a lua e as fogueiras cesare pavese

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SOBRE A FEITIÇARIA ANTIGA

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MIL FOLHAS24Coleco Mil Folhas PBLICO24A LUA E As FOGUEIRASCesare PaveseDigitalizao e Arranjongelo Miguel Abrantes.(9 de Dezembro de 2002) Ttulo original: La luna e ilfaM Traduo: Manuel de Seabra 1950 e 2000 Giulio Emaudi editore SpA, TorinoC 2002 BIBLIOTEX, S.L. para esta edioO 2002 M.E.D.I.A.S.A.T. e Prornoway Portugal Comrcio deProdutos Multimdia, Ltda. para esta edio.Impresso Printer, Industria Grfica, S.A.BarcelonaData de impresso Outubro de 2002 ISBN 84-8130-558-8 Depsito Legal B. 37 480-2002Este livro vendido exclusivamente com o jornal PBLICO.Todos os direitos reservados.CESARE PAVESEA Lua e as FogueirasTraduo de Manuel de SeabraCOLECO MIL FOLHASExiste uma razo por que voltei a estes stios. Por que voltei aqui e no a Canelli, a Barbaresco ou a Alba. quase certo que no nasci por estas bandas. E no sei qual a terra que ouviu o meu primeiro vagido. No h por estes lados nenhuma casa, nem um pedao de terra, nem uns ossos, dos quais possa dizer: "Isto existia antes de eu nascer". Ignoro se sou originrio da colina ou no vale, do bosque ou de uma casa com varandas. A rapariga que me abandonou naquelas escadas em Alba talvez tambm no fosse de c, talvez fosse filha dos donos de algum palcio, ou talvez me tivessem trazido, num cesto de vindima, duas pobres mulheres de Monticello, de Neive ou, porque no?, de Cravanzana. Quem sabe que sangue corre nas minhas veias? Corri bastante mundo e aprendi que todos os sangues so bons e iguais, mas por isso que a certa altura nos cansamos e procuramos criar razes, arranjar uma terra, para que o nosso sangue valha e dure algo mais do que uma vulgar mudana de estao.Se cresci nesta regio, tenho de o agradecer Virgilia, a Padrino, tudo gente que j no existe, ainda que tivessem tomado conta de mim apenas porque o ospedale di Alessandria lhes pagava uma mesada. Nestas colinas, h uns quarenta anos, havia gente to pobre que, para ver um escudo de prata, criavam, alm dos filhos que j tinham, um bastardo do ospedale. Havia quem tomasse uma menina para, mais tarde, ter uma criada obediente. A Virglia quis-me porque j tinha duas filhas e, quando eu fosse crescido, esperavam arranjar uma fazenda maior e trabalharem todos e viverem bem. Padrino tinha, nessa altura, a casita de Gaminella dois quartos e um curral -, a cabra e aquela ribeira das avelaneirasEu cresci com as raparigas, roubvamos polenta e dormamos sobre o mesmo colcho. Angiolina, a mais velha, tinha um ano mais do que eu. No inverno em que morreu a Virgilia, soube, por acaso, que eu no era seu irmo. Desde esse Inverno, Angiolina teve que deixar de andar connosco pela ribeira cpelos bosques; tratava da casa, fazia o po e ia ela prpria buscar, todos os meses, o meu escudo ao municpio. Eu vangloriava-me, para Giulia, de valer cinco liras. Dizia-lhe que ela no rendia nada e perguntava a Padrino porque no recebamos outros bastardos.Agora sabia que ramos muito pobres, porque s os miserveis tomavam conta de bastardos do ospedale. Ao princpio, quando a caminho da escola os outros me chamavam bastardo, eu julgava que fosse um nome como velhaco ou vadio e pagava-lhes na mesma moeda. Mas eu era j um rapaz feito e o municpio deixou de pagar a mesada. E eu ainda no tinha percebido bem que o facto de no ser filho de Padrino e de Virglia queria dizer que no nascera em Garninella, que no sara de debaixo das avelaneiras ou da orelha da nossa cabra, como as raparigas.No ano passado, quando voltei c pela primeira vez, fui, quase s escondidas, rever as avelaneiras. A colina de Gaminella, uma encosta longa e ininterrupta de vinhas e ribeiras, um declive to insensvel que, erguendo a cabea no se lhe v o cume e a seguir, quem sabe onde, h outras vinhas, outras matas, outros atalhos era como esfolada no Inverno, mostrava a terra e os troncos nus. Via-a, luz fria, descer, gigantesca, at Canelli, onde o nosso vale termina. Pela estradazinha que acompanha o Belbo cheguei ao espaldar da pequena ponte e ao canavial. Vi, ali, beira, as paredes da casa, de grandes pedras enegrecidas, a figueira retorcida, a pequena janela vazia, e pensava naqueles invernos horrveis. Mas, em volta, as rvores e a terra estavam mudadas; a mancha das avelaneiras desaparecera, reduzida a um restolho de paino. No estbulo, mugiu um boi, e por entre o frio danoite senti o odor do esterco. Quem vivia agora na casa no era, pois, to pobre como ns. Sempre tinha esperado uma coisa assim, ou mesmo que a casa fosse deitada abaixo. Tantas vezes me havia imaginado encostado ao parapeito da ponte, a interrogar-me como fora possvel passar tantos anos naquele buraco, naqueles caminhos, pastoreando a cabra e procurando mas cadas no fundo da ribeira, convencido de que o mundo terminava na curva onde a estrada descia at ao Belbo. Mas no esperava no voltar a encontrar as avelaneiras. Isso queria dizer que tudo acabara. A novidade desencorajou-me a ponto que no chamei, no entrei na eira. Compreendi ento o que significa no ter nascido num lugar, no o ter no sangue, no estar j meio sepultado ao lado dos velhos, tanto que uma simples mudana de cultivo no nos afecte. Certamente, ainda havia manchas de avelaneiras na colina. Podia ainda reencontrar-me. Eu prprio, se fosse dono daquele rinco, t-lo-ia limpo e semeado de trigo, mas, no entanto, agora, fazia-me o efeito daquele quarto na cidade, que se aluga e onde se vive durante um dia ou durante um ano, e depois quando nos mudamos ficam as almofadas vazias, disponveis, mortas.Menos mal que naquela noite, voltando as costas Garninella, tinha minha frente a colina de Salto, do outro lado do Belbo, com o seu cume, com os grandes prados que desapareciam l no alto. E mais abaixo, tambm, era tudo vinha despida, cortada pelas ribeiras, e as manchas das rvores, os carreiros, as casas dispersas eram como eu sempre as vira, dia aps dia, ano aps ano, sentado na trave traseira da casa ou no parapeito da ponte. Depois, todos aqueles anos terminaram com a partida, quando fui como criado da Casa da Mora na grande plancie do outro lado de Belbo, e Padrino, vendida a casa de Gaminella, foi com as filhas para Cossano. Durante todos aqueles anos, bastava erguer os olhos dos campos para ver debaixo do cu as vinhas de Salto. E tambm estes desciam sobre Canelli, na direco da linha frrea, do silvo do combio que, de manh noite, corria ao longodo Belbo fazendo-me pensar nas estaes, na cidade e em outras maravilhas.Deste modo, durante muito tempo julguei que esta terra onde no nasci fosse tudo o que havia no mundo. Agora que vi realmente o mundo e que sei que formado por tantas pequenas aldeias, no sei se em rapaz me enganava muito. Andei por terras e mares, como os rapazes do meu tempo andavam pelas festas da regio e danavam, bebiam, brigavam, traziam para casa o casaco e os punhos estragados. Cresce a uva e depois vendida em Canelli; apanham-se os cogumelos que so levados para Alba. Aqui vive Nuto, meu amigo de Salto, que fornece prensas e dornas a todo o vale at Camo. Que quer isto dizer? Ter uma terra quer dizer no estar s, saber que na gente, nas plantas, na terra, h qualquer coisa de nosso, que mesmo que estejamos ausentes espera por ns. Mas no fcil estar tranquilo. H um ano que sinto isto e sempre que posso dar um salto a Gnova, foge-me das mos. Estas coisas compreendem-se com o tempo e a experincia. Ser possvel que aos quarenta anos, e com todo o mundo que eu vi, no saiba ainda o que a minha terra? qualquer coisa que no me convence. Aqui, todos julgam que voltei para comprar uma casa e chamam-me Americano, mostram-me as filhas. Para um homem como eu, que partiu sem ter sequer um nome, devia agradar-me. E, de facto, agrada-me. Mas no basta. Agrada-me tambm Griov, agrada-me saber que o mundo redondo e ter um p nos estribos dos comboios. Desde os meus tempos de rapaz quando, ao porto da Mora, me apoiava enxada e escutava a tagarelice dos vagabundos que passavam na estrada, para mim as colinas de Canelli so as portas do mundo. Nuto, que, ao contrrio de mim, nunca se afastou de Salto, diz que para resistir neste vale preciso no o abandonar nunca. Mesmo ele, que quando era novo chegou a ir tocar clarim na banda, muito para alm de Canelli, at Spigno, at Ovada, para o lado donde o Sol se levanta. Falmos muito de tudo isto, e ele riu.liEste Vero hospedei-me na penso do Angelo, na praa da aldeia, onde ningum me conhecia j, de to alto e velho que estou. De resto, tambm eu no conhecia ningum. No meu tempo, vinha-se aqui raramente. Vivamos beira da estrada, nas ribeirinhas, nas eiras. A aldeia muito metida no vale; a gua do Belbo passa diante da igreja meia hora antes de se estender pelas minhas colinas.Tinha vindo para passar uns quinze dias e topei com a Madonna de Agosto. As idas e vindas dos forasteiros, a confuso e a vozearia da praa, teriam espantado at um negro. Ouvi berrar, cantar, jogar bola; na escurido, fogo e morteiros; beberam, riram, fizeram a procisso; toda a noite, durante trs noites, houve baile na praa, e ouviam-se os automveis, as cornetas, os estoiros das barracas de tiro. Os mesmos rudos, o mesmo vinho, as mesmas caras de outros tempos. Os rapazes que corriam por entre as pernas da multido eram os mesmos; os lenos, as parelhas de bois, o perfume, o suor, as meias das mulheres nas suas pernas escuras, eram as mesmas. E os risos, as tragdias, as promessas beira do Belbo. Era como da outra vez em que, com os quatro soldi do meu primeiro salrio, me tinha atirado para o meio da festa, para os tirinhos, para o baloio. Fizemos chorar asrapariguinhas de tranas, e nenhum de ns sabia a razo por que homens e mulheres, rapazes endomingados e rapariguinhas toleironas, se encontravam, se agarravam, se riam uns para os outros, e danavam juntos. Agora estava aqui de novo e j o sabia, mas aquele tempo tinha passado. Sal do vale ainda mal comeava a saber essas coisas. Nuto, que ficara, Nuto,o carpinteiro de Salto, o cmplice das minhas primeiras fugas a Canelli, tinha tocado durante dez anos o seu clarinete em todas as festas, em todos os bailes do vale. Para ele o mundo era uma contnua festa que durou dez anos. Conhecia todos os bebedores e saltimbancos, todas as festas das aldeias.Desde h um ano, sempre que posso dar uma escapada, vou v-lo. A sua casa a meia encosta de Salto, d para a estrada; tem um odor de lenha fresca, de flores e de serradura que, nos primeiros tempos da Mora, a mim que vinha duma casita e duma eira, me parecia um outro mundo: era o odor da estrada, dos msicos, das vilas de Canelli onde nunca estivera.Agora Nuto casado, um homem feito. Trabalha e d trabalho. A sua casa ainda a mesma e, no jardim, tem sardinheiras e aloendros, vasos nas janelas e porta. O clarinete est pendurado no armrio. Caminha-se sobre serradura, que ele deita aos cestos na ribeira de Salto um riacho de cachias, de fetos e de engos, sempre seco no Vero.Nuto disse-me que tivera de escolher ou carpinteiro ou msico e assim, aps dez anos de festas, por morte do pai, deps o clarinete. Quando lhe contei onde tinha estado, disse que j sabia umas coisas por pessoas de Gnova e que, na aldeia, em tempos, contavam que, antes de partir, eu tinha encontrado uma panela cheia de ouro debaixo do pilar da ponte. Gracejmos.Talvez agora disse eu saiba tambm quem era o meu pai.O teu pai contestou s tu.Na Amrica respondi -, o que h de bom que so todos bastardos.Isso murmurou Nuto uma coisa que se devia arranjar. Por que razo h gente que no tem nome nem casa? No somos todos homens?Deixa as coisas como esto. Eu c safei-me, mesmosem nome.Tu safaste-te disse Nuto -, e agora ningum se atreve a dizer-te nada. Mas aqueles que no se safaram? No]osabes quantos miserveis h ainda por essas colinas? Quando andava com a banda, por toda a parte, em frente das cozinhas, encontrava-se o idiota, o deficiente, o pobre diabo. Filhos de alcolicos e de criadas ignorantes, que os reduziram a viver de talos de couves e de cdeas. E havia ainda quem fazia pouco. Tu safaste-te disse Nuto -, porque, m ou boa, encontraste uma casa. Comiam pouco em casa de Padrino, mas comiam. No justo dizer aos outros que se arranjem; devemos ajud-los.Gosto de falar com Nuto. Agora somos homens e conhecemo-nos. Mas dantes, no tempo da Mora, do trabalho no curral, ele, que tinha trs anos mais do que eu, sabia j assobiar e tocar guitarra, era procurado e escutado, falava com os grandes, e piscava o olho s mulheres. Ento eu andava atrs dele. s vezes escapava-me ao trabalho para ir com ele ribeira ou ao Belbo, caa de ninhos. Ele dizia-me o que era preciso fazer para ser respeitado em Mora; depois, noite, vinha para o ptio vigiar o curral connosco.E ento contava-me coisas da sua vida de msico. As aldeias onde tinha estado eram na vizinhana, de dia claras e matagosas sob o sol, noite ninhos de estrelas no cu negro. Com os colegas da banda, que ele ensaiava todos os sbados debaixo do alpendre da estao, chegavam s festas rpidos e contentes; depois, durante dois ou trs dias no tornavam a fechar nem a boca nem os olhos. Passavam o tempo entre o clarinete e o copo, o copo e o garfo, e de novo o clarinete, a corneta, o trombone; e outra comezaina, outro trago, outro solo; a seguir a merenda, a ceia, a vela at de madrugada. As festas repetiam-se, e as procisses, as bodas; havia concursos com bandas rivais. Na manh do segundo, do terceiro dia, desciam do estrado transtornados; era um prazer diz meter a cara num balde de gua e deitar-se por cima da erva dos prados, entre os carros, os cabriols e o esterco dos cavalos e dos bois. E quem pagava? perguntava eu. Os municpios, as famlias, os ambiciosos, todos juntos. E a comer dizia eram sempre os mesmos.Quanto comida. Meu Deus! Vinham-me memria as ceias que se contavam na Mora, ceias de outras terras e de11outros tempos. Mas os pratos eram sempre os mesmos, e ao sentir-lhes o aroma parecia ter voltado cozinha da Mora, ver de novo as mulheres ralar, empastar, destaparem as panelas, e acenderem o lume, e tornava a apreciar aquele sabor, sentia de novo os estalos das vides secas.Era a tua grande paixo dizia-lhe. Porque a abandonaste? Por causa da morte do teu pai?E Nuto dizia que, primeiro, a tocar traz-se pouco dinheiro para casa, e depois, todo aquele esbanjamento, no se saber nunca quem paga, ao fim e ao cabo cansa.Depois veio a guerra dizia. Talvez ainda lhes saltasse a perna s raparigas, mas quem que ia danar? A gente divertiu-se de outra maneira, durante os anos da guerra.Mas gosto da msica continuou Nuto, reflectindo.E apenas lamento que seja um mau patro... Transforma-se num vcio, domina-nos. O meu pai dizia que melhor o vcio das mulheres...Ah! exclamei -, e que tal a respeito de mulheres? Dantes agradavam-te. No baile passavam-te todas pelas mos.Nuto tem um modo especial de rir, baixo, mesmo quando o faz a srio.No povoaste tambm o ospedale diAlessandra?Espero que no disse ele. Por um como tu, quantos miserveis!Depois disse-me que, das duas, preferia a msica. Andarnum grupo s vezes acontecia nas noites em que voltavam tarde, e tocar, tocar, ele, a corneta, o bandolim, caminhando pelas estradas no escuro, longe de casa, longe das mulheres e dos ces que ladram como loucos, tocar assim...Nunca fiz serenatas dizia. Uma rapariga, se bela no a msica que busca. Procura luzir perante as amigas, procura o homem. Nunca encontrei uma rapariga que soubesse o que a msica...Nuto reparou que eu ria e disse de repente:Vou contar-te uma histria. Havia um msico, Arboreto, que tocava o bombardino. Fazia tantas serenatas que dizamos dele: Aqueles dois no se falam, tocam...12Tnhamos estas conversas pela estrada, ou sua janela bebendo um copo de vinho, e por baixo estendia-se a planura do Belbo, as rvores que assinalavam aquele fio de gua e, em frente, a grande colina de Gaminella, tudo vinhas e manchas de ribeiras. H quanto tempo no bebia daquele vinho?j te disse expliquei a Nuto -, que Cola quer vender?S a terra? disse ele. Toma cuidado que te vende tambm a cama!De saco ou de penas? disse entre dentes. Estou velho.Todas as penas se convertem em saco disse Nuto. E acrescentou: j foste dar uma vista de olhos Mora?De facto, no tinha ido. Estava a dois passos da casa de Salto e no tinha ido. Sabia que o velho, as filhas, os rapazes, os criados, todos tinham desaparecido, uns morrido, outros debandado. Restava s Nicolleto, aquele sobrinho tonto que tantas vezes me chamara bastardo pisando-me os ps, e metade da propriedade fora vendida.Disse:Tenho de l ir um dia destes. Agora voltei.111De Nuto, como msico, eu tivera notcias directas quando estava na Amrica h quantos anos? -, ainda no pensava em voltar, quando me servi dos caminhos de ferro e, de estao em estao, fui parar Califrnia. Vendo aquelas longas colinas ao Sol, dissera: "Estou em casa". Tambm a Amrica acabava no mar, e desta vez era intil embarcar, de modo que permaneci entre os pinheiros e as vinhas. "Ao ver-me de enxada na mo", pensava, "os de casa ririam". Mas no se cava na Califrnia. uma coisa s de jardineiro. Encontrei l uns piemonteses e fiquei aborrecido: no valia a pena ter atravessado tantas terras para ver gente como eu que, alm disso, me olhava de revs. Cultivei os campos e fui leiteiro em Oakland. noite, atravs da baa, viam-se as luzes de So Francisco. Andei por ali, passei um ms de fome e, quando sa da priso, encontrava-me em tal estado que chegava a invejar os chineses. Perguntava a mim prprio se valia a pena atravessar o mundo para ver semelhante espectculo. Voltei s colinas.Assim vivia h algum tempo e tinha uma amiga de quem deixei de gostar quando comeou a trabalhar comigo no bar da estrada de Cerrito. fora de me vir esperar, conseguiu que a empregassem como caixa e, agora, durante todo o dia, observava-me atravs do balco, enquanto eu frigia o toucinho e enchia os copos. Ao anoitecer, largava o servio e ela vinha a correr e alcanava-me, dava-me o brao e queria que eu chamasse um automvel para irmos at ao mar, ao cinema. Mal nos afastvamos das luzes do bar, ficvamos ss luz das estrelas, envoltos na vozearia dos grilos e dos sapos.15Eu gostaria de a ter levado para aqueles campos, por entre as macieiras, os pequenos bosques, ou apenas sobre a erva curta das ribanceiras, derrub-la sobre a terra, dar um sentido a toda aquela algazarra sob as estrelas. Guinchava como as mulheres costumam fazer, pedia para entrar noutro bar. Para se deixar acariciar tnhamos um quarto num beco de Oakland queria estar bria.Foi numa daquelas noites que tive notcias de Nuto. Tive-as por um homem que vinha de Bobbio. Conheci-o pela estatura e pelo andar, mesmo antes que ele abrisse a boca. Conduzia um camio de madeira, e enquanto l fora lhe enchiam o tanque de nafta, ele pediu-me uma cerveja. melhor uma garrafa disse eu em dialecto, apertando os lbios.Os olhos dele riram-se e fitou-me. Falmos at noite, at que l de fora deixaram de lhe tocar a buzina. Nora, da caixa, estendia o ouvido, agitava-se, mas Nora nunca estivera no Alessandrino e no percebia. Servi ao meu amigo uma taa de whsky proibido. Contou-me que, na sua terra, fora condutor, falou-me das terras por onde andara, porque viera para a Amrica...Mas se soubesse que aqui se bebe esta mistela... Aquece, mas no se compara a um bom vinho...No h disse-lhe. como a Lua. Nora, irritada, arranjava os cabelos. Virou-se na cadeira e abriu o rdio em msica de dana. O meu amigo encolheu os ombros, inclinou-se e disse-me por cima do balco, apontando para trs com a mo:- A ti agradam-te estas mulheres? Passei o trapo pelo tampo.A culpa nossa disse. Esta terra deles. Ficou calado a ouvir a msica. Eu escutava, por debaixo da msica montona, o coaxar dos sapos. Nora, despeitada, virava-lhe as costas com desprezo. o mesmo com esta msica disse ele. H comparao? No sabem tocar...E contou-me o que aconteceu na gare de Nizza no ano anterior, quando tinham vindo as bandas de todas as aldeias,16de Cortemilia, de San Marzano, de Canelli, de Neive, e tinham tocado, tocado, a tal ponto que ningum se atrevera a sair dali. Tiveram de suspender a corrida de cavalos, at o proco escutava e os msicos bebiam apenas para se aguentarem e meia noite ainda tocavam... Acabou por vencer Tibrio, a banda de Neive. Mas houve discusso, fugas, garrafas partidas e, na sua opinio, quem merecia o prmio era aquele Nuto de Salto...Nuto? Mas eu conheo-o. E ento o amigo disse-me quem era Nuto e o que fazia." Contou-me que naquela mesma noite, para ensinar os ignorantes, Nuto se meteu estrada e tinham tocado sem parar at Calamandrana. Ele tinha-os seguido em bicicleta, ao luar, e tocavam to bem que, nas casas pelo caminho, as mulheres saltavam da cama e batiam as palmas, e ento a banda parava e executava outro nmero. Nuto, ao centro, dirigia todos os outros com o clarinete.Nora pediu-me que fizesse calar a buzina. Servi outro copo ao meu amigo e perguntei-lhe quando regressava a Bubbio.Amanh disse ele -, se puder ser. Nessa noite, antes de descer a Oakland, fui fumar um cigarro na erva, longe da estrada onde passavam os carros, sobre a terra deserta. No havia Lua mas um mar de estrelas, tantas como as vozes dos sapos e dos grilos. Naquela noite, mesmo que Nora se deixasse derrubar sobre a erva, no me seria bastante. Os sapos no deixariam de coaxar, nem os automveis de acelerar na descida, nem a Amrica de acabar naquela estrada, com aquelas cidades iluminadas junto costa. Compreendi, na obscuridade, por entre aquele aroma de jardins e pinheiros, que aquelas estrelas no eram as minhas, que, como Nora e os fregueses, me causavam medo. Os ovos com presunto, os bons salrios, as laranjas grandes como melancias, nada significavam; pareciam aqueles grilos e aqueles sapos. Valia a pena ter vindo? Para onde poderia ir ainda? Atirar-me ao mar?Agora compreendia por que, de vez em quando, se encontrava na estrada uma rapariga estrangulada num auto17mvel, ou dentro de um quarto ou no fundo de uma ruela. Teriam eles tambm desejos de se deitarem sobre a erva, andar de acordo com os sapos, ser donos de um pedao de terra do tamanho de uma mulher, e dormir, realmente, sem medo? No entanto, o pas era grande, havia espao para todos. Havia mulheres, havia terra, havia dinheiro. Mas ningum tinha que lhe chegasse, ningum por mais rico que estivesse se detinha, e o campo, os vinhedos tambm, pareciam jardins pblicos, canteiros fingidos como os da estao, ou ento estava sem cultivar, terras queimadas, montanhas de ferro velho. No era um pas em que uma pessoa se pudesse resignar, descansar a cabea e dizer aos outros: "Por pior que as coisas vo, conheceis-me. Por pior que as coisas me vo, deixai-me viver em paz". Era isto o que me atemorizava. Nem entre eles se conheciam; atravessando aquelas montanhas compreendamos a todas as curvas que ningum se tinha nunca detido, ningum nunca as tocara com as mos. Por isso metiam os brios num barril e abandonavam-nos como mortos. E no s se embebedavam. como tinham ms mulheres. At que vinha o dia em que um deles, para ter conscincia de si prprio, para sentir a sua existncia, estrangulava uma mulher, matava-a enquanto dormia, esmagava-lhe o crnio com uma chave inglesa.Nora chamou-me da estrada para ir cidade. distncia, ela tinha uma voz corno a dos grilos. Larguei a rir ideia de que ela tivesse percebido o que eu estava a pensar. Mas estas coisas no se devem dizer a ningum. No serviria de nada. Urna bela manh no me ver mais e pronto. Mas, para onde ir? Chegara ao extremo do mundo, derradeira costa, e bastava. Ento comecei a pensar no caminho de volta.IVNem mesmo pela Madonna de Agosto Nuto quis pegar no clarinete. Diz que como o cigarro: quando se pra, no se pode voltar atrs. Ao anoitecer vinha at ao Angelo e ficvamos a tomar o fresco na varanda do meu quarto. A varanda d para a praa e esta era um espectculo infinito, mas ns ficvamos a olhar para alm dos telhados, para os vinhedos brancos luz da lua.Nuto, que para todas as coisas procura uma explicao, falava-me deste mundo, queria saber o que se faz e o que se diz, e escutava com o queixo apoiado na balaustrada.Se eu soubesse tocar como tu, no teria ido para a Amrica disse. Sabes bem como se naquela idade. Basta ver uma rapariga, trocar dois socos com outro, voltar a casa de madrugada. Queremos fazer coisas, ser algum, decidirmo-nos. No nos resignamos mesma vida de antes. Andando, parece mais fcil. Ouvem-se tantas coisas! Naquela idade, uma praa como esta parece um mundo. julgamos que o mundo assim...Nuto ficava calado, de olhos fixos nos telhados.Quem sabe quantos desses rapazes ali em baixo disse desejariam tomar o caminho de Canelli.Mas no se decidem retorquiu Nuto. Tu, em contrapartida, decidiste-te. Porqu?Estas coisas nunca se sabem. Por que razo na Mora me chamavam Enguia? Por que razo, uma manh, na ponte de Canelli, vi um automvel investir contra aquele boi? Por que motivo no sabia tocar nem sequer urna guitarra?Respondi:19Na Mora sentia-me bem. Cuidava que todo o mundo era como a Mora.No disse Nuto. Aqui est-se mal, mas ningum parte. Para algo existe o destino. Que sabemos ns? Tu em Gnova, na Amrica, em todos esses stios, devias estar a fazer qualquer coisa, a receber qualquer coisa que era para ti.Para mim? No tinha preciso de ir at l!Talvez alguma coisa muito bela disse Nuto. No ganhaste dinheiro? Talvez no tivesses dado por isso. Mas sempre nos acontece alguma coisa.Apoiado balaustrada, falava de cabea baixa, mas a voz atraioava-o. Parecia estar a fazer um jogo. De sbito, levantou a cabea.Um dia destes conto-te coisas daqui murmurou. Toca-nos sempre qualquer coisa. Repara nos rapazes, nessa gente que no ningum, que no fazem mal a ningum, mas aproxima-se o dia em que tambm eles...Senti que estava cansado. Engoliu a saliva. Desde que nos tornramos a ver ainda no me habituara a v-lo diferente daquele Nuto estoira-vergas e vivao que dava lies a todos e dizia sempre das suas. Nem sequer me parecia mudado: estava apenas um pouco mais forte, menos fantasista, e a suacara ratona aparecia agora mais tranquila e taciturna. Esperei que tomasse coragem e aquele peso o deitasse. Sempre vi que as pessoas, com o tempo, acabam por esvaziar o saco.Mas Nuto, naquela noite, no o fez. Desviou a conversa. Disse:Ouve-os, como saltam e blasfemam. Para os obrigar a vir rezar Madonna, o proco tem de os deixar desbravarem-se. E eles, para se poderem desbravar, precisam de acender as velas Madonna. Qual das duas coisas ludibria a outra?Ludibriam-se por turnos respondi.No, no discordou Nuto. Vence o proco. Quem que paga a iluminao, os foguetes, o priorado e a msica? E quem se diverte depois da festa? Esses escravos, que regam a terra com o suor do seu rosto, depois comem-na assim.20Mas a parte maior da despesa no toca s famlias ricas?E as famlias ricas donde tiram o dinheiro? Fazem trabalhar os criados' as mulheres, os camponeses. E a terra, onde a foram buscar? Por que razo h uns com muito e outros sem nada?Que s tu? Comunista? Nuto fitou-me entre triste e alegre. Deixou que a banda acabasse, e depois, olhando-me de esguelha, murmurou:Somos muito ignorantes neste pas. Comunista no quem quer. Havia por a um. Chamavam-lhe o "Cara Feia" Dizia que era comunista e vendia pimentes na praa. Bebia e depois gritava de noite. Toda a gente se comeou a aborrecer com o Cara Feia e depois ningum lhe comprava ospimentes. Teve que se ir embora este Inverno.Disse-lhe que tinha razo, mas que deviam ter actuado em 45 quando estavam com as mos na massa. Nessa ocasio at o Cara Feia teria sido til.Julgava, ao voltar Itlia, que vinha encontrar algo feito. Tinham a faca e o queijo na mo.Eu s tinha uma plaina e um escopro respondeu Nuto.Misria vi por toda a parte continuei. H pases onde as moscas vivem melhor do que os cristos. Mas isso no basta para que as pessoas se revoltem. E preciso um empurro. Nessa altura havia o empurro e a fora... Tu andaste tambm pelos montes?Nunca lhe havia perguntado. Sabia de muitos da aldeia rapazes nascidos quando ns ainda no tnhamos vinte anos que tinham morrido por aqueles caminhos, por aqueles bosques. Sabia muitas coisas, tinha-as averiguado, mas no se ele usara o leno vermelho e empunhara o funil. Sabia que aqueles bosques se haviam povoado de gente de fora, renitentes ao recrutamento, fugitivos da cidade, exaltados; Nuto no estava entre eles. Mas Nuto Nuto e sabe melhor do que eu o que e o que no justo.No disse ele. Se fizesse isso, queimavam-me a casa.21Na ribeira do Salto, Nuto tivera escondido dentro de uma choa um partgiano ferido e levava-lhe de comer durante a noite. Isso dissera-me a sua me. Era Nuto. Quando amos ontem pela estrada, encontrmos dois rapazes que atormentavam uma lagartixa. Tirou-lha das mos. Todos passamos pelos vinte anos!Se sor Matteo nos tivesse feito o mesmo quando andvamos pelas ribeiras perguntei-lhe -, que terias respondido? Quantos ninhos camos ns nesse tempo!So gestos de ignorantes respondeu. Fazamos mal. Deixai viver os animais. j sofrem o seu quinho no Inverno.No tenho nada a dizer. Tens razo.E depois, se se comea assim, acaba-se por degolar os homens e queimar os campos.Sobre estes lugares, produzindo um reflexo de charneca e tufos, faz um sol que eu havia j esquecido. Aqui o calor no parece baixar do cu,, mas da terra, do fundo dos vinhedos, devorando as folhas verdes, transformando tudo em sarmento. um calor que me agrada. Tem um aroma prprio: e dentro deste aroma encontro-me eu tambm, pois ele contm vindimas, ceifas e o cair das folhas, tantos sabores e tantos desejos que eu no suspeitava j trazer em mim. Por isso gosto de sair do Angelo e ter o campo diante dos olhos. Por instantes gostaria no ter construdo a minha vida, de poder mud-la, de dar razo s tagarelices de quem me v passar e pergunta se vim comprar uva ou outra coisa qualquer. Aqui, na aldeia, j ningum se lembra de mim, todos ignoram que eu fui criado e bastardo. Sabem que tenho dinheiro em Gnova. Talvez haja algum rapazote, campons como eu fui, alguma mulher que se aborrea por detrs dos postigos fechados, que pense em mim como eu pensava nas pequenas colinas de Canelli, naquelas gentes, naquele mundo onde as pessoas ganham muito dinheiro, se divertem e conhecem os caminhos do mar.Meio a brincar, meio a srio, ofereceram-me vrias fazendas. Eu fico a ouvir, de mos atrs das costas, j que nem todos sabem que percebo do assunto. Falam-me das grandes colheitas dos ltimos anos, mas que, agora, era preciso deitar abaixo um pequeno muro, fazer uma transplantao, e no lhes possvel faz-lo.. E onde se meteram essas colheitas? digo-lhes. Esses rendimentos? Porque no os invertem nas propriedades?23Os adubos!... Eu, que vendi adubos por grosso, corto logo. Mas a conversa agrada-me. E agrada-me ainda mais quando chegamos s propriedades, quando atravessamos uma eira, visitamos um estbulo, bebemos um copo de vinho.j conhecia o velho Valino desde o dia em que voltei casa de Gaminella. Nuto tinha-o feito parar numa praa e perguntara-lhe se me conhecia. Era um homem seco e escuro, com dois olhos de toupeira que me fitaram circunspectos, e quando Nuto lhe disse que eu era um dos que havia comido do seu po e bebido do seu vinho, ficou perplexo, pensativo. Perguntei-lhe se havia sido ele quem cortara as avelaneiras e se por cima do estbulo havia ainda aquele espaldar de passas de uva. Dissemos-lhe quem eu era e donde vinha. Valino no se atrapalhou, disse apenas que a terra da ribeira era pouco produtiva e que todos os anos a chuva lhe levava um pedao. Antes de prosseguir, fitou-me, observou Nuto e disse-lhe:Aparece por l um dia destes. Quero mostrar-te aquele barril que pinga...Depois, Nuto recordou-me:Tu em Gaminella no comias todos os dias... j no brincava, agora. No entanto, no deviam repartir. Agora a casa foi comprada pela senhora da Villa e vem distribuir a colheita com uma balana... j dona de duas fazendas e uma loja. Depois dizem que os camponeses roubam, que os camponeses so m gente...Fui at l sozinho e pensava na vida que Valino devia ter levado durante tantos anos sessenta?, talvez menos a trabalhar como meeiro. Tinha sado de muitas casas, de muitas terras, depois de ter dormido, comido, trabalhado ao sole ao frio, carregando os seus mveis numa carroa emprestada, por estradas onde no voltaria mais. Sabia que era vivo, que a mulher morrera na fazenda antes de se estabelecer aqui e, dos seus filhos, os mais velhos tinham morrido na guerra. S lhe restava um rapaz e as raparigas. Que mais fazia ele neste mundo?Nunca sara do vale do Belbo. Sem querer, detive-me no24atalho, pensando que, se vinte anos atrs no tivesse fugido dali, aquele teria sido tambm o meu destino. No entanto, eu pelo mundo, ele nestas colinas, tnhamos dado voltas e mais voltas, sem podermos dizer: "Isto meu. Aqui envelhecerei. Morrerei neste quarto".Cheguei debaixo da figueira, em frente da eira, e voltei a ver o atalho entre duas elevaes erbosas. Agora havia umas pedras colocadas ao jeito de degraus. O caminho do prado at estrada continuava na mesma, com erva seca debaixo de um molho de lenha, um cesto roto, mas podres e esborrachadas. Ouvi o co que corria ao longo do arame.Quando a minha cabea apareceu no alto dos degraus, o co enfureceu-se. Saltava sobre as patas, ladrava, estrangulava-se. Continuei a subir, e vi o alpendre, o tronco da figueira, o ancinho encostado porta: a mesma corda com o n pendia do buraco dessa porta. A mesma mancha verde em redor do muro. A mesma planta de rosmaninho esquina da casa. E o odor, o odor da casa, da ribeira, das mas podres, dos pastos secos e do rosmaninho.Em cima daquela roda, ali no cho, vi um rapaz sentado, que vestia um bibe e levava as calas rotas presas por um s suspensrio e uma das suas pernas aparecia separada, afastada de um modo natural Ser uma brincadeira? Fitou-me, a despeito do sol. Tinha entre as mos uma pele de coelho e entreabria as plpebras para ver melhor.Parei e ele continuou a mover os olhos. O co ladrava, tentando quebrar o arame. O rapaz estava descalo, tinha uma postela debaixo do olho, as espduas ossudas e no podia mover a perna. De repente lembrei-me das vezes em que tivera frieiras, crostas nos joelhos, os lbios rachados. Lembrei-me como Virglia arrancava a pele dos coelhos depois de os estripar. Agitei as mos e fiz um sinal.No umbral da porta surgiu uma mulher, duas mulheres de saias negras: uma decrpita e torta, outra mais nova e magra, que me fitavam. Perguntei por Valino. Responderam. que no estava, que fora at a ribeira.A mais nova deu um grito ao co e puxou o fio. O rapaz levantou-se da roda. Levantou-se a custo cruzando a perna, e25arrastou-se at ao animal. Era coxo, raqutico; vi-lhe o joelho pouco maior que o seu brao; arrastava o p atrs de si como um peso. Teria uns dez anos e, ao v-lo naquela eira, parecia ver-me a mim prprio. Quando deitei uma vista de olhos pelo portal, atrs da figueira, no milho, pareceu-me ver Angiolina e Giulia. Quem sabe onde estariam? Se ainda eram vivas num lugar qualquer, deviam ter a idade daquela mulher.Quando o co se calou, elas nada disseram. Limitaram-se a fitar-me.viEnto disse que, se Valino voltava, esperaria por ele. Responderam que s vezes se demorava.Das duas mulheres, a que segurava no co estava descala e queimada pelo sol e tinha um pouco de buo sobre os lbios fitava-me com os seus olhos escuros e circunspectos como Valino. Era a cunhada, a que dormia agora com ele. De estar junto desse homem tinha chegado a parecer-se com ele.Entrei na eira (de novo o co se lanou), e disse que estivera ali em criana. Perguntei se o poo ainda era por detrs da casa. A velha, sentada agora no umbral ' resmungou, inquieta; a outra baixou-se para apanhar o ancinho cado diante da porta, depois gritou ao rapaz que olhasse para a ribeira a ver se vinha a o pai. Ento eu disse que no era necessrio, que passara por ali e tivera a ideia de tornar a ver a casa onde me havia criado, mas que conhecia toda a propriedade, da ribeira at ao nogueiral, e podia percorr-las sozinho, tornar a descobri-las.Depois perguntei:Que tem este moo? Caiu por cima da enxada? As duas mulheres olharam para mim e para ele e o rapaz desatou a rir ria silenciosamente e a seguir fechou os olhos. Tambm eu conhecia esta brincadeira.Disse:Que tens tu? Como te chamas? Foi a cunhada quem respondeu s minhas perguntas. Explicou que o mdico tinha examinado a perna de Cinto no ano em que morreu Mentina, quando ainda viviam em27Orto. Mentiria estava no seu leito de morte e o mdico, no dia antes de ela morrer, havia-lhe ralhado dizendo-lhe que o rapaz no tinha os ossos bons por culpa dela. Mentiria respondera que os outros filhos mortos na guerra saram de boa ossadura, mas que este nascera assim por causa do co raivoso que a quisera morder, fazendo-a at perder o leite. O mdico voltou a ralhar com ela, e explicou-lhe que a culpa no era do leite, mas sim dos molhos de lenha, de andar descala chuva, de comer gro e polenta, de transportar cestos pesados. Devia ter pensado nisso antes, concluiu o mdico, agora era tarde de mais. E Mentiria insistiu que os outros tinham sado sos. No dia seguinte morreu.O rapaz escutava a conversa encostado ao muro e reparei que no estava a rir como me parecera a princpio. Pelo contrrio, estava muito atento. Tinha as maxilas salientes e os dentes separados, e aquela crosta debaixo do olho.Disse s mulheres:Vou ao encontro de Valino. Desejava estar s, mas as mulheres gritaram ao rapaz:Anda! Vai busc-lo. Entrei no prado e ladeei a vinha, que entre os regos estava pejada de restolho de gro, queimada pelo sol. Porquanto por detrs da vinha, em vez de sombra das avelaneiras, a vertente fosse um milheiral baixo at onde a vista podia alcanar, aquele campo era bem minsculo, do tamanho de um leno. Cinto caminhava atrs de mim, coxeando, e num instante chegmos ao nogueiral. Parecia-me impossvel ter andado e brincado tanto por aquelas paragens, desde ali at estrada, ter descido ribeira para apanhar nozes ou mas cadas, ter passado sobre aquele pasto tardes inteiras com a cabra e as raparigas, e aguardando nos dias de Inverno um pouco de bom tempo para voltar como se aquilo fosse um pas inteiro, o mundo inteiro. Se daqui no houvesse sado, por casualidade, aos treze anos, quando Padrino foi morar para Cossano, ainda hoje faria a vida de Valino, ou de Cinto. O que constitui um mistrio como conseguamos comer. Nesse tempo mordiscvamos mas, abboras, gro. Virglia conia matar-nos a fome. Mas agora compreen28dia a razo do rosto sombrio de Valino, que trabalhava de sol a sol, e ainda tinha de repartir... Os frutos estavam vista: aquelas mulheres inumanas e aquele rapaz aleijado.Perguntei a Cinto se ele ainda vira as avelaneiras. Firmado no seu p so, o rapaz fitou-me incrdulo, e disse-me que l para o fundo da ribeira ainda havia algumas plantas. Virando-me para falar, tinha divisado por cima dos vinhedos a mulher de luto que nos observava da eira. Envergonhei-me do meu fato, da minha camisa, dos meus sapatos. H quanto tempo no andava descalo? Para convencer Cinto da minha parecena com ele noutros tempos, no bastava a minha conversa sobre Gaminella. Para ele, Gaminella era todo o mundo e todos lhe falavam do mesmo modo. Que teria dito eu se nessa altura me aparecesse um homem como eu e me tivesse acompanhado a percorrer as propriedades? Tive por um instante a iluso de que em casa me esperariam as raparigas e a cabra e, feliz, ter-lhes-ia contado este singular encontro.Agora Cinto seguia-me com interesse. Chegmos ao fundo da vinha. No reconheci os regos: perguntei-lhe quem fizera a transplantao. Ele dizia graas, dava-se ares de importncia, dizia que a senhora da Villa apenas ontem viera buscar os tomates.Deixou alguns? perguntei.Ns j os tnhamos apanhado respondeu. Estvamos por detrs da vinha. Ainda restava um pouco de erva naquele rinco que sempre constitura um paraso para a cabra, e a colina erguia-se por cima das nossas cabeas. Perguntei-lhe quem vivia em cada uma das casas que vamos ao longe, disse-lhe quem residia l dantes, contei-lhe os ces que havia; era no tempo em que todos ramos rapazes. Ele escutava e dizia-me que ainda restavam alguns. Depois perguntei-lhe se ainda existia aquele ninho de tentilhes narvore que se erguia a nossos ps, da ribeira. Tambm inquiri se ele ia at ao Belbo pescar com cesta.Era estranho como tudo mudara e, no entanto, tudo continuava na mesma. Nem uma vide restava das velhas, nem sequer um animal. Agora os prados estavam transformados29em restolho, e o restolho formava regos e as pessoas tinham passado, crescido, morrido; as razes desprenderam-se, arrastadas pelo Belbo. No obstante, deitando uma mirada nossa volta, do lado de Gaminella, os caminhos longnquos sobre as colinas de Salto, as eiras, os poos, as vozes, as enxadas, nada havia mudado, tudo tinha aquele aroma, aquele gosto, aquela cor de ento.Perguntei-lhe se conhecia as aldeias dos arredores. Se estivera alguma vez em Canelli. Sim, tinha l ido quando o pai levou uva a Gancia para a vender. E algumas vezes, com os filhos de Piola, atravessavam o Belbo e iam at linha ver passar o comboio.Expliquei-lhe que nos meus tempos este vale era maior, havia quem o percorresse de carroa, e os homens levavam uma corrente de ouro no colete e as mulheres do povo, na estao, usavam sombrinha. Disse-lhe que se faziam grandes festas matrimoniais, baptizados, Madonnas e vinha gente de longe, das colinas, e msicos, caadores, regedores. Havia casas palacetes, como o Nido na colina de Canellicom salas to grandes que cabiam l quinze ou vinte pessoas como no hotel do Angelo, e comiam e tocavam msica todo o dia. Tambm ns, os rapazes, nesses dias fazamos as nossas festas nas eiras, e brincvamos; no Vero, barra, no Inverno ao pio no gelo. A barra jogava-se saltando sobre uma s perna, sobre filas de pedras pequenas sem lhes tocar. Depois da vindima os caadores percorriam os bosques, as colinas; subiam desde Gaminella, San Gratto e Camo; voltavam cheios de lama, mortos de cansao, mas carregados de perdizes, de lebres, de caa. Ns, da casa, vamo-los passar e, depois, at noite, nas casas da aldeia, ouviam-se vozes de festa, e no palacete de Nido, l em baixo nessa altura avistava-se daqui, no estava encoberto pelas rvores -, todas as janelas tinham luz, estavam acesas, e viam-se deslizar as sombras dos convidados at de madrugada.Cinto escutava de boca aberta, com a sua crosta debaixo do olho, sentado na berma da vinha.Eu era rapazito como tu disse-lhe. Vivia aqui com Padrino, tnhamos uma cabra. Eu levava a cabra a pastar. No Inverno no passavam os caadores, era muito desagradvel pois nem sequer se podia ir ribeira por causa da gua e da nevasca, e uma vez agora isso impossvel vieram os lobos esfomeados e de manh encontravam-se os sinais das suas patas sobre a neve. Esses sinais pareciam de ces, mas eram mais fundos. Eu dormia com as raparigas no quarto de trs e de noite ouvamos uivar o lobo na ribeira...Na ribeira, o ano passado, encontraram um morto disse Cinto.Parei. Perguntei-lhe quem era o morto.Um alemo respondeu. Tinham-no enterrado os partigiani em Gaminella. Estava todo esfolado...To perto da estrada? inquiri.No, vinha l de cima, da ribeira. Foi arrastado pela gua e o pai encontrou-o debaixo do barro e das pedras...VilEntretanto, da ribeira vinha o estalido duma podadeira cortando os ramos que se lhe opunham e a cada golpe Cinto movia as pestanas. o pai disse. Est l em baixo. Perguntei-lhe por que razo tinha fechado os olhos enquanto eu o fitava e as mulheres falavam. Voltou a fech-los de novo, instintivamente, e negou t-lo feito. Desatei a rir e disse-lhe que, quando era rapaz, eu tambm conhecia aquela brincadeira; desse modo apenas via as coisas que desejava e ao tornar a abri-los divertia-me por as encontrar como eram na realidade.Ento Cinto descobriu, alegre, os dentes, e afirmou que os coelhos faziam o mesmo.- Aquele alemo disse devia ter sido comido pelas formigas.Um grito de mulher desde a eira, que chamava o rapaz, que o procurava e o amaldioava, fez-nos sorrir. Aquilo ouvia-se muitas vezes nas colinas.- j no se podia saber como o tinham morto continuou ele. Esteve dois invernos debaixo da terra...Quando camos entre as folhas, as silvas e a hortel do fundo, Valino apenas ergueu a cabea. Estava a cortar os ramos avermelhados de um salgueiro. Como de costume, no ms de Agosto, ali em baixo fazia frio era um lugar sombrio. Durante algum tempo a ribeira recebia muita gua e formavam-se charcos no Vero.Perguntei-lhe em que stio pensava pr os ramos do salgueiro neste ano de seca. Ele inclinou-se para apanhar o33molho, mas mudou de ideia. Ficou a olhar para mim, arranjando os ramos com o p, atando a podadeira atrs das calas. Tinha as calas e o chapu enlameados, de uma cor quase celeste, como as que se usam para sulfatar as vides.- A uva est boa este ano afirmei. S lhe falta uma pinga de gua.Falta sempre alguma coisa disse Valino. Estou espera que Nuto aparea por c por causa daquele barril. Quando vir?Expliquei-lhe que passara por acaso por Garninella e quisera ver outra vez os campos. Mas j os no conhecia de to trabalhados que estavam... A vinha nova tinha apenas trs anos, no? E na casa inquiri tinham feito tambm algumas obras? No meu tempo, a chamin no estava boa. Tinham especado aquela parede?Valino respondeu-me que em casa estavam as mulheres. Isso era l com elas. Deitou uma vista de olhos ribeira, por entre as folhas das rvores. Acrescentou que aqui o campo era como os campos, que para o fazer produzir eram precisos muitos braos e que no os havia.Ento falmos da guerra e dos seus mortos. Dos filhos nada disse. Resmungou. Quando falei dos partigiani e dos alemes, encolheu os ombros. Disse que nesse tempo estava em Orto e vira queimarem a casa de Ciora. Durante todo um ano ningum trabalhara o campo, e se todos aqueles homens tivessem voltado para as suas casas os alemes para as suas, os nossos s suas fazendas todos teriam lucrado muito mais. Que caras! Que gente! Nunca vira tanta gente estranha, nem nas feiras onde ia quando era rapaz.Cinto escutava de boca aberta. Quem sabe quantos disse eu haver sepultados pelos bosques.Valino fitou-me com o seu rosto escuro e sombrio, os olhos turvos, duros.H-os murmurou. H-os. Basta ter tempo para os procurar. No havia amargura nem piedade na sua voz. Falava como se se tratasse de ir procura de cogumelos ou de34lenha. Durante um momento animou-se, mas a seguir disse:Pouco renderam estando vivos. Menos rendero estandomortos.Pois bem, pensei, aqui est um que Nuto classificaria de ignorante, de infeliz, e a quem perguntaria por que razo o mundo tinha de continuar assim, igual. Nuto, que percorrera tantas aldeias e conhecia as misrias de todos, nunca se interrogara se aquela guerra tivera ou no utilidade. Era necessrio aceit-la, por mera fatalidade. Nuto tem plena conscincia de que um facto que desse modo se cumpre deve interessar a todos, que o mundo est mal feito e que preciso tornar a constru-lo.Valino no me convidou a subir com ele a tomar um copo de vinho. Apanhou o feixe de ramos de salgueiro e perguntou a Cinto se tinha ido apanhar a erva. Cinto afastou-se, baixou os olhos e no respondeu. Ento Valino deu um passo em frente e com a mo livre pegou num ramo de salgueiro ao jeito de chicote. Cinto fugiu e Valino tropeou, endireitando-se logo a seguir. Cinto, do fundo da ribeira, fitava-o agora.Sem uma palavra, o velho tomou por uma pendente, com os ramos debaixo do brao. No voltou a cabea nem quando chegou ao cimo. Tive a sensao de que eu era um rapaz que tinha vindo brincar com Cinto e que o velho o tinha castigado, no podendo fazer o mesmo a mim. Cinto e eu fitamo-nos e rimos, sem dizermos palavra.Descemos pela ribeira sob a cpula fria das rvores. Bastava passar junto queles charcos descobertos, para sentir o mormao e o suor. Eu reflectia acerca daquele mormao, que aparecia diante do nosso prado, como sustento da vinha de Morone. Via-se, por cima, sobre os carvalhos, surgir asprimeiras vinhas claras e um belo pessegueiro com algumas folhas vermelhaas como as que havia no meu tempo, e alguma fruta cada na ribeira que parecia melhor que nenhuma. Estas macieiras e pessegueiros que no Vero tm folhas vermelhas ou amarelas, fazem-me gua na boca, pois a folha assemelha-se fruta madura e ns, por baixo, sentimo-nos felizes. Para mim, todas as plantas deviam dar frutos; como acontece na vinha.35Com Cinto falvamos dos jogadores da bola e de cartas; e chegmos ao atalho, junto parede da ribeira, no meio das accias. Cinto tinha visto um baralho de cartas a um homem que possua uma loja na praa, e disse-me que tinha em casa um dois de espadas e um rei de copas que algum perdera na estrada. Estavam um pouco sujas, mas se achasse tambm as outras, teriam servido. Contei-lhe que havia quem jogasse as casas e as terras. Tinha estado num pas, disse-lhe, onde o jogo se fazia com um monte de moedas de ouro em cima da mesa e o revlver no bolso. E tambm nas nossas aldeias, quando eu era rapaz, os donos das grandes fazendas, depois de venderem a uva e o gro, atrelavam o cavalo e tarde partiam para Nizza ou Aqui, com as bolsas cheias de moedas de ouro, jogavam durante toda a noite; jogavam as moedas; depois a fazenda, e na manh seguinte eram encontrados mortos em cima da cama do hotel, debaixo do quadro da Madonna e do ramalhete de oliveira. Ou ento partiam em cabriol e nunca mais ningum sabia deles. Havia at quem jogasse a mulher, e assim os filhos ficavam ss, punham-nos fora de casa, e depois chamavam-lhes bastardos.O filho de Murino disse Cinto um bastardo.H pessoas que tomam conta deles disse-lhe. Mas sempre a gente mais pobre. Sem dvida Murino necessitava de um rapaz...Se lhe dizem isso fica zangado afirmou Cinto.No deves dizer-lhe nada. Que culpa tem ele se o seu pai o deu a outro? Basta que haja vontade de trabalhar. Conheci alguns bastardos que, com o tempo, chegaram a comprar fazendas.Tnhamos abandonado a ribeira e Cinto, adiantando-se, correu a sentar-se sobre um pequeno muro. Por detrs das rvores, do outro lado da estrada, estava o Belbo. Era para aqui que ns vnhamos brincar, depois que a cabra nos obrigara a calcorrear durante toda a tarde pelas pendentes e ribeiras. As pedras do caminho eram ainda as mesmas, e das copas frescas das rvores desprendia-se um odor de gua manancial.36No vais apanhar a erva para os coelhos? perguntei-lhe.Cinto respondeu que j ia. Ento comecei a caminhar e, at curva, senti que aqueles olhos me espiavam desde o canavial.VIIIDecidi s voltar a Gaminella com Nuto. Desse modo, Valino deixar-me-ia entrar. Mas para Nuto este caminho est fora de mo. Eu, pelo contrrio, passava ali a mido, e s vezes acontecia que Cinto me esperava no atalho ou saa do canavial minha procura. Apoiava-se ao pequeno muro com a sua perna estropeada e deixava-me falar.Mas aps os primeiros dias, acabada a festa e o torneio de futebol, o hotel do Angelo voltou a estar tranquilo e quando, ouvindo apenas o zumbido das moscas, tomava caf janela observando a praa vazia, senti-me como um sndaco que observa a aldeia da janela do municpio. Nunca tinha pensado nisto quando era rapaz. Longe de casa trabalha-se mesmo que se no queira, faz-se fortuna sem querer: fazer fortuna quer dizer exactamente ter ido longe e voltando assim, rico, grande, gordo, livre. Em rapaz eu no sabia isto, mas tinha sempre o olhar fixo na estrada, nos transeuntes, nas maravilhas de Canelli, nas colinas, no stio onde estas se unem ao cu. Foi o destino repete Nuto que, pelo contrrio, nunca saiu dali. Ele no correu mundo, no fez fortuna. S lhe podia acontecer o que acontece neste vale: crescer como uma rvore, envelhecer como uma mulher ou uma cabra, sem saber o que se passa do outro lado de Bormida, sem sair do crculo da casa, da vindima, das feiras. Mas a ele tambm, que nunca sara daqui, algo lhe acontecera, um destino a ideia de que indispensvel compreender as coisas, ajust-lase de que o mundo foi to mal concebido que preciso modific-lo.Quando era rapaz, a pastar a cabra e no inverno a partir39a lenha com raiva pondo-lhe o p em cima, ou quando brincava, tinha o costume de fechar os olhos para depois, ao abri-los de novo, certificar-se se a colina teria desaparecido. j ento me preparava para o meu destino, a viver sem casa, a esperar que para alm das colinas existisse um lugar mais belo e mais rico. Pensando neste quarto do Angelo nessa altura nunca tinha visto nada de semelhante tive a sensao de que sempre soube que um senhor, um homem com os bolsos cheios de moedas de ouro, um dono de fazendas, quando partia no cabriol paraver o mundo, uma boa manh se encontrava num quarto como este, lavava as mos numa bacia branca, escrevia uma carta sobre a velha mesa brilhante, uma carta destinada a algum na cidade, uma carta com uma morada distante, que seria certamente lida por caadores, regedores, e senhoras de sombrinha. E agora assim acontecia. Pela manh tomava o caf e escrevia cartas para Gnova e para a Amrica, manejava dinheiro, ocupava outras pessoas. Talvez dentro de um ms estivesse de novo no alto mar, por detrs das minhas cartas.Um dia tomei caf com o Cavaliere, l em baixo, em frente da praa soalhenta. O Cavaliere era filho do velho Cavaliere, que nos meus tempos era dono das terras do Castello e de diversos moinhos, tendo mandado construir at um dique no Belbo quando eu ainda no viera ao mundo. Passava s vezes pela estrada numa carruagem guiada por um criado. Tinha uma vivenda na aldeia, cercada por um jardim e com plantas raras de que ningum sabia o nome. As persianas da vivenda estavam sempre fechadas quando eu ia escola e parava l em frente.Agora o velho tinha morrido e o Cavaliere ostentava a figura de um pequeno advogado calvo que no exercia a profisso: as terras, os cavalos, os moinhos, tinha-os dissipado nas suas rpidas escapadas cidade; a grande propriedade do Castello tinha desaparecido; ficou-lhe apenas uma pequena vinha e fatos usados, e era visto na aldeia com uma bengala de cabo de prata. Ps-se a falar comigo com toda a correco; sabia donde eu vinha; perguntou-me se estivera tambm em40Frana, e bebia o caf afastando o dedo mnimo e inclinando o corpo para a frente.Todos os dias parava em frente do hotel e conversava com os outros clientes. Sabia muitas coisas, muitas mais que muitos jovens, o mdico e eu, mas eram coisas que no quadravam com a sua vida actual: bastava ouvi-lo para compreender que o Velho morrera havia tempo. Pensei que era como aquele jardim da vivenda, cercado de palmeiras, de canas exticas, de flores com etiqueta. A seu modo, o Cavaliere tambm fugira da aldeia, correra mundo, mas sem fazer fortuna. Os parentes tinham-no abandonado, a mulher (uma condessa de Torino) morrera; o filho, o nico filho, o futuro Cavaliere, suicidara-se por causa de um sarilho de mulheres e de jogo antes de fazer o servio militar. No obstante, este velho, este pobre diabo que dormia num pequeno quarto em casa dos rendeiros da sua nica vinha, conservava uma fisionomia sempre corts, ordenada, senhoril, e sempre que me via tirava o chapu.Da praa via-se a colina onde estavam as suas propriedades, por detrs do telhado do municpio, uma vinha pessimamente cuidada, invadida pelas ervas, e mais acima, contra o cu, um tufo de pinheiros e canas. tarde, um grupo de folgazes, que tomava caf, muitas vezes troavam dele a propsito dos seus rendeiros que eram donos de meio San Grato e permaneciam em sua casa apenas pela comodidade de estar perto da aldeia, mas sem lhes passar pela cabea cavar-lhe a terra. Ele, convencido, replicava que isso era com eles, com os rendeiros, saber o que uma vinha necessitava e que, alm disso, em tempos passados, havia senhores, os donos das adegas, que deixavam por cultivar uma parte das suas propriedades para ir caa ou por simples capricho.Todos riam, s de pensarem que o Cavaliere fosse caa, e algum disse que era melhor plantar gro.Plantei rvores disse ele com uma energia e entusiasmo repentinos. E a voz tremia-lhe. Era to correcto que no sabia defender-se. Intervim ento, na conversa, para mudar de assunto. A conversa desviou-se imediatamente e41verifiquei que o Velho no morrera de todo, pois aquele infeliz compreendeu a minha inteno. Quando me pus de p, disse que precisava de falar comigo, e afastmo-nos pela praa vista dos que ficavam. Explicou-me que estava velho e s, que em sua casa j no se podia receber ningum, mas se eu me decidia a visit-lo, ainda que fosse um incmodo para mim, lhe daria muita alegria. Sabia que eu visitara terras deoutros: se dispusesse de algum momento... Uma vez mais me equivoquei: cuidado, disse para mim, este tambm quer vender. Respondi-lhe que no estava na aldeia por assuntos de negcios.No, no respondeu logo -, no falo disso. Uma simples visita... Quero mostrar-lhe, se me permite, aquelas rvores...Aceitei em seguida, para lhe evitar a maada dos preparativos inevitveis de outra ocasio e, por aquele caminho donde se avistavam os telhados escuros e os ptios das casas, contou-me que, por muitas razes, estava inibido de vender o terreno, j que era a nica terra que tinha o seu nome, e acabaria os seus dias numa casa estranha; alm disso, os seus rendeiros preferiam assim, e estava s...O senhor disse-me no sabe o que significa viver por estes stios sem um pedao de terra. Onde tem o senhor os seus mortos?Respondi-lhe que no sabia. Ficou um momento calado, interessou-se, mostrou assombro, moveu a cabea.Compreendo disse em voz baixa. assim a vida. Desgraadamente, ele tinha um morto recente no cemitrio da aldeia. Datava de doze anos atrs e parecia-lhe que tinha sido ontem. No um morto como os outros; um morto a que nos resignamos, no qual se pensa confiadamente.Cometi muitos erros estpidos disse-me. Cometem-se muitos erros nesta vida. Os verdadeiros achaques da idade so os remorsos. Mas uma coisa nunca me perdoarei. Aquele rapaz...Tnhamos chegado curva do caminho, sob o canavial. Parou e disse, num balbucio:O senhor sabe como ele morreu?42Fiz um gesto afirmativo. Falava com as mos apertadas no cabo da bengala.Plantei estas rvores disse. Por detrs das canas via-se um pinheiro. Quis que nesta colina a terra fosse sua, porque ele gostava dela livre e selvagem como o parque em que crescera quando era rapaz...Recordei-me duma coisa. Aquela mancha de canas e, por detrs, os pinheiros vermelhaos e a erva por baixo, vigorosa, recordavam-me a depresso que havia na vinha de GaminelIa. Mas aqui o belo que se tratava do cume da colina e tudo acabava no vazio.Em todas as fazendas disse-lhe devia haver um bocado de terra como este, sem cultivar.. Mas a vinha deve ser trabalhada acrescentei.A nossos ps viam-se aqueles quatro tristes regos. Cavaliere fez uma careta graciosa e moveu a cabea.Estou velho. Piratas!IxAgora era indispensvel ir, at ao ptio da casa para o comprazer. Mas no ignorava que teria de abrir uma garrafa e depois pag-la aos rendeiros. Disse-lhe que j era tarde, que me esperavam na aldeia, que a essa hora no tomava nada. Deixei-o no seu pequeno bosque, sob os pinheiros.Pensava neste episdio sempre que empreendia o caminho de Gaminella at ao canavial da aldeia. Aqui tinha brincado com Angiolina e Gitilia e apanhado erva para os coelhos. Na ponte, encontrava muitas vezes Cinto, pois tinha-lhe oferecido anzis com os respectivos fios e explicava-lhe como se pescava no alto mar e como esvoaavam asgaivotas. Daqui no se via San Grato nem a aldeia. Mas sobre os grandes cumes de Gaminella e de Salto, sobre as colinas mais distantes, para alm de Canelli, havia massas escuras de rvores, canaviais, bosques invariavelmente os mesmossemelhantes aos que possua o Cavaliere. Quando era rapaz nunca chegara a essa altitude; mais velho, trabalhava e contentava-me com as feiras e os bailes. Agora, sem me decidir, pensava que alguma coisa devia haver l em cima, nos pequenos planaltos, por detrs das canas e das ltimas fazendas. Que seria? L em cima a terra estava por cultivar e queimada pelo sol.Este ano fizeram as fogueiras? perguntei a Cinto. Ns fazamo-las sempre. Na noite de So Joo toda a colina parecia em chamas.Pouca coisa disse ele. Fazem umas muito grandes na estao, mas no se vem daqui. Piola diz que dantes se queimava muita lenha.45Piola era para ele o que Nuto era para mim, um rapaz esperto e desenvolto. J tinha visto como Cinto corria atrs dele, coxeando, pelo Belbo.E quem sabe disse eu porque se acendem estas fogueiras!Cinto escutava.Nos meus tempos acrescentei os velhos estavam convencidos de que atraiam a chuva... O teu pai fez a fogueira? H falta de gua este ano... Em toda a parte acendem fogueiras.A verdade que fazem bem aos campos afirmou Cinto. Adubam-nos.Pareceu-me ser outro. Eu falava com ele como Nuto o fazia comigo.Ento, por que razo as acendem longe dos cultivos? inquiri. No dia seguinte encontram-se os restos das fogueiras nos caminhos, nas ribeiras, entre os canaviais...No vo queimar as vinhas respondeu ele, rindo.Sim, mas o esterco colocado em lugar propicio... Estas perguntas e respostas nunca eram terminadas j porque aquela voz mal humorada o chamava, j porque passava um filho de Piola ou de Morone, e Cinto punha-se de p, dizendo como o teria feito o seu pai: Bem, vamos l ver e deixava-me. No sabia ao certo se ficava a falar comigo por gosto ou por educao. Sem dvida, quando lhe explicava o que o porto de Gnova e como se faz a carga e descarga, e lhe falava dos apitos das sereias dos barcos, e das tatuagens dos marinheiros, e quantos dias se navegava no alto mar, ele escutava-me sem perder palavra. Este rapaz, pensava eu, ser sempre um esfomeado por estes campos. Nunca poder cavar a terra nem levar cestas aos ombros. Nem sequer far o servio militar, perdendo assim a oportunidade de conhecer alguma cidade. Porque no inculcar-lheao menos esse desejo?A sereia dos barcos disse-me ele no dia em que falvamos disso como a sereia que tocavam em Canelli no tempo da guerra?Ouvia-se?46E muito. Dizem que era mais forte que o apito do comboio. De noite saamos para a rua a ver se estavam a bombardear Canelli. Eu tambm a ouvi, e vi os avies...Mas se ainda eras de colo!... - Juro que me lembro. Quando disse a Nuto o que contava ao rapaz, ele moveu o lbio como para tocar clarinete e sacudiu a cabea com fora.Fazes mal respondeu-me. Fazes mal. Para qu despertar-lhe essas ideias? Se as coisas no mudam no deixar de ser sempre um desgraado...Pelo menos que conhea as coisas que perde!Que queres que faa? Quando vir que no mundo convivem o que est melhor e o que est pior, que proveito pode tirar da? Se capaz de compreender isso, basta olhar para o pai. Basta que um domingo v at praa: nas escadas da igreja h sempre mendigos que pedem esmola, coxos como ele. E l dentro esto os bancos para os ricos, com o nome gravado em bronze...Melhor compreende corno as coisas so disse eu. intil envi-lo Amrica. A Amrica est aq. Aqui esto os milionrios e os mortos de fome.Disse que Cinto devia aprender um oficio e, para isso, a primeira coisa de que precisava era afastar-se das garras do pai.Teria sido melhor se nascesse bastardo acrescentei. Ter de partir e arranjar-se de qualquer maneira. Antes de viver entre as outras pessoas, crescer como o pai.H que mudar muitas coisas afirmou Nuto. Ento disse-lhe que Cinto era desenvolto e que necessitaria de uma fazenda parecida com a que a Mora fora para ns.A Mora era como o mundo murmurou. Era a Amrica, um porto de mar. Havia quem ia e vinha; trabalhava-se e conversava-se... Agora Cinto ainda criana, mas ir crescendo. Estaro as raparigas... Tu fazes uma ideia do que representa conhecer raparigas espertas?... Raparigas como Irene e Slvia?...Nuto ficou calado. Tinha reparado j que no gostava de47falar da Nora. No meio de todas as coisas que me contara dos seus anos de msico, a recordao mais longnqua, de quando ramos rapazes, pouco lhe interessava. Ou talvez mudasse sua maneira, pondo-se a discutir. Desta vez no falou. Moveu os lbios e s quando lhe recordei aquele costume das fogueiras no restolho, levantou a cabea.Claro que fazem bem respondeu rapidamente. Despertam a terra.Mas, Nuto exclamei. Ningum acredita nisso, nem Cinto!Ele replicou que no sabia o que era, no sabia se era o calor ou a chama ou a linfa que despertavam; a nica coisa que sabia que todos os cultivos onde se acendia uma fogueira davam uma colheita melhor, mais abundante.Isso uma novidade para mim murmurei. Ento tu tambm acreditas na Lua?Na Lua respondeu Nuto somos obrigados a acreditar fora. Trata de cortar um pinheiro com a Lua cheia e os bichos comem-to. Um barril deve lavar-se quando a Lua est em quarto crescente. At os enxertos, se no so feitos pela Lua nova, no agarram.Respondi-lhe que no mundo ouvira muitas coisas, mas nada como isto. Parecia-me estranho e intil que encontrasse tantas razes para falar do governo e dos padres e depois acreditasse nessas supersties como no tempo dos pais dos seus avs. E foi ento que Nuto, repousadamente, me disse que superstio era s a que prejudicial, e se algum adoptasse isso da Lua e das fogueiras para explorar os camponeses e mant-los na ignorncia, seria ele o animal e seria necessrio fuzil-lo na praa... E que, antes de falar, eu devia voltar de novo a ser homem do campo. Um velho como Valino pode no saber nada, mas conhece a terra s mil maravilhas.Discutimos um bocado como ces raivosos, mas chamaram-no da serrao e eu desci at estrada, rindo. De repente fui assaltado pela tentao de passar pela Mora, mas o calor dissuadiu-me. Olhando para Canelli (era um dia sereno,como uma pintura), com um s golpe de vista abarcava a planura do Belbo, com Gaminella frente, Salto de lado, e o48palacete do Nido, vermelho no meio das palmeiras, perfilando-se sobre a encosta no extremo da colina. Tantas vinhas, tantas ribeiras, tantas encostas queimadas, quase brancas, avivaram-me de novo o desejo de estar outra vez na vinha da Mora, no tempo da vindima, a ver chegar as filhas de sor Matteo com as cestas. A Mora erguia-se por detrs daquelas rvores, na direco de Canelli, sob a encosta do Nido.Em contrapartida, atravessei o Belbo, sobre as pranchas, e, enquanto caminhava, ia pensando que no h nada mais belo do que uma vinha bem cavada, bem tratada, com as folhas necessrias e aquele aroma de terra aquecida pelo sol de Agosto. Uma vinha bem trabalhada como um corpo so, um corpo que vive, que conserva a sua respirao e o seu prprio suor. E de novo, lanando miradas em redor, pensava naquelas massas de plantas e canas, naqueles bosquezinhos, naquelas ribeiras todos aqueles nomes de aldeias e lugares vizinhos que so estreis e no produzem, e no obstante tm tambm a sua beleza como cada vinha tem a sua mancha e d prazer observ-las e descobrir ninhos. As mulheres, pensei, tm algo de semelhante.Eu sou um estpido, dizia-me, durante vinte anos estive por longe e estas aldeias esperavam-me. Lembrei-me da desiluso que me assaltara a primeira vez que caminhei pelas ruas de Gnova: ia pelo meio das ruas e procurava algumas folhas de erva. Havia o porto, isso sim, havia as caras das raparigas, havia as lojas, os bancos, mas um canavial, um cheirinho a lenha, um pedao de vinha, onde estavam? Tambm sabia a histria da Lua e das fogueiras. Apenas, reparei, a tinha esquecido.Se me punha a pensar nestas coisas, no conseguia chegar ao fim, pois voltavam-me memria muitos factos, muitos desejos, muitos fracassos passados, e todas as vezes que julgara encontrar um sitio, ter amigos e casa, poder finalmente contar com um nome e cultivar o meu jardim. Chegara a pensar: "Se consigo fazer fortuna, caso-me e mando a minha mulher e o meu filho para a aldeia. Quero que cresam ali como eu". Mas no tinha nenhum filho, e muito menos mulher. Que significa este vale para uma famlia que venha do mar, que nada saiba da Lua e das fogueiras? indispensvel t-lo sentido com os ossos do corpo, t-lo nos ossos como o vinho e a polenta. Ento possvel conhec-lo sem ser preciso falar dele, e quando andou dentro de ns muitos anos sem o sabermos, desperta agora ao chocalho duma carroa, ao sacudir do rabo de um boi, ao sabor de uma sopa, a uma voz que se escuta na praa, noite.O facto que Cinto como eu, quando era rapaz no sabia nada disto, e ningum da aldeia conhecia estas coisas, a no ser algum que tivesse partido... Se queria entender-me com ele, entender-me com algum da terra, tinha que lhe falar do mundo l de fora, dando as minhas razes. Ou melhor ainda: no dizer nada; agir como se nada tivesse acontecido, e conservar a Amrica, Gnova, o dinheiro, escritos no rosto e bem guardados no bolso. Estas coisas agradavam, excepto a Nuto, j se sabe, empenhado em compreender-me.Via gente dentro do Angelo, no mercado, nos ptios.51Algum me vinha buscar, me chamava de novo "aquele da Mora". Queriam saber coisas, se estava disposto a comprar o Angelo, se comprava a camioneta da carreira. Na praa apresentaram-me o cura, que me falou da capela em runas; o secretrio comunal, que me disse parte que no municpio devia estar ainda a minha certido, se a procurassem. Respondi-lhe que estivera em Alessandra, no ospedale. O menos incmodo era sempre Cavaliere, que sabia tudo sobre a antiga situao da aldeia e os desleixes do deposto podest.Sentia-me melhor na estrada e nas fazendas. Mas, que poderia realmente compreender? Seria possvel explicar a algum que eu apenas procurava tornar a ver algo que j vira em tempos? Ver carroas, ver montes de feno, ver uma pipa, uma persiana, uma flor de chicria, um leno azul aos quadrados, uma cabaa para beber, um cabo de enxada? Tambm os rostos me agradavam assim, como sempre os vira: velhas enrugadas, cautos bois, raparigas na flor da idade, pombais. Para mim haviam passado estaes mas no anos. Quando mais as coisas e as conversas eram as de ento mormaas, feiras, histrias de tempos idos, do comeo do mundo mais me agradavam. Tal como as sopas, as garrafas, as podadeiras, os troncos depositados na eira.Nuto dizia-me que nisto estava equivocado, que devia revoltar-me ao comprovar que naquelas colinas ainda se levava uma vida de animais, inumana, e que a guerra de nada servira, que tudo continuava como dantes, salvo os mortos.Falamos tambm de Valino e da cunhada. Que Valino dormisse agora com a cunhada era o menos que havia ele de fazer? mas o mais grave era que naquela casa aconteciam coisas terrveis: Nuto contou-me que desde a planura do Belbo se ouviam as mulheres gritar quando Valino tirava o cinto e as espancava como bestas, e chicoteava tambm Cinto: no era por culpa do vinho, pois no tinham muito. Era a misria, a raiva concentrada de uma vida sem desafogos.Soube tambm do fim de Padrino e das filhas. Soube-o da boca da nora de Cola, o mesmo que desejava vender-me52a casa. Em Cossano, onde tinham ido parar com o dinheiro da casa, Padrino morreu de velho, velhssimo havia poucos anos num caminho para onde os maridos das filhas o tinham atirado. A mais nova tinha casado muito cedo, a outra, Angiolina, um ano depois, com dois irmos que viviam em Madonna della Rovere, numa fazenda por detrs dos bosques. Tinham-se instalado l em cima com o velho e os filhos; tratavam da vinha e apenas faziam a polenta; iam cozer o po apenas uma vez por semana, to afastado estava o lugar. Os homens trabalhavam como animais, rebentavam os bois e as mulheres; a mais nova morrera no campo fulminada por um raio; a outra, Angiolina, tinha dado luz sete filhos e depois teve de ficar na cama doente, com um tumor nas costelas, sofrendo e gritando durante trs meseso mdico s ia quelas alturas uma vez por ano -, morrendo sem sequer ter visto o cura. Mortas as filhas, o velho j no tinha ningum em casa que lhe desse de comer e teve de sair a percorrer os campos e as feiras; Cola tinha-o visto ainda, com uma grande barba branca, salpicada de palha, um ano antes da guerra. Morrera por fim, na eira de uma fazenda onde fora pedir esmola.Deste modo era intil ir a Cossano visitar as minhas irms, intil saber se ainda se lembravam de mim. Ficou-mena mente a imagem de Angiolina deitada com a boca aberta, como a sua me naquele Inverno em que morreu.Fui, em contrapartida, a Canelli, uma manh, pelas linhas do comboio, pelo caminho que no tempo da Mora percorrera muitas vezes. Passei ao lado de Salto e do Nido, vi a Mora com as tlias que chegavam ao telhado, o terrao das raparigas, as vidraas, e a ala baixa dos telheiros onde ns ficvamos. Ouvi vozes que no conhecia; no me detive.Entrei em Canelli por uma avenida comprida que nos meus tempos no existia, mas observei logo aquele odor, aquele cheiro de mosto, de ar do Belbo e de vermute. As ruelas no haviam mudado, com as mesmas flores nas janelas, e eram as mesmas caras, os fotgrafos, os palacetes. Onde o movimento aumentara era na praa: havia um53novo bar, uma estao de servio, um ir e vir de motocicletas por entre a poeira. Mas ainda l estava o enorme pltano. Compreendia-se facilmente que o dinheiro continuavaa correr.Passei a manh entre o banco e o correio. Uma pequena cidade, e quem sabe, nos arredores, quantas vivendas e palacetes sobre as colinas. Canelli tinha um significado; daqui abria-se uma ampla janela. Da ponte do Belbo olhei para o vale, para as colinas descendo at Nizza. Nada havia mudado. Apenas no ano passado tinha vindo com a carroa um rapaz vender uva, ao lado do pai. Talvez tambm para Cinto, Canelli tivesse sido a porta do mundo.Reparei ento como tudo era diferente. Canelli agradava-me por si prpria, como o vale e as colinas e as ribeiras que nele iam desaguar. Agradava-me porque aqui terminava tudo, porque era a ltima vila onde as estaes, no os anos, se alteravam. Os industriais de Canelli podiam elaborar todos os espumantes que quisessem, instalar oficinas, mquinas, vages, depsitos: este trabalho tambm eu fazia. Daqui partia a estrada que passava por Gnova e ia at no se sabe onde. Tinha-a percorrido, quando sa de Gaminella. Se voltasse a ser rapaz, t-la-ia percorrido de novo. No entanto, Nuto, que nunca viajara realmente, ainda aspirava a compreender o mundo, a mudar as coisas, a alterar as estaes. Ou talvez no, apenas acreditava na Lua, sabia que na verdade s as estaes tm importncia, e que as estaes que nos enrijam os ossos, que nos imentaram de crianas. Canelli o mundo inteiro Canelli e o vale do Belbo e o tempo no passa sobre estas colinas.Ao entardecer, tomei de novo a estrada, ao longa da via. Cruzei a avenida, passei junto ao Nido, deixei a Mora para trs. Na casa de Salto encontrei Nuto, com o seu avental, que aplainava e assobiava, de face sombria.Que h de novo? Um tipo, removendo um campo, tropeou com dois cadveres nas plancies de Gaminella, dois espies republicanos, com a cabea esmagada e sem sapatos. Veio o mdico e o juiz com o regedor para os reconhecer, mas, trs anos54depois, como os podiam reconhecer? Deviam ser republicanos, porque os partigani morriam nos vales, fuzilados nas praas ou pendurados nas varandas, ou enviavam-nos para a Alemanha.Para qu ralarem-se agora? disse ele. j se sabe. Mas Nuto meditava, assobiando, em silncio.X1Alguns anos antes a Itlia estava j em guerra vivera uma noite de que me lembro sempre que caminho ao longo da via frrea. Vislumbrava j o que depois sucedeua guerra, o internamento, o sequestro e tentava vender o negcio e passar-me para o Mxico. Era o stio mais prximo e eu vira em Fresno bastantes mexicanos miserveis para no ignorar onde queria ir. Logo esta ideia se desvaneceu, pois dos meus caixotes de licores os mexicanos no saberiam que fazer. E chegou a guerra. Deixei-me surpreender: estava cansado de provar e correr, para recomear na manh seguinte. Tive de recomear um ano depois em Gnova.O facto que sabia que no teria durado, e a vontade de o fazer, de trabalhar, de me expor, ficava-me entre as mos. Aquela vida e aquela gente a que me havia acostumado durante dez anos, voltava a causar-me medo e a irritar-me. Num pequeno camio percorria as estradas estatais e cheguei at ao deserto, a Yuma, aos bosques de plantas carnosas. Tinha-se apoderado de mim a mania de ver algo mais do que as coisas do vale de San Joaquin e as caras de sempre. No ignorava que, acabada a guerra, teria cruzado o mar fora, e a vida que fazia era desagradvel e provisria.Depois deixei de dar voltas por aquela estrada do sul. Era um pas excessivamente grande, nunca chegaria a parte alguma. j no era aquele rapazito que, de boleia, nos comboios, em oito meses chegara Califrnia. Muitas terras quer dizer nenhuma.Naquela tarde o camio empanou-me em campo aberto.57Calculara chegar estao 37 ao escurecer e passar ali a noite. Fazia frio, um frio seco e empoeirado, e o campo estava deserto. Uma planura cinzenta de areia espinhosa e montculos que no eram colinas estendia-se at perder de vista, com os paus da linha frrea espetados para o cu. Tentei arranjar o motor: no havia nada a fazer, no tinha bobinas para substituir.Ento, comecei com medo. Durante todo o dia no me cruzara com mais de dois carros em direco costa. Na minha direco nenhum. Tinha abandonado a estrada estatal com o propsito de atravessar o condado. Pensei: "Espero. Algum h-de passar". No passou ningum at de manh. Por sorte tinha um cobertor para me embrulhar. "E amanh?", pensava.Tive tempo de contar todas as pedras das vias, as travessas, os flocos dum cardo seco, os troncos carnudos dos cactos na depresso logo a seguir estrada. As pedras ostentavam aquela cor queimada do comboio, que tm em toda a parte. Um vento forte assobiava sobre a estrada, trazendo um odor a salFazia frio como no inverno. O sol desaparecera, a plancie tambm.Nas tocas naquela planura sabia que havia lagartos venenosos e centopeias; reinava a serpente. Ouviam-se os latidos dos ces selvagens. No constituam perigo, mas fizeram-me pensar que estava nos confins da Amrica, no meio do deserto, a trs horas de carro da estao mais prxima. E a noite chegava. O nico sinal de civilizao eram as vias e os fios. Se ao menos passasse um comboio! Repetidas vezes aplicava o ouvido a um pau telegrfico e ouvia o zumbido da corrente, como fazemos em crianas. Aquela corrente vinha do Norte e ia at costa. Voltei a estudar o mapa.Os ces continuavam a ladrar naquele mar cinzento que era a planura uma voz que rompia o ar como o canto de um galo trazendo frio e aborrecimento. Por sorte que trazia comigo uma garrafa de whisky. E fumava, fumava, para me acalmar. Quando j estava muito escuro, realmente muito escuro, liguei o quadro. No me atrevia a acender os faris. Se ao menos passasse um comboio!58Vinham-me memria tantas coisas que se contavam, histrias de homens que haviam tomado por aquele caminho quando ainda no havia estradas e que tinham sido encontrados depois reduzidos aos ossos e roupa. Os bandidos, a sede, a insolao, as serpentes! Aqui era fcil a gente imaginar uma poca em que os homens se matavam, em que ningum caa por terra seno para a ficar definitivamente. Aquele fio delgado das vias e da estrada era todo o trabalho realizado durante anos. Deixar a estrada, internar-se pelos cactos, sob as estrelas, seria possvel?O rosnar de um co, mais prximo, e um rolar de pedras sobressaltou-me. Apaguei o quadro; voltei a lig-lo quase imediatamente. Para afastar o medo, recordei que ao entardecer tinha deixado para trs um carrito de mexicanos, puxado por uma mula, carregado de embrulhos, de pacotes de roupa, de caarolas, de gente. Devia ser uma famlia que ia para a colheita de San Bernardino ou para aqueles stios. Vira os ps fracos das crianas e as patas da mula arrastando-se pela estrada. Aqueles calezitos brancos agitavam-se, a mula esticava o pescoo, puxava. Ao passar por eles pensara que aqueles pobres diabos ficariam por ali; sem dvida no chegariam estao 37.E esses, pensei, onde tm casa? Ser possvel nascer e morrer numa terra como esta? No entanto, adaptavam-se, iam em busca de trabalho onde havia, e levavam uma vida sem descanso, meio ano pelos caminhos, outro meio nos campos. Eles no haviam tido necessidade de passar pelo hospital de Alessandria o mundo tinha-os arrojado da sua casa com a fome, a via frrea, as revolues e os conflitos mineirose agora iam e vinham rodando, atrs da mula. Por sorte tinham uma mula! Havia os que partiam descalos, sem trazer consigo ao menos uma mulher.Desci da cabina do camio e bati os ps sobre a estrada para os aquecer. A planura estava como morta, manchada de sombras vagas, e atravs da noite apenas se avistava a estrada.O vento continuava a gemer, gelado, sobre a areia, e os ces estavam calados agora; percebiam-se suspiros, sombras de vozes. Mas bebi tanto que estas coisas j no me inquietavam. Respirava aquele odor de pastos secos e vento salgado e pensava nas colinas de Fresno.Depois apareceu o comboio. Ao princpio parecia um cavalo, um cavalo arrastando um carrito sobre os calhaus e j se entrevia o farol. De repente pensei que poderia ser um carro ou a carroa dos mexicanos. A seguir encheu toda a planura de rudos e lanava chispas. Que imaginaro as serpentes e os escorpies?, pensei. Aproximou-se, sobre a via, iluminando o camio, os cactos, um animalito que fugiu aos saltos; e seguiu sacudindo, reabsorvendo o ar, esbofeteando-me. Tanto o esperara que, quando a obscuridade voltou acair e a areia a gemer, pensei que nem no deserto essa gente nos deixa em paz... Se amanh tivesse de fugir, de me esconder, para no ser internado, teria sentido sobre mim a mo do policia como a passagem do comboio. Assim a Amrica.Voltei cabina e envolvi-me numa manta procurando dormitar como se me encontrasse esquina da estrada de Bellavista. Agora, pensava, os californianos seriam incapazes de fazer o mesmo que aqueles infelizes mexicanos: acampar e dormir naquele deserto com mulheres e crianas naquele deserto que era a sua casa, onde talvez se entendessem com as serpentes. necessrio, dizia, que v ao Mxico; tenho a certeza de que me agradar.Mais avanada a noite, despertou-me uma algazarra de ces. Parecia que toda a planura era um campo de batalha ou um curral. Observei uma luz vermelhaa. Desci do camio, inteiriado e partido. Por entre as nuvens baixas surgira uma talhada de Lua que parecia uma facada ensanguentando a planura. Fiquei um instante a fit-la. Realmente tive medo.X11Nuto no se enganara. Aqueles dois cadveres de Gaminella foram um aborrecimento. O mdico, o criado, os dois ou trs rapazotes que tomavam o vermute no bar, comearam a falar escandalizados, a perguntar quantos pobres italianos que cumpriram o seu dever foram assassinados barbaramente pelos vermelhos. Porque, diziam em voz baixa na praa, eram os vermelhos que disparavam na nuca sem processo. Depois passou a professora uma mulherzinha de olheiras, que era irm do secretrio e dona de vinhedos e ps-se a gritar que estava disposta a ir pelas ribeiras em busca de outros cadveres, a desenterrar com a enxada mais pobres rapazes, se isso chegasse para meter na cadeia, enforcar talvez, qualquer comunista cobarde: aquele Valerio, aquele Patetta, aquele secretrio de Canelli. Houve algum que disse: difcil acusar os comunistas. Aqui os grupos eram autnomos.Que importa? disse outro. No te lembras daquele coxo do cachecol, que requisitava as mantas? E quando queimaram o depsito?...No importa que fossem autnomos gritou o filho da senhora da Villa. Isso no quer dizer nada. Todos os partgiani eram assassinos!Para mim disse o mdico fitando-nos calmamente a culpa no foi deste ou daquele indivduo. Era uma situao de guerrilhas, de ilegalidade, de sangue. Provavelmente esses dois eram realmente espies. Mas continuou, levantando a voz acerca da discusso que recomeavaquem que formou os primeiros grupos? Quem quis a61guerra civil? Quem provocava os alemes e os outros? Os comunistas! Sempre eles! Eles so os responsveis. Eles so os assassinos. uma honra que ns, os italianos, lhes cedemos com gosto...A concluso agradou a todos. Ento eu disse que no estava de acordo. Perguntaram-me porqu. Naquele ano, expliquei, estava ainda na Amrica. (Silncio.) Na Amrica, estava internado. (Silncio.) Na Amrica que Amrica, sublinhei, os dirios publicaram uma proclamao do rei e de Badoglio ordenando aos italianos que fossem para os montes, que formassem guerrilhas, que agredissem os fascistas e os alemes pelas costas. (Sorrisos.) J ningum se lembrava disso. Voltaram a discutir.Quando me fui embora, a professora gritava:So todos bastardos. E dizia: O que querem o nosso dinheiro. A terra e o dinheiro como na Rssia. E matam quem protesta.Nuto baixou tambm aldeia para ouvir os comentrios, e movia-se, como fazem os cavaleiros.Ser possvel perguntei-lhe que nenhum desses rapazes que foi guerrilheiro possa dizer a verdade? Em Gnova os partgiani at tm um jornal..Destes, nenhum disse Nuto. gente que ps o leno tricolor quando tudo passou. Uns estavam em Nizza empregados... Quem realmente exps a pele, no deseja falar.Era impossvel reconhecer os dois mortos. Numa carreta tinham-nos trasladado para o velho hospital, e vrias pessoas foram v-los e saram a fazer caretas. Bem diziam as mulheres pelas portas ningum pode fugir a isso. Mas desse modo de mais. Pela sua baixa estatura e por uma medalhita de San Genaro que um deles trazia ao pescoo, ojuiz sentenciou que eram "meridionais". Declarou-os "desconhecidos" e deu por terminado o inqurito.Mas houve algum que no se calou e, pelo contrrio, agitou a questo: foi o cura. Imediatamente convocou o sndaco, o maresciallo, um comit de chefes de famlia e os magistrados. Quem me tinha ao corrente era o Cavaliere,62pois ele no podia perdoar ao cura ter-lhe tirado do banco da igreja a chapa de bronze. O banco onde se ajoelhava a minha me disse-me. Meu pai, que tanto fez pela igreja, mais que dez desavergonhados como esse...Cavaliere julgou ospartigiani. Rapazes disse. Rapazes que se encontraram com a guerra cedo demais... Quando penso que tantos!...Enfim, o cura levava gua para o seu moinho e ainda no podia tolerar a inaugurao de uma lpide aos partigiani em frente de C Nere, feita sem a sua presena, dois anos antes, por um deputado socialista vindo expressamente de Asti. Na reunio da casa paroquial o cura soltou o seu veneno. Todos haviam feito o mesmo e j estavam de acordo sobre a aco a empreender. Posto que se no podia denunciar nenhumpartigani, dado o tempo transcorrido, e no existindo j rebeldes na terra, decidiram travar uma batalha poltica para que o seu eco chegasse at Alba. Prepararam um enterro com grande pompa: sepultura solene das duas vtimas, reunio e pblica condenao dos vermelhos. Refugiar-se e orar. Todos juntos, mobilizados.No sou pessoa que me alegre com esses tempos disse o Cavaliere. A guerra, afirmam os franceses, um sale mter. Mas este aproveita-se das vtimas...Passei por casa de Nuto a contar-lhe a novidade. Ele coou atrs da orelha, baixou os olhos e tragou saliva amargamente.j sabia disse. j uma vez tentou uma coisa assimcom os ciganos...Que ciganos? Contou-me que nos dias de 45 um grupo de rapazes tinha capturado dois ciganos que h meses iam e vinham, fazendo jogo duplo e apontando os destacamentos dos partigiani. Como deves calcular, nesses grupos havia gente de toda a espcie. Gente de toda a Itlia e estrangeiros. Tambm analfabetos. Nunca se viu uma confuso assim. A esses dois, em vez de os levarem ao comando, agarraram neles, meteram-nos num poo e fizeram-nos confessar o nmero de vezes que tinham ido ao quartel dos milicianos. Depois,63a um dos dois, que tinha uma voz excelente, obrigaram-no a cantar, se queria salvar-se. O cigano ps-se a cantar, sentado beira do poo, atado, e cantou como um louco, at ao ltimo momento. Enquanto cantava deram-lhes duas enxadadas que os deixaram como mortos... Desenterrmo-los h uns dois anos.Eu, no vosso lugar disse-lhe -, iria pedir ao cura uma missa por todos os enforcados.Nuto teve um gesto triste. -: capaz de aceitar.. E assim, domingo, fez-se o funeral. Estavam as autoridades, os carabineiros, as mulheres veladas, as Filhas de Maria. Aquele diabo fez tambm vir os Matruti, de casaca amarela, que faziam pena. Flores havia em profuso. A professora, dona de vinhedos, mandara as meninas saquear os jardins.O cura, com toda a sua indumentria, com os culos baixos, fez o sermo na escada da igreja. E que coisas disse! Disse que os tempos tinham sido diablicos, que as almas corriam perigo. Que demasiado sangue se havia vertido e demasiados jovens davam ainda ouvidos palavra do dio. Que a ptria, a famlia, a religio estavam ameaadas. Era necessrio arrependerem-se, purificarem-se, repararem dando sepultura crist queles dois jovens desconhecidos, barbaramente mutilados, mortos, Deus sabe, sem o conforto dos sacramentos e orar por eles, erguendo uma barreira de oraes. Pronunciou tambm umas palavras em latim. Era preciso fazer compreender estas coisas aos sem ptria, aos violentos, aos sem Deus. No julgassem que o adversrio estava vencido.No me desagradou aquele sermo. Debaixo daquele sol, na escada da igreja, h muito tempo que no ouvia um cura expor as suas razes. E pensar que, quando era rapaz, quando Virglio nos levava missa, cuidava que a voz do cura fosse como a do trovo, como o cu, como as estaes; que era til aos campos, s colheitas, sade dos vivos e dos mortos. muito triste envelhecer e conhecer o mundo!A quem o sermo no agradou foi a Nuto. Na praa64algum amigo piscava-lhe o olho e soltava pelo ar alguma palavrita. E Nuto ficava furioso, sofria. Tratando-se de mortos, j por tragdia j por morte natural, era essa a atitude a tomar. Com os mortos os padres tm sempre razo. Eu sabia-o, e ele tambm no o ignorava.XIIIVoltou a falar-se daquele assunto. O padre era esperto. Rematou as suas palavras no dia seguinte oferecendo uma missa pelos pobres mortos, pelos vivos que ainda estavam em perigo, pelos que iam nascer. Recomendou que ningum se filiasse nos partidos subversivos, no lesse os dirios anti-cristos e obscenos, e fosse a Canelli apenas para tratar de negcios, no parasse no bar, e aconselhou as raparigas que fizessem os vestidos mais compridos. Ao ouvir os comentrios que as pobres mulheres e os comerciantes faziam pela aldeia, compreendia-se que o sangue tinha corrido por aquelas colinas como o mosto no lagar. Todos haviam sido roubados e queimados, todas as mulheres violadas. At o antigo sndaco disse claramente nas tertlias do Angelo, que dantes estas coisas no aconteciam. Ento um motorista um tipo de Calosso, um cara dura perguntou-lhes onde tinha ido parar, nesses tempos, o enxofre do Consrcio.Voltei a casa de Nuto e encontrei-o a medir umas tbuas, ainda aborrecido. A mulher amamentava o menino. Ela gritou-lhe da janela que estava lo