a ordem do discurso

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A Ordem do Discurso, de Michel Foucault A biografia de Michel Foucault nos revela um pensador que não se manteve alheio às questões políticas e sociais que tecem a história da humanidade... uma história marcada por lutas e dominações entre diferentes estratos de nossas sociedades. Para Foucault, não seria suficiente denunciar que por trás de um aparelho estatal existe uma classe dominante. Crítico da suposta centralidade do poder estatal, ele reconhece que o poder político é exercido mediante uma pluralidade de centros e pontos de apoio invisíveis e desconhecidos. Desta forma, a tarefa que ele assume como intelectual é a de localizar e expor os diferentes pontos de atividades do poder; os lugares e as formas nas quais a dominação é exercida. Sob a perspectiva deste compromisso político de Foucault reside uma possibilidade de compreensão da palestra proferida por ele em sua aula inaugural no Collège de France, em 1970, intitulada “A ordem do discurso”. Apenas um ano após assumir a prestigiosa cadeira que antes pertencia ao já falecido Jean Hyppolite, Foucault participou de um debate com Noam Chomsky, Human Nature: Justice versus Power (Natureza Humana: Justiça versus Poder), facilitado pelo filósofo holandês Fons Elders. Quando questionado por Elders acerca do seu interesse pela política, Foucault responde que “a essência de nossas vidas consiste, afinal, no funcionamento político da sociedade na qual nos encontramos” 1 [tradução nossa]. Oportunamente, salientamos que democracia, para Foucault, é o efetivo exercício de poder por uma população que não é dividida, nem hierarquicamente ordenada em classes sociais. Foucault prossegue: “É óbvio que estamos vivendo sob um regime ditatorial de classes, sob um poder de classe que se impõem pela violência, até mesmo quando os instrumentos de tal poder são institucionais e constitucionais. (...) Eu admito não ser capaz de definir, nem mesmo por razões ainda mais fortes de propor, um modelo ideal de funcionamento de nossa sociedade científica e tecnológica. (...) Por outro lado, uma tarefa que me parece imediata e urgente, acima de qualquer outra coisa, é essa: Deveríamos indicar e demonstrar, até mesmo quando estiverem escondidas, todas as relações de poder político que controlam, oprimem e reprimem o corpo social.” 2 [tradução nossa] A princípio, algumas instituições, diferentemente da polícia, do exército e do tribunal judiciário, não demonstram nenhuma relação com o poder político. Por exemplo, a Universidade ou o sistema educacional como um todo podem parecer faz ernada mais do que simplesmente disseminar conhecimento. Mas, na visão de Foucault,“elas são feitas para manter certa classe social no poder; e para excluir os instrumentosde poder de outra classe.” 3 No capítulo IV da “Microfísica do poder” Os intelectuais e o poder - Conversaentre Michel Foucault e Gilles Deleuze, Foucault nos deixa clara a sua posição política,conforme podemos observar no seguinte trecho: “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas nãonecessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muitomelhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema depoder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que nãose encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetramuito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Ospróprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a idéia de que

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Page 1: A ordem do discurso

A Ordem do Discurso, de Michel Foucault A biografia de Michel Foucault nos revela um pensador que não se manteve alheio às

questões políticas e sociais que tecem a história da humanidade... uma história marcada

por lutas e dominações entre diferentes estratos de nossas sociedades. Para Foucault,

não seria suficiente denunciar que por trás de um aparelho estatal existe uma classe

dominante. Crítico da suposta centralidade do poder estatal, ele reconhece que o poder

político é exercido mediante uma pluralidade de centros e pontos de apoio invisíveis e

desconhecidos. Desta forma, a tarefa que ele assume como intelectual é a de localizar e

expor os diferentes pontos de atividades do poder; os lugares e as formas nas quais a

dominação é exercida. Sob a perspectiva deste compromisso político de Foucault reside

uma possibilidade de compreensão da palestra proferida por ele em sua aula inaugural

no Collège de France, em 1970, intitulada “A ordem do discurso”. Apenas um ano após

assumir a prestigiosa cadeira que antes pertencia ao já falecido Jean Hyppolite, Foucault

participou de um debate com Noam Chomsky, Human Nature: Justice versus Power (Natureza Humana: Justiça versus Poder), facilitado pelo filósofo holandês Fons Elders.

Quando questionado por Elders acerca do seu interesse pela política, Foucault responde

que “a essência de nossas vidas consiste, afinal, no funcionamento político da sociedade

na qual nos encontramos” 1 [tradução nossa]. Oportunamente, salientamos que democracia, para Foucault, é o

efetivo exercício de poder por uma população que não é dividida, nem hierarquicamente

ordenada em classes sociais. Foucault prossegue: “É óbvio que estamos vivendo sob um regime ditatorial de classes, sob um poder de

classe que se impõem pela violência, até mesmo quando os instrumentos de tal poder

são institucionais e constitucionais. (...) Eu admito não ser capaz de definir, nem mesmo

por razões ainda mais fortes de propor, um modelo ideal de funcionamento de nossa

sociedade científica e tecnológica. (...) Por outro lado, uma tarefa que me parece

imediata e urgente, acima de qualquer outra coisa, é essa: Deveríamos indicar e

demonstrar, até mesmo quando estiverem escondidas, todas as relações de poder

político que controlam, oprimem e reprimem o corpo social.” 2 [tradução nossa] A princípio, algumas instituições, diferentemente da polícia, do exército e do tribunal

judiciário, não demonstram nenhuma relação com o poder político. Por exemplo, a Universidade ou o sistema educacional como um todo podem parecer faz

ernada mais do que simplesmente disseminar conhecimento. Mas, na visão de

Foucault,“elas são feitas para manter certa classe social no poder; e para excluir os

instrumentosde poder de outra classe.” 3 No capítulo IV da “Microfísica do poder” – Os intelectuais e o poder - Conversaentre

Michel Foucault e Gilles Deleuze, Foucault nos deixa clara a sua posição

política,conforme podemos observar no seguinte trecho: “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas nãonecessitam

deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muitomelhor do que eles; e elas

o dizem muito bem. Mas existe um sistema depoder que barra, proíbe, invalida esse

discurso e esse saber. Poder que nãose encontra somente nas instâncias superiores

da censura, mas que penetramuito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da

sociedade. Ospróprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a idéia de que

Page 2: A ordem do discurso

elessão agentes da "consciência" e do discurso também faz parte desse sistema.O papel

do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente ou umpouco de lado" para

dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contraas formas de poder exatamente

onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e oinstrumento: na ordem do saber, da "verdade",

da "consciência", dodiscurso.” 4 Portanto, não é trivial a tese de que Foucault tenha feito exatamente isto – lutarcontra

uma forma de poder, ao colocar em pauta a ‘ordem do discurso’ em sua aulainaugural

no Collège de France. Se o papel da Universidade é manter certa classe socialno poder;

e se é verdade que a instituição deva que ser atacada em seu âmago para serdestruída,

então, cogitar a subversão da ordem do discurso parece ter sido mesmo amelhor

estratégia para questionar o papel de uma instituição de ensino. Tanto aUniversidade,

quanto a família, o manicômio e a prisão são instituições que foram alvoda genealogia

do poder que Foucault desenvolve ao longo da sua vida de trabalho. Paraele, essas lutas

contra o poder são apenas regionais... e as únicas possíveis.Vejamos o que Foucault tem

a dizer sobre o poder, enquanto discute o papel dointelectual em seu debate com

Deleuze: Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde oexerce?

Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai olucro, por que mãos

ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe-semuito bem que não são os

governantes que o detêm. Mas a noção de "classedirigente" nem é muito clara nem

muito elaborada. "Dominar", "dirigir","governar", "grupo no poder", "aparelho de

Estado", etc.. é todo um conjuntode noções que exige análise. Além disso, seria

necessário saber até onde seexerce o poder, através de que revezamentos e até que

instâncias,freqüentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, decoerções.

Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando,seu titular; e, no

entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas sesabe quem

não o possui.” 5 Em “A ordem do discurso”, Foucault nos fala deste mesmo poder e o relacionacom

aquilo que seria um processo ordenado de produção de discursos em nossassociedades.

Os discursos cotidianos são mais efêmeros do que os “discursos sérios” dainstituição,

tais como o da medicina, da psiquiatria e da política. Para Foucault, “odiscurso não é

simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,mas aquilo pelo

que se luta, o poder que queremos nos apoderar.” 6 Ora, com tamanho desafio a sua frente, Foucault não poderia fazer outra coisa,senão

abandonar a hermenêutica e tomar o discurso como prática social. Ele então secoloca

acima do nível da proposição de um texto para analisar o discurso enquanto

um‘acontecimento’ que se dá mediante condições de possibilidades e regras pré-

estabelecidas.Em “A ordem do discurso”, o ponto de partida de Foucault é a seguinte

hipótese: “Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempocontrolada,

selecionada, organizada e redistribuída por certo número deprocedimentos que tem por

função conjurar seus poderes e perigos, dominarseu acontecimento aleatório, esquivar

sua pesada e temível materialidade.” 7

Page 3: A ordem do discurso

Foucault identifica e analisa três grupos de procedimentos de controle,

seleção,organização e redistribuição da produção dos discursos, a saber: os sistemas de

exclusãoexternos e internos ao discurso, bem como as regras impostas aos

sujeitos.Fazem parte dos mecanismos de exclusão externos ao discurso a interdição,

aseparação ou rejeição e a “vontade de verdade”. O primeiro, a interdição, talvez seja

omais conhecido. Ele se refere ao tabu do objeto, ao ritual da circunstância e ao

direitoprivilegiado daquele que fala. Temos então, três modos de interdição ao discurso

que secruzam, se reforçam ou se compensam mutuamente. A interdição revela, desde já,

arelação entre o discurso e o poder. Além da dela, temos também a separação

(ourejeição) do discurso do louco a partir da oposição entre razão e loucura. Um

terceirosistema de exclusão externo ao discurso é a vontade de verdade. Ele se configura

comoum modo de separar o verdadeiro do falso, imposto pelas instituições a partir

decritérios arbitrários e ancorado por meras contingências históricas.Já nos

procedimentos de exclusão internos, temos os discursos mesmosexercendo o seu

próprio controle. Levando em conta a dimensão do acontecimento e do acaso do discurso, Foucault considera que tais procedimentos internos funcionam

comoprincípios de rarefação do discurso (classificação, ordenação e distribuição). O

primeirodestes princípios é o comentário, cuja função é revelar aquilo que se

encontraarticulado, mas não explicitado no texto original. Para Foucault, o comentário

“conjurao acaso do discurso, fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do

texto, mascom a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado.” 8 O segundotipo de procedimentos internos, o princípio do autor, é complementar ao do

comentário.Foucault aqui se refere não ao sujeito que fala ou escreve o discurso, mas ao

princípiode “agrupamento do discurso”, ou seja, um lócus de unidade e de significações

quetambém oferece um foco de coerência. Tal como o comentário, o autor também

limita oacaso do discurso, mas não “pelo jogo de uma identidade que teria a forma da

repetiçãoe do mesmo ”, mas sim “pelo jogo de uma identidade que tem a forma daindividualidade e do eu” . 9 Por fim, Foucault identifica o último tipo de procedimentode limitação interno ao

discurso: a disciplina. Em oposição ao princípio do comentário,o qual se refere a um

sentido a ser recuperado ou identidade que necessita ser repetida, adisciplina reúne

aquilo que é pré-estabelecido como sendo necessário para a produçãode novos

enunciados. “Para que haja disciplina é preciso, pois, que haja possibilidade deformular,

e de formular indefinidamente, proposições novas.” 10 O domínio de objetos,um conjunto de métodos, um corpus de proposições verdadeiras,

um jogo de definições,regras, técnicas e instrumentos constituem um sistema autônomo

chamado de disciplina.É desta forma que Foucault reúne os princípios do autor, do

comentário e da disciplinapara expor as funções restritivas e coercitivas no interior do

discurso.Além dos sistemas externos e internos de exclusão, temos também a

imposiçãode regras aos sujeitos do discurso constituindo os grupos de procedimentos de

controle,seleção, organização e redistribuição da produção dos discursos. Estas regras

não tratamde evitar o acaso de sua aparição ou controlar o poder do discurso, mas sim

Page 4: A ordem do discurso

de“rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do discurso

senão satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.” 11 Fazem parte deste grupo de regras ao sujeito que fala: a) os rituais da palavra –

elesdeterminam propriedade singulares e papéis preestabelecidos, tais como aos sujeitos

dosdiscursos religiosos, judiciários e políticos; b) as sociedades de discurso – são

aquelas

sociedades que fazem circular internamente os discursos que elas próprias

conservamou produzem. Elas também os distribuem com base em regras restritivas,

evitando apermutabilidade e a apropriação de segredos técnicos ou científicos; c) os

gruposdoutrinários – são aqueles que exigem um sentimento prévio de identificação

ou depertença a uma classe social, status, nacionalidade, resistência, aceitação, etc.

Destaforma, eles associam as pessoas a certos tipos de discurso e lhes proíbem todos

osoutros; e d) as apropriações sociais – o melhor exemplo são os sistemas de

educação, namedida em que eles representam uma estratégia política eficaz para a

manutenção oumodificação da apropriação dos discursos, diante dos saberes e

poderes que lhes sãopeculiares.Para a análise dos três grupos de procedimentos de

exclusão que atingem odiscurso, Foucault propõe a realização de três tarefas, a saber:

questionar a vontade deverdade; restituir o caráter de acontecimento do discurso; e

suspender a soberania dosignificante. Na realização destas tarefas, Foucault ainda

observa alguns princípiosmetodológicos. São eles: da inversão – este princípio trata da

necessidade de sereconhecer “o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do

discurso”

12

; dadescontinuidade – “os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas,

que secruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem”

13

; da especificidade – omundo não é cúmplice do nosso conhecimento. Devemos

concebê-lo como uma“violência que fazemos às coisas”; da exterioridade – devemos

nos situar num nívelacima do núcleo interior do discurso para, a partir de sua aparição

e regularidade, passaràs suas condições externas de possibilidade.No início da sua aula

inaugural, Foucault diz que não queria ter de entrar naordem do discurso, mas a

instituição o tranqüiliza, afirmando que não tem com que sepreocupar: “estamos

todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis.”Felizmente, ao

decifrar esta ordem, Foucault também nos mostra a possibilidade desubverter suas leis