as que antecediam

períodos de festividade, ou mesmo as comemorativas; a participação de convidados e de

profissionais da cozinha;vinhetas e chamadas do programa; formas de tratamento das

telespectadoras por parte da culinarista; inserções de merchandising nas edições do

programa e a relação deste com a publicidade de alimentos, utensílios domésticos e

comércio de alimentação; interfaces com o mundo culinário e gastronômico, as outras

mídias e bens ocupados com a culinária; a divulgação e avaliação do programa em

outras mídias, principalmente a impressa; quando possível; dados de audiência

levantados por instituto de opinião pública e, quando possível, recepção pelo público do

programa, como cartas enviadas a culinarista.

CONCLUSÃO

Assim, nossa proposta de pesquisa sobre o culinário televisivo A Cozinha

Maravilhosa da Ofélia se justifica, para além do conhecimento de algumas

representações da TV brasileira sobre hábitos e modas alimentares, em razão de que o

programa pode ser entendido e tomado, ao mesmo tempo, como objeto e fonte que

permite conhecer e compreender representações televisivas sobre as relações entre

cozinha e dona de casa. Relações que ganham relevância social e, mesmo, política

quando se tem em conta que desenvolvidas num período que apesar o crescimento do

debate sobre direitos e liberdade da mulher, as chamadas donas de casa, mesmo quando

trabalhando fora do lar, se viam envoltas com a quase obrigação do preparo diário da

alimentação familiar, além de terem que conciliar a alimentação necessária às suas

famílias com orçamentos domésticos cada vez mais aviltados, em decorrência da crise

econômica e inflação alta reinantes no Brasil dos anos 1980. Enfim, uma análise

histórica do programa culinário de Ofélia pode fornecer pontuais subsídios ao

conhecimento tanto da história da mulher brasileira, especificamente a no desempenho

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dela no papel de dona de casa, e da alimentação nacional, notadamente da classe média

urbana, quanto da história da TV no Brasil em termos da estrutura e dinâmica do gênero

televisivo culinário. Este tão antigo na mídia, quanto de interesse permanente do

público, mas ainda nada enfocado pelos estudos históricos desenvolvidos no Brasil.

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