a noção de ego em winnicot.pdf
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE CAMPINAS
CENTRO DE CINCIAS DA VIDA
SAULO DURSO FERREIRA
A NOO DE EGO NA OBRA DE
D.W. WINNICOTT
CAMPINAS
2011
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SAULO DURSO FERREIRA
A NOO DE EGO NA OBRA DE
D.W. WINNICOTT
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Psicologia, do Centro de Cincias da Vida da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.
rea de concentrao: Psicologia como
profisso e cincia
Orientador: Prof. Dr. Leopoldo Fulgencio
PUC - CAMPINAS
2011
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Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas e Informao SBI PUC Campinas
Ferreira, Saulo Durso
A noo de ego na obra de D.W Winnicott / Saulo Durso Ferreira. - Campinas. PUC:Campinas, 2011. 94P. Orientador: Prof. Dr. Leopoldo Fulgencio. Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias da Vida, Ps-graduao em Psicologia.
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Dedico este trabalho aos meus pais por
sempre colocarem a educao como
prioridade na minha vida.
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Agradecimentos
Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas...1
Agradeo primeiramente a Deus e Msica, por serem ambos imensos e que, apesar de eu
no poder ver, posso senti-los e t-los como refgio e conforto nos meus momentos de
angstia.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Leopoldo Fulgencio, por me auxiliar neste incio de carreira
acadmica, mantendo-me sempre no caminho de uma pesquisa sria e bem fundamentada.
E, apesar de todo seu rigor metodolgico, sempre oferecendo um bom acolhimento nos
momentos necessrios.
Prof. Dra. Tania Aiello Vaisberg por seus valiosos apontamentos e sugestes dadas na
data da minha qualificao, possibilitando com que novos caminhos fossem seguidos, tudo
isso dentro de um clima bem humorado e agradvel que fez por transformar a qualificao
numa experincia muito significativa.
Prof. Dra. Marcia Hespanhol que gentilmente esteve presente na minha qualificao,
oferecendo opinies que contriburam para a clareza das ideias desenvolvidas neste
trabalho.
Ao Prof. Dr. Joo Paulo Barreta por sua presena no dia da defesa da minha dissertao e
por seus ricos apontamentos.
CAPES pelo apoio e incentivo ao longo destes dois anos de estudo.
Ao meu pai por ser um grande estimulador da minha busca de conhecimento, e tambm por
me ensinar a sempre enxergar o lado bom das coisas.
minha me por ter me ensinado, mesmo que sem este intuito, a ter sensibilidade pelas
coisas do mundo, desde detalhes de uma msica triste at sacadas humorsticas de
situaes cotidianas.
minha irm e ao meu cunhado, por trazerem descontrao nos momentos de descanso e
tambm por me presentearem neste fim de percurso com um sobrinho, o Bento.
1 Trecho do poema Cano Amiga de Carlos Drummond de Andrade e transformada em msica por Milton
Nascimento.
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minha namorada, Jussara, por todo apoio, pacincia, cuidado e carinho nesta trajetria de
dois anos que durou o mestrado. Quantas vezes na praia ela dizia, Saulo v ler Winnicott.
J, muito obrigado!
Aos meus amigos de todos os dias que prefiro no citar todos para no ser injusto, caso
deixe um ou outro de fora, afinal so muitos. Agradeo por respeitarem minha ausncia
enquanto me dedicava a uma atividade ou outra do mestrado. Finalmente quando me virem
no vo perguntar e como anda a dissertao?
Aos meus amigos da PUCCamp: Priscila, Renata, Lucas, Marlia, Ricardo, Slvia, Carolina,
Cludia, Fernanda, Joo, Carla, Raquel Guzzo, Ana Paula, por estarem ao meu lado ao
longo de todo este percurso e por serem pessoas queridas que me auxiliaram em muitos
momentos, tanto na parte tcnica, lendo meu trabalho por exemplo, at o auxlio afetivo,
seja em uma conversa, seja em um vamos tomar um caf.
Aos meus professores de toda a vida.
Margaret Pela por ter feito a reviso deste trabalho, por todo o seu cuidado e ateno.
E, por fim, agradecer ao Prof. Arialdo Germano (Ari) por todo nosso percurso junto,
inicialmente como meu professor e que hoje est no papel de meu aluno de violo.
Ao Prof. Antonio Carlos Possa por todo carinho e bom humor com que sempre me tratou ao
longo da minha especializao no IPPESP, e ao Prof. Dr. Joaquim Coelho Filho, que me
acolheu perdido no fim da graduao indicando um caminho a seguir, ensinou-me a ler
Winnicott, ensinou-me o que tica na profisso e o que tica na vida. Joca, obrigado
pelas broncas, e que elas no cessem.
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RESUMO
FERREIRA, Saulo Durso. A noo de ego na obra de D.W. Winnicott. 2011. 94f. Dissertao (Mestrado em Psicologia) Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias da Vida, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Campinas, 2011.
Este trabalho tem como objetivo fazer um estudo crtico da noo de ego na obra de
Winnicott. Tomam-se, como linha organizadora deste estudo, os trabalhos em que
Winnicott trata diretamente da questo, assim como de crticas feitas por ele a
outros autores no que se refere ao tema. Em primeiro lugar, procura-se explicitar as
teses gerais de Freud e Klein sobre a noo de ego por serem estes dois autores, as
principais influncias de Winnicott. Ser tambm explicitada a noo de ego
desenvolvida por Fairbairn, dado que o dilogo e o posicionamento de Winnicott em
relao s concepes de Fairbairn um fator significativo para a compreenso das
concepes elaboradas por Winnicott. Em seguida, procura-se esclarecer as noes
de self, ego, EU SOU, e narcisismo primrio, em Winnicott, mostrando que para ele
no h, no incio, um ego primordial, dada a grande imaturidade do beb. Esta
posio de Winnicott o levar a uma concepo diferente daquela proposta por
outros autores clssicos da psicanlise, mais ainda, ele apresentar dois sentidos
para a noo de ego. Primeiro, como uma tendncia inata do indivduo a se integrar,
levando assim a uma teoria sobre a constituio do ego como uma unidade a ser
conquistada a partir da qual relaes objetais possam ser estabelecidas.Segundo,
Winnicott refere-se ao ego como sendo a expresso dos diversos tipos de
integrao que se referem constituio e unidade do sujeito psicolgico. O
esclarecimento e a compreenso que Winnicott tem dos processos de integrao do
ego contribuem tanto para compreender as dinmicas que compem as fases mais
primitivas do desenvolvimento, quanto contribuem para clarificar em que sentido a
teoria psicanaltica se desenvolveu com a obra deste autor.
Palavras-chave: Ego. Self. Ambiente. Imaturidade. Integrao.
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ABSTRACT
FERREIRA, Saulo Durso. The concept of ego in the work of D. W. Winnicot. 2011. 94f. Dissertao (Mestrado em Psicologia) Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias da Vida, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Campinas, 2011.
This work aims to make a critical study of the concept of ego in the work of Winnicott.
The main stream of this study is the works in which Winnicott directly addresses the
question as well as the criticisms he made to other authors with regard to this
subject. Firstly, it is explained the general theories of Freud and Klein on the concept
of ego because these two authors are the main influences of Winnicott. It is also
explained the concept of ego, developed by Fairbairn since the dialogue and position
of Winnicott towards Fairbairns ideas is a significant factor for understanding the
concepts elaborated by Winnicott. Then it attempts to clarify the notions of self, ego, I
AM, and primary narcissism according to Winnicott, showing that for this author, at
the beginning, there is not a primordial ego, due to the great immaturity of the baby.
This position of Winnicott will lead him to a different concept from that proposed by
other authors from classical psychoanalysis, even more, he will present two
meanings for the notion of ego. First, as an individual's innate tendency to integrate,
thus leading to a theory about the formation of the ego as a unity to be achieved from
which object relations can be established Second, Winnicott refers to the ego as the
expression of various types of integration that refer to the constitution and unity of the
psychological subject. Winnicotts clarification and understanding of the integration
processes of the ego contribute both to understand the dynamics that make up the
earliest phases of development, and help to clarify the sense in which psychoanalytic
theory has developed with the works by this author.
Keywords: Ego. Self. Environment. Immaturity. Integration.
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SUMRIO
INTRODUO 11
1 Apresentao e objetivos.................................................... 11
2 Justificativa........................................................................... 15
3 Mtodo................................................................................... 19
4 Desenvolvimento.................................................................. 21
CAPTULO 1
BREVES EXPOSIES DA NOO DE EGO PARA FREUD,
KLEIN E FAIRBAIRN............................................................................
24
1.1 Esclarecimentos sobre a traduo do termo ego........... 24
1.2 A noo de ego para Freud............................................... 25
1.3 A noo de ego em Klein.................................................. 29
1.4 A noo de em Fairbairn................................................... 32
CAPTULO 2
WINNICOTT E A NOO DE EGO.......................................................
36
2.1 Contexto e estilo................................................................ 36
2.2 A teoria do amadurecimento em linhas gerais .............. 40
2.3 O uso da palavra ego ao longo da obra de Winnicott.... 46
2.4 A noao de ego em Winnicott........................................... 61
2.5 O ego em um contexto que envolve os conceitos de:
narcisismo primrio, eu e no-eu, EU SOU e Self...................
70
CONSIDERAES FINAIS......................................................... 78
REFERNCIAS............................................................................ 84
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INTRODUO
___________________________________________
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11
INTRODUO
1 Apresentao e Objetivos
A unidade do sujeito psicolgico, tomada como parmetro para a
construo de quadros nosolgicos, um dos fundamentos da psiquiatria moderna.
Foucault (2008), analisou a histria da psiquiatria esclarecendo que, como
necessidade de considerar a totalidade psicolgica em relao patologia mental
(p.14), a doena era, ento, considerada como uma desorganizao das estruturas
da personalidade, e assim, as psicopatologias ficaram divididas em dois grandes
grupos: as neuroses e as psicoses. Enquanto na primeira a perturbao era em um
setor da personalidade, na segunda a perturbao dava-se de maneira
generalizada.
De acordo com Foucault as psicoses seriam:
Perturbaes da personalidade global que comportam: um distrbio do pensamento (pensamento manaco que foge, corre, desliza em associaes de sons ou jogos de palavras; pensamento esquizofrnico, que salta, pula por cima dos intermedirios e avana aos solavancos ou por contrastes); uma alterao geral da vida afetiva e do humor (ruptura do contato afetivo na esquizofrenia; intensas coloraes emocionais na mania ou na depresso); uma perturbao do controle da conscincia, da perspectivao dos diversos pontos de vista, formas alteradas do sentido crtico (na parania (sic), crena delirante em que o sistema de interpretaes antecipa as provas de sua exatido e impermevel a qualquer discusso; indiferena do sujeito paranoide pela singularidade da sua experincia alucinatria, que tem para ele valor de evidncia). (2008, p.14).
Do outro lado, afetando um aspecto da personalidade estavam as
neuroses, que de acordo com autor apresentam as seguintes caractersticas:
[...] ritualismo dos sujeitos obcecados a respeito deste ou daquele objeto, angstia provocada por determinada situao na neurose fbica. Porm, o curso do pensamento permanece intacto na sua estrutura, conquanto seja mais lento nos sujeitos psicastnicos; subsiste o contato afetivo, com o risco de ser exagerado at a susceptibilidade pelos sujeitos histricos. Por fim, o sujeito neurtico, mesmo quando apresenta obliteraes de conscincia como o sujeito histrico ou impulsos incoercveis como o sujeito obcecado, conserva a lucidez crtica a respeito dos seus fenmenos mrbidos. (Foucault, 2008, p.14).
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Desta forma o parmetro de avaliao das psicopatologias, assim como o
elemento em que ela se desenvolve, passou a ser personalidade estruturada, sendo
ela simultaneamente a realidade e a medida da doena (Foucault, 2008, p.15). Foi
dentro deste cenrio, a psiquiatria do fim do sculo XIX, que Freud iniciou seus
primeiros trabalhos e, assim como Foucault, considerava as neuroses e psicoses
como os dois grandes grupos de afeces psicolgicas, no entanto, o seu critrio de
avaliao da doena era o ego: A neurose seria o resultado de um conflito entre o
ego e o Id2, ao passo que a psicose seria o resultado de uma perturbao nas
relaes que o ego mantm com o mundo externo. (Freud, 1923b, p.95).
Freud toma como pessoa, pelo menos inicialmente, a noo de ego
(Laplanche & Pontalis, 2004; Lins, 2002) e assim fica claro que, de acordo com suas
formulaes, tanto nas psicoses quanto nas neuroses, trata-se de perturbaes
psicolgicas em uma pessoa inteira, indo ao encontro daquilo formulado por
Foucault. O modelo de pessoa total, ou seja, de um sujeito dotado de um ego coeso,
inteiro e com capacidade de estabelecer relaes objetais desde seu nascimento,
passou a servir de modelo para construes tericas posteriores. Klein (apud
Hinshelwod, 1992), por exemplo, ainda que considerasse a presena de cises no
ego, atribua ao beb capacidades extremamente sofisticadas pressupondo uma
pessoa total, um ego maduro lidando com objetos externos, com capacidade de
odiar e de sentir inveja. Contudo, apesar de ser um ponto de concordncia de muitos
autores tambm ser o ponto de discrdia de outros, como o caso de D. W.
Winnicott.
Winnicott fazia parte da Sociedade Britnica de Psicanlise, mais
precisamente do denominado Grupo do Meio (Kohon, 1994), tendo sido influenciado
principalmente por Sigmund Freud e por Melanie Klein. Entretanto, apesar de sua
base terica estar sob estes dois autores fundamentais, Winnicott fez mudanas
significativas em aspectos tericos e na prtica clnica, (Greenberg & Mitchell, 1994;
Bleichmar, 1992; Abram, 1996), que o levou ao afastamento de alguns conceitos
clssicos at ento estabelecidos. Para ilustrar um desses distanciamentos segue
uma crtica em relao ao tipo de paciente que a psicanlise toma como bsico na
sua abordagem:
2 Considerarei o id dentro de uma leitura que, como Winnicott faz, considera-o como sinnimo de
instintualidade.
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As mais importantes contribuies de Winnicott psicanlise comeam com sua observao de que a teoria clssica e o tratamento psicanaltico de neurose tomam como base algo muito bsico: que o paciente uma pessoa. Com isso ele quer dizer que se supe que o paciente tem uma personalidade unificada e estvel, disponvel para a interao com outros. (Greenberg & Mitchell, 1994, p.140).
Winnicott (1960c) deixa isso claro ao afirmar que as formulaes de Freud
sobre os mecanismos de defesa do ego pressupe uma separao do self e a
estruturao do ego (p.42), e com isso, dois problemas so ignorados, os pacientes
que no so pessoas3 e aqueles com dificuldades relacionadas aos primeiros
processos desenvolvimentais (Greenberg & Mitchell, 1994).
Nesta mesma direo, Winnicott (1965va) critica o trabalho de Klein em
relao questo da posio depressiva. Primeiramente aponta esta formulao
terica como de igual importncia ao conceito freudiano de Complexo de dipo e,
ao fim, faz o seguinte comentrio:
Este se relaciona com o relacionamento a trs pessoas e a posio depressiva de Klein se relaciona com o relacionamento a duas pessoas o do lactente com a me. O principal ingrediente o grau de organizao e a fora do ego no beb e na criana pequena e por esta razo difcil colocar o incio da posio depressiva antes dos 8-9 meses, ou de um ano (Winnicott, 1965va, p.160).
Conceber um relacionamento entre duas pessoas j envolve, como o
prprio nome sugere, a existncia de uma pessoa, que no contexto da teoria
winnicottiana tem como condio um ego coeso e integrado capaz de estabelecer
relaes. Em outro momento, Winnicott (1959) critica a formulao de Klein sobre a
inveja em um beb que para ele s pode ocorrer em um estado de coisas muito
complexo (p.340). A discordncia em relao a estes perodos em que ainda no h
uma pessoa no se limitou teoria de Freud e Klein. Este mesmo tipo de crtica foi
feito em relao a Ronald Fairbairn, que tinha uma proposta audaciosa (Winnicott,
1953i; Greenberg & Mitchell, 1994): rever a teoria freudiana e, de forma indireta,
modificar a teoria kleiniana, colocando a qualidade do objeto como a caracterstica
principal da energia libidinal, considerando assim, como fundamental, a relao do
indivduo com um outro real e disponvel. A crtica de Winnicott (1953i) est na
3 Em uma nota de rodap Phillips (2006) faz a seguinte afirmao: Era, claro, a luta do
desenvolvimento do indivduo para atingir relacionamentos entre pessoas inteiras, o que distinguia a contribuio de Winnicott psicanlise. (p.64).
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maneira pela qual Fairbairn concebe o beb humano em seu estado inicial, como um
indivduo com capacidades sofisticadas: Fairbairn comea por um beb que um
ser humano total, um ser que experiencia a relao com o seio como um objeto
separado, um objeto que experienciou e a respeito do qual tem idias (sic)
complicadas. (p.318).
Para Winnicott (1988), chegar a um estado de desenvolvimento em que
se possa dizer que h uma pessoa inteira se relacionando com pessoas inteiras
decorrente de uma srie de processos integrativos:
[...] a partir de uma interao primria do indivduo com o ambiente, surge um emergente, o indivduo que procura fazer valer seus direitos, tornando-se capaz de existir num mundo no-desejado; ocorre ento o fortalecimento do self como uma entidade, uma continuidade do ser onde, e de onde, o self pode (emergir) como uma unidade, como algo ligado ao corpo e dependente de cuidados fsicos; e ento advm a conscincia (awareness) (e a conscincia implica na existncia de uma mente) da dependncia, e a conscincia quanto a confiabilidade da me e de seu amor, que chega criana sob a forma de cuidados fsicos e adaptados necessidade; ocorre ento a aceitao pessoal das funes e dos instintos e seus clmaxes, o gradual reconhecimento da me como outro ser humano, e junto a isto a mudana da ruthleeness em direo ao concern; e ento h o reconhecimento do terceiro, e do amor complicado pelo dio, e do conflito emocional [...]. (Winnicott, 1988, p.26).
Winnicott trata dos perodos do acontecer humano desde os estgios
mais primitivos at os mais maduros, sendo esta continuidade caracterizada por
uma srie de processos integrativos. Todavia, apesar da centralidade da questo na
obra do autor, a definio e a caraterizao de cada um destes processos no est
clara ao longo de seus escritos, como por exemplo, a questo da gnese e
desenvolvimento do ego do beb. Existem textos em que ele trata diretamente da
questo (Winnicott, 1965n), fazendo certos desenvolvimentos e caracterizaes, que
no esto presentes em outros momentos da sua obra. O mesmo ocorre com
preciso terminolgica4, utilizando a palavra ego e self aparentemente como se
fossem sinnimas, fato apontado por comentadores de sua obra, como Adam Philips
(2006), e tambm por ele prprio em uma resposta a Fordham (Winnicott, 1964h) em
que admite o uso indiscriminado das duas palavras.
4 Nas obras em portugus tambm encontramos problemas na traduo, como no texto Desenvolvimento
Emocional Primitivo do livro Da Pediatria Psicanlise em que para a traduo da palavra Self (do original) o tradutor utiliza o vocbulo eu, termos que no possuem o mesmo significado dentro da obra de Winnicott. Desta forma, visando uma maior preciso daquilo que escrito por Winnicott, neste trabalho ser tomado o cuidado de sempre se buscar nos textos originais em ingls os termos especficos.
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Como visto, os aspectos que formam este processo nem sempre esto
bem esclarecidos e, desta forma, este trabalho tem como objetivo identificar e
descrever a dinmica do amadurecimento emocional na direo de uma das funes
integrativas: a gnese e desenvolvimento do ego, dentro da obra de Winnicott. Para
isso sero retomados, ainda que de maneira geral, a noo de ego estabelecida por
Freud, Klein e Fairbairn, no como critrio de comparao, mas para compor o
cenrio em que Winnicott iniciou o desenvolvimento de suas formulaes sobre o
tema. Uma vez dado o contexto, aborda-se propriamente a noo de ego
apresentada na obra de Winnicott, fazendo as devidas distines, quando
necessrias, das noes de Self, eu e no-eu, EU SOU e Narcisismos primrio.
Um trabalho que tem como objetivo clarificar e sistematiza a noo de
ego pra Winnicott, possibilita o emprego mais preciso do termo, evitando-se assim
utilizaes dbias em relao a outros processos integrativos que ocorrem ao longo
do desenvolvimento psico-afetivo do ser humano. Apesar de estes termos
representarem formulaes estritamente tericas, a delimitao de cada um deles
traz consequncias clnicas, por justamente refinarem o instrumento que auxilia na
execuo da prtica, seja na compreenso de um quadro clnico, seja no tipo de
manejo oferecido pelo terapeuta a cada paciente.
2 Justificativa
Laplanche e Pontalis (2004) apontam que a noo de ego levantou o
interesse de muitos autores da psicanlise, ampliando e diversificando o termo ao
longo de sua histria. A compreenso do surgimento do ego e/ou do seu
funcionamento nas fases mais primitivas do desenvolvimento uma questo
fundamental, tanto para a prtica clnica (em especial com pacientes que tm
dificuldades na constituio do seu ego) quanto para a teoria psicanaltica do
desenvolvimento afetivo. Para Miller (2002) muitos psicanalistas supem que o ego
seja o ponto de Arquimedes da psicanlise, o ponto a partir do qual todo e
qualquer trabalho e estudo pode ser desenvolvido.
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Na Teoria do Amadurecimento de Winnicott a constituio do ego um
dos aspectos determinantes para a sade da vida psquica nas fases mais primitivas
do desenvolvimento emocional. Winnicott (1965n) chama a ateno para o que
ocorre com os bebs que no recebem cuidados suficientemente bons e acabam,
com isso, no recebendo o apoio egoico de que necessitam para que possam se
desenvolver:
Aqui preciso interromper a seqncia (sic) de idias (sic) para examinar o destino do beb que no tem cuidados suficientemente bons no estgio precoce antes de ter distinguido o eu do no-eu. Este um tema complexo por causa dos graus e variantes que pode apresentar a ineficincia materna [...]. (Winnicott, 1965n, p.57).
Fica claro como Winnicott associa a falha no cuidado materno com a
fragilidade egica do beb e consequentemente o aparecimento de diversos tipos de
psicopatologias, dentre elas a esquizofrenia infantil ou autismo, esquizofrenia
latente, defesa do falso self e caractersticas esquizoides.
Com os aspectos desenvolvidos acima possvel concluir que o estudo
da origem e desenvolvimento do ego traz consequncias e contribuies no s
para a teoria e desenvolvimento da psicanlise, mas tambm para o manejo e
prtica clnica no que se refere, principalmente, s psicoses e aos indivduos com a
constituio do ego fragilizado.
Alguns autores da psicanlise contempornea tm apontado para a
importncia, originalidade e criatividade da obra de Winnicott. Uma tradutora de
Winnicott para a lngua francesa, Jeannine Kalmanovitch, juntamente com Anne
Clancier, referem-se a ele como psicanalista criativo com noes extremamente
originais. (Kalmanovitch, 1984, p.13).
Adam Phillips (1988) tambm destaca a originalidade da obra de
Winnicott e as mudanas feitas por ele na teoria psicanaltica, Elsa Oliveira Dias
(2003) aponta algumas das mudanas citadas por Phillips:
Enfatizando a originalidade da teoria winnicottiana do processo de amadurecimento e a diferena que a separa tanto da teoria freudiana do desenvolvimento das funes sexuais quanto das posies kleinianas, ele afirma que Winnicott no apenas introduziu importantes inovaes na teoria e na prtica psicanalticas, como a sua teoria leva a rupturas em relao a Freud. (Dias, 2003, p.22).
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Greenberg & Mitchell (1994) classificam Winnicott como extremamente
inovador e influente para a psicanlise. Thomas Ogden (2002) considera que a
psicanlise teve vrios pensadores, no entanto, [...] apenas um grande autor de
lngua inglesa: Donald Winnicott. (p.737). Bleichmar & Bleichmar (1992), ao se
referirem ao grupo britnico, destacam que Winnicott figura em um captulo
separado, em funo da grande difuso que sua obra alcanou.5
No Brasil, Jos Outeiral (2002) destaca o interesse que a teoria
winnicottiana tem promovido, [...] vivemos hoje uma espcie de boom de interesse
no pensamento de Winnicott. (p.757). Neste mesmo artigo, Outeiral apresenta
dados de uma pesquisa realizada e apresentada em 1995 no Congresso
Internacional de Psicanlise da Associao Psicanaltica Internacional, em que
Winnicott aparece como o autor mais citado6 nos trabalhos publicados.
Zeljko Loparic (1997) no s destaca a originalidade da teoria de
Winnicott como reivindica a edificao de um novo paradigma7 dentro da
psicanlise. Com isso, de acordo com Dias (2003), Loparic confere uma
originalidade mais radical (p.32) que aquela apresentada por Phillips.
Um estudo envolvendo os processos integrativos na obra de Winnicott foi
realizado por Toledo (2008), em que a autora buscou retomar as trs tarefas bsicas
no processo de amadurecimento emocional: a integrao, a personalizao e a
realizao. O trabalho no tem como objetivo apresentar grandes desenvolvimentos
para alm daquilo que Winnicott j havia escrito, no entanto, apresenta as ideias
envolvidas nestes processos de maneira linear, a fim de esclarecer cada uma delas.
O presente trabalho, contudo, busca retomar estes processos, mas tem como
objetivo focalizar na primeira das tarefas, a integrao do ego, assim como as
dificuldades na preciso dos termos utilizados neste incio primitivo do ser humano.
A questo da preciso dos termos, principalmente do ego e self, j foi
questionada por autores importantes, mas ainda assim, em trabalhos atuais
possvel verificar a utilizao ainda confusa, como no intitulado: A constituio do
5 cf. Bleichmar & Bleichmar, 1992, p. 210.
66 Estudo feito comparando a influncia na Amrica Latina de trs analistas da Sociedade Britnica: Winnicott,
Klein e Anna Freud. 7 De acordo com a noo de paradigma apresentada por Thomas Kuhn (1970) em seu livro A estrutura das
revolues cientficas.
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eu de crianas cegas congnitas (Amiralian, 2007), que apresenta o seguinte ttulo
em ingls The ego development of children with cogenital blindness, tomando a
palavra eu por ego, termos que assumem significados diferentes na obra de
Winnicott. A autora reconhece a problemtica envolvendo os termos, mas no
apresenta qualquer soluo para isso, preferindo manter o uso indiscriminado, como
possvel concluir na passagem abaixo:
Em outras partes de sua obra, como assinalado por Dias (2003) antes de 1962, utilizou os termos self ou ego sem fazer uma distino clara entre eles. Assim, ao falarmos sobre a construo do eu das crianas cegas desde o nascimento, poderemos algumas vezes estar nos referindo ao self ou ao ego, embora posteriormente Winnicott tenha feito diferenciaes entre eles. (Amiralian, 2007, p.137)
A autora mantm em aberto a questo considerando que ao tratar da
questo do estabelecimento do eu poder estar se referindo tanto a ego quanto
self. De alguma forma isso acaba por perpetuar uma confuso j apontada anos
atrs pelo prprio Winnicott. O trabalho desenvolvido nesta dissertao tomar o
cuidado de fazer as devidas diferenciaes, mesmo nos perodos anteriores a 1962,
ano em que Dias (2003) considera o marco da utilizao mais precisa da palavra
ego. Um trabalho de diferenciao precisa das palavras ego e self na obra Winnicott,
foi realizado por Lins (2002), em que a autora faz uma anlise precisa da utilizao
dos termos em perodos distintos da obra do autor e ento, ao fim, apresenta a
delimitao mais segura. Diferentemente do que foi feito por Lins, o presente
trabalho no tem como objetivo as diferenciaes entre os dois termos, mas sim
focalizar na noo de ego para Winnicott e, quando necessrio, distinguir de outros
aspectos do processo integrativo.
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3 Mtodo
Este um trabalho que visa fazer uma anlise crtica sobre a noo de
ego para Winnicott, um trabalho de histria do desenvolvimento das ideias.
Tratando-se de uma pesquisa terica, o objeto de estudo corresponde obra
winnicottiana, focada num determinado tema, o que implica em dizer que feita uma
anlise conceitual, estrutural e sistemtica desta totalidade. Podemos reconhecer no
mtodo8 hermenutico de interpretao e leitura uma indicao da metodologia
utilizada, pois este preconiza que as partes de uma obra sejam entendidas dentro de
seu contexto total, e que o todo da obra deve ser iluminado por cada uma de suas
partes. Este movimento Schleiermarcher (apud Lawn, 2007) denomina de crculo
hermenutico:
Existe uma oposio entre a unidade do todo e as partes individuais do trabalho, de forma tal que a tarefa seja organizada em duas partes, por exemplo: entender a unidade do todo atravs das partes individuais e o valor das partes individuais atravs da unidade do
todo. (p.68)
Para a compreenso da totalidade de um trabalho necessrio, de
acordo com Gadamer (2008), um movimento de se projetar a cada sentido que
aparece no texto, projetar-se visualizando o sentido geral da obra, pois quem l, j
parte com certas expectativas baseadas em um projeto precedente. Estas
expectativas, ao mesmo tempo em que determinam a busca, tambm so
modificadas ou enriquecidas pelo encontro com o contedo, refinando cada vez
mais a qualidade da busca. A compreenso, desta forma, tem como uma de suas
caractersticas a movimentao pelo texto:
Quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar. To logo aparea um primeiro sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem l o texto l a partir de determinadas perspectivas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreenso do que est posto no texto consiste precisamente na elaborao desse projeto prvio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se d conforme se avana na penetrao do sentido. (Gadamer, 2008, p.356)
8 Este mtodo de pesquisa utilizado pelo Prof. Dr. Leopoldo Fulgencio em seu grupo pesquisa da
Pontifcia Universidade Catlica de Campinas.
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Esse mtodo, que se aplica adequadamente aos trabalhos de cunho
filosfico, no corresponde, entretanto, ao que est sendo aqui realizado, dado que
foi tomada como referncia de apoio uma determinada compreenso do todo
(respaldada na interpretao da obra de Winnicott feita por alguns de seus
comentadores). Essa compreenso do todo serve como uma perspectiva de
interpretao das partes em que Winnicott se refere noo de ego. Esse tipo de
concepo metodolgica toma, pois, o mtodo hermenutico de interpretao e
leitura da obra de um autor ou de um campo especfico de teoria cientfica, como um
indicar do estudo terico a ser feito. Em seguida, delimita esse tipo de estudo
(delimita o mtodo) para fazer uma interpretao da obra desse autor (ou campo) a
partir de uma determinada perspectiva terica geral (uma determinada concepo
do todo, j construda em funo da considerao da histria do autor, do horizonte
de sua poca, das discusses epistemolgicas e conceituais que foram dedicadas a
sua obra). Desse "todo", assim concebido, tem-se uma perspectiva de interpretao,
pesquisa, leitura e compreenso de um tema especfico na obra de um autor ou em
um determinado campo da cincia. Alm disso, a teoria (o todo, aqui) utilizada
como um instrumento que auxilia na compreenso dos problemas e/ou fenmenos a
serem tratados. Deste modo, a teoria corresponde ao instrumento que torna possvel
formular e resolver problemas de um determinado campo cientfico.
Para tal feito foi realizada uma busca nas obras de Winnicott, para
determinar os textos em que a noo do ego foi abordada. A anlise comea com
um trabalho de 1934 Urticria papular e dinmica da sensao cutnea" (1934c) at
os trabalhos feitos na dcada de 1970, com o objetivo de compreender os sentidos
dados pelo autor noo de ego ao longo dos anos. Em seguida, foi feita uma
seleo dos textos que mais poderiam contribuir com a tarefa, no sentido de
abordarem a questo do ego de maneira mais profunda e precisa, tais trabalhos so:
Desenvolvimento emocional primitivo (1945); A Agressividade em relao ao
desenvolvimento emocional (1950); Psicose e cuidados maternos (1952); W. R.
D. Fairbairn (1953); Aspectos clnicos e metapsicolgicos da regresso no contexto
analtico (1954); Formas clnicas da transferncia (1955-56); A preocupao
materna primria (1956); A tendncia antissocial (1956); Distores do ego em
termos de falso e verdadeiro self (1960); A capacidade de estar s (1958);
Teoria do relacionamento paterno infantil (1960); A integrao do ego no
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desenvolvimento da criana (1962); O medo do colapso (1963); Da dependncia
independncia no desenvolvimento do indivduo (1963); O valor da depresso
(1963); O relacionamento inicial entre uma me e seu beb (1964); O recm-
nascido e sua me (1964); C. G. Jung (1964); A psicologia da loucura (1965);
Uma nova luz sobre o pensar infantil (1965); Localizao da experincia cultural
(1967); Natureza Humana (1954-67); Sum: eu sou (1968) e Sobre as bases para
o self no corpo (1970).
Alm dos textos acima destacados de Winnicott, so utilizados trabalhos
de alguns comentadores desse autor, de mbito nacional e internacional, com o
objetivo de clarificar as discusses apresentadas. Os comentadores internacionais
utilizados so os que fazem discusses profundas sobre os seguintes autores: Adam
Philips, Bleichmar & Bleichmar, Jan Abram, Guntrip, Masud Khan e Greenberg &
Mitchell. No mbito nacional so utilizados comentadores que se preocupam em
localizar e compreender o trabalho dos autores dentro do contexto da histria da
psicanlise, tal como faz Dias, Loparic e Fulgencio.
4 Desenvolvimento
Para estabelecer consideraes sobre a noo de ego em Winnicott, o
seguinte percurso proposto:
No captulo 1 feita uma breve discusso sobre a questo da melhor
traduo do termo alemo Ich: a escolha feita por Strachey em traduzir o termo por
ego, e as edies brasileiras atuais que, nas tradues dos textos freudianos, tm
preferido a utilizao da palavra Eu. Verifica-se se esta escolha feita para a obra
de Freud pode ser aplicada aos escritos winnicottianos, visto que o Eu em Winnicott
uma conquista dentro do processo de desenvolvimento. Em seguida apresenta-se
em linhas gerais a noo de ego desenvolvida por Freud, com as formulaes
iniciais da histeria dentro de um conjunto que possa se chamar de ego no sentido do
indivduo na sua totalidade. So retomados textos em que aparecem modificaes
expressivas da noo de ego e, finalmente, a exposio das formulaes que Freud
fez a partir de 1923, quando ofereceu um modelo tripartido do psiquismo. Tanto a
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formulao inicial quanto a modificao de 1923 ser a base do pensamento que
influenciar Winnicott.
Na sequncia so expostas algumas consideraes feitas por Klein sobre
a noo de ego, ainda que comentadores de sua obra reconheam que em Klein o
termo no utilizado de maneira to precisa quanto Freud o fez. O objetivo
mostrar que Klein concebe um ego primordial com capacidades sofisticadas. Ainda
dentro desta linha, traz-se as propostas feitas por Fairbairn em relao noo de
ego, pois ele, de maneira mais direta que Winnicott, procura modificar conceitos
clssicos da psicanlise, mas ainda assim concebe o beb humano como uma
pessoa total desde seu nascimento, dotado de um ego muito maduro para um
recm-nascido. 9
O captulo 2 traz a compreenso geral da teoria winnicottiana, tratando,
inicialmente, da localizao histrica e cultural do autor, assim como de seu estilo de
trabalho. Na sequncia dado o panorama do processo de amadurecimento
emocional proposto por ele, com destaque para os perodos mais primitivos do
processo de amadurecimento emocional, o papel do ambiente no desenvolvimento
saudvel, assim como as psicopalogias decorrentes de uma possvel falha
ambiental, e a conquista da existncia sentida como real. Em seguida, h uma
exposio cronolgica dos trabalhos em que a questo do ego abordada,
procurando apresentar o sentido dado pelo autor em cada uma delas, a fim de
compreender o sentido da noo de ego predominante na totalidade de sua obra.
Por fim, o captulo 3 apresenta como se d a constituio do ego para
Winnicott, sua gnese, desenvolvimento, assim como sua importncia dentro do
processo de amadurecimento pessoal. Este captulo tambm tem como objetivo
delimitar a questo egica, diferenciando de outros aspectos integrativos do
desenvolvimento emocional primitivo: narcisismo primrio, eu e no-eu, Eu Sou e
Self.
9 Haveria um trabalho a ser feito pesquisando os diversos estudos feitos por psicanalistas e por todos
aqueles que se dedicaram a explicitar a maneira como nasce o ego. Contudo, no esta a pretenso deste trabalho, e sim mostrar como Winnicott o fez, e explicitar isso na sua obra, uma vez que no muito claro ao longo de seu trabalho. De todo modo isso contribui para esta questo da gnese das psicoses e das condies para que a neurose exista.
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CAPTULO 1
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1 BREVES EXPOSIES DA NOO DE EGO PARA FREUD,
KLEIN E FAIRBAIRN
1.1 Esclarecimento sobre a traduo do termo ego
A obra de Freud, originalmente escrita em alemo, foi traduzida para uma
srie de idiomas, tendo como a principal verso a inglesa, escrita por James
Strachey. A importncia da edio inglesa tamanha que passou a ser considerada
paradigmtica, e esta edio:
Tambm incorporou nela certos textos ausentes da edio original. Isso contribui para fazer da Standard a mais influente edio das obras de Freud, mais utilizada, no mundo inteiro, que a mencionada coleo alem (as Gesammelte Werke [Obras completas] em dezoito volumes). Seria preciso remontar Vulgata de So Jernimo num paralelo exagerado, e certamente sacrilgio para imaginar um conjunto de livros que tivesse uma to vasta influncia na cultura ocidental. (Souza, 2010, p.84).
Contudo, alguns termos traduzidos por Strachey acabaram perdendo seu
sentido original, que foi o caso das instncias psquicas: Ich e Es, que receberam
o nome de ego e id e que teriam como melhor escolha a traduo para: I e it
(Souza, 2010). Sendo assim, a edio brasileira tomando como base a edio
inglesa, manteve ego e id, ainda que, no Vocabulrio de Psicanlise (Laplanche
& Pontalis, 2004) aparea como opo de traduo o vocbulo eu baseado no
original francs moi. Nos ltimos anos, no entanto, o Brasil adotou uma traduo
vinda diretamente do original em alemo e desta forma, semelhante traduo
francesa: Ich passou a ser traduzido com a palavra Eu em letra maiscula.
Aqui se encontra uma questo importante a se destacar, em Winnicott no
possvel considerar o Ich como I, ou seja, tomar ego como sendo Eu, pois para
o autor trata-se de palavras que denominam estgios e funes diferentes dentro do
processo integrativo humano. A exemplo disso est uma passagem em que
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Winnicott (1958g) procura descrever o estgio do eu estou s e que, segundo o
autor, inicialmente deve-se considerar a palavra eu (I) que j indica muito
crescimento emocional. O indivduo se estabeleceu como unidade. A integrao
um fato (Winnicott, 1958g, p.34). Existe ainda outra questo a ser considerada que
a traduo das obras de Winnicott para o Portugus, que por vezes toma a palavra
self por eu (Winnicott, 1945d), o que no . O objetivo aqui no fazer um trabalho
de filologia, mas fundamental destacar que Winnicott usa cada um destes termos
(ego; I; me; self) de maneira especfica e isso deve ser preservado a fim de que sua
obra seja compreendida em sua totalidade. Desta forma, para manter este trabalho
com coerncia na preciso de seus termos ser mantida a traduo de Strachey de
Ich para ego, ao ser tratada esta noo para Freud, Klein e Fairbairn.
1.2 A noo de ego para Freud
A presena da noo de ego dentro da histria da psicanlise longa,
estando presente desde os escritos iniciais de Freud at seus ltimos trabalhos.
Contudo houve um processo de desenvolvimento desta noo, a princpio sendo
utilizada como sinnimo da personalidade como um todo e que, ao longo do
desenvolvimento da teoria psicanaltica, foi sofrendo modificaes e acrscimos no
que se refere a sua concepo, gnese, desenvolvimento e funo. No caberia
apresentar todo este processo de desenvolvimento da noo de ego dentro da teoria
freudiana, visto que este no o objetivo deste trabalho. No entanto, localizar alguns
momentos em que ela aparece em sua obra mostra-se de grande valia, por Freud
ser, ao lado de Melanie Klein, a maior influncia, pelo menos naquilo que se refere
psicanlise, de Winnicott (Phillips, 1988).
Apesar dos diferentes usos do termo ego, pode-se considerar que Freud
utilizou o termo em basicamente dois sentidos: o de pessoa e o de instncia
psquica. Esta ideia reforada em um comentrio editorial da Standard Edition of
the Complete Psychological Works of Sigmund Freud:
Parece possvel detectar dois empregos principais: um em que o termo distingue o ego (Self) de uma pessoa como um todo (incluindo, talvez, o seu
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corpo) das outras pessoas, e outro em que denota uma parte especfica da psique, caracterizada por atributos e funes especiais. (Freud, 2007, p.17).
Considerar o sentido de pessoa e de instncia psquica est, de acordo
com Laplanche & Pontalis (2004), no centro da problemtica do ego. No entanto,
esta ambiguidade no significa um erro de Freud, mas algo proposital a ser
respeitado e compreendido. A seguir ser apresentado um breve percurso indicando
os sentidos tomados pela noo de ego ao longo da obra freudiana.
Os primeiros escritos de Freud datam do final do sculo XIX como, por
exemplo, o intitulado: Estudos Sobre a Histeria (1895d), perodo em que Foucault
(2008) localiza o incio da psiquiatria moderna. As psicopatologias eram
contextualizadas dentro das alteraes e das afeces da personalidade,
considerando-a como uma unidade permanente. O caso da histeria, por exemplo,
era compreendida por Janet (Foucault, 2008), decorrente de uma personalidade que
no dava conta em perceber todos os fenmenos deixando de lado eventos que se
desenvolveriam sozinhos, e desta forma a doena seria um desdobramento da
personalidade em uma parte comum e uma anormal. Freud, contudo, modifica esta
ideia, interpretando como uma soluo neurtica para um conflito psquico. Para ele
no se tratava de uma incapacidade da personalidade em contemplar todos os
eventos, mas sim uma forma de defesa da personalidade contra representaes
inconciliveis com o ego. Em suas palavras: O ego do paciente teria sido abordado
por uma representao que se mostrara incompatvel, o que provocara, por parte do
ego, uma fora de repulso cuja finalidade seria defender-se da representao
incompatvel. (Freud, 1895d, p.276).
Em um trabalho posterior Freud tece novas consideraes e trata mais
diretamente a questo do ego, atribuindo a ele agora uma estrutura semelhante a de
uma rede de neurnios catexizados, e que como condio de sua existncia deveria
inibir as demandas inconscientes, ou como ele mesmo nomeia, os processos
psquicos primrios (Freud, 1895/1995c). Esta funo inibidora ir possibilitar ao
indivduo discernir os processos internos da realidade, assim como o critrio de
diferenciao entre a percepo e a lembrana. Agora o ego vai deixando, cada vez
mais, de possuir o sentido de conjunto do indivduo, ou conjunto do aparelho
psquico, e passa a ser, apenas uma das partes do conjunto. Alm disso, o carter
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exclusivamente consciente do ego modificado, por haver nele caractersticas
inconscientes, Freud afirma que efeitos que normalmente s se encontram nos
processos primrios acompanham um processo do ego (Freud, 1895/1995c).
Contudo, Greenberg & Mitchell (1994) afirmam que desde o incio Freud atribua ao
mecanismo de represso uma excluso intencional por parte do ego, mas que nem
por isso tratava-se de um ato consciente.
Laplanche & Pontalis (2004) definem os anos de 1900 at 1915 como um
perodo de hesitaes naquilo que se refere noo de ego, no entanto, Freud
(1914c) publica o trabalho Introduo ao narcisismo que traz contribuies
importantes para o desenvolvimento das ideias que envolvem a questo egica.
Neste texto aponta que algo lhe chamou a ateno: o fato de que caractersticas de
condutas narcsicas eram encontradas em pessoas com outros tipos de distrbios,
e, indo mais alm, Freud passa a reivindicar um lugar ao narcisismo no
desenvolvimento regular do ser humano, um lugar entre o autoerotismo e o amor
objetal (Freud, 1914c, p.14).
Nesta nova formulao o autor faz a seguinte considerao:
[...] uma suposio necessria, a de que uma unidade comparvel ao ego no existe desde o comeo do indivduo; o ego tem que ser desenvolvido. Mas os instintos autoerticos so primordiais; ento deve haver algo que se acrescenta ao autoerotismo, uma nova ao psquica, para que se forme o narcisismo. (Freud, 1914c, p.19).
De acordo com Greenberg & Mitchell (1994), ao ter concebido o
narcisismo como uma catexia libidinal do ego, Freud colocou o ego no papel de
objeto, pois o objeto de amor passa a ser definido pela semelhana com o prprio
ego do indivduo, ideia que pode ser vista na seguinte afirmao: Claramente
buscam a si mesmas como objeto amoroso, evidenciando o tipo de escolha de
objeto que chamaremos de narcsico. (Freud, 1944c, p.32). (grifo do autor)
Em 1923, Freud volta a abordar o assunto de maneira profunda e direta
partindo da noo de ego no sentido original de 1895. Neste trabalho, Freud (1923b)
apresenta um modelo tripartido do psiquismo, composto por id, ego e superego,
descrevendo cada uma destas instncias, assim como seu surgimento e
funcionamento, alm de sua localizao e pores conscientes e inconscientes. O
ego, de acordo com Freud (1923b): [...] resultou do processo de diferenciao que
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se deu na superfcie do Id (p.38), tornando-se assim uma parte do id que foi
modificada.
Laplanche & Pontalis (2004) escrevem que a partir de ento ocorre uma
ampliao das funes do ego, tais como: o controle da motilidade e percepo, a
prova da realidade, ordenao temporal dos processos mentais, entre outras. Um
exemplo disso a passagem em que Freud (1923b) chama a ateno para outro
aspecto fundamental na compreenso da origem do ego e de sua diferenciao com
o id, onde considera que [...] o ego sobretudo um ego corporal [...] (p.38),
exercendo o tato e a dor um papel importante em sua constituio.
Mas talvez a principal funo do ego seja seu papel de mediador das
exigncias instintuais do id com a realidade externa (representada psiquicamente
pelo superego), mantendo assim a autopreservao: Assim, o ego combate em
duas frentes: tem de defender sua existncia contra um mundo externo que o
ameaa com a aniquilao, assim como contra um mundo interno que lhe faz
exigncias excessivas. (Freud, 1940a, p.81).
Em outro momento deste mesmo trabalho, ele caracteriza os dois plos
distintos que o ego tem de lidar, em relao ao mundo externo:
[...] desempenha esta misso dando-se conta dos estmulos, armazenando experincias sobre eles (na memria), evitando estmulos excessivamente intensos (mediante a fuga), lidando com estmulos moderados (atravs da adaptao) e, finalmente, aprendendo a produzir modificaes convenientes no mundo externo, em seu prprio benefcio (atravs da atividade). (Freud, 1940a, p.12).
Mais adiante, descreve a relao do ego com o id: [...] ele desempenha
esta misso obtendo controle sobre as exigncias dos instintos, decidindo se elas
devem ou no ser satisfeitas, adiando essa satisfao para ocasies e
circunstncias favorveis no mundo externo ou suprimindo inteiramente as suas
excitaes. (Freud, 1940a, p.12).
So estas exigncias instintuais, provenientes do id, que so suprimidas
pelo ego, seguindo as ordens do superego, dando origem aos recalques. Entretanto,
os contedos recalcados se apresentam de outra forma para tentar burlar a barreira
do recalque, dando origem a um sintoma, que o ego passar a combater, originando
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assim a neurose, ou ainda em suas palavras: Vemos, assim, que o ego, colocando-
se a servio do superego e da realidade, acabou entrando em conflito com o Id.
isso que ocorre em todas as neuroses de transferncia. (Freud, 1923b, p.96).
No caso das psicoses, os impedimentos decorridos da realidade externa
so sentidos como insuportveis e esta passa a ser rejeitada. O ego ento recria a
realidade externa de acordo com os desejos do Id. No entanto, como postula Freud
(1924b) [...] o mundo interno nada mais do que uma cpia do mundo externo
(p.96), ele tambm recriado pelo ego, ficando as duas realidades externa e interna
sob o domnio onipotente do eu.
Poderiam ser feito maiores desenvolvimentos naquilo que se refere s
psicoses em Freud, no entanto, o objetivo aqui no descrever, ou detalhar as
afeces psicolgicas, mas sim apenas sinalizar o sentido que a noo de ego tem
dentro dos dois grandes grupos, neuroses e psicoses. Desta forma, este trabalho se
limitar a apenas fazer as indicaes cabendo ao leitor interessado o
aprofundamento em cada uma destas difceis questes.
1.3 A noo de ego em Klein
Greenberg & Mitchell (1994) consideram que havia uma lacuna at por
volta da dcada de 1920 na conceptualizao das neuroses nas crianas, visto que
as teorias sobre a infncia eram baseadas em relatos de adultos trazendo suas
lembranas. Esta lacuna passou a ser preenchida com o trabalho desenvolvido por
Melanie Klein, que conheceu a obra de Freud e passou a estud-la e, encorajada
por seu analista Sandor Ferenczi, passou a aplicar os conhecimentos adquiridos no
atendimento de crianas.
A princpio, Klein procurou aplicar o mesmo mtodo utilizado nos adultos,
acessando os contedos inconscientes atravs da fala usando a livre associao de
ideias. Contudo, este mtodo se mostrou ineficaz e ento, ela passou a usar a
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brincadeira para acessar conflitos infantis: [...] para Klein, brincar serve a uma
funo central na economia psquica da criana, significando uma representao
dos seus mais profundos desejos e medos inconscientes. (Greenberg & Mitchell,
1994, p.9).
Klein estava interessada nas psicopatologias infantis e, desta forma,
passou a buscar a compreenso da origem destas afeces nos perodos mais
precoces do desenvolvimento humano. Com isso desenvolveu uma teoria que
contemplasse todos os processos envolvidos no desenvolvimento psicolgico desde
o incio da vida, e assim abordou questes fundamentais da psicanlise como, por
exemplo, a noo de ego, a natureza das pulses, o superego, entre outras.
Diferentemente de Freud em que a noo de ego pode ser vista sob duas
perspectivas, como pessoa ou como instncia psquica, em Klein a noo de ego
assume basicamente uma posio baseada na segunda tpica freudiana da
tripartio do aparelho psquico em id, ego e superego (Klein, 1991a). Ainda que
partindo da segunda tpica, as formulaes kleinianas a respeito das trs instncias
psquicas no correspondem exatamente s proposies feitas por Freud, como por
exemplo, o superego, que para ele, surge no final do processo de resoluo do
conflito edpico, sendo o herdeiro do complexo de dipo (Freud, 1923), quando
para Klein (1991b) o superego est presente em um perodo anterior:
Enquanto Freud via o superego como advindo da resoluo da fase edipiana no fim da era infantil, as investigaes de Klein revelaram figuras de superego anteriores, na forma de severas crticas e auto-acusaes (sic) acompanhando as primeiras fantasias edipianas. (Greenberg & Mitchell, 1994, p.90).
Assim como o superego, que no detm o mesmo sentido dado por
Freud, o ego concebido por Klein tambm diferente, desde sua origem at sua
funo. Se para Freud seria o fim de um processo de diferenciao de uma parte
cindida do id, ou seja, inicialmente haveria o id e s secundariamente apareceria o
ego, para Klein no possvel esta mesma concluso. Afinal, para ela, o ego estaria
presente desde o nascimento, com delimitao e com a capacidade de se identificar
com objetos (Hinshelwood, 1992). Assim, buscar qual a gnese do ego para Klein
seria desnecessrio, tendo em vista que ele j est presente desde o incio da vida
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humana. Todavia vale responder pergunta sobre qual seria o papel inicial, ou
ainda como chamou Hinshelwood, o primeiro ato do ego.
Nos primeiros escritos de Klein a primeira funo exercida pelo ego era a
de desviar a pulso de morte para fora do indivduo: Esta medida aparentemente
muito arcaica de defesa por parte do ego, cuja violncia excessiva neste estgio
inicial seria assim explicada pelo fato de tratar-se de uma ramificao de pulses
destrutivas muito intensas [...] (Klein, 1996, p.288).
Ser este processo de externalizao da pulso de morte pelo ego que
dar origem ao superego:
O ego, apoiado pelo objeto bom internalizado e fortalecido pela identificao com ele, projeta uma parte da pulso de morte naquela parte de si que foi escindida, uma parte que vem a ficar em oposio com o restante do ego e forma a base do superego. (Klein, 1991b, p.240)
Uma vez que o superego surge a partir do ego eles passam a se
relacionar; as foras do ego passam a reagir umas sobre as outras e isso
determinar todo o curso do desenvolvimento do indivduo. (Klein, 1997, p.244).
Em outro momento de sua obra, ao conceituar a posio depressiva
(Baranger, 1981) Klein faz algumas modificaes em sua teoria, com a nfase cada
vez maior na fantasia, ampliando assim as noes de mundo externo e interno e os
processos de projeo e de introjeo. A posio depressiva figura como um
aspecto de maturidade no desenvolvimento, pois envolve se relacionar no mais
com um objeto parcial, cindido, e sim com um objeto total, por possuir aspectos bons
e maus em si mesmo. O que ir possibilitar a passagem da incorporao parcial
para a total ser o ego (Klein, 1935).
Nesta breve exposio possvel verificar como Klein utiliza a noo de
ego em mais de um sentido ao longo de sua obra, e de uma maneira menos precisa
do que aquela formulada por Freud (Hinshelwood, 1992). Greenberg & Mitchell
(1994) apontam um ponto de diferenciao fundamental entre os dois autores em
relao a esta questo:
No modelo estrutural de Freud, o ego neutro em relao s pulses. Sua tarefa a de negociar um equilbrio entre o id, o superego e o mundo externo. Embora Klein retenha a linguagem estrutural de Freud, o ego, na
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sua abordagem, um protagonista principal dentro das lutas dinmicas internas, intimamente identificado com o amor e o instinto de vida. (p.104).
Mesmo com todas as diferentes concepes possvel notar que o ego
para Klein possui funes e caractersticas sofisticadas desde o seu surgimento,
com o nascimento do beb, sendo este justamente um dos pontos em que Winnicott
criticar o trabalho de Klein. A funo desta breve exposio do que Freud e Klein
concebem por ego serve to somente para contextualizar o clima terico em
Winnicott desenvolveu suas ideias.
1.4 A noo de ego em Fairbairn
Ronald Fairbairn teve um papel de extrema importncia no
desenvolvimento da teoria psicanaltica, sendo, ao lado de Harry Sullivan, o principal
responsvel da mudana do modelo estrutural-pulsional para o modelo estrutural-
relacional (Greenberg & Mitchell, 1994, p.111).
Fairbairn10 concebe uma teoria de relaes objetais que tem servido de
base para teorias psicanalticas atuais, propiciando tambm modificaes no manejo
clnico para alm da interpretao clssica e oferecendo novas compreenses da
transferncia e contratransferncia dentro do setting (Pereira, 2002).
A noo de ego est presente em grande parte de sua obra, e sua
concepo mostra-se diferente e original em relao a formulaes de outros
psicanalistas. Ele no parte de um ego que se diferencia do id, como o fez Freud.
Para o autor existe um ego unitrio com energia libidinal prpria, buscando relaes
com objetos externos reais e, se essas relaes forem satisfatrias, ele se mantm
10
Alguns autores consideram a teoria de Fairbairn intimamente relacionada com a teoria kleiniana como, por exemplo, Otto Kernberg (Person, Cooper, Gabbard, 2007). Winnicott compactua com esta opinio, mas critica a utilizao que Fairbairn faz de termos criados por Klein sem fazer as referncias devidas a ela. Os termos a que Winnicott se refere so: a posio depressiva, paranoide e esquizoide (Winnicott, 1953I). No entanto, esta afirmao de Winnicott no pode ser considerada completamente correta, pois de acordo com Hinshelwood (1992) Klein que se apropria da noo de posio esquizide de Fairbairn, para conceituar e denominar a chamada posio esquizoparanoide. Hinshelwood ainda enumera uma srie de aspectos tericos que diferenciam as proposies feitas pelos dois autores, o que deixa a questo da intimidade terica entre ambos como discutvel e que necessita de um estudo mais aprofundado.
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33
coeso e inteiro, mas caso sejam insatisfatrias, estabelecem-se objetos internos
compensatrios. Se houver uma proliferao de objetos internos, o ego se
fragmentar, a ciso do ego uma conseqncia (sic) desta proliferao de objetos
internos, uma vez que pores diferentes do ego permanecem relacionadas a
diferentes objetos internos (Greenberg & Mitchell, 1994, p.120). Esta formulao, no
entanto, no se refere apenas a um quadro psicopatolgico, pois para o autor, a
ciso, em maior ou menor grau, uma caracterstica universal do indivduo. (Scharff,
2005).
Para Fairbairn, o aspecto central do desenvolvimento emocional uma
seqncia (sic) natural, maturacional, de relaes com outros (Greenberg &
Mitchell, 1994, p.118). O primeiro relacionamento do beb com a me e se
caracteriza por um aspecto gratificante e um no gratificante. Este ltimo aspecto se
divide em um sentimento de rejeio e um de esperana. A criana ento
experincia a me de trs formas: como me gratificante, me sedutora e me
privadora. Como o relacionamento original com a me externa real torna-se
insatisfatrio, internalizado (Greenberg & Mitchell, 1994, p.121). Esta
internalizao resulta em trs objetos internos, correspondendo aos trs aspectos de
relacionamento externo com a me. Parte do ego integral dirigido para fora cindido
e cada parte se liga a um objeto interno.
Fairbairn denominou como objeto excitante, aquela poro decorrente do
aspecto no gratificante e que foi experienciado pelo beb como um sentimento de
esperana; a poro do ego ligada a este objeto recebe o nome de ego libidinal
(Fairbairn, 1981). O ego antilibidinal (Fairbairn, 1981) fica ligado ao objeto rejeitante,
que corresponde experincia no gratificante com o sentimento de rejeio. E por
fim, tem-se o objeto ideal, que contm os aspectos gratificantes da experincia com
a me e este que ficar ligado ao restante do ego, chamado de central. Este ltimo
tambm aquela parte do ego ainda disponvel para relaes com pessoas reais
no mundo externo (Greenberg & Mitchell, 1994, p.121).
Com isso, possvel chegar a um dos pontos centrais da teoria de
Fairbairn: a ideia de que o ego e o objeto so inseparveis (Fairbairn, 1981). O autor
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considera que um objeto sem qualquer poro correspondente do ego
emocionalmente irrelevante [e ainda, que o ego] cresce atravs de relaes com
objetos (apud Greenberg & Mitchell, 1994, p.121).
esta fragmentao do ego e a ligao das pores aos objetos internos
que daro origem s psicopatologias: Cada tipo de perturbao est relacionado
com um manejo especial de objetos bons e maus, atravs de diferentes
modalidades de relao: oral, anal e flica. (Bleichmar & Bleichmar, 1992, p.201).
O indivduo com caractersticas obsessivas retm ambos os objetos (bom
e mau) como internos e procura domin-los. O fbico trata os objetos como externo
e procura fugir do objeto mau, se refugiando no objeto bom. O movimento de
externalizar o objeto mau, para poder odi-lo caracterstico da dinmica paranoide.
Por fim, o indivduo com caracterstica histrica faz o oposto do paranoide, isto ,
externaliza o objeto bom e se liga com toda fora a ele, em seu mundo externo, ao
mesmo tempo em que internaliza e rechaa seu objeto mau no seu mundo interno
(Fairbairn, 1981).
A ideia de que o ego est primeiramente ligado a um objeto externo traz
outra mudana de ponto de vista para um termo clssico da psicanlise: o conceito
de narcisismo primrio. Tal conceito no faz sentido nesse contexto, visto que desde
o incio o beb est orientado para um objeto externo, orientada para a realidade, a
me [e o aparente caos inicial no beb refletiria apenas] inexperincia (Greenberg
& Mitchell, 1994, p.115). A escolha de Fairbairn neste ponto do trabalho se d pelo
fato de ele oferecer uma teoria do desenvolvimento, que contempla uma noo de
ego bastante rica e complexa, proporcionada talvez por sua empreitada de rever a
teoria freudiana. Alm disso, a proximidade de suas ideias com as de Winnicott j foi
comentada por autores importantes, como Guntrip (2006) e at mesmo Winnicott,
que, em certa altura de sua vida, coloca-se em concordncia com formulaes feitas
anteriormente por Fairbairn (Winnicott, 1989f, 1953c, 1955c).
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CAPTULO 2
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2 WINNICOTT E A NOO DE EGO
2.1 Contexto e estilo
Para compreender a natureza do trabalho de Winnicott fundamental,
dentre outras coisas, observar o clima terico em que ele estava inserido. Winnicott
fazia parte da Sociedade Britnica11, fundada por Ernest Jones e que teve como
grande caracterstica a traduo da psicanlise de uma teoria de desejo sexual
para uma teoria do cuidado materno (Phillips, 1988). Entre os anos de 1928 e 1938
teve aquilo que Masud Khan chamou de perodo mais vivo e criativo (Winnicott,
1958a) principalmente pela presena e trabalho de Melanie Klein no atendimento
psicanaltico infantil.
Assim como Klein, atendendo crianas, tambm estava Anna Freud,
contudo, o trabalho desta ltima no recebia o mesmo prestgio dos
desenvolvimentos kleinianos, deixando um clima desconfortvel dentro da
Sociedade e causando a ira do criador da psicanlise: [...] Freud ficara muito irritado
pela recepo positiva dada pela Sociedade Britnica a Melanie Klein e suas idias
(sic), enquanto que, ao mesmo tempo, se ofendera com os ataques crticos e
pessoais feitos sua filha. (Kohon, 1994, p.21).
No demorou para que o ambiente se tornasse inspito culminando em
uma ciso da Sociedade em dois grupos: de uma lado os seguidores de Klein e do
outro os de Anna Freud12. No entanto, alguns psicanalistas, como por exemplo,
11
Fundada em 1913 com o nome de Sociedade Psicanaltica de Londres (Kohon, 1994), mas que logo se dissolveu porque um dos membros favorecia Jung (Winnicott, 1958s). Em 1919 ressurgiu finalmente denominada Sociedade Psicanaltica Britnica. 12
Roudinesco (1994), em acordo com uma afirmao de Winnicott, aponta que a a questo da formao dos analistas passou a ser o centro dos debates; para os seguidores de Anna Freud a anlise deveria ter como objetivo desfazer o recalque e reduzir os mecanismos de defesa a fim de aumentar o controle do ego sobre o id; j os kleinianos tinham como base uma (continua...)
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Fairbairn, Bowlby, Balint e Guntrip, preferiram no se filiar a nenhum dos dois
grupos, caracterizando assim um terceiro grupo denominado Independente ou
Grupo do meio (Kohon, 1994). Winnicott, apesar da influncia que receberia do
trabalho de Klein, no se filiou ao seu grupo, mantendo-se assim como mais um dos
independentes.
Antes de iniciar sua carreira como psicanalista Winnicott atuava como
pediatra e s ento, tempos depois, ao entrar em contato com o trabalho A
interpretao dos sonhos de Freud (Phillips, 1988), passa a se interessar pela
psicanlise. Em 1923 Winnicott, movido por motivos particulares (Kahr, 1997)
aconselhado por Ernest Jones a iniciar uma anlise com Strachey13, e neste mesmo
perodo se candidata a uma vaga na Sociedade Psicanaltica Britnica (Kohon,
1994). Com sua formao peditrica somada experiencia psicanaltica, Winnicott
se tornou o primeiro psicanalista homem a atender crianas na Inglaterra e assim
obtinha uma experincia nica (Phillips, 1988).
Estava iniciando como pediatra consultor por essa poca, e podem imaginar como era excitante obter inmeras histrias clnicas e conseguir de pais sem instruo do hospital-escola a confirmao que algum poderia precisar para as teorias psicanalticas que comeavam a fazer sentido para mim atravs de minha prpria anlise. Naquele tempo nenhum outro analista era pediatra ao mesmo tempo, e assim, por outras duas ou trs dcadas fui um fenmeno isolado. (Winnicott, 1965va, p.157).
Neste perodo, todas as questes em psicanlise tinham como
fundamento o Complexo de dipo. No entanto, o autor constatava, em sua prtica
clnica com crianas, dificuldades no processo de amadurecimento emocional
anteriores ao dipo. Ele reconhecia que a origem nas neuroses estaria diretamente
relacionada ao complexo, no entanto existiam dificuldades no processo de
amadurecimento emocional que comeavam antes (Winnicott, 1965va).
Sua opinio em relao aos problemas anteriores ao Complexo de dipo
assim como outras descobertas decorridas de sua prtica clnica, foram ao encontro
s ideias kleinianas e, percebendo isso, seu analista James Strachey sugeriu que
ele procurasse conhecer o trabalho de Klein:
(continuao...) leitura da segunda tpica inversa, ou seja, a anlise se iniciaria sem se preocupar com o controle do id sobre o ego e sim, tinha como objetivo o reconhecimento da primazia do vnculo transferencial e analis-lo de sada. (Roudinesco, 1994, p.205). 13
Kahr (1997) acusa James Strachey de ter cometido uma vergonhosa violao de tica (p.53) ao revelar questes ntimas da sexualidade de Winnicott sua esposa Alix Strachey.
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Se est aplicando teoria psicanaltica a crianas, deveria travar conhecimento com Melanie Klein. Ela foi atrada Inglaterra por Jones para fazer a anlise de algum muito especial para Jones; ela est afirmando algumas coisas que podem ou no ser verdade, e deve descobrir por si mesmo pois no conseguir o que Melanie Klein ensina em minha anlise de voc. (Winnicott, 1965va, p.158).
Winnicott segue o conselho dado por Strachey e procura Klein. Ao faz-lo,
chega concluso de que passara a ser um estudante que deveria aprender com
esta mestra pioneira, e a partir de ento aprendeu psicanlise com Melanie Klein
(Winnicott, 1965va). Esta constatao foi, de acordo com Winnicott, muito difcil.14
Alguns autores consideram que o trabalho de Winnicott de fato, no pode
ser compreendido sem referncias a Klein (Phillips, 1988, p.31), mas apesar da
clara influncia kleiniana em seu pensamento, Winnicott deixa claro, anos depois,
que de fato no se considera seu seguidor. Ele no s reivindica por um lugar
autnomo como critica a situao em que se via, de um lado Anna Freud
considerando-o kleiniano e, por outro, sua postura em no concordar com Klein e
seus seguidores, sendo obrigado, desta forma, a abandonar sua experincia ao
ensino de psicanlise (Winnicott, 1989f, p.439).
Com esta mesma postura se refere importncia das ideias de Freud em
seu pensamento, reconhece a influncia e vai mais longe ao se considerar
freudiano, mas com a ressalva de que no segue fielmente a tudo aquilo que Freud
formulou:
O leitor deveria saber que sou um produto da escola freudiana ou psicanaltica. Isto no significa que eu considere automaticamente como sendo verdade tudo o que Freud disse ou escreveu, o que em todo caso seria absurdo j que Freud estava desenvolvendo, ou seja, mudando, seus pontos de vista (de uma maneira ordenada, como qualquer outro cientista) por toda extenso de sua vida at sua morte em 1939. (Winnicott, 1965t, p.29).
Esta postura de Winnicott figura como uma das caractersticas de seu
estilo de pensar, em que, na maioria das vezes, afirma concordar com ideias
clssicas, mas ao utiliz-las em seu prprio trabalho modifica-lhes o sentido
originalmente dado, Greenberg & Mitchell (1994), em tom de crtica, consideram que
14
Phillips (2006) complementa esta citao com a seguinte afirmao: em qualquer direo qual ele comeasse a se dirigir, ele encontrava Melanie Klein j no caminho de volta (p. 76).
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Winnicott modificava os conceitos clssicos de Freud e Klein de acordo com seu
interesse pessoal:
Winnicott conserva a tradio de uma maneira curiosa, em grande parte distorcendo-a. A sua interpretao dos conceitos freudianos e kleinianos to idiossincrtica e to pouco representativa da formulao e inteno originais deles a ponto de torn-las s vezes, irreconhecveis. Ele reconta a histria das idias (sic) psicanalticas no tanto como ela se desenvolveu, mas como ele gostaria que tivesse sido, reescrevendo Freud para torn-lo um predecessor mais claro e mais fcil da prpria viso de Winnicott. (Greenberg & Mitchell, 1994, p.139).
Muito de seu estilo marcado por no se prender aos textos originais.
Khan conta em uma passagem a maneira curiosa pela qual Winnicott aborda um
trabalho escrito. Se o texto lhe causar aborrecimento cair no sono, ou, por outro
lado, se o livro o interessar comear a reescrev-lo imediatamente.15
Winnicott comenta o seu prprio estilo de escrita referindo-se a si mesmo
como um menino de nove anos que desde esta idade no amadureceu seja em
esprito ou estilo (apud Khan, 1991, p.44).
O mesmo tipo de caracterstica est presente em seu manejo clnico,
descrevendo a psicoterapia como duas pessoas brincando juntas (Winnicott, 1968i,
p.59)16. Parece que as coisas para Winnicott deveriam acontecer de uma forma que
partissem dele, de seu gesto espontneo, qualquer tentativa de algo vir de fora ou
de outra pessoa, ou fora do tempo adequado cairia em um vazio, em um artigo
radicalmente inovador (Phillips, 1988). Winnicott faz a seguinte afirmao quanto a
seu mtodo de trabalho:
No pretendo apresentar em primeiro lugar uma resenha histrica, mostrando o desenvolvimento de minhas ideias a partir das teorias de outras pessoas, porque minha mente no funciona desta maneira. O que ocorre que eu junto isto e aquilo, aqui e ali, volto-me para a experincia clnica, formo minhas prprias teorias e ento, em ltimo lugar, passo a ter interesse em descobrir de onde roubei o qu. Talvez este seja um mtodo to bom quanto qualquer outro. (Winnicott, 1945d, p.218).
15
Masud Kahn na introduo do livro Da Pediatria Psicanlise (Winnicott, 1958a). 16
Masud Khan (1991) ao comentar sobre o livro de Winnicott O brincar e a realidade faz a seguinte observao gosto do ttulo que voc escolheu, s que no fica claro que se trata do seu brincar D.W.W., com a realidade deles. D.W.W. riu. (p.67).
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2.2 A teoria do amadurecimento em linhas gerais
A teoria do amadurecimento de Winnicott busca compreender os estgios
do desenvolvimento emocional humano partindo dos estados mais primitivos, um
estgio to imaturo do desenvolvimento que sequer pode ser considerado que ali
haja uma unidade humana, at os estgios mais maduros em que h um indivduo
saudvel. Assim como a elucidao dos meios sadios deste processo, ele tambm
localiza as vias pelas quais o desenvolvimento impedido de ocorrer, resultando
nos diversos quadros de uma existncia adoecida. Esta ideia parte de uma
concepo de um ser humano como uma amostra-no-tempo da natureza humana
(Winnicott, 1988, p.29), a existncia humana seria um recorte dentro de uma linha
do tempo, onde ocorreriam tais processos maturacionais. Desta forma essencial
considerar o que h neste incio de recorte temporal, ou ainda, da vida humana: um
ser humano dotado de uma tendncia inata ao amadurecimento e que depender
dos cuidados ambientais para que tal tendncia possa se concretizar: o indivduo
herda um processo de amadurecimento, que o faz progredir na medida em que
exista um meio ambiente facilitador e somente na medida e que ele exista
(Winnicott, 1974, p.71).
Winnicott concebe um beb humano prematuro que se no fosse a me
para juntar-lhe as partes ele no sobreviveria. A dependncia em relao me, ou
ao cuidado materno, no entanto, no seria uma condio presente apenas nos
estgios iniciais, mas tambm seria um trao caracterstico de todo o processo de
amadurecimento. Se para Freud o homem era o animal ambivalente, para Winnicott
este seria o animal dependente (Phillips, 1988). Desta forma ele atribui, ao ser
humano em desenvolvimento, diferentes estgios de dependncia do ambiente.
Inicialmente uma dependncia do tipo absoluta, passando por estgios de
dependncia relativa at chegar ao que se poderia chamar de independncia
(Winnicott, 1965vc).
Em relao ao ambiente, Winnicott tambm atribui diferentes tipos de
cuidados a serem oferecidos. Ainda pensando nos estgios mais primitivos, o que o
beb necessita neste perodo ser mantido vivo, ou mais precisamente na
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linguagem winnicottiana, ter sua existncia assegurada, afinal, inicialmente, o beb
s existe sob os cuidados da me. Em uma passagem, Winnicott (1958d) ilustra
como se deu conta desta formulao em que a princpio no h um beb:
[...] me ouvi dizendo aqui, nesta Sociedade (uns dez anos atrs), e dizendo-o de modo enftico e acalorado: Isso que chamam de beb no existe. Fiquei alarmado ao me ouvir pronunciar essas palavras, e tentei justificar minha declarao dizendo que se voc me mostrarem um beb, mostraro tambm, com certeza, algum cuidando desse beb, ao menos um carrinho ao qual esto grudados os olhos e ouvidos de algum. O que vemos, ento, a dupla amamentante. (Winnicott, 1958d, p.165).
A funo materna desempenhada neste perodo em que h uma
dependncia absoluta denominada holding (Winnicott, 1960c), literalmente
sustentar o beb na sua continuidade de ser. Winnicott explica que o holding inclui
especialmente (p.48) o cuidado fsico e que talvez seja esta a nica maneira de a
me demonstrar o amor ao seu beb. Esta capacidade extremamente complexa da
me, em sustentar seu filho de maneira que no haja uma ruptura em sua
existncia, s possvel devido ao estado emocional em que ela se encontra,
estando extremamente identificada17 com seu beb, em um estado chamado:
preocupao materna primria18 (Winnicott, 1958n), descrito da seguinte maneira:
Gradualmente, esse estado passa a ser o de uma sensibilidade exacerbada durante e principalmente ao final da gravidez. Sua durao de algumas semanas aps o nascimento do beb. Dificilmente as mes o recordam depois que o ultrapassaram. Eu daria um passo a mais e diria que a memria das mes a esse respeito tende a ser reprimida. (Winnicott, 1958n, p.401).
No possvel dizer que neste estado das coisas, nesta dependncia
absoluta, haja algum tipo de relao, visto que no comeo, o beb o ambiente e o
ambiente o beb (Winnicott, 1964e, p.56), os dois juntos formam uma coisa s,
uma unidade que aos olhos de um observador externo trata-se de um conjunto
ambiente-indivduo (Winnicott, 1953a, p.308). fundamental que neste incio o
beb possa permanecer em um estado tranquilo, visto que seu ego, ainda como
uma tendncia inata a se integrar (Winnicott, 1965n), sustentado pelo ego auxiliar
17
Winnicott (1958n) deixa claro que existe a identificao da me com o beb, mas que, o contrrio no ocorre, pois, pois a identificao constitui um fenmeno complexo demais para que localizemos nos primeiros estgios da vida do beb (p. 400). Este ser um dos aspectos da teoria proposta por Fairbairn que Winnicott ir criticar (Winnicott, 1953i). 18
Winnicott ao tratar atribui este estado necessariamente me biolgica pois somente ela poderia atingir esse estgio especial de preocupao materna primria sem ficar doente. (Winnicott, p. 404).
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da me. Demandas externas tomariam propores de intruses, a continuidade de
ser poderia ser interrompida, enfraquecendo o ego do beb e constituindo um [...]
aniquilamento, e so evidentemente associadas a sofrimentos de qualidade e
intensidade psictica. (Winnicott, 1960c, p.51).
Juntamente integrao, outro processo acontece neste perodo anterior
ao beb reconhecer a si mesmo e aos outros como pessoas inteiras. o
desenvolvimento do sentimento de habitar o prprio corpo, chamado de
personalizao, que assim como a integrao tem como condio a repetida e
silenciosa experincia de estar sendo cuidado fisicamente (Winnicott, 1945d,
p.225). Do contrrio, na inexistncia de um ambiente que possibilite isso, a
consequncia a despersonificao (Winnicott, 1945d, p.225). Por fim, um terceiro
processo est envolvido neste perodo, ao qual Winnicott (1945d) denomina
realizao (p.223), o momento em que a me passa a apresentar o mundo ao
beb, de maneira que ele tenha condies de conhecer sem que isso ameace sua
integrao ainda frgil:
especialmente no incio que as mes so vitalmente importantes, e de fato tarefa da me proteger o seu beb de complicaes que ele ainda no pode entender, dando-lhe continuamente aquele pedacinho simplificado do mundo que ele, atravs dela, passa a conhecer. Somente com base numa fundao desse tipo pode desenvolver-se a percepo objetiva ou a atitude cientfica. Toda falha relacionada objetividade, em qualquer poca, refere-se falha nesse estgio do desenvolvimento emocional primitivo. Somente com base na monotonia pode a me adicionar riqueza de modo produtivo. (Winnicott, 1945d, p.228).
importante destacar que Winnicott utiliza a palavra monotonia se
referindo necessidade de um ambiente consistente e contnuo, sem variaes
extremas ou estmulos para alm daquilo que o beb necessita, indo nesta direo
ele afirma que um beb que possui mais de um cuidador, no consegue estabelecer
um padro pessoal de cuidados para que o senso de tempo e espao possa se
desenvolver, e desta forma poder se manter, quando necessrio, em um estado
no-integrado, ou relaxado:
[...] poderamos ver que, enquanto certas funes (como o fornecimento de alimento adequado) poderiam ser preenchidas por qualquer pessoa, muita coisa s pode ser feita por algum que tenha as motivaes de uma me. Mais ainda: a continuidade no poder ser proporcionada por uma multiplicidade de interessados. E sempre h a real continuidade dos detalhes conforme observados pelo beb, comeando, talvez, pela imagem em close dos bicos dos seios ou pela imagem do rosto, e incluindo o cheiro, os detalhes de textura e assim por diante. E mais: como poderia algum
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que no esteja na posio da me, e que no tenha o amor da me, conhecer o beb suficientemente a ponto de proporcionar um enriquecimento gradual na quantidade adequada para estimular a capacidade crescente, mas no em demasia a ponto de causar confuso? (Winnicott, 1948b, p.238)
No entanto, quando tudo vai bem, ou seja, quando o ambiente permite
manter o beb isolado sem ser perturbado o beb no precisa reagir e nem ser
aniquilado e desta forma nada sabe (Winnicott, 1953a, p.310). Winnicott (1060c)
deixa claro que os cuidados maternos quando bem executados nesta fase de
holding possibilita com que o beb saiba que est sendo bem cuidado e do que est
prevenido.
Esta fuso inicial com o tempo vai chegando ao fim e ento uma
mudana decorre. medida que o beb consegue perceber a me como separada
dele, ela muda sua atitude, parecendo se dar conta de que o lactente no precisa
mais de cuidados atravs de uma compreenso quase mgica de sua parte. A me,
de alguma forma, sabe que seu beb adquiriu uma nova capacidade, podendo dar
indcios que a guiem na satisfao de suas necessidades19 (Winnicott, 1960c).
Caso o ambiente insista em permanecer completamente adaptado ao
beb estar se antecipando s suas necessidades e assim acabando com sua
possibilidade de ao criativa e desta forma:
[...] a me, por ser uma aparente boa me, faz pior do que castrar o lactente; este ltimo deixado com duas alternativas: ou ficar em um estado permanente de regresso e ficar fundido com a me, ou ento representar uma rejeio completa da me, mesmo de uma me aparentemente boa. (Winnicott, 1960c, p.50).
Por outro lado, neste estgio20 dentro de um desenvolvimento saudvel, a
dependncia absoluta fica para trs e agora o que h uma dependncia relativa. O
beb j pode tolerar pequenas falhas nos cuidados e at mesmo tirar proveito disso.
A capacidade temporal j est mais estabelecida e agora ele pode ouvir os barulhos
19
digno de nota de Winnicott utiliza a palavra necessidade ao invs de desejo. No realizar um desejo implica em uma frustrao, j a necessidade, com um sentido mais primitivo, resolvida ou no acarretando rupturas no sentindo da continuidade do ser. (Winnicott, 1958n) 20
Contudo, deve ficar claro que para que isso ocorra os estgios anteriores devem ter tido xito, de tal maneira que passem a estar integrados ao indivduo dentro do seu campo de experincia, desta forma, e somente desta forma, os estgios conseguintes tero algum sentido. Winnicott (1984h) exemplifica com a matemtica, que exige uma continuidade em cada um dos seus estgios de aprendizado e caso se perca um estgio o resto fica sem sentido (p. 50).
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da me na cozinha e ento esperar21 por ela e assim, aos poucos, passa a ter
conscincia de sua dependncia (Winnicott, 1965r). As falhas moderadas por parte
do ambiente daro espao para que o beb coloque suas prprias necessidades,
um choro, um espernear, tudo isso ser colocado sob a forma de um gesto criativo
(Winnicott, 1960c), sendo esta a principal base da capacidade de o beb poder agir
a partir de si mesmo e de viver criativamente.
Continuando na linha do tempo do processo de amadurecimento o beb
vai sendo capaz, cada vez mais de se defrontar com o mundo e todas as suas
complexidades (Winnicott, 1965r, p.87). Os relacionamentos vo se expandindo,
relaes triangulares se estabelecem, e como um crculo abrindo em espiral o
indivduo passa a se identificar com a sociedade, porque a sociedade local um
exemplo de seu prprio mundo pessoal, bem como exemplo de fenmenos
verdadeiramente externos (Winnicott, 1965r, p.87). Esta capacidade caracteriza os
ltimos processos, rumo independncia, e ainda assim o autor afirma que o
processo de amadurecer no cessa, pois os adultos raramente atingem a
maturidade completa (p.87). .
Partir do estado de dependncia absoluta e chegar ao estgio de
independncia uma longa jornada e apresenta muitas dificuldades pelo caminho.
Cada indivdu