a relação entre direito e desenvolvimento otimistas versus céticos

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  • 8/4/2019 A relao entre direito e desenvolvimento otimistas versus cticos

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    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO5 (1 ) | P. 217-268 | JAN-JUN 2009

    217:TRADUO | TRANSLATION9

    RESUMOESTE ARTIGO EXAMINA PARTE DA PRODUO MAIS RECENTE SOBRED IR EITO E D ES EN VO LV IM EN TO, A PARTIR DE TRS LIVROS

    PUBLICADOS POR ESTUDI OSOS NORTE-AMERICANOS, ASCOLETNEAS ORGANIZADAS POR THOMAS CAROTHERS E POR DAVIDM. TRUBEK E LVARO SANTOS, ALM DA MONOGRAFI A DEKENNETH DAM. O TEX TO S UG ER E Q UE E SS ES L IV RO S (OU, AOMENOS, ALGUNS DOS ARTIGOS NELES REUNIDOS) REFLETEM UMAINSENSIBILIDADE PARA AS AMBIGUIDADES QUE CERCAM A RELAO

    ENTRE REFORMA JURDICA E DESENVOLVIMENTO. M OSTRA QUE HUM DEBATE EM ANDAMENTO SOBREQUESTES FUNDAMENTAIS, TAISCOMO SE O DIREITO UM FATOR IMPORTANTE PARA DETERMINAR

    R ES ULTA DO S S OC IA IS O U E CO N MI CO S N AS S OC IE DA DE S E M

    DESENVOLVIMENTO , TEN DO E M V IS TA A E XISTN CIA D E M TOD OSI NF OR MA IS D E C ON TR OL E S OC IA L; S E E XISTEM O BS T CU LO SECONMICOS, POLTICOS OU CULTURAIS INSUPERVEIS PARA UMAREFORMA JURDICA EFETIVA, BEM COMO, SUPONDO-SE QUE UMAR EF OR MA J UR D ICA E FE TIVA S EJ A F ACTV EL, QUE TIPOS DEREFORMAS SO CONDUCENTES AO DESENVOLVIMENTO E QUE TIPOS

    DE ATORES DEVEM IMPLEMENT-LAS. SUSTENTAMOS QUE, EMBORAEX IS TAM ALGU NS M OT IVO S PA RA O OT IM IS MO E M R ELA O AO

    IMPACTO POTENCI AL DAS REFORMAS JURDICAS SOBRE O

    DESENVOLVIMENTO , A L IT ER AT UR A E MP R IC A P ER TI NE NT E INCON CL US IV A Q UA NTO A M UITA S Q UE STE S IMP OR TA NTES EACONSELHA CAUTELA NO QUE DIZ RESPEITO AO INVESTIMENTO DE

    RECURSOS SUBSTANCIAIS NA PROMOO DE REFORMAS JURDICAS

    N OS PA S ES E M D ES EN VO LV IM EN TO S EM A R EA LIZA O D E M AIS

    PESQUISAS QUE ESCLAREAM ESSAS QUESTES.

    PALAVRAS-CHAVEDIREITO; DESENVOLVIMENTO; RULE OF LAW; REFORMA, PROGRAMAS.

    Kevin E. Davis e Michael J. Trebilcock

    A RELAO ENTRE DIREITO E DESENVOLVIMENTO:OTIMISTAS VERSUS CTICOS

    ABSTRACT

    TH IS A RTICL E E XA MINE S P AR T O F THE M OST R ECEN T

    INTELLECTUAL PRODUCTION ONLAW & D EVELOPMENT BASED

    UPON THREE RECENTLY PUBLISHED BOOKS: TWO COLLECTIONSOF ESSAYS ORGANIZED BYTHOMAS CAROTHERS AND BYDAVID

    M. TRUBEK AND ALVARO SANTOS, A ND A M ON OG RA PH BY

    KENNETHDAM. TH E A RTICL E SHO WS THA T THE RE IS

    ONGOING DEBATE ABOUT FUNDAMENTAL QUESTIONS SUCH

    A S W HE THE R L AW IS A N IM PO RTAN T F ACTOR IN D ETER MININ G

    SOCIAL OR ECONOMIC OUTCOMES IN DEVELOPING SOCIETIES

    G IVEN THE E XISTE NCE O F INF OR MA L M ETHO DS O F SOCIAL

    CONTROL; WHETHER THERE ARE INSURMOUNTABLE ECONOMIC,

    POLITICAL OR CULTURE OBSTACLES TO EFFECTIVE LEGAL

    REFORM; A S W EL L A S , ASSUMING EFFECTIVE LEGAL REFORM

    IS FEASIBLE, W HA T TYP ES O F R EF OR MS A RE CON DU CIVE TO

    D EVEL OP ME NT A ND W HA T TY PE S O F A CTO RS O UG HT TO

    IMPLEMENT THEM. WE A RG UE THA T A LTHO UG H THE RE A RE

    SOME REASONS FOR OPTIMISM ABOUT THE POTENTIAL IMPACT

    OF LEGAL REFORMS UPON DEVELOPMENT, THE RELEVANT

    EMPIRICAL LITERATURE IS INCONCLUSIVE ON MANY IMPORTANT

    ISSU ES A ND COU NSEL S CAU TION A BO UT THE W ISDO M O F

    CONTINUING TO INVEST SUBSTANTIAL RESOURCES IN

    PROMOTING LEGAL REFORM IN DEVELOPING COUNTRIESWITHOUT FURTHER RESEARCH THAT CLARIFIES THESE ISSUES.

    KEYWORDS

    LAW; DEVELOPMENT; R UL E O F L AW ; REFORM, PROGRAMS.

    *

    THE RELATIONSHIP BETWEEN LAW AND DEVELOPMENT:

    OPTIMISTS VERSUS SKEPTICS

    TRADUO Pedro Maia Soares REVISO TCNICAJos Rodrigo Rodriguez

    ORIGINALMENTE PUBLICADO EM: DAVIS, KEVIN E., TREBILCOCK, MICHAEL J., THE RELATIONSHIP BETWEEN LAW AND DEVELOPMENT: OPTIMISTS VERSUS

    SKEPTICS. AMERICAN JOURNAL OF COMPARATIVE LAW. SALEM (OREGON): AMERICAN SOCIETY OF COMPARATIVE LAW, V. 56, N. 1, P. 895-946, 2008.

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    N as duas ltimas dcadas, ressurgiu o interesse, tanto de acadmicos comode profissionais, em usar o direito para promover o desenvolvimento naAmrica Latina, frica subsaariana, Europa central e oriental e sia. Ograu do interesse acadmico pelo tpico reflete-se na publicao recente de trslivros sobre direito e desenvolvimento por proeminentes estudiosos americanos:Thomas Carothers (ed.), Promoting the Rule of Law Abroad: In Search of Knowledge;Kenneth Dam, The Law-Growth Nexus: The Rule of Law and Economic Development; eDavid Trubek e Alvaro Santos (eds.), The New Law and Economic Development: ACritical Appraisal.

    Neste ensaio, sugerimos que esses livros (ou, ao menos, alguns dos artigos nelesreunidos) refletem uma insensibilidade para as ambiguidades que cercam a relaoentre reforma jurdica e desenvolvimento. Mostramos que h um debate em anda-mento sobre questes fundamentais, tais como se o direito um fator importantepara determinar resultados sociais ou econmicos nas sociedades em desenvolvimen-to, tendo em vista a existncia de mtodos informais de controle social; se existemobstculos econmicos, polticos ou culturais insuperveis para uma reforma jurdi-ca efetiva; bem como, supondo-se que uma reforma jurdica efetiva seja factvel, quetipos de reformas so conducentes ao desenvolvimento e que tipos de atores devemimplement-las. Sustentamos que, embora existam alguns motivos para otimismo emrelao ao impacto potencial das reformas jurdicas sobre o desenvolvimento, a lite-

    ratura emprica pertinente inconclusiva quanto a muitas questes importantes eaconselha cautela no que diz respeito ao investimento de recursos substanciais napromoo de reformas jurdicas nos pases em desenvolvimento sem a realizao demais pesquisas que esclaream essas questes.

    INTRODUOThomas Carothers, no ensaio amplamente citado, The Rule of Law Revival, afirma:

    No podemos passar por um debate sobre poltica externa sem que algumproponha o imprio do direito como soluo para os males do mundo. De

    que modo a poltica americana em relao China pode resolver o enigma deequilibrar direitos humanos e interesses econmicos? O estmulo ao impriodo direito (rule of law) , sustentam alguns observadores, promove tanto osprincpios quanto os lucros. O que far com que a Rssia passe do capitalismoselvagem para uma economia de mercado mais ordeira? O desenvolvimentodo imprio do direito, insistem muitos, a chave. Como o Mxico podeatravessar as traioeiras transies econmica, poltica e social? Dentro e forado Mxico, muitos respondem: estabelecer de uma vez para sempre oimprio do direito.1

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    Nas duas ltimas dcadas, coerentemente com a afirmao de Carothers, naesocidentais e doadores privados despejaram bilhes de dlares na reforma do impriodo direito na Amrica Latina, frica subsaariana, Europa central e oriental e sia. 2

    Em outras palavras, nos pases mais pobres do mundo, bilhes de dlares que pode-riam ser destinados a projetos como programas de vacinao, educao primria,gua e saneamento bsico, vo para os bolsos dos juristas.

    O amplamente noticiado ressurgimento do interesse em apoiar reformas jur-dicas nos pases em desenvolvimento reflete uma perspectiva fundamentalmenteotimista sobre o papel do direito (e dos juristas) no desenvolvimento. Com efeito,

    os defensores dessas reformas so tipicamente ot imistas em pelo menos trs nveis.Primeiro, so otimistas ao acreditar que caractersticas especficas do sistema jur-dico de um pas desempenham um papel causal significativo na determinao desuas perspectivas de desenvolvimento; em suma, o direito importante. Emsegundo lugar, so otimistas quanto s possibilidades de uma reforma significativa.Em outras palavras, acreditam que os sistemas jurdicos mudam em resposta aesforos deliberados de reforma. Em terceiro lugar, so otimistas quanto suacapacidade de identificar as reformas jurdicas que promovero, em ltima anlise,o desenvolvimento.

    Embora o otimismo em relao reforma jurdica parea dominar o mundo daprtica e tenha efetivamente dominado nas duas ltimas dcadas , no mundo das

    ideias, as concepes otimistas tm sofrido ataques de vrias direes. O mais bran-do deles contesta o pressuposto de que os praticantes do direito e desenvolvimentoso capazes de identificar e implementar as reformas jurdicas que promovem odesenvolvimento. Os ataques mais vigorosos contestam a noo de que os candidatosa reformadores podem ter esperanas razoveis de efetuar mudanas jurdicas signifi-cativas, tendo em vista os obstculos colocados por vrios fatores histricos,econmicos, polticos ou culturais. O ponto de vista mais ctico contesta a afirmaode que o direito desempenha um papel causal significativo no desenvolvimento. Essascontestaes que, por falar nisso, possuem paralelos diretos na literatura sobre arelao entre direito e mudana social nos Estados Unidos3 , so importantes por-que, enquanto no forem respondidas, no poderemos saber se faz sentido continuar

    a dedicar recursos substanciais s reformas jurdicas nos pases em desenvolvimento.Esse problema, que Thomas Carothers chama de o problema do conhecimento,faz do direito e desenvolvimento um campo maduro para a pesquisa acadmica.4

    O renascimento do interesse acadmico pela relao entre direito e desenvolvi-mento reflete-se na publicao recente de trs livros de proeminentes estudiososamericanos (em sua maioria) sobre o tema: Thomas Carothers (ed.), Promoting theRule of Law Abroad: In Search of Knowledge;5 Kenneth Dam, The Law-Growth Nexus: TheRule of Law and Economic Development;6 e David Trubek e Alvaro Santos (eds.), The NewLaw and Economic Development: A Critical Appraisal.7 Tomadas em conjunto, essas obras

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    representam o que h de melhor no pensamento atual dos juristas americanos sobreas relaes entre reformas jurdicas e desenvolvimento.

    Embora as colaboraes publicadas nesses volumes representem dcadas de expe-rincia prtica e reflexo acadmica sobre reformas jurdicas em pases emdesenvolvimento, no fim das contas, elas so notavelmente inconclusivas. Nenhum dosautores representados nesses volumes parece estar muito otimista sobre a possibilidadede as reformas jurdicas promoverem o desenvolvimento (ao menos no incio da traje-tria do desenvolvimento). Porm, suas concepes vo do leve otimismo ao leveceticismo e no fica imediatamente claro como resolver as diferenas de pontos de vista

    e as incertezas resultantes. Embora alguns dos colaboradores dos volumes editados porTrubek e Santos, e Carothers se refiram a uma nova ortodoxia ou consenso sobre opapel do direito no desenvolvimento, chama a ateno justamente a falta de consenso.8

    Tendo em vista o que est em jogo para os habitantes dos pases em desenvolvi-mento, para no mencionar os profissionais do direito, preocupante o fracasso daacademia em resolver as incertezas sobre a validade dos pressupostos bsicos dos esfor-os para promover reformas jurdicas. Nosso objetivo principal ao escrever este artigo descrever as dimenses do problema do conhecimento tal como refletido nos livrosem questo, na esperana de estimular mais esforos para resolv-lo.

    Comeamos delineando os vrios tipos de afirmaes otimistas que foram feitassobre o papel das reformas jurdicas na promoo do desenvolvimento, tanto nos livros

    em questo como em outras publicaes. Depois, tratamos dos motivos para ceticismoe suas implicaes para a prtica do direito e desenvolvimento. Examinamos sucessiva-mente as afirmaes de que os reformadores jurdicos carecem da capacidade deidentificar as reformas apropriadas, que eles devem superar obstculos econmicos,polticos ou culturais potencialmente insuperveis para efetuar reformas, ou ainda, quea reforma jurdica irrelevante porque as alternativas informais ao direito tm impor-tncia prioritria como mecanismos de controle social. Sugerimos que a terceira e maisradical forma de ceticismo tem sido indevidamente negligenciada. Conclumos fazen-do um exame das evidncias empricas que dizem respeito a esses debates, as direesque a pesquisa emprica futura deve tomar e o papel que os estudiosos do direitopodem desempenhar nessa pesquisa.

    1 OS OTIMISTAS DO DIREITOAt mesmo entre os otimistas, h uma ampla variao de opinies, algumas das quaisso mutuamente incompatveis, sobre o significado do desenvolvimento e os tipos dereformas jurdicas que provavelmente o promovem. Discutimos brevemente a primei-ra questo, mas, nesta seo, nos concentraremos mais na descrio das principaisabordagens da segunda. Em nossa opinio, a maioria dos artigos includos nas obras emexame, ou tentam resolver as implicaes dessas abordagens otimistas, ou as criticam.

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    1.1 O QUE DESENVOLVIMENTO?Em certa medida, os desacordos sobre as reformas jurdicas apropriadas refletem desa-cordos mais fundamentais sobre os objetivos a serem alcanados pela reforma jurdicaou, em outras palavras, sobre o significado de desenvolvimento. Indcios desse desacor-do podem ser observados nos livros em questo. Dam, seguindo uma linha adotada pormuitos dos economistas, cujas obras ele examina, concentra-se na relao entre direi-to e desenvolvimento econmico, que ele parece, em geral, igualar a crescimentoeconmico. Em contraste, a maioria dos colaboradores do volume editado por Trubeke Santos e alguns dos que escreveram no livro editado por Carothers esto interessa-

    dos nas implicaes da reforma jurdica para um espectro mais amplo de resultadossociais, entre eles, o respeito aos direitos humanos, a igualdade de gnero e, de modomais geral, a justia distributiva.9 Em certa medida, essas diferenas de objetivos expli-cam a diferena entre os tipos de reformas jurdicas que os autores defendem: Damenfatiza o direito empresarial, o direito comercial, o direito de propriedade e o setorfinanceiro, enquanto os colaboradores de Trubek e Santos, com destaque para KerryRittich, concentram-se nas funes reguladoras e redistributivas do Estado.

    1.2 O MOVIMENTO DIREITO E DESENVOLVIMENTOO interesse intelectual pela relao entre direito e desenvolvimento tem uma longahistria.10 Com efeito, pensadores dos sculos XVIII, XIX e incio do XX, como

    Montesquieu, Maine e Weber, se interessaram profundamente por vrios aspectosdessa relao no contexto europeu. Os pensadores europeus tambm se interessarampelo papel desempenhado pelo direito durante o grande perodo de colonizao dossculos XVIII e XIX.11 Ademais, desde o sculo XIX, estudiosos dos pases em desen-volvimento preocuparam-se muito com o papel que o direito poderia desempenharno desenvolvimento social e econmico de seus pases (embora, como destaca ScottNewton, essas vozes sejam frequentemente ignoradas no discurso acadmico norte-americano).12 Boa parte dessa literatura examinada na esclarecedora histriaintelectual com que Duncan Kennedy contribuiu para a coletnea de Trubek e Santos.

    No obstante o trabalho desses primeiros estudiosos, nos Estados Unidos aomenos, o ponto de vista otimista mais conhecido sobre a relao entre direito e desen-

    volvimento aquele que surgiu na dcada de 1960 e conhecido simplesmente comoo Movimento Direito e Desenvolvimento.O pano de fundo intelectual desse movimento est no perodo do ps-guerra, que

    assistiu a um aumento no nmero de acadmicos e formuladores de polticas interes-sados pelas naes pobres do mundo. Seguindo as pegadas do historiador econmicoWalt W. Rostow, tericos da dcada de 1950 e incio da de 1960 sustentavam que oprocesso de desenvolvimento poderia ser visto como uma srie de estgios sucessivosde crescimento econmico pelos quais todos os pases deveriam passar.13 O que essaescola de pensamento propunha ficou conhecido como teoria da modernizao.

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    Os tericos da modernizao afirmavam que o subdesenvolvimento de uma socie-dade era causado pelas caractersticas ou estruturas econmicas, polticas, sociais eculturais tradicionais (em oposio a modernas) e se refletia nelas. Para progredirem,as sociedades subdesenvolvidas teriam de passar pelo mesmo processo de evoluo dotradicionalismo para a modernidade que as sociedades mais desenvolvidas haviamexperimentado anteriormente. Porm, enquanto o mpeto de modernizao nos pa-ses agora desenvolvidos resultara de mudanas endgenas, a transformao das naesem desenvolvimento resultaria principalmente de estmulos exgenos. Ou seja, amodernizao do Terceiro Mundo seria realizada pela difuso do capital, das institui-

    es e dos valores do Primeiro Mundo.14Mais especificamente, isso implicaria a emergncia de um sistema de livre merca-

    do, do imprio do direito, de uma poltica multipartidria, da racionalizao daautoridade e do crescimento da burocracia e da proteo dos direitos humanos e dasliberdades bsicas. Presumia-se que a ocidentalizao, a industrializao e o cresci-mento econmico gerariam as pr-condies para a evoluo de uma maior igualdadesocial e, em consequncia, o surgimento de instituies democrticas estveis e doEstado de bem-estar social. Durante esse processo, o Estado serviria de agente prim-rio da mudana social.

    Com base na teoria da modernizao, a primeira onda de tericos do direito edesenvolvimento que surgiu na dcada de 1960 presumia que a difuso do direito oci-

    dental para o Terceiro Mundo ajudaria em sua modernizao. Com efeito, acreditava-seque o direito moderno era o pr-requisito funcional de uma economia industrial.15

    Influenciada por Weber, uma forte concepo instrumentalista do direito estava na basedessa viso da relao entre direito e desenvolvimento. Tal como definida por Burg,essa concepo considera o direito uma fora que pode ser moldada e manipulada paraalterar o comportamento humano e alcanar o desenvolvimento.16 Ela concentra-sesobretudo nas normas substantivas do direito, espera do Estado a promulgao dessasnormas e reserva para a profisso jurdica um papel proeminente na formulaodelas.17 Essa concepo do direito como um instrumento de desenvolvimento, e noapenas de resposta a ele, bem como a viso do jurista como um engenheiro socialestava totalmente de acordo com a necessidade percebida de mudanas dirigidas e

    rpidas que subjazia noo de desenvolvimento da escola da modernizao.18

    Armado com o modelo instrumental do papel do direito no desenvolvimento, omovimento adotou uma abordagem de cima para baixo. Enfatizava a reforma da edu-cao e da profisso jurdica e, em menor medida, a reforma das normas jurdicasformais. Pressupunha-se que os juristas treinados para usar o direito como instrumen-to de mudana promoveriam os objetivos desenvolvimentistas do Estado.19

    Presumia-se que a reforma do ensino do direito e da advocacia estimularia outras for-mas de modernizao, inclusive o surgimento de outras instituies inerentes a umsistema jurdico moderno eficaz, tais como aquelas responsveis por administrar e

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    aplicar as normas jurdicas. Havia algum reconhecimento de que poderia haver umhiato ou falta de correspondncia perfeita entre o direito nos livros e o direito emao. Nesses casos, a resposta dos tericos do direito e desenvolvimento ainda era ade confiar na reforma do ensino do direito e em uma melhor penetrao, definidapor Friedman como o grau em que uma norma, um cdigo ou uma lei se enrazanuma populao.20 A chave para eliminar o hiato e melhorar a penetrao era amelhor comunicao do direito com a populao.21

    Para o bem ou para o mal, elementos desses conceitos de direito e desenvolvi-mento sobrevivem no pensamento contemporneo. Por exemplo, em sua

    colaborao para o volume organizado por Carothers, Wade Channell argumentaque as concepes que animam os programas atuais de reforma jurdica e judicialdo Banco Mundial no so somente similares quelas endossadas pelo movimentooriginal de direito e desenvolvimento, mas tambm igualmente falhas.22 Em tommais positivo, a contribuio otimista de Stephen Golub ao volume editado porCarothers (a coletnea inclui tambm um ensaio dele que muito mais ctico)recomenda um programa de reformas jurdicas que parece ter uma abordagemmuito semelhante de alguns dos programas associados ao movimento Direito eDesenvolvimento.23 A alternativa de empoderamento jurdico de Golub enfatiza areforma do ensino para incluir a oportunidade de os estudantes de direito ajudaremos pobres mediante clnicas jurdicas e outros programas, a alterao da estrutura

    da profisso jurdica a fim de permitir que para-advogados desempenhem umpapel maior no fornecimento de ser vios jurdicos e a comunicao de informaesjurdicas diretamente ao povo.24

    1.3 A NOVA ECONOMIA INSTITUCIONALNo mundo acadmico do direito americano, o interesse pelos sistemas jurdicos dospases em desenvolvimento declinou significativamente em meados da dcada de1970 (por motivos que examinaremos mais adiante).25 Logo depois, no entanto, oseconomistas redescobriram o tema. O interesse deles coincidiu com o surgimentoda assim chamada Nova Economia Institucional, que considera o projeto e o funcio-namento das instituies do setor pblico e das organizaes do setor privado que

    interagem com essas instituies fatores determinantes essenciais das perspectivas dedesenvolvimento dos pases, por meio dos incentivos que criam para participar ematividades socialmente produtivas ou improdutivas.26

    Os proponentes desse conceito fizeram alegaes extremamente audaciosassobre o impacto potencialmente benfico das reformas jurdicas. Por exemplo, emseu influente livro The Other Path, Hernando de Soto faz afirmaes como: O siste-ma jurdico pode ser a principal explicao para a diferena de desenvolvimento queexiste entre pases industrializados e aqueles que no o so. 27 Ou: O desenvolvi-mento s possvel se existem instituies jurdicas eficientes disposio de todos

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    os cidados.28 Ou ainda: O direito o instrumento mais til e deliberado demudana disponvel para o povo.29

    Afirmaes semelhantes, embora, talvez, um pouco menos extravagantes,podem ser encontradas em documentos produzidos por agncias influentes, como oBanco Mundial.30

    O livro de Kenneth Dam explicitamente dedicado a descrever as implicaes danova economia institucional para a reforma jurdica.31 Muitas dessas implicaes separecem com aquelas apresentadas pelos tericos da modernizao numa poca ante-rior.32 Em termos de direito substantivo, desse ponto de vista, as prioridades

    essenciais devem estar ligadas a direitos de propriedade bem definidos e alienveis;um sistema formal de direito contratual que torne mais fcil a contratao impessoal;um regime de direito empresarial que simplifique a funo de investimento de capi-tal por meio da facilitao da incorporao e responsabilidade limitada de pequenas emdias empresas e minimize os custos de agncia enfrentados pelos acionistas em fir-mas com acionistas majoritrios em geral no caso de empresas no administradas pordonos ou por acionistas minoritrios em firmas com acionistas majoritrios; um sis-tema de garantia de emprstimos que torne fcil para os credores tomar uma amplavariedade de ativos como colateral, identificar reivindicaes em competio poresses ativos, e tomar e vender os ativos em caso de no pagamento; um regime defalncia que induza a sada de empresas ineficientes e a redistribuio de seus ativos

    para usos de maior valor; e um regime tr ibutrio no punitivo e sem distores. A fimde garantir a promulgao, a execuo e a administrao dessas leis substantivas, estoentre as prioridades projetar instituies legislativas que sejam transparentes e est-veis em seu compromisso com as normas jurdicas bsicas e incluir os investidoresperante os quais respondem, e instituies administrativas e de aplicao da lei quesejam competentes, incorruptas, livres de influncia poltica indevida, de procedi-mentos transparentes e que contenham efetivos recursos.

    Nem todos os proponentes da Nova Economia Institucional endossam a ideia deque os pases em desenvolvimento estariam mais bem servidos adotando os modelos

    jurdicos ocidentais.33 Por exemplo, tericos como Robert Cooter e Hernando deSoto sustentam que , em geral, til para as normas jurdicas formais imitar o con-

    tedo das normas no legais locais, de modo a assegurar que os mecanismosinformais associados a essas normas trabalhem no sentido de aumentar a potncia dasnormas legais.34 Em um vis um pouco distinto, Katharina Pistor e seus coautoresargumentaram que difcil transplantar as normas jurdicas ocidentais (ou quaisqueroutras normas) de sociedades desenvolvidas para as em desenvolvimento porque taisnormas so, com frequncia, expressas em termos de referncias a outras normas ouconceitos jurdicos; desse modo, so difceis de entender para os membros da socie-dade que os recebe sem que tenham uma boa compreenso de grandes pores dosistema jurdico de onde originam-se.35

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    Como vrios outros estudiosos, Pistor et al. sustentam que a fora das normas jurdicas depende muito de serem bem entendidas por membros da sociedade eagentes do Estado. Por sua vez, Dam simpatiza com a opinio de que um modelonico talvez no sirva para todos. Ele dedica uma quantidade significativa de espaopara rebater as alegaes de que um determinado conjunto de instituies jurdicasocidentais a saber, aquelas associadas ao common law, em oposio ao direito civil inerentemente superior.36 Ele observa tambm que, em geral, no que diz respeitoa pases em desenvolvimento transplantarem instituies jurdicas dos pases desen-volvidos, ... nem mesmo as solues de melhor prtica do mundo funcionaro se a

    sociedade resistir a elas ou ignor-las.37

    1.4 O NOVO CONSTITUCIONALISMODo ponto de vista emprico, uma boa parte do ressurgimento do interesse pelo direi-to nos pases em desenvolvimento envolve um interesse no direito constitucionaldesses pases.38 Mais de 56% dos 188 Estados-membros das Naes Unidas fizeramimportantes emendas s suas constituies na dcada decorrida entre 1989 e 1999, edesses Estados, pelo menos 70% adotaram constituies inteiramente novas. Aomenos um quarto de todos os Estados membros da ONU introduziu leis de direitos ealguma forma de reviso constitucional em seus regimes constitucionais durante esseperodo. Em consequncia, pelo menos 92 pases, ou aproximadamente 50% dos

    Estados membros, incorporaram leis de direitos, direitos fundamentais ou algumaforma de direitos individuais e/ou coletivos aos seus regimes constitucionais. Antesde 1989, cerca de dez pases tinham sistemas efetivos de reviso constitucional emque um tribunal constitucional ou os tribunais em geral declaravam que uma lei pro-posta ou promulgada era contrria constituio do Estado. Dez anos depois, pelomenos 70 Estados cerca de 38% de todos os Estados membros da ONU haviamadotado alguma forma de reviso constitucional.39 Do mesmo modo, muitos pasesratificaram vrios tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos.40

    Em certa medida, a ampla ateno dada reforma constitucional pode ser justi-ficada sem recorrer a concepes instrumentais do papel do direito nodesenvolvimento. Em alguns pontos de vista, as constituies que encarnam prote-

    es aos direitos humanos, democracia, etc., so fins em si mesmas, manifestaesdos compromissos morais de uma sociedade.41 De outra perspectiva, essas reformasconstitucionais so apenas compromissos caros que as elites polticas assumem a fimde sinalizar aos investidores a fora de seu compromisso com o imprio do direito ea liberalizao econmica.42

    A reforma constitucional tambm pode ser justificada em termos mais direta-mente instrumentais. No incomum justific-la como um meio de assegurar aexistncia de instituies capazes de promulgar e impor normas substantivas quelevaro, em ltima anlise, paz e prosperidade. At mesmo Kenneth Dam, que

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    dedica o grosso de seu livro a analisar a relao entre vrias reas substantivas dedireito privado empresarial e comercial, de propriedade, etc. e o desenvolvimen-to econmico, acaba por sustentar que o direito pblico mais importante que oprivado para o crescimento econmico.43 Em termos gerais, o otimismo em relaoao potencial instrumental das normas constitucionais enfoca e endossa os arranjosconstitucionais que exibem trs atributos: democracia, separao de poderes e liber-dade de imprensa.

    1.4.1 Democracia

    Muitos tericos do desenvolvimento assumem a posio de que a democracia defi-nida aqui de forma estrita pela seleo de lderes polticos em eleies livres, justas ecompetitivas , em geral, conducente ao desenvolvimento.44 Alguns desses tericosconcentram-se na conexo entre democracia e medidas ortodoxas de desenvolvimen-to, tais como crescimento econmico, nveis de educao e mortalidade infantil.45

    Porm, outros sustentam que existe uma relao positiva entre democracia e defini-es mais amplas de desenvolvimento. Por exemplo, famosa a afirmao de AmartyaSen de que no se trata de mera coincidncia o fato de nunca ter havido uma epide-mia de fome numa democracia multipartidria vigente.46 Do mesmo modo, a partirde Immanuel Kant, vrios cientistas polticos sustentaram que altamente improv-vel que democracias entrem em guerra umas contra as outras.47

    Muitos desses pensadores baseiam-se na ideia de que as democracias geramincentivos relativamente fortes para que os lderes polticos promovam o desenvol-vimento.48 Por exemplo, em Power and Prosperity,49 Olson distingue trs regimespolticos bsicos: bandidos errantes, bandidos estacionrios e democracias, supondoque, em todos os casos, os lderes polticos so motivados pelo interesse pessoal. Osbandidos errantes (exemplo recente podem ser os grupos rebeldes em Serra Leoa,Sudo, Angola e Congo, que saqueiam os recursos naturais dos pases) tm taxas dedesconto de tempo extremamente altas devido sua insegurana no poder e explo-raro as populaes locais at o limite de confiscar toda a sua riqueza.50 Emcontraste, os bandidos estacionrios controlam totalmente um determinado territ-rio e, dependendo de sua segurana no cargo e, por conseguinte, das taxas de

    desconto de tempo, podem ter um incentivo para adotar medidas menos confiscat-rias. A estratgia de adotar quantidades de confisco inferiores ao mximo criaincentivos para que a cidadania seja produtiva em perodos de tempo futuros e,assim, pode aumentar as receitas totais de um dspota com uma taxa de descontorelativamente baixa.51 Os lderes democrticos, no entanto, tm incentivos maisfortes para promover concepes mais amplas do interesse social e concomitantesleis e instituies jurdicas que os bandidos errantes ou estacionr ios. De acordo comOlson, isso ocorre porque, ao contrrio dos governantes autocrticos, os democra-ticamente eleitos podem, com frequncia, prever o retorno ao poder em data futura,

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    aps serem derrotados em eleio. Essa perspectiva pode induzi-los a dar um valorrelativamente alto melhoria do bem-estar futuro de seus cidados. 52

    Vrios outros argumentos apresentados a favor da democracia no se baseiam emreivindicaes de efeitos de incentivo. Por exemplo, Dani Rodrik sustenta que as ins-tituies polticas participativas so as metainstituies mais confiveis de um pontode vista desenvolvimentista, porque so as mais adequadas para extrair e agregar oconhecimento local exigido para desenvolver outras normas e instituies. Na esteirade pensadores como John Stuart Mill e Immanuel Kant, Rodrik afirma, tambm, queos processos deliberativos que costumam estar associados democracia tendem a

    fazer com que as pessoas tenham mais esprito pblico e disposio para fazer acor-dos. Ele escora esses argumentos com provas empricas de que as democracias exibemqualidades superiores s das autocracias na gesto dos conflitos sociais e no estabele-cimento de acordos sociais para tratar do ajuste a choques macroeconmicos.53

    1.4.2 Separao de poderes

    Deixando de lado o debate em torno de autocracia e democracia, outra importantelinhagem de literatura, cujas origens podem ser remontadas ao Esprito das leis, deMontesquieu,54 enfatiza o papel dos freios e contrapesos constitucionais e polticoscomo mtodos de obrigar o Estado a agir em defesa do interesse social geral, em vezde defender os interesses estreitos de pequenas coalizes distributivas.55 Muitos

    estudiosos asseveram que a separao constitucional dos poderes baseia-se funda-mentalmente na existncia de um juiz confivel, isto , de um judicirio independentepara impor a alocao prescrita de poderes e inspirar respeito por suas decises, comfrequncia, de agncias do prprio Estado. Infelizmente, a definio exata de indepen-dncia judicial uma questo em debate.56

    A literatura identificou vrias maneiras pelas quais a separao de poderes ajudaa aumentar a probabilidade da promulgao de leis socialmente benficas, mas trsargumentos se destacam. Primeiro, o de que a separao de poderes aumenta o custodos grupos de interesse de capturar as instituies polticas ou judicirias. A intui-o bsica por trs desse argumento que quanto maior o nmero de instituies umator ou grupo de atores tiver de lidar para promover seus interesses, mais provvel

    ser que os custos de transao e o comportamento estratgico evitaro a conclusode um acordo.Um segundo argumento usado comumente para justificar a separao dos pode-

    res que ela torna difcil para os governos descumprir de forma oportunistacompromissos anteriores. Por exemplo, North e Weingast observam que aps aRevoluo Gloriosa na Inglaterra, os poderes do parlamento aumentaram muito, masa monarquia no foi completamente abolida.57 A criao de um equilbrio de poderentre as instituies serviu para aumentar a previsibilidade das polticas governamen-tais: Aumentar o nmero de atores com poder de veto implicava que um conjunto

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    maior de eleitores podia se proteger contra o assalto poltico, reduzindo assim de modomarcante as circunstncias em que o comportamento oportunista do governo poderiaocorrer.58 Em uma variante desse argumento, Stephenson, desenvolvendo uma suges-to anterior de Ramseyer, sugere que a reviso por um judicirio independente podeajudar a fazer com que rivais polticos avessos ao risco cumpram compromissos assumi-dos entre eles e se comportem de modo moderado no poder.59

    Por fim, o terceiro argumento a favor da separao dos poderes que ela tendea promover a competio entre diferentes instituies. Em algumas circunstncias, odesempenho de uma instituio serve de medida para o desempenho de outras. A

    competio pode ser horizontal, como no caso da que ocorre entre os poderes exe-cutivo, legislativo e judicirio, ou vertical, como entre nveis nacionais e subnacionaisde governo.60

    Por exemplo, Weingast defende as virtudes do que chama de federalismo preser-vador do mercado. Os principais atributos de um sistema federal de preservao domercado so que a autoridade primria sobre a economia fica na mo dos governosregionais, em vez de com o governo central, mas os governos regionais so impedi-dos a erguer barreiras ao livre movimento de mo-de-obra e bens e enfrentam umadura restrio oramentria, de tal modo que no podem imprimir dinheiro e notm acesso a crdito ilimitado.61 De acordo com Weingast, dentro de um sistemafederal de preservao do mercado, as unidades de governo regional competem por

    capital e trabalho implementando as normas econmicas mais eficientes. Enquantoisso, o governo central no tem autoridade para acomodar os interesses econmicosque foram deslocados e que prometem apoio poltico em troca da interveno paradeter ou reverter as mudanas que acompanham o crescimento econmico.62

    Kenneth Dam aceita os argumentos em favor da separao dos poderes e a impor-tncia de um poder judicirio eficiente e independente, mas ressalta que essesconceitos parecem significar coisas diferentes dependendo do pas ou esto, pelomenos, encarnados em distintas instituies jurdicas.63 Inglaterra, Frana e EstadosUnidos atribuem quantidades de poder muito diferentes ao legislativo em relao aoutros ramos do governo.64 Ele mostra tambm que esses e outros pases diferemconsideravelmente em termos dos mecanismos que governam as nomeaes e as res-

    cises judiciais, os critrios para nomeao e promoo no judicirio, e a indenizaojudicial.65 Alm disso, essas questes so todas temas de controvrsia nas democra-cias desenvolvidas do Ocidente e apresentam problemas ainda mais srios em muitospases em desenvolvimento com tradies dbeis de democracia e liberdades civis, epoucos profissionais do direito de alto gabarito e sem filiaes polticas.

    1.4.3 Liberdade de imprensa

    Outro corpo de literatura enfatiza a importncia do desenvolvimento de umaimprensa livre e competitiva ou seja, independente da influncia do governo , em

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    particular como freio para o abuso de poder das autoridades.66 Por exemplo,Amartya Sen sustentou que as epidemias de fome no acontecem em sociedades comacesso a uma imprensa livre porque uma populao consciente pode utilizar os meiosde comunicao para pressionar o governo a mudar as polticas que tratam do pro-blema em questo.67 Em termos mais gerais, ele sugere que uma estruturainstitucional que apoie a liberdade de manifestao e sua busca atravs da mdia podeprovocar outras mudanas institucionais ao chamar a ateno da populao e, portan-to, das autoridades pblicas, para questes controvertidas que as autoridadesprecisam enfrentar.68

    Em linha similar, outros estudiosos sugeriram que uma imprensa livre pode desem-penhar um papel importante no controle do abuso de poder por autoridades estatais.A teoria que, se a imprensa livre e competitiva, os jornalistas tero um incentivopara revelar e relatar casos de abuso. Brunetti e Weder sustentam que essa teoria con-firmada por anlises de regresso transnacionais da relao entre medidas de liberdadede imprensa e corrupo, embora eles no especifiquem que tipos de corrupo somais afetados.69 A liberdade de imprensa pode tambm impedir o abuso de poder aolimitar a capacidade do Estado de manipular os meios de comunicao. Por exemplo,em algumas sociedades existe a preocupao com o fato de a mdia controlada peloEstado ser usada para promover a inimizade em relao a minorias tnicas. Umaimprensa livre pode ser menos vulnervel a esse tipo de manipulao.70

    1.5 OS INTERNACIONALISTASOs livros de Carothers e Dam centram a ateno nas instituies jurdicas nacionais eseus efeitos sobre o bem-estar dos habitantes de pases em desenvolvimento. Porm,como a maioria dos colaboradores da coletnea de Trubek e Santos reconhece, mui-tos formuladores de polticas e estudiosos preocupados em melhorar a situao dessespases e de seus habitantes concentram-se nas instituies jurdicas internacionais. Nasdcadas de 1960 e 1970, o foco da ateno era a ONU, e os apelos pela criao deuma nova Ordem Econmica Mundial resultaram na aprovao de vrias resolueshistricas na Assembleia Geral das Naes Unidas.71 Mais recentemente, a atenomudou para outros traos proeminentes do sistema jurdico internacional, tais como

    as leis internacionais de direitos humanos, a Organizao Mundial do Comrcio, aConveno Anti-suborno da Organizao para a Cooperao e DesenvolvimentoEconmico (OCDE) e os tratados bilaterais de investimento.

    O otimismo em relao ao papel das reformas do direito econmico internacionalbaseia-se, em parte, em seus efeitos potenciais sobre o comrcio e o investimentointernacionais que, por sua vez, influenciam os preos enfrentados pelos consumidoreslocais, as oportunidades para os produtores locais comercializarem seus produtos, eincentivos para que esses produtores inovem. Esse tipo de anlise sustenta claramenteos apelos por reformas de provises da OMC, que governam assuntos como comrcio

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    internacional de produtos agrcolas e comrcio de servios de trabalhadores de baixaqualificao, bem como certos aspectos dos tratados bilaterais de investimento.

    O otimismo quanto s reformas jurdicas no nvel internacional tambm sebaseia, em parte, nos efeitos potenciais dessas reformas sobre as instituies jurdi-cas nacionais.72 Para comear, alguns aspectos do regime jurdico internacionalregulam diretamente o contedo do direito nacional. Por exemplo, vrios aspectosdos acordos da OMC probem certos tipos de arranjos jurdicos internos com basena teoria de que constituem barreiras disfaradas ao comrcio. Porm, o regimeinternacional tambm pode moldar indiretamente as instituies jurdicas nacionais,

    ao alterar a paisagem poltica interna. Por exemplo, as reformas que reduzem as bar-reiras ao comrcio podem fazer com que os setores da economia orientados para aexportao se expandam e aumentem seu poder poltico. Eles podem ento usar essepoder para exigir reformas jurdicas que promovam os prprios interesses econmi-cos e, possivelmente, de outros membros da sociedade.

    Por outro lado, Brunetti e Weder argumentam que as reformas que liberalizamo fluxo internacional de bens, capitais e trabalho podem provocar reformas jurdicasinternas ao aumentar as oportunidades dos membros da sociedade de sair e de exer-cer sua voz.73 Eles sustentam que a abertura aumenta a mobilidade de fatores livrese sem compromisso, apresentando uma ameaa crvel de sada. Portanto, os gover-nos preocupados com a manuteno de sua base tributria teriam incentivos para

    melhorar os servios pblicos bsicos.74 Eles afirmam tambm que, em economiasmais abertas, os indivduos so expostos com mais frequncia aos sistemas polticosde outras naes e aprendem a partir da observao como benfico para os neg-cios um imprio de direito vigente.75 Essas observaes propiciam aos indivduosmarcos para avaliar a qualidade dos servios de seus governos, pressionando-os amelhorar os que apresentam deficincias.

    1.6 OS OTIMISTAS DO IMPRIO DO DIREITOA maioria das teorias examinadas at agora enfatiza a relao entre um aspecto dosistema jurdico direito pblico ou privado, direito internacional ou nacional, etc.

    e o desenvolvimento. Porm, muitos otimistas assumem um ponto de vista mais

    holstico sobre a questo. Como a epgrafe de Carothers sugere, esses otimistas enfo-cam o grau em que o sistema jurdico em geral manifesta respeito pelo imprio dodireito, em vez de tratarem dos atributos de qualquer componente isolado do siste-ma como determinante do desenvolvimento.76

    Para alguns tericos, o imprio do direito indica um conjunto de caractersticasintrinsecamente valiosas de um sistema jurdico, antes um fim do que um meio dodesenvolvimento. Para outros, no entanto, o foco no imprio do direito se justifica pelanoo de que o direito e as instituies jurdicas desempenham funes sociais funda-mentais e que eles devem assumir uma determinada forma a fim de cumpri-las.

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    O artigo de Rachel Kleinfeld, na coletnea de Carothers, constitui uma afirma-o exemplar desse ponto de vista.77 Ao assumir essa posio, ela se baseia em ideiasque esto profundamente arraigadas na teoria do direito ocidental moderno.78 Umdos principais expoentes desse conceito foi Lon Fuller. Em uma de suas obras maisfamosas, ele identificou oito desiderata distintos ao se projetar um sistema jurdico.Segundo essa lista, em forma resumida, uma lei deveria: (1) ser de aplicao geral;(2) ser divulgada ou, ao menos, estar disponvel de antemo s partes afetadas; (3)ser de aplicao possvel; (4) ser compreensvel; (5) ser coerente (isto , no contra-ditria); (6) no exigir conduta alm dos poderes da parte afetada; (7) no estar

    sujeita a mudanas frequentes; (8) e refletir congruncia entre as normas tal comoanunciadas e sua administrao efetiva. De forma um tanto controversa, Fuller sus-tentava que um sistema jurdico que no satisfizesse esses desiderata no seria apenasruim, como no poderia ser chamado de forma alguma de sistema jurdico. 79 Pareceque ele assumia a posio de que um sistema jurdico que no cumprisse algumas outodas essas condies no seria capaz de servir a qualquer propsito social til (emparte porque seria improvvel que obtivesse a cooperao voluntria dos cidados),e de que os objetivos sociais do direito so cruciais.80

    Em tempos mais recentes, entrou na moda referir-se sucintamente s virtudesfundamentais dos sistemas jurdicos como manifestaes do imprio do direito. Emum famoso ensaio, Joseph Raz sugeriu que a ideia bsica subjacente ao imprio do

    direito pode ser derivada comeando-se da simples premissa de que o direito deveser capaz de orientar o comportamento de seus sditos. A partir dessa ideia bsica,Raz produziu uma lista de princpios que servem como sinais da existncia do imp-rio do direito. Sua lista coincide em par te com a de Lon Fuller, a tal ponto que incluios princpios de que todas as leis devem ser de aplicao possvel, abertas e claras,e devem ser relativamente estveis, bem como a criao de determinadas leis [...]deve ser orientada por regras abertas, estveis, claras e gerais. Porm, o trao maisinteressante da lista de Raz que ela inclui tambm princpios que se referem tantos instituies que aplicam as normas jurdicas quanto s prprias normas legais.Com efeito, esses princpios de desenho institucional constituem cinco dos oito itensde sua lista. Especificamente, Raz diz que a independncia do judicirio deve ser

    garantida, os princpios da justia natural devem ser observados, os tribunaisdevem ter poderes de reviso sobre a implementao dos outros princpios e os tri-bunais devem ser de fcil acesso.81 Tal como Fuller, Raz sugere que a conformidadeao imprio do direito virtualmente sempre de valor instrumental na medida emque permite que o sistema jurdico desempenhe funes sociais teis.82

    Tratando explicitamente dos pases em desenvolvimento, Brian Tamanaha tam-bm defende o ponto de vista de que o imprio do direito tem valor instrumental.83

    Porm, sua verso minimalista do imprio do direito exigiria apenas que o gover-no se submeta s regras promulgadas pela autoridade poltica e trate seus cidados

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    com dignidade humana bsica, e que exista acesso a um rgo decisrio ou judici-rio justo e neutro (na medida do possvel) para ouvir as reivindicaes ou resolverdisputas.84 De acordo com Tamanaha, o imprio do direito assim definido desem-penha um papel importante na proteo dos indivduos contra governos autoritriosopressivos ou desonestos.

    Um trao interessante das anlises de Fuller, Raz, Tamanaha e Kleinfeld sua abs-trao dos detalhes legais e institucionais. Os quatro deixam razoavelmente claroque, do ponto de vista deles, vrios arranjos jurdicos e institucionais so compat-veis com a maioria de suas prescries. Por exemplo, de sete de seus oito desiderata,

    Fuller diz que [...] o mximo que podemos esperar das constituies e dos tribunais que eles nos salvem do abismo; no podemos esperar que estabeleam muitos pas-sos compulsrios na direo de uma realizao verdadeiramente significativa.85 Namesma linha, Raz deixa claro que a validade e a importncia de muitos dos princ-pios que podem ser derivados da ideia bsica do imprio do direito dependem dascircunstncias particulares de diferentes sociedades. Ele menciona tambm que [osprincpios] devem ser constantemente interpretados luz da ideia bsica. Quanto aTamanaha, ele se esfora para enfatizar que sua concepo minimalista do imprio dodireito compatvel com muitos arranjos socioculturais.86 Do mesmo modo,Kleinfeld declara que os objetivos finais do imprio do direito podem ser alcana-dos mesmo quando as instituies variam amplamente.87

    O fato de Fuller, Raz, Tamanaha e Kleinfeld tentarem formular proposies uni-versais sobre as caractersticas de sistemas jurdicos socialmente desejveis os situaperfeitamente no campo dos otimistas do direito. Isso indica que otimistas que tam-bm afirmam os mritos de instituies jurdicas especficas, como, por exemplo,Kenneth Dam, endossariam a alegao de que o imprio do direito importante parao desenvolvimento.88 Porm, a relutncia desses tericos em endossar meios espe-cficos de alcanar a excelncia jurdica os coloca parte de muitos otimistas dodireito e pode fazer com que o trabalho deles atraia alguns dos cticos cujas concep-es examinaremos a seguir.89

    2 OS CTICOS DO DIREITO

    2.1 O MARCO HISTRICO DA CRTICAA primeira onda de otimismo em relao ao direito e desenvolvimento no perodo dops-guerra teve vida curta: ela mal comeara em meados da dcada de 1960 e j em1974, Trubek e Galanter duas figuras fundadoras do campo , anunciavam seu bitono muito citado artigo Acadmicos auto-alienados....90 Em certa medida, eles remon-tam o declnio do movimento a experincias exclusivamente americanas com omovimento dos direitos civis e a guerra do Vietn. Essas experincias levaram a uma

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    conscincia da discrepncia entre os ideais americanos e a realidade do sistema jurdicodo pas. Em outras palavras, medida que comeavam a questionar seus ideais em casa,os americanos comeavam tambm a questionar seu valor como modelo para outrospases. Eles notaram tambm o ceticismo em relao aos motivos do governo dosEstados Unidos e seus colaboradores locais em muitos pases em desenvolvimentodurante o perodo da guerra fria. Porm, a razo mais fundamental para o declnio domovimento Direito e Desenvolvimento era o fato de ser amplamente percebido comoum fracasso na melhoria aprecivel da situao da maioria dos pases em desenvolvimen-to. Por sua vez, essa avaliao desfavorvel influenciou os patrocinadores de iniciativas

    de direito e desenvolvimento a reduzir ou retirar o apoio aos programas dessa rea.91De acordo com o artigo crucial de Trubek e Galanter, a ideia de que o legalismoliberal americano podia ser transplantado com sucesso para pases em desenvolvi-mento estava completamente equivocada. Consideravam essa ideia etnocntrica eingnua, pois as precondies para o xito da implementao do modelo jurdicoliberal contrastavam fortemente com a realidade dos pases em desenvolvimento.Afirmavam eles:

    Empiricamente, o modelo presume um pluralismo social e poltico, ao passoque na maior parte do Terceiro Mundo, encontramos estratificao social eclivagem de classe justapostas a sistemas polticos autoritrios ou totalitrios.

    O modelo presume que as instituies estatais so o lugar principal docontrole social, ao passo que, em boa parte do Terceiro Mundo, o domnioda tribo, do cl e da comunidade local muito mais forte do que o do Estado-nao. O modelo presume que as normas refletem os interesses da vastamaioria dos cidados e, ao mesmo tempo, so normalmente internalizadas poreles, enquanto em muitos pases em desenvolvimento as normas so impostasa muitos por poucos e so frequentemente mais honradas na infrao do quena observncia. O modelo presume que os tribunais so atores centrais nocontrole social e que so relativamente autnomos em relao aos interessespolticos, tribais, religiosos ou de classe. Contudo, em muitos pases,os tribunais no so muito independentes nem muito importantes.92

    Devido divergncia entre as condies nos pases em desenvolvimento e aque-las existentes nas naes desenvolvidas, a reforma das instituies jurdicas tinhapouca ou nenhuma influncia sobre as condies sociais ou econmicas dos pases doTerceiro Mundo. Isso se devia, em parte, ao fato de o sistema jurdico formal ofoco principal do legalismo liberal , no ser acessvel maioria da populao emgrande parte dos pases em desenvolvimento. A esse respeito, o primeiro movimen-to Direito e Desenvolvimento poderia ser acusado de dar pouca ateno s leisconsuetudinrias e outras instituies jurdicas informais.93 Pior ainda, na medida

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    em que enfatizava o potencial instrumental do direito, o programa de direito edesenvolvimento tinha o efeito de reforar desigualdades perniciosas e permitir queas instituies jurdicas servissem de instrumentos de dominao nas sociedades emdesenvolvimento. Ademais, o desenvolvimento de capacidades instrumentais dos

    juristas locais pode ter, na verdade, reforado as desigualdades sociais e econmicasao elevar o custo dos servios jurdicos e reduzir a participao na tomada de deci-ses por meio da formalizao da tomada de deciso jurdica. Uma melhoria dascapacidades instrumentais dos advogados poderia conduzir a uma resistncia maisefetiva das elites em relao aos esforos de desenvolvimento; elas contratariam

    gente do grupo conservador de profissionais da lei para esse fim.94A abordagem ctica do direito e desenvolvimento apresentada em Acadmicos

    auto-alienados... pode ser considerada uma sntese de vrias escolas dspares depensamento, como pluralismo jurdico, materialismo histrico, teoria da dependn-cia, estudos jurdicos crticos e determinismo cultural. A sntese que Trubek eGalanter criaram continua a ser extremamente influente e, sob muitos aspectos, foirearticulada nos artigos coligidos e editados por Carothers e por Trubek e Santos.Porm, importante reconhecer que seus componentes intelectuais subjacentes, emmuitos casos, eram preexistentes publicao do famoso artigo e continuaram a sedesenvolver de forma independente. No interesse da clareza analtica, til distin-guir esses componentes. particularmente importante no esquecer que a crtica de

    Trubek e Galanter abrange ao menos trs formas distintas de ceticismo, a saber: (1)ceticismo quanto capacidade dos atores que se engajaram na reforma jurdica, atagora, de identificar e implementar as reformas apropriadas; (2) ceticismo quanto aosistema jurdico ser um trao da sociedade manipulvel verdadeira e independente-mente; (3) e, o que talvez seja o mais importante, ceticismo quanto existncia dealguma relao causal entre reformas jurdicas e desenvolvimento.

    2.2 PROBLEMAS DE IMPLEMENTAOBoa parte do debate atual sobre direito e desenvolvimento no sobre a viabilidadeda reforma jurdica ou se ela tem o potencial para promover o desenvolvimento, massobre os tipos apropriados de reformas. Em outras palavras, uma grande parte da dis-

    cusso sobre o modo como promover a reforma jurdica, e no sobre suaprobabilidade de produzir bons resultados.Em certa medida, o destaque dessas controvrsias reflete o sucesso da teoria oti-

    mista do direito e desenvolvimento como empreendimento intelectual. Tendo emvista a quantidade e a variedade de afirmaes contraditrias sobre o significado dedesenvolvimento e os tipos de reforma jurdica que levaro a ele, h mais do que osuficiente para alimentar o ceticismo em relao capacidade de qualquer conjuntode reformas de alcanar seus objetivos. Assim, por exemplo, muitos dos autores reu-nidos no volume editado por Trubek e Santos tm dvidas sobre a probabilidade de

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    os projetos de reforma atuais alcanarem o objetivo da justia social, a no ser indire-tamente.95 No volume de Carothers, Kleinfeld critica os projetos de imprio dodireito por tratarem as reformas jurdicas como fim, em vez de meio; Golub criticaprogramas por no se concentrarem no objetivo de aliviar a pobreza e por superesti-marem a importncia da profisso jurdica e os atores estatais;96 e Mednicoff critica osprogramas americanos de imprio do direito no mundo rabe por enfocarem a refor-ma judicial em vez da educao cvica e profissional;97 e muitos autores reclamam queos reformadores estrangeiros no reconhecem a importncia do conhecimento local eda adaptao s condies locais na promoo das reformas jurdicas.98

    Outras crticas da implementao dessas reformas tratam da competncia dos ato-res estrangeiros que patrocinam muitas delas e o grau em que suas atividades soprejudicadas por conflitos de interesse e preconceitos intelectuais ou ideolgicos. Porexemplo, Santos sugere que a competio por poder, recursos e prestgio dentro doBanco Mundial combina-se com uma falta de accountabilitypara induzir unidades dobanco a apoiar projetos de reforma jurdica sem refletir sobre o impacto delas sobreo desenvolvimento, seja antes ou depois do fato.99 De modo semelhante, profissionaisda rea jurdicas de pases em desenvolvimento, inclusive juzes, consultores e ativis-tas, podem ter um interesse pessoal na promoo de reformas jurdicas sem levar emconta o impacto delas sobre a sociedade mais ampla.10 0 Santos sugere tambm que ospreconceitos intelectuais e ideolgicos que afetam funcionrios tanto do Banco

    Mundial como dos governos que tomam emprstimos contribuem para as preocupa-es dessas instituies com certos tipos de reforma jurdica.10 1

    Muitas dessas queixas tambm so feitas por colaboradores do volume organizadopor Carothers.102 Alm disso, Kleinfeld destaca que algumas reformas so instigadaspor atores estrangeiros que tentam promover seus interesses prprios em questescomo segurana mundial ou exportar determinados valores, em vez de ajudar os pa-ses pobres a se desenvolver.103 Channell observa tambm os problemas causados pelaprtica de agncias de desenvolvimento de confiar em consultores externos que sosupostamente expertos em seus campos, criando assim incentivos limitados para inves-tir na aquisio de conhecimento especfico de contexto, formular solues novas ecompartilhar informao.104 Piron mostra que muitas das dificuldades associadas

    implementao de reformas jurdicas patrocinadas de fora tm por paralelo os proble-mas encontrados no fornecimento de outros tipos de ajuda ao desenvolvimento poratores externos. Ela sugere que os proponentes de reformas jurdicas deveriam basear-se na expertise de outros praticantes e estudiosos da ajuda.105

    Reconhecer os problemas potenciais de implementao de reformas jurdicas noimplica necessariamente que os projetos de reformas nos pases em desenvolvimentodevam ser abandonados. Mas sugere que as expectativas em relao ao impacto dessasreformas deveriam ser modestas. A existncia de desacordos tericos em andamentoimplica que muitas reformas deveriam ser consideradas experimentos destinados a

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    gerar conhecimento sobre a relao entre direito e desenvolvimento, em vez de apli-caes das melhores prticas fundadas em princpios tericos incontroversos.Enquanto isso, as reclamaes constantes em relao s reformas patrocinadas por ato-res estrangeiros implicam algum grau de modstia de parte dos atores externos (ou defora) na promoo do imprio do direito ou de outras reformas jurdicas nos pasesem desenvolvimento e, em contrapartida, um papel maior para os de dentro, comconhecimento detalhado tanto dos valores locais como dos inumerveis fatores quedeterminam as consequncias de adotar ou adaptar instituies jurdicas especficas.

    Por fim, a combinao de ausncia de consenso terico sobre a direo apropriada

    da reforma e as dvidas sobre reformas apoiadas por atores dos pases desenvolvidossugere que os pontos de referncia para reformas jurdicas em muitos pases em desen-volvimento no precisam ser instituies jurdicas que prevaleam nos pasesdesenvolvidos. Ao contrrio, pode ser mais apropriado adaptar os arranjos jurdicosque prevalecem em outros pases em desenvolvimento que compartilhem aspectosimportantes dos valores, da histria, da cultura e das tradies institucionais com asnaes que se decidem por tais reformas.

    2.3 O PROBLEMA DO DETERMINISMO JURDICOO problema com o direito e desenvolvimento, tal como praticado atualmente, podeser mais do que uma mera questo de implementao ou sensibilidade poltica. A razo

    de as reformas jurdicas no cumprirem suas promessas talvez no seja simplesmenteporque as pessoas no identificaram o pacote correto de reformas. Outra possibilida-de a de que os aspirantes a reformadores sejam necessariamente incapazes de efetuarmudanas jurdicas significativas. Talvez seja o caso de que os sistemas jurdicos smudem em resposta a fatores histricos, econmicos, culturais ou polticos fundamen-tais e sejam, em larga medida, imunes a tentativas de reforma de cima para baixo.

    Esse tipo de ceticismo sobre o papel independente que as instituies jurdicasdesempenhariam na promoo da mudana social ocupa lugar importante nas obrasem exame e tem uma longa e ilustre tradio intelectual.

    2.3.1 Dependncia de trajetria (path dependency)

    Alguns tericos parecem acreditar que as mudanas institucionais costumam ocorrerpor acaso, e no de propsito. Por exemplo, Dam dedica uma boa quantidade deateno ctica s tentativas de explicar vrias caractersticas importantes dos siste-mas jurdicos contemporneos fazendo referncia a maior ou menor ligao, emsentido histrico, a uma das vrias famlias jurdicas, a saber, o direito consuetudin-rio ou o direito civil alemo, francs ou escandinavo.10 6 O leitor desses estudos ficacom a impresso de que o destino de muitas sociedades contemporneas foi seladono sculo XIX, quando algum decidiu que seriam governadas pelo direito civil fran-cs ou o direito consuetudinrio ingls.10 7

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    Douglass North esforou-se muito para tentar explicar a relao entre eventoshistricos e instituies contemporneas. Ele se baseou nas teorias de dependnciade trajetria, formuladas inicialmente no contexto da mudana tecnolgica10 8 e sus-tentou que a mudana institucional igualmente dependente.10 9 Afirmou, ainda,que a trajetria do desenvolvimento institucional, uma vez estabelecida, reforadapor crescentes retornos que so caractersticos da estrutura institucional inicial:Depois que a trajetria do desenvolvimento determinada num certo sentido, asexternalidades de rede, o processo de aprendizado das organizaes e a moldagemsubjetiva historicamente derivada das questes reforam esse sentido.11 0 Portanto,

    improvvel que o desenvolvimento institucional seja interrompido at mesmo poruma transformao revolucionria na ordem poltica ou jurdica.11 1

    Porm, embora seja convincente em determinado nvel, em outro nvel o con-ceito de North de dependncia de trajetria especificado de forma insuficientepara ser til no mundo real. Sem maior elaborao, sua teoria no pode explicar oslimites da dependncia de trajetria, limites que existem, obviamente. Por exemplo,em 1974, somente 39 pases um em cada quatro do mundo eram democrticos.Em 1997, 117 pases quase dois em trs , eram democrticos11 2 (reconhecendo-se que muitos desses regimes eram frgeis ou corruptos).11 3 No decorrer desseperodo, a maioria das antigas economias socialistas e comunistas tambm entrou emtransio para a economia de mercado, com graus variados de sucesso. E alguns pa-

    ses em desenvolvimento, em especial no leste asitico, realizaram, com notvelxito, transformaes econmicas (e frequentemente polticas e jurdicas) em pou-cas dcadas. Essas mudanas foram acompanhadas ou efetuadas por uma proliferaode novas leis e instituies polticas, jurdicas e econmicas, muitas vezes a contra-pelo de velhas tradies antitticas. Obviamente, a dependncia de trajetria no absoluta nem permanente. O reconhecimento da importncia dos eventos histricosna moldagem das instituies jurdicas do presente ainda deixa em aberto a questoda possibilidade de os reformadores alterarem deliberadamente o curso dos eventosatuais para provocar mudanas jurdicas que venham a beneficiar a sociedade. Assim,voltamos nossa ateno para teorias que identificam fatores econmicos, polticos eculturais mais especficos que limitam o alcance da reforma jurdica em qualquer

    contexto dado.

    2.3.2 Teorias econmicas

    Parece intuitivamente plausvel que o prprio fato da falta de desenvolvimento eco-nmico possa impedir os pases em desenvolvimento de empreender com sucessoreformas jurdicas sem apoio externo. Existem custos reais associados operao deinstituies jurdicas sofisticadas, sobretudo os custos de treinamento e de manuten-o do pessoal habilitado para o funcionamento de tribunais e outras instituies

    jurdicas, para minutar legislao e disseminar informaes sobre o contedo das

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    leis.11 4 Est igualmente claro que alguns pases em desenvolvimento no se mostramdispostos ou no tm condies para arcar com esses custos. Em seu artigo includona coletnea de Carothers, Piron descreve situaes na Nigria em que os juzes cujoacesso a relatrios jurdicos dependia de advogados que compareciam diante deles,ou em Ruanda, onde, em 1997, havia cerca de 50 juzes, 20 promotores e 50 advo-gados para uma populao de 7,5 milhes.11 5 Ela conclui que so necessriosinvestimentos macios no setor de justia na frica.11 6

    Por outro lado, h motivos para fazer uma pausa antes de supor que a falta dedesenvolvimento econmico representa per se um obstculo insupervel para a cria-

    o de instituies jurdicas de alta qualidade. Em primeiro lugar, a proporo dariqueza de uma sociedade alocada para a manuteno de suas instituies jurdicasdepende, em parte, da natureza dessas instituies. O aspecto mais bvio que aquantidade de recursos pblicos disponveis para financiar as instituies jurdicasdepende muito da qualidade das instituies responsveis pela coleta de impostos.

    Um segundo motivo para que a riqueza no seja um pr-requisito da qualidade ins-titucional que instituies excelentes talvez no sejam muito dispendiosas. Comoobservamos acima, os principais custos associados ao funcionamento de instituies

    jurdicas so os de pessoal. Porm, eles tendem a ser determinados, sobretudo, pelaoferta de mo-de-obra com as habilidades pertinentes, e no simplesmente pela rique-za nacional. Alguns pases pobres, no sentido de ter baixos nveis de renda nacional e/ou

    dotao limitada de recursos naturais, possuem, no obstante, populaes relativamen-te mal pagas, mas bem instrudas. Nesses pases, os custos da manuteno de instituiesjurdicas de alta qualidade podem no ser proibitivos.117 Ademais, em alguns casos, aqualidade das instituies manifesta-se em sua capacidade de limitar, em vez de expan-dir, o papel do Estado. Por exemplo, normas jurdicas que limitam a capacidade dogoverno de prender os oponentes polticos ou regulamentar a mdia so exemplos pos-sveis. Esses tipos de instituies de alta qualidade tendero a conservar recursos fsicose humanos e, assim, serem menos caras que instituies de pior qualidade.

    Uma terceira razo para questionar o pressuposto de que a qualidade institucio-nal fortemente determinada pela riqueza o fato de ser possvel que boasinstituies jurdicas se paguem. Em outras palavras, talvez seja possvel recuperar os

    benefcios de investir em instituies jurdicas tributando o aumento da atividadeeconmica estimulado pela melhoria das instituies. Nesse caso, enquanto o gover-no tiver acesso ao crdito, as restries da riqueza no devem afetar sua capacidadenem seus incentivos para investir em instituies de alta qualidade.

    2.3.3 Teorias polticas

    Um refro comum ao longo do livro de Carothers que os fatores polticos sodeterminantes cruciais do sucesso ou no das reformas jurdicas.11 8 Do mesmomodo, ao menos alguns autores do volume editado por Trubek e Santos assumem ser

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    evidente que subjacentes s vrias lutas sobre a direo da reforma jurdica seencontram ideologias e interesses polticos em conflito.11 9 (Dam reconhece o argu-mento, mas indica que as questes polticas esto fora do alcance de seu livro.)12 0

    Infelizmente, nenhum dos livros faz um esforo sustentado de generalizao das cir-cunstncias em que provvel que os fatores polticos sejam mais ou menosconducentes a determinados tipos de reformas. H, no entanto, um grande corpode literatura que trata dessa questo.

    Muitos estudiosos sugerem que a qualidade das instituies jurdicas depende,em ltima anlise, do interesse daqueles que exercem o poder poltico em criar ins-

    tituies jurdicas que melhorem o bem-estar geral da sociedade ou, principalmente,em extrair renda em benefcio prprio.

    Alguns tericos sustentam que a resposta a essa questo determinada com fre-quncia por tradies polticas moldadas na era colonial. Eles remontam osurgimento de Estados autoritrios predadores a instituies coloniais criadas comobjetivos similares.12 1 Em uma recente extenso dessa linha de argumentao,Acemoglu, Johnson e Robinson sugerem que o fato de os europeus tentarem ou nomontar um Estado extrativo, em oposio a uma neo-Europa nas colnias foiinfluenciado significativamente por fatores geogrficos que, por sua vez, determina-ram a viabilidade da colonizao europeia: Em lugares onde o ambiente doentio noera favorvel colonizao europeia, a sorte estava contra a criao de neo-Europas

    e era mais provvel a formao de um Estado extrativo.12 2 Eles corroboram essateoria usando uma anlise regressiva de mltiplos pases que mostra fortes relaespositivas entre taxas de mortalidade de colonos europeus, qualidade das instituiescoloniais e das instituies atuais, e renda per capita.

    Outros estudiosos do preeminncia ao poder que os atores estrangeiros conti-nuam a exercer sobre pases em desenvolvimento. Por exemplo, para os tericos dadependncia, o foco est no poder que as metrpoles exercem sobre sociedades peri-fricas como principais fatores determinantes da forma das instituies jurdicas emsociedades dependentes. Em vez de explorar mtodos de reformar essas instituies,os tericos da dependncia centram a ateno nos mtodos de promover mudanasfundamentais no equilbrio de poder econmico e poltico nas sociedades dependen-

    tes. Eles defendem a substituio de regimes dominados por atores estrangeiros oupor uma elite local relativamente pequena, ou por governos mais populistas que ado-tariam polticas econmicas socialistas. Nessas teorias, com frequncia, presume-sesimplesmente que a introduo do socialismo levaria inevitavelmente a uma srie dereformas institucionais projetadas para provocar redistribuies significativas deriqueza e poder.12 3

    Numa direo um pouco diferente, outros tericos exploraram o modo comoos fatores geogrficos influenciam o surgimento de instituies polticas predatriasou benvolas.12 4 Por exemplo, Engerman e Sokoloff afirmaram que sociedades com

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    grande dotao de recursos naturais cuja explorao envolve economias de escala ten-dem a ter distribuies desiguais de renda, riqueza e poder poltico.125 Referindo experincia do Novo Mundo, eles argumentaram que as elites das sociedades dasAmricas, caracterizadas por desigualdade extrema durante a era colonial, relutaramdepois em adotar instituies que proporcionassem acesso amplo a oportunidades eco-nmicas, inclusive instituies que provavelmente facilitariam a industrializao.126

    Numa linha semelhante, Auty sustenta que nas sociedades bem dotadas de recur-sos naturais, que geram grandes rendas econmicas facilmente apropriveis, provvelque o governo seja capturado por indivduos ou grupos interessados na predao, em

    vez de no desenvolvimento; a implicao disso que pases ricos em recursos naturaistendero a ter governos relativamente ruins (a assim chamada maldio dos recur-sos).127 Ao contrrio, em sociedades pobres de recursos, menos provvel que oEstado seja capaz de sustentar transferncias ineficientes e mais provvel que resistaa presses redistributivas. Nessas sociedades, provvel que surja um Estado desenvol-vimentista caracterizado por um compromisso com a melhora da produtividade.

    Outras teorias ainda concentram-se nos modos como divises duradouras aolongo de linhas tnicas, religiosas, lingusticas ou econmicas impedem o surgimen-to de um governo realmente benvolo. A ideia bsica que em sociedades divididascada grupo busca estimular o Estado a agir em apoio de seus interesses especiais, custa de interesses mais amplos e abrangentes. Por exemplo, diz-se com frequncia

    que a poltica de muitos pases da frica subsaariana essencialmente uma batalhaentre etnias pelo controle do Estado motivada pelo fato de que o controle do apara-to estatal cria a oportunidade de transferir riqueza de um grupo para outro.12 8

    Tendo em vista que um sistema jurdico de alta qualidade tem muitas caractersticasde um bem pblico, o compromisso difuso dos cidados com ideais como o impriodo direito pode no se traduzir numa mobilizao poltica efetiva por reforma. 12 9

    Dentro dessa linha de raciocnio, ODonnell argumenta que a desigualdade severaimpede que os membros mais privilegiados da sociedade reconheam os desprivile-giados como membros iguais da sociedade que tm direito a um tratamentorespeitoso em suas interaes com o sistema jurdico.13 0

    Teorias mais dinmicas sobre as relaes das condies polticas com as mudanas

    jurdicas tratam menos do exerccio do poder poltico de modo predatrio ou bene-volente e mais do grau de competio e de conflito pelo poder poltico. Os recursosperdidos por esse tipo de competio poderiam, presumivelmente, ser canalizadospara a melhoria das instituies jurdicas. Ademais, o conflito poltico crnico provo-cado por profundas divises sociais pode levar instabilidade poltica. Por exemplo,Alesina e Perotti afirmam que a desigualdade extrema de renda alimenta o desconten-tamento social e, assim, exacerba a instabilidade poltica.131 De modo semelhante,Amy Chua sustenta que a instabilidade sociopoltica provvel quando as desigualda-des econmicas seguem as divises tnicas, de modo que a riqueza se concentra nas

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    mos de minorias tnicas. De acordo com Chua, em muitos casos, esse fenmenotende a persistir ou mesmo exacerbar-se com a atividade das foras do livre mercadoe tende a fomentar a inveja e o dio entre etnias. Em consequncia, certos tipos desociedades, especificamente, aquelas que tentam ao mesmo tempo adotar o livre mer-cado e a democracia, so inerentemente instveis.13 2 Por sua vez, a instabilidadepoltica pode levar instabilidade jurdica que, como j observamos, amplamenteconsiderada incompatvel com o imprio do direito.133

    2.3.4 Teorias culturais

    Os trs livros em exame contm reconhecimentos do papel desempenhado por fato-res sociais ou culturais na moldagem de instituies jurdicas e da trajetria geral dodesenvolvimento.13 4 Porm, somente a obra de Dam oferece uma discusso aprofun-dada da afirmao ctica de que a cultura tem uma importncia primordial.13 5

    Esse tipo de ceticismo tem, na verdade, uma tradio ilustre. Ao longo dos scu-los, vrios tericos sugeriram que os fatores sociais e culturais desempenham o papelmais significativo na determinao de graus relativos de desenvolvimento.136 Um dosargumentos mais influentes nesse sentido foi a sugesto de Max Weber de que os valo-res associados ao protestantismo europeu ocidental so particularmente conducentesao capitalismo.137 David Landes, em sua contribuio para Culture Matters, afirma:Max Weber tinha razo. Se aprendemos alguma coisa com a histria do desenvolvi-

    mento econmico que a cultura faz toda a diferena.138 Mais recentemente,baseando-se numa tipologia criada por Mariano Grondona, em artigo includo emCulture Matters, Harrison preparou uma complexa tipologia de culturas propensas eculturas resistentes ao progresso, descrevendo como elas variam em termos de fatorescomo atitudes em relao capacidade de controlar o prprio destino, pontualidade,poupana, educao, risco e identificao com pessoas fora da famlia.139

    Os indcios de que instituies de alta qualidade esto conectadas causalmente aodesenvolvimento no prejudicam as teorias de orientao cultural. Os deterministasculturais podem argumentar que, embora as medidas de qualidade institucional possamser fatores determinantes prximos de graus de desenvolvimento, a prpria qualidadeinstitucional , por sua vez, determinada principalmente por fatores culturais. Nessa

    linha de argumentao, alguns estudos concluem que pases predominantemente pro-testantes costumam ter governos melhores que pases predominantemente catlicos oumuulmanos, sugerindo a hiptese de que Estado e igreja esto mais separados em pa-ses protestantes, realando freios e contrapesos, e que o protestantismo maisindividualista e menos hierrquico e familista que outras religies, aumentando a pro-babilidade de desacordo com polticas ou prticas governamentais indesejveis.140

    Robert Putnam oferece outro ponto de vista. Em seu famoso estudo sobre as tra-dies cvicas na Itlia, em que contrasta o norte e o sul do pas, ele sustenta que certasatitudes e prticas sociais profundamente enraizadas podem reforar ou enfraquecer a

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    legalidade. De acordo com Putnam, uma comunidade cvica marcada por uma cidada-nia ativa e de esprito pblico, por relaes polticas igualitrias, por um tecido socialde confiana e cooperao141 tem mais capacidade de superar dilemas de ao coleti-va e perseguir o que Alexis de Tocqueville chamou de interesse prprio entendidocorretamente a saber, objetivos que servem aos interesses mais amplos da socieda-de.142 Putnam argumenta que uma comunidade cvica tem estoques maiores decapital social, o qual consiste naqueles aspectos do engajamento cvico, inclusive nor-mas de reciprocidade e redes horizontais de engajamento cvico, que facilitam acooperao entre os membros de uma comunidade.143 A reciprocidade estimula a con-

    fiana social e desestimula o comportamento oportunista, uma vez que a desero deuma transao no presente acarreta punio no futuro.144 Putnam prossegue afirman-do que as normas de reciprocidade e redes de engajamento cvico realam a legalidadeao criar uma demanda por instituies de qualidade melhor e facilitar a ao coletivaexigida para cri-las.145 Essas normas melhoram tambm o desempenho das institui-es ao criar uma expectativa de que os outros obedecero as regras. Ele rejeita osargumentos (com frequncia associados teoria da Escolha Pblica) de que as redes emque tais normas prevalecem deveriam ser consideradas coalizes distribucionais quetentam redistribuir riqueza para elas mesmas em vez de buscar melhorar a condio dasociedade como um todo.146

    Alguns dos trabalhos mais recentes nessa linha foram enriquecidos com insights

    derivados da psicologia transcultural. Os psiclogos dessa escola compilaram umaquantidade impressionante de indcios que sugerem que h variaes importantes devalores culturais entre os pases.14 7 Uma das foras dessa literatura o fato de queela caracteriza as culturas com referncia a anlises de respostas a questes de pes-quisas padronizadas internacionalmente, tornando assim possvel que as culturassejam descritas em termos objetivos, em vez de subjetivos. Com base nessa literatu-ra, Amir Licht e seus coautores afirmaram que as variaes entre pases de valoresculturais esto correlacionadas com variaes em respeito ao imprio do direito,corrupo e accountabilitydemocrtica.14 8 Por exemplo, eles afirmam que a nfasenos valores culturais de autonomia ou individualismo, em oposio a integrao ecoletivismo, compatvel com o imprio do direito que eles definem simplesmen-

    te como o grau em que as regras so respeitadas e impostas , com a ausncia decorrupo e a accountabilitydemocrtica. Parte da lgica por trs desse argumentoparece ser que o imprio do direito e a ausncia de corrupo tendem a propiciar aosindivduos certeza quanto a seus direitos e, assim, possibilitar que persigam seusobjetivos. Ao contrrio, uma sociedade que valoriza a integrao ou o coletivismoir, provavelmente, estimular as pessoas a buscarem orientao em fontes no jurdi-cas, como a tradio e a famlia.

    Outro conjunto de teorias de orientao cultural concentra-se, no entanto, nopapel desempenhado por um aspecto definido de modo mais estrito da cultura de

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    uma sociedade, especificamente a cultura predominante entre os profissionais dodireito dessa sociedade. Esse corpo de literatura tambm remonta ao sculo XIX.Por exemplo, tericos como Maine e Savigny atribuam o brilho do direito romanoao fato de que, por alguma razo, a cultura romana glorificava os juristas que, por umlongo perodo de tempo, se dedicaram ao objetivo de melhorar continuamente asinstituies jurdicas de Roma.14 9

    Mais recentemente, Alan Watson ofereceu numerosos exemplos em apoio de suaafirmao de que as leis no se adaptam necessariamente para refletir condiessociais, polticas ou econmicas dominantes. Ele cita normas jurdicas que no bene-

    ficiam ningum dentro da sociedade, mas que, no obstante, persistiram por sculos,sobrevivendo a revolues sociais, polticas e econmicas.15 0 Watson sugere queantes de ser determinada por fatores polticos ou econmicos, a mudana jurdica impulsionada principalmente por juristas que, devido s caractersticas peculiares dasua profisso, ou tomam emprestado normas jurdicas de outras naes, ou as desen-volvem por analogia a normas existentes dentro de seu prprio sistema. Essapredisposio ao transplante, alega Watson, com frequncia deixa cegos os juristaspara a qualidade ruim de uma determinada norma, ou para sua inadequao para asociedade que a toma emprestado.15 1

    Um contraste notvel oferecido por Paul Mahoney, que sugeriu que os traosculturais tipicamente associados ao direito consuetudinrio ingls e ao direito civil

    francs so distintos e que as distines so economicamente significativas. Com baseem trabalho anterior de Hayek, Mahoney sustenta que a ideologia subjacente ao direi-to ingls promove a liberdade individual e a liberdade da interveno do governo.15 2

    Ao contrrio, a ideologia subjacente ao direito civil francs, que est encarnada emum cdigo patrocinado pelo Estado, promove os direitos coletivos e contempla ummaior ativismo do governo. De acordo com esse autor, devido resistncia ideolgi-ca do direito consuetudinrio interferncia governamental, o grau de separaoformal entre o judicirio e os outros ramos do governo costuma ser maior nos pasesque seguem o modelo ingls. O isolamento maior da influncia poltica aumenta aprevisibilidade e, portanto, a estabilidade do direito consuetudinrio. Ao contrrio, atradio mais intervencionista do direito civil francs oferece um campo maior para a

    alterao dos direitos de propriedade e contrato. Isso, por sua vez, pode reduzir a con-fiana dos cidados na ordem jurdica formal.15 3 Mahoney apoia esse argumento comdados empricos mediante anlise regressiva que mostra que os pases com tradio dedireito consuetudinrio tiveram, em mdia, ao longo do tempo, um crescimento eco-nmico significativamente maior que aqueles com tradio do direito civil.154 Emlinha semelhante, Thomas Heller afirma que demasiados esforos recentes de reformado imprio do direito nos pases em desenvolvimento se centraram nos tribunais etrataram, de forma demasiado estrita, de aumentar o rendimento dos tribunais exis-tentes (fazendo mais do mesmo) e deram pouca ateno a aspectos da cultura jurdica

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    e poltica que constrangem seus mandatos e funes. Ele sustenta que a promoo dealternativas competitivas ao sistema formal de tribunais poderia ser mais eficaz nodesbaratamento da cultura jurdica tradicional.15 5

    Evidentemente, para se qualificarem como teorias cticas para nossos propsitos,as teorias culturais da evoluo jurdica devem alegar no somente que a culturainfluencia as instituies jurdicas, mas tambm que a cultura no ela mesma influen-ciada por mudanas nessas instituies. Com efeito, as perguntas sobre o queimpulsiona a mudana cultural, o grau em que a cultura dependente de trajetria, sea mudana cultural pode ser intencionalmente provocada por mudanas institucionais

    e polticas e se e em que circunstncias as mudanas culturais so socialmente desej-veis so questes de intensa controvrsia.156

    Gillian Hadfield, por exemplo, afirmou recentemente que variaes significati-vas na cultura jurdica, inclusive aquelas comumente atribudas herana do direitoconsuetudinrio versus direito civil, poderiam ser explicadas por fatores institucionaistais como estratgias para selecionar e recompensar juzes ou procedimentos de jul-gamento.15 7 H certamente espao para mais pesquisas sobre esses tpicos. Mas porenquanto, o problema do conhecimento permanece.

    2.4 A ALTERNATIVA INFORMALA abordagem mais ctica da questo da valia das reformas jurdicas afirma que prati-

    camente no h conexo entre a natureza do sistema jurdico de uma sociedade e suasperspectivas de desenvolvimento. Em outras palavras, o direito no importa, nemmesmo como veculo por meio do qual fatores econmicos, culturais ou polticos no

    jurdicos exercem sua influncia. Curiosamente, esse ponto de vista radicalmentectico recebe pouca ateno nos livros em exame.

    Essa forma de ceticismo est fundada na crena de que o sistema jurdico que jdefinimos como um sistema que envolve administrao de normas por atores estatais

    apenas um dos vrios meios potencialmente viveis de controle social. Essa ideia foi prefigurada pela declarao de Trubek e Galanter de que o modelo [jurdicoliberal] presume que as instituies estatais so o lugar principal do controle social,ao passo que em boa parte do Terceiro Mundo, o domnio da tribo, do cl e da comu-

    nidade local muito mais forte do que o do Estado-nao. Em outras p