a religião mesopotâmica entre o relativo e o absoluto

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  • 7/26/2019 A Religio Mesopotmica Entre o Relativo e o Absoluto

    1/11

    A RE L I GI O

    M E S O P O T M I C A :

    E N T R E O R E L A T IV O E O A B S O L U T O

    Francisco Caramelo

    A religio mesopotmica certamente uma designao demasiado

    genrica para traduzir o caracter heterogneo das suas prticas, das crenas e

    das concepes teolgicas que a definem. No devemos desprezar a ampli

    tude geogrfica e cronolgica que suporta a realidade cultural mesopot

    mica. Mau grado as convergncias e similitudes que podemos observar, as

    generalizaes devem ser evitadas. Na verdade, a religio sumria tem

    caractersticas distintas da religio dos semitas; a evoluo da religio

    mesopotmica na diacronia deve ser considerada; a sensibilidade religiosa

    dos assrios diferente da dos babilnios. prudente, por conseguinte, evitar

    pensar a religio mesopotmica como se constitusse uma realidade uniforme

    e inaltervel ao longo de aproximadamente trs milnios. A religio mesopo

    tmica reflecte, pois, a dinmica das crenas e das prticas rituais, bem como

    as diferentes sensibilidades que a caracterizam.

    A religio mesopotmica no tem cnone e no apresenta uma teologia

    sustentada por dogmas. Trata-se, pelo contrrio, de uma teologia difusa, que

    se manifesta em expresses locais e que se traduz num sincretismo religioso

    que a toma uma religio inclusiva e no exclusiva. A ausncia de um cnone

    dificulta a compreenso sistemtica da sua teologia. Encontramo-la difusa na

    literatura, sobretudo de cariz religioso, como a hinologia. Os hinos e as ora

    es,

    produzidos num ambiente literrio, muitos deles encomendados ou

    dedicados ao rei, expressam essa teologia e a profunda religiosidade do

    homem mesopotmico.

    Revista da aculdade deSociaise Humanas,n.

    19, Lisboa, Edies Colibri,

    2007,pp. 165-175.

  • 7/26/2019 A Religio Mesopotmica Entre o Relativo e o Absoluto

    2/11

    166 Francisco Caramelo

    O Hino dedicado a Assur, por

    AssurbanpaP,

    um exemplo desta litera

    tura de contedo teolgico. A Assria era, nesta poca^, um estado com uma

    poltica expansionista. Os esteretipos

    freqentemente

    associados cultura e

    idiossincrasia assrias escondem, aos olhos do sujeito contemporneo, a

    sensibilidade religiosa do homem assrio, a qual deve ser compreendida na

    sua hermenutica interna e no na dependncia de paradigmas actuais.

    A nossa p roposta de anlise parte da traduo do texto, directam ente do

    acdico^, e procura extrair aspectos do pensamento teolgico assrio.

    1.

    O mu ito grande, o proeminen te entre os deuses, o que sabe tudo;

    2.

    O venervel, o notvel, o Enlil dos deuses, o que decreta os

    destinos.

    3 .

    A ssur, o grande senhor, o que sabe tud o;

    4. O ven erve l, o notv el, o Enlil dos deu ses, o que decreta os

    destinos.

    5.

    Que eu enaltea Assur, o todo-poderoso , o proem inente entre os

    deuses, o senhor dos pases.

    6. Que eu exalte a sua grandeza e to m e espln dido o seu louvor.

    7. Qu e eu exalte a reputa o de Assur e enaltea o seu nom e.

    8. Qu e eu tom e esplnd ido o louvor do deus que habita no

    .HUR.SAG.GAL.KUR.KUR.RAl

    9. Que eu invoque o todo-po deroso e louve o seu hero sm o.

    10/11.Paramostrar ao mundo^ que h-de vir'', que eu revele o deus que

    habita o

    .SR.RA ,

    Assur, o que d ecreta os desfinos.

    12. Que eu fixe a sua mem ria para que a posteridade a possa escutar.

    13 .

    Qu e eu enaltea o senhorio de Assur para sem pre:

    14 . O com peten te, de vasto entend ime nto, sbio^ dos deu ses, nob re.

    Assurbanpal foi o ltimo grande rei da Assria (668-627 a.C). A datao relativa ao final

    do seu reinado discutvel, correspondendo a um perodo obscuro sobre o qual no pos

    sumos muitos dados.

    2 Este perodo, grosso modo entre o sc. X a.C. e o sc. VII a.C., corresponde ao perodo

    neo-assrio, poca em que a Assria constitui a potncia dominante e hegemnica no

    Mdio Oriente antigo, desde a Mesopotmia eElam (sudoeste do Iro) at ao Egipto.

    3 Trata-se do texto K 3258, cuja verso transliterada se encontra em Alasdair Livingstone,

    Court Poetry and Literary M iscellanea,Helsinki, Helsinki University Press, 1989, pp. 4-6.

    ^

    Trata-se da capela de

    Aur

    no ESarra, o templo principal de

    Aur.

    5O verbo kullumum (D) significa mostrar, exibir. Vd. CDA, p . 166.

    6Trata-se de

    adntu,umplurale tantum.

    Vd.

    CDA,

    p. 5.

    ^Traduzimos assim aharris, um advrbio, que exprime a idia de fiituro.

    8 o templo principal de

    Aur.

    9

    Trata-se de apkallu, um sbio ante-diluviano.

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    A Religio Mesopotmica: Entre o Relativo e o Absoluto

    167

    15.

    16.

    17.

    18.

    19.

    20.

    21.

    22

    23

    24

    25.

    26.

    27.

    28.

    29.

    30.

    31.

    32.

    33.

    34.

    35.

    36.

    37.

    38.

    39.

    40.

    41.

    [...]

    criador (das criaturas)

    do cu e da

    terra, aquele

    que d

    forma

    s montanhas,

    [...]

    criador dos deuses, aquele que cria

    Istar,

    corao insondvel, entendimento engenhoso,

    eminente, cuja reputao

    temida.

    [...] do seu[...jAssur,cuja ordem chega longe,

    [...] cuja fundao, tal como uma montanha, no pode ser

    abalada.

    [...] talcomo o queest escrito no cu, nonegligenciaotempo

    prprio.

    Cuja palavra no podeseralterada, cuja ordem permanece firme.

    [...]cuja fundao,talcomo uma montanha, no pode serabalada.

    [...] tal

    como

    o que

    est escrito

    no cu, no

    negligencia

    o

    tempo

    prprio.

    [...] a tua palavrapronunciada desdeosprimeiros tempos.

    [...]nem um deus compreendeatua grandeza,Assur.

    A razo dos planos da tua grandeza nocompreendida.

    [...]um deus no compreende[...]

    a tua[...] arazo[...]da tua [...]nocom preendida .

    [

    [

    [

    [

    [

    [

    [

    [

    [

    cujo ataqueirresistvel.

    que fende montanhas

    que confianasua prpria fora

    que destruiuassuas moradas.

    cujas armas[...]

    o que aniquilou Anz^

    combate

    derrota

    magnfico

    montanhas,

    teui2

    [lacuna]

    Rev.

    2 [...]queoteu^^[...] seja dito [...]

    3

    [...]queeleno abandone

    O Podemos depreenderosentido porquesetratadeuma repetio.

    11Sermitolgico. Tinha o aspectode umaguiacomcabeade leoe simbolizava o caos

    que ameaavaaordem instaurada pelos deuses primordiais.

    12 Outua.

    13 Outua.

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    4/11

    168 Francisco Caramelo

    4

    Pela manh, que ele planeie o bem para ti; noite, que ele

    pronuncie [...]

    5 [...JAssur [...]

    6 Anu , Enlil ,

    Ea^^, Belet-ifii^

    e

    M ullissu^^

    7 reverenciaram a autoridade de Assur na corte da assemblia dos

    deuses.

    8 Ordena ram que Assurban pal, ogovemador' de Assur, providen

    ciasse, ele sozinho (o culto).

    9 Entre os filhos e bisne tos, nos dias que ho -de vir,

    10

    durante os longos reinados, por anos incontveis,

    i r que o louvor de Assu r no seja olvid ado ; que ele seja recorda do

    no Esarra.

    12 Que seja incessantemente dito, que (te) abra o entendimento

    13

    tal como fez comigo; Assur confiar-te- o domnio sobre o pas e

    sobre o povo.

    14

    A palavra de Assur gloriosa; grandiosa a sua divindade.

    15

    Louvor de Assur, senhor dos senhores, heri. benfazejo.

    Assur o deus principal na religio assria. Numa perspectiva historio-

    grfica mais convencional, a qual encontra decerto um maior enraizamento

    na religiosidade assria, os assrios apreendiam o divino de uma forma plural,

    semelhana dos seus coetneos. No obstante essa religiosidade

    prevalecente, os crculos mais restritos, as elites intelectuais e religiosas, que

    se exprimem na literatura, designadamente hinos e oraes que chegaram at

    ns,

    parecem transparecer, pelo menos, uma religiosidade paralela em que se

    deixa intuir a unidade do divino.

    Nesse sentido, este hino, dedicado por Assurbanpal a Assur, constituir

    uma expresso teolgica dessa sensibilidade religiosa. Aos nossos olhos,

    essa expresso parecer mergulhada numa certa

    ambigidade,

    uma vez que

    incorpora aspectos de pluralidade e aspectos em que se intui a unidade do

    divino. No entanto, esta aparente ambigidade apenas traduz a lenta matu

    rao da

    idia

    de deus entre os assrios e uma sensibilidade religiosa inclu

    siva que ad mite a convivncia e a coexistncia de percep es teolgicas no

    coincidentes.

    14 Anu, Enlil e Ea, deuses assim ilados da religio sum ria, constituam uma trade

    estruturante na religio mesopotmica.

    15 Deusa de origem sumria, ligada criao e identificada com o tero, a quem os deuses

    pediram para gerar a humanidade.

    16 Era a esposa de Asur.

    1

    Trata-se de sakkanakkum.

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    A Religio Mesopotmica: Entre o Relativo e o Absoluto 169

    O hino, expresso das elites intelectuais e religiosas, reflecte o conceito

    de divindade, algo instvel aos nossos olhos, numa linguagem que se assume

    potica e talvez catacrtica, eventualmente a nica possvel no discurso teo

    lgico entre os assrios, na ausncia de um argumentrio que nos soaria mais

    familiar se fosse caracterizad o p or uma lgica rac ionalista.

    A poesia assume-se, pois, como uma forma privilegiada de discursi

    vidade teolgica. A nossa proposta de anlise, partindo da traduo do hino,

    procura explorar as principais reas de definio conceptual da divindade, o

    que, inevitavelmente, nos conduz no sentido de uma abordagem semntica.

    Identificmos qua tro reas de definio, as quais consistem em

    topoi

    diferen

    tes, ainda que complementares.

    L

    topos

    dos eptetos

    O hino contm vrios eptetos, que so atribudos a Assur, e que procu

    ram traduzir a grandeza incomensurvel do deus. Chamamos-lhes eptetos

    superlativos porque se destinam a exaltar a divindade, exprimindo o seu

    caracter remoto, incomparvel e sobretudo nico.

    1.1. surbm - o muito grande. No se vislumbra aqui a noo de infi

    nito mas a grandeza de Assur um dos seus atributos, implicita

    mente incomparvel.

    1.2. etel DINGIR.MES - o proeminente entre os deuses. Este epteto

    reflecte a condio de Assur, acima de todos os outros. No se

    trata, pois, de um deus nico, no sentido em que no existem

    outros, mas que, porventura, ser nico na sua natureza, nos seus

    atributos. Este epteto traduz, provavelmente, uma lgica de

    compreenso do divino que se apoia num paradigma, porventura

    mais prximo e contguo, que o da realeza humana. Era natural,

    pois, que a divindade principal fosse idealizada como um rei que

    presidia sobre a assemblia divina. Nesse sentido, encontramos,

    embora no neste hino, eptetos como LUGAL kissat DFNGIR.MES,

    que exprimem o seu estatuto como rei da totalidade dos

    deusesi^

    A ind a assim, pode mo s ler na linha 7 que os deuses primo rdiais

    reverenciaram a sua autoridade na corte da assemblia dos deuses.

    N a linha 1 5 , lemos um outro ep teto que vai em sentido

    semelhante: bl EN.MES - senhor dos senhores. Na linha 13,

    podemos ler que eu enaltea o senhorio de Assur para sempre.

    Todas estes eptetos confirmam o estatuto inigualvel de Assur,

    usando como paradigma a prpria corte e a hierarquia social que

    lhe est associada. Por fim, na linha 2, podemos encontrar um

    18

    Vd. SAA 12, 86.

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    Francisco Caramelo

    epteto que tem um profundo significado teolgico: Enlil dos deu

    ses.

    A referncia a Enlil dever ter dois sentidos. Por um lado,

    podemos estar perante um fenmeno de sincretismo religioso e de

    identificao teolgica entre os dois deuses; por outro lado, a alu

    so a Enlil tem um efeito argumentativo e retrico, na medida em

    que refora o papel e a importncia de Assur na

    assemblia

    divina.

    1.3. Encontramos eptetos com as mesmas caractersticas como kabtum

    - o venervel, stuqum - notvel e

    lem

    - competente que

    se destinam a destacar a natureza incomparvel de Assur. Outros

    reforam o seu estatuto, diramos social, em relao aos restantes:

    et[lu mutlell - eminente (linha 18); muttallu - nobre (linha

    14).

    Dentro desta categoria de anlise, podemos tambm considerar o que

    classificamos como eptetos funcionais. Entendemos por eptetos funcionais

    aqueles que caracterizam Assur, atribuindo-lhe funes que s ele pode ter e

    que,

    por essa razo, o configuram como nico.

    1.4. bl matti - o senhor dos pases. Este epteto define Assur como

    um deus cuja soberania universal. Nesse sentido, estabelece-se

    um programa e compete ao rei terreno concretizar, em nome da

    divindade, esse domnio sobre todas as terras. O mundo pertence,

    por direito, a Assur e ao rei assrio, que o sar matti, isto , o rei

    dos pases.

    1.5. musim simat - o que decreta (ou determina) os destinos. Nor

    malmente, esta funo est associada ao deus principal e demiurgo;

    assim que acontece no Enuma

    elish^ ^.

    Este pod er exercido

    sobre a humanidade, mas tambm sobre os deuses. Ter esta funo

    significa, por conseguinte, ter um ascendente sobre todos os outros

    deuses.

    2 .

    O

    topos

    d a c r i ao

    Espera-se, certamente, que uma das esferas semnticas associadas ao

    deus seja a que respeita ao processo demirgico e sua caracterizao como

    divindade criadora. Nesse sentido, o hino sugere diversos atributos de Assur.

    2.1 .

    criador das criaturas do cu e da terra.

    O

    recurso ao merisma

    reflecte o estatuto de Assur como criador de todas as criaturas, o

    criador de tudo quanto existe. O verbo banm traduz, do ponto de

    vista semnfico, a

    idia

    de criar, de formar, de con struir.

    19Poema babilnico da criao.

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    A Religio Mesopotmica: Entre o Relativo e o Absoluto

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    2.2. criador dos deuses. Tambm se verifica aqui o recurso ao verbo

    banm. A criao dos deuses

    potncia

    a superioridade de Assur

    sobre todos os outros.

    2.3 .

    o criador de Istar. O verbo usado neste contexto j no banm ,

    mas antes waldum. Este verbo tem essencialmente um sentido de

    criao biolgica. Assur aqui apresentado como progenitor de

    Istar. Noutras ocorrncias, exteriores a este hino2o, encontramos a

    expresso: AD (abu) DINGIR.MES GAL.MES. Significa pai dos

    grandes deuses e vem na linha da expresso anterior.

    2.4. Tambm ausente do texto est a

    idia

    de que Assur um deus que

    se criou a ele mesmo. Encontramos esta idia, mais uma vez, em

    SAA 12 86: ban ramnisu. A rea semntica da criao , por

    conseguinte, um domnio importante na definio da transcendn

    cia de Assur. No nosso hino, so usados dois verbos distintos para

    traduzir o acto de criar - banm e waldum. Estes dois verbos so,

    de certa forma, contrastantes, ainda que se concentrem na pessoa

    de Assur. O primeiro pressupe a criao como um acto de moldar,

    de fabricar, o que lembra a criao nos mitos mesopotmicos, onde

    os deuses criam moldando o barro. Este

    modus faciendi

    comum

    nas concepes de criao que encontramos no mundo pr-cls-

    sico, sobretudo no mundo semita. Trata-se de criar a partir de algo,

    de um a substncia, preexistente. Nesse sentido, no estamos perante

    uma criao

    ex nihilo,

    mas sim uma criao em que o acto de criar

    corresponde a dar forma a uma substncia que j existe. J o verbo

    waldum traduz uma realidade diferente, correspondendo ao acto de

    gerar biologicamente. Os dois verbos correspondem, pois, ao acto de

    criar e, embora distintos, esto ambos concentrados em Assur.

    2.5.

    o que forma as montanhas. Este um atributo que se insere

    tambm neste

    topos.

    O texto recorre ao verbo patqum, que expri

    m e a idia de formar, de moldar, associada, por exemplo, ao fabri

    co do ado be, mas tamb m ao acto de forjar o metal.

    3 Ot p s da transcendncia de Assur

    A transcendncia de Assur define-se tambm por caractersticas da

    personalidade divina que o tornam incomparvel. Estas caractersticas so de

    mbito fsico e psicolgico.

    3.1. rapsa uzni - de vasto entendimento. A traduo alternativa,

    orelhas grandes, mostra como o acto de escutar est na mentali

    dade mesopotmica associado sabedoria. A expresso de enten-

    20

    Vd. SAA 12, 86.

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    Francisco Caramelo

    dimento engenhoso integra-se na mesma rea de definio. Na

    verdade, se o divino era a fonte primordial e essencial da

    sabedoria, em hima instncia para a prpria humanidade,

    natural que Assur, como Enlil dos deuses, como o primeiro, fosse

    dotado de forma inigualvel. Era dele que brotava a sabedoria,

    destinada a deuses e aos homen s.

    3.2. mud

    kala

    - o que sabe tudo . Este atributo reflecte, um a vez mais,

    o poder nico de Assur. Efectivamente, cremos que no est ainda

    em causa a assuno da omniscincia divina. Porventura, ser, por

    enqua nto, apenas a noo de que Assur, com o deus mpar, conhe ce o

    que pode ser conhecido e dotado de uma sabedoria superior de

    todos os outros, sendo a origem da sabedoria de todos o s outros.

    3 .3 . NUN.ME DfNGlRMES - sbio dos deuses. NUN.ME corresponde

    a apkallu, uma figura mitolgica ante-diluviana, dotada de grande

    sabedoria. Ora, Assur caracterizado como o mais sbio entre os

    prprios deu ses.

    3.4. corao insondvel (ou remoto). Este atributo leva um pouco

    mais alm a incomparabilidade de Assur. O seu corao, sede da

    sabedoria, insondvel, tanto para os homens como para os

    prprios deuses. Ao longo do hino, podemos ler outras passagens

    que reforam esta idia. A expresso nem um deus compreende a

    tua grandeza, Assur toma-o, de certa forma, intangvel e coloca-

    -o parte de todos os outros. A incapacidade de com preende r a sua

    natureza estende-se impossibilidade de entender as suas aces:

    a razo dos planos da tua grandeza no compreendida [. . .] um

    deus no compreende[. . . ]. Por conseguinte, a inteligncia e a

    sabedoria de Assur, bem como o significado dos seus actos, esto

    acima da compreenso humana e divina, o que define a sua nature

    za e a sua quase intangibilidade.

    3.5 . dandan num - todo-poderoso. Assur tambm se distancia de

    todos pelo seu incomensurvel poder. Essa potncia divina , por

    vezes, referida como herosmo (linha 9) e o hino aponta Assur

    com o um heri (linha 15 ). Um a das expresses desse poder e

    desse herosmo consistiu na vitria do deus sobre Anz (linha 35),

    o que significa a vitria da ordem sobre o caos. H uma mensagem

    mais ou menos subliminar nesta

    idia.

    Na verdade, Assur criou o

    mundo e esse processo corresponde, de uma certa forma,

    assuno e afirmao da ordem sobre o

    caos.

    No entanto, esse

    triunfo da ordem sobre o caos no definitivo. A no definifivi-

    dade da ordem, o mesmo dizer da criao, obriga a uma perma

    nente dialctica em que Assur desempenha o papel decisivo.

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    9/11

    A Religio M esopotmica: Entre o Relativo e o Absoluto 173

    4

    O t p s da palavra de Assur

    A ltima rea de definio conceptual da divindade prende-se com o

    domnio semntico da palavra. No devemos esquecer que a palavra tem, na

    Mesopotmia, e no mundo

    pr-clssico,

    uma fora realizadora. Essa dimen

    so performativa, em particular na palavra divina, transforma-se, no caso de

    Assur, num dos atributos importantes da sua natureza.

    4.1 . a tua palavra pronunciada desde os primeiros tempos (linha

    25). Este enquadramento temporal decisivo. Com efeito, a pala

    vra coexiste naturalmente com quem a produz, o que torna Assur

    um deus permanente, uma divindade que vem desde os primeiros

    tempos at ao presente. Esta afirmao confere a Assur um sentido

    de durao e de permanncia nico.

    4.2. cuja palavra no pode ser alterada, cuja ordem permanece firme.

    Com esta passagem, refora-se o sentido da permanncia da pala

    vra de Assur, acrescentada com a sua inalterabilidade e firmeza. A

    imutabilidade da palavra de Assur confirma o seu

    caracter

    nico,

    uma vez que o deus podia revogar a palavra de todos os outros mas

    ningum pod eria m udar a sua a no ser ele prprio. Para consolidar

    a

    idia

    de inalterabilidade e firmeza da palavra divina, esta

    passagem formulada num contexto em que se frisa o

    caracter

    inabalvel e, por conseguinte, permanente e firme da montanha

    (linhas 20 e 23).

    4.3 .

    cuja ordem chega longe. A palavra e a ordem de Assur no s

    so permanentes, no sentido em que existem ab into, como pare

    cem no ter fronteiras, uma vez que ecoam onde nenhuma outra

    chega.

    4.4.

    a palavra de Assur gloriosa. A palavra divina reflecte, pois,

    todos os atributos de Assur e uma imagem do deus.

    Concluso

    Na ausncia de um cnone ou de tratados de natureza teolgica na reli

    gio mesopotmica, hinos como este contribuem para a compreenso do

    pensamento religioso assrio. No

    sc.Vil

    a.C, poca em que este hino

    pro

    duzido, a religio assria atravessaria uma tendncia monoteizante. Esse im

    pulso teolgico intudo, neste como noutros hinos. O monotesmo e a

    construo do nico e do absoluto manifestam-se num processo lento e

    gradual.

    Esta tendn cia m onoteizante reflecte-se em sistematizaes diversas. N a

    religio assria, Assur e Istar constituem dois plos de sistematizao

    teol-

  • 7/26/2019 A Religio Mesopotmica Entre o Relativo e o Absoluto

    10/11

    174 Francisco Caramelo

    gica. Neste hino, o discurso teolgico em tomo de Assur tende a adensar a

    sua preponderncia sobre todos os outros deuses. Verifica-se uma conc entra

    o de qualidades na natureza divina e acentua-se a distncia e a diferena

    entre ele e todos os outros.

    Essa distncia parece polarizar-se essencialmente em tomo de quatro

    vectores. O primeiro de ordem fsica. Tem a ver com o poder incomen

    survel de Assur. No nosso hino, pudemos ler como o deus caracterizado

    como todo-poderoso (dandannum) e como aquele que venceu Anz. Esta

    potncia divina coloca-o muito acima de todos os outros e confere-lhe o

    papel de adversrio do caos. O segundo vector corresponde potncia que a

    sua palavra encerra. A palavra divina inaltervel, firme, existe desde o

    princpio do tempo e chega muito longe. Implicitamente, esta uma forma

    de afirmar que o deus est sempre presente e em toda a parte. O terceiro vec

    tor consiste na sua capacidade de tudo saber. Assur manifesta uma sabedoria

    inigualvel. O quarto vector consiste no facto de os desgnios do deus, a sua

    razo e a sua vontade serem insondveis e incompreensveis, no apenas

    para a humanidade com o tambm para os outros deuses.

    Estes quatro vectores so, na nossa opinio, estruturantes no processo

    monoteizante que atravessa a religio assria. Constituem, por outro lado, o

    ensaio de atributos que encontraremos, mais tarde, claramente associados ao

    deus bblico, j num contexto monotesta. Referimo-nos omnipotncia,

    omnipresena e omniscincia divinas. Neste caminho de afirmao mono

    teizante, assiste-se a uma busca incessante do transcendente, a qual passa por

    acentuar at ao limite do possvel a diferena e a distncia qualitativas entre

    Assur e os outros deuses.

    Intui-se neste hino a dialctica entre o relativo e o absoluto na religio

    assria. S e, por u m lado , esta uma

    reUgio

    de muitos deuses, por outro lado,

    parece buscar-se aqui um certo sentido de unidade e, por conseguinte, o

    absoluto. Por enquanto, esse caminho ainda sinuoso, mas passa pela afir

    ma o conceptual do transcendente e pela demanda do nico.

    Re s um o

    A religio assria, no sc. VII a.C, reflecte uma tendncia monoteizante

    que se manifesta neste hino dedicado por Assurbanpal ao deus Assur. O

    conceito de divindade na teologia assria apresenta-se condicionado pela

    prevalncia do plural e do relativo

    mas^

    intui-se, concom itanteme nte, a busca

    da unidade e do absoluto do divino. em tomo de quatro vectores essen

    ciais, estruturantes do ponto de vista teolgico, que se entende essa tendncia

    monoteizante. Na ausncia de um cnone ou de uma sistemafizao teolgi

    ca, a linguagem p otica, nom eadam ente os hinos e as oraes, prod uto liter-

  • 7/26/2019 A Religio Mesopotmica Entre o Relativo e o Absoluto

    11/11

    AReligio Mesopotmica: Entre o Relativo e o Absoluto 175

    rio das elites intelectuais e religiosas, constitua o veculo e a expresso des

    tas concepes.

    Palavras-chave: Mesopotmia; Assria; Literatura; Rehgio; Monotesmo

    Abstract

    There was a monotheistic trend in assyrian religion (VII* century BC).

    We may notice this trend on the hymn of Ashurbanipal dedicated to the god

    Ashur. The prevalence of plurality and relativeness continues to be effective

    but there is simultaneously a search for the one, for the unity, for the abso

    lute.

    There are four vectors which structure theologically religion in Assyria

    and define this monotheistic trend. In the absence of a religious canon, po-

    etic language was the main expression of this theologic trend.

    Key-words:Mesopotmia - Assyria - Literature - Religion - Monotheism

    Rsum

    La religion assyrienne, au VII sicle av. J.-Ch., avait une tendance

    monothiste que se manifeste dans cet hymne de Assourbanipal au dieu As-

    hour. Le concept de divinit dans Ia thologie assyrienne se prsentait condi-

    tioimpar Ia prevalence du pluriel et du relatif mais on voit l, de faon pa-

    rallle.Ia recherche de Tunit et de fabsolu du divin. Cest autour de quatre

    vecteurs essentiels, stmcturants du point de vue thologique, qui se com-

    prend cette tendance monothiste. DansTabsenced'une systmatisation tho

    logique, le langage potique, notamment les hyrrmes et les priores, consti-

    tuent le moyen etTexpression de ces conceptions.

    Mots-cls: Msopotamie; Assyrie; Littrature; Religion; Monothisme