a lua investirá com seus chifres · sustentam o filme das palavras minhas palavras outras palavras...
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a lua investirá com seus chifres
a lua investirá com seus chifres
Ruy PRoença
A lua investirá com seus chifres © Ruy Proença, 2016
Pãooupães EditorialRua Cristalândia, 21505465-000 São Paulo - SP Brasile-mail: [email protected]
Capa e editoração eletrônica:Luciana Inhan
Revisão:Ruy Proença
• 2a Edição - 2016• 1a Edição - 1996 Editora Giordano - São Paulo - ISBN 85-86084-01-8
CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)
Proença, Ruy, 1957P957l A lua investirá com seus chifres/Ruy Proença –
São Paulo: Pãooupães Editorial, 2016 (2a Edição). 64 p. (Poesia)
1. Poesia Brasileira. I. Título. II. Série
CDD - 869.91
SUMÁRIO
Estação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
O cheiro da mexerica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
Varanda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
Lugares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Duas roldanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
As sensações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Orla marítima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
Teve esta sina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Não viu que . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
Se a luz está . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Quando eu for pequeno . . . . . . . . . . . . . . . . 22
Anatomia da mulher . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
Não pertence a beleza . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
Susana ou a desestrela . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Fruto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Através dos séculos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Edifício de heróis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Não me deram fantasmas . . . . . . . . . . . . . . . 32
A asa encruada no corpo . . . . . . . . . . . . . . . 33
Poema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
A dura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
Certo deserto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
Paisagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Quando uma centopeia . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Infinitamente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Envolto por um perfume . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Fissuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
A casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Outro ouro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Deve ser a grande festa . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
Não partirás ainda hoje . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
Novembro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
Olhar antigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Mesmo que tivesse cem bocas . . . . . . . . . . . . 54
ao Cálamo
Dizei-me se ando longe da guitarra onde nasci.AníbAl M. MAchAdo
É por um mecanismo de desastres,uma engrenagem com volantes falsos,
que passo entre visões de cadafalsosnum jardim onde há flores no ar, sem hastes.
ÁlvAro de cAMpos
Ruy Proença | 11
ESTAÇÃO
A proteína que se comepor dentro, para se libertardo alvéolo. O calor, a umidade. Sãopressões que estão chamando. O ovo vaise partir. O terremoto não tarda.Bando de aleluias, explodiremostodos os espaços. Tudo preparadopara a festa. Restaráapenas a casca dos casulosrelicário místico resistindo ao tempo.Ansiamos, temos saudade de futuro.Nos camarins da vida que começatestamos as asas em vibrante. Testamoso batuque sincopado das patas.Somos parte de um enxame.
12 | A lua investirá com seus chifres
o cheiro da mexericanão é o cheiro da morte
a casca rasgada no canto do pratoé o mapa de Guadalamaxica
o gomo atravessado nos dentes, como onda na [areia,infiltra o beijo úmido, por séculos tão esperado
chupa longamente o sumo da tangerina!contra o gemido do prazer não há vacina
a vida toda é uma muiraquitão tempo em que se mordisca a carne da poncã
tudo é cegueira, nada mais se notaquando se come a fundo a bergamota
o cheironão é o cheiro da morte
a chama laranja do amorcresce por dentro da boca
Ruy Proença | 13
depois, pode-se ler o rascunho do fogo:cascas, bagaços, sementes e a excêntrica flor
[felicidade
14 | A lua investirá com seus chifres
VARANDA
a poesia envenenou-mejá não há mais tempo
a lua investirá com seus chifrese as cebolas no escuro despertarãoo olho do coração
da cadeirade balançoa Paciência contempla a penugem dourada das [horasenquanto um gato dormesobre sua cabeça
uma tempestade de diamantesarremessará suas flechassobre o Estreito de Magalhães
exatamente assimpassará um milênio
Ruy Proença | 15
LUGARES
há lugares na almatão escurosque até os cegospodem contar as estrelascadentes
contar as estrelase fazer muitos desejostantos quantos cabem na almade um cego
há praias na almatão escurasque até os videntespensam que é céu
cada grão de mica encerrauma estrela que caiude modo que o mundoda almaparece não ter pé nem cabeça
16 | A lua investirá com seus chifres
DUAS ROLDANAS
duas roldanas sustentamo cabo de aço dos sonhos
duas roldanas que giramcom a velocidadede antigamente
sustentam o filme das palavrasminhas palavrasoutras palavras
um aço maleávelum aço de pelicaum aço de lábios
duas roldanas,um cabo e umalicate de ponta
(para eventuais manutenções)
Ruy Proença | 17
AS SENSAÇÕES
atirantadas às nuvens as sensaçõesarmam o circo
corre o zíper da melancolia
cinco cães de raça sob clarinscinco célebres acrobatas rasgam a lona do céu
as sensaçõesavessas às nuvensmarcham a ré com patas de gafanhotos
cinco cães (os melhores amigos do homem)procurando algum trapézio
as sensaçõesnão estacionamas nuvens sim
a baqueta do mágicoe a linha do retrós invisívelarrematam as efemérides
18 | A lua investirá com seus chifres
ORLA MARÍTIMA
Venta.Venta demasiado.Vergam-se as palmeiras e o pensar.(Aonde arrasta-me a cabeleira em torvelinho?)Venta um maciço em pregas de cortina.Venta uma alma inconformada de oceano.Venta um crepúsculo polar.Venta uma solidão sem limites.As estrelas agarram-se ao firmamento.Venta.Desesperadamente.
Ruy Proença | 19
TEVE ESTA SINA
amor eterno mendigoaturado, poento, descalçosempre dormindo ao relentonas soleiras, em terra nua
amor sempre a urdir suas malhascaçador exímiofeiticeiro ávido de inventivassempre espreitando o que é belo e bom
amor filho do conúbio espúrio entre a penúria[e o engenho
neto da astúciaconcebido como um roubo a engenhoem seu sono pesado de néctar
amor nem imortal nem mortalora viça e viveora falecepara de novo surgir vivo
a renda de seus talentos sempre se esvaide sorte que o amornunca está na misérianunca na opulência
20 | A lua investirá com seus chifres
não viu quea língua incandescente da iguanafura o cerco do lençol e galgaao meio-diao corpo róseo desabrochado em sonosob o dossel?
não viu quea farândola das borboletas amarelasrodopia ao redor da medula e acendeo nervo do amor?
não ouviu asprateleiras dos armários desabando?os guarda-chuvas destelhando-se?o tropel dos sonhos desbaratados?
Ruy Proença | 21
se a luz estáem tudo que seduz
se até na mortea luz é passaporte
encontrem meus olhoso V do seu decote
luz dos passosdo meu foxtrote
22 | A lua investirá com seus chifres
quando eu for pequenobem menor que o menordos pequeninos carroceiros(os que usam brinco de ouro numa orelha só)quero voltar a olhar o mundo com espanto
no quarto afastadodeixar o coral da praça entrar em meus
[ouvidoscuidar para não amassar teu vestido brancoatravessar a nado teus cabelosencostar meus lábios assustados em teu
[pescoço roliço
chegar a deuse dizer sem medo
par ou ímpar?
Ruy Proença | 23
ANATOMIA DA MULHER
na pálpebra inferior esquerdareparem:palpita
pequena veia
o olhoa pepita
que brilhae
crepitasobre este
minúsculo acidentetem a cara do destino:
convexo
sol luadifícil distinguir o sexo
24 | A lua investirá com seus chifres
não pertence a beleza a quem é belo
em chamasdecompõe-se o sol do rosto no espelho
de todos os ladosnoturnosvêm abelhasecostormentosgrudam nos cabelosroem as unhasinvadem o castelo
o sangue já não é azul nem vermelho
a face erodida do tempoum ruidoso escaravelho
Ruy Proença | 25
SUSANA OU A DESESTRELA
podendo escolherentre o lírio dos valese a mandrágorapreferiu a última
poderia provavelmente imaginar queao fazê-loestava ela tambémoferecendo-se em flor
certamente porém, o que não poderia preveré que, na fenomenologia das lobas,mandrágora quer dizeramor
daí que, com este gesto,involuntariamenteabriu a possibilidade astrológicado desastre
26 | A lua investirá com seus chifres
FRUTO
findo ofogo
da furta-flor
fez-se ofigo
Ruy Proença | 27
ATRAVÉS DOS SÉCULOS
o mais habilidoso dos artíficesatirou seu aprendiz(ainda mais habilidoso que ele)do alto de um precipício
o mais habilidoso dos artíficesfez casar-se uma rainha, filha do Sol,com um touro(da união nasceu um monstroque depois de brincardevorava os homens)
o mais habilidoso dos artíficesconstruiu asas para seu filhoque não sabia voar(deleitando-se com o espetáculo das alturasentrou em parafusoe precipitou-se no mar)
o mais habilidoso dos artíficesperseguido por um homem poderosomatou-o na banheiracom uma ducha de água fervente
28 | A lua investirá com seus chifres
o mais prodigioso dos artíficesfoi o único capaz de passar um fiopor dentro de uma concha espiralada(com a ajuda de uma formiga)
sua experiência em construção de labirintosfez seu nome atravessar os séculos
Ruy Proença | 29
EDIFÍCIO DE HERÓIS
No décimo terceirohabita um matador.Antigo prisioneiro,matou o touro carcereiroe fugiu.
No décimo segundohabita um cego, órfão deste mundo.Salvou uma cidade inteira de seu martírio.Mas matou o paipor sugestão e por falta de informação.
No décimo primeirohabita um eloquente e narcisista orador.Por não ter família de renomeatentou contra o podernum país grande, mas pouco conhecido.Foi esquartejado.
No décimohabita um astrônomo.Quis profanar a Terra, roubá-la de onde
[estava.Mas depois, sob tortura,negou suas intenções.
30 | A lua investirá com seus chifres
No nonohabita um santo.Em contato com contraventoresdesatinou os filósofos da ética.
No oitavomora um guitarrista incômodo e intransigente.Quando não está de bad trip, está em êxtase.Toca guitarra até com o pé.
No sétimomora um jogador de futebol aposentado.Foi reie soube conviver harmonicamente com as
[embaixadas.
No sextomora um trotskistaperseguido pela polícia política.Passou a usar bigote y sombreroe tem sempre pesadelos com machados.
No quintomora um jovem solteirofilho de carpinteiro.Não tem profissão.Vive de fé.
Ruy Proença | 31
No quartomora uma modelo.Morena, é um herói revelador:já foi capa da Playboy.
No terceirohabita um jornalista louco. Diz que trabalha a
[sério num diário.Todos os dias se atira pela janelavestido indecorosamente com um collant azulonde se lê: S.
No segundoreside um chimpanzé melancólico e
[hipocondríaco.Vive à base de cápsulas. Sempre no mundo da
[lua.Foi à Lua antes de qualquer outro homem.
No primeironão mora ninguém.Na porta há esta placa:ALUGA-SE.
32 | A lua investirá com seus chifres
não me deram fantasmasderam-me canhões de palavras
empunho-as sobre a cabeçacomo um ramalhete multicor
sim me deram fantasmasexóticos fantasmas vistos através do periscópio
agarro-me à canetacomo a uma espingarda bem azeitada a uma boia
sim me deram fantasmasendiabrados no rock dos espelhos
viciei-me nisto até a alma
mastigo chumbo e florescom a mesma ansiedade
Ruy Proença | 33
a asa encruada no corponão é asa de anjoembora um anjo ocupea telha-vã desta casa
só o bisturi delicadode um cirurgião de imagens, ou a mãooperante do artistapoderão revelar a asa
com esta envergaduragerações de macacos metafísicosmigrarãoentre continentes
mais que a contramãoesta é a asa da palavra
quem fala poderá ruflá-la
34 | A lua investirá com seus chifres
POEMA a James Concagh
não há delicadeza algumaao fazê-lo
muitas vezesé preciso quebrá-lo
com o formão ou com o maçaricopara ser mais exato
destruí-loreconstruí-lo
seu aplique não se dá diretamente na madeiracomo seria natural pensar à primeira vista
uma camada de cimento é necessáriapara formar a base
as peças de ferrosão coladas com pequenos pontos de solda
Ruy Proença | 35
quando a geometria é por demais óbviaé mister serrar brutalmente os ferros
o efeitopode ser surpreendente
o ferro é por sium material muito pesado
às vezeschega a doer na alma
neste casoconvém pintá-lo com cores leves e alegres
o azul-turquesa, por exemplo,é capaz de revelar um mundo, coisas de
[crianças
e se do todo imaginar-se um peixeem sua imersão refletindo a lua
ou a foice da luaa ceifar o caule das estrelas
o poema estará pronto, ele mesmo,para ser mais uma ferramenta
36 | A lua investirá com seus chifres
a duraporém prazerosaincumbênciado poeta:
fazergerminarem plena praia desertauma macieira
insistirno erro, no delíriocontra todosos prognósticos
durante anosa fioteimar em levar a caboo projeto
contra o desertocontra o salcontra o ventoprojetar uma imagem obstinada
Ruy Proença | 37
quando os fios do cabeloestiverem já começandosua vagarosa viagempara outro mundo
uma árvore antes da árvoreestará plantada no centro da paisagem ácidacarregada de seus frutos vermelhosantes de qualquer vermelho
38 | A lua investirá com seus chifres
CERTO DESERTO
o carro corre o vento varre o sol dissolve
Ruy Proença | 39
PAISAGEM
uma montanha ajoelha-se rochosadiante do imenso azul
tem ao redor de sia larga pradariaquarada de sol rasante
no centro da pradariaum núcleo demata cerrada e
uma grota escura
serão o púbis desta Terra?
40 | A lua investirá com seus chifres
quando uma centopeiaestiver flutuando no espaçona penumbra de um banhode milhões de sóistalvez não haja mais mãespara tirar os filhosdo banhoe sentá-los à mesa de jantarolhando-os comolhos de centopeiaa flutuar no espaçona penumbra de um banhode milhões de sóis
Ruy Proença | 41
INFINITAMENTE
A cada pancada tua,Vibrante no céu abertoSinto mais longe o passadoSinto a saudade mais perto! Fernando Pessoa
aos ouvidos distraídosem longas conversas de quintalum pregão vem de longeinsinuando seu canto
a dois, cem réis, pastéisa dois, cem réis, pastéis
lá vem o mercadorlá vem a voz da rua:sua alegre fala de flautacerze um manto purpúreo de dor?
a dois, cem réis, pastéisa dois, cem réis, pastéis
lá vem o mercadorvendendo-se em sua mercadoria
42 | A lua investirá com seus chifres
a dois, cem réis, pastéisa dois, cem réis, pastéis
lá vai o mercadorsolitário a vagar pela cidadesem paradeiro
a dois, cem réis, pastéisa dois, cem réis, pastéis
alguém canta eesse canto está longee está perto
a dois, cem réis, pastéisa dois, cem réis, pastéis
a voz familiarvincou suas trilhasem nossa memória
a dois, cem réis, pastéisa dois, cem réis, pastéis
Ruy Proença | 43
envolto por um perfumede amoras esmagadasentrego-me à últimatarefa do dia:apanhar lenha para o fogo
o polegar eo indicador em formade pinça:retiro da pilhaacha por acha
temente a deuse ao destinotalvez refugiadosem uma aranha refugiadaque me teme
44 | A lua investirá com seus chifres
FISSURAS
fissuras, porosidadealvura maculadaalguma umidadecerta aspereza
somos no íntimo parentesdesta quente e velha paredetantas vezes caiada
Ruy Proença | 45
A CASA
15h31min. E agora, se explodiu a casa 4?Pendurados na árvore espalhados pela terra rasa: o velocímetro da bicicletinha os ponteiros retorcidos;uma bota preta de borracha, cano alto, 39; a capa do Madame Bovaryincendiada;a escova de dentes (completamente imberbe); uma caixa de costura de ponta-cabeça;o testemunho do despertador com as vísceras
[expostas; esquadrias de janelasem a paisagem da rua;o soquete de uma lâmpada, cortante, sem filamento; carapaças de conchas marinhas (o que fazem neste exílio?);baldes e panelas de alumíniosobreviventes, quase intactos; um vinil dos Stones com sulcos de arado;talheres milagrosamente arranjadosà mesa posta;
46 | A lua investirá com seus chifres
um osso para cachorro; as varetas de uma sombrinha;a lista telefônicaaberta nas páginas 560/ 561; um par de óculos em estado semelhante ao da janela;um ferro de passar roupadentro da geladeira emborcada; de onde estas placas de circuitos impressos?; farinhas espalhadase um cheiro insistente de vinagre.
Entre os escombrosainda não hávestígiosde cogumelos.
Ruy Proença | 47
OUTRO OURO
ouro deoutono
o novovelho
rubroquimono
48 | A lua investirá com seus chifres
deve ser a grande festaluzes-pérolas em carrosselnos jardins suspensos da Babilônia
deve ser a viagem paradisíacao grande mar conduzindoao atol das ilhas Maldivas
deve ser o divino encanto dos idíliosas flores amarelas vestindo o campoo sol rasante vestindo as flores, Lise
deve ser o extraordinário banquetedo castelo dos destinos cruzadosa salsa iluminando a língua, o céu da boca
deve ser a dionisíaca conversaa sala das piadasas explosões de júbilo
deve ser a câmara extraconjugala diva do sexo que se expõeem rosas sobre o divã
Ruy Proença | 49
deve ser algo muito especialmeus amigos estão partindo às pressaspara jamais
50 | A lua investirá com seus chifres
Não partirás ainda hoje.Três vespas africanas fazem o cerco do jardim.Três vespas africanas que gostam do
[tamarindocomo nós gostamos de tamarindo.
A tua passagem há de vir;e o verão saberá cuidar de ti.
Enquanto a brisa inseguranão fecha a janelapodemos enxergar a faíscados olhos da água na noite dos folículos.
O amor faz hoje2400 anos.Pescar ametistas nas trevasé o que nos devora.E o que nos devoraé o que nos ressuscita.
Estamos há 250000 anoste procurando.
Ruy Proença | 51
Um dia teremos antenase esta será a senhade nosso galope para o infinito.
52 | A lua investirá com seus chifres
novembro: as árvoresdepõem as armas
o silêncio na alameda se desprendesobre o lilás
a chuva da madrugadaassentou espelhos no asfalto:abismos de verde, azul e sol
o vento nada tange
tudo é motivoe celebração
esta é uma grande véspera
Ruy Proença | 53
OLHAR ANTIGO
Vai -se o dia ecom ele um deus:o sol que tudo esconde.
Vem a noiteindisfarçávelsem maquiagemmemória solitáriacampo de girassóis do pensamento.
Em seu compacto escudo negrolongínquocada estrelaé uma escotilhadebruçada sobre a claridadede um dia eterno.
54 | A lua investirá com seus chifres
mesmo que tivesse cem bocasmesmo que espiasse pela sexta janelamesmo que o Diabo lhe fizesse a cama onde se
[deitar com as mulheresmesmo que tivesse a roupa lavada com veneno
[de cobrano terrível redemoinho debaixo da cascata
[mais altase perderia na neblina dos mortos
mesmo que voasse sobre o marmesmo que voasse além do nono céumesmo que fosse à casa dos trovõesmesmo que espiasse pela sexta janelano terrível redemoinho debaixo da cascata mais
[altase perderia na neblina dos mortos
mesmo que caçasse o cisne sagrado do rio das [Sombras
mesmo que tivesse cem bocasmesmo que destilasse o mel dos estames de
[cem floresmesmo que corresse pela margem como uma
[lebre
Ruy Proença | 55
os peixes comeriam seus olhose rasgariam seus ombros
mesmo que a mãe o procurasse pelo bosque [como uma ursa
mesmo que a mãe uivasse canções de feiticeiramesmo que a mãe percorresse o pântano como
[uma lobamesmo que a mãe interrogasse cada árvorenada haveria a fazer
nem oito óleos prodigiososnem nove pomadas diferentesfariam efeito algumde nada adiantaria incomodar Deusde nada adiantaria vir de tão longeno terrível redemoinho debaixo da cascata
[mais altase perderia na neblina dos mortos
SOBRE O AUTOR
Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Re-vista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actua lidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do sé-culo 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007); Histórias verídicas, de Paol Keineg (Dobra, 2014) e Dahut, de Paol Keineg ( Espectro Editorial, 2015). Além de A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), é autor dos livros de poesia Pequenos séculos ( Klaxon, 1985), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas (Edi-tora 34, 2015) e dos poemas infantojuvenis de Coisas daqui (Edições SM, 2007).
Os poemas‟Teve esta sina”,‟Infinitamente”
e‟Mesmo que tivesse cem bocas”
devem sua existência respectivamente aos textosUm banquete
(Platão, tradução de Jaime Bruna, Ed. Cultrix),Memória e Sociedade(Ecléa Bosi, Edusp)
eUm herói fanfarrão e sua mãe bem valente
(adaptação de Ana Maria Machado, Ed. Ática).
pão ou pães, é questão de opiniães...João GuiMArães rosA
Este livro foi composto em Baskerville 12. Impresso em papel pólen bold 90g,
com tiragem de 120 exemplares, na primavera de 2016.