a poesia de nicolás guillén e a representação da identidade
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A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana
Por
Wanessa Cristina Ribeiro
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários
Neolatinos-Literaturas Hispânicas).
Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman.
Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ
2010/2
A poesia Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana
Por
Wanessa Cristina Ribeiro
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários
Neolatinos-Literaturas Hispânicas).
Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman.
Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ
2010/2
A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana
Wanessa Cristina Ribeiro Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas(Estudos Literários -Literaturas Hispânicas). . Examinada por: Profª. Dr ª. Mariluci da Cunha Guberman (Presidente) Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Profª. Dr ª. Ximena Antonia Díaz Merino UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ Profª. Dr ª. Rita de Cássia Miranda Diogo Programa de Pós Graduação em Literatura Comparada e Teoria da Literatura UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Profª. Dr ª. Ana Cristina dos Santos Programa de Pós Graduação em Literatura Comparada e Teoria da Literatura UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Prof. Dra. Marinês Lima Cardoso Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas/ Bolsista PRODOC/CAPES UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Avaliação:....................................... Em 07 de dezembro de 2010, às 14 horas
RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários-Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.
Resumo
Análise crítica sobre a identidade nacional em poesias do escritor cubano Nicolás Guillén através de estudo comparativo baseado no diálogo entre elementos-chave na construção da ideia de nação, presentes no imaginário popular antilhano, e o discurso poético de Guillén. A relevância dessa análise se deve à conjunção harmoniosa entre suas composições poéticas e as demais manifestações artísticas cubanas, além de congregar os valores identitários de Cuba sem perder a grandeza dos valores estéticos. Através da contextualização histórica do fim do século XIX e o decorrer do século XX, as análises poéticas de “Rumba”, “Secuestro de La mujer de Antonio”, “Balada de los dos abuelos”, “Tengo” e “España: poema en cuatro angustias y una esperanza”, devidamente associadas a outras produções artísticas pretendem corroborar com a ideia de que Guillén, ao transmutar os valores da sociedade cubana, cumpre a função de alimentar o imaginário coletivo de seu povo, reafirmando a necessidade de entender a identidade como um projeto a ser continuamente trabalhado.
RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.
Resumen
Detallar la cuestión de la identidad nacional en la poesía cubana de Nicolás Guillén a través del estudio comparativo basado en el diálogo entre los elementos clave en la construcción de la idea de nación Antillana en la imaginación popular, y el discurso poético de Guillén. La relevancia de este análisis se debe a la combinación armoniosa entre sus composiciones poéticas y otros eventos artísticos en Cuba. Además de aportar con brillantez los valores de la identidad nacional cubana, sin perder su grandeza en los valores estéticos. A través de los antecedentes históricos de finales del siglo XIX y el transcurrir del siglo XX, se analiza las composiciones poéticas: "Rumba", “Secuestro de la mujer de Antonio", "Balada de los dos abuelos" "Tengo"y "España: poema en cuatro y una angustias y esperanza ", combinados adecuadamente con otras producciones artísticas destinadas a reforzar la idea de que Guillén, por la transmutación de los valores de la sociedad cubana, cumple la función de alimentar el imaginario colectivo de las personas, reafirmando la necesidad de entender la identidad como un proyecto a ser trabajado de forma continua.
RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários-Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.
Abstract
Critical analyze about the national identity in poetries of Cuban writer Nicolás Guillén through of the comparative study based on dialogue between key-elements in the construction of the idea of nation, that is present in the popular imaginary Antillean, and the poetic speech of Gullén. The relevance of this analyze is due to the harmonious union between his poetic compositions and others artistic Cuban manifestation, beyond congregate the values of identities of Cuba without lose the greatness of the esthetics values. Through of the historic contextualization at the end of the century XIX and in the course of century XX, the poetic analyses of "Rumba" , "Secuestro of La mujer de Antonio", "Balada de los abuelos", "Tengo" e "España: poema en cuatro angustias y una esperanza", duly associated to others artistic productions to intend corroborate with the Gullén's idea, by transmuting the values of the Cuban society, fulfils the function of the feed the collective imaginary of his people ,reasserting the necessity of understand the identity as a project to be continuously worked.
Dedicatória
Em Deus estão a sabedoria e a força, a Ele pertencem a perspicácia e a inteligência.
Jó 12: 13
Nada mais justo que dedicar ao Autor da minha vida o êxito em concluir
esta dissertação...
Agradecimentos
“Gracias, gracias, gracias. Quiero agradecer
a quien corresponda…”
Jorge Drexler
Toda e qualquer forma de verbalizar um agradecimento pecará sempre
pela falta e pelo excesso. Como não acredito ser possível fugir desta regra,
pecarei pela falta de algum nome ou momento especial no desenvolvimento
desta dissertação pelo excesso de alegria em vê-la se tornar realidade.
Agradeço primeiramente à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela subvenção financeira, que me auxiliou
desde o início das pesquisas, possibilitando o aprofundamento de meus
estudos, que culminou com a conclusão do presente curso. Também agradeço
ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ pelo suporte
técnico e incentivo acadêmico durante todo o período.
Impossível deixar de registrar meu agradecimento à Faculdade de Letras
da UFRJ, que me acolheu desde os estudos de Graduação, representada pelo
excelente Corpo Docente e Administrativo. Em especial à Profa. Dra. Mariluci
da Cunha Guberman, orientadora e amiga, uma pessoa de extrema
significação em minha vida acadêmica e pessoal. Quem me forneceu o apoio
bibliográfico, teórico, pedagógico e humano para converter uma ideia em ideal.
Graças a sua paciência e dedicação pude transformar meus brutos e
sentimentais gostos literários em análises sóbrias e mais fundamentadas que
antes.
Agradeço também ao Prof. Dr. Luiz Edmundo Coutinho por manter vivo
o incentivo a cada membro da “turma do futuro”; à Profa. Dra. Leticia Rebollo
pela dedicação em todas as aulas e orientações ministradas e pela constante
torcida. À Profa. Dra. Cláudia Luna por seus questionamentos e indicações
bibliográficas sempre pertinentes; à Profa. Dra. Sônia Reis pelo empenho em
me ajudar a encontrar um fio condutor para meus “devaneios literários” e a
todos os docentes desta Faculdade que direta ou indiretamente contribuíram
para o meu desenvolvimento acadêmico.
Outro campus desta Universidade que me permitiu alçar vôos mais altos
e seguros ao longo dos estudos de Pós-Graduação foi a Escola de Música da
UFRJ. Ainda que por um breve espaço de tempo, o período que passei imersa
nesse mundo novo chamado Etnomusicologia, sob supervisão atenta e
prestativa do Prof. Dr. Samuel Araújo, além dos cuidados e préstimos
viabilizados pelo querido Gilson Cabral, que só se tornaram possíveis graças à
fortuita acolhida concedida pelo Prof. Dr. Marcos Nogueira, foram fundamentais
para o amadurecimento de meus estudos.
Como não render graças àqueles que Deus pôs em meu caminho,
através de um laço de sangue, para guiarem meus passos nessa eterna utopia
que é viver? Muito obrigada vovó Zizinha, quem me obriga a ser feliz a cada
conversa; à minha mãe que dedica toda sua vida para fazer de mim um ser
humano digno; ao meu vô Antônio de quem eu herdei o talento de me
desmanchar em lágrimas; a minha tia Dora, fiel companheira, confidente e
comadre; a minha dezena de tios e às dúzias de primos que me fazem rir e
nunca perder essa mania de família, família... Sem deixar de incluir a família
que meu coração escolheu: Jose, vizinha e mãe nas horas apertadas e dinda
Marise, meu anjo e exemplo.
Agradeço agora a todos aqueles que me ajudaram a olhar, como bem
disse Eduardo Galeano em um de seus textos. Àqueles que apareceram como
professores e hoje são amigos especiais e “culpados” por tudo que eu produzir
ao longo do tempo. Meus sinceros agradecimentos a Célia Lúcia, minha leitora
e confidente incansável; a Fernando Pimenta, o temperinho da minha alegria;
a Kátia que sempre me incentivou com seu famoso: “você poderia ter feito
melhor” e a Angela Espíndola, quem me ensina desde o mesmo ângulo que
ocupo.
Hoje em dia quase ninguém mais guarda fotos 3x4. Amontoamos
arquivos jpeg em infindas pastas. No entanto, continuamos dizendo eu te amo,
seguimos fazendo muitos filmes e ao nos reencontrar ainda temos a mesma
beleza e fantasia de antes. Neste e em todos os dias que virão eu não poderia
dizer menos que eu te amo à Kennya Fandi, aos meus Diogos prediletos, ao
Bruninho e sua família linda, a Rafael Ferreira e bem... acho que para Debora
Medeiros eu teria de dizer ti voglio bene.
Obrigada aos bons amigos que nasceram pela fé, com os quais poderei
contar e cantar para sempre. Primeiramente ao Padre Diegues, responsável
direto pela minha formação moral e espiritual na adolescência. À musical
família Tostes, especialmente ao André; aos meus compadres Joyce e
Orlando; à Fabiana, Jéssica, Paloma, Ana, Rodrigo, Paula e Anderson por
estarem ao meu lado sempre. Sonhando com o céu, com o mar e com as
estrelas a brilhar...
E ainda um pouco distante de colocar um ponto final, começo o
parágrafo agradecendo a quem celebrou comigo aquele sol diferente no céu
visto da EBA, da Letras ou de qualquer cantinho mágico desta jornada
chamada graduação. Meu agradecimento a Nathalia Loureiro, sócia desde os
tempos de pré-vestibular; à Luana Damaso, desesperada amiga e aos vértices
Evelyn Lucena e Dani Veiga. A esta última devo a capacidade em ver no mais
simples acontecimento um potencial espetáculo de vida. Obrigada por estrelar
comigo essa odisséia chamada Letras.
À medida que crescem os parágrafos tenho a sensação de que essa
parte da dissertação vai estendendo cada vez mais suas fronteiras, assim
como a relação que construí com as pessoas a quem dirigirei meu “muito
obrigada”. À Vanessa Azevedo, com quem coleciono dezenas de
coincidências; a Gustavo Furtado, companheiro de viagem desde o primeiro
instante e ao quarteto fantástico do qual faço parte junto a Anastácia Cabo,
Giselle Pereira e Priscilla Romano. A esta primeira integrante do quarteto devo
a revisão desta dissertação e de outras tantas revisões acadêmicas ou não.
Assim como as inúmeras refeições, conversões e discussões sobre temas que
ultrapassam qualquer vã filosofia.
À Kelly Ferreira, minha amiga da vida inteira. Que chora o meu choro e
compartilha comigo seus sorrisos. Por vibrar a cada conquista minha como se
sua fosse e por ser a primeira a estar ao meu lado em momentos de queda.
Aquela que participa da minha vida como se estivesse por perto o tempo todo
porque nunca vai deixar de estar junto de mim.
À Luísa Perissé, por ser mi amiga e por não me deixar sozinha nessa
tarefa tão solitária que é “mestrar”. Obrigada por ser companheira, revisora,
colega de trabalho. Por embarcar e me colocar em inúmeras enrascadas sob a
frase que sempre nos consola: “Calma, amiga, vai dar tempo... a gente
consegue.”. Por concorrer, mas nunca disputar comigo. Sei que sempre haverá
lugar pra nós duas e a que subir primeiro estará de mão estendida para
levantar a outra.
A Gabriel Poeys: o menino de sobrenome mais poético que já vi na vida.
Companhia presente e carinhosa que se pode ter em todos os momentos,
assuntos. Obrigada por me entender sem que eu precise falar. Por gostar de
mim sem precisar dizer em palavras. Por estar junto, perto, dentro. Por me
incluir na sua vida, por dividir comigo a lealdade de Pedro Carné e sua banda
amiga que nos aguanta el corazón.
E, finalmente, aos meus afilhados Andrey Ribeiro, Ramon Pereira e
Arthur Franco. No sorriso de vocês eu pude encontrar solução para os
momentos de cansaço, de desalento, de falta de criatividade. Sei que ainda
não entendem quase nada sobre a questão identitária cubana, mas são
especialistas em fazer da vida uma canção de melodia simples e ritmo
contagiante.
Cantemos frente a los frescos siglos recién despiertos, bajo la estrella madura en la nocturna fragrancia y a
lo largo de todos los caminos abiertos en la distancia
Nicolás Guillén
Sinopse
Análise crítica de poemas do escritor cubano Nicolás
Guillén. Abordagem da temática identitária e sua relação
com os aportes teóricos, da transculturação e da práxis
musical. Destaque para a correlação entre história e
literatura em Cuba na consolidação dos valores
nacionais.
SUMARIO
PRÓLOGO............................................................................................15
INTRODUÇÃO......................................................................................16
I – CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL CUBANO........................21
1- A influência das décimas no fazer poético em Cuba.............................23
2- Cuba e suas independências ao longo do Século XX........................28
II – UM OLHAR SOBRE A PRÁXIS MUSICAL E POÉTICA EM VERSOS
DE NICOLÁS GUILLÉN.........................................................................41
1 – As “Rumbas” e o desejo na construção do olhar poético......................46
2 – Um dueto entre música popular em Cuba.............................................52
III – O CONTRAPUNTEO DE GUILLÉN NA TESSITURA SIMBÓLICA
DA IDENTIDADE ANTILHANA..................................................................59
1- Transculturação: história e ampliação de um conceito...........................61
2 - Hispanidade imaginada: Guillén, tecelão de identidades......................70
2.1 - Revolução cubana: do literal ao literário............................73
2.2 - “ESPAÑA”: la imagen del caos…………………………..…78
CONCLUSÃO…………………………………………………………….….94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................96
ANEXO
15
Prólogo
Ao iniciar os estudos na área das Literaturas Hispânicas, no ano de
2005, pude vislumbrar a rica diversidade do universo cubano e, desde então,
só aumentou o meu interesse em conhecer cada vez mais essa apaixonante
forma de expressar a realidade de um povo. Durante os dois anos de Iniciação
Científica, sob orientação da Profa. Dra Mariluci Guberman, pude transformar
esta afinidade em objeto de estudo. Ao concluir minha Graduação na
Faculdade de Letras da UFRJ não tive dúvidas ao escolher o caminho a seguir
no Curso de Mestrado.
A partir do 1°semestre de 2009 pude prosseguir oficialmente como
aluna e bolsista da Capes no Programa de Pós Graduação em Letras
Neolatinas da UFRJ. Durante o primeiro ano de curso pude amadurecer
minhas teorias e repensar em todo o processo que desenvolvi ao longo dos
anos de Iniciação Científica.
Já no segundo ano, especificamente, no primeiro semestre do ano de
2010, vivenciei um período deveras produtivo para o meu desenvolvimento
acadêmico. Dando continuidade aos estudos sobre o sistema histórico-literário
caribenho, minhas pesquisas avançaram dentro e fora do campo de Letras.
Graças à amplitude vislumbrada pelo Programa de Letras Neolatinas,
prossegui com a coleta e tratamento de dados na Escola Nacional de Música
UFRJ, na biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ e na biblioteca central da
UNIRIO, através das quais pude ter acesso a uma bibliografia significativa que
foi importante na consolidação do meu corpus teórico, bem como na definição
dos pontos a serem trabalhados ao longo de minha dissertação.
Todo o trabalho dos professores deste Programa, sem esquecer o
extenso apoio bibliográfico e intelectual fornecido por minha orientadora desde
os tempos de Iniciação Científica, se configurou como um alicerce que me
permitiu galgar passos mais firmes. Deu-me o respaldo necessário para buscar
novas leituras sobre os fenômenos sociais por mim estudados e produzir a
presente dissertação
16
Introdução
Cuba: um extenso lagarto verde com olhos de pedra e água, que
abriga uma nação marcada por anos de lutas e conquistas. Seus olhos podem
ver imensas tempestades de povos e costumes: partir, chegar, nascer e
sempre resistir. É esse o principal enfoque da poesia de Nicolás Guillén que,
através desse ir e vir, viver e resistir nos permite sair e conhecer outras
culturas, em uma troca de experiências e valores enriquecedores.
No que se refere ao cenário literário cubano, José María Heredia
(1803-1839), José Martí (1853-1895) e Nicolás Guillén (1902-1989) são
considerados como os principais autores responsáveis por traduzir
literariamente as etapas do processo de formação do povo cubano.
O ano de nascimento de Nicolás Guillén foi marcado pela instituição da
República de Cuba. O poeta cubano pertence à geração que sofreu com maior
intensidade a frustração da independência dentro das condições semi-coloniais
impostas pelo imperialismo norte-americano. Ele é fruto da união entre o
jornalista Nicolás Guillén Urra, de origem branca, e de Argelia Batista, filha de
escravos. O pai do poeta faleceu vítima da repressão a uma revolta política,
fato que abalou radicalmente a situação econômica da família Guillén.
Guillén começou a publicar seus escritos por volta de 1917 com
influências modernistas. Nota–se também em sua obra que o poeta era leitor
assíduo dos clássicos espanhóis como Lope de Vega, Miguel de Cervantes,
Quevedo, Luis de Góngora, com relevantes influências de Gustavo Bécquer. A
obra de Guillén se enraíza na poesia patriótica de Heredia, que foi precursor do
processo da Revolução Cubana, e que, através de Martí, se propaga com seus
escritos o clamor do povo em luta pela independência.
O processo de ruptura com a estética modernista pode ser observado a
partir de sua composição “Al margen de mis libros de estudio”. Depois de um
longo tempo sem escrever, Guillén retoma o hábito como ofício inspirado pelo
movimento vanguardista – um grupo composto por artistas e intelectuais
inconformados com as normas acadêmicas e a retórica dos valores
17
convencionais. É esse o acontecimento crucial para impulsionar a força
criadora do poeta que teve seu ponto de partida nas asas do Cisne modernista
do nicaraguense Rubén Darío.
A poesia de Nicolás Guillén percorre e faz uso de todos os explosivos e
encantadores ingredientes desse mundo latino-americano, caribenho, negro e
cubano. É como um poeta-jogral que consegue, em sua primeira etapa
madura, desenvolver uma estética pessoal e, através dela, abordar toda a
memória dos rituais da festa pagã, da resistência do índio e do crioulo.
Fortemente ligado às suas origens, plasma em sua poesia todas as imagens
contempladas por seus olhos ao longo de sua vida. Tem- se como resultado
uma profícua mescla de sonoridade caribenha, pintada de negro e com um
toque de “ron” e “melaza”.
Cultiva o interesse em descobrir, no cotidiano de seu povo, cenas
corriqueiras que contam muito mais que seus costumes, pois são descritas
com o deslumbre, o respeito e a ironia de quem fez parte desse universo. O
poeta, além de ser o resultado da rica profusão de diferentes etnias e culturas,
é também testemunha ocular dos momentos mais comoventes de seu povo e,
em alguns casos, de outras comunidades. Discorramos agora sobre algumas
de suas obras.
A publicação de Sóngoro Cosongo aconteceu após um ano e meio da
chegada de Motivos de son. Ambos os livros representavam, segundo Augier
(1984:127),
[...] uma onda sonora cuja vibração havia de perdurar indefinidamente, sobretudo ao renovar sua ressonância com a inclusão de los Motivos de son no novo livro [Sóngoro Cosongo], cuja segunda parte veio a integrar como um complemento lógico.
Guillén tomou o título Sóngoro Cosongo do estribilho de um de seus poemas
publicados em livro anterior. Dentre as inúmeras composições poéticas, pode-
se destacar “Secuestro de la mujer de Antonio”, clara e confessadamente
inspirada em um “son” da época, obra de Miguel Matamoros, cuja letra estava
já na época incorporada ao cancioneiro popular. Sobre esta composição de
Guillén, Augier (1984:132) afirma:
18
Este personagem foi tomado por Guillén para um romance de estilo novo, heterodoxo, crioulo, onde a metáfora relampejante forjada com elementos do ambiente nativo se combina com o ritmo peculiar do bongó que «se calentó» expresso à maneira já inconfundível de Guillén.
Na composição poética “Rumba”, Nicolás Guillén exalta os valores negros,
destacando a rumba como uma das possíveis formas de representar a
identidade. Uma tentativa de combater o preconceito pelas vias poéticas.
Em West Indies, que desde o título satiriza a realidade de dependência
econômico-politica cubana, sedimenta o seu talento ao abordar o mestiço. Em
“Balada de los dos abuelos”, Guillén exalta a importância de sua origem
mestiça sem omitir as dores de seus antepassados nem justificar o sofrimento
causado pelos conquistadores. Muito mais que preconizar o mundo e as
crenças de um “abuelo blanco” com sua “gorguera” ou de um “abuelo negro” de
“torso pétreo”, Guillén consegue, através de suas composições, salientar o
resultado desse processo. Apresenta-se como elemento que representa a
fusão dessas duas etnias. O ritmo do Son cubano, que se intensifica em seu
livro El son entero, pode ser confirmado como característica intrínseca do fazer
poético do autor.
Em “Tengo” é possível perceber o envolvente jogo fonomelódico1 de
um eu-lírico que dialoga absorto em uma atmosfera revolucionária. Porém
suas composições não se limitam apenas aos problemas e particularidades
inerentes à Cuba, mas sim aos acontecimentos de diversas partes do mundo.
Por onde passa, Nicolas Guillén registra em seus versos o que seus olhos
puderam testemunhar.
Como exemplo do que foi mencionado no parágrafo anterior temos o
livro Cantos para soldados que foi publicado no México, quando o autor
participou de um congresso de escritores, convidado pela Liga de Escritores e
Artistas Revolucionários (LEAR). De lá seguiu para a Espanha, com o objetivo
de participar do II Congresso Internacional de Escritores Antifascistas en
Defensa de la Cultura.
1 Termo utilizado por Mariluci Guberman em “Poder de libertad en Guillén.” El mar y la
Montaña, Guantánamo, 1989
19
Uma de suas composições, publicadas nessa mesma época, possui
como tema a Guerra Civil Espanhola e se intitula “España, Poema en cuatro
angustias y una esperanza”. Os valores estéticos desse poema, que expressa
uma sincera solidariedade do povo cubano com a causa defendida pelos
republicanos espanhóis perante o avanço fascista, superam a mera
representação literal dos fatos.
Pretende-se, portanto, com a presente pesquisa, estudar a
representação da identidade nacional de um povo através do diálogo entre
composições poéticas do autor e música popular, bem como a repercussão das
heranças africana e européia na sedimentação de conceitos identitários das
Antilhas, com enfoque particular para Cuba, através da análise histórica e
literária de poesias selecionadas do autor Nicolás Guillén.
Para tanto, parte-se das influências artísticas anteriores vivenciadas,
juntamente com a história de Cuba para iniciar os estudos sobre o contexto
cultural e literário. Busca-se compreender os processos evolutivos do cenário
cultural, considerando, portanto, os artistas que antecederam o momento vivido
por Nicolás Guillén.
As análises literárias embasam-se nas acepções publicadas por Kevin
Lynch em A imagem da cidade (1982) e Justo Villafañe em Introducción a la
teoria de la imagen (2002). Outro aporte teórico relevante encontra-se em
Walter Benjamin (1994) e seu conceito de memória: uma busca do tempo
passado no presente. O estudo da identidade é o respaldo teórico que permite
ratificar os elementos vislumbrados no contexto histórico. Para este fim, foram
empregadas as concepções de Zygmunt Bauman (2005) e Benedict Anderson
(2008) sobre identidade, discutindo-se também a ideia de tranculturação em
Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar (2002) de Fernando Ortiz e em
Transculturación narrativa en América Latina (1987) de Angel Rama, por
entender a importância que este conceito possui na construção da ideia da
identidade cubana .
Toda essa série de elementos que compõem o universo poético de
Guillén é embalada pelo “son”. E para tratar das questões pertinentes ao
universo musical cubano e suas influências, temos como fundamentos teóricos
20
principais os estudos de Alejo Carpentier, em seu livro La música em Cuba
(1998), e no escrito por Fernando Ortiz, La africanía de la música folklórica de
Cuba (1950) e também no de Mareia Quintero Rivera, A cor e o som da nação:
a idéia de mestiçagem na crítica musical do Caribe hispânico e no Brasil
(1928/48) (2000).
21
I – CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL CUBANO
A cada una de las etapas de la evolución histórica
de Cuba corresponde exactamente cada uno
de los períodos de nuestra poesía.
Ángel Augier
A História se configura como memória viva que define o momento
presente. É um patrimônio humano através do qual adquirimos o conhecimento
e a compreensão necessários para tornar viável uma mudança na realidade
que nos circunda.
As obras literárias são, portanto, veículos atemporais nos quais a história
de um indivíduo ou nação se perpetua na memória como História de um povo.
São elas o elo que permite a disseminação de elementos-chave na
compreensão do modus vivendi de uma sociedade num tempo e espaço
definidos.
Como bem discorre o escritor e historiador Angel Augier, em sua obra
Nicolás Guillén: estúdio biográfico-crítico, o grito romântico em Cuba coincidiu
com os primeiros lampejos da consciência nacional, expressa ainda nos
primórdios do século XIX através dos versos de Jose Maria Heredia. O mesmo
ocorreu em tempos de exacerbada agitação pela independência da ilha no fim
desse século, momento em que se pode destacar a figura de José Martí como
um dos principais nomes que encabeçariam a renovação literária motivada
pelos ideais do modernismo hispano-americano.
Os escritos de Nicolás Guillén, assim como os dos integrantes do grupo
Minorista, são um reflexo literário da urgência literal em conquistar a plena
independência da ilha. Coincidem com um momento em que todos os cidadãos
cubanos se envolvem na causa revolucionária com o fim de extirpar problemas,
alguns deles, sinalizados por Guillén em seu primeiro artigo, publicado em
1929 no Diário de la Marina sob o título “El camino de Harlem” no qual
interroga:
22
¿Cuáles son los problemas de La raza de color, hoy, en la República de Cuba? ¿Es que después de dos grandes revoluciones contra España y después de la instauración de una patria libre, en cuya Constitución la igualdad entre todos los ciudadanos es dogma primordial, puede haber una cantidad de cubanos, por pequeña que ella sea, que se sienta diferenciada por ella?
O próprio poeta responde na sequência do texto encontrado em Augier (1984: 89),
La respuesta es grave y, sin embargo, debe darse. Sí, señores, todavía tiene problemas la raza de color en Cuba y todavía necesita luchar mucho para resolverlos. Todavía la igualdad no alcanza a todos los sectores de la vida republicana, y aún hay mucha trinchera prematuramente abandonada, donde es preciso seguir combatiendo contra prejuicios innumerables.
Ao longo do século XX, com o intuito de compreender os processos
evolutivos do cenário cultural através dos fatos históricos que podem ser
vislumbrados em dado momento, serão abordadas, nesta pesquisa, as
décimas cubanas como veículo transmissor dos valores nacionais de 1898 a
1925 e da história de Cuba. Para tanto será de fundamental importância os
estudos de Bonifacini (1987), Portuondo (1985) Ibarra (1994) e Bethell (1998).
23
1- A influência das décimas no fazer poético em Cuba
Con los pobres de la tierra
quiero yo mi suerte echar
el arroyo de la sierra
me complace más que el mar
José Martí
Pode-se considerar a décima, como a estrofe nacional dos cubanos. E
esta informação está completamente decantada nos meios literários e sociais
não só da América Latina, mas também em território espanhol. Esse modo de
expressão artística nasceu em território espanhol, graças a Vicente Espinel no
fim do século XVI e foi trazida, juntamente com o romance, às terras
americanas com a colonização.
Converteu-se em uma das expressões mais características da poesia
popular, sendo utilizada até os dias atuais por poetas e nas relações
interpessoais, quando se pretende expressar algum sentimento através de
versos. Para delinear um perfil sócio-cultural do cubano no século XX, cabe
destacar que este, como bem discorre Cíntio Vitier, pouco se identificou com o
romance tipicamente espanhol, porque o que o define e difere dos espanhóis
seria
[...] uma sensibilidade atenta somente ao fresco presente como sucessão de instantes, como perene improvisação efêmera. O romance gravita, ressoa, vive de seu próprio eco, flui em um rio profundo.
(Cintio Vitier In: Ibarra 1994: 195)
Era preciso consagrar uma expressão de espírito breve e vigoroso como
o canto do galo. Portanto, as décimas se apresentaram como modelo ideal
para retratar o momento vivenciado. Sobre o assunto ainda podemos afirmar,
em conformidade com os estudos do professor Boris Lukin que,
Diferente do poema épico, as obras líricas tinham uma interpretação massiva, o que oferecia mais possibilidades para adaptar os textos a novos sentimentos e conexões. Não há em Cuba a tendência dos
24
romances, nos quais se vislumbra o pintar de gestas do passado, fundamento do romanceiro espanhol.
(Boris Lukin in: Ibarra 1994: 194)
Ainda sobre as características definitórias da décima cubana, vale
mencionar primeiramente que esta responde, em todos os termos, aos
acontecimentos vividos no momento presente e, por conseguinte, é um
fenômeno explosivo de curta duração. Em seguida, pode-se observar que há
nela maior possibilidade de interpretação quando se pretende realizar uma
análise histórica e sociológica do cubano.
A décima possui uma estrutura redonda: o primeiro verso e o décimo de
alguma maneira se reencontram. O improviso é marcante e se aproxima ao
barroco, pois se abre como uma espiral em direção à luz, à semelhança
arquitetura barroca. No final do século XVII e na primeira metade do século
XX, apareceu como expressão genuína, atrelada à terra e à natureza cotidiana
dos cubanos. Não existia nada que a vinculasse às crônicas oficiais da
burocracia colonial o que facilitou sua disseminação.
A clara preferência por essa forma de expressão se configura como uma
nítida rejeição a uma história oficial que não cristalizava a realidade de um
povo que abrangesse todas as camadas sociais existentes. Manteve-se e se
nutre, até os dias atuais, da necessidade de estabelecer comunicação entre as
diversas regiões que compunham as camadas populares.
Na primeira metade do século XIX, se observa uma marcada ausência
dos temas políticos nas manifestações artísticas do gênero. Já na segunda
metade do mesmo século, tem-se um aumento na discussão dos problemas
políticos devido às guerras em prol da independência da Ilha.
Com isto, se pode elencar uma série de trovadores regionais que
representaram esse momento em Cuba através de suas décimas: Vate de
Canasí, Senén e Nemesio Cabrera, procedentes de Pinar Del Rio; Verbena de
Güirarde Melena; Tejera Trujillo (Gareo) de Guines; San Fancón de Lajas;
Fórun del sol de Cienfuegos; Tocororo de Palmera; Miguel Puertas Salgado de
Placetas; José Limedoux de Sagua; Ceferino Tirado de Camagüey.
25
Em princípios do século XX, Samuel Feijóo coletou e publicou no
semanário popular humorístico titulado La política cómica algo em torno de 200
décimas. Dentre elas, 59 se referiam diretamente a temas políticos o que
confirma a tendência referida em parágrafos anteriores. O diretor do semanário
cubano na época, que até princípios do século concordava com uma política
conservadora, passou a dar espaço às publicações provenientes do interior da
Ilha. Atitude que tanto pode ser interpretada como uma possível mudança de
posicionamento quanto como o anseio de aumentar as vendas do semanário.
O contexto histórico-político fervilhava nas décimas camponesas. Das
publicadas em La política cómica entre 1920 e 1923 encontraram 60
referências contra a política de Menocal e 16 contra Zayas. A crítica mais dura
se fundamentava no apoio que os políticos demonstravam às determinações
norte-americanas. Dessa forma é possível explicar as 83 referências contra as
classes dominantes que oprimiam as camadas mais humildes e as 84
referências dirigidas contra o vizinho do norte. Estas últimas se apresentavam
como uma resposta às ameaças de união dos territórios; à Emenda Platt e aos
empréstimos que lesavam a soberania nacional, fazendo crescer a urgência
em obter a plena soberania em Cuba.
Para que a explanação iniciada no início do presente estudo tenha uma
consistência efetiva, sigamos com a apresentação de algumas décimas da
época para ilustrar as inquietudes do povo cubano.
I ) “La tonada Del dia” que faz uma alusão às condições vividas no plantio de
cana:
Los meses así han pasado/ desde mayo hasta noviembre/ y éntrase más en diciembre/ y todavía no han pagado. / De ese modo han engañado/ al campesino cañero/ y aunque saben que el bracero/ de su miseria está muriendo/ siempre le salen diciendo: / dentro de poco hay dinero.
(In: Ibarra 1994:205)
26
II) “Explotando a Liborio” em uma referência clara a exploração das industrias
norte americanas em Cuba:
Vienen los norteamericanos/ trayéndo aqui muchos reales/ para comprar los centrales que les venden los cubanos/ Ellos nos llaman hermanos/ desde que hubo intervención, / y ahora encuentran la ocasión/ de aumentar su capital/ pagando poco jornal/ en su gran explotación.
(In: Ibarra 1994:206)
III) “A Cuba” na qual se apresentam as diferenças entre as classes sociais
Ay, cuanta miseria enseñanza encierra/ ese humilde hogar cubano/ los que con callosa mano/ llenan de frutos esa tierra./ Los que con la suerte en guerra/ nunca a la labor se hacían/brindan al comercio espacio,/ viven en bohíos ruinosos/ mientras dan al poderoso/ modo de habitar palacios.
(In: Ibarra 1994:206-207)
IV) “Peñon de las cotorras” que denota o sentimento aguerrido em mudar a
situação de dependência.
Liborio se halla arma en brazo/ se encuentra ya prevenido/ el pájaro entrometido/ no le daría al aletazo. / De su tierra ese pedazo/ que se lo quiten no deja/ el águila grande y vieja/ tendrá fuerza, sí señor/ pero a Liborio el valor/ le sobra y eso le empareja.
(In: Ibarra 1994:210)
As décimas aqui citadas constituem um singelo exemplo que figura em uma
série de composições que aludem o modo de vida do cubano. Nelas se
perfilam uma atitude de intensa emoção. Transparecem a dor, a amargura o
inconformismo diante da situação vivida em Cuba. São, segundo Jorge Ibarra
(1994:208)
um reflexo fiel dos sentimentos dominantes na massa rural, ao passo que contribuem para fixar um conhecimento exato da natureza do conflito entre explorados e exploradores, necessário para uma tomada de consciência de si.
Sua linguagem espontânea e atenta abarcou a crise política instalada
em Cuba no primeiro quarto do século XX. Nestes anos, poucos depositavam
suas esperanças nos homens e instituições da república. Nas décimas, o mal
27
estar e a irritação encontravam sua máxima ressonância superando
efetivamente os meios de comunicação aliados a burguesia.
Tiveram, portanto, um caráter patriótico e popular, pois congregavam a
todos ao entoar os anseios e aspirações do povo. Ainda hoje encontram
espaço no cenário cubano, já que o intenso vínculo entre oralidade e escrita
permanece vivo nas composições cubanas. Como comprovaremos ao
relacionar as considerações dos estudos que se seguem às análises das
composições poéticas de Guillén.
28
2- Cuba e suas independências ao longo do Século XX
Libertad es el derecho que todo hombre tiene a ser honrado, y a pensar y
a hablar sin hipocresía José Martí
A primeira metade do século XX se caracterizou como um período de
tensões entre Cuba e algumas nações que pretendiam obter o controle da Ilha.
O combate travado entre Espanha e Cuba fez com que a primeira ficasse à
beira da ruína. No entanto, o triunfo da campanha militar cubana não alcançou
os resultados esperados na esfera política de Cuba. Acabou facilitando a
intervenção dos Estados Unidos no conflito e, consequentemente, fortaleceu o
poder de atuação do leão de duas cabeças 2 em solo cubano.
Sobre a participação dos EUA no “novo” processo de dependência de
Cuba, vale destacar os escritos de Leslie Bethell (1998:151), catedrático
emérito de história da América Latina na Universidade de Londres, quando
afirma que:
A intervenção armada conduziu a ocupação militar e ao concluí-la, em maio de 1902, os Estados Unidos reduzira a independência de Cuba a uma simples fórmula. A Emenda Platt negava a recém-nascida república: sinalizava limites para a dívida nacional e sancionava a intervenção estadunidense para a “manutenção de um governo idôneo, para a proteção da vida, a prosperidade e a liberdade individual”.
O tratado de reciprocidade não só atrelava o açúcar, principal produto cubano
de exportação, a um único mercado como também abria setores-chave da
economia cubana ao controle estrangeiro, majoritariamente, o estadunidense.
Amparadas pelo tratado de reciprocidade, as forças políticas dos
Estados Unidos puderam substanciar a dependência cubana do açúcar e, em
menor escala, do tabaco. Além disso, obtinha-se também como resultado um
retardo no desenvolvimento da economia na Ilha, já que o mercado cubano se
2 Expressão utilizada por José Marti no manifesto “Nuestra América”. In: MARTÍ, José. Nuestra América.
Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005.
29
encontrava sufocado diante das imposições estrangeiras. Como se vê
ratificado nas linhas abaixo:
Antes que transcorresse uma década desde a guerra de independência, os Estados Unidos já eram onipresentes em Cuba. Dominavam totalmente a economia, penetravam por completo no tecido social e exerciam o controle pleno do processo político. A localização desta presença deu forma ao caráter essencial da república em seus primeiros tempos. (Bethell 1998: 152)
Como grande parte da riqueza nacional passou rapidamente a mãos
estrangeiras, os cargos políticos foram distribuídos entre as elites. Esta era a
única atividade que se caracterizara por ser desempenhada completamente por
membros da sociedade cubana. Tornou-se o principal meio de vida das
camadas mais privilegiadas em Cuba. Nesses moldes, o processo eleitoral
passou a ser um espaço de substituição cíclica e previsível. A preservação
desse sistema era tão importante que a sucessão presidencial foi o estopim de
protestos armados em 1906. Primeiro na reeleição de Tomás Estrada Palma e
no ano seguinte contra o candidato Márcio García Menocal.
O intento de alterar a ordem estabelecida na ilha demorou a findar. Anos
mais tarde, os protestos contra a reeleição de Gerardo Machado tomou
proporções bem maiores que os movimentos organizados em eleições
anteriores. O conflito saiu dos tradicionais partidos Conservador e Popular e se
concentrou também no partido Liberal. Porém, a oposição ao governo de
Machado não se originou fundamentalmente nos partidos arraigados. Novas
formas começaram a dar sinal de vida na sociedade.
Na década de 20 a primeira geração de cubanos nascidos sob a
república, dentre os quais figurava Nicolas Guillén, já alcançara a maturidade
política e conhecia as deficiências do sistema republicano. A desilusão da
nação cubana encontrou alento na troca de ideias, em novas correntes
literárias e artísticas. Sobre esta última informação, cabe destacar a citação de
Angel Augier, renomado historiador e crítico cubano, sobre a participação de
Guillén no processo de transformação político-social em Cuba:
30
Nos domínios da arte e da literatura, o espírito de protesto se manifestou com o Grupo Minorista, formado em 1924, por, como definira um de seus animadores, “intelectuais jovens de esquerda” que se pronunciaram, desde os primeiros momentos, contra os falsos valores e por uma radical e completa renovação formal e ideológica, nas letras e nas artes, que sem esquecer estes propósitos [...] se interessava pelos problemas políticos e sociais de Cuba, da América e da humanidade, e por eles trabalhavam em sentido radical e progressista. (In: Bonifacini:1987: 26-27)
O Vanguardismo, denominação genérica das novas formas de
expressão artística em Cuba, surgiu apoiado nas tendências europeias através
dos intelectuais atuantes do Grupo Minorista. Os principais veículos de
circulação de ideias e princípios dessa geração revolucionária foram a Revista
de Avance (1927-1930) e o suplemento literário dominical do Diário de la
Marina. Não só os intelectuais atuaram na transformação em Cuba. Junto a
eles, estudantes e trabalhadores levaram o descontentamento além dos limites
da tradicional política entre partidos. A geração republicana objetivava
regenerar por completo a república, o que a conduziu a levar o embate político
às vias da reforma e da revolução.
Como resposta a essa mudança que se verificava na sociedade cubana,
as elites políticas tradicionais formaram uma aliança para promover a reeleição
de Gerardo Machado. Esta conjunção de forças recebeu o nome de
Cooperativismo e fez cair por terra a aparente independência entre os partidos,
assim como desmitificou a concorrência entre eles. Ainda em 1927, ano da
reeleição, Machado conseguiu que o Congresso aprovasse uma resolução que
estendia o mandato presidencial. Assim sendo, obteve sua reeleição por um
período de seis anos.
Com este cenário, intensificou-se em Cuba o enfrentamento político
gerado pelo conflito social das correntes de pensamento. A crise mundial
contribuiu seriamente para o aprofundamento do embate, levando-o às vias da
ação revolucionária.
Em meados da década de 30, as condições se agravaram ainda mais
quando os Estados Unidos implantaram uma medida protecionista, a tarifa
Hawley-Smoot, que incrementou direitos na importação correspondente ao
açúcar cubano. Atitude que levou os produtores a rebaixar salários, demitir
trabalhadores, reduzindo sua produção. Durante o governo de Gerardo
31
Machado também foram feitas drásticas reduções salariais a outros setores
das camadas sociais, excluindo-se apenas as forças armadas. Se por um lado,
as condições econômicas da ilha pioravam; por outro lado crescia o
ressentimento de uma população que ansiava derrubar um sistema com a
derrocada de um presidente.
Por volta de 1933, líderes de oposição que se encontravam exilados
organizaram uma junta revolucionária em Nova York com o fim de convocar
uma revolução nacional para expulsar Machado do poder. Toda essa
efervescência político-econômica em Cuba preocupava aos Estados Unidos
que via escapar de suas mãos o domínio sobre a economia cubana.
O General Gerardo Machado, então presidente, já não era útil aos
interesses das elites e menos ainda aos estrangeiros. A ordem e a
estabilidade, que lhe garantiu o apoio de Washington, proporcionadas em seu
primeiro mandato já não existiam. De tal forma, os Estados Unidos deixaram
de apoiá-lo iniciando um dissabor que abalaria o cenário político-econômico de
ambas as nações. Após muitas manifestações o exército obteve, em agosto de
1935, a retirada de Machado. Iniciou-se então uma nova discussão: quem seria
o sucessor adequado. Porém, esta questão foi resolvida de forma provisional.
O estadista Carlos Manuel de Céspedes foi nomeado para o cargo após
um breve tempo de mandato assumido por Alberto Herrera, Secretário de
guerra e ex-chefe do exército. Céspedes era tido como um político
inexpressivo, inofensivo já que não estava filiado a nenhum partido ou
tendência política. Seu governo foi marcado pela sombra dos efeitos da
administração de Gerardo Machado e a crise econômica e social instauradas
na ilha não se mostrou menos intensa durante seu mandato.
Os movimentos que impulsionavam uma mudança governamental
efetiva consideraram insatisfatória a solução Céspedes. Muitos deles, como as
organizações estudantis e o Partido Comunista passaram muito tempo lutando
pela revolução e isto lhes impedia de se conformarem com um golpe de
32
palácio3 como resultado de seus esforços políticos. Seu tempo de governo
terminou de forma inesperada.
Militares do acampamento de Columbia, que se reuniram em La Habana
para tratar de suas reivindicações, ao não conseguir êxito em seus propósitos,
conseguiram apoio de grupos anti-governamentais e, juntos, articularam um
golpe de estado que seria conhecido alguns anos depois como revuelta de los
sargentos. Sobre esse momento, vale destacar o comentário de Bethell (1998:
161) sobre a revolta dos sargentos:
Foi uma coalizão de conveniência, não sem seus defeitos, porém ofereceu a absolvição das tropas rebeldes e poder político aos civis dissidentes. Deste consenso civil-militar provisional saiu uma junta revolucionária composta por Ramón Grau San Martín, Porfírio Franca, Guillermo Portela, José Irizarri e Sérgio Carbó.
O traslado da junta revolucionária do quartel do acampamento de
Columbia ao palácio presidencial serviu para que a autoridade em Cuba
mudasse de lugar. Na manhã do dia 5 de setembro, um manifesto político
anunciou o início de um novo Governo Revolucionário Provisional,
proclamando também a afirmação da soberania nacional, a instauração de uma
democracia moderna e de um movimento de criação de uma nova Cuba.
Este governo de caráter provisional encontrou em Summer Welles,
embaixador dos Estados Unidos, seu maior adversário. Os novos moldes de
governo em Cuba destituíam toda a autoridade conservadora defendida por
Welles que prontamente recomendou uma intervenção militar norte americana
em Cuba com o fim de devolver o poder a Céspedes. No entanto, não obteve
sucesso.
Ainda no mês de setembro a junta se dissolveu para dar lugar a uma
forma de governo mais tradicional sob o controle de Ramón Grau San Martín.
Foi nomeado como chefe do exército, Fulgencio Batista, para evitar qualquer
3 É uma espécie de golpe pelo qual um governante ou setor do governo tem sido movido por forças
pertencentes ao próprio governo, sem seguir as normas legais estabelecidas para a substituição de funcionários. É muito comum a existência de golpes no palácio ditaduras decorrentes de golpes.
33
ruptura na ordem pública. A respeito deste momento político em cuba se faz
esclarecedor introduzir a citação de Bethell (1998: 162) quando enuncia que:
Sob o slogan de “Cuba para os cubanos”, o novo governo começou a promulgar leis reformistas em ritmo vertiginoso comprometendo-se com a reconstrução econômica, a mudança social e a reorganização política. O novo governo revogou a Emenda Platt e dissolveu todos os partidos machadistas. As taxas de serviço público foram reduzidas em 40% e as taxas de juros também sofreram redução. O direito de voto foi concedido às mulheres e também autonomia para a universidade. Foi instituído o salário mínimo para os cortadores de cana, [...] a jornada de oito horas, indenizações aos trabalhadores, a criação de um ministério do trabalho e um decreto sobre a nacionalização do trabalho que dispunha que 50% de todos os empregados da indústria, do comércio e da agricultura fossem cidadãos cubanos.
O apoio militar ao governo provisional sempre se caracterizou mais pelo
interesse que por solidariedade à causa revolucionária. O militar Fulgencio
Batista era apenas um dos quatrocentos suboficiais promovidos recentemente
cuja graduação dependia de que em Havana houvesse uma solução política
compatível com a nova hierarquia do exército. Sabendo disso, Welles explorou
de forma hábil a fragilidade dessa aliança para desestruturá-la concentrando
seu discurso em Batista.
Em dezembro, Summer Welles anunciou que Batista buscava por uma
mudança efetiva no governo devido, entre outros fatores, ao temor de que
houvesse uma nova intervenção dos Estados Unidos. Retirou o apoio de seu
exército a Grau e apoiou Carlos Mendieta – ato que foi legitimado pelos
Estados Unidos cinco dias após a ação de Batista. No entanto, as forças de
mudança liberadas durante o machadado não minguaram com o
desaparecimento do governo de Grau, pelo contrário, encontraram novas
formas de expressão. Entre 1934 e 1935 houve mais de cem greves em toda
ilha. Dentre as inúmeras greves ocorridas no período, destaquemos a greve
geral de 1935.
Foi o último golpe revolucionário da geração republicana. Fracassou em
poucos dias, porém seus efeitos perduraram até o fim da década. A severidade
com que foi reprimida acarretou em desacordos na coalizão presente no poder
levando a sua dissolução. Dessa forma, a greve alcança o efeito desejado,
34
porém não consegue cumprir seu objetivo já que Batista e as forças armadas
acabam preenchendo o vazio político deixado com a saída de Mendieta.
Fulgencio Batista passou a ser a força política mais importante em Cuba.
Seu prestígio aumentou durante toda a década de 30 à medida que foi
restaurando a ordem e a estabilidade. Os grupos revolucionários, diante dos
conflitos vivenciados, se encontravam desarticulados. O historiador Leslie
Bethell (1998: 166) explica o êxito do governo de Batista quando descreve que
Não cabem dúvidas que Batista transformou o exército cubano em um eficaz meio de repressão. Ao mesmo tempo, porém, os líderes militares se entregaram aos negócios ilícitos e a corrupção em uma escala desconhecida em Cuba. [...] Comprometeu as forças armadas com uma ampla série de programas sociais, começando em 1937 com a inauguração de escolas cívico-militares, nas quais sargentos atuavam como professores nas zonas rurais. Estas missões educativas cujo fim era difundir informação referente à agricultura, higiene e a nutrição entre as comunidades rurais foram o início de uma rudimentar rede de educação no interior. O exército tinha mil escolas onde durante o dia se educavam as crianças e à noite os adultos. No fim da década de 30 o exército criara uma extensa burocracia militar cuja tarefa era a de administrar programas sociais
As condições econômicas melhoraram ao longo dos anos 30. O açúcar cubano
recuperou pouco a pouco uma maior participação no mercado estadunidense,
contudo a recuperação econômica de Cuba interna e externamente teve seu
custo.
A Ilha obteve, graças ao tratado de 1934, um mercado assegurado para
suas exportações agrícolas em troca de reduções tarifárias para uma grande
variedade de produtos e a redução de impostos internos sobre produtos
estadunidenses. Os Estados Unidos fizeram concessões que abarcaram trinta
e cinco artigos do tratado, enquanto as feitas por Cuba afetaram a
quatrocentos, vinculando a ilha, uma vez mais, ao país do leão de duas
cabeças.
O fim da crise econômica e o retorno da estabilidade em Cuba, além do
clima de aparente concórdia entre as forças políticas da ilha permitiram a
discussão que instauraria uma reforma constitucional. Para tanto se reuniram
em 1939 representantes de todas as filiações políticas em uma assembleia
constituinte. O resultado dessa discussão pouco acalorada foi a promulgação,
35
em 1940, de uma Constituição notadamente progressista. As cláusulas sociais
do documento contemplavam apenas uma série de generalidades trabalhistas
como: horários máximos, salários mínimos, direito a greve.
A constituição de 1940 nascia como uma exposição de objetivos, um
programa do que deveria ser feito no futuro. Além disso, vale destacar que sua
criação permitiu a celebração das eleições presidenciais no ano de sua
promulgação. Uma vez mais se enfrentaram Batista e Grau San Martín, que
regressou do exílio para enfrentar seu antigo rival no processo eleitoral.
O resultado da eleição foi categórico: Batista obteve mais de 800.000
votos frente aos 575.000 de Grau. Na presidência, Batista promoveu
mudanças saudáveis. A eleição celebrada em 1940 serviu para conferir um
novo caráter à distribuição do poder. O poder político real já não passava mais
da autoridade civil constitucional ao chefe de estado do exército cubano. Sobre
o período em que Batista esteve no poder cabe destacar que:
Em princípios de 1941 as alfândegas, que desde muito tempo eram fonte de subornos para os militares, passaram ao controle do Ministério da Fazenda. Os projetos educativos patrocinados pelo exército estavam, agora, sob a administração do Ministério da Educação. A supervisão dos faróis, a polícia da marinha mercante e o sistema postal voltou aos ministérios governamentais pertinentes. (Bethel 1998: 168-169)
Essa série de mudanças despertou rapidamente a ira dos oficiais setembristas
de alta patente e causou uma baixa na confiança dos militares em Batista.
Porém este último saiu favorecido do embate entre presidência e força militar.
Batista também se beneficiou em que seu mandato coincidisse com a
2ª Guerra Mundial. A entrada de Cuba no conflito, em 1941, facilitou os
acordos comerciais e programas de concessões e créditos com os Estados
Unidos. A queda na produção de açúcar na Ásia e na Europa, em função da
guerra, foi um estímulo para os produtores cubanos que tiveram sua produção
elevada de 2,7 para 4,2 milhões de toneladas.
No entanto, a guerra também trouxe perdas à ilha. Paralela à
valorização vertiginosa do açúcar, vivenciou-se o problema causado pela falta
de barcos e o risco em transportar mercadorias à outra margem do Atlântico.
36
O turismo também sofreu uma grave queda e o número de viajantes caiu de
127.000 em 1940 para 12.000, três anos após. Todo esse clima fomentou um
animado debate político em 1944. Ano em que se celebrariam as eleições
presidenciais.
Uma vez mais estava na disputa o Autêntico Grau San Martin que, desta
vez, saiu vitorioso. Tal fato despertou imensas expectativas populares no
programa de reforma que era a grande promessa do PRC4. Contudo, nem o
governo de Grau (1944-1948) nem o de seu sucessor Carlos Prío Socarrás
(1948-1952) pôde corresponder aos anseios dos cubanos. O governo de Grau
foi marcado por incertezas e desfalques por parte do PRC. Como complemento
do que foi citado anteriormente, têm-se algumas das acusações feitas nesse
período:
Grau foi acusado de desfalcar 174 milhões de dólares. Em 1948, acreditava-se que o ministro da Educação roubara 20 milhões de dólares. O ministro da Fazenda do governo de Prío foi acusado de se apropriar indevidamente de milhões de bilhetes velhos do banco que deveriam ser destruídos. (Bethel 1998: 170)
As oportunidades econômicas no período pós-guerra se perderam
graças à má administração. Fruto de erros de cálculo, da corrupção e do abuso
de poder na distribuição e gestão dos cargos públicos. A derrocada da
administração do PRC gerou uma série de conflitos internos no partido,
acarretando em uma séria ruptura entre seus membros.
O golpe de 10 de março representou o tiro de misericórdia que pôs fim a
um regime decadente. Militares insatisfeitos com a gestão de Grau se uniram
para derrubar os Autênticos do poder. Na madrugada desse dia, os rebeldes
se apoderaram dos principais postos militares da capital. Os militares
ocuparam posições estratégicas na ilha e os cubanos despertaram sob o rumor
de um golpe de Estado, do qual não se podia ter certeza já que as estações de
rádio tocavam música ininterruptamente. O complô liderado por Batista
alcançou êxito sem muita resistência. Fato que aparecia como resposta a um
governo repleto de manobras corruptas e escândalos. Batista retornou ao
poder na ansiada e discutível eleição de 1954 com 40% dos votos. 4 Sigla para designar o Partido Revolucionário Cubano. Que se opunha ao Partido dos Autênticos.
37
Os Diálogos cívicos, série de entrevistas feitas a Batista por
representantes da oposição moderada, representavam a última tentativa de
negociar uma solução política para a crise vivenciada na ilha. Objetivava fazer
com que o presidente celebrasse eleições com garantias a todos os
participantes. Como Batista se negou, a resposta à sua atitude chegou ainda
no ano de 1955. No final deste ano, Cuba estava imersa em uma série de
manifestações estudantis. Eram constantes os choques armados entre
estudantes e as forças militares e policiais. Os anos seguintes foram de
inúmeras tentativas de retirar Batista do poder e realizar em Cuba as
transformações necessárias para o seu real progresso.
E nesta guerra de guerrilhas, Fidel Castro e seus homens queriam
aniquilar a Guardia Rural presente na Sierra Maestra, que durante décadas
aterrorizara as comunidades rurais da região. Tal intento ganhou apoio dos
camponeses, fazendo com que o contingente aumentasse em número e êxito.
Sobre a repercussão dessa manobra de Castro pode-se afirmar que:
As vitórias dos insurgentes obrigaram o governo a admitir que havia enclaves de território liberado em toda a província do Oriente. Durante todo o ano de 1957 e começos de 1958 o tamanho do exército rebelde aumentou [...] Em meados de 1958 uma coluna de cinquenta homens sob o comando de Raúl Castro estabeleceu a Segunda Frente no noroeste de Cuba, além de consolidar várias partidas rebeldes que atuavam na região. [...] Outra coluna atuava ao leste do pico Turquino sob o comando de Ernesto «Che» Guevara. [...] A expansão da luta no campo foi acompanhada de uma crescente resistência nas cidades [...] À medida que aumentava o número de sequestros e assassinatos, o regime respondia com maior ferocidade [...] A volta de Batista ao poder havia dado o sinal para a transformação geral no comando do exército e velhos oficiais setembristas.[...]Batista enfrentava tanto a crescente oposição popular como a resistência armada com um exército cada vez mais inseguro politicamente e de pouco fiar profissionalmente. (Bethel 1998: 175-176)
A crise cubana dos anos cinquenta era muito mais que um conflito entre
um presidente e seus adversários políticos. O descontentamento durante a
década de cinquenta se fundamentava tanto na frustração socioeconômica
quanto nas demandas políticas. Em 1957, 17% da população ativa estava
desempregada; na indústria açucareira, aproximadamente 60% dos
trabalhadores estavam empregados por seis meses ou menos . E este cenário
representava um dos melhores anos da década na ilha. No entanto, Cuba
38
possuía uma das rendas per capita mais altas da América Latina. Somente
México e Brasil superavam Cuba em número de televisores e rádios por
habitante. O consumo de importações, principalmente de produtos
estadunidenses, aumentou de 515 milhões de dólares em 1950 para 649
milhões em 1956 e para 777 milhões dois anos mais tarde.
Em 1958 o Movimento 26 de julho começou uma guerra contra a
propriedade e a produção por todos os cantos da ilha com o fim de afastar
Batista do apoio que recebia das elites econômicas estrangeiras e nacionais.
Em fevereiro os líderes da guerrilha anunciaram sua intenção de atacar os
engenhos de açúcar, as fábricas de tabaco, as empresas de serviço público, as
estações de trem e as refinarias de petróleo. O que fez com que Cuba
estivesse durante todo o ano no limite da revolução.
O Pacto de Caracas, realizado em junho de 1958, nomeou Fidel Castro
como líder principal da revolução. As tropas de Batista fracassaram no
combate travado na Sierra Maestra. Os comandantes militares das regiões se
rendiam, pouco a pouco, sem disparar um só tiro. Ainda no mesmo ano, Batista
ganhou mais um adversário: o governo dos Estados Unidos. Em dezembro do
mesmo ano, 90% da população apoiava a guerrilha. Fato que foi marcante para
a decisiva batalha de Santa Clara.
Depois da vitória dos guerrilheiros em Santa Clara, Fulgencio Batista se
afastou do poder sob uma onda de entusiasmo popular. Acabava um período
de poder tirano e despótico, controlado pelos EUA, bem como o comando de
Batista, desde 1952 à frente dos destinos de Cuba. O episódio histórico
vivenciado em Santa Clara imortalizou-se em um conjunto de trechos ou títulos
de canções e poesias cubanas, a maior parte das vezes dedicadas ao
Comandante, Che Guevara, desaparecido mais tarde, em 1967, na Bolívia.
Dentre as poesias, destacam-se, “Che Guevara” e “Che comandante”,
compostas por Nicolás Guillén, cujos trechos leremos, respectivamente, a
seguir:
39
Che Guevara
Como si San Martín la mano pura a Martí familiar tendido hubiera, como si el Plata vegetal viniera con el cauto a juntar agua y ternura,
así Guevara, el gaucho de voz dura, brindó a Fidel su sangre guerrillera, y su ancha mano fue más compañera cuando fue nuestra noche más oscura.
[…]
Em “Che Guevara” nota-se a alusão à San Martin, figura imortalizada no
imaginário latino-americano e à José Martí, um dos precursores do processo
de independência em Cuba. A imagem construída a partir das duas figuras nos
sugere uma relação de cumplicidade, de união. Também a mão de Guevara se
uniu a de um companheiro de causa, aqui representado na figura de Fidel
Castro, para atravessar e vencer a noite mais escura numa provável menção
aos tempos de tensão que vivenciaram durante a Revolução em Cuba.
Já em “Che comandante” observa-se um destaque à figura do
comandante Guevara frente aos desafios vivenciados na guerrilha. Como se
pode vislumbrar nos versos seguintes:
Che comandante
Con sus dientes de júbilo Norteamérica ríe. Mas de pronto revuélvese en su lecho de dólares. Se le cuaja la risa en una máscara, y tu gran cuerpo de metal sube, se disemina en las guerrillas como tábanos, y tu ancho nombre herido por soldados ilumina la noche americana como una estrella súbita, caída en medio de una orgía. Tú lo sabías, Guevara, pero no lo dijiste por modestia, por no hablar de ti mismo, Che Comandante, amigo.
Estás en todas partes.
40
A poesia ressalta a satisfação das forças norte-americanas ao ver um
inimigo abatido, com o fim de classificar este sentimento como uma conquista
vã, pois o comandante está “en todas partes”. Ambas as composições exaltam,
portanto, a coragem do argentino Ernesto Guevara em manter-se fiel a seus
ideais até o fim, como um exemplo a ser seguido. Guevara representa os
guerrilheiros que acreditavam em uma pátria mais justa, imortalizou em seus
atos os anseios de outros tantos comandantes anônimos que lutaram na Ilha.
41
II – UM OLHAR SOBRE A PRÁXIS MUSICAL5 E POÉTICA EM VERSOS DE
NICOLÁS GUILLÉN
Antes el poeta era un músico […]
Ahora el poeta se mete dentro de si mismo
Y allí dentro, dirige su orquestra.
Nicolás Guillén
O interesse no estudo das expressões culturais populares Latino
Americanas, como via de encontro de uma expressão nacional, tomou novo
impulso na década de 1920 motivado pelo exacerbado espírito nacionalista e
canalizado através dos ideais vanguardistas. A busca por uma independência
plena foi o norte que permitiu articular o ideário político-social antilhano ao
desenvolvimento de novas propostas estéticas no campo artístico.
Nicolás Guillén, cuja obra é objeto central desta dissertação, foi um dos
intelectuais letrados que descobriu nas artes uma capacidade singular de
representar a Nação. Ao fazer uso dos elementos étnicos e culturais que
constituem a população cubana, construiu em seu discurso sobre “o nacional” a
sugestão melódica de uma comunidade imaginada. Muitas de suas
composições poéticas foram interpretadas por músicos de diversas
nacionalidades.
Guillén também se inspirou em várias obras musicais e literárias para
plasmar em seus versos o cantar uníssono de um povo. Em conformidade com
o escritor Fernando Ortiz (1950: 116-118)
A poesia cubana de inspiração negróide tardou muito a emancipar-se da música. [...] teve que amulatar-se e dominar o idioma branco, o castelhano, que foi língua comum [...] de todos os negros de Cuba, para poder esvaziar suas expressões em molde alheio à música. Primeiro foi o verso de um encantamento, depois o de um cantar bailado [...] A poesia mulata a que nos referimos agora [...] com popular difusão, devido a musas amestiçadas e escritores
5 Numa alusão ao termo utilizado pelo Prof. Dr. Samuel Araújo. In: “MÚSICA, POLÍTICA E CIDADANIA”
SIBE, 2008.
42
descendentes de avós brancos e negros como Nicolás Guillén [...] é de essencial musicalidade, tanto que é difícil não poder cantá-la nem acompanhá-la de tambores.
Sobre o tema das origens e implicações sociais das manifestações artísticas
em Cuba, cabe destacar ainda a pertinente afirmação de Ortiz (1950: 115-116):
Cada situação social possui sua própria música, suas danças, seus cantos, seus versos e seus peculiares instrumentos. As fluências migratórias da musicalidade transcorreram em Cuba ao longo de leitos sociais muito acidentados, como as mais típicas correntes fluviais da terra cubana, mansas ou tormentosas, límpidas ou turvas, y por vezes submersas em cavernas para depois rebrotar com maior caudal e a plena luz. Umas músicas entraram em Cuba como próprias dos conquistadores e da classe dominante, outras como dos escravos e da classe dominada. [...] A história de Cuba está no vapor de seu tabaco e na doçura de seu açúcar, também está no sandungueo de sua música. E no tabaco, no açúcar e na música estão juntos brancos e negros no mesmo compasso de criação, desde o século XVI até os tempos de agora.
Durante décadas, quase todas as atividades musicais cubanas
(música interpretada como modus vivendi e não como fazer cultural privado)
foram realizadas por negros e mulatos, em sua maioria criollos. Originalmente
tal fato podia ser explicado pelo pouco prestígio que o ofício de músico conferia
a seus praticantes. As famílias de maior poder aquisitivo destinavam seus
filhos, segundo o músico e escritor Alejo Carpentier (1972: 137-138), “para a
magistratura, a medicina, a Igreja, a carreira de armas ou, na falta de algo
melhor, a administração pública, reservando-se o monopólio das ‘condições
honrosas”. Quanto ao negro, tal profissão se encontrava no topo de suas
possibilidades já que “estavam vedadas a ele a magistratura, a carreira
eclesiástica e a administrativa em seus melhores cargos”.
Nessas atividades, no âmbito da sociedade de classes, se impôs aos
músicos negros os padrões da classe dominante, para a qual tocavam. No
entanto, esses negros e mulatos, oriundos da base da sociedade, que
aprenderam a executar os instrumentos europeus conforme os cânones
musicais de uma cultura, diferente da que receberam não se desvincularam
dos padrões africanos, ainda que estes representassem em Cuba a cultura
oprimida. Esta particularidade lhes permitiu, em médio prazo, ser
simultaneamente fonte e veículo do processo de criação de uma música nova.
43
A contribuição espanhola a esta nova música está, em maior parte,
determinada pelo acervo artístico dos grandes núcleos de trabalhadores e
soldados europeus que chegavam a Cuba. Em menor grau encontra-se
também a influência das manifestações musicais e danças espanholas que
encontraram maior difusão na classe dominante daquela sociedade. Os
elementos da cultura oprimida não se perderam, mas sim permaneceram
subjacentes na base da sociedade e posteriormente se incorporaram a
elementos da cultura dominante para paulatinamente criar, com identidade
própria, a música cubana.
Dentro do vasto cenário musical cubano, far-se-á no presente capítulo
um corte que pretende destacar o complejo de la rumba que tem sua origem
marcada nos grupos bantú congo. No que concerne à origem do termo rumba
aplicado à música, cogita-se a possibilidade de que se deva à qualificação de
mujeres del rumbo, dada a certa forma de prostituição ligada às casas de
dança. A primeira variante conhecida pelo estudo desenvolvido por Odílio Urfé,
importante músico cubano, é a dança “El Yambú” composta por volta de 1850.
A partir daí, a classificação empregada por Urfé, para estabelecer uma relação
genérico-estilística segue a presente ordem:
I. Rumba estribillo;
II. Rumba yambú;
III. Rumba guaguancó;
IV. Rumba del teatro bufo;
V. Coros de rumba guaguancó;
VI. Rumba tahona;
VII. Tango congo;
VIII. Rumba abierta;
IX. Rumba columbia
Cada variante apresenta um estilo básico do qual emanam variações
com os tempos, o repique dos tambores solistas e as acentuações do esquema
fundamental. Em todos os casos a organologia está integrada por três
44
tambores criollos e os xilofones. Todas as variantes, e especialmente a
guaguancó, expressam movimentos desenvolvidos e marcados por cadências
e modos de ordem litúrgica africana – em um sistema rítmico com duas
vertentes principais: la regla kimbisa e la regla mayombe6 - , porém com
padrões líricos indiscutivelmente hispânicos. Os cantos e ritmos de todas as
variantes citadas se realizam em compasso de 2/4, e os coros de chave em
6/8.
Segundo os estudos de Fernando Ortíz, a rumba é o grande tema da
lírica de Cuba na primeira metade do século XX. Não apenas porque se
apresenta como o elemento mais típico e universal na cultural afro-cubana,
mas também porque carrega uma expressão de caráter genuíno. A rumba é
um fenômeno humano de complexa sinergia. É o desabafo das forças
restantes de vida em um frenesi que envolve todos os músculos; é a hipnose
da música que envolve com o encantamento de seus ritmos; é a exaltação
báquica7 do espírito todos os estímulos da embriaguez: música, dança, canto,
amor, álcool, drama, multidão e religião. Em seu livro La africanía de la música
folklórica en Cuba, Ortiz (1950-180) corrobora o acima exposto através da
seguinte citação:
A Rumba: “É uma música simplesmente cubana, onde a cubanidade aparece já integrada como produto novo de duas culturas (...). Na Rumba só existe ‘o cubano’, a totalidade orgânica que nos distingue como povo, que nos caracteriza como concretude cognoscível da mais ou menos abstrata universalidade.
A verdadeira e tradicional rumba é a viva representação de um sagrado
teatro primitivo no qual dançarinos, músicos e coro integram o ato dramático
desde as primeiras fases miméticas do diálogo amoroso até a apoteótica
possessão carnal. Esse ritmo envolvente é o que o povo cubano define
paradoxa e espontaneamente como um relajo con orden; relaxamento das
inibições sociais até o limite consentido pela harmonia vital. Desde “La rumba”
6 Palo, ou Las Reglas de Congo são grupos de denominações estreitamente relacionadas de origem
Bantu desenvolvidas por escravos, vindos da África Central, em Cuba. Outros nomes associados com os diversos ramos desta religião incluem: Palo Monte, Palo Mayombe, Brillumba, Kimbisa 7 Numa referência ao deus mitológico Baco.
45
publicada pelo poeta José Zacarias Tallet, considerado um dos iniciadores da
poesia afro-cubana, todos os poetas do temário mulato compuseram rumbas.
Analisaremos, a seguir duas composições poéticas de Guillén: “Rumba”
e “Secuestro de la mujer de Antonio” nas quais o poeta descreve cenas
cotidianas carregadas de desejo que transcorrem ao som melódico da rumba.
E para fundamentar a análise se utilizar-se-ão também trechos da poesia
inaugural de Tallet e fragmentos da letra da canção La mujer de Antonio
composta e executada incialmente pelo Trio Matamoros.
46
1- As “Rumbas” e o desejo na construção do olhar poético
Algún dia se dirá: “color cubano”. Estos
poemas quieren adelantar ese día.
Nicolás Guillén
A estrofe que inicia a composição poética “Rumba”, composta por
Nicolás Guillén apresenta o cenário em que se transcorrerá a cena. Félix
Guatarri, (2007:289) filósofo e militante revolucionário francês, afirma que “a
expressão do corpo, a expressão da graça, a dança, o riso [...] são linguagens
que não se reduzem a pulsões quantitativas, globais. Constituem a diferença.”
Dessa forma consegue-se depreender o espaço descrito como propício para
observar a expressão do corpo da mulata que está plenamente envolvida com
o ritmo da rumba.
Outro aspecto importante a ser destacado nos primeiros versos do
poema é a conotação dada ao vocábulo “palo”. Nas danças dedicadas a
Elégua, um deus travesso de origem africana, a dançarina usa um pequeno
pau que é movido de um lado a outro para afastar a maldade ou para abrir
caminho na selva. Tendo em vista o fato de a rumba possuir influências de
origem bantú, e de esta última predominar entre os bailes frequentados por
escravos de origem camponesa, pode-se inferir que Guillén, ao enunciar em
sua composição poética que “La rumba revuelve su música espesa con un
palo”, parece manifestar a intenção de afastar qualquer elemento que perturbe
a festa, manifestado na estrofe como “el negro chulo con fela”. Como se
observa a seguir:
La rumba
revuelve su música espesa
con un palo
Jengribe y canela…
¡Malo!
Malo, porque ahora vendrá el negro chulo
con fela.
47
Nos versos seguintes, Guillén atribui a partes do corpo da rumbera
características próprias de um vocabulário que pertence a um campo
semântico marcado pelo calor e pelo desejo. Disserta sobre o mecanismo da
sexualidade de acordo com as concepções de Michael Foucault (2004, p.100),
outro filósofo francês, quando afirma que: “trata-se de uma rede trançada por
um conjunto de práticas, discursos e técnicas de estimulação dos corpos,
intensificação dos prazeres e formação de conhecimentos”. Guatarri (2007:
382) também discorre sobre o tema afirmando que
[...] a questão da montagem da expressão, da montagem maquínica- que muda os dados, que os remaneja, que propulsiona novas referências, novos universos- é inseparável da questão dos territórios ou dos “corpos sem “orgãos” sobre os quais se inscrevem, se marcam, se encarnam os devires maquínicos, os procesos incorporais
Toda essa descrição é alimentada pelo olhar do eu-lírico que não está
isolado. Em um jogo de métricas, temos um movimento geométrico e
voluptuoso que nos remete à rumba, segundo Angel Augier, graças a
combinação de assonantes em a e ea, nos dois últimos versos, que dão
espaço a outras consonantes. Embalado por este ritmo, o olhar do sujeito
poético se enraíza na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto
motricidade, como se apresenta no fragmento:
Pimienta de la cadera,
grupa flexible y dorada:
rumbera buena,
rumbera mala.
O olhar não é apenas agudo, ele é intenso e ardente. Não é só clarividente, é
também desejoso, apaixonado. No entanto, em nenhum momento, o sujeito
poético atribui ao desejo configurado um tom de repreensão ou estigmatização.
Segue, portanto, as concepções de Guatarri (2007: 261-262):
O desejo não é forçosamente um negócio secreto ou vergonhoso como toda psicologia e moral dominante pretendem [...] proporia denominar desejo todas as formas de vontade de viver, de vontade
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de criar, de vontade de amar [...], como o molde de produção de algo, [...] sempre o modo de construção de algo [...]
Desejo que já se evidenciava nos seguintes versos:
En el agua de tu bata
Todas mis ansias navegan:
Rumbera buena,
Rumbera mala.
Anhelo de naufragar
En ese mar tibio y hondo:
fondo
del mar!
Fig 1
Guillén alça mão de sua imaginação para construir a figura da
dançarina de acordo com o que afirma Gastón Bachelard (1989:17-18), filósofo
e poeta francês, ao enunciar que “a imaginação não é como sugere a
etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de
formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade.” Assim
sendo, o desejo, essa natureza de sistemas maquínicos altamente
diferenciados e elaborados, dá vida aos versos do poeta cubano e transporta o
leitor, através da musicalidade de suas palavras, ao cenário descrito em um
ritmo cada vez mais intenso e revelador.
Pode-se vislumbrar certa semelhança entre a composição de Guillén e
a “Rumba” inaugural de Jose Z Tallet, no que concerne a alguns pontos
temáticos abordados no poema. A descrição do corpo da dançarina é um tema
presente em ambas as composições, porém na composição poética de Tallet,
observa-se a descrição de um casal de dançarinos, como se apresenta nos
versos a seguir:
49
Las ancas potentes de niña Tomasa
en torno de un eje invisible,
como un reguilete rotan con furor,
desafiando con rítmico, lúbrico disloque,
el salaz ataque de Ché Encarnación:
muñeco de cuerda que, rígido el cuerpo,
hacia atrás el busto, en arco hacia’lante
abdomen y piernas, brazos encogidos
a saltos iguales de la inquieta grupa
va en persecución.
Fig. 2
Cabe ressaltar também que o desejo se manifesta sob um foco distinto
da composição escrita por Guillén. Na “Rumba” de Tallet o foco da poesia está
centrado no espetáculo da dança como manifestação de um ritual. Descreve os
anseios de um eu – lírico que observa a representação dos dançarinos
comandados pela música. Ainda sobre o tema do ritual, destaca-se a afirmação
contida na apresentação do livro Os ritos de passagem, escrito pelo
antropólogo alemão Arnold Van Gennep. Nela Roberto Da Matta, considerado
um dos grandes nomes das Ciências Sociais brasileiras (In: Gennep 1977:11)
discorre que:
[...] o rito igualmente sugere e insinua a esperança de todos os homens na sua inesgotável vontade de passar e ficar, de esconder e mostrar, de controlar e libertar, nesta constante transformação do mundo e de si mesmo que está inscrita no verbo viver em sociedade.
O desfecho de ambas as composições se dá com o fim da dança, no entanto
se apresentam de maneiras distintas já que na composição de Tallet o fim da
composição é dado com o fim do ritual; representado na descrição dos
dançarinos e na representação acorde final dos instrumentos, como se percebe
em:
Al suelo se viene la niña Tomasa,
al suelo se viene José Encarnación;
y allí se revuelcan con mil contorsiones,
se les sube el santo, se rompió el bongó.
¡Se acabó la rumba, con-con-co-mabó!
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¡Pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca!
¡Pam! ¡Pam! ¡Pam!
Na composição poética de Guillén, que também retrata a complexidade
do mundo da rumba, o sujeito poético parece participar ativamente da cena
final se nos atentamos à utilização da primeira pessoa do singular e do plural,
além do imperativo, em alguns versos como:
Ya te cogeré domada,
Ya te veré bien sujeta,
[…]
Quítate, córrete, vámonos…
Í Vamos!
Denotando, portanto, a clara intenção do eu-lírico em possuir o corpo desejado.
Essa relação de desejo estabelecida entra em conformidade com o que o
filósofo francês Michel Foucault expõe ao afirmar que
as relações de poder operam sobre o corpo de modo imediato; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, [...] obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. O poder na realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado [...] de relações, que estão sempre recorrendo a uma estrutura de dominação e servidão.
O jogo iniciado entre quem olha e quem é olhado, atividade e
passividade, faz com que seus integrantes participem de um campo de forças
onde o poder e o conhecer se fundam mutuamente. Cria-se uma tensão em
que o outro-observador constitui uma liberdade que pode invadir a outro-
observado. Tensão que se vislumbra em:
Cuando como ahora huyes,
Hacia mi ternura vengas,
Rumbera
Buena;
O hacia mi ternura vayas,
Rumbera
Mala.
51
O desejo construído ao longo dos versos de Guillén, leva à sua
concretização através do poder de dominação estabelecido nos versos finais,
marcando o término da festa e deixando no ar a ideia de que o desejo
observado ao longo dos versos seria concretizado fora daquele espaço
construído.
No ha de ser larga la espera,
[…]
Ni será eterna la bacha,
[…]
Te dolerá la cadera,
[…]
Cadera dura y sudada,
[…]
¡ Último
trago!
Quítate, córrete, vamonos...
¡ Vamos!
Há um parentesco entre o olhar do outro e o corpo desejado que
remete a um único mundo. Essa afinidade ou essa intercorporeidade consagra-
se de modo eminente no ato amoroso e no fazer artístico, pois em ambos se
eclipsa, ao longo do processo de união-criação, a dualidade existente entre eu
e outro. Ao considerarmos o uso das palavras, em que os homens trançam os
fios lógicos e os fios expressivos do olhar, é possível relacionar o pensamento
do historiador e crítico literário Alfredo Bosi à composição poética “rumba”, para
compreender o fazer poético guilleneano como tradução de um olhar que
vislumbra a continuidade de seu ser no outro. Sua percepção atenta e lúcida do
mundo que o circundava lhe permitiu, aliada à sua capacidade criativa, cantar
seus desejos e tristezas sem fazer disso uma mera contemplação subjetiva de
uma mirada ufânica ou limitada, mas sim construir um panorama lírico e
envolvente da realidade de nação que tanto amou e cantou em suas
composições.
52
2- Um dueto entre música popular e poesia em Cuba
Todo es hermoso y constante,
Todo es música y razón,
Y todo, como el diamante,
Antes que luz es carbón.
José Martí
A sensibilidade de Guillén para a música cubana e sua capacidade para
encontrar nela o tom mais expressivo da essência mestiça o conduzem a
empregá-la como forma constitutiva de sua poética. Outro exemplo primoroso
de composição poética é “Secuestro de la mujer de Antonio” que traduz a
beleza existente no cotidiano do povo cubano ao aludir algumas imagens da
canção “La mujer de Antonio” 8 composta por Miguel Matamoros.
A canção que serviu como inspiração para a poesia de Guillén foi
imortalizada na voz do Trío Matamoros, formado por Miguel Matamoros
(guitarra, primeira voz e líder do conjunto), Siro Rodriguez (maracas e segunda
voz) e Rafael Cueto (guitarra e terceira voz). “La mujer de Antonio” captou
brilhantemente cenas cotidianas para ironizar, de modo sutil, a situação
político-social vivida na ilha sob o regime de Gerardo Machado, o quinto
Presidente de Cuba e general da Guerra de Independência Cubana.
Assim como as duas poesias de Guillén selecionadas como apoio para
o presente estudo, a canção também parte da perspectiva de um olhar alheio,
um olhar que tece suas considerações acerca da mulata. No entanto o desejo
que move esse olhar descrito na letra da canção é bem diferente do
encontrado nas poesias de Guillén ao longo da presente análise. O olhar
evidenciado no início da música composta por Miguel Matamoros destaca a
curiosidade dos vizinhos a respeito do modo de viver e agir de transeuntes que
passam pela rua, como se observa no fragmento da canção:
8 Todos os trechos da canção foram extraídos de
http://www.herencialatina.com/Matamoros/Matamoros.htm
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La vecinita de enfrente
Buenamente se ha fijado
Como camina la gente
Cuando sale del mercado
A poesia de Guillén faz uso apenas do caráter anedótico e musical que
remete à música do Trio Matamoros. Não pretende evidenciar uma crítica
social, como fez Miguel Matamoros no seguinte quarteto em que se observa
uma sutil ironia à política utilizada por Gerardo Machado: alimento em troca de
manter-se politicamente calado.
Mala lengua tú no sigas
hablando mal de Machado,
que te ha puesto allí un mercado
que te llena la barriga.
Nos versos de Nicolás Guillén, com a paupável influência do Trio
Matamoros, se evidencia a relação homem-mulher, a presença da dança como
possessão e a escolha de colocar a sensualidade em primeiro plano. Em
ambas as composições reflete-se o sentido de humor criollo, alcançando um
resultado inesperado e cômico; a narração de acontecimentos cotidianos que
ressaltam as particularidades do cubano. A evidente aproximação entre a obra
poética de Guillén e as canções do Trio Matamoros é confirmada pelo poeta,
no seguinte fragmento de uma entrevista:
Me apresuro a decir, sin embargo, que la poesía «mulata» se inspiró en la música de cantantes bien conocidos, como los Matamoros, y que en ella hay poemas completos que anuncian algunos de los míos. Podría citar en este caso el Secuestro de la mujer de Antonio, que pusieron de moda dichos cantantes. (AUGIER 1984: 131-132)
Ainda sobre os músicos cubanos, Nicolas Guillén assim se pronunciou em sua
obra Sones Cubanos:
Los Matamoros estão escritos sem dúvida no movimento por nós conhecido como Geração de 30, ele contribuiu também no
54
cumprimento de uma das ambições desse movimento que era a de buscar nossa própria personalidade e de encontrá-la com nós mesmos.
Assim como se observa na composição “Rumba”, em “Secuestro de la
mujer de Antonio” se fazem presentes os elementos propícios para que se
aflore o desejo do eu-lírico: álcool, música e a figura da mulata. Elementos que
se combinam magistralmente nos seguintes versos da segunda poesia de
Guillén analisada no presente capítulo:
Te voy a beber de un trago,
Como una copa de ron;
Te voy a echar en la copa
De un son,
Prieta, quemada en ti misma,
Cintura de mi canción.
O eu-lírico pede que a mulata tire seu xale para torear a rumba, para
conquistá-lo, usa toda sua sensualidade aproveitando-se do movimento
curvilíneo próprios da dança e da tourada. Dessa forma dá continuidade à
ambientação inciada na estrofe anterior em que o sujeito poético manifesta o
interesse de apropriar-se do corpo da mulata da mesma maneira que faz com o
copo de rum: “de un trago”. Denota, portanto que o caráter da ação seria breve
e intenso, pois as relações de desejo estabelecidas na poesia são efêmeras e
caracterizadas pela quebra de um valor instituído pela sociedade formal. Como
vemos nos versos iniciais da estrofe:
Záfate tu chal de espumas
para que torees la rumba;
A mulher exaltada na poesia é a mulher de Antonio, ou seja, a mulata
pertence a alguém que não está presente e somente a ele lhe seria concedido,
em principio, o direito sobre aquela mulher. Essa observação mostra que os
valores africanos são bem diferentes dos instruídos pela sociedade dominante.
A fidelidade, o casamento, o controle do desejo são valores que pertencem ao
colonizador e não à cultura dos descendentes africanos. Por tal razão, o desejo
55
carnal apresenta-se, tanto em “Rumba” quanto em “Secuestro de la mujer de
Antonio”, livre de qualquer repressão ou culpa do eu – lírico.
Aparece também na segunda estrofe, o primeiro elemento, depois do
título da composição poética, que permite a associação entre a tradicional
canção cubana e a poesia em análise. A menção a Antonio em Guillén,
personagem fictício em ambas as obras artísticas, nos remete a “La mujer de
Antonio”. Canção em que o referido personagem é citado por conta do
caminhar de sua mulher. Como comprovam os seguintes versos, da poesia de
Guillén:
Y si Antonio se disgusta
Que se corra por ahí:
¡ la mujer de Antonio tiene
que bailar aquí!
E no refrão da canção interpretada pelo Trío Matamoros:
La mujer de Antonio
camina así
Cuando viene de la plaza
camina así
Por la mañanita
camina así
Em seguida, a poesia segue o ritual que leva a mulata, na composição
poética com o nome de Gabriela, a participar do cenário da festa. O sujeito
poético pede que a dançarina não apague a vela, como um pedido de que esta
prossiga no baile e não acabe com a festa, pois já havia esquentado o tambor
– aqui denominado bongô para marcar a origem africana – o que indica o início
da festa.
Importante também é ressaltar a expressão “Tranca la pájara blanca”.
Pode-se inferir, a partir da seguinte estrofe, a intenção de usar o objeto tranca
para espantar o cansaço, a falta de forças para praticar alguma ação,
representado pela expressão “pájara blanca” no espaço musical descrito e,
56
consequentemente, no espaço poético composto por Guillén. Assim como a
mulata que, em “Rumba”, “revuelve su música espesa con un palo” para afastar
“el negro chulo” se sugere a mesma intenção nos seguintes versos de Guillén:
Desamárrate, Gabriela.
Muerde
La cáscara verde,
Pero no apagues la vela;
Tranca la pájara blanca,
Y vengan de dos en dos,
Que el bongó
Se calentó…
Na estrofe seguinte tem-se o desejo de posse claramente manifestado
ao longo dos versos. O eu – lírico faz uso de um tom imperativo para
manifestar suas vontades em relação à mulata. A respeito desse desejo de
posse carnal Foucault afirma que ao criar esse elemento imaginário que é “o
sexo”, o dispositivo de sexualidade suscitou um dos seus mais essenciais
princípios internos de funcionamento: o desejo do sexo — desejo de tê-lo,
desejo de aceder a ele, de descobri-lo, de libertá-lo, de articulá-lo como
discurso, de formulá-lo como verdade. Na composição em análise, o discurso
da música envolve a dança e todos os elementos que a constituem é o
mecanismo através do qual se obtém o acesso, a descoberta, a libertação do
desejo do sujeito-poético.
No que concerne à escolha vocabular, a palavra “zafra” que denominava
a colheita do açúcar em Cuba é empregada pelo sujeito do poema e articula-se
de modo que deixe transparecer sua origem confirmando a intenção
guilleneano de traduzir em versos o cotidiano do povo cubano e seus costumes
herdados das tradições africanas.
De aquí no te irás, mulata,
Ni al mercado ni a tu casa,
Aquí molerán tus ancas
La zafra de tu sudor:
57
A intenção poética de aliar musicalidade à tradução lírica da cubanidade
se vê também nos três versos que finalizam a quarta estrofe. As onomatopéias
que se seguem pretendem aludir ao som do bongô, embalando a dança da
mulata que remexe suas ancas ao som da rumba. Esse efeito é alcançado
através da combinação de consoantes vibrantes [r] e oclusivas [p, k,] que dão
um tom explosivo, simulando o som emitido pelos tambores. Como se
comprova a seguir:
[...]
Repique pique, repique,
Repique, repique, pique,
Pique, repique, repique,
¡po!
Tal recurso onomatopéico é encontrado em diversas passagens da “Rumba” de
Jose Z Tallet. Como vemos em:
¡Zumba, mamá, la rumba y tambó!
¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó!
[…]
¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui!
¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui!
[...]
¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!
¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!
As estrofes finais de “Secuestro de La mujer de Antonio” delineiam, à
diferença da composição “Rumba” de Guillén, a disposição do sujeito poético
em garantir a permanência da mulata na festa a qualquer custo.
Semillas las de tus ojos
Darán frutos epesos:
Y si viene Antonio luego
Que ni en jarana pregunte
Cómo es que tú estás aquí…
58
Após um encantador jogo fonomelódico¹ conseguido através da aliteração
presente no primeiro verso que encerra a poesia, Guillén faz novamente uma
alusão à canção do trio cubano quando sugere que até o mais forte homem, na
composição poética representado pelo adjetivo “toro”, sairá “caminando así”.
Constitui-se, portanto, como um recurso bem-humorado que sugere um
caminhar diferente do observado na mulata da canção “La mujer de Antonio”,
como se apresenta nos seguintes versos do poema:
Mulata, mora, morena,
Que ni el más toro se mueva,
Porque el que más toro sea
Saldrá caminando así;
El mismo Antonio, si llega,
Saldrá caminando así;
Todo el que no esté conforme,
Saldrá caminando así...
E que se confirma quando observamos o refrão da canção escrita por Miguel
Matamoros:
La mujer de Antonio
camina así
Cuando trae lechuga
camina así
por la madrugada
camina así
cuando ve a la gente
camina así
O poeta Nicolas Guillén não se propôs a encontrar nenhuma maravilha perdida
em um recanto escondido da terra. Dispôs-se apenas a traduzir em versos o
cotidiano do povo cubano da maneira mais verdadeira possível. Deixou que as
asas de sua imaginação se transformassem em letras que embalam e
perpetuam a maravilha da simplicidade presente na essência cubana. Seu
olhar atento e perspicaz imortalizou a geografia, a história, aspectos políticos e
econômicos que conferem especificidade ao devir cubano e americano.
59
III- CONTRAPUNTEO DE GUILLÉN NA TESSITURA SIMBÓLICA DA
IDENTIDADE CUBANA
O contrapunteo define o cubano, a partir do cubano,
em um discurso cubano e mediante uma
metodologia cubana
Roberto Gonzaléz Echevarría
Ainda que possa parecer enfática a afirmação do crítico cubano Roberto
González Echevarría, permite ilustrar a justificativa ao título proposto no
presente capítulo. Tomo a liberdade de denominá-lo contrapunteo, em um
intento de aproximar-me do sentido que tal palavra adquiriu no contexto
musical. O vocábulo contrapunteo se apresenta como um cubanismo do termo
contrapunto e denomina a técnica musical através da qual se combinam partes
ou vozes simultaneamente, resultando em uma textura harmônica.
Assim sendo, pretende-se associar o sentido original da palavra, que se
refere ao conteúdo verbal de uma disputa, à sua conotação musical para
transformar tal expressão em uma metáfora do processo de criação poética de
Nicolas Guillén. Ao embalar o passado histórico e cultural de seus ancestrais,
Guillén não faz menos que figurar ponto contra ponto os elementos que,
entrelaçados, apresentam-se como em um contraponto musical (balada 9) na
tessitura simbólica da identidade cubana.
Com o fim de discorrer sobre o tema da construção da identidade,
analisaremos a composição poética “Balada de los dos abuelos”, publicada em
West Indies no ano de 1934. Composição cujos referenciais nos remetem a
elementos próprios de diversas culturas, com a intencionalidade histórica de
representar em seus versos o processo que desencadeou no fenômeno
transculturador. Também será objeto de análise a composição poética “Tengo”,
publicada em 1964, do poemário homônimo que se apresenta como uma
9 Mus: composição musical de caráter épico; Lit: poema em estrofes que ger. narra uma lenda popular ou
uma tradição histórica, podendo ser acompanhada por instrumentos musicais. In: HOUAISS. Dicionário eletrônico da língua portuguesa, 2001
60
encantadora mostra da experiência de um povo em revolução. Para encerrar o
presente capítulo, analisar-se-á a poesia que plasma em versos o sentimento
de solidariedade de Cuba frente ao desastre da Guerra Civil Espanhola: em
“España” (Poema en cuatro angustias y una esperanza). Nesta última
composição em análise, Guillén retoma o tema da identidade coletiva
vislumbrado em “Tengo”, porém agora em uma dimensão extracontinental.
61
1. Transculturação: história e ampliação de um conceito
La verdadera historia de Cuba es la historia
de sus intrincadísimas transculturaciones
Fernando Ortíz
Para dar continuidade aos estudos propostos no presente item, cabe
situar no tempo e no espaço, as condições em que se instituiu o conceito-
chave que o fundamenta. O termo transculturação, proposto pelo antropólogo e
músico Fernando Ortiz foi publicado, primeiramente, em 1940. Neste ano, entra
em vigência na ilha de Cuba a Nova Constituição da República. Nascido como
um conceito pertinente ao campo etnográfico, o termo transculturação seria,
segundo Ortiz (2002: 260), o vocábulo mais adequado para
[...] expressar melhor as diferentes fases do processo transitivo de uma cultura a outra, porque este não consiste somente em adquirir uma cultura distinta, que é o que a rigor indica a voz anglo-americana acculturation, mas sim que o processo implica também, necessariamente, a perda ou desarraigo de uma cultura precedente, o que se poderia denominar uma parcial desculturação e, além disso, significa a criação de novos fenômenos culturais que foram denominados neoculturação. Por fim, como bem sustenta a escola de Malinowski, em todo abraço de culturas sucede o mesmo que na cópula genética dos indivíduos: a criatura sempre possui algo de ambos os progenitores, porém é sempre distinta de cada um dos dois. Em conjunto, o processo é uma transculturação e este vocábulo compreende todas as fases de sua parábola.
Mais que consagrar um neologismo, e substituir várias expressões
correntes como “câmbio cultural” ou “osmose de cultura”, o antropólogo cubano
desejava com a publicação de Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar
(2002) apresentar um estudo do nacionalismo econômico e seus reflexos na
sociedade cubana e fazer dele uma nova sugestão para o estudo de seu país
e suas peculiaridades históricas”. No entanto, a difusão do conceito proposto
por Ortiz foi muito além da análise sociológica da realidade estudada. Tomou
62
proporções continentais e abarcou não só a história, mas também a
compreensão da temática literária latino-americana.
O crítico uruguaio Ángel Rama (2001:22), em seu livro Transculturación
narrativa en América Latina, aplica o termo transculturação ao campo dos
estudos culturais com o fim de “neutralizar os efeitos nocivos ou alienantes
causados pela modernização”. De tal modo, Rama pode vislumbrar que o
processo transculturador se compunha através de algumas etapas: uma parcial
desculturação, aplicável tanto à cultura como ao exercício literário, ocorrida em
diversos graus e capaz de afetar várias zonas; a incorporação de elementos
próprios da cultura estrangeira e, finalmente, o intento de recompor os
elementos de ambas as culturas em uma nova concepção da mesma.
Tem-se, portanto, a partir de Rama, a possibilidade de trabalhar com o
conceito fundado por Fernando Ortiz também no contexto literário. Tal
ampliação causou um significativo impacto nos estudos culturais da época.
Tornou-se até, em análises pouco densas, um sinônimo para mestiçagem ou
hibridismo. Termos que nomeiam apenas o resultado do processo que implica
a mescla de etnias, diferente do termo de Ortiz que contempla o acontecimento
de maneira mais ampla. Contudo, no que concerne ao estudo de Cuba, não é
possível aplicar o vocábulo transculturação como um simples cognato do
produto de uma mescla de etnias. Em conformidade com o acima exposto
temos a seguinte afirmação de Ortiz (2002: 255):
Em todos os povos a evolução histórica significa sempre um trânsito vital de culturas em ritmo mais ou menos lento ou veloz; porém em Cuba foram tantas e tão diversas, em posições de espaço e categorias estruturais, as culturas que influenciaram na formação de seu povo, que esse imenso amestiçamento de raças e culturas sobrepõe, de maneira transcendente, a qualquer outro fenômeno histórico.
A poesia de Nicolas Guillén, como expressão de vida do povo cubano,
alcança perfeitamente o intento de Ortiz (2002: 254) ao propor o conceito de
transculturação, afirmando que este vocábulo expresaria
63
Os variadíssimos fenômenos que se originaram em Cuba através de complexas transmutações de cultura que lá se verificam, sem as quais se torna impossível entender a evolução do povo cubano em todos os níveis sociais
Como exemplo inicial do que foi afirmado nas linhas anteriores temos a análise
da primeira poesia proposta na introdução. No par de versos que inicia o
poema “Balada de los dos abuelos” contemplam–se duas sombras, vistas
unicamente pelo sujeito do poema, a escoltá-lo:
Sombras que sólo yo veo,
me escoltan mis dos abuelos
Após tal consideração observa-se a composição imagística de cada um desses
ancestrais: o avô branco e a avô negro. Cada um em seu território, com suas
peculiaridades culturais que futuramente seriam transformadas. Desvela-se
primeiro a imagem do avô materno.
Lanza con punta de hueso,
tambor de cuero y madera:
mi abuelo negro.
Os elementos “lanza”, “punta de hueso” e “tambor” conotam a origem do
guerreiro africano. A lança é empunhada por heróis. Ao descrevê-la como um
artefato pontiagudo, confere poder a quem a detém. A ponta de osso confirma
a origem do combatente: trata-se de um líder guerreiro e herdeiro das tradições
africanas. O tambor, além de ressaltar a influência africana, atua como símbolo
de arma psicológica; seu ruído se aproxima ao do trovão e ao do raio,
desfazendo internamente toda a resistência do inimigo. Sua presença também
sacraliza o acontecimento da guerra, já que se utiliza o tambor para invocar a
descida das bênçãos celestes em favor das causas de um povo.
Em seguida, temos a caracterização da figura do avô paterno:
64
Gorguera en el cuello ancho,
gris armadura guerrera:
mi abuelo blanco.
Este se encontra com sua “gris armadura guerrera” e sua “gorguera”. Ao
atribuir ao pescoço de seu avô branco o adjetivo “ancho”, o poeta constrói tal
figura como detentora de extensa força vital. Tal hipótese pode ser baseada no
fato de os likoubas e likoualas do Congo considerarem o pescoço a morada
primeira das articulações do ser humano. Nela circula a energia geradora, por
meio do jogo das articulações 10.
O sujeito do poema representa o resultado da fusão de duas fortes
lideranças. Descende de dois guerreiros que parecem desempenhar, em seus
territórios, posições de poderio e realeza. Em seu avô branco, vislumbra-se
uma armadura que protege o seu corpo dos males; já o avô negro aparece,
como se verá em seguida, despido, o que pode torná-lo mais vulnerável em um
confronto.
Os versos seguintes dão continuidade à descrição iniciada na primeira
estrofe do poema. O eu – lírico destaca o corpo de seu avô negro:
Pie desnudo, torso pétreo
los de mi negro;
O “pie desnudo” sugere um maior contato do guerreiro africano com a sua
terra. Já o tronco recebe o adjetivo “petreo” com o intuito de atribuir ao corpo
do guerreiro africano a resistência de uma pedra, simbolizando também o
marco de uma civilização.
Quando a descrição se refere ao avô branco o sujeito poético ressalta o
olhar que se mostra com “pupilas de vidrio antártico”, possível alusão ao mar,
espaço que possibilitou a chegada dos conquistadores e, posteriormente, dos
escravos vindos da África. Um mar azul como as pupilas do avô branco,
10
Entende – se que as articulações permitem a ação, o movimento, o trabalho. Simbolizariam, segundo tais crenças dos povos do Congo, as funções necessárias à passagem da vida à ação. In: CHEVALIER & GHEERBRANT,2003.
65
através das quais se descortinou um novo campo de visão: a terra a ser
colonizada.
Pupilas de vidrio antártico
las de mi blanco!
O poema de Guillén trata de duas vozes cansadas e caladas pelo triste
espetáculo da guerra. Vozes que ecoam na memória de um indivíduo, cujos
ancestrais travaram longos combates em um passado distante. Em um mesmo
lugar cada figura experimenta uma sensação diferente. Para respaldar a
afirmação anterior, temos o estudo de Kevin Lynch em seu livro A imagem da
cidade. O autor discorre que as imagens ambientais são as resultadas de um
processo bilateral entre o observador e seu espaço. Deste modo, cada pessoa
depreende, organiza e confere significado singular ao que é visto. Lynch
(1982:1), afirma também que “[...] a cada instante há mais do que o olho pode
enxergar, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem
esperando para serem explorados”
Nada seria vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus
arredores, às sequências de elementos que a ele conduzem à lembrança de
experiências passadas. Comprova-se a assertiva com o seguinte fragmento:
África de selvas húmedas
y de gordos gongos sordos...
--¡Me muero!
(Dice mi abuelo negro.)
Aguaprieta de caimanes,
verdes mañanas de cocos…
--¡Me canso!
(Dice mi abuelo blanco.)
Oh velas de amargo viento,
galeón ardiendo en oro…
--¡Me muero!
(Dice mi abuelo negro.)
¡Oh costas de cuello virgen
engañadas de abalorios…! Fig 2,1
66
--¡Me canso!
(Dice mi abuelo blanco.)
Perpetuam-se no sujeito poético as impressões de um “abuelo negro”
que morre com o duelo e de um “abuelo blanco” que se cansa em territórios a
serem conquistados por seu povo. A memória do avô negro registra uma
paisagem de “selvas húmedas” de onde parte um “galeón ardiendo en oro”.
Este metal tão apreciado pelos colonizadores, considerado pela tradição como
o mais precioso, enriqueceu os cofres e as construções europeias graças ao
trabalho da mão escrava.
Neste contexto contemplativo, o verbo “morir” empregado nas linhas
acima como resultado de um combate, podem também denotar o
deslumbramento do personagem diante da paisagem. Em contrapartida tem-
se, um cansado avô branco que contempla “costas de cuello virgen” e “verdes
mañanas de coco”. Do duelo travado entre o sangue negro e o branco este
último sai como vencedor, ainda que fatigado pela guerra e pela distância que
o separa de sua pátria.
¡Oh puro sol repujado,
preso en el aro del trópico;
oh luna redonda y limpia
sobre el sueño de los monos!
O “puro sol repujado” e a “luna redonda y limpia” são espectadores
oniscientes desse cenário. Contemplam a dor e o cansaço de cada ânsia.
Escutam as preces de todos os personagens desse capítulo da história de dois
povos. História que se eterniza no corpo e na memória de um poeta. Memória
que surge graças às reminiscências que fundam a cadeia da tradição,
transmitindo os acontecimentos de geração em geração. Por ela se dá a
propagação da memória. O ouvinte pode então participar do que foi vivido,
confirmando as acepções de Walter Benjamin (1995:213,. ao enunciar que
“[...] quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a
lê partilha dessa companhia.” Assim sendo, uma voz segue o canto relatando o
67
passar dos dias na terra colonizada e todo o horror presenciado nos navios
negreiros.
Qué de barcos, qué de barcos!
¡Qué de negros, qué de negros!
¡Qué largo fulgor de cañas!
¡Qué látigo el del negrero!
Piedra de llanto y de sangre,
venas y ojos entreabiertos,
y madrugadas vacías,
y atardeceres de ingenio,
y una gran voz, fuerte voz,
despedazando el silencio.
¡Qué de barcos, qué de barcos,
qué de negros!
Voz que pode ser entendida tanto como a expressão do colonizador,
quanto como a voz que surge da dor e da rebeldia em face de tal situação.
Encerra-se, no poema, a gênese da mestiçagem. A estratégia de Guillén insere
os elementos que compõem esse processo: a imigração branca com o
propósito de colonizar; a forçada imigração negra; a produção açucareira como
base da economia colonial; a escravidão.
O par de versos que aparece no início do poema é retomado para
aproximar as duas imagens.
Sombras que sólo yo veo,
me escoltan mis dos abuelos
Tal recurso confirma o título dado ao poema. Ao atribuir à composição o título
de balada, o poema de Guillén aproxima-se à acepção dada ao termo. Além de
possuir um estribilho, como na definição histórica, assemelha-se ao conceito
atribuído recentemente ao mesmo vocábulo. Por influência anglo-saxônica, o
sentido da palavra ampliou-se, passando a designar também uma canção que
conta a vida de uma pessoa ou alguns fatos precisos.
68
Em seguida temos o início da integração entre as duas tradições: a
africana e a europeia. É o prenúncio do fim das diferenças entre os guerreiros.
“Don Federico”, que grita, e “Taita Facundo”, que cala, sonham “en la noche”.
Noite pode denotar tanto a ideia de escuridão e morte quanto referir-se à noite
ancestral, a instauração do não-tempo, perpetuando a ideia de eternidade. O
eu-lírico afirma que seus antepassados seguem por essa noite a sonhar, o que
pode corroborar com a ideia de morte como redenção do indivíduo.
Don Federico me grita
y Taita Facundo calla;
los dos en la noche sueñan
y andan, andan.
O corpo do eu-lírico é o elemento que permite a síntese desses dois
guerreiros em um só corpo: “Yo los junto”. Nele se mesclam sangue e cultura
de povos que duelaram em tempos anteriores, mas que agora coexistem com a
existência do sujeito poético. Os quatro versos que encerram o poema tratam
de uma série de ações a serem realizadas pelos dois guerreiros:
gritan, sueñan, lloran, cantan.
Sueñan, lloran, cantan.
Lloran, cantan.
¡Cantan!
A ausência de uma conjunção aditiva entre o penúltimo e o último verso
da referida estrofe sugere uma união, que se mostra eternizada pelo uso de
vírgulas ao enumerar tais ações. Combinado com o recurso poético da
aliteração essa união, traz à poesia uma conotação fonossemântica
importantíssima, confirmando ainda mais o título da composição e contribuindo
com a musicalidade. Segundo Walter Benjamin (1995:207)
[...] a ideia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Morrer era um episódio público na vida de um indivíduo e possuía caráter altamente exemplar. É no momento da morte que a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida assumem pela primeira vez uma forma transmissível.
69
Ainda que mortos, a história de cada avô do sujeito poético permanece
viva no coração de seus descendentes e na memória de cada um que pôde
tomar conhecimento de suas experiências. O que se contempla perfeitamente
se considerarmos a seguinte afirmação de Benjamin (1995:205):
Contar história sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido
Assim como o eu-lírico, Guillén possui um passado marcado pelos dois lados
da história da colonização na América. História que pode ser transmitida
através dos versos de Nicolás Guillén.
70
2. Hispanidade imaginada: Guillén, tecelão de identidades
Mais que inventadas, nações as ‘imaginadas’, no sentido
que fazem sentido para a‘alma’ e constituem
objetos de desejos e projeções.
Benedict Anderson
Tomamos a questão identitária, abordada aqui segundo os estudos dos
sociólogos Benedict Anderson e Zygmunt Bauman, como fio condutor na
tessitura simbólica da identidade antilhana, vislumbrada através de duas
composições de Nicolás Guillén.
No poema “Tengo”, cujo poemário em que se insere compreende toda a
poesia beligerante dos primeiros cinco anos da Revolução cubana e em
“España (poema en cuatro angustias y una esperanza)” que possui como tema
principal a Guerra Civil espanhola. Em ambas pode-se observar a recorrente
utilização da memória como elemento de construção poética, dialogando com
os acontecimentos históricos que delineiam o meio em que se insere o poeta
cubano. Vale ressaltar, antes da análise poética, alguns conceitos pertinentes
à discussão sobre a temática identitária.
As noções de identidade flutuam no tempo e no espaço de acordo com
as circunstâncias que conduzem os acontecimentos ao longo da história. Ao
preconizar a necessidade de se entender a identidade como uma tarefa a ser
realizada, faz-se necessário destacar também o traço plural que contém tal
conceito. A identidade chega como um elo que permite a construção do que se
chamará nação. Perante a qual seus integrantes devem atuar de modo a
demonstrar sua fidelidade a ela, o que poderá ser nomeado nacionalismo. Tal
processo só ocorrerá se acontecer em uma comum unidade, ou seja, desde
que seus integrantes se unam em prol de uma causa comum a todos. Quem
bem discorre sobre este processo é Benedict Anderson (2008: 32), em seu livro
71
Comunidades imaginadas O autor sustenta que uma comunidade11 se
apresenta como imaginada:
[...] porque seus membros nunca conhecerão todos os demais; na mente de cada indivíduo reside uma imagem da comunidade da qual participam. Ou seja, ainda que os limites de uma nação não existam empiricamente, seus indivíduos são capazes de criar e imaginar tais fronteiras, criando e imaginando seus membros.
Sua explanação segue para sustentar que além de imaginada, uma
comunidade também se configura como limitada em suas fronteiras por outros
territórios. Característica, segundo ele, fundamental para sustentar a ideia de
nacionalismo, já que seria inviável consolidar um sentimento nacionalista que
abarcasse toda a humanidade, dada a pluralidade de seus indivíduos. Também
é soberana, pois o surgimento do nacionalismo, segundo Anderson, relaciona-
se ao declínio dos sistemas tradicionais de governo – monarquia na Europa, ou
administração colonial nas Américas – e à construção de uma nacionalidade
baseada unicamente na identificação étnica ou geográfica.
A soberania nacional, sustentada pelo modelo referido no parágrafo
anterior, se configuraria como um símbolo de liberdade frente às estruturas de
dominação antigas – gerando novas estruturas de poder, como a administração
estatal, a divisão intelectual do trabalho, o capitalismo editorial e o surgimento
de práticas de controle estatal (censo para a população, mapas para o
território). Assim configurada, a nação permite a consolidação de uma
sociedade. Os mecanismos são semelhantes, porém cada nação possui
idiossincrasias que a torna diferente das demais.
No presente estudo, trataremos de delinear o perfil de uma nação
específica: a cubana. Em comum a todas da América Latina, Cuba possui um
passado ligado às tradições herdadas com a colonização europeia. Diferente
de todas sustenta, até os dias atuais, um sistema político bastante distinto dos
demais aplicados no continente americano. O domínio espanhol sobre Cuba
durou quatro séculos até que no ano de 1898, a invasão americana dá fim à
11
[...] porque uma nação é concebida enquanto estrutura horizontal na sociedade. Ou seja: é possível membros de diferentes classes sociais, em diferentes posições sociais, ocuparem um mesmo âmbito nacional e estarem vinculados por um projeto em comum. (ANDERSON 2008: 34)
72
soberania espanhola, para iniciar um governo militar na ilha sob o comando
dos Estados Unidos, através do Tratado de Paris. A partir daí o governo
estadunidense começou a criar propostas econômicas que promoviam apenas
benefício próprio. O sentimento de revolta e exploração continuou a ser
alimentado. A única diferença era que o novo monopolizador pertencia ao
mesmo continente.
Diversos movimentos em prol da total libertação de Cuba foram colocados
em prática, porém o único que obteve um resultado concreto foi o que todos
conhecemos como Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro em 1959.
Para retratar poeticamente, o momento revolucionário vivido em Cuba,
seguiremos com a análise da composição poética “Tengo”, de acordo com a
análise proposta pela pesquisadora Mariluci Guberman em seu artigo “ El mar y
La montaña” . Em seguida à análise de España (poema en cuatro angustias y
una esperanza) como mostra da solidariedade latino-americana com as
gerações que vivem nas terras de onde partiram os colonizadores do Novo
mundo.
73
2.1 Revolução cubana: do literal ao literário
O poema se inicia com a enunciação de um eu-lírico que volta seus
olhos para si:
Cuando me veo y toco
Yo Juan sin Nada no más ayer,
y hoy Juan con Todo,
y hoy con todo
vuelvo los ojos, miro,
me veo y toco
Y me pregunto cómo ha podido ser.
Em “Tengo” é possível perceber o envolvente jogo fonomelódico ¹ de um eu-
lírico que dialoga absorto em uma atmosfera revolucionária. Musicalidade que
se apresenta ao longo do poema para embalar o canto de celebração da
Revolução Cubana. Consideremos o seguinte verso:
[K]uan[d]o [m]e [v]eo y [t]o[k]o
A composição fonética da estrofe inicial faz uso do jogo entre
consoantes oclusivas [k,d,t] que sustentam o verso juntamente com a nasal e a
fricativa [v] com o fim de reforçar o ritmo poético desde o início da poesia. Vale
esclarecer, que uma oclusão se caracteriza pela obstrução momentânea de
uma abertura produzindo um som denominado explosivo. No poema “Tengo”
esse efeito entra em conformidade com as características do Son cubano que,
segundo José Urfe apresenta-se como uma das manifestações mais
representativas da identidade cultural cubana, pois possui suas raízes surgidas
“de la entraña popular”. Além disso, o efeito “explosivo” causado pelas
consoantes oclusivas nos remete à sensação do estalar causado pelos
acontecimentos ocorridos na ilha de cuba.
74
O uso de maiúsculas evidencia uma mudança significativa do eu-lírico
que se pode notar externamente, assim que ele volta seus olhos para si e se
toca:
Yo Juan sin Nada no más ayer
[...]
y hoy Juan con Todo
Ao utilizar maiúsculas nos vocábulos “Nada” e “Todo” o autor transforma o par
de adjetivos em uma significativa antítese, que envolve dois momentos vividos
pelo povo cubano. Juan sin “Nada” em um momento passado, marcado pelo
advérbio “ayer”, em contraposição a um Juan con “Todo” inserido em um
momento presente, confirmado pelo uso do advérbio “hoy”.
Por extensão de sentido, o substantivo “sobrenome” está definido como
elemento que caracteriza uma pessoa ou objeto. Dessa forma entende-se
perfeitamente o intento de personificar em Juan o sentimento coletivo da ilha
atribuindo-lhe como sobrenome, ora o adjetivo “Nada” para marcar um
momento de renúncias e misérias e ora o adjetivo “Todo” com o fim de
manifestar o sentimento de esperança renovada com o êxito da Revolução
liderada por Fidel Castro como tratamos no capítulo I.
Em seguida, tem-se o desenvolvimento desta descoberta interna que o
eu-lírico inicia na primeira estrofe. Assim como o indivíduo passa a descobrir o
que possui, também a nação cubana volta os olhos sobre a realidade,
exaltando suas belezas, como em:
Tengo, vamos a ver,
tengo el gusto de andar por mi país,
dueño de cuanto hay en él,
mirando bien de cerca lo que antes
no tuve ni podía tener
[…]
y un ancho resplandor
de rayo, estrella, flor.
75
E também de exercer o direito de expressar-se na língua que escolheu como
afirma em:
[…]
tengo el gusto de ir
(es un ejemplo)
a un banco y hablar con el administrador,
no en inglés,
no en señor,
sino decirle compañero como se dice en español.
Nota-se, com isso, um representativo jogo do poeta com a memória
individual e coletiva da população cubana. Segundo Walter Benjamin a
memória configura-se como a busca do passado no momento presente; sendo
assim, o poeta busca em sua memória um acontecimento passado com o fim
de valorizar o momento presente. Ao afirmar que não necessita mais
comunicar-se “en inglés”, Guillén faz uma alusão à relação de dependência
vivida por Cuba em tempos de regime imperialista sob o controle dos Estados
Unidos. As conquistas alcançadas com a Revolução liderada por Fidel Castro
têm especial destaque nos seguintes fragmentos:
Tengo, vamos a ver,
Que siendo un negro
Nadie me puede detener a la puerta de un dancing o de un bar.
[…]
Que no hay guardia rural
que me agarre y me encierre en un cuartel,
ni que me arranque y me arroje de mi tierra
al medio del camino real.
Antes da revolução, o desemprego atingia uma grande parte da força de
trabalho. Segundo dados fornecidos pela UNESCO, antes de 1959, o
analfabetismo atingia 35% da população. As terras estavam concentradas nas
mãos de latifundiários e empresas norte-americanas. Depois da tomada de
poder, empresas estrangeiras e a burguesia foram expropriadas, a reforma
76
agrária foi realizada e implantou-se também uma forte política de combate ao
analfabetismo no país. Por muitos anos a taxa de desemprego foi menor que a
dos países considerados desenvolvidos.
Cuba também conquistou avanços significativos em setores como
educação e saúde pública. Essa série de acontecimentos elevou o sentimento
nacionalista da população, levando-os a crer na “redenção de Cuba”, por meio
do líder da revolução, Fidel Castro. Uma mostra desse sentimento está
presente no seguinte fragmento:
Tengo vamos a ver,
que ya aprendí a leer,
a contar,
tengo que ya aprendí a escribir
ya a pensar
y a reír
A revolução Cubana se apresenta historicamente como um dos fatos
políticos mais significativos e que maior impacto causou na América Latina, ao
longo do século XX, não por seu caráter heroico e romântico, mas sim por
exprimir dramaticamente as contradições não resolvidas entre os Estados
Unidos e os demais países da região. Os atos da revolução, como a reforma
agrária, destoavam da política empreendida pelos Estados Unidos, que não
reconhecia os princípios da soberania nacional e autodeterminação dos povos.
Com o bloqueio econômico à Ilha, as ideias de Fidel Castro vão se aproximar
às existentes na política vigente na União Soviética.
Encontramos no livro De Martí a Fidel, publicado pelo historiador Luiz
Alberto Moniz Bandeira (2008:184) uma citação presente no jornal El Mundo no
ano de 1959 que permite uma melhor compreensão do processo revolucionário
cubano:
A ideologia de nossa revolução é bem clara: não só oferecemos aos homens liberdades, mas também oferecemos pão. Não oferecemos somente pão, mas também liberdades. Nossa posição ideológica é clara e terminante. Nosso respeito para todas as ideias, para todas as crenças, porque não tememos nenhuma ideia, porque temos
77
confiança em nosso próprio destino e porque temos a concepção também de que democracia não admite flexão.
Processo cujos resultados se vislumbram nos versos a seguir:
[…]
Tengo que como tengo la tierra y el mar,
No country,
No high life
No tennis y no yacht,
Sino de playa en playa y ola en ola,
Gigante, azul abierto democrático:
En fin, el mar.
Outro aspecto interessante a destacar na estrofe é a simbologia contida
no vocábulo “mar”. O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e
tudo retorna a ele: lugar dos nascimentos, das transformações e dos
renascimentos. Pelas águas chegaram os conquistadores europeus para
colonizar; por elas também chegaram os escravos para trabalhar duramente na
exploração da cana de açúcar em Cuba.
Ao afirmar que o mar encontra-se “Gigante, azul abierto democrático”,
Guillén associa a natureza transitória das águas marinhas às realidades
vivenciadas em Cuba numa possível tentativa de explicitar o processo de
mudança entre as possibilidades ainda incipientes. A situação de ambivalência
concluiu-se, no plano simbólico, beneficamente. Encerra-se a composição
poética com uma síntese da observação iniciada pelo eu-lírico na primeira
estrofe.
Tengo que ya tengo
donde trabajar
y ganar
lo que me tengo que comer.
Tengo, vamos a ver,
tengo lo que tenía que tener.
78
Com as reformas implementadas pelo regime revolucionário de Fidel
Castro, é possível afirmar que os cubanos alcançaram condições de trabalho,
estudo, saúde que lhe garantiam uma sobrevivência ainda não experimentada.
O sentimento de satisfação com as conquistas está marcado na estrofe que
encerra o poema, que em todos os seus versos, esteve em consonância com o
que dizia o poeta nicaraguense Rubén Darío sobre a maneira como o mesmo
compunha seus escritos: “al componer sus versos [...] obedecía al divino
imperio de la música, música de las ideas, música d.;el verbo”.
2.2 “ESPAÑA”: a imagem do caos
Existe muito de vida em toda manifestação artística. No entanto, para
que a primeira se justifique como arte é necessário todo um trabalho de
eternizar o fato como um evento; de trazer o real para o campo polissêmico da
verossimilhança. O acontecimento da Guerra Civil se caracteriza, como um fato
que abalou o mundo. Nele estiveram presentes todos os elementos militares e
ideológicos que marcaram o século XX.
De um lado posicionaram-se representantes do nacionalismo e do
fascismo, que estabeleceram aliança com classes e instituições tradicionais da
Espanha (O Exército, a Igreja e o Latifúndio) e, em oposição, a Frente Popular
que compunha o Governo Republicano, representando os sindicatos, os
partidos de esquerda e os partidários da democracia.
Inúmeros segmentos da sociedade retomaram, e seguem retomando,
o tema da Guerra Civil espanhola, mas não como um exemplo a ser seguido e
sim como um doloroso episódio que deve ficar eternamente marcado na
memória de todos para que o caos provocado por essa guerra nunca volte a
acontecer. Literariamente, Guillén transforma a história real em poesia.
Transporta o cenário triste e desestabilizador da guerra para o palco das
letras, do papel e da inspiração criadora.
Em seu sentido primeiro, a guerra constitui-se como imagem da
calamidade universal, do triunfo da força cega. É a força que permite a
79
consolidação do caos. Nesse estágio, observa-se uma total desestruturação
das formas, no entanto é simplista afirmar que a destruição e o caos tenham
relação direta com uma realidade estática e imutável. Propõe-se, no presente
estudo, apresentar o caos como início de um processo que culmina em
renovação.
A palavra caos simboliza uma situação anárquica, que precede a
manifestação das formas. Ao aliar tal conceito com à criação simbólica do fim
do caos, sugere a ideia de contemplar a guerra como um espaço dúbio em que
se encontra lugar para a vida e a morte; para o começo e para o fim. O poema
composto pelo cubano Nicolás Guillén, objeto que conclui as análises de nosso
capítulo, divide-se em cinco poesias que serão analisadas a seguir:
Angustia Primera: Mirada de metales y de rocas
Em Angustia primera temos “miradas de metales y de rocas” que
aludem figuras presentes no cenário da Colonização da América de língua
espanhola. O sentido-chave desse momento poético é o da visão. Através dos
versos de Guillén, vemos “hombres rudos saltando el tiempo”. Faz-se menção
a importantes símbolos que figuraram em um embate anterior ao vivido na
Espanha do século XX numa tentativa de resgatar o passado de disputas vivido
nos anos de expansão europeia.
Neste cenário não se encontrará mais “Pizarro” ou “Cortés” –
conquistadores espanhóis eternamente presentes na memória coletiva das
nações – tampouco existem “Aztecas” ou “Incas” – termos que nos remetem às
civilizações que viviam na América antes da conquista espanhola. Tem-se no
momento descrito, um grupo de “milicianos” que recebem o adjetivo de
“remotos” para ressaltar que é através de suas “callosas, duras manos” que
conseguem “Aquí, con sus escudos” se unir como “cercanísimos hermanos” em
favor do fim da guerra , na qual “ Soldado, obrero, artista las balas cogen para
sus ametralladoras”.
80
No Cortés, ni Pizarro
(aztecas, incas, juntos halando el doble carro).
Mejor sus hombres rudos
saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos.
Aquí, con sus callosas, duras manos;
remotos milicianos
al pie aquí de nosotros,
clavadas las espuelas en sus potros;
aquí al fin con nosotros,
lejanos milicianos,
ardientes, cercanísimos hermanos.
Ainda sobre a referida estrofe, cabe destacar a afirmação do sociólogo
Zygmunt Bauman (2008: 17-18) sobre a questão da identidade:
[...] o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidas para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorrre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.
Esses homens “rudos” de mãos “callosas” são apenas “lejanos”,
“remotos milicianos”, tal realidade não faz parte de suas vidas, não foi esse o
caminho que escolheram percorrer, no entanto os valores pessoais que
envolvem seus conceitos sobre o pertencimento a uma nação os irmanam em
uma comunidade de destino12.
Na estrofe a seguir temos muitos elementos que representam o
poderio bélico imperialista. Símbolo de um poder que se funde em “aguas
quemadoras”. Ainda sobre a escolha vocabular da segunda estrofe temos a
informação, de acordo com os estudos do historiador Eric Hobsbawn, que o
palco armado na Guerra Civil espanhola serviu para testar armas de destruição
e novas técnicas de guerrilha, a serem adotadas logo a seguir tanto na
Alemanha nazista, quanto na Itália fascista na 2ª Guerra Mundial. Sendo assim
12
Comunidades de destino são aquelas nas quais os indivíduos se fundem unicamente por ideias ou por uma variedade de princípios. In: Bauman 2005
81
Guillén, em seus versos, retrata esse tenebroso laboratório do caos, como
confirmam os seguintes versos:
Los hierros tumultuosos
de lanzas campeadoras;
las espadas, que hundieron su punta en las auroras;
las grises armaduras,
los ingenuos arcabuces fogosos,
os clavos y herraduras
de las equinas finas patas conquistadoras;
los cascos, las viseras, las gordas rodilleras,
todo el viejo metal imperialista
corre fundido en aguas quemadoras,
donde soldado, obrero, artista,
las balas cogen para sus ametralladoras
O poeta nos convida também a olhar a “España rota”. A vislumbrar seu
cenário de dor, existem “pájaros volando sobre ruínas”; “faroles sin luz en las
esquinas”. Todo o horror expresso em “gritos que se asoman a las bocas”; ante
a “miradas de metales y de rocas” que compõem o cenário captado por “ojos
coléricos, abiertos, bien abiertos.”
¡Miradla, a España rota!
Y pájaros volando sobre ruínas,
Y el fachismo y su bota,
Y faroles sin luz en las esquinas,
Y los puños en alto,
Y los pechos despiertos,
Y obuses estallando en el asfalto
Sobre caballos ya definitivamente muertos
Y lágrimas marinas,
saladas, curvas, chocando contra todos los puertos;
y gritos que se asoman a las bocas
y a los ojos coléricos, abiertos, bien abiertos,
miradas de metales y de rocas.
82
Tem-se na presente estrofe, uma sucessão de flashes que nos
mostram todo o horror vivenciado. O poeta nos convida a olhar o resultado
deste acontecimento, porém provoca vários dos sentidos vitais com suas
imagens poéticas. O estalar dos “obuses”, o gosto salgado das “lágrimas
marinas” contemplados em “miradas de metales y de rocas”.
Angustia Segunda: Tus venas, la raíz de nuestros árboles
Para dar continuidade à composição temos Angustia segunda. A vida
que corre e morre é representada nesse momento poético. Não só a existência
humana, mas toda forma de criação da natureza participa do intento integrador,
que se apresenta como traço marcante na poética do cubano Nicolás Guillén.
No fragmento “La raíz de mi árbol, de tu árbol” está “ bebiendo sangre”, está
“húmeda de sangre”, figura-se o sangue dos combatentes que jazem no chão.
Que tiveram esvaziadas suas veias, perdendo suas vidas “en lo más hondo de
mi tierra”.
La raíz de mi árbol, retorcida;
la raíz de mi árbol, de tu árbol, compañero
de todos nuestros árboles,
bebiendo sangre, húmeda de sangre,
la raíz de mi árbol, de tu árbol.
Yo la siento,
la raíz de mi árbol, de tu árbol,
de todos nuestros árboles,
la siento
clavada en lo más hondo de mi tierra,
clavada allí, clavada,
arrastrándome y alzándome y hablándome,
gritándome.
La raíz de tu árbol, de mi árbol.
83
Como pode ser observado na estrofe anterior e reiterado na estrofe que
se lerá a seguir, o eu – lírico envolve-se totalmente com a nação espanhola ao
dizer que sente a raiz dessa árvore. Árvore que o próprio sujeito poético afirma
estar “clavada” em sua terra, inserindo-se como parte desta comunidade:
En mi tierra, clavada,
con clavos ya de hierro,
de pólvora, de piedra,
y floreciendo en lenguas ardorosas,
y alimentando ramas donde colgar los pájaros cansados,
y elevando sus venas, nuestras venas,
tus venas, la raíz de nuestros árboles.
A árvore é símbolo de vida em eterna evolução e em ascensão para o
céu; suas raízes sempre exploram as profundezas. No caso da poesia em
estudo estão “clavadas” “bebiendo sangre”. É ela o veículo que eleva este
sangue derramado no solo “de pólvora, de piedra” e o carrega em “sus venas”
ao longo do seu tronco que encaminha para suas folhas e frutos, permitindo
uma aproximação com outra realidade: o céu. Por esse elemento da natureza é
dada a conexão entre homem e natureza e quando este primeiro jaz sem vida,
em terra, é a arvore que conduz seu sangue, seu sopro de vida para a esfera
celestial.
Angustia tercera: Y mis huesos marchando en tus soldados.
A morte, enquanto símbolo, o aspecto finito e destrutível da existência.
Indica aquilo que deixa de existir na evolução irreversível das coisas. Pode ser
considerada como revelação e introdução. Em Angustia tercera, a figura da
morte, que aparece disfarçada, se mostra para anunciar o fim de um dos
poetas mais representativos do cenário literário hispânico:
84
La muerte disfrazada va de fraile.
Con mi camisa trópico ceñida,
pegada de sudor, mato mi baile,
y corro tras la muerte por tu vida.
Guillén sai de sua recorrente musicalidade, essencialmente oral, de
ritmo envolvente e inebriante em busca do amigo-poeta. Ao matar seu “baile”, o
poeta assume que não medirá esforços para correr “tras la muerte” em busca
da vida de seu amigo desaparecido.
O sangue é novamente evocado. Porém agora sua simbologia se
encaminha para conotar o sangue como elemento orientador da busca pelo
poeta até então desaparecido. Este sangue, que vem do poeta desaparecido,
se irmana ao que se encontra em Guillén, pois “Las dos sangres de ti que en
mi se juntan”, e reclamam “por tus llagas fúlgidas” alimentando o desejo em
fazer justiça, em ver “secos a los hombres que te hirieron”. Como se pode
comprovar nos versos que se seguem:
Las dos sangres de ti que en mi se juntan,
vuelven a ti, pues que de ti vinieron,
y por tus llagas fúlgida, preguntan.
Secos veré a los hombres que te hirieron.
Na estrofe seguinte, Guillén faz uso de alguns símbolos para figurar
em sua composição poética os participantes do combate espanhol. O eu –
lírico assume, claramente, sua posição político-ideológica frente aos
acontecimentos. Como pode ser lido nos versos:
Contra cetro y corona y manto y sable,
pueblo, contra sotana, y yo contigo,
y con mi voz para que el pecho te hable.
Yo, tu amigo, mi amigo; yo, tu amigo.
É possível chegar a tal dedução se observarmos a seleção vocabular e
a associação a ela feita. O sujeito poético afirma estar “Contra cetro y corona”,
85
que representam objetos do poder central e podem ser relacionados à postura
tirana assumida pelo General Francisco Franco. Está também contra o “sable”
que possivelmente se apresenta como uma associação à guerra. O sabre,
arma branca que se associa à espada, pode apropriar-se também de sua
simbologia que nos remete ao estado militar e seu poderio.
Outro aspecto relevante a ser destacado é a indignação, demonstrada
na poesia, em relação à indiferença assumida pelos então dirigentes da Igreja
Católica diante do contínuo massacre ocorrido na Guerra Civil espanhola. Essa
contrariedade se vê expressa ao enunciar, em seus versos, que estaria contra
“sótana”.13
A voz que clama na poesia está com o povo. Povo que está contra
todas as forças ideológicas que resistem ao fim do martírio vivido pela
Espanha. O eu – lírico se une então ao povo e usa sua voz para seguir na
busca por justiça. Busca por “montañas grises”, “sendas rojas” e “caminos
desbocados”. A montanha poderia representar o símbolo de ligação entre a
terra e o céu, dada a sua extensão, conotando a dimensão da procura. Os
caminhos vermelhos e “desbocados” conduzem o leitor a vislumbrar o furor
destrutivo que arrasa todo o país.
En las montañas grises; por las sendas
rojas; por los caminos desbocados,
mi piel, en tiras, para hacerte vendas,
y mis huesos marchando en tus soldados.
Esse amplo enfrentamento ideológico, revelado na penúltima estrofe,
fez com que a Guerra Civil deixasse de ser um acontecimento puramente
espanhol para tornar-se uma prova de força entre as lideranças que
disputavam a hegemonia do mundo. De alguma maneira, muitas nações
manifestaram sua solidariedade à causa vivida pelos espanhóis, o que nos faz
13
Subst:Vestimenta utilizada pelos sacerdotes. In: Señas: diccionario para la enseñanza de la lengua española para brasileños. Tradução de Eduardo Brandão, Claudia Berliner. 2ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2001
86
compreender o porquê do poeta enunciar que em seus “huesos” marchariam
“tus soldados”.
Angustia cuarta: Federico
A quarta e última angústia composta por Guillén anuncia a morte de
Federico Garcia Lorca. O poeta nasceu em Fuentevaqueros (Granada) no ano
de 1898 e foi assassinado em Viznar (Granada) em agosto de 1936. O fato de
Garcia Lorca, muito querido por todos, ter sido umas das primeiras vítimas
fatais do regime de Franco colocou-o durante longo tempo como uma figura
simbólica no combate à opressão, fazendo com que vários poetas e escritores
viessem a render-lhe homenagens.
Uma de suas inúmeras obras de notório reconhecimento é o
Romancero Gitano (1928), composto por dezoito poemas nos quais se
encontram os motivos andaluzes, um tema de destaque na poética de Lorca. A
referida obra representa uma grande síntese entre poesia popular e erudita.
Trata de representar, de maneira metafórica e mítica, Andalucía e o mundo
cigano. Na presente análise, nos apropriaremos de alguns símbolos
recorrentes no “romancero” de García Lorca, com o fim de estabelecer um
diálogo entre as composições literárias selecionadas de forma substancial.
Ao longo da poesia do poeta cubano, pode-se notar o uso da
linguagem fática. O diálogo estabelecido em Angustia Cuarta dá continuidade
e consistência à busca iniciada em Angustia tercera. Como se observa nos
seguintes versos:
Toco a la puerta de un romance.
-¿No anda por aquí Federico?
-Un papagayo me contesta:
-Ha salido.
87
O sujeito poético inicia sua busca batendo à porta de um romance14 É
a primeira referência à memória de Federico García Lorca. Ao longo da poesia,
Guillén evoca a figura do poeta espanhol utilizando-se de vários elementos que
compõem o universo poético do compositor do Romancero Gitano.
Quem está por trás da porta e responde à pergunta do sujeito poético
é uma ave. Em grego o vocábulo que designa ave, pássaro, era considerado
sinônimo de presságio e de mensagem do céu. Aliada a esta informação, tem-
se de considerar também uma característica pertinente à espécie escolhida por
Guillén para responder sobre o paradeiro do poeta García Lorca. Ao escolher
um papagaio para figurar a cena, é inegável ressaltar uma especial habilidade
desta ave: a de simplesmente repetir algo dito por terceiros.
Por uma denúncia anônima, García Lorca foi detido, e as
investigações sobre seu paradeiro nunca tiveram consistência suficiente. Diz-
se que o poeta foi enterrado em uma cova comum e anônima em um lugar não
determinado. Tantas incertezas acerca de um mesmo acontecimento só podem
ser justificadas se pensarmos na maneira como os fatos ocorreram e
principalmente como percorreram o tempo e o espaço. Nenhuma prova
contundente. Apenas ecos, repetições de discursos sem rosto e sem nome.
Na estrofe seguinte, parte-se para uma porta de cristal. O material do
qual se compõe a porta pode nos remeter à ideia de que o cristal, por sua
transparência, permite que se veja através dele. Desta forma sua propriedade
material se reestrutura para sustentar a sua simbologia de constituir-se como
representação intermediária entre o visível e o invisível. Aos associar tal
significação aos acontecimentos retratados na poesia, pode-se compreender
melhor a resposta da voz, que tem apenas mão, ao dizer que Federico “está en
el rio”. Como corrobora a seguinte estrofe:
14
O romance é em poema característico da tradição literária ibérica, composto usando a combinação métrica homônima. Característico da tradição oral se populariza no século XV, no qual se recolhem pela primeira vez escritos em “romanceros.” Os romances são geralmente poemas narrativos, com uma grande variedade temática, segundo o gosto popular do momento e de cada lugar. In: Señas: diccionario para la enseñanza de la lengua española para brasileños. Tradução de Eduardo Brandão, Claudia Berliner. 2ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2001.
88
Toco a una puerta de cristal.
-¿No anda por aquí Federico?
Viene una mano y me responde:
-Está en el río
Rio que tanto pode representar o curso da vida, se nos detemos a sua figura
como um todo, como o seu fim, já que o curso das águas é a corrente da vida e
da morte.
A terceira estrofe dedicada ao poeta Federico García Lorca, alude à
figura do cigano (Gitano). Personagem-chave em sua reconhecida obra
“Romancero Gitano”. Porém, desta vez “Nadie responde, no habla nadie...” O
cigano, constantemente marginalizado por uma sociedade que não
compreende seus códigos e crenças, vive em constante partida, sempre à
margem da sociedade dominante. Ao identificar-se com os ciganos e com
ideologias diferentes das impostas pelo poder vigente, Lorca passa também a
ser um perigoso ícone que deveria ser expurgado da realidade. Como mostra a
estrofe que se segue:
Toco a la puerta de un gitano.
-¿No anda por aquí Federico?
Nadie responde, no habla nadie...
-¡Federico! ¡Federico!
As estrofes seguintes tratam de intensificar o ritmo desesperado na
procura por notícias. A casa escura, vazia, as cores negro e verde, a
vegetação. Todos esses elementos, assim como no Romancero de García
Lorca, circundam um cenário de morte. O vento que no poeta andaluz
significaria o erotismo masculino está “rojo” no poeta cubano. Vermelho de
sangue agitando-se entre “las ruínas”, como se pode verificar nos versos:
La casa oscura, vacía;
negro musgo en las paredes;
brocal de pozo sin cubo,
89
jardín de lagartos verdes.
Sobre la tierra mullida
caracoles que se mueven,
y el rojo viento de julio
entre las ruinas, meciéndose.
¡Federico!
¿Dónde el gitano se muere?
¿Dónde sus ojos se enfrían?
¿Dónde estará, que no viene!
As perguntas, que encerram a estrofe que acaba de ser lida, têm sua
resposta em forma de canção quando uma voz enuncia:
Salió el domingo, de noche,
salió el domingo, y no vuelve.
Llevaba en la mano un lírio,
llevaba en los ojos fiebre;
el lírio se tornó sangre,
la sangre tornóse muerte.
O lírio, quando associado ao simbolismo das águas, da lua e dos sonhos torna-
se a flor do amor, de um intenso amor, mas que na sua ambiguidade pode ficar
irrealizado, reprimido ou sublimado. Ao converter-se em sangue, o amor de
García Lorca foi reprimido, porém sua sublimação ocorre após sua morte como
veremos adiante. Em seu “Momento en García Lorca”, o poeta encerra a sua
procura, narrando o modo como acredita ter se dado o fim do poeta espanhol
ao enunciar:
Soñaba Federico en nardo y cera,
Y aceituna y clavel y luna fría.
Federico, Granada y Primavera
[…]
“¡Federico!”, gritaron de repente,
Con las manos inamóviles, atadas,
Gitanos que pasaban lentamente.
90
¡Qué voz la de sus venas desangradas!
¡Qué ardor el de sus cuerpos ateridos!
[…]
Caminaban descalzos los sentidos.
[…]
Alzóse Federico, en Luz bañado.
Federico, Granada y primavera.
Y con la luna y clavel y nardo y cera,
los siguió por el monte perfumado.
La voz esperanzada: Una canción alegre en la Lejanía
La voz esperanzada encerra o cantar de Nicolas Guillén apresentando
primeiramente uma Espanha personificada, destruída pelos horrores da guerra,
mas que se mantém de pé. Representando uma nação lutadora, mesmo
estando “sangrienta, desangrada, enloquecida!” se levanta. Bachelard em seu
livro O ar e os sonhos (2001) destaca a importância da imagem da
verticalização na construção do poema:
A valorização vertical é tão essência, tão segura, sua supremacia é tão indiscutível, que o espírito não pode esquivar-se a ela depois de tê-la reconhecido uma vez em seu sentido imediato e direto. Não se pode dispensar o eixo vertical para exprimir os valores morais. Quando tivermos compreendido melhor a importância de uma física da poesia e de uma física da moral, chegaremos a esta convicção: toda valorização é vertical.
O campo semântico do fogo aparece em todas as partes da poesia.
Guillén dá a sua composição o tom vermelho, o calor da brasa queimadora que
se abranda somente com o ecoar das canções entoadas.
¡ Ardiendo, España, estás! Ardiendo
Com largas uñas rojas encendidas;
A balas matricidas
Pecho, bronce oponiendo,
Y en ojo, boca, carne de traidores hundiendo
Las hojas uñas largas encendidas.
Alta, de abajo vienes,
91
A raíces volcánicas sujeta;
Lentos, azules cables con que tu voz sostienes,
Tu voz de abajo, fuerte, de pastor y poeta.
(…)
Sales de ti; levantas
La voz, y te levantas
Sangrienta, desangrada, enloquecida,
Y sobre la extensión enloquecida
Más pura te levantas, te levantas.
A origem mestiça do poeta é um assunto recorrente em suas obras; no
entanto, o elemento que se objetiva destacar com tais recursos é a afirmação
da identidade. Em nenhum momento rechaçar sua origem, mas sim afirmar a
todo instante a pluralidade que nasce ao entender identidade como um
conceito de estado em constante evolução. O filósofo mexicano Leopoldo Zea
(2002:39), exemplifica bem o conceito que se pretende expor no referido item:
Todos os homens e povos são iguais pelo fato de serem distintos; por contar com uma personalidade e uma individualidade singulares. Encontramo-nos ante seres humanos concretos que lutam para fazer patente sua identidade, por intervir como pares junto aos demais. Afirma-se a igualdade, a partir das filiações peculiares e sem desmedir o entendimento mutuo.
Yo,
Hijo de América
Hijo de ti y de África
[…]
Corro hacia ti, muero por ti.
[…]
Yo, que amo la libertad con sencillez,
[…]
Yo os grito con voz de hombre libre que os acompañaré
Camaradas;
Que iré marcando el paso con vosotros,
Simple y alegre,
Puro, tranquilo y fuerte,
92
A partir desse conceito congregador de identidade, Guillén convoca os
combatentes, vindos de todas as partes, praticantes de todas as artes. Numa
só canção se unem “mulero”, “cantinero”, “ minero”:
Para cambiar unidos las cintas trepidantes de vuestras ametralladoras
[…]
Otra vida sencilla y ancha,
Alta, limpia, sencilla y ancha,
Sonora de nuestra voz inevitable.
É recorrente na poética de Guillén a presença da musicalidade. Muito mais que
um recurso estilístico que confere ritmo e emoção à composição poética, é um
importantíssimo elemento integrador. Esse artifício já era utilizado na cultura
pré-hispânica e na antigüidade oriental e ocidental. Guardiã e Wierzeyski
(1876: 729) confirmam o acima exposto ao afirmar que:
A poesia, [...], é a expressão musical do pensamento. Nasce do sentimento, do ritmo e da harmonia a cujas leis se acomoda a palavra. A música, [...] que empresta à poesia um dos seus dois elementos essenciais, tem por si própria um caráter mais definido.
É o que vemos expresso, nos versos:
Nos perderemos a lo lejos… se borrará la oscura masa
De hombres, pero en el horizonte, todavía
Como en un sueño, se nos oirá la entera voz vibrando:
[…]
Todos el camino sabemos;
Están los rifles engrasados;
Están los brazos avisados:
¡ Marchemos!
Junto a tal intento, tem-se também o canto como a esperança que faz
crer em um amanhã renovador. Como se vislumbra nos versos seguintes:
93
Nada importa morirse al cabo,
Pues morir no es tan gran suceso;
Muchísimo peor que eso
Es estar vivo y ser esclavo!
[…]
… El camino sabemos…
… los rifles engrasados…
… están los brazos avisados…
Fig 3
Y la canción alegre flotará como una nube sobre la roja lejanía.
Deixando no ar a ideia de uma vida além do plano material, que possui a morte
como trilha e a eternidade como estação final.
94
Conclusão
O estudo analítico-crítico das composições poéticas de Nicolás Guillén
em diálogo com outras criações artísticas, como a canção do Trio Matamoros,
o poema de José Zacarias Tallet e os elementos utilizados no Romancero
Gitano de García Lorca, permitiu delinear o resultado da práxis poética de
Guillén como uma metáfora de Cuba.
Ao privilegiar a exposição da questão identitária cubana, buscou-se
apresentar os possíveis desdobramentos dos pontos abordados ao longo dos
capítulos: a marcada influência do contexto literal na produção literária do
século XX; a relação entre o pensamento artístico (manifestado na poesia e na
música) e o processo de conformação de visões do nacional em Cuba; o papel
dos intelectuais na construção de imagens do país e o conceito de
transculturação como paradigma do nacional, que não se limitou à fronteiras
geográficas.
Assim sendo, foi possível observar que desde o século XIX, tentou-se
articular um sentido de unidade, nascido da heterogeneidade, na definição do
que seria o nacional no mundo antilhano, em especial, no cubano. Tentativa
que se vislumbra no corpo do sujeito poético de “Balada de los dos abuelos”
em uma perspectiva nacional ou em “España” desde uma mirada
extracontinental.
A nova dimensão dada às manifestações populares se apresenta como
uma tentativa dos letrados de articular visões do outro para dar corpo e alma à
nação imaginada. Já que a Guillén foi destinada a tarefa de reconhecer as
essências nacionais do “povo”, redefinindo-as e projetando-as dentro de uma
nação moderna, porém não sob o rótulo de mescla, mas sim de acordo com as
premissas propostas pelo conceito de transculturação. Essências que se
vislumbram em composições como “Rumba” e “Secuestro de La mujer de
Antonio”
Nas composições poéticas de Nicolás Guillén se observa que há
espaço para o popular e o erudito. Não se preconiza um estilo, um autor, um
95
ritmo; contempla-se a habilidade em traduzir os anseios de um povo em
fervilhante processo de amadurecimento. Alia de forma brilhante os queixumes
das décimas às narrativas do romance espanhol, os ritmos de origem africana
à diversidade do cancioneiro popular sem deixar de obter como resultado o
reflexo da nação cubana.
A partir das análises propostas, sobretudo, nos capítulos Um olhar
sobre a práxis musical e poética em versos de Nicolás Guillén e O
contrapunteo de Guillén na tessitura simbólica da identidade antilhana, é
possível afirmar que as discussões em torno das manifestações artísticas em
Cuba, aqui representadas pelos poemas de Nicolás Guillén, estariam marcadas
pelas preocupações em torno da integração do nacional, o que estaria em
conformidade com o que afirma Benítez Rojo (1989:119 e 122) sobre a poesia
de Guillén, quando enuncia que esta seria:
[...] a tentativa de impregnar a sociedade da libido do negro transgredindo os mecanismos de censura sexual impostos a raça pelo Plantation [...] desinflar a agressividade do Plantation pela reinterpretação das origens nacionais.[...] Construir, ainda que simbólicamente, um espaço de coexistência racial, social e cultural.
O estreito vínculo entre a oralidade e a escrita em Cuba faz das
produções artísticas da ilha, desde as décimas camponesas até os tempos de
Nicolás Guillén, um canal expressivo de comunicação repleto de significação
cultural. Comprovando a hipótese de que nos versos de Guillén, contempla-se
o figurar de um processo que consiste em resgatar os valores da cultura local e
encontrar no embate entre cultura dominante e cultura marginalizada o cerne
de uma nova cultura.
Do exposto, Guillén é prova viva de que história e poesia, em
Cuba, representam a expressão nacional sempre que se trate de um poeta
genuíno. Desde que tenha suas veias atreladas às raízes de sua gente, seja
por seu avô negro ou seu avô branco, seja pela solidariedade expressa à
causa espanhola. Sempre que estas veias se nutram mutuamente em uma
mescla de sangue e seiva, se revelará a importância de uma obra como a de
Nicolás Guillén
96
Referências Bibliográficas
Obras do autor
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Madrid: Catedra, 1997.
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_______________ La paloma del vuelo popular. Elegías. Buenos Aires:
Losada, 2005.
_______________ Sóngoro Cosongo. Buenos Aires: Losada, 2005
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1930. Crítica: (Grijalbo Mondadori, S.A.), Barcelona, 1998. Tradução de Jordi
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COLLAZOS, Óscar. Los vanguardismos en la América Latina. Barcelona:
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97
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Figura 2 - Aquelarre en Cartagena, 1982 (fragmento) – Mural en acrílico in:
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Figura 2.1 – TANAKA, Beatrice: A história de Chico Rei: um rei africano no
Brasil. Ilustrações da autora, São Paulo: Edições SM, 2010 (Pág:11)
Figura 3: Disponível em: www.imagenesdeposito.com/guerra.Acessado em
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102
Anexo
La Rumba
Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó! ¡Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó! ¡Cómo baila la rumba la negra Tomasa! ¡Cómo baila la rumba José Encarnación! Ella mueve una pierna, ella mueve la otra, él se estira, se encoge, dispara la grupa, el vientre dispara, se agacha, camina, sobre el uno y el otro talón. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! Las ancas potentes de niña Tomasa en torno de un eje invisible, como un reguilete rotan con furor, desafiando con rítmico, lúbrico disloque, el salaz ataque de Ché Encarnación: muñeco de cuerda que, rígido el cuerpo, hacia atrás el busto, en arco hacia’lante abdomen y piernas, brazos encogidos a saltos iguales de la inquieta grupa va en persecusión. Cambia e’paso, Cheché; cambia e’paso, Cheché. Cambia e’paso, Cheché; cambia e’paso, Cheché. La negra Tomasa, con lascivo gesto, hurta la cadera, alza la cabeza, y en alto los brazos, enlaza las manos, en ellas reposa la ebónica nuca y, procaz, ofrece sus senos rotundos, que, oscilando, de diestra a siniestra, encandilan a Chepe Chacón. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! Frenético el negro se lanza al asalto
y, el pañuelo de seda en sus manos, se dispone a marcar a la negra Tomasa, que lo reta, insolente, con un buen vacunao. “¡Ahora!”, lanzando con rabia el fuetazo, aúlla el moreno. (Los ojos son ascuas, le falta la voz y hay un diablo en el cuerpo de Ché Encarnación). La negra Tomasa esquiva el castigo y en tono de burla lanza un insultante y estridente “¡No!” y, valiente se vuelve y menea la grupa ante el derrotado José Encarnación. ¡Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bomgó! Repican los palos, suena la maraca, zumba la botija se rompe el bongó. Y las cabezas son dos cocos secos en que alguno con yeso escribera, arriba, una diéresis, abajo un guión. Y los dos cuerpos de los dos negros son dos espejos de sudor. Repican las claves, suena la botija, se rompe el bongó. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, chariqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, chariqui! Llega el paroxismo, tiemblan los danzantes y el bembé le baja a Chepe Cachón; y el bongó se rompe al volverse loco, a niña Tomasa le baja el changó. ¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan! ¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!
Al suelo se viene la niña Tomasa, al suelo se viene José Encarnación; y allí se revuelcan con mil contorsiones, se les sube el santo, se rompió el bongó. ¡Se acabó la rumba, con-con-co-mabó! ¡Pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca! ¡Pam! ¡Pam! ¡Pam! Jose Z. Tallet
Rumba
La rumba revuelve su música espesa con un palo, Jengibre y canela.... ¡ Malo ! Malo, porque ahora vendrá el negro chulo Con Fela. Pimienta de la cadera, grupa flexible y dorada: rumbera buena, rumbera mala. En el agua de tu bata todas mis ansias navegan: rumbera buena, rumbera mala. Anhelo de naufragar En ese mar tibio y hondo: ¡ Fondo del mar ! Trenza tu pie con la música el nudo que más me aprieta; resaca de tela blanca sobre tu carne trigueña. Locura del bajo vientre, aliento de boca seca; el ron que se te ha espantado, y el pañuelo como riendas. Ya te cogeré domada, ya te veré bien sujeta, cuando como ahora huyes,
hacia mi ternura vengas, rumbera buena; o hacia mi ternura vayas rumbera mala. No ha de ser larga la espera, Rumbera Buena; Ni será eterna la bacha, Rumbera Mala; Te dolerá la cadera, Rumbera Buena; Cadera dura y sudada, Rumbera Mala... ¡ Último trago ! Quítate, córrete, vámonos... ¡ Vamos !
Nicolás Guillén
SECUESTRO DE
Secuestro de la mujer de Antonio
Te voy a beber de un trago, como una copa de ron; te voy a echar en la copa de un son, prieta, quemada de ti misma, cintura de mi canción. Záfate tu chal de espuma para que torees la rumba, y si Antonio se disgusta, que se corra por ahí; ¡la mujer de Antonio tiene que bailar aquí! Desamárrate, Gabriela. Muerde la cáscara verde, pero no apagues la vela; tranca la pájara blanca, y vengan de dos en dos, ¡que el bongó se calentó! De aquí no te irás, mulata ni al mercado, ni a tu casa; aquí molerán tus ancas la zafra de tu sudor: repique, pique, repique repique, pique, repique,
pique, repique, repique, ¡pó! Semillas las de tus ojos darán sus frutos espesos; y si viene Antonio luego que ni en jaranta pregunte cómo es qué tú estás aquí... Mulata, mora, morena, que ni el más tonto se mueva, porque el que más toro sea saldrá caminando así; el mismo Antonio si llega, saldrá caminando así; todo el que no esté conforme,
saldrá caminando así...
todo el que no esté conforme, saldrá caminando así...
Repique, repique, pique, repique, repique, ¡pó! ¡Prieta quemada en ti misma, cintura de mi canción!
Nicolás Guillén
Balada de los dos abuelos
Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos.
Lanza con punta de hueso, tambor de cuero y madera: mi abuelo negro. Gorguera en el cuello ancho, gris armadura guerrera: mi abuelo blanco.
Pie desnudo, torso pétreo los de mi negro; pupilas de vidrio antártico las de mi blanco!
Africa de selvas húmedas y de gordos gongos sordos... --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) Aguaprieta de caimanes, verdes mañanas de cocos... --¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) Oh velas de amargo viento, galeón ardiendo en oro... --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) ¡Oh costas de cuello virgen engañadas de abalorios...! --¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) ¡Oh puro sol repujado, preso en el aro del trópico; oh luna redonda y limpia sobre el sueño de los monos!
¡Qué de barcos, qué de barcos! ¡Qué de negros, qué de negros! ¡Qué largo fulgor de cañas! ¡Qué látigo el del negrero!
Piedra de llanto y de sangre, venas y ojos entreabiertos, y madrugadas vacías, y atardeceres de ingenio, y una gran voz, fuerte voz, despedazando el silencio. ¡Qué de barcos, qué de barcos, qué de negros!
Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos.
Don Federico me grita y Taita Facundo calla; los dos en la noche sueñan y andan, andan. Yo los junto.
¡Federico! ¡Facundo!
Los dos se abrazan. Los dos suspiran. Los dos las fuertes cabezas alzan; los dos del mismo tamaño, bajo las estrellas altas; los dos del mismo tamaño, ansia negra y ansia blanca, los dos del mismo tamaño, gritan, sueñan, lloran, cantan. Sueñan, lloran, cantan. Lloran, cantan. ¡Cantan!
Nicolás Guillén
Tengo
Cuando me veo y toco yo, Juan sin Nada no más ayer, y hoy Juan con Todo, y hoy con todo, vuelvo los ojos, miro, me veo y toco y me pregunto cómo ha podido ser. Tengo, vamos a ver, tengo el gusto de andar por mi país, dueño de cuanto hay en él, mirando bien de cerca lo que antes no tuve ni podía tener. Zafra puedo decir, monte puedo decir, ciudad puedo decir, ejército decir, ya míos para siempre y tuyos, nuestros, y un ancho resplandor de rayo, estrella, flor. Tengo, vamos a ver, tengo el gusto de ir yo, campesino, obrero, gente simple, tengo el gusto de ir (es un ejemplo) a un banco y hablar con el administrador, no en inglés, no en señor, sino decirle compañero como se dice en español. Tengo, vamos a ver, que siendo un negro nadie me puede detener a la puerta de un dancing o de un bar.
O bien en la carpeta de un hotel gritarme que no hay pieza, una mínima pieza y no una pieza colosal, una pequeña pieza donde yo pueda
descansar. Tengo, vamos a ver, que no hay guardia rurque me agarre y me
encierre en un cuartel, ni me arranque y me arroje de mi tierra al medio del camino real. Tengo que como tengo la tierra tengo el mar, no country, no jailáif, no tennis y no yatch, sino de playa en playa y ola en ola, gigante azul abierto democrático: en fin, el mar. Tengo, vamos a ver, que ya aprendí a leer, a contar, tengo que ya aprendí a escribir y a pensar y a reír. Tengo que ya tengo donde trabajar y ganar lo que me tengo que comer. Tengo, vamos a ver, tengo lo que tenía que tener.
Nicolás Guillén
ESPAÑA, Poema en cuatro angustias y una esperanza
ANGUSTIA PRIMERA Miradas de metales y de rocas
No Cortés, ni Pizarro (aztecas, incas, juntos halando el doble carro) Mejor sus hombres rudos saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos. Aquí, con sus callosas, duras manos; remotos milicianos al pie aquí de nosotros, clavadas las espuelas en sus potros; aquí al fin con nosotros, lejanos milicianos, ardientes, cercanísimos hermanos.
Los hierros tumultuosos de lanzas campeadoras; las espadas, que hundieron su punta en las auroras; las grises armaduras, los ingenuos arcabuces fogosos, los clavos y herraduras de las esquinas finas patas conquistadoras; los cascos, las viseras, las gordas rodilleras, todo el viejo metal imperialista corre fundido en aguas quemadoras, donde soldado, obrero, artista,
las balas cogen para sus ametralladoras.
No Cortés, ni Pizarro (incas, aztecas, juntos halando el doble carro). Mejor, sus hombres rudos saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos.
¡Miradla, a España rota! Y pájaros volando sobre ruinas, y el fachismo y su bota, y faroles sin luz en las esquinas, y los puños en alto, y los pechos despiertos, y obuses estallando en el asfalto sobre caballos ya definitivamente muertos; y lágrimas marinas, saladas, curvas, chocando contra todos los puertos; y gritos que se asoman a las bocas y a los ojos coléricos, abiertos, bien abiertos, miradas de metales y de rocas.
ANGUSTIA SEGUNDA
Tus venas, la raíz de nuestros árboles
La raíz de mi árbol retorcida; la raíz de mi árbol, de tu árbol, de todos nuestros árboles, bebiendo sangre, húmeda de sangre, la raíz de mi árbol, de tu árbol. Yo lo siento, la raíz de mi árbol, de tu árbol. Yo la siento, la raíz de mi árbol, de tu árbol, de todos nuestros árboles, la siento clavada en lo más hondo de mi tierra, clavada allí, clavada, arrastrándome y alzándome y hablándome, gritándome.
La raíz de tu árbol, de mi árbol. En mi tierra, clavada, con clavos ya de hierro, de pólvora, de piedra, y floreciendo en lenguas ardorosas, y alimentando ramas donde colgar los pájaros cansados, y elevando sus venas, nuestras venas, tus venas, la raíz de nuestros árboles.
ANGUSTIA TERCERA Y mis huesos marchando en tus soldados
La muerte disfrazada va de fraile. Con mi camisa trópico ceñida, pegada de sudor, mato mi baile, y corro tras la muerte por tu vida.
Las dos sangres de ti que en mí se juntan, vuelven a ti, pues de ti vinieron, y por tus llagas fúlgidas preguntan. Secos veré a los hombres que te hirieron.
Contra cetro y corona y manto y sable, pueblo, contra sotana, y yo contigo, y con mi voz para que el pecho te hable. Yo, tu amigo, mi amigo; yo, tu amigo.
En las montañas grises; por las sendas rojas; por los caminos desbocados, mi piel, en tiras para hacerte vendas, y mis huesos marchando en tus soldados.
ANGUSTIA CUARTA Federico
Toco a la puerta de un romance. --¿no anda por aquí Federico? Un papagayo me contesta: --Ha salido.
Toco a una puerta de cristal. --¿No anda por aquí Federico? Viene una mano y me señala: --Está en el río.
Toco a la puerta de un gitano. --¿No anda por aquí Federico? Nadie responde, no habla nadie... --¡Federico! ¡Federico!
La casa oscura, vacía; negro musgo en las paredes; brocal de pozo sin cubo, jardín de lagartos verdes.
Sobre la tierra mullida caracoles que se mueven, y el rojo viento de julio entre las ruinas, meciéndose.
¡Federico! ¿Dónde el gitano se muere? ¿Dónde sus ojos se enfrían? ¡Dónde estará, que no viene!
(Una canción)
Salió el domingo, de noche, salió el domingo, y no vuelve. Llevaba en la mano un lirio, llevaba en los ojos fiebre;
el lirio se tornó sangre, la sangre tornóse muerte.
(Momento en García Lorca)
Soñaba Federico en nardo y cera, y aceituna y clavel y luna fría. Federico, Granada y Primavera.
En afilada soledad dormía, al pie de sus ambiguos limoneros, echado musical junto a la vía.
Alta la noche, ardiente de luce arrastraba su cola transparente por todos los caminos carreteros.
«¡Federico!», gritaron de repente, con las manos inmóviles, atadas, gitanos que pasaban lentamente. ¡Qué voz la de sus venas desangradas! ¡Qué ardor el de sus cuerpos ateridos! ¡Qué suaves sus pisadas, sus pisadas!
Iban verdes, recién anochecidos; en el duro camino invertebrado caminaban descalzos los sentidos.
Alzóse Federico, en luz bañado. Federico, Granada y Primavera. Y con luna y clavel y nardo y cera, los siguió por el monte perfumado.
LA VOZ ESPERANZADA
Una canción alegre flota en la lejanía
¡Ardiendo, España, estás! Ardiendo con largas uñas rojas encendidas; a balas matricidas pecho, bronce oponiendo, y en ojo, boca, carne de traidores hundiendo las rojas uñas largas encendidas.
Alta, de abajo vienes, a raíces volcánicas sujeta; lentos, azules cables con que tu voz sostienes, tu voz de abajo, fuerte, de pastor y poeta.
Tus ráfagas, tus truenos, tus violentas gargantas se aglomeran en la oreja del mundo; con pétreo músculo violentas el candado que cierra las cosechas del mundo.
Sales de ti; levantas la voz, y te levantas sangrienta, desangrada, enloquecida, y sobre la extensión enloquecida más pura te levantas, te levantas.
Viéndote estoy las venas vaciarse, España, y siempre volver a quedar llenas; tus heridos risueños; tus muertos sepultados en parcelas de sueños; tus duros batallones, hechos de cantineros, muleros y peones.
Yo, hijo de América, hijo de ti y de Africa, esclavo ayer de mayorales blancos dueños de látigos coléricos; hoy esclavo de rojos yanquis azucareros y voraces; yo chapoteando en la oscura sangre en que se mojan mis Antillas; ahogado en el humo agriverde de los cañaverales; sepultado en el fango de las cárceles; cercado día y noche por insaciables bayonetas;
perdido en las florestas ululantes de las islas crucificadas en la cruz del Trópico;
yo, hijo de América, corro hacia ti, muero por ti. Yo, que amo la libertad con sencillez, como se ama a un niño, al sol, o al árbol plantado frente a nuestra casa; que tengo la voz coronada de ásperas selvas milenarias, y el corazón trepidante de tambores, y los ojos perdidos en el horizonte, y los dientes blancos, fuerte y sencillos para tronchar raíces y morder frutos elementales; y los labios carnosos y ardorosos para beber el agua de los ríos que me vieron nacer, y húmedo el torso por el sudor salado y fuerte de los jadeantes cargadores en los muelles, los picapedreros en las carreteras, los plantadores de café y los presos que trabajan desoladamente, inútilmente en los presidios sólo porque han querido dejar de ser fantasmas; yo os grito con voz de hombre libre que os acompañaré, camaradas; que iré marcando el paso con vosotros, simple y alegre, puro, tranquilo y fuerte, con mi cabeza crespa y mi cuerpo moreno, para cambiar unidos las cintas trepidantes de vuestras ametralladoras,
y para arrastrarme, con el aliento suspendido, allí, junto a vosotros, allí donde ahora estáis, donde estaremos, fabricando bajo un cielo ardoroso agujereado por la metralla, otra vida sencilla y ancha, limpia, sencilla y ancha, alta, limpia, sencilla y ancha, sonora de nuestra voz inevitable.
Con vosotros, brazos conquistadores ayer, y hoy ímpetu para desbaratar fronteras; manos para agarrar estrellas resplandecientes y remotas, para rasgar cielos estremecidos y profundos;
para unir en un mazo las islas del Mar del Sur y las islas del Mar Caribe; para mezclar en una sola pasta hirviente la roca y el agua de todos los océanos; para pasear en alto, dorada por el sol de todos los amaneceres;
para pasear en alto, alimentada por el sol de todos los meridianos; para pasear en alto, goteando sangre del ecuador y de los polos; para pasear en alto como una lengua que no calla, que nunca callará, para pasear en alto la bárbara, severa, roja, inmisericorde, calurosa, tempestuosa, ruidosa, ¡para pasear en alto la llama niveladora y segadora de la Revolución!
¡Con vosotros, mulero, cantinero! ¡Contigo, sí, minero! ¡Con vosotros, andando, disparando, matando! ¡Eh, mulero, minero, cantinero, juntos, aquí, cantando!
(Una canción en coro)
Todos el camino sabemos; están los rifles engrasados; están los brazos preparados: ¡Marchemos!
Nada importa morir al cabo, pues morir no es tan gran suceso; ¡malo es ser libre y estar preso, malo, estar libre y ser esclavo!
Hay quien muere sobre su lecho, doce meses agonizando, y otros hay que mueren cantando con diez balazos sobre el pecho.
Todos el camino sabemos;
están los rifles engrasados; están los brazos avisados: ¡Marchemos!
Así hemos de ir andando, severamente andando, envueltos en el día que nace. Nuestros recios zapatos, resonando, dirán al bosque trémulo: «¡Es que el futuro pasa!» Nos perderemos a lo lejos... Se borrará la oscura masa de hombres, pero en el horizonte todavía como en un sueño, se nos oirá la entera voz vibrando:
...El camino sabemos...
...Los rifles engrasados...
...Están los brazos avisados...
¡Y la canción alegre flotará como una nube sobre la roja lejanía!
Nicolás Guillén