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A PRODUÇÃO TEXTUAL DE HENRIQUE SILVA NO JORNAL O PAIZ E EM A
INFORMAÇÃO GOYANA COMO PROJETO DE MEMÓRIA: A ESCRITA DE SI E A
RECEPÇÃO DOS LEITORES – 1890 A 1935
*Edismar Gomes Galvão
As produções textuais do goiano militar Henrique Silva no jornal O Paiz1 e,
posteriormente, em a Informação Goyana2, constituíram um projeto de memória. Essa
afirmação está ancorada nas centenas de publicações do militar realizadas nos dois periódicos
editados na capital federal à época Rio de Janeiro3. Nestes, são recorrentes em suas temáticas
a defesa das potencialidades de Goiás no tocante à fauna, flora, minérios, clima, solo e à
hidrografia.
Importa ressaltar que esse estado recebia pouca atenção do governo federal, que
subvalorizava sua produção de gêneros, notadamente a produção bovina. O departamento de
estatísticas do governo da União, às vezes, quando da divulgação de seus relatórios, atribuía
as exportações de Goiás a outros estados, especialmente São Paulo e Minas Gerais. O
desconhecimento acerca da região central do Brasil era quase total. Havia dificuldade em
localizar os estados dessa região; confundir Goiás com Mato Grosso era prática comum.
Junte-se a isso o reforço dado por intelectuais de gabinete4, que afirmavam ser a região de
clima insalubre à saúde e se tem, então, a bandeira desse escritor: lutar contra todos esses
equívocos aproveitando sempre que possível as oportunidades para desconstruir a imagem
negativa criada e alimentada pela imprensa, de modo geral, e a carioca, em particular. Atrás
dessa defesa, o seu interesse em se notabilizar diante dos goianos.
* Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás/UFG.
1 Registros mapeados no jornal entre 1890 a 1917. 2 1917 a 1935. 3 Este artigo tem como referência a dissertação de mestrado de nossa autoria a ser defendida no início do
segundo semestre de 2017. 4 Desse modo se referia Silva a esses médicos que elaboravam pareceres sobre Goiás sem, contudo, conhecer a
região. Quando muito, utilizava as estradas reais para elaborar seus estudos (Ver O Paiz 1890-1917; Informação
Goyana, 191701935).
Conforme o registro de batismo da Igreja Matriz da cidade de Silvânia5, o militar do
Exército Henrique Silva, segundo filho6 de Francisco José da Silva e Anna Rodrigues de
Morais e Silva, nasceu em 18 de março de 18657, no sítio São João, nas imediações da Cidade
5 Livro 5, p. 35, Igreja Matriz de Silvânia.
6 Seu irmão Vicente Miguel da Silva Neto foi vítima da doença de cólera na Guerra do Brasil contra o Paraguai,
precisamente, na Retirada de Laguna.
7 Henrique Silva foi batizado um mês após seu nascimento, em 16 de abril de 1865.
3
de Bonfim8, atual Silvânia, comparecendo à igreja o pai, que lhe dera o nome incomum para a
época9, Henrique Silva, neto de Vicente Miguel da Silva, personalidade de grande prestígio
que se firmou como defensor da ordem, da lei na segunda metade do século XVIII, na
Capitânia de Goiás, cidade de Bonfim. Já como Província, a família Silva continuou com
grande prestígio junto ao governo imperial; entre os diversos cargos ocupados pelo coronel
Francisco José da Silva, o de vice-presidente da Província foi o de maior poder, nele
permanecendo até sua morte, em 188610 (BRANDÃO, 1978: p. 54; BORGES: 1981;
SANCHES, 2012; SILVA, 1982). Adulto11, Henrique Silva se interessou pela vida militar.
Assim, em 1882, Silva iniciou carreira na condição de cadete, no Esquadrão de
Cavalaria de Goiás. Um ano depois, se matriculava na Escola Militar da Praia Vermelha, na
cidade do Rio de Janeiro. Após três anos de estudos abandonou o curso, mas não a vida
militar. Segundo a professora Maria Helena Nepomuceno (2003: p. 84), foi ali que Silva
entrou em contato com as ideias de Comte12. Um indício de que talvez o goiano tenha passado
pela Escola Militar seja a doação de um dia de soldo destinado à viúva de Benjamin
Constant13. Não obstante as dificuldades de encontrar registros do militar goiano nos arquivos
confirmando ou não sua passagem pela Escola Militar do Exército, isso não enfraquece o
argumento de que Silva apreendeu boa parte das ideias do pensador francês. Conforme afirma
Trevisan, nos primeiros anos da República, difícil era não ser positivista. Mesmo aqueles que
se posicionavam contrários às ideias do francês de algum modo se identificavam com elas.
Nas reflexões de Sérgio Buarque de Holanda apud Trevisan, essa questão torna-se evidente.
Para o primeiro, deve-se considerar como ponto alto da doutrina comtiana:
... não tanto o de Filosofia, ou de seita, ou religião, mas o estado de espírito e o
clima de opinião que, a partir dele, passou a contaminar vastas camadas, acabando
por marcar até mesmo “os que prezavam de combatê-lo” (TREVISAN, apud Sérgio
Buarque de Holanda, 2011: p. 55).
Nesse sentido, perceber Silva como o cidadão armado é perfeitamente razoável,
lembrando Benjamin Constant que o militar deveria receber “uma suculenta educação
científica” que lhe possibilitaria reconhecer os seus deveres não só militares, mas
8 Segundo registro da Câmara, a Vila de Bonfim foi elevada à cidade de mesmo nome no ano de 1857.
(BORGES, 1981: p. 52). 9 Um nome pequeno para os padrões do período, final do século XIX. Observação respaldada no livro de registro
da Igreja de Bonfim e outros documentos em diferentes arquivos de Goiás e cidade do Rio de Janeiro.
10 Foi nomeado pelo governo Imperial como oficial da Ordem da Rosa, tendo em vista seus relevantes serviços
prestados à Província de Goiás quando o Brasil enfrentava o Paraguai, na Província de Mato Grosso; nomeado
Comendador da Rosa (SILVA, 1907: p. 10 e 17).
11 À época, Henrique Silva contava com 17 anos (NEPOMUCENO, 2003: p. 84). 12 Não foi encontrada pista na Biblioteca Nacional; Arquivo do Exército/AHEX; Arquivo Nacional que
confirmasse a presença do militar goiano na Escola Militar da Praia Vermelha. 13 O Paiz, 23/01/1891.
4
especialmente os sociais. Para tanto, impunha-se um ensino integral começando na
matemática e terminando na sociologia e moral (TREVISAN, 2011: p. 43). É com essa ênfase
nas ciências, com dados exatos, na experimentação, que repercutirá o pensamento de
Henrique Silva na imprensa, tanto nos jornais quanto em revistas, especialmente a Informação
Goyana, mensário em que foi editor geral por todo o tempo de circulação, 1935.
Mas não apenas a priorização no pensamento científico facilita a compreensão das
ações do goiano no final do século XIX. Ressalta-se também a formação de um ethos militar
que se constituiu inicialmente com a Guerra do Paraguai e, posteriormente, com República
(SANTOS, 2004: p. 51). Reconstituindo em linhas gerais o período, tem-se o romantismo,
que pode ser dividido, grosso modo, ligado à emoção, apoiado na fé, liberdade, natureza,
idealização a realidade14. No Brasil, a apreensão das ideias românticas se deu, principalmente,
por meio da influência dos franceses. Lançando mão das contribuições de Peter Gay, a autora
escreve:
(...) os franceses eram dentre os românticos os mais interessados na política.
Escreviam sua autobiografia nas barricadas, nas casas legislativas, nos jornais
ligados aos partidos. A atividade política, ou pelo menos uma linguagem política
enérgica, constituía uma parte integrante da sua auto-definição. (...)Como a
maioria dos [seus] contemporâneos, acreditavam que o mundo é regido por ideias,
e por elas pode ser transformado. Portanto, [para os românticos franceses] quando
expressas de modo adequado, as ideias não estão a serviço do poder, mas atuam
como seus juízes (SANTOS, apud Peter Gay, 2004: p. 60).
Assim, se conclui viável pensar que, além do positivismo, importou-se da França
também uma visão romântica, que exerceu forte influência sobre os jovens militares
brasileiros com pactos de sangue, dispostos a sacrifícios como morrer pela pátria.
Com todas essas reflexões, deseja-se alcançar uma fração de uma temporalidade na
qual a personagem Henrique Silva, soldado do Exército, desenvolveu em diferentes frentes
suas atividades. Às vezes, contrariando esse grande pano de fundo em que as personagens se
atracam, assumindo atitudes contraditórias15. Porém, “...somos prisioneiros de um aquário do
qual nem sequer percebemos as paredes; como os discursos são incontornáveis, não se pode,
por uma graça especial, avistar a verdade verdadeira, nem mesmo uma futura verdade”
(VEYNE, 2011: p. 49), pontuando que o aquário referido pelo autor pode ser descrito como
histórico, cultural, social e político. Todavia não se deve pensar nesse a priori histórico como
14 Outro aspecto, como estilo de época, é um movimento estético que configura um estilo de vida e arte
predominante na civilização ocidental, localizado na segunda metade do século XVIII e na primeira do XX,
momento em que encontra sua plenitude (SANTOS, 2004: p. 59). 15 Ações incompatíveis com a construção do perfil de homem público colocado em andamento pelo militar
goiano.
5
uma camisa de força, sem saída. Mas livrar-se do aquário, lembra o historiador, é deixar-se
apreender por outro,
É claro que esse a priori histórico, longe de ser uma instância imóvel que
tiranizaria o pensamento humano, é passível de mudança, e nós mesmos
terminamos por mudá-lo. Mas ele é inconsciente: os contemporâneos sempre
ignoraram onde estavam seus próprios limites e nós mesmos não podemos avistar
os nossos (VEYNE, 2011: p. 50).
Tem-se aqui o oficial atuando dentro das ambiências no final do século XIX e
primeiras décadas do XX, uma temporalidade expressiva de cinqüenta e três anos. Nesse
intervalo, delineou-se o projeto de Henrique Silva desenvolvido em diversas outras atividades
profissionais, como geógrafo e conhecedor do território goiano, notadamente de sua
hidrografia e fauna. De posse dessas credenciais, fora convidado inúmeras vezes para compor
missões com o objetivo de resolver questões ligadas aos limites territoriais. No ano de 1889,
participou da comissão observadora das fronteiras entre Brasil e Bolívia, sob as ordens de
Deodoro da Fonseca (BORGES, 1977). Ademais, participou em muitas outras atividades a
serviço de Goiás: fez parte da comissão que tratou do levantamento da Estrada de Ferro que
deveria partir de Catalão a Cuiabá; foi atuante na comissão encarregada de estudar os limites
entre Goiás e Minas Gerais (LÔBO, 1974). Cabe sublinhar, não obstante a importância dessas
atividades desenvolvidas, a participação de Henrique Silva na Comissão Cruls16, a qual pode
ter consolidado sua formação como conhecedor das riquezas do Planalto Central, ocorrida em
1892, com a patente de alferes17. Munido dessas credenciais, Henrique Silva, na década de
1890, iniciou em sua escrita a demolição de ideias preconcebidas, indiferença, avaliações
equivocadas acerca de Goiás. Para tanto, utilizou de cores vivas para representar/apresentar
essa pintura desconhecida por grande parte da nação brasileira. Essas eram características
marcantes do fundador de a Informação Goyana Henrique Silva18. Atitudes que se fizeram
presentes em dezenas de produções de sua autoria, dentre as quais A caça no Brasil Central;
Poetas Goianos; Esboço Biográfico do Comendador Francisco José da Silva19; Fauna
Fluviátil de Goiás (Tocantins e Araguaia); Fauna Fluviátil de Goiás (Paranaíba); Indústria
Pastoril; Sumé e o destino da Nação Goiá; Contribuição para a Geografia Zoológica do
16 Comissão responsável em demarcar a área no planalto central, notadamente Goiás, onde seria construída a
futura capital do país, conforme estabelecia a Constituição de 1891. 17 Ver relatório final da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brazil, publicada em 1894, endereçada ao
ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas. Na página 8, aparecem os membros da Comissão. O nome do
goiano Henrique Silva aparece como o último da lista.
18 Não é demais lembrar, que a revista circulou entre 1917 a 1935, ano da morte de seu Editor Geral.
19 Publicação que corrobora a idéia de construção de um projeto de memória.
6
Brasil; Caçadas no Brasil; A Extinta Nação Goiá, nos Anais do XIX Congresso de
Americanistas; Duas Variedades Novas e Electroforídes do Brasil Central; Pérolas e
Conchas Perlíferas do Araguaia; O Pescador Brasileiro; A Bandeira do Anhanguera 1722; O
Folclore do Brasil Central; Chácaras e Quintais; O Pescador Brasileiro (BORGES, 1981: p.
134; LÔBO, 1974: p. 42; BORGES, 1977: p. 162)20. Sua produção textual foi caracterizada
na literatura goiana dentro do período sincrético, que compreende 1902 a 1928. Esse período
se define por uma literatura eclética entre o parnasiano-simbolista e o romantismo (GOYANO
& CATELAN, 1968). Seja munido de espada ou da pena, Henrique Silva lutou para
concretizar seus projetos: o primeiro mais evidente, o de desenvolvimento de Goiás, e o outro
de sua memória. Na vida desse soldado-cidadão ocorreram diversas situações, as quais
possibilitaram sua notabilização como figura pública registrada em jornais do período,
especialmente O Paiz. O que se pretende acompanhando as ações do diretor de a Informação
Goyana na imprensa é perceber sua construção, em grande medida, por uma escrita de si, ou
o fazer-se, continuamente, tendo em vista a elaboração de um projeto de memória inserido no
projeto de ascensão econômica de Goiás ao lado dos grandes entes da federação.
Ademais, consideram-se essas ações do militar goiano, publicadas nos grandes jornais
do Brasil como O Paiz e Correio da Manhã, como uma escrita de si, conforme assinalado,
porque se tem em conta que essas publicações, em sua maioria, são notas divulgadas, muito
provavelmente, a pedido do próprio Henrique Silva em diferentes temporalidades que vão dos
anos 1890/1899 e 1900/191721. Desse modo, as páginas dos jornais assumem ou se
aproximam de uma escrita (auto)biográfica, não obstante ser público ou o que se deseja
tornar-se público. Entende-se que essa escrita pública pode caracterizar-se em um projeto,
consciente ou inconsciente, não importando as coerências e incoerências em relação aos
projetos individuais em um contexto no qual se desenvolveram suas ações. Ressalta-se que é
uma escrita de si mesmo não contemplando outras ambiências da vida privada. Contudo, não
terá menos força para o que se objetiva nessas linhas. A escrita de si, realizada a pedido,
encomendada, isto é, produzida indiretamente pelos profissionais do jornalismo só foi
possível em função da boa interação entre as partes, ou seja, o militar jornalista e seus pares
das redações, constituindo-se, assim, em seus porta-vozes. Conforme se pode verificar nas
20 Dos livros citados, encontramos apenas dois, O Esboço biográfico do Comendador Francisco José da Silva
(IPEHBC) e A caça no Brasil Central (Prólogo de Couto Magalhães) (Biblioteca Nacional).
21 A partir de 1917, ano de início de circulação de a Informação Goyana, as publicações nos grandes jornais
diminuem significativamente.
7
publicações na Tabela 1, em que se buscou realçar alguns eventos, dentre tantos outros, em
que Henrique Silva vai tecendo, por meio de O Paiz, seu projeto de memória22.
Publicações de HENRIQUE SILVA
no Jornal O Paiz23
DATA PATENTE ASSUNTO ESPAÇO OBSERVAÇÃO
26/02/1890 Cadete Escola de Tiro
Realengo
07 linhas HS24. Complemento
Estudo/armas
09-06-1890 Alferes Reunião fundação
Clube Goiano
26 linhas H.S. nomeado para
ajudar org. estatuto
23/01/1891 Alferes Doação de soldo a
viúva Benjamin
Constant
Coluna contendo
centenas de outras
assinaturas
O periódico traz
outras doações
18/12/1891 Alferes Ato defesa a
República
Col. Com centenas
assinaturas
Apoio ao presidente
Floriano Peixoto
28/01/1892 Alferes Elogio por bravura Ext. lista sold. Revolta da Armada
13/09/1893 Alferes Chega à capital no
comando de 35
praças
13 Linhas 10º reg. sob
comando de HS
estava Santos/SP
13/02/1894 Alferes Ferido/face espada 11 linhas Treinamento militar
29/09/1895 Alferes Disposição ao Min.
da Indústria
04 Linhas Nomeação
C.E.P.C.B.25
11/12/1896 Alferes Confusão por lugar
em Teatro
31 linhas Recebeu ordem de
prisão
19/03/1897 Alferes Festeja aniv c/
personagens das
letras
46 Linhas Almoço das 12 às
17hs no Roiisserie
Castellões
22/07/1898 Alferes ...e amigo
espancados na
madrugada da
cidade do Rio
64 linhas Queixa feita pelo
amigo Antonio Villa
Boas
09/11/1899 Alferes Absolvido por
injúrias a colega
09 Linhas Tribunal Militar
julgou outros casos
01-10-1908 Capitão Velório de
Machado de Assis
Matéria extensa
sobre escritor
falecido
Às 23hs do dia
anterior HS entre
outros velório MA26.
14/01/1910 Capitão Visita senador
enfermo
19 linhas -
29/07/1911 Capitão Candidato a
deputado estadual
24 linhas Partido Democrata
15/05/1913 Capitão Deputado27 HS
preso por general
02 colunas Deputado HS recebe
ordem de prisão
22 Em virtude do espaço restrito, foram disponibilizados alguns poucos registros da vida do militar goiano. Na
dissertação, disponível a partir de outubro de 2017 na página da pós-graduação de História/UFG, os leitores
poderão ter acesso a todos os registros em tabela completos. 23 Jornal O Paiz, 1890/1917. 24 Henrique Silva. 25 Comissão de Exploração do Planalto Central do Brasil. 26 Machado de Assis.
8
09/07/1915 Capitão Publica na revista
Apollo
A nota divulga a
revista
Título: A origem da
noite
04/12/1916 Capitão Faz conferência 05 linhas Soc. Nac. Agric.
03/04/1917 Capitão Publicação sobre
bandeirantes
30 linhas Bandeira do
Anhanguera
Tabela 1 – Publicações de Henrique Silva no Jornal O Paiz
Fonte: Elaborada pelo autor.
Na Tabela 1, buscou-se apresentar, de forma resumida, alguns registros de Henrique
Silva no jornal O Paiz28. Neles, podem-se ler ações menores, de pouca relevância, como, por
exemplo, a de complementar seus estudos na Escola de Tiro do Realengo, visitar enfermo,
escrever artigo, participar de reunião criando o Clube Goiano. Em outro momento, verificam-
se ações de grande repercussão, como liderar soldados em revolta, participar do velório de
Machado de Assis, ser lançado deputado estadual, preso enquanto deputado recebe ordem de
prisão. Por fim, tem-se Henrique Silva sendo absolvido por injúria; discussão por lugar em
teatro e briga na madrugada da cidade do Rio de Janeiro. Ainda sobre o velório de Machado
de Assis, estava estampado na página do jornal diário, em 01 de outubro de 1908, “as onze
horas da noite de hontem velavam o cadáver... o capitão Henrique Silva”29. O que fazia o
militar ali, naquele momento? O escritor Machado de Assis já era muito respeitado no meio
literário, na sociedade carioca. Estar presente na última noite do grande romancista, sem
sombra de dúvida, possibilitaria a Silva algumas linhas importantes em sua construção de si,
no seu projeto e memória30.
Como se pode constatar nessa pequena amostra, uma ou outra publicação fugiu do
controle do sujeito Henrique Silva. Observa-se que essa produção em O Paiz, conforme
mencionado, foi um suporte que serviu para materializar as ideias do escritor, constituindo
plenamente um recurso de aproximação com sua (auto)biografia, no sentido literal do termo
ou, em outras palavras, por meio de uma escrita de si. Para corroborar com estes argumentos
aqui expostos, cita-se Gomes:
Essas práticas de produção de si podem ser entendidas como englobando um
diversificado conjunto de ações, desde aquelas mais diretamente ligadas à
escrita de si propriamente dita – como é o caso das autobiografias e dos diários
–, até a da constituição de uma memória de si, realizada pelo recolhimento de
objetos materiais, com ou sem a intenção de resultar em coleções. É o caso das
27 O perfil biográfico de Henrique Silva encontra-se disponível na Assembleia Legislativa de
Goiás<https://portal.al.go.leg.br/deputado/perfil/deputado/2048>Acesso em 07/08/2017. 28 Os registros completos estarão disponíveis nos anexos na dissertação a ser disponibilizada. 29 Jornal O Paiz, 01/10/1908. 30 Salvo engano, não há nenhuma menção de Machado de Assis em toda produção escrita de Henrique Silva
tanto no jornal O Paiz quanto em Informação Goyana.
9
fotografias, dos cartões-postais e de uma série de objetos do cotidiano, que
passam a povoar e a transformar o espaço privado da casa, do escritório etc. em
um “teatro da memória”. Um espaço que dá crescente destaque à guarda de
registros que materializem a história do indivíduo e dos grupos a que pertence.
Em todos esses exemplos do que se pode considerar atos biográficos, os
indivíduos e os grupos evidenciam a relevância de dotar o mundo que os rodeia
de significados especiais, relacionados com suas próprias vidas, que de forma
alguma precisam ter qualquer característica excepcional para serem dignas de
ser lembradas (GOMES, 2004, p. 11).
Nesse âmbito, se reivindica aqui, não obstante a publicização dos conteúdos das notas,
via meio de comunicação, que visava a um amplo público31, que as publicações realizadas nos
jornais podem ser incluídas entre os diferentes suportes para uma escrita de si. Não
esquecendo outras contribuições de Gomes (2004) quando menciona outro suporte que
materializa a escrita de si, a correspondência. Adianta a autora que “Escrever cartas é assim
“dar-se a ver”, é mostrar-se ao destinatário, que está ao mesmo tempo sendo “visto” pelo
remetente...”32. O que se busca com esse fragmento é a realização de outra aproximação das
notas publicadas em jornais com o suporte material carta. Assim como as cartas têm um ou
mais destinatários, principalmente se se levar em conta que a missiva se torna propriedade de
quem as recebe, guardando-as ou compartilhando-as, os jornais, mesmo sem intenção de
arquivar, também cumprem esse objetivo. O mesmo se pode afirmar com a produção de uma
biografia ou autobiografia, pois ao fazê-la, o indivíduo tem em vista o registro, com
demarcação espacial e temporal ou o quê, quando e onde na constituição de seu projeto de
memória. Ao escrever, ele, o indivíduo, busca mostrar a si mesmo33 e ao outro. E esse
apresentar-se do indivíduo não precisa, necessariamente, conforme a autora, contemplar todas
as ambiências de sua vida social. Isso vem dirimir as dúvidas e reforçar a proposta defendida
neste artigo, qual seja, as ações de Henrique Silva cronologicamente registradas na imprensa
carioca configuram uma escrita de si visando a seu projeto de memória.
A lógica da escrita, individualizada, transferida/concedida ao outro nas redações dos
jornais não enfraquece o caminho aqui percorrido. Busca-se com esse aporte teórico
respaldar, constituir embasamento para a narrativa que se pretende discorrer e edificar,
conforme mencionado, sobre essa personalidade singular do planalto central. Nesse intento,
recorre-se a algumas das muitas e importantes reflexões realizadas por Sabina Loriga34 acerca
31 Ou restrito, uma vez que Henrique Silva “escreve” somente aos letrados que por sua vida têm interesse. 32 GOMES, Ângela de Castro, Rio de Janeiro, FGV, 2004: p.19. 33 Porque se constitui de forma identitária.
34 Loriga, Sabrina. A biografia como problema, Texto: LORIGA, Sabina. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de
escalas. A experiência da microanalise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
10
da biografia em virtude das centenas de notas publicadas sobre/por Henrique Silva nos jornais
da capital Rio de Janeiro nos primeiros anos da República. Loriga assevera que:
A fronteira que separa a biografia da história sempre foi bastante imprecisa.
Em relação a esse ponto, assistimos recentemente a uma reviravolta radical.
Após um longo período de desgraça, durante o qual os historiadores se
interessaram pelos destinos coletivos, o indivíduo voltou hoje a ocupar um lugar
central em suas preocupações (1998: p. 225).
Nesse sentido, a autora discute a biografia como problema, acrescentando que sua
redescoberta liga-se a experiências no campo da história, tendo a atenção focada no
“cotidiano”, nas “subjetividades outras”. Cita a história oral, os estudos sobre a cultura
popular e a história das mulheres. Há o desejo, complementa Loriga (1998: p. 225), de
estender o campo da história, “trazer para o primeiro plano os excluídos da memória, reabrir o
debate sobre o valor do método biográfico”. Há de se sublinhar que Henrique Silva não se
enquadra exatamente no grupo dos excluídos da memória. Entretanto, não se pode afirmar,
que ele, Henrique Silva, pertencia ao grupo de grandes estrelas do universo político goiano no
início da República.
Seguindo Loriga (1998: p. 245), interessa aqui não tanto o homem homogêneo,
individualizado, concreto, coerente, mas, sobretudo, o “homem coral”, que se revela em suas
ações como múltiplo, incoerente com o contexto em que vivia. Percorrendo esse caminho,
pode-se acompanhar o militar goiano Henrique Silva com uma prática de ações que podem ir
ao encontro do que se tem buscado desenvolver à luz da contribuição das autoras. Assim, é
possível contemplar “sua” escrita, isto é, de Henrique Silva, no jornal realizando as mais
diversas ações, além das já citadas, comover-se e assumir atitude solidária, abrindo mão de
recursos obtidos com a venda de cem exemplares, de sua autoria, aos brasileiros que sofriam
com a seca35, e em momento seguinte combater em conferência na Associação de Agricultura
um pessimista, que afirmara não possuir o Brasil condições de produzir papel para imprensa;
divulgar artigo sobre a riqueza do capim Jaraguá, folhagem rica em nutrientes para a
alimentação do rebanho bovino, registro de licença médica, publicação de biografia do pai; na
presença de outros, recepcionar o senador Pinheiro Machado de volta do Rio Grande do Sul.
Por fim, contestar leitor de O Paiz, em carta, sobre alinhamento de árvores frutíferas de várias
espécies na vila militar Deodoro da Fonseca36. Todas as participações desse militar revelam
muitas coisas; uma delas é a necessidade de ascensão social, política entre os brasileiros,
35 Jornal Correio da Manhã, 27/08/1915. 36 Jornal O Paiz, 19/01/1909.
11
notadamente os goianos. Igualmente, o de se destacar entre seus conterrâneos, recuperando o
período áureo da família Silva37. E, nessa direção, apresentar-se como o sujeito goiano, que
participara do fazer histórico não como espectador, mas ativamente como ator, cujo
desempenho foi relevante nas primeiras décadas da recente república brasileira. Na revista em
que editou na cidade do Rio de Janeiro, é possível verificar como um forte recurso com vistas
à construção de sua memória.
A seguir, apresentam-se algumas reflexões acerca da participação de Henrique Silva à
frente do mensário a Informação Goyana. Salienta-se que devido aos limites de espaço
concebido aqui, não é possível dar maior ênfase à recepção do leitor aos escritos de Silva.
Dessa forma, se abordará a recepção apenas pela ótica do leitor Henrique Silva em relação as
suas fontes de leitura. Na Tabela 2, podem ser identificadas as temáticas de sua produção
textual a partir do mapeamento de suas publicações.
Publicação temática – artigos
Henrique Silva Revista Informação Goyana
1917 – 1935
TEMAS QUANT Fauna 25
Flora 35 Minerais 08 Memória 13 Limites Goiás e estados vizinhos 23 Crítica à dados estatísticos/governos38 18 Pecuária 33 Hidrografia/navegação 20
Relevo/Solo 11 Eqüinos 05 Impostos 06 Construção da nova capital/Brasil 07 Ferrovia 09 Escritores do Brasil Central 04
Clima 09 Etimologia39 09
Rebate estudos sobre Goiás 36 Mudança da capital de Goiás 01 Piscicultura 10 Agricultura40 29 Outros 16
Total 32741
Tabela 2 – Artigos de Henrique Silva
Fonte: Elaborada pelo autor.
37 No capítulo 1, da dissertação apresenta-se a família Silva como uma nobreza da terra que se constituiu no
século XIX. 38 Em nível federal e estadual, exceto Goiás. 39 Nomes indígenas da flora/fauna e cidades. 40 Algodão, café, trigo, milho, uva. 41 Muitas produções textuais foram enquadradas em vários outros temas, razão pela qual o total ultrapassam os
artigos assinados pelo editor chefe de a Informação Goyana.
12
Antes de prosseguir na discussão textual publicada pelo editor geral da revista,
algumas palavras devem ser escritas sobre a maneira como se procedeu à construção da
Tabela 2. Esta foi elaborada a partir do mapeamento de todas as publicações assinadas em a
Informação Goyana. Em sua releitura, foi possível elencar temas nos quais Henrique Silva se
debruçou com frequência na escritura de seus textos. Evidentemente, outras possibilidades de
reagrupar os artigos existem, no entanto esse modelo foi o que mais atendeu ao propósito da
pesquisa, de proporcionar maior visibilidade aos projetos trabalhados por Silva.
Dessa forma, todos os artigos publicados na revista goiana têm como pano de fundo a
defesa de Goiás. Esse empenho em contrapor, explicar, proteger os interesses de seu Estado
ocorreu em diferentes campos, ora em conflitos acerca de limites com os estados vizinhos
Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, ou rebatendo informações equivocadas sobre o estado mais
central do Brasil por estudiosos de gabinete42. São inúmeros os temas; dentre os citados, têm-
se agricultura, piscicultura, etimologia, clima, ferrovia, relevo/solo, hidrografia/navegação,
memória, fauna e tantos outros com evidente objetivo em constituir seu projeto de memória
através de suas ações em embates por Goiás. No último tema referido na Tabela 2, sobre
agricultura, há trinta e seis artigos que se opõem às ideias daqueles estudiosos que pouco
conheciam Goiás. Esse número de produção supera as outras temáticas individualmente.
Contudo, não se quer atribuir pouca importância às outras preocupações registradas pelo
editor, uma vez que todas têm um ponto em comum: ressaltar as riquezas de Goiás e suas
imensas possibilidades. No excerto a seguir, é possível acompanhar, em artigo publicado na
revista mensal, de março de 1918, com o título Viajores – mas superficiais observadores, a
indignação de Henrique Silva com duas obras recém-publicadas que ignoram Goiás no
tocante à existência de fósseis. Comenta o major,
Temos sobre a nossa mesa de trabalhos dous desses volumes: - Viagem scientifica
pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauhy e norte e suol de
Goyaz, pelos srs. Arthur Neiva e B. Penna e “Rondonia”, de Roquette Pinto.
E como taes trabalhos são referentes á região cujas riquezas e mais possibilidades
econômicas “A Informação Goyana” propoz-se a divulgar, respiguemos, pois, nas
obras consagradas daquelles notáveis membros da Academia Brasileira de
Sciencias.
Á pag. 100 da “Viagem scientifica” escreveram os engraçados autores dos estudos
feitos á requisição da Inspectoria de Obras contra as seccas, sob a direcção do dr.
Arrojado Lisboa: “As regiões percorridas, menos Goyaz, apresentam rico material
de fosseis; são freqüentes as referencias a esqueletos de animaes de grande porte,
encontrados geralmente pelos moradores quando por ocasião das seccas, effetuam
escavações de cacimbas nas pequenas lagoas dessecadas e citam exemplos de
42 Expressão muito comum usada por Henrique Silva na revista para se referir a estudiosos que não iam a campo.
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aproveitamento de certos ossos provavelmente omoplatas, utilisados para bater
roupa” (Informação Goyana, Anno II, RJ, 03/1918, vol. II, n. 08).
Ao identificar as informações inverídicas, Henrique Silva busca desqualificar os
autores, e recorre a Raimundo José da Cunha Mattos43, que no início do século XIX,
percorrendo a mesma região, afirma que “Tem-se encontrado aqui em Goyaz varias ossadas
fosseis gigantescas, talvez de amphybios. Eu vi os restos de uma encontrada junto a Pilar no
dia 13 de abril de 1818, era de 35 palmos de comprido”44. Esse fragmento é emblemático
porque indica o quanto o diretor da revista estava atento às publicações sobre Goiás, não
deixando passar em branco nem mesmo se existiram ou não fósseis no estado. Sendo os
autores Arthur Neiva e Belisário Penna autoridades das ciências, era importante esclarecer em
outra fonte aquelas informações, na opinião do major, inverídicas45. Contudo, não apenas o
autor/leitor Silva soube tecer críticas às superficiais publicações sobre seu Estado; procurou
também reconhecer relevantes produções acerca de Goiás.
Em outra edição da revista de janeiro de 1919, no artigo Riquezas nativas de Goiás
parte II, encontra-se o autor da revista enumerando autores como Saint Hilaire, Burchet,
Gardner, Weddel, Pohl, André Rebouças e Ernesto Ule para ressaltar a riqueza da flora e as
imensas possibilidades de Goiás vir a se destacar no campo da pecuária. Defende a riqueza da
flora, dá grande destaque à diversidade no planalto central do Brasil46 de gramíneas, que, por
sua vez, tem relação direta com o desenvolvimento da pecuária em Goiás. Para este
autor/leitor, em Goiás encontram-se dezenas de gramíneas de alto valor nutritivo; acrescenta
que nesse estado se desenvolveram as três raças bovinas do Brasil: Curraleira, Mocha e
Caracú. Em relação à superioridade, quantidade e diversidade de gramíneas, o goiano não
deixa de fazer comparações com outros estados, que basicamente têm apenas um tipo dessa
folhagem. Ao mencionar alguns fragmentos extraídos de suas publicações, espera-se reforçar
a tese da pesquisa: os textos de Henrique Silva publicados tanto em O Paiz quanto em a
Informação Goyana constituíram dois grandes projetos, conforme pontuado em vários
momentos deste estudo: o Desenvolvimento de Goiás e Memória, ambos construídos
concomitantemente47. Passa-se a sua escrita,
43 Cabe destacar que Raimundo José da Cunha Matos foi o terceiro, perdendo para Saint Hilaire e Taunay autor
mais citado por Silva durante suas publicações assinadas em a Informação Goyana. 44 Informação Goyana, Anno II, RJ, 03/1918, vol. II, n. 08, apud, Chorographia Histórica da Província de Goyaz. 45 Além de Cunha Mattos, Henrique Silva menciona também o padre dr Henrique Raymundo dês Guenettes. 46 Para Henrique Silva, o Planalto Central do Brasil compreende o Oeste de São Paulo; Triângulo Mineiro; Goiás
e Mato Grosso. (Informação Goyana; ano IX, RJ, 12/1926, vol. X, n. 05). 47 A partir de dois caminhos: uma escrita de si (auto)biográfica no jornal O Paiz e a recepção do leitor diante dos
textos publicados por Henrique Silva no periódico mensal.
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A riqueza econômica, porém, da flora goyana, toda, ou por excellencia, nas
innumeras espécies e variedades não estudadas, ainda, das suas plantas uteis,
como sejam as medicinaes, as textis, as de látex, as tinturarias, as taníferas, etc.
Não devemos esquecer, iguamente, o papel de subido interesse e valor
econômico que há de representar no desenvolvimento futuro da pecuária no
Brasil, a riqueza incomparável das gramineas e leguminosas forrageiras da
província floristica goyana.
[...] em Goyaz os criadores nem ao menos sabem qual indicar como a mais
nutritiva do seu gado, tantas e tão excellentes são as que viçam nos seus campos
agrestes, crescem nas capoeiras, invadem as plantações do homem, trepam
pelas cercas das roças, enlaçam-se ás touceiras do milharal – como sucede com
a jequirana, uma leguminosa que insistimos ainda em consideral-a succedanea
das alfafas.
[...] Foi nesses campos promissores que, graças igualmente ás condições do
meio, se formaram as tres primeiras raças bovinas do Brasil: “Curraleira”,
Mocha” e “Caracu”. A Curraleira, foi dellas tres a que se caracterizou
primeiro, nos campos nativos dos sertões de Amaro Leite...(Informação Goyana,
ano III, RJ, 01/1919, vol. II, n. 06, p. 93/94).
Vale ressaltar que no artigo do qual esse fragmento foi retirado, as produções dos
viajantes foram utilizadas para embasar os argumentos de Silva. Entretanto, na mesma
produção ou texto a que pertence esse trecho o autor tece fina crítica aos cronistas que
passaram rapidamente em Goiás, principalmente pelas estradas reais48. Novamente, se depara
com as diferentes maneiras de recepção de um texto. Seja lá o que autor pensou ao escrever,
deve-se ficar atento: o texto não é uma camisa de força, fechado em si mesmo. Há fissuras
que possibilitam ao leitor outras interpretações49. Viu-se que o mesmo ocorreu com os textos
de Silva e seus leitores e que nem todos estiveram em consonância a tudo o que este escreveu.
Evidentemente, são poucos os sinais deixados por seus leitores em a Informação Goyana.
Entretanto, não se deve esquecer que o meio de comunicação era dirigido pelo major goiano e
que, muito provavelmente, todas as “cartas dos leitores” passavam pelo seu filtro antes de
serem publicadas. De todos os temas listados na Tabela 2, a questão dos limites entre os
estados vizinhos e Goiás rendeu muitos artigos.
Desse modo, julga-se relevante acompanhar como o editor da revista defendia os
interesses de Goiás nesses conflitos. Frisa-se que o fragmento de texto ora apresentado foi
retirado de um artigo com o seguinte título: Limites entre Goyaz e Matto Grosso IV50 – Laudo
arbitral de um juiz arbitrário, publicado em março de 1921. Afirma o autor,
48 Henrique Silva faz grande uso das contribuições dos viajantes em suas produções textuais. Anexa tabela
contendo nome dos autores e a quantidade vezes em que foram mencionados. 49 Paul Ricouer; Iser Wolfgang. 50 Total de oito artigos publicados sobre o assunto.
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Continuemos a enumerar uma por uma todas as invencionices, inverdades e
mystificações de Cândido Mendes no seu cego e escandoloso proposito de dar
ganho de causa aos mattogrossenses.
Faltando á verdade como de costume, escrevia o caduco geographo, que o
projecto da Camara dos deputados de 20 de julho de 1864 foi alvitrado pelo
presidente Goyaz, que achava essa medida indispensavel para abertura de uma
estrada até ás margens do rio Taquary! Completa a sua invencionice
asseverando “que essa estrada se fez por parte de Matto Grosso na
administração de Herculano Ferreira Penna como consta do Relatorio do
presidente de Goyaz, do anno de 1864. Pêta!...
Basta dizer que tal estrada (cujo o ponto de partida Candido Mendes
propositalmente ocultou) foi mandada construir em 1863 pelo então presidente
de Goyaz, General Couto de Magalhães, como consta do seu offício ao Marquez
de Olinda, transcripto á pagina 46 da nossa Memoria justificativa dos limites de
Goyaz. Esta estrada partia da Capital goyana e alcançava Coxim, com um
percurso de 80 leguas. Por Ella seguiram os contigentes de Goyaz que em 1865
se incorporaram em Coxim ás forças expediccionarias que invadiram o
Paraguay, ao mando do coronel Camisão (vide Taunay – Retirada de
Laguna)(Informação Goyana, ano V, vol. IV, n. 08, págs. capa e 58).
O fragmento longo foi inevitável, uma vez que era necessário demonstrar dois
momentos no texto: a reivindicação de Mato Grosso e a forma como Henrique Silva
desqualificava os textos produzidos contra os interesses de Goiás. Isso não apenas através de
atitude incisiva, mas também fundamentando “factos e algarismos exactos que tantas vezes
em livros e na imprensa se tem propalado acerca da terra goyana”51. Em outra edição da
revista, encontra-se estampada na capa o título GOYAZ! Estrela solitária do Brasil. Nela, o
autor se baseia em dados disponíveis através de autores como Diogo de Vasconcelos, Silvio
Romero, padre Manoel de Siqueira, Montoya para tirar do esquecimento os homens que
descobriram Goiás. Observa o jornalista do periódico: “Como eu poderia dizer das cousas da
minha terra natal sem evocar primeiramente os nomes daquelles que a descobriram e
povoanam-n’a?”. Adiante, lembra a frase de Frei Vicente Salvador para senão retirar, pelo
menos diminuir, a relevância dada para outros com exagero de gloria, que pouco se
distanciaram do litoral, arranhando as praias como caranguejos. Ainda criticando esses
estudiosos que se pautaram nos cronistas, Silva enuncia que:
Imbuidos das leituras dos nossos sediços chronistas coloniaes, mais em
destaque, de mais fácil acquisição, quase todos os ensaístas, historiadores,
philosophos e poetas contemporâneos se fizeram ou fazem pregoeiros de
insignificantes interpresas sertanistas, que nem de longe se podem comparar,
quando mais igualarem ou excederem em audácia e grandeza, ás de esquecidos
ou desdenhados sertanistas que, linhas adiante, com justiça, envidaremos tirar
de um como que systematico ostracismo histórico, neste momento precisamente
de tão pronunciada tendência para o estudo das nossas cousa nacionalistas, dos
paramos do interior, particulamente (Informação Goyana, ano IX, RJ, 02/1927,
vol X, n. 07).
51 A Informação Goiana, ano 01, vol. 01, n 01, 15/08/1917.
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Mais à frente em seu artigo, Silva afirma que Goiás e Mato Grosso precisam ser
redescobertos, mas antes que isso ocorra, é necessário fazer justiça e agradecimento aos
primeiros desbravadores dessas terras. Ao final de seu texto, o jornalista cita o nome Antonio
Pires de Campos como o mais humano dos bandeirantes. É ele e não Manoel Correa que
merece a glória por ter descoberto as minas Araés. Pessoas que muito contribuíram para o
engrandecimento de Goiás ou tiveram destaque em seu campo de atuação não deveriam ser
esquecidas. Nesse sentido, publicou À memória do dr. Alberto Lofgren (01/1919, p. 87). Um
ano depois, escreveu a biografia do pai, com o título Comendador Francisco José da Silva em
três partes.
Nessas publicações, salientou a importância do biografado para Goiás, iniciando por
sua origem, o pai Vicente Miguel da Silva, que foi um dos dezenove eleitores que elegeram
em Vila Boa, o presidente e demais membros do governo provisório. Seu filho Francisco José
da Silva, ainda jovem, casou-se com Anna Rodrigues de Moraes, filha de família poderosa em
Jaraguá. Dos dezoito anos em diante o comendador ocupou diversos cargos em Bonfim52.
Sobre a importância do comendador, o diretor geral da revista tece importante considerações,
Nenhuma deliberação sobre as causas de Goyás era tomada, tanto na capital da
província como na Côrte, sem que fosse de qualquer modo ouvida a opinião
sempre acatada do Coronel Chiquinho, do Bomfim, como ea mais conhecido o
abnegado patriota.
Manda, porém, a verdade que o digamos – que essa influencia real só era
exercida para o bem publico de Goyas. Delle poder-se-ia dizer “que do seu
partido não queria sinão que o deixasse immaculado e quee lhe permittisse
servir a Patria”, e mui especialmente a sua província. Politico militante por
espaço de mais de meio século, nunca acceitou compromissos ou allianças
duvidosas – preferindo, nas difficeis circumstrancias, quando estava em jogo o
nome caro de um amigo, dar outro por si, abstendo-se então da causa, que He
parecia sem interesse algum para a sua terra (Informação Goyana, 12/1919 a
02/1920).
Destaca-se que em leitura mais atenta é possível identificar, em diversos artigos de
Henrique Silva, sua preocupação com a memória. Em muitos casos, além dos já citados,
percebe-se esse traço em sua escrita, seja no artigo O Levanto53, que discorre sobre as
caçadas, ou tantos outros, como As mil e uma noites do sertão – seus pró-homens54; os
victimados por amor de Goyaz55; Poetas Goyanos56; Páginas esquecidas: Folk-lore do Brasil
52 Ver capítulo 1, dessa pesquisa. 53 Informação Goyana, 08/1925: 08. 54 A Informação Goyana, 08/1917:03. 55 Informação Goyana, 12/1920: 39. 56 Informação Goyana, 11/1922: 28 a 30.
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Central.57 Todas essas publicações, em a Informação Goyana como também no jornal diário
O Paiz, formam um conjunto que pode ser validado como projeto para alçar Goiás entre os
estados mais desenvolvidos da nação e, ao mesmo tempo, esculpir sua imagem, a de Henrique
Silva, de como deveria ser lembrado pelos goianos.
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