a luneta do arquiteto - denis borges barbosadenisbarbosa.addr.com/arquiteto.pdf · ·...
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ÍndiceSobre poesias oferecidas............................................. 4A luneta do arquiteto...................................................8La lunette de l'architecte..............................................8
Ars Nova......................................................................... 9Cantiga de amigo.......................................................11Cena aberta................................................................12sua paixão seria decisiva........................................... 12Corrupios no ar parado..............................................13Esta Madrugada.........................................................14Em memória de Gesualdo de Venosa....................... 15Soneto da harmonia partida.......................................17Impercebido...............................................................18Urbano e calmo......................................................... 19As águas turvas do Mondego.................................... 20Soneto do amor Sereno............................................. 21
Sobre Poesia...................................................................22Bissexto..................................................................... 23Razões de canto.........................................................25
Sobre gente.....................................................................26Vem viajar.................................................................27Verde imenso oceano................................................ 28A dedication.............................................................. 29Inalcance................................................................... 31O anjo em cima do caixote........................................32Ana............................................................................ 33Correio.......................................................................35e.e.cummings.............................................................36Para Jerusalém, no natal............................................37Lenço.........................................................................38Moeda........................................................................38Marigold....................................................................39Troy........................................................................... 40Revenant....................................................................41Tema para um mote alheio........................................42
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Run of the mill.......................................................... 43The mind's glow worm..............................................44Noli me tangere......................................................... 45Ouviram do Ipiranga................................................. 46Festas Táteis...................................................................................47Perfeição Concisa......................................................48Sempre Cabral...........................................................49A noite se constrói sozinha....................................... 50Twinkle Fair.............................................................. 51Poema convexo......................................................... 53
Sobre o mundo............................................................... 54O banquete sob o rio................................................. 55Canteiro..................................................................... 58Seis instantes do trajeto.............................................59
Höhe und Tiefer............................................................. 62Paráclito.....................................................................63Salmo 92....................................................................65S. Cosme................................................................... 67Feliz dia dos santos antonios.....................................68
Circunstância .................................................................69A graça de ser Maria................................................. 70Sonnet de méfiance.................................................. 71Mamar....................................................................... 72Pour un ange à son jour de fête:................................ 73Santa..........................................................................74Paródia.......................................................................75Lise Törek................................................................. 76Cívia.......................................................................... 76Noctu......................................................................... 77Ana Maria..................................................................78Si lo hubiera escrito Calderón................................... 79
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Sobre poesias oferecidas16 III 89
Nem todo mundo é igual; há os caudalosos. Drummond, segundo Cabral:" não há guarda chuva contra o poema". Cabral mesmo prefere ou só sabe a secura. Que talvez seja uma forma de fazer da introspecção uma forma criativa: Cabral está apaixonado por uma colega de poesia agora, aos 69 anos, o que não parece ser sinal de uma secura de emoções, puro discurso de caniço pensante. Eu sempre fui Cabral, Danusia foi Drummond. Drummond, chefe de gabinete do Ministro Capanema, enamorou-se, e sendo de movimentos imediatos, foi fazer amor nas escadas de incêndio do prédio do MEC na Graça Aranha; pois alguém abriu a porta e, no susto, o poeta despencou escada abaixo. Fraturas. No entanto, ele era tímido. Tudo isto para te dizer que, nunca tendo entrado numa escada de incêndio, só consigo ver teus poemas com os olhos secos de Cabral. E daí o "Catar Feijão": no escrever, diz ele, como no catar feijão, "joga-se fora o que
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boiar"; mas a diferença entre os dois atos é que no catar feijão recata-se a pedra do fundo do alguidar; e no escrever, guarda-se a pedra-palavra: "a pedra dá à frase seu grão mais vivo/ obstrui a leitura fluviante, flutual". Acho que no que aí há feijão bom, há até pedra; mas bóia muita coisa. Falta catar. Aliás se não houvesse feijão e pedra eu nem estaria te escrevendo, porque na minha arrogância não perdôo falta de talento, quando é de estética que se trata. A poiésis, o ato de fazer, tem que resultar em proporção e em graça, em harmonia e em espanto (harmonia sem espanto não é arte: é decoração de interiores ou desenho industrial).Aí vem o trabalho da cata. Eu com minha flauta: à minha direita, na minha mesa de advogado, ela fica ali me assombrando. A trinta centímetros, ela está a meio segundo de distância, mas a quatro meses de estudo obstinado, se tivesse que tocar em concerto. Vale a pena? Vale catar poemas, se a intenção é expressar-se e não poiésis? Pois que poemas não falam do amor e de impasses, da frustração de uma conversa intensa ao telefone pelos reclamos imediatos, absolutamente concretos, do Gabriel. Poemas falam de
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poesia, só. Chatíssimos. Só que quando o puto do Byron escreve "She walks in beauty, like the night/ of cloudless climes and starry skies" eu vejo a beleza da mulher que eu quero, e não a de alguma lady de 1811. O poeta fez a doação enorme de objetivar sua paixão, de criar um universo emotivo onde os afetos são comprimidos ao extremo, adquirem o peso do chumbo e ao mesmo tempo a dureza do diamante (cientificamente, poesia é isso: compressão do máximo de significado numa forma auto-referente). A poesia não é uma expressão de sentimentos, mas uma conformação, uma doação de trabalho e instinto aos outros, ao público impessoal. Não é, enfim, uma expressão de amor individual, mas um ato de amor à Humanidade.Também é uma superação do efêmero, como é óbvio. "So long as men can breath or eyes can see,/ So long lives this, and this gives life to thee", dizia Shakespeare ao seu Cavalheiro. Este efêmero, cuja fruição é todo o Zen, e é o contrário de nossa arte e poesia do Ocidente. De outro lado, além do poema, há o ato de mostrar o poema, que, como ato, é também
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poiésis, e tem uma infinidade de sentidos, todos eles (para mim) sedosos. ("Que sob a palavra gasta/persiste na coisa seda" - sempre Cabral).
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A luneta do arquiteto
No horizonte exato, a lua argentina:as esferas em quinta justa.Do logaritmo do desejoà política da sinrazón,
um traço preciso de pura inexistência, lúcifer mirando-se no vidro espelhado.
La lunette de l'architecte
Dans l'horizon exact, la lune argentine:Des sphères en cinquième juste.
Du logarithme du désirà la politique de la sinrazón,
vient le dessin précis en pure inexistence, Lucifer regardant le miroir glacé.
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Ainda Chovia
Você sorriu com o rosto inclinadoe a espuma feliz do momentofez um levíssimo movimento
no espaço do seu para o meu lado.
Os anos de nossa convivênciade amor truncado, impasse e desgaste,
fundiam o metal do engastedessa única e doce experiência.
O seu cabelo ainda molhadobeijava manso a pele dos meus dedos.
Todo o certo e todo o errado
daqueles tempos tristes e ledostinha agora esvaído e passado,
nós mais fortes do que nossos medos.
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Cantiga de amigo
Sei que você é má; sei como é arrogante.Sei quanto despreza minha inteira figurapor feio, por gordo, pela ínfima estatura.Sei quanto a você custou ter sido minha
amante.
Mas sei também que não há escárnio e mal dizer
nisso que sinto; e escrevo neste momento.Aqui e agora só borbulha o sentimentode um imenso e flamejante bem-querer.
Todas imperfeições que vejo em vocêsão as delícias de sua humanidade.
Cada um que em espanto assim me lê
falando de paixão com tanta crueldadesabe que Deus fez este mundo que se vê
e só fez você em minha felicidade.
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Cena aberta
Foi do meio da platéia vaziaque você, no escuro, deu seu grito.Nem uma palavra, só um som aflito
foi que ouvi do fundo da coxia.
A peça acabara; já a dor da hora,sofrida com a dor do meu personagem,
fora sendo diluída na passagemdesde o palco até o ar frio lá fora.
Do grito, vi que este amor rejeitadodurante a doída encenação da trama -num repente ainda maior de drama -
agora era querido e demandado.
Há uma hora ainda, em cena viva,sua paixão seria decisiva.
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Corrupios no ar parado
Claro e escuro equilibrando, quente e frio em jeito certo,
meio ruço e meio aberto, o dia vai macio e brando.
Tempos ruins, e tempo bom;
incerteza e intensa paz; o mundo faz e desfaz
a cada luz, vento ou som.
Vou passando assim meus anos cheios de inquieta quietude;
igual a todos humanos,
o mesmo, por mais que eu mude, acertando com os enganos, enquanto a vida me ilude.
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Esta Madrugada
Eu quero desta quieta madrugadaa calma, o silêncio, e a Paz.
Só esta mansidão me satisfazna vida momentosa e agitada.
Meu amor está dormindo distantenos lençóis de cetim da madrugada;Deus fará com que seja despertada
com a mesma doçura deste instante.
Espero que essa hora tão suaveque precede - bem leve - o amanhecer
seja a onda que lave e relave,
com o macio que a onda pode ter,todas feridas deste tempo grave.
E o que já foi, não tenha mais que ser.
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Em memória de Gesualdo de Venosa
Na hora em que o dia apaga as corese reflete, imerso em si, seus males,
eu peço que também tu te calespara ouvir o som dos meus amores.
É o mar lento, impreciso e constantedo interior de uma concha na praia.
É a lei que se expanda e se retraiao incontido no peito do amante.
Vai a onda em espuma de orgasmoe retorna torcida e amarga
revoltada no mesmo marasmo
em que a impotência explode sua carga;e vai doçura e volta sarcasmo
na paixão que se espreme e se alarga.
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Le Sonnet de l'accord brisé
Des âmes entièrement faites en fusionNous aurons en nous tout l'agrément;
nous sommes en accord même au sentimentQu'au but viendra la séparation.
Mais cette raison qu'à nous préside
elle a la prudence de la sottise,et la faiblesse qui est toujours de misedans les affaires où le cœur est vide.
C'est ainsi que j'ai le pauvre espoirDe nier cette loi qu'alors on lise
et que le plus sombre des devoirs
d'achever aux fins qu'on se divisene survivra ce jour et ce soir
- qu'enfin ce parfait accord se brise.
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Soneto da harmonia partida
Nossas almas todas em fusão,Tudo em nós se passa em harmonia;
Houve acordo mesmo em que haveria,No fim de tudo, a separação.
Mas esta razão que a nós presideTem a prudência de uma loucura,
E a imperfeição como a que perduraOnde o excesso de razão reside.
Assim é que eu tenho a esperançaDe que este pacto frio desabe
E que outra voz mais suave e mais mansa
Venha com a certeza de quem sabeSer preciso, nesta nossa dança,
Que a perfeita harmonia se acabe.
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Impercebido
Quando já se foi todo o amor passado,e da tersa curva se olha o caminho,
carece adiante a falta de carinhoque todo o gozo não teria compensado.
Por mais imenso que era o prazerpor mais aquosa cada madrugadamato fundo, espanto e revoada,nada paga o que não se pôde ter:
o toque leve de inteiro afago,o gesto quieto de suavidade amável -um vento que roça, macio, o lago.
As minúcias do afeto inenarrável,que de ti nunca tive e já não trago,carinho imperdido e inencontrável.
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Urbano e calmo
Nestas horas da mais quieta desesperançarepartidas num suavíssimo conversar -como um pássaro voando parado no ar
recolho o fogo selvagem de minha dança.
Dança de bicho fera buscando parceira;dança de canto hondo, afiada como espada;
jiga irlandesa, tesa, precisa e afogueada;corpo explodindo em faísca de pederneira.
Urbano e calmo, moderado e elegante,falo de coisas, sem avanço nem recuo,parado no ar numa agitação incessante;
pois nessa farsa quieta eu peno, sofro e suo.Para ocultar a fornalha aberta e hiante,Morri na hora; e morrendo continuo.
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As águas turvas do Mondego
Toma; aqui está tudo que extraíNo meu garimpar deste tempo todo
O que encontrei sob o cascalho e no lodoEra só teu; agora devolvi.
Se ainda tivesse uma alma sobrandoSeria ela, sempre, para ti;
Contando as almas todas que perdiEra impossível continuar te amando.
Deste canto, desde onde me despeçoTu és tão linda como quando cheguei;
Ou mais ainda, se em ti eu meço
As esmeraldas que eu garimpei.Sei, no entanto, que não há mais regresso:
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Ninguém desama o que já ameiSoneto do amor Sereno
A paixão que se solta e se alarga,toma o espaço todo do vivente,é um sentimento inconseqüenteque cedo se esgota; ou amarga.
Paixão serena flui leve e mansa,num querer suave e meticuloso:
o cotidiano remansosoacolhe, enraíza e jamais cansa.
É amor de mãos quentes e abertas,de olhos nos olhos da amada;
é amor das escolhas certas,
da doação inteira e adequada.Perfeita, entre as emoções incertas -
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Bissexto
A enxada e pá das palavras - o som -e outros meios e muitos dessa economia
singular;a forma omissa das coisas - a terraabaixo e além das garras da enxada;
a forma da pesca (de caniço)que entretece com a água a intimidade das
raízes.
O trabalho eventual, errante,não é do barqueiro que desce o rionem a tarefa do caixeiro viajante.A plantação é apegada ao solo,
estante como um cruzeiro levantadona memória da ação de bala ou faca.
E a imagem última aponta
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Razões de canto
Eu canto a noitesilenciosa e vazia
que posso encher toda de solidão.Canto como a coruja
que mora na mangueira do eu quintal,num monólogo polifônico
Canto a amplidãodesde que vaziacanto o silêncio
desde que sem ecocanto o amor
desde que sem razão (1964)
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Vem viajar
De tão calmo, verde e claro
o mar quase não balança.Com seus olhos de criança,o dia está num tempo raro.
Vem, apóia em mim, e desce. O barco é velho como as lendas.
O vento tecendo rendasentre as velas; e amanhece.
Bom tempo pr'a navegar -o sol de inverno nos guia.Vai ser gostoso esse diasem ter hora de voltar.
O nosso amor nos aninha,as amarras já estão soltas.As ondas antes revoltas
estão em paz; você é minha.
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Verde imenso oceanoVerde, imenso oceano de teu beijo nunca
havidoeternidade diferida do que o destino coage e
frustraseremos nós um só no topo e cume de algum
tempoquando esse oceano feito gota só, conquanto
imensaentrar em ti, sêmen dos deuses de todo
crepúsculo
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A dedication
Deep inside your flesh, music caresses your outing,
all of you dimly wet by the soundand the throbbing intent
of Brubbeck's sly keyboard.
Eve of softness, heir to time,extract of long yielded kisses
and seamless dawns,catches you aware, but won.
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A véspera.
Neste antes para sempre postergadoem que nunca se chega ao exato agora,
ao instante pejado de si mesmodo tudo já, e nada além, e mais nada.
O indevir tem, contudo, estância própria;não espera, nem se poupa, nem se ilude:
vive inteiro o que nunca ocorrerá,com a sabedoria turva e velha da descrença.
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InalcanceComo um fio de faca, exato,
na polpa e na dor do dedo cortado;como a pimenta no gostoe o ar da manhã no olfato;o que corta e dói e congela
mas só até, e não mais, e nuncaé o mesmo orgasmo transformado.
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O anjo em cima do caixote.
O boi e o burro em papier machée o anjo,
muito alto,num caixote,com crepom.
A madeira range,o halo dói na testa
e no fundouiva um medo ainda e sempre sem nome
(anátema)
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Anates passions guère dangereuses
l'amour le plus loin, le plus impossible,pour faire ta vie à jamais paisible pour laisser ton âme paresseuse
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Crop of time It was August, and she called me flower, as though I were the dearest of her cats.
The dusk flowed in with caution and a restrained and sad light
punctured her eyelids and her brow.
I should be manlier, I guess; some of a satyr - rough if tender,
waiting by some Arcadic fir.
Flower then I was, transient on the side of a road,
glowing on the charm of my dying irrelevance.
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Correio
chegou enfim sua cartaperdida tanto tempo nos correios.
não lhe era mais destinatárionem o destino era mais o meu.
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e.e.cummings
nothing more harmful to reason than to be earnest.
reason is playful and witty, cutting as a caress,
hard as a foggy dawnyou cannot reach the truth with a flaming
sword
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Para Jerusalém, no natal
Uma carta é um pouco asapois conclui distâncias
um tanto calmariapois enreda o tempo.A carta amiga é mais:
dessalga a saudade, dança-a.
Essa precisa missivanão se resume em aceno -
tange, toca, soacomo um sino contíguo
ou, como o dele, sino, parentemais ínsito, peitoral
perpetuamente vigente (1973)
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LençoA imponência do verão fica excluída
desse espaço todo meu, que se recolhedobrado como um lenço antigo de linho.
MoedaMoeda sem reverso
toda face aberta e lindaeu te giro entre os dedos -
o lado irreversívelé um foco de farol na onda escura
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Marigold
There isn't but truth in this love of plenty and rhythm
washing me thorough.Here am I close to your flesh,balming your skin in marigold,
mandrake and mistletoe,the geography of your hands on my hips.
I am afraid to split in half:this life or your grabbing speech.
Here am I as I am yours. (de um poema de Thereza Motta)
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Troy
you are a multi-layered city:in each slab a life of its own,
all crowded, all soaked in time,no slice worthier than the whole,
the impregnable walling of your self. You are many and, somewhat, me.
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Revenant
treat me softly as you tread on my aweas I am all exposed to the death inlaid in you
the fury of the unlove and opportunityimposed on you by the thorniest spirit of gray
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Tema para um mote alheio
O menino dança na salameigo e lento vai o diatão simples e tão vaziaesta vida me avassala.
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Run of the mill
A roca que fia o sonhogira-moinho de água sem fim,
roda o tempo, flui o rio,e o longo fio faz trama e teia
indo e devindodesde, até e mais além.
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The mind's glow worm
Under a blanket of mistmy dear friend dreams;
she knows what she meansto whom she did enlist.
Misty mysterious mind,your waking dreams elope -
if there is wit and hope,if this is a time of its kind:
"Shall I redress my past?shall I mend my ways?shall I give my days
to love and labor that last?"
And so did your night flowyour eyes bright and skin aglow
(Sobre um poema de Thereza Motta)
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Noli me tangere
“Depois de ver-te, terei mudado”.
Tanto te queria sem te ver,macio era o corpo que não tinha,
então nada eras, sendo minha,e sólida em mim, sem o saber.
Perderemos os dois no instanteem que tato e tato se completam,em que fome e fome se aquietam,
e do nada emerge a amante
Não mude. Não me veja. Mais nada.Deixemos intocado o macio
corpo, sempre quente pois vazio;nossa esperança, imaculada.
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Ouviram do Ipiranga
O menino pulava na plataforma do bonde(é proibido viajar na plataforma e nos estribos)
O bonde vazio,a rua vazia na hora de almoço
O bonde parouandou
parouO menino pendurava-se no balaústre
e sorria
O bonde parouO garoto gritou
"independência ou morte"
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Festas Táteis
Nas festas táteis da madrugadao som ostensivo das cigarrase inaudito dos pelos - farpas
eriçadas em seu dorso -perfazem a música toda.
O frio do momento só espera- quieto - o silêncio enfim
do corpo prolongado.
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Perfeição ConcisaA perfeição tem uma sombra
e nela nós dois vivemos;todo o brilho se revoltapara lado que é o de lá.
nas humilhações do escuronossa vida não nos pesa;
o prazer é escondido,mas por pura irrelevância.
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Sempre Cabralem cada palavra despedidahá uma espera pregnante
de um outro galo que apanhe o gritoou da resposta fulminada;pulsa vivente a língua tesa
para lançar carinho ou corte,tato ou morte prefigurando
a espera engravidada.cada espera é despedida
toda palavra interminada.
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A noite se constrói sozinha
Perdemo-nos os dois na noitee dela surgimos outros:
sua fonte murmurando em mimcomo uma outra linfa
obscura e essencial;eu, em alguma memória
de seu obscuro imanente; cada um parte da obscura
e radiante madrugada.
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Twinkle Fair
estatelada no sol da tarde,liame e insídia, cobra coral;cada cor inatural entretecida
na explosão do momento prolongado.
jazida de medo fulgurante,sempre e inteiramente inevitável.
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Quatorze anosDeixem-me gozar a irracionalidade da fonte
(a prodigalidade louca das águas naturais)
Deixem-me sozinho: quero noivar a solidão
Deixem-me ser ininteligível:amar o vermelho molhado,
odiar o verde sem adjetivos. Deixem-me entender o mundo pela análise da
palavra mundo.
Deixem-me ser sofista nas matérias da mudez.
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Poema convexo
Como um úbere reflexona água velada de terraComo a seara ínsita -
convexa como um punhofechado mas por dentro;
E, além do punho, como a tardemas terminada e quente;
assim se dispersaa legião esparsadas pessoas figo
(1972)
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O banquete sob o rio
esta foi a terceira noite:com os pilares nus do rioa panda cérvix da pedra
do fundo do rio de pedras
a primeira noite primeirasendo delas a primeira
não pareceu noite, senãomomento da noite travessa
a água do rio águamenos dura do que a terceira
cochilava como a águado rio da noite rio
meus pés raízes pésimplantados na vazante
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cochilavam com as águasvárias águas travesseiras
minhas mãos lentas mãoslentas ao som das águas
são primeiras como a noite
noite das águas primeiras
a segunda noite segundafoi segunda ante a outrafirmada em patas de seda
mais sedosa que a primeira
meus membros todos membrosressaltando a cheia noitea noite da água recheiaa cheia da água segunda
esta foi a noite terceira:
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Canteiro
a flor do imprevisto brota ao sole está ali - rente e ocre -
ao alcance do tato e além dos olhos
a flor do imprevisto cheira como noitee está ali - perto e linda -
na borda exata dos sentidos
a flor do imprevisto cresceu desde sempreno sétimo canteiro
contando a partir da porta amarela
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Seis instantes do trajetoO fato, o fardo, o lagarto;o sol no corpo; a estrada.
Todo o Universo como causa,e a fazenda que não chega.
Peregrino sem orago, indopara além do próximo cupim,e deste, para outro. E destenuma sucessão irrelevante.
Só a transcendência e as cigarras.
.......
O saibro acomoda o péa curva revela.
E vai a estrada entre cigarrasnum enlace cuidadoso da montanha.
...........
A fonte d'água, entre rochas,numa clareza de noite quieta.
Apalpa o limo: morno.Pelo de bicho úmido.
Ali são horas; a noite marulha.
...........
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O caminho, de pedras roliças,passo a passo, vai ao rio.
Depois, vai de si: só caminho.
...........
O caminho cessa, sem retorno,No mais escuro da estrada.
Você tateia; o nada é úmido,daquele molhado de lâmina
do olho de quem te desconfia.É o repente, é o instante,
E você está hiantemente só............
O caso da nova estrada
Não é a encruzilhadahiante
anteposta aos passos.
É o caminho, feito,cavado,
arrebentado no chão.
Não é o traço que uneo aqui e o ali
e que tem rumo e destino.
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Paráclito
Entre suas mãos fulguranteseu me encolho e me entrego.
Você está no mais azul do fogo,no sangue vivo que brota,
na pedra roliça do fundo do rio.Você está no susto
e no encanto do meu filho,no som da flauta do outro prédio
no mosaico cromático de Ravenna.Digo seu nome infinitamente,
enfrento sua cintilânciasem baixar os olhos,sem temer a fúria,
mesmo perante minhas ofensas.Você é meu resguardo e esperança,
sempre o foi e sempre o será,Deus dos antigos que nem conheço,
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Salmo 92
Quem mora na querência de Deusem sua sombra descansarádizendo sempre: Senhor
tu és minha força e minha esperançae para tudo eu confio em ti.
Tu me livras do laço do caçador eda morte que vem insidiosa .
Eu me oculto entre as penas de suas asas,e sob elas me abrigo.
Com Teu escudo e verdadeira proteção,não me fustigará o medo escuro da noite,
a flecha que voa na luz do diaa peste que infecta nas trevas
nem a praga do meio dia. Mil pessoas perecem a meu lado
dez mil a minha esquerdae nenhum golpe me fere.
Com meus próprios olhos
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verei a perdição dos pecadores.Como tu, meu Deus, és meu refugio
e minha morada a Tua morada, o mal não me acomete
e a pestilência não vem à minha casa.Pois Tu comandaras a teus anjos
que me guardem em todos os meus caminhos,e me ergam com suas mãos
para que meus pés não se firam no cascalho.E assim prevalecerei sobre os poderosos e os
dissimulados,como quem vence o leão e a serpente.
E o Senhor me dirá:Como tu me amas e conheces meu Nome
eu te protegerei e livrarei do malTu me invocarás, e Eu te responderei
Estarei contigo nas dificuldades,delas te afastarei e te darei a minha gloria
e prolongarei os teus diase te darei a minha Salvação
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S. Cosme
por sutilezas da lenda(pese ou não a obra do santeiro)o dia alvora em gritose aflui: em bandos em revoadas em outroras (1973)
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Feliz dia dos santos antonios
A Thereza Motta
O antonio da feira, suado e quieto,o antonio do lixo de cada madrugada
o antonio sem nome de cada dia -numa esquina do tempo, fora de hora,
recebe a graça sempre suavede um cheiro, olhar ou gesto.
E da esperança ou fato vem a luzque inaugura desde o caos o milagre
e faz boa a exclusão de todos paraísos.
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A graça de ser MariaQuem é você, Maria?
onde está o azul do aço das asas do besouro
onde está o macio veludosoo duro e rude e nodoso
onde está o deliberado e frioo gesto secreto e encolhido
da carícia truncada no percursoonde está sua ausência mais chegada?
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Sonnet de méfiance
Le sans prix de l'unicité,
quand il y a des choses si faciles,qu'on peut remettre pour la cité
des lettres comme ça comptant des milles.
Ce sont les malédictions du temps:on ne peut pas savoir nullementsi on est bien aimé dans l'espaceou si bien se cache une grimace
dans le plus beau des sourires,dont la clarté s'épuise partout.Quand on est dans l'age mûr
l'espoir est avare, le soin constant,
parce qu'il est fier et défiantce saint qui a reçu toute cette aumône.
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Mamar
Vem de vocêcuriosamente
acadêmico e adequado o texto -uma menina engomada no uniforme de escola
sem vincossem poeira no joelho
uma solidão tão isoladaTão destilada,
parece a vontade de mamar que vem aos dez anos de idade.
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Pour un ange à son jour de fête:
Dans tes ailes fières au parfum du ciel,c´est mêlé aussi de la cendre et miel,
Tu seras toujours une créature de Dieuplus proche d´Il qui sait le mieuxcomme blesser ce jour ci de gloire
comme faire éclairer le noir et sortir du néant un joyeux anniversaire
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Santa.
Falso e veraz olho verde,mamilo do rosto, incisivo e doce;
a cintila de paixão sempre em passagem,a dedicação de quem caça uma presa.
Fera cigana entre pretensas grades,num preguiçoso desencanto, nu de amargura,
eternamente temporária em sua selvageria cômoda.
74
ParódiaParodiando um pouco Chico Buarque:
mire-se nos gatos de Atenas,mármores lânguidos em calma
a preguiça atenta na almae ferocidade apenas
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Lise Törek
a idade pouca se engalanaem tafetás, renda e lantejoulas,
em olhos verde-bandeiraenormes, esquivos, sazonais (75)
Cívia
Cívia níviaestrela belacá na terra
quero tê-la (66)
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Noctu
Conheci Gloria inda meninanuma voluta de azul
e branco uniforme de escola;no entanto seus passosquietos na rua escura
me despertam no torpor noturno (1964)
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Ana Maria
O bosque escuro, sombra reversano verde da tarde da Úmbria:
a voz de madrugadaa surpresa macia
a ossatura de pássarouma nau heráldica na noite contígua
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