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A ocupação policial do morro da Favela no contexto do 1o Centenário da
Independência e o discurso sobre José da Barra (o “chefe de polícia” da
localidade)
Romulo Costa Mattos∗
A campanha policial
Em meados da década de 1920, diversas reportagens começaram a questionar a
condição de território das “classes perigosas” supostamente ostentada pelo morro da
Favela – atual morro da Providência, localizado na região portuária –, desde o início do
século XX. Segundo esses textos jornalísticos, esse juízo sobre a colina seria coisa do
passado; a Favela estaria “civilizada” (Cf. MATTOS, 2004). Por um lado, a
potencialização do debate sobre a identidade nacional, que vinha acompanhada da busca
e valorização da “cultura popular” por uma parcela da intelectualidade, desempenhou
um papel fundamental nesse processo. Por outro, há indícios de que houve uma forte
repressão aos “criminosos” do morro, que foi sucedida por uma política de aliança entre
a polícia e as principais lideranças locais.
Comecemos investigando a produção da coerção sobre os moradores do morro
da Favela. Uma matéria de 1926 narrou com detalhes a ação policial:
As autoridades foram lentamente dominando a Saúde, e chegaram por fim à Favela. E como ali entraram? Foram verdadeiras guerras. Subiram as primeiras caravanas policiais, e foram recebidas em atitude de luta franca. Por fim, os contingentes policiais atravessam as vielas e becos dos morros, mas de mão na Combrain. Era uma perfeita situação de expectativa armada...1
∗ Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). 1 Correio da Manhã. “Uma caravana do papa mitrado do futurismo na Favela”. 19 de maio de 1926.
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No mesmo sentido dessa reportagem, temos o depoimento do jornalista Francisco
Guimarães (1933, p. 305), vulgo Vagalume, sobre a campanha promovida pela polícia:
Favela! Quem te viu e quem te vê! Eras uma fera indomável e audacioso reduto e te impunhas pelo pavor, pelo terror que todos tinham de ti [...]. Hoje tudo mudou [...]. De 1922 para cá, quando o Dr. Carlos Sampaio, então prefeito, entendeu devastá-la, a Favela foi entregando os pontos, e, com mais outra investida, desaparecerá.
Portanto, em 1922, teria ocorrido um recrudescimento da repressão policial no
morro. É possível acreditar nesses testemunhos em coloração passadista? Não foi
possível localizar o anúncio formal de um projeto de perseguição aos “criminosos” da
colina. Mas há uma matéria de 1920, redigida no calor dos acontecimentos, que nos dá
indícios seguros de que houve um aumento da atuação policial na Favela. O título é
sugestivo: “Limpando a zona da Favela. O famoso ‘Ressaca’ foi preso ontem pela
polícia”.2 E a “cabeça”3, bastante elucidativa:
A Favela ainda não saiu do programa. Os barulhentos habitantes desse morro que serve de abrigo a toda espécie de malandros, não deixam de dar muito que fazer às nossas autoridades, que, também por sua vez, não lhes dão um momento de descanso.4
Por meio da retórica sanitarista (“Limpando”), o título salienta a existência de
uma ação policial em andamento. A primeira linha do trecho acima indica a criação de
um “programa” de combate aos “malandros” do lugar. O vocábulo “ainda” confirma a
sugestão de que o plano transcorria havia certo tempo. O restante da citação garantia
que as autoridades não dariam “descanso” aos “criminosos” do morro. Essa afirmação
também confirma uma tomada de atitude mais agressiva contra os moradores do morro,
já que as reportagens publicadas nos anos anteriores protestavam contra uma suposta
2 Correio da Manhã. “Limpando a zona da Favela. O famoso ‘Ressaca’ foi preso ontem pela polícia”. 13 de junho de 1920. 3 Lima Barreto (1976) definiu, ironicamente, a “cabeça” como uma introdução de caráter moralizador, “Feita com a moral de Simão de Nântua e a leitura de folhetins policiais”, sendo ainda “a pedra de toque da inteligência dos pequenos repórteres e dos redatores anônimos” (p. 137) . O escritor citou um jornal fictício (O Globo) que contava com um especialista nesse “gênero jornalístico [que era] tido por gênio”. Esse tipo de talento, inclusive, “lhe valia uma fama e um conceito, entre os seus, superiores aos que o Conselheiro Rui Barbosa goza em todo o Brasil” (p. 138). 4 Correio da Manhã. “Limpando a zona...”.
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ausência da polícia na localidade. Ocorria então uma mudança significativa: se antes
havia somente a acusação de que tal população não daria trégua aos policiais, nesse
momento a recíproca encontrava espaço no discurso jornalístico.
Na memória de Guimarães, o prefeito Carlos Sampaio teria sido o responsável
pela repressão policial aos moradores do morro, citando o ano de 1922 como marco. No
entanto, vimos na reportagem de 1920 que a Favela estava incluída num projeto de
segurança pública, em andamento. A ideia mais plausível é a de que esse plano deve ter
entrado em vigor antes da posse de Sampaio, a 06 de junho de 1920, tendo sido
intensificado por esse prefeito. Aquela esclarecedora matéria foi escrita sete dias após o
governante ter assumido o poder; note-se que ela abordava o recrudescimento da
empreitada:
Ultimamente, o chefe de Polícia determinou [que] fosse intensificada a campanha contra esses malandros perigosos, e assim foi destacada uma turma de agentes, chefiados pelo agente conhecido como “Cabo Elpídeo” para proceder a essa limpeza.5
A escolha de Cabo Elpídeo para chefiar tal missão não deixa dúvidas quanto ao
caráter enérgico da empreitada. O policial era também uma espécie de “valente” e tinha
em seu currículo o assassinato de Camisa Preta, um dos “malandros” mais famosos da
Primeira República.6 Orestes Barbosa (1993, p. 110) abordou o Cabo na crônica “Almas
de Bandido”, na qual, além de ter registrado a sua versão para o homicídio, afirmou que
esse homem era “famoso pela perversidade”.
O governo Carlos Sampaio é geralmente lembrado pelas grandes intervenções
operadas no tecido urbano da cidade, tendo sido escolhido para o cargo justamente pela
sua formação técnica. O seu objetivo principal era preparar a capital para as
comemorações do 1o Centenário da Independência do Brasil, o que exigiu uma
verdadeira luta contra o tempo (Cf. KESSEL, 2001). Acreditamos em que uma tarefa
dessa envergadura tenha incluído também preocupações com a segurança. Afinal,
pessoas de todas as partes do país (e mesmo do mundo) se encontrariam na cidade.
5 idem. 6 Vida Policial. “A alma encantadora e bárbara do Rio”. 24 de setembro de 1926.
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A reportagem de 1926 asseverava que a pacificação fora lenta: as autoridades
dominaram, primeiramente, o bairro da Saúde, para, somente em seguida, chegarem ao
morro da Favela.7 De fato, podemos perceber que, no início da década de 1920, a
campanha ainda não subira a colina. O procurado “malandro” Ressaca fora avistado em
um bonde, à Rua Cardoso Marinho, quando escolhia um banco para se sentar –
portanto, estava no “asfalto”. 8 Assim, a confirmação de que em 1920 a estratégia
policial se encontrava nos bairros portuários vem a seguir:
Pois bem, andando agora uma turma de agentes à cata de vagabundos, conhecidos ou não, era natural que a polícia estivesse no encalço de ‘Ressaca’ [que] procurando encontrar um meio de nunca ser descoberto pela turma que o procurava. Durante muitos dias, o ‘Cabo Elpídeo’, chefe da turma, esperou pacientemente, andou bastante e não encontrou um momento para dar um golpe seguro.9
Nesse momento, a tática passava pela espera paciente dos “criminosos”, que
seriam surpreendidos quando precisassem descer do morro. Dessa forma aconteceu a
captura de Ressaca, que “Percorreu com a vista todos os bancos para escolher um lugar,
e, quando deu com a vista na turma do pessoal da Inspetoria de Segurança, tratou-se de
safa[r]-se, sendo perseguido”. 10 É interessante notar como as representações dos
policiais destacados para “limpar”a Favela se assemelhavam às dos “malandros” pela
expressão “turma”. Aliás, as “turmas” de “criminosos” sempre tinham um “chefe”.
Tentemos concluir o que vimos até aqui.
Guimarães lembrou 1922 como um marco possivelmente por ser esse um ano
emblemático para o Rio de Janeiro. Além de ter correspondido à despedida de Carlos
Sampaio da prefeitura, a demolição do morro do Castelo, sítio histórico da cidade,
encontrava-se em estágio adiantado. Não obstante, em 1922, houve a Exposição
Internacional e as comemorações do 1o Centenário da Independência do Brasil. Esse
ano também foi marcante no plano nacional, com a Semana de Arte Moderna, a
fundação do PCB, a primeira manifestação do tenentismo e fundação do Centro Dom
7 Correio da Manhã. “Uma caravana do...”. 8 Correio da Manhã. “Limpando a zona...”. 9 idem. 10 idem.
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Vital, além da própria sucessão presidencial (Cf. FERREIRA, PINTO, 2008). Seja
como for, a luta contra os “criminosos” da Favela se iniciara, provavelmente, antes do
início da administração Carlos Sampaio, embora tenha sido avivada nessa.
Encerrada tal questão, podemos analisar a dimensão consensual da empreitada que
tinha por fim apaziguar a Favela:
A policia não podia permanecer em pelotões no morro. Veio uma perfeita situação de entente-cordiale com os mais prestigiosos dungas. As autoridades da zona tacitamente delegavam poderes a esses obedecidos homens fortes, que passaram oficiosamente a agir como representantes do comissário. Só assim se resolveu o problema da pacificação lenta da Favela. Dentro em pouco, com tais “olhos” de autoridade, foram as providências preventivas sendo tomadas. Os botequins, as bodegas, foram sendo fechados cedo. As pandegas foram sendo resolvidas com o prestígio dos chefes amigos das autoridades [...].11
Citava-se um outro estágio da operação. Os pelotões da polícia, depois de terem
subido a colina, não tinham como se manter nessa posição indefinidamente. A solução
encontrada foi negociar um acordo com os chefes locais. De um lado, os policiais não
interviriam ostensivamente no morro; de outro, as lideranças da localidade ficariam com
a obrigação de manter o seu cotidiano sob controle. Para tanto, utilizar-se-iam de
poderes delegados pelo próprio aparato coercitivo do Distrito Federal. De certa forma,
mantinha-se e até mesmo se oficializava uma tradição de não intervenção do Estado, ou
mais especificamente, da polícia na Favela.
Pode-se dizer que os policiais cariocas até tentaram fazer diferente. Temos a
informação de que em 1916 havia um posto policial no morro: “Continua a Favela,
apesar de já contar no seu intricado meandro um posto policial, incumbido de procurar
manter a ordem, a fornecer diariamente as notas mais rubras”.12 Pelo que lemos na
mesma reportagem, os agentes policiais não deviam ter muito sossego. Segundo o
jornal, Juliano de Oliveira, vulgo Marinheiro, agredira “brutalmente” um indivíduo que
cometera “a temeridade de subir o perigoso morro”. O soldado Laurindo Martins tentou
prendê-lo, mas, após sofrer agressão, pediu ajuda ao seu colega Hipollyto da Silva
Maia. Marinheiro, vendo-se então em desvantagem numérica, fugiu para a casa de
11 Correio da Manhã. “Uma caravana do...” 12 Correio da Manhã. “Cenas da Favela – Grave conflito promovido por conhecidos desordeiros”. 14 de fevereiro de 1916.
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Bernadino José Ferreira, o “chefe da malta”, formando com esse uma dupla que foi
capaz de rechaçar as duas praças. Minutos depois, esse último apareceria no posto para
vociferar contra o comandante Ramiro Medeiros Barbosa, sendo por isso detido.
A história não se encerrava aí. A caminho da delegacia do 8o distrito, Ferreira
conseguiu se livrar dos dois soldados que o acompanhavam e iniciou uma grande
confusão, pois tanto os policiais quanto o contraventor ganharam reforços. Como se
dizia na época, “o pau roncou”. A polícia recorreu a uma força de 15 praças armadas
para prender Ferreira – que levou um tiro de raspão na cabeça – e mais quatro pessoas,
que se recusaram a revelar os seus nomes. Marinheiro, por sua vez, recebeu um tiro no
braço esquerdo e outro na região glútea. O fim da matéria pode explicar o porquê de a
presença permanente da polícia na colina não ter dado certo: “Correndo mais tarde a
notícia de que o pessoal da Favela estava disposto a novas represálias, o respectivo
delegado fez aumentar o policiamento para evitar a reprodução da terrível ocorrência”.13
Ou seja, os policiais do posto deviam passar por constantes ameaças, o que certamente
exigia um efetivo maior do que a delegacia do 8º distrito podia disponibilizar. Além
disso, os conflitos no morro não cessaram por conta dessa tentativa da polícia de marcar
presença no morro – e isso deve ter exposto a ineficácia da medida. Repetiremos aqui o
início do texto, para reforçar essa ideia: “Continua a Favela, apesar de já contar no seu
intricado meandro um posto policial, incumbido de procurar manter a ordem, a fornecer
diariamente as notas mais rubras”.14
A estratégia de alianças com as lideranças da Favela deve ter sido mais
conveniente para a delegacia do 8o distrito. Conforme veremos, essa política foi
anunciada em vários momentos pela grande imprensa. Hoje os acordos entre a polícia e
os chefes das favelas são mais silenciosos; os jornais e as revistas não se perguntam
sobre tais práticas. Especulemos sobre esses líderes mancomunados com as forças
policiais e os seus respectivos compromissos.
José da Barra, o comissário de polícia da Favela
13 idem. 14 idem.
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Annibal José Ferreira e José da Barra eram os “chefes de polícia” do morro da
Favela na década de 1920, cada qual com sua zona de influência, comandando dois
“bandos perfeitamente organizados [sendo que] um não invade as atribuições do outro,
auxiliando-se, porém, quando a necessidade o exige”. 15 O repórter do Correio da
Manhã explicou melhor essa história:
A polícia por deficiência de pessoal para o policiamento das zonas escusas, lança mão, na Favela, de próprios elementos dali, para a manutenção da ordem. Criou assim, duas entidades com autoridade toda local, prestigiando-lhes a ação de modo que os pequenos fatos, esses casos de todos os dias, que preocupam sobremaneira a ação das nossas autoridades, são ali mesmo resolvidos.16
A anunciada aliança entre a polícia e as autoridades locais, ao que tudo indica, é
verdadeira. Acompanhando a saga de José da Barra – a liderança mais famosa do morro
da Favela – na grande imprensa carioca, certificamo-nos desse acordo. Devemos antes
saber um pouco mais sobre essa personagem. José Felisberto Ferreira era pardo e
contava 36 anos de idade em maio de 1920, provavelmente, o ano em que a campanha
contra os “malandros” do morro teve início.17 Natural de Barra do Piraí, chegou ainda
moço à Favela, de maneira que, em 1926, o próprio dizia que morava ali havia mais de
20 anos.18 Portanto, com pouco mais de 22 anos trazia de sua terra natal certo prestígio,
segundo um suposto depoimento citado por Benjamin Costallat (1995, p. 38), na crônica
“A Favela que eu vi...”. Tornou-se dono de um bar – à Rua do Cruzeiro, n. 2719 – e de
vários imóveis, que alugava a terceiros20, tendo uma condição financeira destacada no
contexto da Favela. A referida venda era a maior que existia na localidade: a única com
telhado feito de verdadeira telha francesa (idem).
Flagremos a imagem de José da Barra em um movimento lento de mudança. Em
1920, depois de ter atendido em seu botequim ao freguês Serafim José de Araújo (16
15 Correio da Manhã. “Uma caravana do...” 16 idem. 17 Correio da Manhã. “A Favela não nega fogo... – Uma discussão e uma facada”. 12 de janeiro de 1920. 18 Correio da Manhã. “Uma caravana do...”. 19 Correio da Manhã. “A Favela não...”. 20 Correio da Manhã. “Uma caravana do...”
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anos, negro, estivador, conhecido como Daul), a liderança do morro se viu diante de um
calote de 300 Réis. Devido à áspera exigência do bambambã, o seu cliente, embriagado,
afirmou que não lhe pagaria e que, mesmo se tivesse os cobres que faltavam para
completar a quantia, não os desembolsaria. O dono do bar não se conformou e deu um
“valente safanão” no devedor, que caiu no chão. Esse último puxou então uma faca e
feriu o seu agressor no braço, no cotovelo e no punho esquerdos, além do antebraço
direito. O homem de Barra do Piraí se “vingou” com um tiro na coxa do oponente e
fugiu logo em seguida. Consciente da lei, apareceria horas mais tarde na delegacia para
prestar depoimento, escapando ao flagrante – sem se livrar, no entanto, do inquérito.21
Em virtude dessa ocorrência, o Correio da Manhã publicou ofensas ao morro da
Favela, uma vez que fora “uma cena comum para aquela zona, mas que sempre serviu
para uma aglomeração e para os comentários dos habitantes do morro, para os quais os
encontros entre valentes, não chegam a ser novidades”. José da Barra também foi alvo
de comentários pejorativos:
Auxiliando a polícia como “comissário” da malandragem, esse indivíduo [...] abusa da proteção que lhe é dispensada, pelo seu “título”, e assim, tem cometido vários desatinos e arbitrariedades, à sombra do fechar de olhos das autoridades, muito embora seja um insolente, igual aos seus colegas de desordem, que fazem da Favela seu reduto.22
Esse trecho, além de mostrar que o morro era visto como o reduto de uma
“malandragem” nociva, evidencia a ligação da liderança com a polícia, o que nesse
momento era motivo de ironia e mesmo de censura. Fica patente que, nos primeiros
momentos de sua cooperação com os policiais, José da Barra não era bem visto pelos
jornalistas cariocas. Essa reportagem também nos permite relativizar os escritos de
1926, segundo os quais os intendentes da Favela teriam surgido após a ocupação da
localidade pelas forças policiais.23 Se em relação a José da Barra esse pensamento não
se aplica – uma vez que ele devia exercer a referida função, pelo menos, desde o início
do plano –, podemos supor que, em decorrência da intervenção policial no morro, outras
autoridades locais tenham sido designadas para ajudar na manutenção da ordem. Esse
21 Correio da Manhã. “A Favela não...”. 22 idem. 23 ibid. “Uma caravana do...”.
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seria o caso de José Annibal Ferreira, que possivelmente integrava um grau inferior na
hierarquia das lideranças da colina. Um jornalista que visitou a colina viu em José da
Barra o Mussolini de sua região – um exemplo de comando forte na Europa, em 1926.24
Outros juízos sobre o popular foram registrados por Orestes Barbosa (1993, p.
112) na crônica “A Favela”. No início do texto, as linhas dedicadas ao comandante do
morro da Favela eram, decerto, pejorativas: “Os gatunos, às horas mortas, sobem ali e
durante o dia por ali ficam, porque o chefe de polícia da Favela não é desembargador
nem general – é o José da Barra, com quem o chefe de Polícia da capital da República
não quer conversa”. Há nesse trecho uma pista de que o acordo foi uma iniciativa da
zona policial em que a Favela estava incluída, o 8o distrito: percebamos que o “chefe de
Polícia da República não quer conversa” com José da Barra. Portanto, esse documento
também mostra que, em 1922, a estratégia adotada pela polícia continuava guardando
um componente polêmico. O reforço dessa ideia está na própria sugestão de que os
“gatunos” se beneficiavam da conivência do líder da colina. Outra parte do texto nos dá
uma dimensão de seus poderes local e supralocal: José da Barra seria “cabo eleitoral de
gente importante, e, além disso, se ele quiser, ninguém sobe lá” (idem).
O interessante é que as visões negativas sobre José da Barra vinham
acompanhadas do reconhecimento de sua autoridade e da validade de sua atuação. José
da Barra seria uma “personagem que se impôs pela valentia e pelo aparente bom-senso
de suas decisões [dirigindo] tudo e a vida corre sem perturbação” (BARBOSA, 1993, p.
113). Nesse sentido, “os criminosos entendem a utilidade pública de José da Barra
[porque sem ele] o Três de Copas afanaria aquele terno de roupa do Moleque Tancredo
e seria um nunca mais se acabar” (idem). José da Barra “existe por isso: é o chefe
celerado dos celerados” (idem).
Em 1922, apesar de a tônica do discurso sobre o comandante do morro da Favela
ser de ordem pejorativa, insinuavam-se elogios sobre sua atuação. Saltando mais dois
anos, encontramos Benjamim Costallat proseando sobre uma personagem que já nos é
mais intima, o Zé da Barra. Assistamos à inegável heroicização desse popular. O autor
narrou um episódio em que, durante a epidemia de gripe espanhola, um padre subiu as
ladeiras para distribuir esmolas entre as famílias necessitadas. O que aconteceu? “Os
24 idem.
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malandros arrancaram a batina do padre, deram-lhe uma formidável surra e levaram-lhe
todo o dinheiro!” (COSTALLAT, 1995, p. 37). Aviltar um representante da religião
católica, que apenas queria prestar caridade à população do morro, era o exemplo
máximo de iniquidade. Aliás, “Nada mais comum” (idem), quanto a uma cena dessas.
“Mas, um dia, chegou à Favela um homem – Zé da Barra. Vinha da Barra do Piraí. Já
trazia grande fama. Suas proezas eram conhecidas. Era um valente, mas um grande
coração. E Zé da Barra chegou e dominou a Favela...” (idem). A partir de então, “a
Favela, que não conhece impostos, não conhece autoridades, conheceu Zé da Barra e a
ele teve que obedecer!” (idem). O homem vindo do interior do estado do Rio de Janeiro
“ficou sendo o chefe incontestável da Favela!” (idem). Tudo terminando com um ponto
de exclamação (!). A bravura do super-homem que levara a justiça à localidade era
ressaltada pelo cronista:
Para defender o seu prestígio, Zé da Barra tem a sua coragem e a sua força. E, principalmente, um formidável cacete que cai como um raio na cabeça dos malandros. Ele também é capoeira. Ele também é valente. O rei dos valentes. E, todos os dias, em rixas, em barulhos, em “bagunças”, ele tem que defender o seu reinado... (idem).
A sua representação era a de um rei que lutava cotidianamente contra os
malfeitores (no caso, os “malandros”), para garantir a estabilidade de seu reino. O início
de sua história no morro da Favela, supostamente contada pelo próprio, assemelhava-se
a uma narrativa épica:
Cheguei da Barra do Piraí ainda moço. Mas já trazia o meu prestígio. Aqui na Favela tenho lutado muito, mas tenho sido, graças a Deus, feliz! Várias emboscadas têm me sido armadas. Mas tenho me saído bem de todas elas. A última escapei por um milagre. Ia subindo o morro, tarde da noite, quando atrás das pedras alvejaram-se a tiros. Eu não via quem estava atirando, só percebia a direção de onde partiam as balas... (COSTALLAT, 1995, p. 38)
Até na aparência a liderança seria admirável: “É um mulato alto, forte,
corpulento, o ar simpático, exprimindo-se bem. Tem a fisionomia autoritária e boa de
um legítimo chefe. E como um verdadeiro chefe oferece-nos a sua hospitalidade e o seu
almoço” (idem). Percebe-se que sua fisionomia, em um invertido eco lombrosiano, seria
11
capaz de conferir bondade e legitimidade à chefia que exercia.25 Tratar-se-ia também de
um homem que se enquadrava nos valores da “civilização” por se exprimir bem. Quanto
à refeição supostamente oferecida pelo chefe, que seria prova da hospitalidade desse
último, o cronista garantia: “nunca comi uma galinha tão gostosa!” (idem).
Ao que parece, em 1924, José da Barra garantira a admiração dos letrados. No
ano seguinte, a Vida Policial reforçava a imagem do “mulato simpático, ordeiro, que
vive sorrindo [...]”. 26 Em outra referência ao cargo não-oficial que ocupava, a
publicação afirmava que ele “presta, quando lhe convém, alguns serviços à polícia do 8o
distrito”.27 Segundo a revista, o popular vivia do pequeno comércio e tivera como
companheiro (na tarefa de policiar o morro) um sujeito chamado Ricardo, “um preto
amável que faleceu há pouco tempo e que era uma espécie de suplente [...]”.28 Tanto na
crônica de Costallat, quanto na reportagem da Vida Policial, ser o chefe de polícia da
Favela não era mais motivo de ironia, sendo que no primeiro caso chegava a ser até
pretexto para elogios. O Correio da Manhã, em 1926, não veiculava uma visão muito
diferente daquela do “caboclo preto, muito simpático, respeitado pelos seus pares”.29
Na primeira metade da década de 1930, em um tom que remete à memória, essa
impressão positiva a respeito de José da Barra se imortalizava: “Ainda hoje se fala em
João da Barra, com respeito e acatamento” (GUIMARÃES, 1933, p. 302). E como
reconhecimento de sua obra: “Mais não fez, porque não lhe foi possível” (idem). O
problema aqui é que Guimarães trocou o nome do famoso morador do morro, como se
pode notar. Quanto a sua atuação em favor da manutenção da ordem, o escritor afirmou
que “no tempo em que a Favela era mesmo a zona tórrida, bancava o Grande
Chanceler, o Juiz de Paz e o Delegado de Polícia...” (idem). Depois de narrar casos em
que o homem forte da colina teria atuado como um verdadeiro poder moderador, o
jornalista encerrou tal biografia: “Eis a razão porque não se pode falar em morro da
Favela, sem citar o nome de João da Barra” (GUIMARÃES, 1933, p. 303).
25 Lombroso foi o principal expoente da antropologia criminal e achava que o tipo físico do criminoso era tão previsível que seria possível delimitá-lo de forma objetiva. (SCHWARCZ, 1993, p. 49). 26 Vida Policial. “Morro da Favela”. 15 de agosto de 1925. 27 idem. 28 idem. 29 Correio da Manhã. “Uma caravana do...”.
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Foi notório o processo de mudança operado na imagem de José da Barra durante
a década de 1920, contexto em que atuou como auxiliar de polícia no moro da Favela.
Podemos avistar o migrante de Barra de Piraí na grande imprensa quando a sua relação
com a polícia lembrava o “ódio velho” – nas palavras de Aluísio de Azevedo (S/D, p.
22) – existente entre os populares e os policiais do Rio de Janeiro. O relato de um
confronto ocorrido no morro da Favela, em 1909, citava entre as pessoas presas um tal
de “José Barra”. De acordo com as nossas contas, o então anônimo morador devia ter 25
anos de idade.
Em 1914, o trintão José da Barra já despertava a atenção dos repórteres. O
subtítulo da matéria publicada pelo Correio da Manhã anunciava: “Uma praça do
Exército vítima da gente perigosa do bando de José da Barra”.30 O crime cometido pelos
asseclas do futuro líder do morro inspirou uma caprichada “cabeça”. A primeira frase
resumia a população da localidade ao restolho do Distrito Federal: “As grandes cidades
têm o seu ponto escuso, onde se reúne a escória da sociedade”.31 O jornal prosseguia:
O Rio civiliza-se, diz-se. Abrem-se avenidas por todos os bairros, ruas novas dão à cidade o aspecto imponente de agora. Mas, ao par de tanto progresso, como uma chaga viva a corroer-lhe o corpo, ali está o morro da Favela, onde uma colméia humana se agita, se move, habitando ranchos de zinco, vivendo uma promiscuidade desoladora. É, de propósito, para fugirem à ação da autoridade policial, que cá fora havia de lhes exercer severa vigilância, desordeiros da pior espécie, ladrões, toda castra de gente baixa foi para ali, tornando a Favela um lugar perigoso.32
Depreende-se desse trecho que a Favela seria a literal negação à civilização
desenvolvida na capital da República. O esboço do pensamento de cidade como um
corpo, um sistema integrado – bastante praticado pelo urbanismo na década de 1920
(Cf. PECHMAN, 1996) –, colocava o morro como uma ferida aberta na urbe
esplendorosa. A depreciação estética aparecia na menção dos “ranchos de zinco”,
momento em que o tema da promiscuidade era lembrado – sendo esse um discurso que
rondava a população africana desde os tempos da escravidão. Por fim, a colina era
tratada como um caso de polícia, uma área de risco da cidade do Rio de Janeiro.
30 Correio da Manhã. “As tragédias da Favela – Um crime bárbaro”. 15 de dezembro de 1914. 31 idem. 32 idem.
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A composição daquela caprichada introdução se explicava pelo assassinato de
um soldado do Exército no morro. Sabino Batista Freire era inimigo de José da Barra
havia muito tempo, tendo sido a morte do primeiro tramada, “entre copos de cachaça”,
em um botequim “de última classe” situado à Rua General Pedra – portanto, o jornalista
encontrou uma forma de incluir entre as razões do “crime barbado” o consumo do
álcool, que era intensamente combatido pelos periódicos de medicina e a grande
imprensa. Vítima de uma tocaia, o soldado foi espancado e depois fuzilado pelos
amigos do bambambã. Enquanto Freire era eliminado pela gangue, o chefe
supostamente esperava a conclusão dessa ação no bar. Faziam parte da turma de José da
Barra: Ascelino José dos Santos, José Domingues, Francisco dos Santos (vulgo José
Botija), Macário Francisco dos Santos, João Ramos e Laroca. À exceção desse último,
todos foram presos.
Considerações finais
Eis a trajetória de José da Barra. Na década de 1900, não passava de um
anônimo morador do morro da Favela, que se envolvia em conflitos na mesma
localidade. No decênio de 1910, distinguia-se no banditismo da Favela como uma “alma
perversa” 33, que liderava um bando constituído por “gente perigosa”.34 Dos anos 1920
aos 1930 a sua figura foi, aos poucos, ganhando credibilidade entre os letrados. Nesse
caso, a hipótese mais adequada é a de que, à medida que o morro arrefecia os seus
ânimos, a colaboração de José da Barra à segurança da cidade ia sendo reconhecida
pelos jornalistas e os cronistas – o que diminuía a desconfiança que a sua figura
suscitava e fazia aparecer um discurso mais positivo a seu respeito.
Acreditamos em que os muitos elogios provindos de uma imprensa classista e
normalizadora, além da própria forma aberta com que o assunto foi tratado, permitam a
conclusão de que José da Barra firmara mesmo acordos com a polícia carioca. Se dessa
33 Correio da Manhã. “O célebre Morro da Favela – Um soldado do exército, depois de esfaqueado, navalhado, ferido a tiros e a cacete é atirado do morro abaixo!”. 14 de dezembro de 1914. 34 Correio da Manhã. “As tragédias da...”.
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forma, por um lado, a força policial conseguia manter a Favela sob controle, os seus
moradores, por outro, livravam-se da incômoda presença do aparato de coerção estatal
em seus limites. Assim, as autoridades delegaram poderes a chefes locais que, à sua
maneira, encarnaram o direito local e provocaram uma territorialização da Favela
(SOARES GONÇALVES, 2013, p. 77). Conforme vimos, o programa de repressão aos
“malandros” da localidade provavelmente se iniciou antes de a chegada de Sampaio à
prefeitura, embora tenha sido por ele recrudescida, em virtude da preparação da cidade
para o 1o Centenário da Independência do Brasil – que incluiu entre os seus festejos a
prestigiosa Exposição Universal (o primeiro megaevento da cidade do Rio de Janeiro?)
(Cf. NEVES, 1988).35
A Favela, decerto, conheceu outros chefes, mas somente José da Barra
conseguiu uma boa entrada na grande imprensa. Antonico do Morro, por exemplo,
“chefe do pessoal vagabundo do morro da Favela [onde tinha] foros de general”, chegou
a subornar policiais, para não ficar preso.36 Mas jamais realizou alianças duradouras
com a polícia da capital ou cozinhou uma galinha para matar a fome exótica de um
cronista. Assim, turunas como ele não foram tão longe na memória social da cidade,
num período em que o entrosamento da ordem com a desordem era especialmente
comum (Cf. CARVALHO, 1987).
Fontes
Imprensa:
Correio da Manhã – 1909, 1914, 1916, 1920, 1926.
Vida Policial – 1925, 1926.
35 A aproximação entre a transformações urbanas realizadas no início da década de 1920 e no tempo presente, em virtude da realização de megaeventos, é encontrada no texto escrito por Soares Gonçalves, Simões e Magalhães (2013). 36 Para a irritação do jornalista e a desconfiança dos funcionários do 8º distrito, um agente da brigada da polícia considerou ilegal a prisão de Antonico do Morro, que originara um grande conflito ao avançar sobre um policial. Correio da Manhã. “Grave conflagração promovida por um dos chefes do célebre morro da Favela”. 10 de janeiro de 1916.
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Obras literárias:
AZEVEDO, Aluisio. O Cortiço. O Globo/Klick Editora. S/D
BARBOSA, Orestes. Bambambã. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural,
1993.
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1976.
COSTALLAT, Benjamin. Mistérios do Rio. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, 1995.
GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. Rio de Janeiro: Typ. São Benedicto,
1933.
Bibliografia
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1987.
FERREIRA, Marieta de, PINTO, Surama Conde Sá. “A crise dos anos 1920 e a
Revolução de 1930”. In: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O
Brasil Republicano. O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à
Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
KESSEL, Carlos. A vitrine e o espelho – o Rio de Janeiro de Carlos Sampaio. Rio de
Janeiro: Secretaria de Cultura-Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.
MATTOS, Romulo Costa. A “aldeia do mal”. O Morro da Favela e a construção
social das favelas durante a Primeira República. Dissertação (Mestrado em História
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Social). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2004.
NEVES, Margarida Souza. As “arenas pacíficas”. Gávea: revista de história da arte e
arquitetura, Rio de Janeiro, abr.,1988.
PECHMAN, Roberto Moses. “O urbano fora do lugar? Transferências e traduções das
ideias urbanísticas nos anos 20”. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz, PECHMAN,
Robert (orgs.). Cidade, povo e nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SOARES GONÇALVES, Rafael. Favelas do Rio de Janeiro: História e direito. Rio de
Janeiro: Pallas: Ed. PUC-Rio, 2013.
Soares Gonçalves, R., Simões, S. S., Magalhães, Alex F. Grandes eventos, múltiplos
impactos e grandes mobilizações. O Social em Questão, v. 1, 2013.