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FILOSOFIA – Capítulo 07
A Patrística e Santo Agostinho
A PATRÍSTICA 01
SANTO AGOSTINHO E O PLATONISMO CRISTÃO 02
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 12
EXERCÍCIOS PROPOSTOS 13
SEÇÃO ENEM 14
Santo Agostinho foi um dos principais expoentes da
Filosofia no Período Medieval. Suas ideias serviram, e servem
até hoje, como fundamentos importantes para o cristianismo.
Para compreendermos melhor o pensamento e a Filosofia
Cristã de Santo Agostinho, é necessário entender o
momento histórico em que ele viveu e também o movimento
filosófico-teológico, ocorrido entre os séculos III e VIII,
denominado Patrística, do qual Agostinho foi o principal
representante.
A PATRÍSTICA
Os Padres da Igreja constituem um conjunto de pensadores do
início do cristianismo que se dedicavam a produzir textos com
o objetivo de explicar a fé por meio da razão.
A Patrística foi o período da história ocidental marcado
pela presença atuante dos chamados Padres da Igreja.
A palavra patrística origina-se de Pater (padre, pai), nome
pelo qual esses homens eram chamados. Foram eles os
responsáveis pelo início da estruturação teológica do
cristianismo, exercendo um papel fundamental na história
cristã, já que foram os primeiros a se dedicarem a uma
teorização da fé, ou seja, os primeiros que buscaram
construir os argumentos racionais que sustentariam lógica
e argumentativamente a fé cristã.
A nova fé, que já completava 100 anos, precisava ser
defendida. No início, com as primeiras comunidades, não era
fundamentalmente necessária ao cristianismo uma defesa
argumentativa de suas verdades, estruturada em princípios
lógicos e inteligíveis, uma vez que a doutrina cristã baseava-
se em princípios morais e em uma fé inabalável na salvação
trazida pela morte de Cristo na cruz.
Nos séculos II e III, essa necessidade tornou-se urgente,
isso porque, por um lado, era necessário defender a fé
contra os questionamentos dos pagãos e de outras seitas
religiosas, e, por outro, era preciso convencer os romanos,
principalmente as autoridades, da pertinência e da
legitimidade da doutrina cristã. Diante disso, os Padres da
Igreja, dentre os quais Santo Agostinho, Justino (século II),
Clemente de Alexandria (séculos II e III) e Orígenes
(século III), inauguraram uma nova maneira de pensar o
cristianismo e buscaram instrumentos para justificar a fé
e defender a doutrina cristã. Para isso, utilizaram-se da
filosofia grega e do pensamento helênico, formulando, então,
a Filosofia Patrística.
Santo Agostinho é o principal pensador desse período,
promovendo uma síntese genial e inédita entre a doutrina
cristã e o pensamento de Platão. É necessário ressaltar
que Santo Agostinho não platoniza o cristianismo, mas
cristianiza Platão. O sistema filosófico platônico, pelo
menos em suas bases fundamentais, é utilizado por Santo
Agostinho como ferramenta de justificação da fé revelada.
Porém, se houvesse algo conflitante entre Platão e a fé
cristã, evidentemente a revelação, a Bíblia Sagrada, a fé,
ocuparia lugar de destaque.
Dessa forma, Santo Agostinho, contribuiu de forma
decisiva para a aproximação entre a fé cristã e a filosofia
grega, principalmente ao formular um conjunto de ideias
cristãs, uma doutrina propriamente dita, com base no
pensamento platônico. Por causa disso, podemos afirmar,
com segurança, que Santo Agostinho foi o pensador mais
destacado e importante desde Aristóteles (século IV a.C.)
até Santo Tomás de Aquino (século XIII).
A Patrística e Santo Agostinho A
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SANTO AGOSTINHO E O PLATONISMO CRISTÃO
Iluminura representando Santo Agostinho
VidaA história de vida de Santo Agostinho tornou-se quase um
capítulo à parte na própria história do cristianismo e merece atenção especial em nossos estudos. Sua vida representa o itinerário espiritual de um homem comum que se tornou um dos pensadores mais importantes da história do Ocidente, mesmo experimentando cotidianamente toda a fraqueza de sua condição humana, tendo vencido suas limitações e seus medos em busca de seu ideal de vida. Acompanhemos então a sua história.
Uma mãe chora e reza pela conversão do filho. As lágrimas abundantes de Mônica regaram o coração de seu primogênito, que, após anos de uma vida desregrada e entregue aos prazeres mundanos, finalmente se converte ao cristianismo, mudando definitivamente sua vida e a história do pensamento ocidental, tornando-se o mais importante entre os Padres da Igreja, tanto que sua obra bibliográfica, Confissões, é o segundo livro mais publicado do Ocidente, ficando atrás somente da Bíblia.
Algo pulsava no peito daquele inquieto homem. Nada, até a sua conversão, fora capaz de preencher o grande vazio interior de uma alma à procura de algo que os olhos não veem e que só o coração poderia sentir. Aquele homem era Aurelius Augustinus. Nascido em 13 de novembro de 354, na pequena cidade de Tagaste, província romana da Numídia, ao norte da África, onde hoje se localiza a Argélia, Aurelius Augustinus, desde muito novo, mostrou inteligência e perspicácia de pensamento notáveis. Durante a infância,
estudou em sua cidade natal e na cidade vizinha, Madaura. Seu pai, Patrício, homem de hábitos rudes, vida simples e entregue ao alcoolismo, ainda pagão (converteu-se ao cristianismo no momento de sua morte), empenhou-se em enviar o filho, tão logo este terminasse seus primeiros estudos, à cidade de Cartago, onde teria a oportunidade de receber uma educação liberal e trilhar a carreira do magistério ou da magistratura. Não tendo condições financeiras para custear os estudos do filho, já que vivia de modo modesto e sem muitas reservas, o pai valeu-se da amizade de Romariano, amigo rico e bem-sucedido, que o ajudou na ida de Augustinus a Cartago para cumprir seus estudos superiores.
MARROCOS
OCEANOATLÂNTICO
ARGÉLIA
Argel
Rabat
NÍGERMALI
MAURITÂNIA
Mar Mediterrâneo
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Em Cartago, Agostinho estudou Literatura, Filosofia e Retórica. Apesar de sua inteligência e de sua capacidade intelectual, não se mostrou um bom aluno, não tendo se afeiçoado ao grego, língua fundamental para a leitura dos clássicos, afirmando que detestava tal idioma. Devido a isso, sua educação se deu quase totalmente em latim, o que lhe trouxe muitos arrependimentos futuros, pois isso o afastou quase que por completo da leitura dos pensadores helênicos, da exegese e da teologia. Mais velho, porém, buscou reparar tal falha.
Devido aos seus estudos e à sua cultura, Agostinho afastava-se da leitura da Bíblia, insistentemente oferecida a ele por sua mãe, por considerá-la uma leitura indigna de homens cultos, chegando mesmo a afirmar que se tratava de uma obra simplória e mal-escrita. A Filosofia entrou em sua vida com a leitura do livro Hortêncio, de Cícero1 (106-43 a.C.), no qual o autor afirmava, com um estilo elegante de escrita, que a Filosofia seria o caminho para se
1 Marco Túlio Cícero foi político, orador e autor de prosa filosófica. Quando, em Roma, Júlio César chegou ao poder, Cícero se retirou da vida política e se exilou, produzindo, nesse período, a maior parte de seus escritos sobre Retórica e Filosofia. Por opor-se ao controle de Marco Antônio, após a morte de César, no ano 43 a.C., foi assassinado por ordem de Otaviano, filho adotivo de César. Nesse livro, em diálogo, do qual hoje se conhecem apenas fragmentos, Cícero respondia às dificuldades de Hortêncio com a Filosofia.
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alcançar a felicidade. Agostinho se viu encantado com tal
novidade e logo se apaixonou por essa via do saber. A obra
ciceriana, de tendência tipicamente helenística, fez Agostinho
entender a Filosofia como sabedoria e arte de viver, capaz
de trazer a paz de espírito pela presença da felicidade:
Na verdade, aquele livro mudou meus sentimentos e
tornou até diferentes minhas preces [...] e diferentes meus
votos e meus desejos. De repente, toda esperança humana
tornou-se-me vil e eu proclamava a sabedoria imortal com
incrível ardor de espírito.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina. São Paulo:
Nova Cultural, 2000. Livro III, 4, 8.
Apesar de seu desprezo intelectual pela Bíblia Sagrada,
Agostinho, de um modo ou de outro, teve contato com tal
leitura, seja em pequenos fragmentos ou em partes contadas
por outros, mas principalmente pelo testemunho forte e
insistente de sua mãe, cristã convicta e fervorosa. Dessa
maneira, a semente de Cristo foi plantada em seu interior,
e nada que não trouxesse o nome de Cristo lhe confortava
a mente e a alma. Assim, ele próprio afirma:
Esse nome [...] meu coração ainda tenro havia bebido
piamente junto com o leite materno e o conservava
profundamente esculpido. E tudo o que estivesse sem
esse nome, por mais que fosse literariamente límpido e
verdadeiro, não me conquistava de todo.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina. São Paulo:
Nova Cultural, 2000. Livro III, 4, 8.
Vale lembrar que, apesar de trazer em seu interior esse
desejo pelo nome de Cristo, a ponto de fazer tal afirmação,
Agostinho ainda não havia se convertido de fato. Esse
momento foi como uma preanunciação, um desejo ou uma
busca por algo que ele ainda não conhecia pessoalmente,
mas percebia, de alguma maneira, já existir dentro de si
mesmo. Mais tarde, após sua conversão, ele reconheceria
que esse impulso, esse amor, esse desejo em seu interior,
era o desejo pelo próprio Cristo.
Antes de se aproximar da cultura cristã, Agostinho
dedicou-se à vida mundana, cometendo pequenos delitos
e envolvendo-se em uma relação amorosa proibida para
sua época (a mulher não pertencia à mesma classe social
que ele), que terminou por gerar um filho, Adeodato,
a quem Agostinho, depois de sua conversão, trouxe para
junto de si.
Seu pai, Patrício, faleceu quando Agostinho ainda
era jovem, o que fez com que este assumisse as
responsabilidades familiares. O filósofo voltou para Tagaste,
onde lecionou em uma escola própria, mas por pouco tempo.
Mudou-se novamente para Cartago, lecionando Retórica
na escola municipal, ocupando a cátedra dessa disciplina.
Apesar de sua genialidade como professor, não suportou por
muito tempo a intemperança e a indisciplina de seus alunos,
que desprezavam o conhecimento e frequentavam a escola
movidos mais por interesses familiares, por status social,
do que por interesse sincero pelo conhecimento.
Durante o tempo de vacância como professor,
permaneceu em Tagaste. Nesse período, aproximou-se
de doutrinas filosóficas, como o Maniqueísmo2, e também
as de Aristóteles, lendo as Categorias. Porém, encontrou
muitas dificuldades nesses estudos, devido à sua
ignorância na língua grega.
Agostinho, com o intuito de encontrar alunos mais
interessados e intelectualmente ativos, diferentes daqueles
para quem havia lecionado em Tagaste, e guiado também
por pretensões financeiras de uma vida mais confortável,
rumou para Roma, permanecendo nessa cidade pouco
tempo. Logo foi para a cidade de Milão, lá ocupando a função
de professor de Retórica.
Sabendo do caráter e das tendências mundanas do filho,
Mônica fez de tudo para impedir sua viagem, já antecipando
as armadilhas que o afastariam ainda mais dos caminhos
de Deus. Porém, seu esforço foi em vão.
A rotina de Agostinho em Milão era simples. Pela manhã,
dedicava-se ao magistério e, pela tarde, perambulava
pelas antecâmaras ministeriais, em busca de amizades e
de colaboradores influentes que pudessem ajudá-lo em sua
ascensão social dentro do Império Romano.
Mas algo tomava conta do espírito inquieto daquele homem.
Aliás, a inquietude será uma de suas maiores características,
levando-o a uma busca por algo que nem mesmo ele sabia
do que se tratava. Havia alguma coisa que pulsava em seu
peito e lhe causava um descontentamento imenso, um vazio
interior. Sua inteligência e genialidade não eram capazes de
lhe trazer a paz interior, vivendo atormentado por questões
existenciais e dúvidas intelectuais intensas.
2 Maniqueísmo: Corrente filosófica de caráter religioso, pregada pelo profeta Mani (século III), que mistura o cristianismo às doutrinas de Zoroastro. Mani dizia que há no mundo duas forças opostas, o bem e o mal, Deus e Satanás. Hoje, é utilizado comumente o adjetivo maniqueísmo ou maniqueísta para se referir às situações ou ideias que veem somente dois lados, o lado bom e o lado mau das coisas.
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Antes de se mudar de Cartago, aos dezenove anos de idade, Agostinho conheceu o Maniqueísmo, seita que reivindicava para si a verdadeira essência do cristianismo. Essa corrente de pensamento, fundada pelo persa Mani (215-276 d.C), tinha como premissa o dualismo do universo. Duas forças contrárias, o bem e o mal, a luz e as trevas, geraram todas as coisas, numa luta em que uma queria se sobressair à outra, tanto na formação cósmica quanto em relação aos princípios morais que regem os homens e
a sociedade.G
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O símbolo do yin-yang é uma boa representação das forças opostas, tal como pregava o Maniqueísmo.
Mais tarde, o próprio Agostinho, em sua obra Sobre o Gênesis contra os maniqueus, descreveria tal seita:
A existência de dois princípios diversos e adversos entre si, mas, ao mesmo tempo, eternos e coeternos [...] e, seguindo outros heréticos antigos, imaginaram duas naturezas e substâncias, a do bem e a do mal. Segundo seus dogmas, afirmam que essas duas substâncias estão em luta e mescladas entre si.
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira
Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo:
Nova Cultural, 2000. Livro III, 6, 10.
Igualmente ao dualismo, essa seita era marcada pelo materialismo e pelo racionalismo, o que atraiu Agostinho, devido à sua formação intelectual. Segundo o Maniqueísmo, essas forças contrárias são inerentes ao próprio ser humano, sendo representadas pelos princípios internos do bem e do mal. Assim, os homens são dotados de
substâncias contrárias, em constante luta, como se fossem duas almas; duas inteligências, uma boa e outra má, que representariam o corpo e a alma, sendo que, quando o homem peca, seu pecado não é fruto de seu livre-arbítrio, mas da inclinação interna que o levou a tal ato.
Em 383, Agostinho se afasta do Maniqueísmo após encontrar com o bispo maniqueu (de maniqueísmo), Fausto, a quem expôs uma série de questões, das quais não obteve respostas, convencendo-se então da fragilidade daquela doutrina.
Frustrado com a empreitada realizada no Maniqueísmo, Agostinho se sente tentado a abraçar o Ceticismo3 da Academia Platônica, a qual pregava que o homem deve duvidar de tudo, que não existem verdades exatas sobre qualquer coisa e que, por isso, deve-se contentar com as aparências das coisas, acessíveis somente pelos sentidos e pela experiência. Porém, o Ceticismo deixava algo a desejar ao espírito de Agostinho, que, mais uma vez, não encontrara nessa corrente o nome e a consolação de Cristo, embora, até então, não tivesse se convertido ao cristianismo.
Agostinho, nessa época, entrou em contato com os escritos neoplatônicos, principalmente os de Plotino (205-270 d.C), que traziam uma versão mística do pensamento de Platão. O neoplatonismo4, interpretando conceitos platônicos com um viés cristão, mostrou a Agostinho um caminho alternativo e mais claro do que aquele dado pelo Maniqueísmo para suas dúvidas, o que possibilitou definitivamente a aproximação de Agostinho com o cristianismo e preanunciou sua conversão.
A leitura de Plotino fez com que Agostinho percebesse que era possível compreender de forma racional e lógica a doutrina cristã, constatando que esta não era apenas destinada aos mais “ignorantes” ou intelectualmente fracos, sendo possível elaborar, a partir do cristianismo, uma teologia robusta e racionalmente sustentável.
Enfim, para coroar seu itinerário espiritual e sua busca
pela paz interior e pelo sentido de sua vida, Agostinho
realiza os dois encontros mais decisivos de sua existência,
o primeiro com o Bispo Ambrósio5 e o segundo com os textos
de São Paulo6.
3 Ceticismo: Doutrina que afirma que não se pode obter nenhuma certeza a respeito da verdade, o que implica uma condição intelectual de dúvida permanente e / ou a admissão da incapacidade do homem de alcançar a verdade de fenômenos metafísicos, religiosos ou mesmo da realidade. O termo originou-se do Ceticismo da escola filosófica do Período Helenístico. 4 Neoplatonismo: Corrente de pensamento iniciada no século III que se baseava nos ensinamentos de Platão, porém com um caráter religioso e místico. Tal corrente tem como principal representante Plotino, cujos escritos foram reunidos por outro neoplatônico, Porfírio, nas seis Enéadas. Plotino ensina que, uma vez que a realidade última consiste nas formas ideais de Platão, o que existe é, em última análise, mental. Portanto, para que algo possa ser criado, primeiro tem de ser pensado. Plotino tornou a filosofia platônica essencial para o desenvolvimento do cristianismo.
5 Ambrósio de Milão (340-397): Santo Ambrósio foi Bispo de Milão e é considerado um dos Padres e doutores da Igreja. Foi ele quem ministrou o batismo a Santo Agostinho. É considerado um dos quatro máximos doutores da Igreja; aprendeu de Orígenes a conhecer e a comentar a Bíblia Sagrada. Sendo um orador notável e um grande pensador, sintetizava admiravelmente o pensamento antigo e o cristianismo, o que seduziu Santo Agostinho mesmo antes de sua conversão. 6 São Paulo ou Paulo de Tarso (9-64 d.C): Considerado por muitos cristãos como o mais importante discípulo de Jesus e, depois deste, a figura mais importante no desenvolvimento do cristianismo nascente. Paulo escreveu várias epístolas para as comunidades que visitara, pregando e ensinando as máximas cristãs. Entre suas cartas, está a Carta aos Romanos, da qual Agostinho lê a passagem que muda a sua vida e marca o momento de sua conversão definitiva ao cristianismo.
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Agostinho, em um afresco de Sandro Botticelli
Enquanto abria o coração para acolher a eloqüência, nele
entrava, ao mesmo tempo, também a verdade, mas só
pouco a pouco: [...] especialmente depois que ouvi expor
e freqüentemente resolver passagens obscuras da antiga
Escritura, que entendia ao pé da letra, permanecendo
sem saída.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina. São Paulo:
Nova Cultural, 2000. Livro IV, 3, 23.
Com essas palavras, Agostinho narra o momento especial
em que teve contato com o Bispo Ambrósio (340-397), retórico
a quem Agostinho aprendeu a admirar, devido à sua formação
intelectual e espiritual. Sendo um profundo conhecedor da
filosofia grega, o bispo de Milão fazia uma síntese admirável
entre o pensamento antigo e o cristinianismo, manifesto
na Bíblia Sagrada, demonstrando, por meio de argumentos
lógicos e racionalmente inteligíveis, como a fé era o único
caminho que levava à verdade.
Movido por sua busca e seduzido pela eloquência dos
discursos de Ambrósio, deu-se o encontro definitivo de
Agostinho, que traria a paz tão almejada ao seu espírito e
o nascimento para a Igreja e para o mundo de um dos mais
importantes pensadores do Ocidente.
Numa tarde do ano 386, aos 32 anos de idade, Agostinho,
nos jardins de sua residência, tomado por grande angústia
e inquietude espiritual à procura da verdade, ouve uma
voz de criança que diz: “Tolle, lege, tolle, lege” (toma e lê,
toma e lê).
A conversão de Santo Agostinho
Imediatamente, mudando de semblante, comecei com
máxima atenção a considerar se as crianças tinham ou não
o costume de cantarolar essa canção em algum de seus
jogos. Vendo que em parte alguma a tinha ouvido, reprimi o
ímpeto das lágrimas e levantei-me, persuadindo-me de que
Deus só me mandava uma coisa: abrir o códice (a Bíblia) e
ler o primeiro capítulo que encontrasse.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina. São Paulo:
Nova Cultural, 2000. Livro VII, 12, 29.
Tomando em suas mãos a Bíblia Sagrada, deparou-se com
a passagem de São Paulo aos Romanos:
Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia:
nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades
nem dissoluções; nada de contendas, nada de ciúmes.
Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais
caso da carne nem lhe satisfaçais os apetites.
CARTA de São Paulo aos Romanos. 13, 13-14.
Agostinho, imediatamente, foi contar à sua mãe o ocorrido.
Esta exultou de alegria, pois suas preces haviam sido
atendidas, e o filho, antes entregue ao mundo e às suas
luxúrias, havia encontrado o caminho da salvação.
Agostinho, então, pediu demissão de seu cargo de
professor municipal e exilou-se em Cassiciaco, descansando
e meditando, juntamente com sua mãe, seu filho Adeodato
e alguns amigos. Foi introduzido na comunidade cristã e abriu
as portas à salvação na Páscoa daquele ano, respeitando
os costumes, sendo batizado por seu amigo e confessor
Ambrósio. Logo em seguida, voltou a Tagaste, sua terra
natal, onde vendeu todas as propriedades da família e fundou
uma comunidade monástica. Pretendia permanecer ali,
entregue à vida monástica de contemplação, mas, um dia,
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visitando a Igreja de Hipona7, contra a sua vontade e por
vontade do povo, foi conclamado sacerdote, responsável,
principalmente, pela pregação. Viu-se então obrigado a
deixar o ócio filosófico e intelectual e a se dedicar às funções
pastorais8. Aos 41 anos, já assumia a função de Bispo de
Hipona, sucedendo Valério, que havia falecido.
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O batismo de Agostinho
Apesar do grande trabalho pastoral, Agostinho ainda
encontrava tempo para se dedicar ao trabalho intelectual.
Sua missão: defender a fé, munir a doutrina cristã,
os dogmas da Igreja, de argumentos racionais que pudessem
sustentar uma verdadeira revolução espiritual. Essa foi
a mais importante missão de Agostinho e por ela ficou
conhecido como o mais importante filósofo entre os séculos
IV a.C. e XII d.C.
Durante os longos anos em que esteve ocupado com
suas obrigações pastorais, Agostinho conseguiu, apesar de
sua vocação primeira à contemplação, aprender muito com
o povo, com a religiosidade popular, o que depois se reverteria
em uma visão ampla do cristianismo e da filosofia. Ministrava
os sacramentos, catequizava, empenhava-se na direção
espiritual, defendia os pobres e os injustiçados, intercedia
junto aos magistrados em favor dos condenados, administrava
o patrimônio da Igreja, além de ser o responsável pelo
julgamento dos civis, uma vez que, naquela época,
tal responsabilidade passou às mãos dos bispos.
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Tumba de Santo Agostinho na Basílica de São Pedro, em Pávia, na Itália.
Agostinho demonstrava uma ousadia rara em seus escritos.
Apesar de sua tardia conversão e de seu itinerário espiritual
e filosófico o terem colocado em contato, muitas vezes
aprofundado, com pensamentos e correntes filosóficas contrárias
à essência do cristianismo, ele não titubeou em enfrentar todo
e qualquer pensamento ou ideia que fosse ou se aproximasse
de heresia. Mesmo pensamentos como o Maniqueísmo, do qual
ele compartilhou por vários anos, são criticados veementemente
pelo Bispo de Hipona. Pode-se afirmar que a produção
filosófico-teológica agostiniana é fruto de seu tempo histórico
e dos problemas e questões próprias à sua realidade.
Enfrentou, sempre argumentativamente, adversários
importantes, como judeus, pelagianos, arianos, pagãos,
astrólogos, dentre outros “inimigos” do cristianismo.
Aos 72 anos de idade, Agostinho conseguiu disponibilizar
mais tempo à contemplação, à oração e à produção
intelectual. Transferindo praticamente todas as suas funções
pastorais, o Doctor Gratiae – Doutor da Graça, como ficou
conhecido – dedicou-se à escrita, ampliando, enquanto
pôde, suas reflexões. Dedicou-se também à organização
e à sistematização de sua obra.
Faleceu aos 76 anos de idade, de morte natural, no ano 430,
logo após a invasão de Hipona pelos bárbaros. Sua produção
filosófico-teológica serviu como marco fundamental de todo
pensamento ocidental em relação à fé, à filosofia e à moral.
7 Hipona: Nome da atual cidade de Annaba, na Argélia. Provavelmente fundada pelos fenícios, passou para o domínio romano, sendo incluída na província da Numídia. A partir do século III, foi sede de episcopado, tendo entre os seus bispos Agostinho, que residiu e faleceu em Hipona. Havia na cidade diversos monumentos, várias basílicas e uma intensa vida comercial, religiosa e militar. Foi cercada pelos vândalos em 430.
8 Pastoral: Trabalho pastoral é aquele desempenhado pela Igreja com fins de promover e ajudar os mais necessitados e a todos os que a ela recorrem. Pode ser a celebração da Eucaristia, a visita aos doentes, a luta pelos injustiçados, etc.
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ObrasAgostinho produziu um conjunto impressionante de
obras. Considerando-se que ele começou a fazê-lo aos 32 anos de idade, quando de sua conversão, tendo falecido aos 76 anos de idade, sua produção filosófico-teológica é invejável.
i. Escritos predominantemente filosóficos: Contra os acadêmicos; A vida feliz; A ordem; Os solilóquios; A imortalidade da alma; A quantidade da alma; O mestre; A música.
ii. Escrito dogmático-filosófico-teológico: A Trindade.
iii. Escritos apologéticos: A cidade de Deus.
iv. Escritos exegéticos: A doutrina cristã; Comentários literais ao Gênesis; Comentários a João; Comentários aos Salmos.
v. Escritos contra os maniqueístas: Sobre os costumes da Igreja Católica e os costumes dos maniqueus; Sobre o livre-arbítrio; A verdadeira religião; Sobre o Gênesis contra os maniqueus.
vi. Escritos contra os donatistas: Contra a carta de Parmeniano; Sobre o batismo contra os donatistas; Contra Gaudêncio, bispo dos donatistas.
vii. Escritos contra os pelagianos: O espírito e a letra; Sobre a gesta de Pelágio; A graça de Cristo e o pecado original.
viii. Escrito biográfico: Confissões e Retratações. (Confissões foi a obra-prima de Agostinho, inaugurando o estilo de escritos autobiográficos na História).
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Capa de 1654 do livro Confissões, a mais importante obra de Santo Agostinho, considerada a primeira autobiografia do Ocidente.
Do conjunto de sua obra restaram algumas centenas de
cartas (Epistulae) e de sermões (Sermones), considerados
autênticos. Ao todo, deixou 113 obras escritas, que elevou
Agostinho à condição de maior representante da Patrística,
período entre os séculos III e VIII conhecido também como
o Período dos Padres da Igreja.
A Filosofia Cristã de Santo Agostinho
O próprio Santo Agostinho formulou o termo “filosofia
cristã” para se referir à sua produção filosófica. Nela,
encontra papel fundamental o conceito de beatitude ou
felicidade. Essa ideia foi a grande e definitiva linha mestra
pela qual toda a produção filosófica do hiponense se
pautou. Para ele, a verdadeira vocação da filosofia é a de
levar o homem à felicidade. Observa-se que, nesse ponto
específico, são claras as influências de Cícero, com sua
obra Hortêncio, e do Helenismo na filosofia agostiniana.
Entendida sob essa perspectiva, a filosofia não teria
como objetivo a explicação do homem ou do cosmos, mas
trilharia o caminho antropológico, quando pretende conhecer
profundamente o que é o homem e como este pode ser feliz,
mesmo vivendo na “cidade dos homens”9, isto é, no mundo
representado pelo pecado e pelo apego à matéria.
Apesar das influências filosóficas, a beatitude é encontrada, substancialmente, nas Sagradas Escrituras, afinal, Deus e toda a sua criação querem a felicidade do homem.
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Agostinho fez filosofia como teólogo, e fez teologia
como filósofo.
VELOSO, Agostinho. Nas encruzilhadas do pensamento.
Porto: Apostolado, 1957. Tomo III. p . 77.
Assim, o Bispo de Hipona aproxima a fé, a revelação,
da filosofia. Compreendendo as verdades da fé por
meio da razão, o homem poderia ser feliz, uma vez que
o conhecimento faz parte do processo de ascensão espiritual
do cristão. É claro que, na concepção agostiniana de
filosofia, esta não deve ser entendida como um caminho
para a crítica à fé cristã, mas como um caminho para
a beatitude. Dessa forma, a filosofia não teria o papel
de colocar em xeque as verdades cristãs reveladas, uma
vez que a fé se autojustifica, isto é, as verdades da fé
são irrefutáveis e não alvo de críticas. Na relação entre
fé e razão, Agostinho reconhece claramente o papel
da razão, a qual em todas as ocasiões é simplesmente
“escrava” da fé. Guiado pela sua história de destacado
intelectual, Agostinho vê na razão o caminho para o
entendimento e uma via de acesso à verdade eterna.
9 Referência à obra de Santo Agostinho, denominada A cidade de Deus ou De Civitate Dei. Santo Agostinho descreve, nessa obra, o mundo, dividido entre o dos homens (o mundo terreno), ou a “cidade dos homens”, e o dos céus (o mundo espiritual), ou a “cidade de Deus”. Iniciada por volta de 413 e finalizada por volta 426, A cidade de Deus constitui uma das obras mais importantes do filósofo.
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A filosofia é vista por Agostinho como um caminho que
leva a um fim, um instrumento utilizado pelo cristianismo
com vistas à compreensão da fé.
O caminho do conhecimento
Após sua conversão, Agostinho não tem dúvidas sobre
em que acreditar. Seu itinerário espiritual, que culmina
com sua radical mudança de vida, deixa claro que as
verdades só são possíveis de serem alcançadas pela
intuição intelectiva dada pela fé. Mas qual é o caminho
para se conhecer o mundo e as coisas? Se se apegasse ao
pensamento da Academia de Platão, da qual participou
durante algum tempo, Agostinho trilharia o caminho
do Ceticismo. Mas como pode não haver verdades
absolutas, como pregava o Ceticismo, se a verdade está
no próprio homem? Tal pensamento é insustentável e
absurdo para o neoconverso. Assim, com o objetivo de
combater os céticos e de encontrar o real caminho do
conhecimento, Agostinho argumentará que os sentidos
em si não são os instrumentos do erro, uma vez que,
ao experimentar (Empirismo)10 algo, esta experiência
é real, o problema está em tomar tal experiência como
fonte da verdade.
Segundo Agostinho, seguindo as trilhas de Platão
e antecedendo Descartes, a verdade só pode ser atingida
pelo processo do conhecimento de si mesmo, atividade
puramente intelectiva (Racionalismo)11, que não se deixa
confundir pela ação da matéria, da debilidade do corpo.
Desse modo, de acordo com Agostinho, Deus, que está
presente no interior do homem e é a própria verdade,
ilumina a mente humana para que esta, sob a direção de
seu criador, possa encontrar o conhecimento verdadeiro.
Perceba que tal verdade não é fruto somente da ação
humana em seu esforço pessoal, mas deste com o
auxílio de Deus. Tal teoria é conhecida como Teoria da
Iluminação Divina.
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A relação entre alma e corpo
Acompanhando o pensamento de Platão, Agostinho afirma
que alma e corpo são substancialmente distintos, apesar
de coexistirem no mesmo ser. Próprio do mundo material,
com suas instabilidades e suas transformações constantes,
o corpo é a parte do homem que constitui sua dimensão
material e terrena. Do corpo, nada de eterno e estável pode
nascer, mas tão somente os desejos, levados pelo pecado,
uma vez que a corrupção, advinda do pecado original
de Adão e Eva, perpetuou-se em todos os seus filhos,
em todos os homens nascidos depois deles. Isso significa
que, no homem, há a raiz do pecado, uma “força” que
o leva ao mal, ao desejo material, à concupiscência. Sendo
assim, o conhecimento verdadeiro não pode ser alcançado
pelos sentidos, pois estes estão no corpo e participam de
sua corrupção. O que os sentidos apreendem da realidade
é provisório, tal como a realidade sensível é instável,
mutável. Portanto, o conhecimento proveniente dos sentidos
não é confiável, pois os próprios sentidos, estando no corpo,
não o são.
Mas qual seria, então, a fonte do conhecimento
verdadeiro e eterno? Segundo a teoria do conhecimento
de Agostinho, o saber verdadeiro só é alcançado por uma
ação da alma, da mente. Tal como na teoria platônica,
a razão é a única capaz de alcançar um conhecimento não
provisório, uma realidade não sensível, que seria, por si
e em si, verdadeira e eterna.
Conclui-se que, para o Hiponense, existem dois tipos
distintos de conhecimento: o primeiro é proveniente dos
sentidos, que se refere à realidade externa e sensível, por
sua natureza não necessária e mutável; e o outro, eterno
e imutável, alcançado por meio da razão, do pensamento,
e que deve retornar para dentro do homem, pois aí estão
as verdades, aí está Deus.
Porém, não é possível ao homem, sozinho e por seu
próprio esforço, alcançar essas verdades eternas. Vimos
que o homem é marcado pelo pecado e, como tal, por si
mesmo, não consegue alcançar nada além do engano e
10 Empirismo: Pensamento filosófico, ligado à teoria do conhecimento, que acredita na experiência como único meio de conhecer o que as coisas são. A experiência, realizada através dos cinco sentidos, é a única fonte das ideias, discordando da noção de ideias inatas. Entre os principais empiristas, encontramos Aristóteles, Locke e Hume.
11 Racionalismo: Corrente filosófica que teve início com a definição do raciocínio, que é a operação mental, discursiva e lógica. Segundo essa corrente, o único caminho para alcançar o conhecimento é o pensamento puro, livre das influências dos sentidos. Entre os principais racionalistas, encontramos Platão, Santo Agostinho, Descartes e Leibniz.
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da ilusão. Novamente, na linha do pensamento platônico,
especialmente do Mito da Caverna, é necessário ao homem
buscar o conhecimento essencialmente pela razão. No Mito
da Caverna, o prisioneiro que se liberta das correntes enxerga
gradativamente as verdades até alcançar a visão do Sol em si,
a mais “iluminada” e perfeita das ideias. Desse modo,
para Platão, o conhecimento da verdade seria resultado,
em última instância, do conhecimento do Bem e do Belo.
Seguindo essa linha de pensamento, para Agostinho,
o conhecimento da verdade eterna, que habita o interior do
homem, é resultado do Bem Supremo de Deus. Este ilumina
a mente humana, de modo que é possível, então, encontrar
a verdade somente com o auxílio dessa “iluminação”.
Tal como acreditava Platão, para o Bispo de Hipona,
o conhecimento também é lembrança. Conhecer é relembrar.
Porém, diferentemente da teoria platônica, as ideias não
existiriam previamente, mas a iluminação divina, dando-se
no presente, tornaria as verdades da sabedoria acessíveis
também no agora.
Assim, a teoria da iluminação divina afirma que a origem
de todo o conhecimento verdadeiro é a mente iluminada
por Deus. Agostinho reconhece o papel da razão humana no
processo do conhecimento, uma vez que é ela, iluminada por
Deus, que atinge a verdade, as ideias e as origens eternas
de toda a realidade.
A antropologia agostinianaEmbora criado à imagem e semelhança de Deus, o homem,
na visão agostiniana, é miserável, pecador e incoerente,
uma visão pessimista nascida de sua própria experiência
de vida. Agostinho, em seu tempo de pecado, antes de sua
conversão, experimentou em sua própria vida a debilidade,
o limite, a fraqueza e a incoerência de sua carne, de seus
desejos, de sua vontade, o que o fez concluir que o homem
sem Deus está absolutamente à mercê de sua própria
vontade e do pecado.
Se, por um lado, o homem é pecador, por outro, é o único
que desfruta de um privilégio inigualável em relação aos
outros seres criados. Sendo criado à imagem e semelhança
de seu Deus, o homem, apesar de ter em si as raízes do
mal, que o levam ao pecado, tem também a presença do
próprio Criador em seu interior, e é Nele que o homem deve
buscar a força necessária para vencer o mal que há dentro
de si e que determina sua vontade.
A vontade seria livre e, portanto, facilmente corruptível,
o que levaria o homem ao mal, afastando-o de Deus.
Desse modo, a vontade não pode ser autônoma, isto
é, não pode decidir por si mesma, pois, dessa maneira,
inevitavelmente, o homem se afastaria do bem, já que a
vontade poderia querer o mal. É necessário, portanto, que o
homem se entregue de corpo e alma ao comando de Deus,
já que viver sob o comando da sua própria vontade seria
um perigo à alma. No entanto, entregando-se ao comando
divino, o homem caminharia segundo a verdade.
O pecado só se estabelece na alma quando o homem age
por conta própria, deixando que o corpo assuma o comando
da vida, incluindo o pensar e o agir, ficando à mercê de suas
vontades e deixando a alma em segundo plano. Utilizando-se
de seu livre-arbítrio, o homem inverte a ordem divina,
fazendo com que o mal se sobreponha ao bem, que o
corpo se sobreponha à alma, caindo assim no pecado e na
ignorância.
Esse pensamento de Agostinho encontra suas raízes
em Platão, que, ao falar sobre a tripartição da alma,
divide esta em racional, irascível e apetitiva. A parte
racional da alma deve assumir o comando da vida e
dos pensamentos, uma vez que somente ela poderá
levar o homem ao conhecimento do inteligível e,
consequentemente, a agir de forma correta. Há uma luta
interior, em que a razão deve controlar as demais partes,
principalmente a apetitiva, uma vez que esta está presa à
matéria e insiste em satisfazer os seus desejos e vontades.
Em Platão, a razão deve ser mais forte que o corpo, de forma
que o homem trilhe o caminho da justiça para encontrar a
verdade. A ideia de ser “mais forte que eu mesmo” resume
bem esse pensamento, como se houvesse duas forças em
luta pela preponderância no interior do homem.
Liberdade e livre-arbítrioEm Agostinho, liberdade e livre-arbítrio se distinguem.
Agir guiado pelo livre-arbítrio significa agir de acordo com
seus próprios impulsos e desejos, fazer o que se quer, sem
nenhuma determinação das atitudes. A vontade, nesse
caso, guiará a vida do homem, e como ela não se deixa
determinar pela razão, o homem, inevitavelmente, cairia
no pecado. Só há uma maneira de o homem superar seus
desejos e voltar-se para Deus: quando a alma encontra
refúgio no Criador que nela habita. Para Agostinho, o homem
deve obedecer a Deus e, nesse caso, ser livre é obedecer.
A aparente contradição se desfaz ao compreendermos que
liberdade é fazer o correto segundo a vontade divina, que,
por sua vez, está em Deus no homem. Considerando que
Deus não pode querer o mal do homem, se este o obedece,
ele estará sempre fazendo o bem, não se tornando escravo
de seus desejos e de sua vontade.
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e
A Teoria da Graça DivinaEstando na situação de pecador, na qual a alma está dominada pelas vontades do corpo, restam poucas chances para
o homem. Permanecendo assim, consequentemente, o homem não encontrará a salvação, ficando fadado à danação,
à condenação eterna. A concupiscência é resultado do próprio livre-arbítrio humano. Então, o que fazer para reverter tal
estado e tal destino?
Segundo Agostinho, a salvação não é resultado do querer humano, uma recompensa pelas boas ações, mas sim uma
graça superior concedida por Deus aos seus eleitos. Aqui se encontra o ponto mais controverso da doutrina agostiniana,
denominada de Teoria da Predestinação Divina. Segundo esta, para que o homem alcance a salvação eterna, são necessários
dois requisitos: o esforço pessoal do sujeito, que busca viver de acordo com a vontade divina, e a graça de Deus, concedida
somente a alguns eleitos. Dessa forma, para obter a salvação, é necessária a união dessas duas dimensões, pois uma sem a
outra é estéril. Assim, se a pessoa, mesmo se esforçando no caminho da santidade, seguindo corretamente os mandamentos
divinos, não for um eleito, um predestinado, ela não será salva, isto é, não desfrutará das benesses e da graça de estar junto
de Deus após a morte. A graça precede todos os esforços de salvação e é seu instrumento necessário.
Exatamente sobre este ponto encontra-se uma das maiores polêmicas a respeito da doutrina agostiniana. É necessário
dizer que, apesar das influências de Agostinho na estrutura e nos fundamentos da cultura e da religião cristã ocidental, a
Igreja Católica há muito já cuidou de reverter tal ideia de predestinação em sua doutrina.
A Teoria da Predestinação Divina foi o motivo de um dos grandes confrontos da vida de Agostinho. Pelágio12
(360-420 d.C), monge contemporâneo de Agostinho, defendia que a salvação do homem seria fruto de seu esforço
pessoal e da prática de boas obras (Pelagianismo). Essa doutrina na época foi classificada como heresia pelo papa Zózimo,
no Concílio de Cartago, em 417, porque, de acordo com ela, o homem poderia ser salvo pelo seu próprio esforço e dedicação,
desconsiderando, assim, a necessidade da graça divina (predestinação). Tal controversa perdurou por muitos séculos nos
círculos filosóficos e teológicos do cristianismo, influenciando Calvino (1509-1564), quando este defendeu que, para a salvação
humana, bastava somente a vontade divina manifestada na concessão da graça e nada mais, uma vez que o homem, por si
mesmo, é pecador e indigno de estar junto do Pai após sua passagem pela Terra.
Tal dualidade, pregada pela Teoria da Predestinação Divina, é o cerne do pensamento agostiniano expresso na obra
A cidade de Deus. Nesta, o Doctor Gratiae expõe o dualismo entre alma e corpo, terra e céu, espírito e matéria, imutável e
mutável, sensível e inteligível, afirmando que a vida terrena, a “cidade dos homens”, onde estão a concupiscência, o pecado,
o mal, o egoísmo, características próprias da matéria, é contrária à “cidade de Deus”, onde estão a graça, a glória, a vida
plena, realmente feliz e verdadeira.
12 Pelagianismo: Corrente desenvolvida por Pelágio de Bretanha que sustenta a tese de que o homem, para alcançar a salvação, não necessita da graça divina. Tal doutrina foi classificada como heresia pelo papa Zózimo, no século IV, que reconhecia um resquício da moral socrática, a qual dizia que o homem deve se autodeterminar em suas ações. Santo Agostinho combate tal heresia veementemente, escrevendo vários textos contra o Pelagianismo e defendendo a necessidade da graça divina para a salvação.
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O tempo
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A questão do tempo ocupa lugar central na filosofia agostiniana, uma vez que, como dito anteriormente, a beatitude,
a felicidade, o estado de graça relacionam-se intrinsecamente ao tempo.
Para compreendermos melhor, voltemos ao texto do livro A Trindade: “[...] sabemos que todos querem ser felizes.”13
A felicidade é o fim último da existência humana. Porém, ela não se dá na mobilidade, ou melhor, não se alcança o estado de
vida feliz por meio das coisas mutáveis e transitórias da “cidade dos homens”, mas somente tendo em vista algo de eterno
e permanente. A felicidade não admite a mutabilidade, por isso o Bispo de Hipona afirma que é “necessário que se procure
por um bem permanente, livre das variações da sorte e das vicissitudes da vida”14. Portanto, é mister à felicidade a posse
de algo perene, eterno, livre das variações temporais. “Ora, todos esses bens sujeitos à mudança podem vir a ser perdidos.
Por conseguinte, aquele que os ama e os possui não pode ser feliz de modo absoluto.”15
Assim, a felicidade só pode ser encontrada no único bem permanente e eterno, o próprio Deus: “[...] quem possui a Deus
é feliz!”16. Só Ele está livre das transformações, da mutabilidade, uma vez que é eterno. Para Agostinho, Deus é aquele
“cujo movimento não se pode dizer que foi, que já não é ou será o que ainda não é”.17 Desse modo, a felicidade consiste
exatamente na comunhão que o homem, ser mutável e temporal, estabelece com Deus, ser imutável, eterno e atemporal,
que se faz presente no interior do próprio homem: “Se alguém quiser ser feliz, deverá procurar um bem permanente, que
não lhe possa ser retirado em algum revés de sorte”.18
Os bens criados, por sua vez, são perecíveis e mutáveis; são criados no tempo e, por isso, assumem a característica da
mutabilidade, da mudança constante. O próprio tempo, segundo Agostinho, sendo criatura, é passageiro: “Como o tempo
passa, porque é mutável [...]”19 e “ tempo também é uma criatura e, por isso, teve um princípio e não é coeterno com Deus”20.
Nesse ponto, compreendemos que a beatitude, a verdadeira felicidade, não pode estar nas coisas criadas no tempo, pois
este é passageiro e fragmentado, tanto quanto as coisas que nele existem. Por Deus não estar no tempo, ele é o único Bem
Supremo, criador de tudo a partir do nada e o único capaz de proporcionar ao homem tal beatitude.
13 AGOSTINHO. A Trindade. XIII, 20,25. São Paulo: Paulus, 1994. Coleção Patrística 7.14 AGOSTINHO. A Vida Feliz. 2, 11. Tradução de Nair Assis de Oliveira. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1998.15 AGOSTINHO. A vida feliz. 2, 11.16 AGOSTINHO. A vida feliz. 2, 11.17 AGOSTINHO. A Cidade de Deus. XII, 16, 3. Tradução de Oscar Paes Lemes. 7 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. Parte I.18 AGOSTINHO. A vida feliz. 2, 11.19 AGOSTINHO. A cidade de Deus. 12, 16.20 AGOSTINHO. Comentário literal ao Gêneses. Inacabado. 3, 8.
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O tempo, criação de Deus, é abordado de maneira singular
por Santo Agostinho, pois, segundo ele, é muito comum que os
homens compreendam o tempo dividido em passado, presente
e futuro. Para ele, essas três dimensões fazem parte de nosso
cotidiano e, costumeiramente, pensamos o dia, o mês,
o ano, enfim, a vida, sob esta perspectiva:
Passado: sucessão de fatos que já aconteceram.
Presente: sucessão de fatos que estão acontecendo.
Futuro: sucessão de fatos que ainda irão acontecer.
Porém, essa forma de entender o tempo não é precisa.
Dessa forma, Agostinho afirma:
Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o
passado não existem, e que não é exato falar de três tempos
– passado, presente e futuro. Seria talvez justo dizer que
o tempo são três, isto é, o presente dos fatos passados,
o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos
futuros. Estes três tempos estão na mente e não os vejo
em outro lugar. O presente do passado é a memória. O
presente do presente é a visão. O presente do futuro é
a espera.
AGOSTINHO. Confissões. 11, 20, 26.
Agostinho admite a existência somente do tempo
presente, pois este é o agora, o momento, aquilo que
acontece no instante. O passado nada mais é do que a
memória dos fatos já ocorridos e relembrados no agora,
no presente, por isso ele se refere ao passado como “o
presente dos fatos passados”.
E o presente, o que é? O presente é o momento,
o instante. Agora, neste instante, ele é, no instante
seguinte, já não é mais, tornou-se passado. É um tempo
tão imediato que não pode sequer ser medido, o tempo
presente não tem nenhum espaço, é o presente das coisas
presentes.
E o que é o futuro? Se não existe passado, existindo
somente as lembranças dos fatos já ocorridos, trazidos
ao presente pela memória, o futuro não pode ser ao
menos trazido à memória no presente, uma vez que ele
sequer aconteceu. Do futuro só temos a expectativa de
sua chegada. Por isso, Agostinho se refere ao futuro como
“presente das coisas futuras”, isto é, expectativa, espera
por aquilo que virá.
Assim, Agostinho, no livro Confissões, conclui a análise
do tempo propondo uma nova terminologia:
O que agora claramente transparece é que nem há
tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar que os
tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez
fosse próprio dizer que os tempos são três: presente
das coisas passadas, presente das presentes e presente
das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha
mente que não vejo em outra parte; lembrança presente
das coisas passadas, visão presente das coisas presentes
e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito
empregar tais expressões, vejo então três tempos e
confesso que são três.
AGOSTINHO. Confissões. 11, 20, 26.
Dessa forma, podemos concluir que, segundo Agostinho,
não há três tempos, mas sim três dimensões do presente.
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO
01. Para os filósofos da Idade Média, o fato de o cristianismo
significar a verdade era um dado praticamente irrefutável.
A questão era saber se tínhamos que simplesmente
acreditar na revelação cristã, ou se também podíamos
nos aproximar das verdades cristãs com a ajuda de nossa
razão. Qual era a relação entre os filósofos gregos e as
doutrinas da Bíblia? Havia uma contradição entre a Bíblia
e a razão, ou será que a fé e o conhecimento podiam
conviver em harmonia? Quase toda a filosofia da Idade
Média gira em torno dessas questões.
GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia. Tradução de
João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. p. 193-194.
REDIJA um texto explicando a relação entre fé e razão
durante a Idade Média.
02. Apesar do grande trabalho pastoral, Agostinho ainda
encontrava tempo para se dedicar ao trabalho intelectual.
Sua missão: defender a fé.
REDIJA um texto explicando a missão agostiniana em
relação ao seu momento histórico.
03. O homem não tem razão para filosofar, exceto para atingir
a felicidade.
REDIJA um texto explicando essa citação e a importância
da obra de Cícero para a filosofia agostiniana.
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EXERCÍCIOS PROPOSTOS
01. Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde
Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá
fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas
formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não
estava convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não
existiria se não existisse em Vós. Porém me chamastes
com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez!
Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha
cegueira! Exalastes perfume: respirei-o suspirando por
Vós. Eu Vos saboreei, e agora tenho fome e sede de Vós.
Vós me tocastes e ardi no desejo da Vossa paz.
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luiza J.
Amarante. São Paulo: Paulus, 1984, Livro X, 27, p. 277.
A partir do trecho anterior e de outros conhecimentos
sobre o assunto, REDIJA um texto explicando a seguinte
afirmação de Santo Agostinho:
“Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a
procurar-Vos!”
02. Não eram pessoas mais velhas que me ensinavam as
palavras, com métodos, como pouco depois o fizeram
para as letras. Graças à inteligência que Vós, Senhor,
me destes, eu mesmo aprendi, quando procurava
exprimir os sentimentos do meu coração por gemidos,
gritos e movimentos diversos dos membros, para que
obedecessem à minha vontade.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 15.
A partir do trecho anterior e de outros conhecimentos
sobre o assunto, REDIJA um texto explicando a visão
maniqueísta de Agostinho quanto à relação entre corpo
e alma.
03. Liberdade, em filosofia, designa de uma maneira
negativa a ausência de submissão, de servidão e de
determinação, isto é, ela qualifica a independência do ser
humano. De maneira positiva, liberdade é a autonomia
e a espontaneidade de um sujeito racional. Isto é, ela
qualifica e constitui a condição dos comportamentos
humanos voluntários.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Liberdade>.
Acesso em: 3 jun. 2010.
REDIJA um texto explicando por que Santo Agostinho
não concordaria com o conceito de liberdade expresso
na citação anterior.
04. Diz o profeta: “Se não credes, não entendereis”;
certamente não diria isto se não julgasse necessário pôr
uma diferença entre as duas coisas. Portanto, creio tudo
o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo.
AGOSTINHO, Santo. De Magistro. Coleção Os Pensadores.
São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 96.
A partir da tese defendida nesse trecho de Agostinho,
REDIJA um texto respondendo à seguinte questão: o
que é verdade de fato?
05. A filosofia não teria o papel de colocar em xeque as
verdades cristãs reveladas. De maneira alguma! Na
relação fé e razão, Agostinho reconhece claramente o
papel da razão, que sempre e em todas as ocasiões é
simplesmente “escrava” da fé.
A partir do trecho anterior e do que foi estudado sobre
a filosofia agostiniana, REDIJA um texto explicando a
relação entre fé e razão durante a Idade Média.
06. Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e
brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o
pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu
conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas
nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos,
compreendemos o que dizemos. Compreendemos
também o que nos dizem quando dele nos falam. O que
é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar,
eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta,
já não sei.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J.
Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo:
Nova Cultural, 2000. Livro XII, 14, 17.
Com base na leitura desse trecho e considerando outras
informações contidas na obra Confissões, REDIJA um
texto, explicando por que para Agostinho é impossível
definir o que é o tempo em si mesmo e qual é a resposta
dada por ele à questão “O que é o tempo?”
07. [...] a vontade não pode ser autônoma, isto é, a vontade
humana não pode decidir por si mesma, pois, desta
maneira, inevitavelmente, o homem se afastaria do
bem [...].
De acordo com o trecho anterior, REDIJA um texto
explicando a concepção antropológica agostiniana.
08. REDIJA um texto contrapondo a Teoria da Predestinação
Divina de Santo Agostinho ao Pelagianismo.
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SEÇÃO ENEM
01. A luz comum, à medida que pode, nos indica como é
aquela Luz. Pois há alguns olhos tão sãos e vivos que,
ao se abrirem, fixam-se no próprio Sol sem nenhuma
perturbação. Para estes, a própria luz é, de algum modo,
saúde, sem necessidade de alguém que lhes ensine, senão
talvez apenas de alguma exortação. Para eles é suficiente
crer, esperar, amar.
AGOSTINHO. Solilóquio e vida feliz.
São Paulo: Paulus, 1998. p. 23.
Em conformidade com a Teoria da Iluminação de Santo
Agostinho, podemos afirmar que a luz à qual o filósofo
se refere é
A) o conhecimento humano, obtido por intermédio das
demonstrações da lógica e da matemática, porém,
ainda resta saber como tal conhecimento é possível.
B) o intelecto humano, que, servindo-se unicamente de
si mesmo, encontra toda a certeza e o fundamento
da verdade.
C) o próprio Deus, uma vez que o intelecto humano, que,
por sua natureza, é perecível, não pode se colocar
como certeza do conhecimento, pois a verdade é
eterna.
D) a saúde do espírito, que é alcançada por todos, uma
vez que a salvação e a felicidade são unicamente o
resultado do esforço do homem na vida terrena.
E) a atividade intelectiva humana, que pode, através
de suas capacidades, encontrar a verdade única e
imutável que levaria à plena felicidade.
necessidade de também compreendê-las, com
fins de defender o cristianismo contra as heresias,
criar uma unidade doutrinária da nova religião
e convencer os neoconvertidos. Para tanto, os
Padres da Igreja, principalmente Agostinho,
utilizam-se da filosofia pagã grega para, por meio
dela, explicar o cristianismo, ocorrendo, assim,
a aproximação entre fé e razão. No entanto, é
necessário ressaltar que a razão é um meio e não
um fim em si mesma, pois a fé nas revelações das
Escrituras, verdades irrefutáveis, sobrepõe-se à
razão, à filosofia. Podemos dizer que essa relação,
ao longo da Idade Média, sofre uma mudança, na
terceira fase da escolástica, rompendo-se quase
por completo, pois pensadores como Guilherme
de Ockam dirão que fé e razão tratam de coisas
distintas e não podem se submeter uma à outra.
02. Após se converter ao cristianismo, Agostinho
trouxe para a religião todo o seu potencial
como pensador, como filósofo. Em seu contexto
histórico, era fundamental munir a fé cristã de
argumentos racionais que pudessem defendê-
la contra as heresias e ataques daqueles que
não acreditavam nessa manifestação religiosa.
Também era necessário que o cristianismo
se justificasse enquanto teologia e ainda que
fosse construída uma unidade religiosa que
mantivesse unidas doutrinariamente todas as
comunidades cristãs. Dessa forma, ao elaborar
uma teologia, Agostinho se preocupa em defender
a fé contra seus inimigos e contra a própria
ignorância, que poderia ser a pedra de tropeço
dos próprios cristãos.
03. Em sua obra intitulada Hortêncio, Cícero, com
clara influência helenística, aponta a filosofia
como o único caminho para que o homem
encontre a verdadeira felicidade. Na história de
sua vida, foi por meio da leitura da obra de Cícero
que Agostinho se aproxima da filosofia de modo a
compreendê-la como caminho que leva o homem
à vida feliz. Dessa forma, ao elaborar sua filosofia
cristã, pode-se afirmar que Agostinho tinha em
mente um único objetivo, o de se encontrar com
a Verdade, entendida como o próprio Deus e,
consequentemente, com a verdadeira felicidade.
Vê-se que felicidade e verdade são uma única e
mesma coisa, tendo uma única e mesma fonte, o
próprio Deus.
GABARITO
Fixação01. O problema central da filosofia medieval
é justamente o da relação entre fé e razão,
religião e filosofia. Para compreender melhor
tal problema, deve-se esclarecer que, quando
falamos em filosofia medieval, estamos falando
não de verdades construídas pelo homem, mas de
verdades reveladas por Deus, portanto, irrefutáveis.
Tais verdades são incontestáveis, cabendo ao
homem acreditar nelas de forma dogmática.
Porém, na Patrística (século III ao VIII), surge a
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Propostos01. A vida de Santo Agostinho é marcada
definitivamente pela busca. Por isso, a palavra-
chave que resume seu itinerário espiritual
e intelectual é inquietude. Uma inquietude
nascida pela falta de sentido, de razão, de algo
que pudesse trazer paz e felicidade à sua vida.
Em busca desse algo, Agostinho, antes de sua
conversão aos 32 anos, buscou em vários lugares
esse sentido. Participou do maniqueísmo, do
ceticismo e do neoplatonismo, não encontrando
em nenhuma dessas correntes de pensamento
aquilo que buscava, ou seja, o verdadeiro
sentido de sua existência, que lhe traria a
verdadeira felicidade. Porém, ao se converter,
pôde compreender que aquilo que buscava fora
de si estava todo o tempo dentro de si mesmo.
A verdade que traria sentido para sua vida e,
consequentemente, a plena felicidade, habitava
o seu interior, estava na sua alma, e tal verdade
era o próprio Deus. Por isso, ele afirma que
procura fora de si aquilo que estava, na verdade,
em seu interior.
02. A tese central do maniqueísmo, corrente
filosófica fundada pelo persa Mani (século III),
era de que o universo e o próprio homem são
formados por duas forças antagônicas, o bem e
o mal, a luz e as trevas, radicalizando uma visão
dualista do cosmos grego. Participante durante
alguns anos dessa corrente filosófica, Agostinho,
depois de sua conversão, apesar de combater
o maniqueísmo, trouxe para sua filosofia cristã
tal ideia, porém aplicada, evidentemente, à
realidade do cristianismo. Tal ideia se manifesta
na concepção dualista de Agostinho em relação
à separação do homem em corpo e alma. A
alma seria a luz, a própria habitação de Deus
no homem, que o levaria ao caminho do bem.
Por outro lado, o corpo seria mau por natureza,
consequência do pecado original, e levaria
o homem à prática do mal, portanto, para o
caminho do pecado. Tais forças, o bem e o mal,
a luz e as trevas, o corpo e a alma estariam em
constante luta para se sobressair uma à outra.
Essa luta de forças opostas seria manifestada na
própria vida humana, em que o cristão encontra-
se em constante conflito consigo mesmo para
superar o seu mal natural e fazer prevalecer o
bem ou a alma.
03. Segundo a filosofia agostiniana, há claramente
uma diferença entre liberdade e livre-arbítrio.
Livre-arbítrio é o conceito descrito na citação
anterior, em que o homem tem total controle
sobre si mesmo, sobre suas ações e seus
pensamentos, fazendo o que acredita ser
melhor, podendo, portanto, se autodeterminar
da maneira que lhe aprouver. Ao contrário,
liberdade seria a submissão do homem às
vontades divinas, uma vez que Deus não
poderia querer o mal do homem. Este, seguindo
então as determinações e mandamentos
divinos, fará sempre o que for melhor para
si mesmo. Segundo Agostinho, o homem que
se guia pelo seu livre-arbítrio, acreditando
ser livre, é escravo de seu corpo e de suas
vontades momentâneas. Portanto, Agostinho
não concordaria com o conceito de liberdade da
citação anterior, que representa exatamente o
contrário do que ele acredita ser a verdadeira
liberdade. Entende-se, por conseguinte,
o porquê de o homem não poder ser autônomo,
dono de si mesmo, na visão do filósofo.
04. Segundo o pensamento medieval,
principalmente o de Santo Agostinho, verdade
de fato é aquela que é dada ao homem por meio
da revelação. Não importa seu conteúdo e sua
inteligibilidade, mas tão somente sua origem,
no caso, divina. Essas verdades reveladas são
dadas ao homem e a este cabe aceitá-las de
forma passiva. Não há espaço para a dúvida,
para o questionamento, para a investigação
crítica, pois são verdades irrefutáveis. Porém,
se pensarmos nas verdades modernas,
estas são alcançadas pelo labor humano de
investigar, questionar, criticar o que está posto,
procurando esclarecer tudo. O que não tiver
uma justificativa racional será rejeitado, pois
não encontra legitimidade na razão humana,
única juíza das verdades de fato.
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05. O principal problema de toda a Idade Média se
constitui exatamente na relação entre fé e razão.
A fé é a essência da religião, que se baseia nas
verdades reveladas por Deus aos homens por
meio das Sagradas Escrituras, da tradição e do
Magistério da Igreja. Dessa forma, tais verdades
são irrefutáveis e inquestionáveis para aqueles
que têm fé. Desse modo, a função da filosofia
não é criticar a fé nem tão pouco colocá-la em
xeque, mas servir somente como instrumento
de explicação da fé. É nesse contexto que
entendemos porque a filosofia é considerada
«escrava» da fé, uma vez que esta não tem a
função de criticar ou purificar o que a religião
afirma, mas sim fornecer argumentos explicativos
da mesma.
06. O tempo não pode ser conhecido em si mesmo,
ontologicamente, porque o tempo não existe
por si mesmo, e é impossível definir o que não
existe. O passado não existe, pois já não é,
já passou, e o que passou não existe mais. O
futuro não existe porque ainda não é, ele não
está presente e, por isso, não pode existir por
si mesmo. O presente constitui o instante,
portanto, impossível de ser compreendido, pois
o agora, o momento, passa instantaneamente
para o passado.
Agostinho responde a essa questão invertendo
o raciocínio. Não busca compreender o tempo
em si, mas o tempo para o homem, ou seja,
a percepção humana do tempo, por isso sua
reflexão sobre o tempo é psicológica. Os homens
só podem conhecer o tempo pela lembrança,
pois ele só existe na mente como memória dos
fatos passados e expectativa dos acontecimentos
futuros trazidos para o agora pela atenção, que
sintetiza o passado e o futuro, tornando-os
presentes.
07. Segundo Agostinho, o homem é mau por
natureza. Essa maldade não se deve totalmente
à sua vontade e seu desejo de tornar-se assim,
mas a um mal natural que está nele desde o
seu nascimento e que constitui uma espécie
de tendência que o leva a realizar o que é
considerado pecado para o cristianismo. Porém,
apesar de mau, o homem também é o único capaz
de superar essa força negativa por meio da ajuda
e da intervenção divina, pois Deus habita a sua
alma e o ajuda por meio de sua graça. Segundo
Agostinho, é exatamente porque o homem tende
ao mal que ele não pode ser livre para decidir,
por si próprio, os caminhos que trilhará, devendo,
ao contrário, obedecer a Deus de forma total e
irrestrita.
08. O Pelagianismo, pensamento considerado uma
heresia pela Igreja Católica no século V, defendia
que o homem poderia alcançar a salvação
somente por meio de seu esforço pessoal e sua
determinação, sem a ajuda e a intervenção divina.
Tal doutrina foi veementemente condenada pela
Igreja, uma vez que dispensaria a ajuda e o
auxílio de Deus, tornando o homem autônomo,
inclusive em relação à sua salvação. Dessa
forma, a Igreja se posicionou a favor da Teoria da
Predestinação Divina de Agostinho, que afirmava
que a salvação do homem só seria possível se
este fosse um eleito, ou seja, se tivesse recebido
de Deus a graça divina, um dom dado a alguns
homens, sem o qual não existiria a possibilidade
de salvação.
Seção Enem
01. C
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