a loucura humana em 12 atos:considerações sobre as...
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A loucura humana em 12
atos:considerações sobre
as irracionalidades do
animal racional.
Carlos Augusto Santos Rodrigues
Goiânia
2009
Rodrigues, Carlos Augusto Santos
A loucura humana em 12 atos: considerações sobre as irraci-
onalidades do animal racional.
Goiânia: edição própria, 2009.
100 p.
ISBN 85-905954-1-2
Ensaio. Loucura humana.
Dedico este livro à Sônia Maria Vaz que, apesar de
às vezes duvidar da minha sanidade, há muito (e
pelo menos até então) tem compartilhado comigo
este delírio que se chama Vida.
“A menos que pisemos em nosso orgulho,
não nos aperceberemos de nossa estupidez.
A menos que nos apercebamos de nossa estupidez,
não alcançaremos a sabedoria.
A menos que alcancemos a sabedoria,
não nos libertaremos do sofrimento.
O orgulho é a principal causa do sofrimento humano”.
ÍNDICE
PREFÁCIO .................................................................... ........................................ 07
PROLEGÔMENOS .............................................................................................. 09
I PARTE: A LOUCURA HUMANA EM 12 ATOS
I ATO: INTRODUÇÃO.........................................................................................37
II ATO: CONSIDERAÇÕES GERAIS....................................................................39
III ATO: O LOUCO E A SAÚDE............................................................................42
IV ATO: O LOUCO E O AMOR.............................................................................44
V ATO: O LOUCO E O AMOR UNIVERSAL.......................................................49
VI ATO: A SERIEDADE DO LOUCO...................................................................57
VII ATO: O LOUCO E O CASAMENTO...............................................................61
VIII ATO: A IDOLATRIA DO LOUCO.................................................................66
IX ATO: O LOUCO E A RELIGIÃO....................................................................69
X ATO: A ILUSÃO DA RIQUEZA........................................................................75
XI ATO: O LOUCO E O LUTO..............................................................................81
XII ATO: EPÍLOGO.................................................................................................89
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P R E F Á C I O
Não se pode negar, Carlos Augusto é um homem arrojado, ousado
mesmo. Enfrenta as ambigüidades do homem e as contradições sociais de
peito aberto, sem nenhum receio. Às vezes é um verdadeiro chicote na cara
dos maus, outras vezes um observador atento, frio e imparcial diante das
dicotomias insolúveis do mundo. Mas, seja qual for o caso, ele assume
generosamente um compromisso. Qual? O de porta-voz dos inconformados,
dos perplexos, dos desajustados, dos silenciosos ou silenciados. E neste
precioso mister vai até as últimas conseqüências, até, inclusive, a possibili-
dade de ser taxado de louco, visionário inútil ou “imbecil”!
Bendita loucura essa que põe a nu as distorções do homem, marca-
do pelo malfadado dogma da rude sobrevivência do mais esperto; que nos
mostra a crueza brutal e desumana de uma sociedade, cuja tônica é o poder
dos mais fortes contra os mais fracos. É isso, sim! Ainda que ardilosamente
disfarçado em Direito, Moral, Religião, Política, ou outros rótulos conveni-
entes, muito convenientes. Em última síntese: os homens são loucos! Maldi-
ta loucura!
O autor apresenta o quadro completo de tudo isso, com seus avan-
ços e retrocessos, com todas as minudências, e de forma clara, transparente,
objetiva, precisa. E imaginem:em versos! Claro, versos livres, quase livres
... Livres como o próprio autor o é, ou gostaria de sê-lo!
‘A Loucura Humana em 12 atos’ é, em si mesmo, um livro com-
plexo, muito complexo, pois tem de tudo, quer quanto ao conteúdo, quer
quanto a forma.
Não me parece que o autor se filie a qualquer escola conhecida. É
livre. Algumas vezes sugere o repentismo nordestino do nordeste brasileiro.
Todavia, é filosoficamente muito mais profunda e rica. As nuanças psicoló-
gicas extremamente se diversificam numa policromia surpreendente. Os
sentimentos, ainda os mais opostos e conflitantes, se sucedem. Passam do
trágico ao cômico, do satírico e amargo ao agridoce, do sádico ao maso-
quista. Dir-se-ia que é o próprio retrato do homem moderno, com sua psico-
logia rachada de dor e prazer, poder e impotência, ganância e incapacidade!
Vamos ler este fascinante livro de Carlos Augusto Santos Rodri-
gues, e que cada um dos atentos leitores chegue às suas próprias conclusões.
Uma coisa é certa: em nenhuma hipótese, o leitor ficará indiferente. Isto eu
garanto.
Nelci Silvério de Oliveira
Goiânia, 1995
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PROLEGÔMENOS
“Crença e delírio não se discute”.
‘Que loucura!’ é uma frase que comumente se ouve após algumas
atitudes, desvairadas e muito frequentes, cometidas por certos malucos no
cotidiano. Passei a observar com mais atenção as pessoas em minha volta.
E, para minha surpresa, percebi que a ‘maluquice’ é muito mais presente, e
muito mais próxima, do que eu imaginava. Percebi que o desvairamento
coletivo, a insensatez, ou seja, a vesânia é a regra e não a exceção na socie-
dade humana ora globalizada. Tendo como base esta constatação, e após
muito estudo e muita reflexão, cheguei à conclusão que o que denominamos
sociedade humana globalizada é, na verdade, um grande hospício. Isso
mesmo, vivemos num grande hospício. E tal qual ocorre nos manicômios
convencionais, cada doido acredita que todos ali são loucos, menos ele (é
claro).
A partir daí, e também pela minha formação acadêmica (médico
com especialização em psiquiatria), resolvi escrever um tratado sobre a
loucura humana da contemporaneidade. Um dos motivadores para essa
empreitada foi o “Elogio da Loucura” de Erasmo de Rotterdam, um valioso
registro da vesânia coletiva de sua época. Analisei a sua pitoresca e muito
bem elaborada obra, um dos clássicos da literatura mundial. Ele, um grande
pensador, teve a coragem de denunciar a insanidade coletiva reinante, em
todos os grupos sociais, desde que surgiu o homem na face da Terra, numa
época em que não havia liberdade de pensamento nem de expressão. E, ao
refletir sobre a sua obra, o que mais me chamou a atenção foi a evidência de
que, apesar da evolução ocorrida nos últimos séculos, especificamente no
campo das ciências em geral, a loucura humana persiste a mesma. A aliena-
ção coletiva continua a reinar, como reinava na Idade Média. Isso é parado-
xal, assaz paradoxal. Houve uma fantástica evolução no aspecto científico e
tecnológico, especificamente nos últimos cem anos, mas não no campo da
autopercepção.
As pessoas continuam delirando (e como deliram!). Mudou apenas
o ‘conteúdo’, melhor dizer o tema dos delírios. As gerações se alternam, a
Ciência evolui, mudam os costumes e as crenças; mas as pessoas continuam
delirando. A esse propósito, afirma Krishnamurti que apesar de toda a evo-
lução, especificamente no campo da tecnologia, nós, entes humanos,
somos os mesmos que éramos há milhões de anos – enorme-
mente havidos, invejosos, agressivos, ciumentos, ansiosos e
desesperados, com ocasionais lampejos de alegria e afeição.
Somos uma estranha mistura de ódio, medo e ternura; somos
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a um tempo a violência e a paz (KRISHNAMURTI, 1969, p.
12).
Ou seja, apesar do advento e da evolução da Ciência, a humanidade
continua alienada, e a Loucura continua reinando absoluta e soberana. Ao
que parece, a vesânia coletiva não tem cura. Por exemplo, antes se idolatra-
va os reis, tidos como verdadeiros seres sobrenaturais, bem como represen-
tante de Deus na Terra. Agora, nos tempos modernos, onde teoricamente se
vive sob o ‘império da razão’, os reis não são mais tidos como entes ‘celes-
tiais’. A grande maioria das famílias reais, apesar do pretenso ‘sangue azul’,
foi destituída. Perderam o trono e, principalmente, a ‘majestade’. Hodier-
namente, com raríssimas exceções, não mais se idolatra um rei (coisa medi-
eval). Contudo, apesar de a maioria deles ter sido destronada (e muitos
literalmente perderam a cabeça); os poucos que sobraram, como a sua ma-
jestade rainha da Inglaterra, não têm mais o poder da soberania absoluta,
mas (devo admitir) continuam sendo idolatrados como seres sobrenaturais,
haja vista o glamour que foi o casamento (e também o velório) da princesa
Diana.
É certo que atualmente ninguém acredita mais que um rei seja
representante de Deus na Terra. Mas em compensação, o que se idolatra
cantores, atores, jogadores, ‘musas’ e congêneres, como se fossem entes
sobrenaturais, é coisa de louco. Uma loucura! (E ainda dizem que o homem
é um animal racional). E isso tudo despertou em mim a ideia de deixar de-
vidamente registrada, para a posteridade, a loucura humana da ‘Pós-
modernidade’. Assim escrevi (em versos) entre 1993 e 1994 o meu ‘tratado’
sobre a vesânia humana. Acreditava, naqueles anos, que não teria dificulda-
de em publicá-lo. Afinal o que se edita de mediocridade é por demais sur-
preendente. E então eu pensei naquela ocasião que uma ‘mediocridade’ a
mais ou a menos não faria muita diferença. Mas estava equivocado. Mandei
a obra para várias editoras (mais de dez). Nenhuma delas se habilitou a
publicar este esquisito ensaio sobre a alienação coletiva da Pós-
modernidade.
Agora, cerca de quinze anos passados, para comemorar o ‘debute’
de um fracasso literário, resolvi investir numa ‘segunda navegação’. E para
tanto achei que deveria escrever uma introdução à Loucura Humana . E
assim surgiu este ‘prolegômenos’.
Meu(minha) caro(a) e sano(a) leitor(a), o ser humano se diz racio-
nal, mas, conforme analisarei mais profundamente adiante, comete mais
irracionalidades do que os ditos irracionais. Seriam essas irracionalidades,
um vez que o homem é o animal mais inteligente que já pisou na face da
Terra, frutos da loucura humana?
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A ideia de uma humanidade alienada não é nova. Desde a antigui-
dade, os primeiros pensadores (exceções à regra, pois a maioria das pessoas
não pensa, mas é dominada e alienada pelos seus pensamentos) já levanta-
ram esse questionamento.
De fato, meu (minha) caro(a) e sano(a) leitor(a), a maioria das
pessoas pensa que pensa, mas não pensa (isso não é um jogo de palavras).
Há uma diferença muito grande entre ‘pensar’ e ‘ter pensamentos’. No pen-
sar a atividade cognitiva é deliberada e direcionada para a solução de um
problema, a elucidação de um enigma ou a busca de um novo conhecimen-
to. Nessa forma de atividade cognitiva, o pensador atua de forma ativa sobre
os seus pensamentos. E com isso, evidentemente, ele desenvolve a capaci-
dade mental e libera as suas potencialidades latentes (que na grande maioria
permanece assim por toda a vida). Por outro lado, no ‘ter pensamentos’,
também conhecido como devaneio, o pensador não atua de forma ativa,
mas, passivamente, deixa que os pensamentos fluam na sua mente como um
córrego de fluxo contínuo, onde uma ideia, por associação, se conecta a
outra, que se conecta a outra, e assim sucessivamente. Nesta forma (passiva)
de atividade mental, o ser pensante acredita, equivocadamente, que está
tendo pensamentos. Mas está redondamente enganado. Não é ele que tem os
pensamentos, são os pensamentos que o têm, dominam-no, e escravizam-
no. Haja vista a ilusão dos desejos que analisarei mais adiante. Assim, um ser humano ‘pensante’ é uma exceção à regra, porquan-
to (repito) a maioria das pessoas não pensa, mas é dominada e alienada da
realidade pelos seus pensamentos. O fato é que ao longo da história surgi-
ram os pensadores, essas ilhas de sanidade neste mar de loucura, no qual a
grande maioria dos seres humanos nasce, vive, delira e morre. Mas o apelo
deles, no sentido de que a humanidade buscasse a cura da vesânia coletiva,
perdeu-se na poeira dos tempos. E muitos deles foram tidos como ‘loucos’.
Outros foram e ainda são cultuados, mas jamais modelados.
E a dura verdade é que a vesânia continuou e continua, apesar do
fantástico desenvolvimento das ciências, arrebatando seguidores em todas
as classes e por todos os lugares. A Vesânia não tem preconceito nem de
raça, nem de cultura, nem de erudição. Ela arrebata seguidores até mesmo
(e principalmente) nos meios acadêmicos. Se tem alguma coisa que a hu-
manidade tem em comum, apesar das diversidades de conformação anatô-
mica e de cultura, isso é o desvairamento, a insanidade, a loucura. A grande
maioria dos seres humanos são orates. A sanidade é uma exceção à regra.
Segundo Erasmo de Rotterdam, “quase todos os homens são lou-
cos”, pois, complementa ele: “não há quem não faça suas loucuras e, a esse
respeito, por conseguinte, todos se assemelham” (ROTTERDAM, 2009, p.
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42). Às vezes penso que a loucura é determinada geneticamente. Será que o
gene da insensatez faz parte do genoma humano?
Não tenho aqui, caro(a) e sano(a) leitor(a), a pretensão de fazer
uma revolução e curar a humanidade de seu eterno desvario. Mesmo porque
a simples manifestação de um desejo desses já evidencia um delírio, um
delírio de grandeza. Só quem tem delírio de grandeza acredita que pode
‘salvar’ a humanidade (a humanidade não quer ser salva). E quantos deli-
rantes dessa categoria não surgiram ao longo dos tempos? A maioria deles
se revelou um verdadeiro desastre. Não! Não é esse o meu objetivo. Não
tenho a pretensão de salvar o mundo. Mesmo porque se tem uma coisa que
todo mentecapto acredita, essa coisa é a ‘certeza’ de que os outros é que são
loucos. E a grande maioria das pessoas, apesar de cometer insanidade após
insanidade se julga sensata e ajuizada (Não é verdade, caro(a) e sano(a)
leitor(a)?). Se ao menos eu consegui sair desse delírio coletivo que, há mi-
lênios, escraviza o ente humano e é causa de tanto sofrimento e de tanta
desdita, já me darei por satisfeito. Então, qual é o meu escopo publicando
esse tratado de maluquice? O que pretendo aqui é apresentar a minha ‘tese’.
Já surgiram, desde o advento da Ciência, muitas teses, inúmeras.
Algumas dessas tão quiméricas que, apesar de reinarem por eras, acabaram
sendo levadas ao esquecimento e foram desprezadas por completo, dado o
seu caráter absurdo e fantasioso.
No entanto, agora, em plena Pós-modernidade, caracterizada pela
liberdade de pensamento, ‘devaneio’ e expressão (onde todo cidadão tem o
direito de delirar e ter o seu delírio respeitado desde que não se viole ne-
nhuma lei, nem se faça apologia ao crime) o que tem surgido de teses ab-
surdas é por demais assustador. É coisa de louco! E mais assustador ainda é
a facilidade com que teses dessa categoria adquirem seguidores e defensores
(o que me leva a questionar: será que o ente humano é realmente racional?).
Assim, para concorrer com tantas ‘teses’ medíocres que há por aí, resolvi
apresentar, neste prolegômenos, a que eu defendo neste tratado de maluqui-
ce. Mas, antes de apresentá-la, quero enunciar outra, que, de certa forma,
dará sustentação à minha. Essa tese de arrimo é que toda tese, por mais
absurda que nos possa parecer, uma vez anunciada, desde que possua argu-
mentação coerente e consistente, se sustenta e persiste até que uma outra a
contradiga, com fundamentação que também seja coerente e consistente
(ainda que sofismática). Dentre essas teses absurdas e irreais, que perdura-
ram e foram defendidas com afinco por eras, cito aqui, como exemplo, a de
que a Terra era plana e era o centro do Universo.
A tese por mim defendida neste tratado de maluquice é que “todos
nós, entes humanos, deliramos”. Absurdo?? Loucura?? Imagino o seu ar de
espanto, caro(a) e sano(a) leitor(a). Mas, antes que você tire conclusões
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precipitadas, chame-me de mentecapto e interrompa sua leitura, peço enca-
recidamente um pouco da sua atenção (“não me deixe só!”). Pense um pou-
co. Como se processa a captação da realidade no ser humano? Através dos
cinco sentidos. E os sentidos, isto já está cientificamente comprovado, não
mostram a realidade como ela é. Ou seja, os sentidos enganam. E como
enganam! Daí a expressão ‘a ilusão dos sentidos’. E é a partir desse equívo-
co que começa o delírio do ser humano. Difícil de acreditar?
Para facilitar o entendimento começo pela conceituação acadêmica
de delírio. Delírio é, de forma sucinta, um distúrbio do julgamento. Ou seja,
um erro de julgamento. E o que o caracteriza e lhe dá sustentação é a ‘certe-
za’ (melhor dizer: convicção extraordinária) da sua veracidade, que se insta-
la na mente do delirante. De modo que, uma vez instalado na mente, resiste
a qualquer forma de questionamento. Uma outra característica do delírio é
que essa crença, em geral absurda, não é compartilhada. E esse ‘comparti-
lhamento’ é um detalhe importante. Porquanto, na minha perspectiva, um
comportamento, por mais insano, por mais absurdo, por mais patético, por
mais caricato possa parecer, se for ‘compartilhado’ deixa de ser ‘delírio’ e
passa a ser ‘cultura’ (Não é verdade, caro(a) e sano(a) leitor(a)?). O que me
leva a concluir que delírio é, em regra, uma crença não compartilhada. Fei-
tas essas considerações sobre o conceito acadêmico de delírio, passo agora
às argumentações da minha tese, que suponho sejam coerentes.
O ser humano vive (e atua) não na realidade, mas na ‘sua realida-
de’, que é uma realidade virtual. O que ele chama de ‘realidade’ não passa
de uma realidade virtual construída dentro de sua mente. Ou seja, uma abs-
tração. Melhor dizer uma ilusão. Ilusão esta que, além de lhe ser imposta
pelos sentidos, é alterada e distorcida ao ser codificada como representação
mental. E assim, ao supor que está ‘vendo’ a realidade, na verdade está
vendo a representação que ele criou dessa realidade em sua mente.
A propósito já se disse que a felicidade é uma ilusão. Porém quem
disse isso esqueceu de dizer que o sofrimento (ou seja, o oposto da ‘felici-
dade’) também não passa de uma ilusão. Por essa perspectiva, a vida é uma
ilusão, ou seja, um delírio (e ainda tem a morte).
Isso mesmo, caro(a) e sano(a) leitor(a), vive-se num mundo de
ilusões. A vida que o ente humano vivencia não é real, é ilusória. E confun-
dir a realidade (real) com a construção mental dessa realidade é um erro de
julgamento. Ou seja, um delírio. Loucura? Ainda que o(a) leitor(a) não
considere isso uma insensatez, porquanto isso já faz parte do seu sistema de
crenças (e todo delírio é uma crença). Devo alertá-lo(a) que, conforme já
afirmei acima, a coisa que um orate mais tem resistência é em admitir a sua
insanidade. Contudo, ainda que esse engano não seja considerado um delí-
rio, porque é uma ‘crença compartilhada’ por todos. É um grande equívoco,
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é um erro de julgamento, repito, confundir a percepção que se tem da reali-
dade com a realidade.
Segundo Bandler e Grinder, “Diversas pessoas na história da civi-
lização estabeleceram este ponto –que há uma irredutível diferença entre o
mundo e nossa experiência do mesmo. Nós como seres humanos não ope-
ramos diretamente no mundo. Cada um de nós cria uma representação do
mundo em que vivemos – isto é, criamos um mapa ou modelo que usamos
para gerar nosso comportamento” (BANDLER e GRINDER, 1977. p. 27).
E é nesse ‘mundo construído’, um mundo ‘virtual’ (para não dizer
‘irreal’ e, assim, delirante) que o ente humano vive, atua, digladia-se, mata e
se mata, apaixona-se e se casa; enfim, delira e morre. É a partir desse mun-
do fictício, que o ser humano confunde com a realidade, que ele cria os
costumes, os preconceitos, as instituições (todas elas) e, a partir destas, as
classes sociais (que podem ser resumidas em duas: os exploradores e os
explorados, mas todos delirantes). É a partir desse mundo fictício que se
criou a divisão da humanidade entre o ‘nós’ e os ‘outros’. Divisão essa que
leva à criação do ‘meu país’, ‘meu estado’, ‘meu município’, ‘meu bairro’
(daí a expressão bairrismo), ‘minha família’, ‘meu time do coração’ etc. E
tudo isso, numa escala global, culmina com o maniqueísmo, ou seja, a divi-
são de tudo o que existe em duas partes: o bem e o mal. O que determina
quem é o mal ou o bem é o ponto de vista do julgador. E assim, não importa
de que lado se esteja, o mal é sempre os outros. E, no meu entendimento,
essa divisão da humanidade, divisão esta patética e equivocada, começa
dentro de cada indivíduo. Ela é fruto da neurose. Aprendi na Psiquiatria que
todo neurótico vive em conflito consigo mesmo. Isso mesmo, o neurótico
vive inimizado com ele próprio. Ele traz dentro de si essa eterna dialética
que ele projeta nos outros, na sociedade e no Universo. Aprendi também,
pela minha experiência, que a neurose é a regra na sociedade e não a exce-
ção, como querem alguns doutos. Porém, o tema discutido aqui não é a
neurose. Assim, retorno à questão da realidade virtual. Esta é construída e é
vivenciada por todos (sejam ou não neuróticos) como se fosse a realidade
real.
Nessa ‘construção’ (que alguns doutos denominam ‘construção de
mundos’) interferem tanto fatores culturais, quanto fatores individuais.
Explico melhor: diante de qualquer acontecimento, o ser humano cria em
sua mente uma representação desse fato. Representação essa construída por
imagens, sons e sentimentos. E, como ocorre em todo construto humano,
nessa construção ocorrem limitações, delimitações, generalizações, omis-
sões e principalmente distorções. Assim, quando ele supõe que está vendo e
atuando na realidade, na verdade está vendo e atuando numa realidade vir-
tual, construída em sua mente. E isso explica a diversidade de opiniões
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(doxa) sobre um determinado acontecimento. O problema surge quando se
confunde uma opinião, ou seja, um ponto de vista, com uma verdade abso-
luta fundamentada no conhecimento (episteme). É aí que começa o delírio.
E a partir do delírio é que começa a tragicômica e desastrosa aventura hu-
mana.
Na verdade o que o ser humana ‘vê’ é o seu ‘mapa’, uma constru-
ção virtual da realidade (por ele elaborada) e não a realidade em si. Por isso
que diante de um fato, presenciado por várias pessoas, cada uma tem uma
percepção. E, às vezes, essas percepções são completamente diferentes. Mas
como pode ser isso, se o fato é o mesmo? Porque o que cada um vê não é o
fato em si, mas a sua interpretação desse fato. Até aí tudo bem. O problema
surge, repito, quando se começa a confundir a percepção da realidade (o
fenômeno) com a realidade (o nômeno). Pois é a partir desse equívoco, um
erro de julgamento, que começa o delírio da humanidade. Delírio este que é
a causa motriz, a ‘causa eficiente’, desta tragicômica aventura do ser hu-
mano neste agonizante planeta, que está sendo por ele destruído.
Cito aqui, como exemplo, um delírio muito freqüente na sociedade
humana (independentemente da cultura em que se vive) que certos loucos
chamam de ‘amor’. Esse ‘amor’ (que não tem nada a ver com o verdadeiro
Amor ensinado por Jesus Cristo), na verdade, não passa da racionalização
do instinto do acasalamento. Isso mesmo. Esse ‘amor’ (Eros) é um misto de
instinto sexual com um forte desejo de posse, alimentada pela perda com-
pleta da razão, e temperado com muito, muito ciúme. E é causa de muito
sofrimento (quem já esteve apaixonado(a) sabe do que estou falando). Mas
como diz um ditado: ‘desgraça pouca é besteira’. Isso mesmo, meu(minha)
caro(a) e sano(a) leitor(a). Além de toda essa irracionalidade dominando por
completo a mente do(a) apaixonado(a) (irracionalidade essa que o(a) leva a
adquirir um comportamento bobo, ridículo, patético e caricato) irrompe,
subitamente, na sua mente (já perturbada pela perda completa do resquício
de razão) a idéia delirante de que não mais poderá viver sem aquela pessoa,
objeto do seu desejo. Então, no auge do delírio, ele(a) completamente ‘apai-
xonado’ (para não dizer completamente enlouquecido(a) e alienado(a) da
realidade) exclama: “Você é o ar que eu respiro!”. Coitada desta pessoa!
Muitas dessas desditosas têm a sua viagem para o cemitério (a viagem sem
regresso, a última das viagens nesta dimensão) antecipada. Isso não é
‘amor’, é delírio! E tudo isso é apenas um dos componentes da tragédia
humana (e o mentecapto ainda diz que pensa). E o pior de tudo é que a
maioria das famílias (a ‘célula mãe’ da sociedade, responsável pela educa-
ção da prole, fruto dessa maluquice) é construída em nome dessa sandice,
ou seja, desse delírio.
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Por que chamo isso de delírio? (deve estar pensando o(a) leitor(a)).
Denomino de delírio esse comportamento patético, caricato e irracional,
incompatível com uma espécie que ingenuamente se julga ‘racional’, por
vários motivos. Primeiro, é delirante porque toda percepção que temos das
pessoas, dos fatos, enfim da vida é, sob certo sentido, delirante, uma vez
que nós não atuamos na realidade. Segundo, é delirante porque o(a) apaixo-
nado(a) vê na pessoa, objeto de seu delírio (que ele confunde com o ‘amor’)
coisas que somente ele, e ninguém mais, está vendo. Essa percepção, à qual
somente o(a) apaixonado(a) tem acesso é, em suma, uma ‘percepção deli-
rante’. Isso é ou não é um delírio?
Ademais, o vocábulo ‘amor’, no nosso vernáculo, corresponde a
três termos gregos: Eros, Philos e Ágape. O Eros, o amor sensual, é motiva-
do pelo instinto do acasalamento e é egoísta por natureza. Na verdade o que
se busca é a satisfação do instinto sexual. O Philos é o amor da amizade,
não é tão egoísta, mas é condicional. Toda amizade exige reciprocidade. Já
o Ágape, o verdadeiro ‘amor’, o amor ensinado por Jesus Cristo, é o amor
incondicional. Em Mateus está escrito: “amai os vossos inimigos, bendizei
os que vos maldizem [...]” (Mt 5,44). Ou seja, isso que os malucos apaixo-
nados chamam de amor é, na verdade, uma desmedida sandice.
Bem-aventurados os que mergulham nesta sandice (incompatível
com a pretensa racionalidade humana), mas conseguem dela sair a tempo
(quem já esteve apaixonado(a), mas se ‘curou’ dessa vesânia, sabe muito
bem do que estou falando). Por que ‘bem-aventurados’? Porque os que não
conseguem sair dessa irracionalidade, à qual convencionou-se chamar de
‘amor’, são uns desgraçados (aqui no sentido de infelizes, desventurados).
Por que? Porque esse ‘amor’ (tal como ocorre nos que se viciam e se tornam
dependentes de uma droga) começa com alegria e felicidade, haja vista os
frequentes ‘suspiros’ de quem está apaixonado(a). Ele ou ela, afinal a loucu-
ra não tem preconceito de gênero, raça nem de erudição, julga-se um(a)
afortunado(a) morador(a) do Panteão (“o amor é lindo, com ele o sofrimen-
to é findo!”). Todavia, essa fase de ‘lua-de-mel’ é passageira, é efêmera, é
por demais fugaz, e logo a felicidade se transforma em sofrimento e desdita,
muita desdita. O ‘paraíso’, como num passe de mágica, se metamorfoseia
num verdadeiro ‘inferno’. E muitos são os loucos que não o conseguem dele
sair. O ‘amor’ virou vício. Que tragédia! Em nome desse ‘amor’ (na verda-
de um delírio, um desmedido ensandecimento) tem-se feito muitas insani-
dades: alguns matam, outros se matam, outros ainda matam e se matam.
Sem falar naqueles(as) que se casam, para se arrependerem amargamente
mais tarde, depois que o surto delirante acaba (esses infelizes não raro ex-
clamam: ‘a vida é uma droga, e ainda tem a sogra’!). A boa notícia, caro(a)
e sano(a) leitor(a), é que tudo acaba. No fim tudo acaba.
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O ponto que quero ressaltar é que a vida que se vive, seja de sofri-
mento, seja de felicidade, é uma vida ‘construída’, em sua própria mente, e
não determinada pelos acontecimentos. Isto é, cada um cria a sua ‘experiên-
cia’. Evidentemente que há experiências que são impostas pelos outros
loucos, por exemplo, um assalto, um acidente de trânsito; ou mesmo impos-
tas pela própria Natureza, no caso de uma catástrofe. Mas, ainda assim, há
construção. A ‘vivência’ da experiência é construída. A evidência disso é
que algumas pessoas interpretam uma situação crítica como uma tragédia. E
após o trauma mergulham em depressão profunda e nunca mais se recupe-
ram. Enquanto que outras veem a mesma situação como oportunidade e
crescem, melhorando tanto interiormente como exteriormente. Contudo,
tanto faz se o indivíduo vê a situação crítica como crise ou como oportuni-
dade, de qualquer maneira essa sua percepção é construída em sua mente.
Tudo isso reforça a minha tese, segundo a qual o que chamamos de vida não
passa de um delírio.
Mas essa ‘construção’ (construção de mundos) não começa do
zero. No momento da sua formação, toda a história de vida, toda a experi-
ência anterior, fortemente influenciada pela cultura e pelos delírios da famí-
lia onde o indivíduo nasceu, cresceu e se neurotizou, faz-se presente e influ-
encia, fortemente, na edificação dessa realidade virtual, sobre a qual ele
atuará. É aqui que entram, de forma contundente, os preconceitos, que tanto
distorcem a percepção da realidade. E é por isso que duas pessoas, criadas
no mesmo ambiente, educadas pelos mesmos pais e professores neuróticos
(a maioria o é), constroem em sua mente, apesar das inúmeras semelhanças,
mapas diferentes. Diferenças estas impostas pelas individualidades, apesar
da influência cultural e familiar. Por isso se diz que todo delírio, por mais
compartilhado que seja, tem algo de individual. Algo que é só do mentecap-
to em particular. E é aí que mora o perigo. Se o seu delírio individual não é
compartilhado, para os outros ele é o ‘louco’ da família e, por vezes, da
sociedade (como se os outros não o fossem).
O fato é que o ente humano vive num mundo de ilusões que pode-
se denominar de ‘delírio coletivo’. Deste ninguém escapa, pois o mesmo lhe
é imposto por uma força social, invisível, mas imensamente poderosa (uma
‘força oculta’?), que, num processo de racionalização, denomina-se ‘cultu-
ra’. Isso mesmo, caro(a) e sano(a) leitor(a). ‘Cultura’, na minha visão (deli-
rante?), nada mais é do que a racionalização do delírio coletivo que domina
e submete um grupo social.
E ao longo da história da humanidade (melhor dizer da tragédia
humana neste planeta, haja vista o desfecho, aparentemente inevitável para
o qual se caminha, em termos ambientais), a grande maioria das pessoas
nasceu, viveu e morreu nessa ilusão. A grande maioria passou por esta vida
18
delirando e nem sequer suspeitou. Nem sequer levantou o menor questio-
namento. Mas, sempre há exceções. E na saga dessa espécie, que tem domi-
nado o planeta nos últimos milênios, também surgiram algumas exceções
(as ‘ilhas de sanidade’ já referidas). Ínfimas exceções. Essas raridades,
verdadeiros ‘iluminados’, com certa frequência são cultuados e idolatrados,
mas jamais seguidos. Refiro-me aqui aos grandes filósofos. Estes desenvol-
veram a capacidade de pensar, latente em todos ser humano, afinal todo
mundo tem cérebro. E ao desenvolverem esta capacidade perceberam a
vesânia que a todos domina. E somente a desenvolveram porque pensaram.
Já se disse que o cérebro humano é como um músculo. Se usado e estimula-
do ele se fortalece, hipertrofia-se e abre a capacidade de se perceber além
das ilusões impostas pelos sentidos. Se não é usado, ele se atrofia, enfraque-
ce-se e, evidentemente, não vai desenvolver a capacidade de se perceber
além dessas ilusões. E como se ‘usa’ o cérebro? Pensando, e não simples-
mente ‘tendo’ pensamentos de forma passiva, como a maioria das pessoas o
faz. Essas ‘pensam’ que tem os pensamentos, porém são os pensamentos
que as têm. Mas não é o meu objetivo neste ensaio ensinar às pessoas a
pensar. Longe de mim essa pretensão. Onde já se viu querer ensinar um
‘animal racional’ a pensar? Porém, vai aqui (para quem estiver interessado)
uma dica valiosíssima: diante de qualquer acontecimento muito forte (que
lhe cause grande felicidade ou grande sofrimento), dê um passo atrás e
pergunte-se, ‘será que isso realmente está acontecendo?’.
Retorno aqui ao tema principal que é o delírio coletivo que subme-
te a humanidade e é causa tanto sofrimento e de tanta desdita. Eu penso que
o que causa, alimenta e mantém o delírio é a percepção equivocada da reali-
dade que denomino ‘percepção delirante’. Por que ‘delirante’? Porque se
não se percebe (e a grande maioria das pessoas nem sequer desconfia) que
há uma diferença muito grande entre a realidade real (o nômeno) e a reali-
dade virtual (o fenômeno), isso é um erro de julgamento. E ao se cometer
esse equívoco há uma enorme probabilidade de se estar delirando. E, repito,
a grande maioria da humanidade delira (que loucura!).
Mas, graças a Deus, surgiram os grandes filósofos (‘enviados’?). E
eles tentaram alertar a sociedade de seu tempo dessa percepção delirante na
qual se vive. Percepção delirante esta que leva o ser humano a construir
mundos e, a partir deles, dar um sentido à vida. Todavia, também o leva a
digladiar-se com os seus semelhantes (mesmo no seio das famílias, que são
construídas em nome do ‘amor’. Como pode um louco amar?). Percepção
delirante que o leva a explorar o seu próximo; a acumular riquezas e bens
que jamais usará, mesmo que vivesse trezentos anos. Enfim, percepção
delirante esta que o leva a fazer guerras (a maioria do ‘bem’ contra o ‘mal’),
carnificinas, holocaustos, a construir armas de destruição em massa; bem
19
como a recorrer às drogas (sejam lícitas ou ilícitas) para fugir da angustia
(denominada por ele de ‘crise existencial’) que ele mesmo, ao distorcer a
realidade, cria.
Felizmente, repito, estiveram entre nós os grandes filósofos e tenta-
ram alertar a humanidade. Apenas para citar alguns, afinal não é esse o
escopo deste ensaio, menciono aqui Buda, Platão e Kant. Buda admoestava
as pessoas a ver as coisas como elas realmente são, e não como pareciam
ser. Ou seja, ver além das aparências. Platão, com a clássica alegoria “Os
prisioneiros da caverna”, tentou mostrar que o ser humano confunde as
‘sombras’ da realidade com a realidade. Kant tentou ensinar que não se
deve confundir a percepção que se tem da realidade com a realidade real.
Neste sentido ele elaborou os conceitos de fenômeno e de nômeno. Esses, e
muitos outros, ‘tentaram’ chamar a atenção do ente humano para essa vesâ-
nia coletiva que há milênios (desde que surgiu o Homo sapiens e criou o
primeiro delírio, quero dizer ‘mito’) o tem dominado. Mas foi em vão. A
humanidade, como um todo, continua delirando. Evidentemente que, nesse
imenso oceano de desvairamento, aqui ou acolá se encontra uma dessas
ilhas de sanidade. Porém a regra é a insanidade. E tudo que o homem tem
feito é racionalizar os seus delírios com o conceito de cultura. Por falar em
racionalização, é comum a racionalização patética, quando se executa a
pessoa ‘amada’, objeto do seu delírio: ‘fiz por amor’. E ante esse espetáculo
ridículo, patético, caricato, eu questiono: se por ‘amor’ ele é capaz de fazer
isso, o que poderá fazer quando estiver com ódio? Que tragédia! Perceber
tudo isso é deprimente, deveras deprimente. Contudo, mais deprimente
ainda foi perceber que eu estava (e de certo modo ainda estou) mergulhado
no epicentro deste delírio coletivo que chamamos vida e que, ao que parece,
viver fora dele não tem sentido. Então o que fazer? Sinceramente, caro(a) e
sano(a) leitor(a), não sei. Por sinal, Já se disse que ‘não sei’ é uma das mais
sábias respostas, porquanto o primeiro passo para se alcançar a sabedoria é
tomar consciência da própria ignorância. E, por incrível que pareça, o pri-
meiro passo para se curar de um delírio é começar a desconfiar que se está
delirando. E esse ‘desconfiar’ nada mais é do que duvidar das suas ‘certe-
zas’.
Uma das coisas que percebi é que num mundo delirante, como este,
‘delirar’ é o que dá sentido à vida. Diz um velho ditado: quem quiser viver
em Sodoma tem que ser sodomita. Assim, para se viver num mundo deliran-
te, deve-se pelo menos fingir que se delira e participar ativamente do delírio
coletivo, caso contrário corre-se o risco de ser condenado ao ostracismo.
Romper com esta vesânia universal pode significar ‘alienação’ (meu Deus,
que paradoxo!).
20
Romper com essa maluquice globalizada, que submete o louco e o
obriga a entrar numa corrida maluca, que mais parece uma maratona de
mentecaptos. Corrida essa onde ele busca vencer, vencer e vencer; gastar,
gastar e gastar (o que tem e o que não tem), entrando num processo de endi-
vidamento irracional, ainda que para isso ele tenha que anular e explorar o
próximo, significa entrar num processo de ‘anomia’ (uma vida sem sentido).
Às vezes me pergunto se é possível viver neste mundo maluco, que
mais parece um grande hospício, sem estar ‘inserido’ no delírio coletivo.
Porquanto, repito, o que dá sentido à vida num mundo delirante é viver-se
delirando. Pois o instinto gregário faz parte da natureza humana. E, portan-
to, não há como se ‘inserir’ numa sociedade delirante sem delirar, ou ao
menos fingir que se está delirando.
A propósito, hoje em dia, ‘inserir’ é um termo que é ‘politicamente
correto’. Haja vista as propagandas governamentais no sentido de se buscar
a ‘inserção social’ de todos. Todos devem ter acesso ao delírio coletivo e
compartilhá-lo com o resto da nação. Ou seja, não é aceitável ‘delirar’ fora
do delírio oficial, do delírio ortodoxo. Não se aceita delírios heterodoxos,
nem alternativos. Com raras exceções esses delírios paralelos são permiti-
dos, haja vista o direito dos povos indígenas de praticarem e viverem o seu
delírio coletivo (desculpem, a sua ‘cultura’).
Feito essas considerações sobre a percepção delirante, quero agora
divagar sobre a pretensa racionalidade humana. O homem é um animal
racional? Em primeiro lugar, caro(a) e sano(a) leitor(a) (se é que você con-
seguiu ler até aqui), quero deixar bem claro um fato: eu suponho que os
animais inferiores, por não terem a capacidade cognitiva tão desenvolvida,
como no ser humano, não têm a capacidade de delirar, como a tem os seres
humanos. Isso mesmo, delirar é um privilégio dos animais ‘racionais’. So-
mente os ‘racionais’ têm a capacidade de ‘construir mundos’ e, assim, ao
confundir esse mundo construído com o mundo real, delirar. Também às
vezes me pergunto se há vida humana além do delírio coletivo que nos
submete.
Por falar em racionalidade, um dos questionamentos que sempre
levantei, desde a minha adolescência, é se o ser humano é ‘realmente’ raci-
onal, e isso o difere qualitativamente dos demais animais; ou se ele é apenas
um pouco mais inteligente do que os outros (os ‘irracionais’). O que tem me
levado a esse questionamento é o fato de que, apesar de toda essa ‘raciona-
lidade’, tão alardeada, todos os dias eu, embasbacado, estupefato e perple-
xo, assisto um incomensurável festival de bestialidades cometidas pelo ser
humano. E eu me pergunto: quem disse que essa criatura é racional?
Quem disse isso, caro(a) e sano(a) leitor(a), foi ele próprio. E aqui
eu questiono: não é uma falta de racionalidade querer definir algo ou al-
21
guém que não se conhece, ou se conhece muito pouco? Seria a espécie hu-
mana auto-explicável? Por outro lado, o fato dele, ainda que investido da
fama de douto, afirmar algo não quer dizer muita coisa. Porquanto o homem
é um animal que pensa e mente (como mente!). Ademais, o que já se disse
de absurdos é coisa de louco. Explico melhor. Ao longo da história muitas
crenças, que eram tidas como inquestionáveis, por terem sido criadas por
algum erudito, se mostraram verdadeiros disparates. Quem nos garante que
a ‘verdade’ de hoje se revelará, nas próximas décadas, algo obsoleto e
quimérico?
O fato é que, envaidecido pelos avanços da Ciência, o homem
chegou a pensar que poderia ‘dispensar’ a tutela da Natureza, que conduz
sem sobressaltos os outros animais. E então se autodenominou ‘sapiens’
(Homo sapiens). Proclamou a sua independência em relação ao Criador e
passou a advogar o “Império da Razão”. Contudo, continuou (e continua) a
se conduzir motivado pela emoção (como o são os animais irracionais) e
não pela razão. De fato, o ente humano, em regra, utiliza a razão não para se
conduzir, mas para justificar a sua irracional e eterna busca do prazer e fuga
da dor. Segundo Krishnamurti,
Estamos, todos nós, empenhados na busca do prazer, nesta ou
naquela forma – prazer intelectual, sensual ou cultural; o pra-
zer de reformar, de dizer aos outros o que devem fazer, de
acentuar os males da sociedade, de fazer o bem; o prazer de
ter conhecimentos mais vastos, maior satisfação física, mais
experiências, mais compreensão da vida, de possuir todas as
qualidades engenhosas e sutis da mente; e, naturalmente, o
prazer supremo: a posse de Deus (KRISHNAMURTI, 1969,
p. 31).
E, nessa eterna busca do prazer, continua tão primitivo quanto os
protagonistas da Pré-história. De modo que, considerada a desproporção em
termo de conhecimento científico, a única diferença que vejo entre o louco
de hoje e o louco das cavernas é que este não dispunha do conhecimento
científico e do aparato tecnológico que existe hoje. E assim, não poderia
causar os estragos e as barbáries que o homem ‘pós-moderno’ tem causado,
haja vista as duas grandes guerras que marcaram o século passado e a poste-
rior corrida armamentista para ‘garantir a paz’.
É, caro(a) e sano(a) leitor(a), a ‘Era da Razão’, apesar do fantástico
desenvolvimento da Ciência, em termos de racionalidade na conduta huma-
na deixou (e continua deixando) muito a desejar. O que mais se desenvol-
veu foi a capacidade de racionalizar para justificar os desatinos cometidos
em nome da ‘razão’. E agora, em plena ‘Pós-modernidade’, ante tantas
22
irracionalidades e tantos absurdos cometidos pelo ser humano, ainda persis-
te (e resiste) a crença de que o homem, apesar de cometer tantas bestialida-
des, que nem os animais irracionais cometem, é um animal racional. Há
quem defenda essa idéia, absurda e patética, com tanta convicção que refor-
ça ainda mais a tese da humanidade delirante. E aqui vai um alerta: cuidado,
muito cuidado, com louco não se discute (nem com psiquiatra).
Retornando à questão da racionalidade vou considerar, por um
momento (ante tantas evidências contrárias) que ele o seja. Então eu per-
gunto: ser racional, como o ser humano se diz ser, e cometer tantas irracio-
nalidades, como ele continuamente comete (haja vista a degradação ambien-
tal), não é paradoxal? Não é contraproducente? Não é um disparate?
Por falar em paradoxalidade, já foi dito, por algum erudito, que o
Universo é paradoxal. De fato há muita paradoxalidade no mundo, especifi-
camente nos ‘mundos’ (verdadeiros delírios) construídos, melhor dizer
‘criados’ pelo ser humano. Explico melhor, teoricamente e pela lógica todo
criador tem poder sobre a criatura. No caso do ser humano, ele cria o seu
mundo virtual, a sua ‘criatura’. E torna-se escravo desta. Em vez de tê-la a
seu serviço (afinal foi por ele criada), coloca-se a serviço dela. Ou seja,
apesar de proclamar-se racional continua, tal qual os seus ancestrais ‘primi-
tivos’, construindo e adorando os seus bezerros-de-ouro e, o que é pior,
jurando a estes submissão. Isso não é uma paradoxalidade? Isso não é con-
traproducente? Pode uma coisa dessa, vindo de um ser que se julga racio-
nal?
No meu entendimento, caro(a) e sano(a) leitor(a), uma das maiores
paradoxalidades é o fato de ele acreditar que é racional, só porque pensa e
constrói mundos, embora cometa mais irracionalidades do que os próprios
animais ditos irracionais. E isso, eu repito mais uma vez, não é paradoxal?
Não é contraproducente?
O fato é que acredita-se (e, o que é pior, ensina-se) por aí que o ser
humano, apesar de cometer irracionalidades após irracionalidades, é um
animal racional apenas porque pensa (há até quem acredite que ele é educá-
vel e (pasme!) mesmo após cometer uma desmedida insanidade, é ‘reeducá-
vel’). Enquanto que os outros, os animais irracionais, assim o são porque
não pensam. Para muitos doutos, isso é um ponto pacífico. Contudo, repito
ainda mais uma vez, se ele (ente humano) é realmente racional, por que
comete tantas irracionalidades? Se é realmente racional, por que é tão vio-
lentos contra os seus semelhantes, fato este não observado entre os animais
ditos ‘irracionais’? Se é racional, por que administra tão irracionalmente a
sua sexualidade a ponto de se tornar o mais pervertido de todos os animais
sexuados, e cometer os mais hediondos crimes sexuais? Se é racional por-
23
que precisa de tantas leis para viver harmoniosamente em sociedade. E nem
assim consegue? (Haja paradoxos!).
A propósito, os crimes hediondos, cometidos, com requintes de
crueldade, contra os da própria espécie, são exclusividade do animal racio-
nal. Por incrível que pareça, esse fenômeno não é observado nem mesmo
entre os grandes predadores. No entanto, o homem, um animal ‘racional’,
comete essas e outras atrocidades. Isso não é paradoxal?
Acaso o leitor já viu alguma manchete do tipo: “boi desalmado
estupra e mata bezerrinha de apenas dois meses de vida”; “jumento tarado
leva jumentinhas para o parque as estupra e as mata”; ou ainda, “cachorro
adolescente mata os pais para ficar com o canil só para si”? Essas barbáries
não existe entre os ‘irracionais’, somente os ‘racionais’ as cometem. Isso é
ser racional?
O fato de se acreditar que o homem é racional não garante que ele
seja. Durante muito tempo se acreditou que a Terra fosse plana e que ela era
o centro do Universo. E todos estavam equivocados. Assim, gostaria aqui de
alertar o(a) leitor(a) que o simples fato de se acreditar em alguma coisa não
significa que essa coisa seja verdadeira. Pode ser que se esteja delirando,
mesmo que se seja um ‘douto’. Os doutos também deliram.
Mas num ponto tenho que concordar com os ‘doutos’, uma das
característica do ser humano é a capacidade pensar. Acredita-se que os
outros animais não tenham essa capacidade. A partir daí criou-se o ‘mito’
que o homem (porque pensa, delira e constrói mundos) é um animal racio-
nal, enquanto que os outros (por não terem esta ‘habilidade’ de pensar,
delirar e construir mundos) são irracionais. E, mais que isso, ainda se bati-
zou de ‘sapiens’. Isso mesmo, meu(minha) caro(a) e sano(a) leitor(a): ‘Ho-
mo sapiens’(Pode?). Ora sapiens vem de sabedoria. Pode-se dizer que o
ente humanos (com todas as irracionalidades levantadas no parágrafo acima,
e tantas outras mais praticadas no cotidiano) é sábio? O que é racionalida-
de? Pode-se afirmar categoricamente que o homem é um animal racional ou
pode-se apenas aventar que o homem é um animal que pensa, e isso o difere
dos outros animais (ditos irracionais)? E embora ele aja (e como age!) de
forma irracional, bem mais irracional que os ditos animais irracionais; ainda
assim ele continua sendo ‘racional’ só por que pensa? Na minha avaliação,
após todas essas evidências, só me resta concluir que o homem é bem mais
inteligente que os outros animais (isso é verdade) e é ‘potencialmente’, mas
não efetivamente, racional. Comparando-o com os demais seres, ele está,
evidentemente, bem mais próximo da racionalidade do que estes. Mas daí
concluir (só porque ele desenvolveu a capacidade de pensar, construir mun-
dos e delirar) que ele é racional é, na minha perspectiva, uma precipitação,
para não dizer um grande equívoco. Acredito que o homem somente poderá
24
se auto-intitular ‘sapiens’ quando ele alcançar a ‘idade da razão’. E ele
ainda não alcançou. Por que? Porque ele aprendeu a pensar (e a construir
mundos e, assim, delirar), mas ainda não se libertou da sua natureza animal.
E esta ainda o domina e, o que é pior, coloca a razão a seu serviço. Se eu
fosse um evolucionista convicto e ateu, eu diria que o homem é o elo perdi-
do entre os primatas e o verdadeiro Homem sapiens, que ainda não surgiu
neste mundo. Mas não direi.
Para Platão, o homem teria três almas, que eu assim as denomina-
ria: uma vegetal, uma animal e uma racional. Já para Aristóteles, o que
diferenciava os seres vivos dos inorgânicos era a presença da alma. E, na
sua doutrina, a alma é uma só, mas tem ‘propriedades’. Assim, numa escala
evolutiva, do mais simples para o mais complexo, segundo ele, a alma dos
vegetais teria apenas uma propriedade: nutritiva. Eles se nutrem e se repro-
duzem, porém não se locomovem nem pensam; a alma dos animais teria
duas propriedades: nutritiva e sensitiva. Ou seja, além de se nutrir e se re-
produzir, eles sentem e, ao seu modo, se comunicam, mas não raciocinam.
E a alma do homem, o ser mais evoluído, teria três propriedades: nutritiva,
sensitiva e intelectiva (a razão). Todavia, a alma do homem, apesar de ter
essa propriedade cognoscível, ainda mantém as propriedades nutritivas (dos
vegetais) e sensitiva (dos animais). E, pela minha perspectiva, a racionali-
dade, por ser uma aquisição recente na escala evolutiva, no ser humano é
ainda uma potencialidade que precisa ser desenvolvida. E nem sempre o é.
Assim, tendo como referência esse modelo dos gregos, eu poderia
concluir que o ser humano tem três naturezas: uma vegetal, que se manifes-
ta mesmo quando ele está em coma (daí a expressão: ele está vegetando);
uma animal, onde estão presentes todos os instintos e a emotividade (e essa
natureza o coloca no mesmo patamar dos demais animais); e uma natureza
racional, que é a capacidade de pensar, construir mundos e, assim, delirar.
Todavia, apesar de ter adquirido essa natureza racional (ou seja, a racionali-
dade), ele ainda continua com as duas anteriores. Assim, em concordância
com esse modelo, vou considerar que o ente humano possui algo a mais que
os demais animais (os irracionais), contudo ele, ao adquirir a razão, não
deixou de ser um animal. Ele continua a ser um animal. E essa natureza
animal (a parte irracional do homem), por ser filogeneticamente mais de-
senvolvida, apesar de ser teoricamente inferior à parte racional, domina-a
por completo.
Segundo Freud, deveríamos levar em conta “o fato de estarem
presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-
sociais e anti-culturais” (Ou seja, a natureza animal). E que “num grande
número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para deter-
minar o comportamento delas na sociedade humana”. De modo que, conclui
25
ele, “provavelmente uma certa percentagem da humanidade (devido a uma
disposição patológica ou a um excesso de força instintual) permanecerá
sempre associal” (FREUD, 2009, p. 4-8). O que será que ele quis dizer com
isso?
Toda pessoa sensata sabe que quando está em conflito a razão e a
emoção, esta domina aquela (que o digam os(as) ‘apaixonados(as)’). Ou
seja, o homem adquiriu a razão, passou a construir mundos e assim delirar,
mas não deixou de ser um animal. Não perdeu, apesar de insistentemente
negar (principalmente os que se julgam ‘racionais’), a sua natureza bestial.
Para Descartes, “a razão ou senso é a única coisa que nos torna homens e
nos distingue dos [outros] animais” (DESCARTES, 1952, p. 9). De resto,
concluo eu, o ser humano é exatamente igual aos demais animais, os irraci-
onais, ou seja, os desprovidos de razão. E, ipso facto, torna-se pior que eles
quando coloca a razão (como comumente faz) a serviço da sua natureza
bestial. Talvez isso explique as perversões sexuais e os crimes hediondos
que somente o animal ‘racional’ consegue cometer. Ou seja, por ainda ter a
natureza bestial, mas tendo o concurso da razão, talvez seja esse o motivo
pelo qual, quando essa natureza bestial se manifesta, ele se torna pior do
que os próprios animais irracionais.
Assim, sou tentado a concluir que o homem é um animal que pen-
sa, é bem verdade, mas que continua com a sua natureza instintiva (o que o
coloca no mesmo nível dos outros animais, os irracionais). E quando essa se
manifesta, domina por completo e subjuga a razão. Com isso quero dizer
que, no meu entendimento, o homem somente poderá dizer-se ‘racional’
quando a razão (ou seja, a natureza racional) assumir o comando da sua
mente. Somente assim ele poderá dizer que alcançou a ‘idade da razão’. E
somente assim reinará o tão utópico e quimérico ‘Império da Razão’. En-
quanto isso não ocorrer (e, evidentemente, ainda não ocorreu) tudo que
poderá se dizer desse ser é que ele é um animal, diferente dos outros porque
pensa, mas que ainda não atingiu a idade da razão. Vou divagar um pouco
mais.
Se para ser racional basta ter a razão, embora nem sempre a mesma
seja utilizada. Poderia concluir que o homem é um animal racional. Ou seja,
eu poderia concluir que o homem é ‘racional’ apenas porque pensa (embora
se conduza, na maioria das vezes, motivado pela emoção e utilizando a
razão apenas para justificar, ou seja, ‘racionalizar’, os seus atos bestiais).
Por essa perspectiva, repito, o homem é racional, embora cometa as piores
irracionalidades. Então eu pergunto (mais uma vez), como pode um animal
‘racional’ cometer irracionalidades que nem os ditos ‘irracionais’ cometem?
Isso não é paradoxal? Isso não é contraproducente?
26
Porém (e este é o meu entendimento) se para ser racional, além de
ter a capacidade de pensar e construir mundos (os delírios coletivos) é pre-
ciso ‘agir’ racionalmente, e não utilizar a razão apenas para racionalizar as
suas sandices, como a grande maioria dos seres humanos comumente o faz.
Então só me resta concluir que o homem não é ainda um ser racional digno
da alcunha de ‘sapiens’. Pois entendo que um ser ‘racional’ não é aquele
que ‘pensa’, embora aja irracionalmente; mas sim aquele que age delibera-
damente de acordo com a sua capacidade de raciocínio. É aquele que pensa
sobre a sua conduta, raciocina antes de agir. Isto é, tem a capacidade de
entendimento e, também, tem a capacidade de determinar-se de acordo com
esse entendimento. O que vejo no ser humano é que ele tem a capacidade de
entendimento (a razão). Contudo, na grande maioria das vezes, não se de-
termina de acordo com esse entendimento. Determina-se de acordo com a
suas emoções, tal qual fazem os outros animais (os ‘irracionais’). E esse
comportamento (pensar antes de agir e agir de acordo o entendimento) é
uma exceção à regra. Na maioria das vezes, a grande maioria das pessoas,
independentemente do seu grau de cultura (ou de erudição) age motivado
pela emoção e não pela razão. E no momento que a emoção o domina, não
há diferença se ele é um joão-ninguém ou se é um pós-graduado, com dou-
torado feito no exterior. Ele vai agir pela emoção. Vai ficar vermelho que
nem um peru; e vai escumar que nem siri na lata. E se tiver que matar seu
desafeto, ele o mata, com requintes de crueldade, descarregando neste toda
a sua ‘racionalidade’.
Mas ele usa a razão (deve estar pensando o(a) leitor(a)). Sim, ca-
ro(a) e sano(a) leitor(a), ele a usa. Porém a utiliza, na maioria das vezes (e
principalmente quando ele mais precisa dela) não para agir, mas sim para
justificar as suas sandices. Porquanto, em regra, ele age motivado pela emo-
ção e não pela razão. Esse ‘agir’ pela emoção nada mais é do que a eterna
busca do prazer e fuga da dor, que a todos motiva. Segundo Krishnamurti,
“O prazer é a estrutura da sociedade. Da infância à morte, secreta ou ardilo-
samente, ou abertamente, buscamos o prazer” (KRISHNAMURTI, 1969, p.
31).
E assim, dominado pela emoção ele comete as piores atrocidades,
que nem mesmo os ditos irracionais conseguem cometer. Mas, após cometer
alguma insanidade, tão logo ele recupera o senso, lança mão da razão para
justificar a sua ‘irracionalidade’. E a isso denomina-se ‘racionalização’.
Coisa que os outros animais (os ‘irracionais’) não tem capacidade de fazer.
Racionalizar (e delirar) é privilégio do ‘Homo sapiens’.
Contudo, deve estar pensando o(a) leitor(a), há muitas pessoas que,
apesar de não perceberem o equívoco entre a percepção da realidade e a
realidade, e mesmo tendo a sua mente atormentada pela neurose, conse-
27
guem viver harmoniosamente na sociedade. E, embora, volta e meia, come-
tam algum desatino (haja vista os crimes emocionais e os passionais), não
poderíamos concluir que essas criaturas, por estarem adaptadas à sociedade
em que vivem, são racionais?
Meu(minha) caro(a) e sano(a) leitor(a), Descartes, um dos grandes
pensadores da humanidade, já havia concluído: “sei [o] quanto somos sujei-
tos a iludir-nos a cerca de nós mesmos” (DECARTES, 1952, p. 10). Aliás
um dos pilares do seu “Método” é desconfiar de tudo, inclusive das suas
crenças e convicções. Mas, vou responder com uma metáfora: um lobo
adestrado e vivendo no meio de cordeiros, por mais adestrado que ele seja,
continua sendo um lobo. E, numa ocasião propícia, a sua natureza lupina,
que está apenas reprimida, aflora e se manifesta da forma mais animalesca
possível. E será tanto mais bestial quanto mais forte tenha sido a repressão.
Ou seja, o fato dele estar se comportando como um cordeiro não quer dizer
que ele deixou de ser lobo. Do mesmo modo, o fato de alguém, por força do
condicionamento imposto pela cultura (a ‘força oculta’), internalizado sob a
forma de Superego, conviver com os seus semelhantes de forma aparente-
mente racional, não quer dizer que ele deixou para trás a sua natureza besti-
al. Ela continua viva, apesar de reprimida e adestrada. O que quero dizer
com isso é que no universo das pessoas adaptadas socialmente, apenas uma
pequena minoria (o equivalente à ponta de um iceberg), estão adaptadas por
terem alcançado a idade da razão. Na grande maioria, apesar do comporta-
mento aparentemente racional, essa adaptação se dá em função da repressão
da natureza animal. E isso tem um preço: a neurose. E assim, embora se
comportem como ‘cordeiros’, continuam sendo ‘lobos’. Talvez tenha sido
essa a percepção que o filósofo Thomas Hobbes (1998) teve quando disse
que o homem é o lobo do homem.
Assim, contrariando o axioma que diz “o homem não se adestra,
se educa”, penso que, enquanto ele não alcançar a idade da razão, tudo que
poderá ser feito, para se conseguir uma convivência social harmoniosa é
‘adestrá-lo’, principalmente na infância. Por que na infância? Porque a ca-
pacidade cognitiva (a capacidade de pensar abstratamente) somente se ad-
quire quando o cérebro completa o seu processo de mielinização. No ser
humano, isso ocorre por volta dos doze aos quatorze anos. Uma criança não
tem ainda desenvolvida a sua plena capacidade de entendimento. Como se
pode educar um ser que não adquiriu ainda essa capacidade? Assim, não
adianta tentar se ‘educar’ uma criança de dois anos. Nesta fase ela precisa
ser adestrado pelo princípio da recompensa e da punição. Se faz o certo,
deve ser recompensado; se faz o errado, deve ser punido. Punido e não
‘torturado’. Punição não é sinônimo de castigo físico. E esse adestramento
deveria começar o mais cedo possível.
28
Por volta dos doze aos quatorze anos, quando o cérebro completou
o seu desenvolvimento, ele estará ‘teoricamente’ preparado para ser ‘educa-
do’. Contudo, nessa fase, todo o processo de adestramento, pelo qual passou
na primeira infância, foi introjetado e constitui o seu terceiro ‘eu’, o eu
social (o Superego). Se foi bem ‘adestrada’ na infância, essa criança estará
preparada para ser ‘educada’. Caso contrário, não se poderá educá-la, uma
vez que eu animal não foi adaptado ao eu social. Ou seja, a ‘educação’ so-
mente é viável após um prévio e fundamental ‘adestramento’, que deve
ocorrer na primeira infância. Somente os que foram adequadamente ades-
trados pelo eu social, nessa fase, estão preparados para serem educados (e
até ‘reeducados’).
E os efeitos desse ‘adestramento’ podem muito bem ser evidencia-
dos no trânsito. Observe o(a) leitor(a) como nos locais onde existem placas
com limites de velocidade e, junto com elas, os sensores eletrônicos, os
motoristas, com raras exceções a obedecem. Agora, se desloque um pouco
mais adiante para um local, onde haja placas com limites de velocidade,
mas sem os tais sensores. Ali você poderá comprovar que a grande maioria,
com raríssimas exceções, obedecem às placas. Por que será? Por que será
que a maioria dos motoristas é ‘educada’ quando há a certeza da punição e
não o é quando não se tem esse certeza? Pode-se dizer que eles foram edu-
cados ou foram adestrados? Que o(a) leitor(a) tire suas próprias conclusões.
No meu entendimento, o que se denomina de homem ‘educado’, na
grande maioria das vezes, é na verdade um homem ‘adestrado’. Adestrado
por quem? Pelos valores culturais que ele internalizou e passaram a consti-
tuir, conforme o pensamento freudiano, o Superego, uma espécie de eu
social, que se opõe a eu animal e tenta (e às vezes consegue) adaptá-lo às
exigências da boa convivência social. E essa submissão (e tentativa de anu-
lação) da natureza animal tem um preço: a neurotização do ente humano. E,
repito, a grande maioria das pessoas adaptadas ao convívio social adapta-
ram-se por esta via, a via da negação e da repressão da natureza bestial. Ou
seja, pela via da neurose. E é uma contradição, caro(a) e sano(a) leitor(a), ao
não querer ser um animal (e assim, negando e reprimindo sua natureza bes-
tial) o homem se torna pior do que os próprios animais ditos irracionais.
Isso não é paradoxal?
Não tenho formação acadêmica em Psicanálise, mas, pelo que
entendi (e posso estar equivocado), se tem uma palavra que resume a utopia
de Freud, essa palavra é ‘consciência’. Ou seja, o homem deveria tomar
consciência de que todas as irracionalidades que os outros animais (que são
desprovidos da razão e são dominados pela emoção) cometem fazem parte
da sua natureza (isso constitui o Id). Isto é, apesar de ter uma natureza
racional, um ‘eu’ racional (o Ego), ele ainda continua com a natureza besti-
29
al, um ‘eu’ animal, que é o Id. Este, apesar da negação que certos doutos
fazem, em relação a isso, faz parte da sua natureza. Mas ele vive em socie-
dade. E essa sociedade possui valores. E no processo de educação esses
valores são introjetados, passando a constituir uma terceiro ‘eu’, o eu social
(o Superego). E assim sendo, ele deve ‘administrar’ a sua natureza animal
(sem negá-la nem reprimi-la). E, ao mesmo tempo, procurar adaptá-la ao
meio em que vive. E aqui entra um pouco do conceito de Inteligência Emo-
cional. São poucas as pessoas que conseguem desenvolver essa potenciali-
dade. A grande maioria dos que estão adaptados à sociedade em que vivem
o estão às custas da negação e da repressão da sua natureza bestial, como se
eles não fossem ‘animais’. E, acredite, meu(minha) caro(a) e sano(a) lei-
tor(a), eles estão convictos, isto é, tem ‘certeza’(e a certeza é o que caracte-
riza o delírio) de que, apenas porque têm temporariamente o Id reprimido,
são seres ‘racionais’. E que, assim sendo, não possuem os instintos bestiais.
Mas, por trás dessa máscara de seres sociáveis, eles levam a vida em ‘silen-
cioso desespero’. Vivem literalmente num cárcere mental, onde são tortura-
dos de dia e de noite, haja vista as angústias, as culpas, os conflitos emocio-
nais e os pesadelos, que atormentam tanta gente (sem falar nos semblantes
‘amarrados’ que a maioria exibe no dia a dia). A mente desses desditosos é
um campo de batalha. Onde a natureza animal, negada e reprimida pelo eu
social, vive se digladiando contra este. E isso tem um preço: nessas pessoas
não há ‘diálogo interno’, mas sim uma eterna discussão intrapessoal, por-
quanto eles, por não quererem admitir a sua natureza bestial, vivem cons-
tantemente inimizados consigo mesmos. Isso, meu(minha) caro(a) e sano(a)
leitor(a), é a neurose. O trágico é que a maioria das pessoas adaptadas à
sociedade estão adaptadas às custas da neurose. E essas pessoas, apesar do
ar de felicidade, que algumas mecanicamente apresentam, sofrem e, às
vezes, também fazem sofrer a sociedade.
Após essa sintética argumentação, que eu espero tenha sido coeren-
te e convincente, concluo que o ente humano é um animal ‘potencialmente’
racional. Com isso quero dizer que o homem tem algo que os outros animais
não tem: a razão. Contudo, ele continua com a natureza animal. E esta,
penso que, por ser mais desenvolvida, o domina por completo, sempre que
ele está sob forte emoção.
Agora, para fundamentar ainda mais a minha argumentação, vou
entrar um pouco na doutrina aristotélica. Em Aristóteles há o conceito de
ato e de potência. Uma coisa é algo em potência quando ela pode vir a se
transformar neste algo. Por exemplo, uma semente, enquanto semente, é um
ato; mas enquanto árvore é apenas uma potência. Porquanto ela poderá ou
não vir a se transformar em árvore. Já a árvore é ato enquanto árvore e po-
30
tência enquanto semente, ou até mesmo uma mesa com a qual a mesma
possa ser construída.
Assim, analisando a racionalidade pela perspectiva evolucionista,
poderia (e vou) dizer que “a razão está para o homem, assim como a asa
está para a galinha”. A galinha pensa que é uma ave (galinha pensa?), mas
não é. Por que? Porque ave voa e a galinha não voa. Pelo menos quando
deveria voar, que é quando está sendo perseguida. Tente o(a) leitor(a) pegar
um urubu ou um gavião, que se encontrem pousados no chão. Essas duas
aves (verdadeiramente aves, aves em ‘ato’ e não apenas em ‘potência’ como
a galinha) voarão de imediato. Agora tente pegar uma galinha. Ela correrá,
correrá, até que ela, ou você, canse (quem estiver mais gordo cansará pri-
meiro). Se ela cansar primeiro, ela simplesmente se deitará, fatigada e você
poderá, tranquilamente, pegá-la. Assim, a conclusão a que cheguei é que a
‘ave’ na galinha é uma potencia e não um ato. Enquanto que na águia a
‘ave’ é um ato. Ou seja, a galinha é potencialmente uma ave. E o virá a ser
um dia, se aprender a voar.
Mas para explicar melhor essa ‘lógica’ acho producente me repor-
tar ao conceito de sofisma, ou raciocínio sofismático. Para Aristóteles, a
Lógica era o instrumento das ciências. Pela sua doutrina, um pensamento é
lógico quando há uma coerência entre as premissas e a conclusão. Isso não
significa que o pensamento lógico seja necessariamente ‘verdadeiro’. Dizer
que um pensamento é lógico quer dizer apenas que ele é coerente. Assim,
um pensamento pode ser ‘falso’ e ‘lógico’. A isso é que se chama sofisma.
Ou dito de outra forma, sofisma é um raciocínio que, embora seja lógico,
pois há coerência entre as premissas e a conclusão, é falso porque parte de
premissas falsas ou porque chega a conclusão falsa, induzindo assim as
pessoas ao erro. Retorno aqui ao silogismo da galinha. Vou analisá-lo pela
dinâmica da lógica aristotélica.
Toda ave tem pena e tem asa (primeira premissa); a galinha tem
pena e tem asa (segunda premissa). Logo a galinha é uma ave (conclusão).
Esse é um raciocínio lógico, mas, na minha perspectiva, sofismático (ou
seja, falso). Por que sofismático? Porque para ser ‘ave’ não basta ter asas, é
preciso voar. E a galinha não voa (pelo menos quando ela mais precisaria
voar, que é quando ela está sendo perseguida, conforme aludimos acima).
Assim, poderíamos enunciar esse silogismo da seguinte maneira: toda ave
tem asa e voa (primeira premissa); a galinha tem asa, porém não voa (se-
gunda premissa); logo a galinha não é uma ave. Pelo menos em ato. Ela é
uma ave potencialmente. Se ela aprender a voar. Aí sim. Ela será verdadei-
ramente uma ave. Eu também disse que a razão está para homem assim
como a asa está para a galinha. Analiso agora o silogismo (sofismático) da
pretensa racionalidade humana.
31
Todo animal racional pensa (primeira premissa); o homem pensa
(segunda premissa). Logo o homem é um animal racional. Lógico, não é
verdade? Mas também aqui, na minha ótica, estamos diante de um sofisma.
Por que? Porque para ser racional não basta pensar, é preciso agir de acordo
com a razão e não com a emoção, como o homem habitualmente age. E
neste aspecto ele se comporta exatamente como os animais irracionais, que
agem pela emoção. Contudo, há uma grande diferença e um agravante. A
diferença é que os animais, ditos irracionais, não possuem a razão e não
podem racionalizar os seus atos bestiais. Enquanto que o homem pode (e
como o faz!). E o agravante é que os animais irracionais, por não terem o
concurso da razão, não conseguem cometer as irracionalidades, verdadeiras
bestialidades, que somente o ser humano consegue.
Assim, retornando ao silogismo, vou enunciá-lo de outro modo:
todo animal racional pensa e age racionalmente (primeira premissa); o ho-
mem pensa, mas (na maioria das vezes) não age racionalmente (segunda
premissa). Logo o homem não é ainda racional. Ele é potencialmente racio-
nal. Ou seja, a racionalidade no ente humano é uma potência que poderá, ou
não, se tornar um ato. Em termos metafóricos, eu poderia dizer que o ho-
mem pensa que é uma águia, mas não passa de uma galinha. Evidentemente
que, ao longo da história, aqui ou acolá uma galinha aprende a voar e, aí
sim, se torna uma águia. Todavia, essa metamorfose é exceção à regra e não
a regra. A grande maioria nasce galinha, vive como galinha e morre galinha.
E penso que a loucura, ou seja, a não abertura da percepção (que em todo
ser humano se encontra latente) para ver as coisas além da ilusão imposta
pelos sentidos, é a causa dessa limitação. Logo chamar esta espécie de
‘sapiens’ é, no meu entendimento, uma afronta à Sabedoria (Oh Sophia,
perdoai-lhes, eles não sabem o que dizem!)
Um outro argumento utilizado por certos doutos para justificar a
racionalidade do ser humano é a inteligência. O homem é um animal racio-
nal porque é inteligente, dizem eles. Será? Quais são as evidências dessa
inteligência? Apenas para citar alguns contra-argumentos dessa pretensa
inteligência, eu pergunto: é inteligente destruir o seu próprio lar (no caso
refiro-me ao planeta Terra), como o ente humano tem feito? É inteligente
comprar superficialidades, a ponto de se ficar endividado, apenas porque a
mídia o manda comprar? É inteligente comer, não para alimentar o seu
corpo, mas para satisfazer o prazer da gula e assim desencadear uma epide-
mia de obesos, enquanto, no outro lado, tem-se uma epidemia de desnutri-
dos, que estão morrendo de fome? É inteligente tornar-se um viciado em
drogas, sejam elas lícitas (como o álcool e o cigarro) ou ilícitas como as
outras drogas, envenenando e destruindo assim o próprio corpo? É inteli-
gente confundir a percepção que se tem da realidade com a realidade? É
32
inteligente idolatrar um semelhante seu, apenas porque ele tem algum dom
(ou fama) que não se tenha, a ponto de se anular, enquanto ser humano,
diante desse ‘ídolo’, como se ele (um ser humano como outro qualquer)
fosse um ente sobrenatural? É inteligente desrespeitar as leis do trânsito, por
exemplo, sem falar nas outras leis? É paradoxal, meu(minha) caro(a) e sa-
no(a) leitor(a), e mesmo contraproducente, ser ‘inteligente’ e agir de forma
tão pouco inteligente. É paradoxal e contraproducente dizer-se racional e
agir tão irracionalmente. Concorda comigo, caro(a) e sano(a) leitor(a)?
Diz um velho ditado: em terra de cegos, quem tem um olho é rei.
No planeta Terra, neste ponto sou obrigado a concordar com os doutos,
nunca surgiu um animal tão inteligente como o ser humano. Assim, compa-
rando o homem com os outros animais, devo admitir: ele é mais, bem mais
inteligente que todos os demais. Afinal, nenhum outro conseguiu inventar
tantas coisas e fazer tantas ‘artes’ (é preciso ser inteligente para poder se
fazer ‘artes’, como o ente humano tem feito); nenhum outro conseguiu, em
tão pouco tempo, destruir o seu meio ambiente. Para se conseguir tal ‘proe-
za ( e tantas outras que só o homem, e nenhum outro animal na Terra con-
segue), repito, é preciso ser inteligente, muito ‘inteligente’. E os demais
animais (os irracionais) não possuem essa ‘inteligência’. Mas, volto a ques-
tionar, é inteligente usar a inteligência de forma tão pouca inteligente? É
inteligente confundir, como a maioria dos seres humanos o faz, um mero
desejo do ego com uma vital necessidade, a ponto de sacrificar todas as suas
economias apenas para parecer ser o que não se é (haja vista o fenômeno
social dos emergentes)? Talvez seja necessário diferenciar ‘inteligência’ de
‘sabedoria’. Assim, eu poderia concluir que o ser humano é inteligente, mas
carece de sabedoria. Por que será?
Por falar em desejo e necessidade, diversos filósofos já alertaram a
humanidade sobre a ‘ilusão dos desejos’. A maioria dos desejos que domi-
nam o homem não passam de uma ilusão. Penso ser necessário, inicialmen-
te, fazer uma distinção entre desejo e necessidade. Há desmedida diferença
entre desejo e necessidade. Evidente que há. O ser humano, enquanto ani-
mal que é, tem necessidades vitais: respirar, alimentar-se, procriar, proteger-
se do intempéries da Natureza etc. E essas necessidades surgem, na sua
mente, como desejos muito fortes. Tão forte que, só com muito treino e
condicionamento se consegue resistir a eles. Mas a satisfação deles é de
fundamental importância para a sobrevivência do indivíduo e da espécie.
Assim, o indivíduo nasce, e motivado pelas necessidades básicas, vive,
reproduz e morre. E a espécie, graças ao instinto do acasalamento, se eterni-
za (no caso do ser humano, a perpetuação da espécie tornou-se uma verda-
deira ‘praga’ para o planeta). Essas necessidades são comuns a todos os
animais, inclusive aos irracionais. E, pode-se dizer que os irracionais tem
33
necessidades e vivem em função delas. O homem, por ser ‘racional’ e assim
racionalizar as suas necessidades, tem necessidades e desejos, que ele con-
sidera vitais, mas que não passam de vaidades criadas pelo seu ego (o ser
pensante).
E aqui nasce um problema que é exclusividade do animal racional,
uma vez que os irracionais não o têm. Que problema? (deve estar pensando
o(a) leitor(a)). Esse problema, muito comum na sociedade consumista em
que se vive, é um delírio, um erro de julgamento, que surge quando o ho-
mem confunde um mero desejo sem sentido com uma necessidade vital.
Neste caso, ele passa a lutar pela satisfação dos seus desejos como se esti-
vesse lutando pela satisfação de uma necessidade vital. E aqui começa o
desastre (para não dizer a ‘tragicomédia’). Esclareço: como a realidade que
ele está vivendo é virtual, os desejos surgidos nessa ‘realidade’ também são
virtuais, ou seja, falsos. Já se disse que o homem não quer aquilo que ele
acha que quer, ele pensa que quer, mas está equivocado. Ele não quer o
objeto do seu desejo. O que ele quer é a satisfação (felicidade?) que ele acha
que conseguirá realizando aquele desejo fútil. Quantas pessoas se endivi-
dam irracionalmente para consegui coisas que nem chegam a usar. Isso é
racional? Isso é inteligente?
Talvez (e isto fortalece a minha tese) o problema da humanidade
seja a vesânia. É a loucura coletiva que obscurece a sua mente e faz com
que ele use toda a sua capacidade mental (que é o que o distingue dos outros
animais) de forma tão irracional, tão paradoxal e tão contraproducente. É a
insanidade que torna o ser humano um animal irracional, bem mais irracio-
nal do que os outros. Estes não dispõe do aparato cognitivo presente no ser
humano. Mas em compensação, por não o terem, não podem construir mun-
dos (as culturas) e, assim, delirar e utilizar a razão para racionalizar (ou seja,
‘justificar’) as suas sandices. Delirar, repito, é uma particularidade do ser
humano. Ao que parece, numa perspectiva evolucionista, a racionalidade ao
mesmo tempo em que foi um ganho para a espécie humana, tornou-se um
peso. O homem, por ter adquirido a razão, a capacidade de pensar abstrata-
mente, é um animal condenado a delirar. O que ele supõe ser uma vida
cheia de sentido, não passa de uma ilusão criada por ele próprio em sua
mente.
Para tornar essa argumentação mais esclarecida, suponha o(a) lei-
tor(a) que um gênio (QI acima de 140) perca o juízo, torne-se um esquizo-
frênico, mas não perca a inteligência. Ele agora, apesar da loucura, continua
sendo um gênio. Um ‘gênio louco’, é verdade, mas ainda um gênio. E, ao
que me parece, aqui está a origem da tragédia humana. O animal (que todo
ente humano o é) ganhou inteligência e racionalidade. E assim a capacidade
de ‘construir mundos’ (ou seja, delirar). Mas, ao confundir a sua construção
34
de realidade (a sua realidade virtual) com a realidade real, perdeu o senso de
realidade, perdeu o ‘juízo’, mas continuou inteligente. E a consequência
desse desastre é o que a humanidade está vivendo nos últimos milênios.
Quantos delírios! Quantas tragédias! Quantas maluquices!
Ou seja, o que falta no ser humano não é inteligência. Ele é o ani-
mal mais inteligente que já pisou na face da Terra. Longe de mim, ante
tantas invenções e descobertas, por em dúvida a inteligência dessa criatura
tão inventiva e arteira. O que falta no homem não é ‘racionalidade’. Ele a
tem, embora esta seja dominada pelas emoções. E a evidência maior de que
o ente humano é racional é a sua capacidade (ímpar) de ‘racionalizar’ os
seus atos, por mais bestiais que o sejam. Os outros animais não têm essa
capacidade. Mas, ainda que tenha inteligência e razão, o homem continua se
comportando de forma pouco inteligente e completamente irracional. Por
que será? Para mim, a explicação mais convincente é a tese de uma huma-
nidade delirante, uma humanidade que vive sob o império da Loucura.
Penso que o que falta no ser humano é abrir a sua percepção para
si. Procurar, em primeiro lugar, como já nos admoestava Sócrates, conhe-
cer-se a si mesmo. E, também, abrir a percepção para o mundo à sua volta.
Isto é, tomar consciência de que a realidade que ele vive é uma realidade
virtual, ilusória. E assim sendo, ela pode ser alterada. Talvez o ente humano
não consiga viver, nesta dimensão, sem delirar. Mas, tomando consciência
de que a vida é um delírio (para mim isso é um fato), ele pode, modificando
o seu delírio (afinal este foi por ele criado) tornar a convivência com os
outros loucos mais harmoniosa e sociável. Tomando consciência de que a
vida é um delírio, talvez ele possa, como já nos admoestava Buda, libertar-
se da escravidão dos desejos, e, assim, encontrar a tão ansiada paz interior.
A conclusão que chego é que, uma vez tomando consciência de
que a vida é um delírio, ainda que não consiga viver sem delirar, o homem
possa substituir os delírios que dificultam a vida em sociedade por delírios
que facilitem essa convivência com os seus semelhantes. E isso é possível.
Por exemplo, ele pode substituir o delírio da competição pelo delírio da
cooperação; pode substituir o delírio da intolerância religiosa pelo delírio da
convivência ecumênica. Afinal tudo que ele vive não é um delírio?
Contudo, o ponto de partida desta ‘revolução’ é começar a duvidar
das suas certezas. É começar a questionar as suas crenças, principalmente as
que dão sustentação aos seus preconceitos, e as que dão fundamento à sua
visão de mundo. Todo delírio tem uma ‘fundamentação’. E, sob certo aspec-
to, pode-se deduzir que todo delirante é um ‘fundamentalista’. Lembro o(a)
leitor(a) que o que dá sustentação e continuidade a um delírio é a ‘certeza’.
Assim, meu(minha) caro(a) e sano(a) leitor(a), comece a duvidar das suas
certezas. Por falar em duvidar, Descartes, após a sua exaustiva reflexão,
35
onde pôs tudo em dúvida, disse: penso, logo existo. Ao que me parece o
lema mais apropriado para o ser humano é: deliro, logo existo. Porquanto eu
não consigo imaginar vida humana, nesta dimensão, além do delírio.
Feita essa exposição da minha tese, que espero tenha sido convin-
cente, quero deixar bem claro que tudo isso é apenas uma ‘hipótese’. E
ainda que ela seja verdadeira, pode ser que eu esteja delirando. Não descarto
essa possibilidade. Entretanto, partindo do pressuposto que nem eu nem o(a)
leitor(a) somos loucos, mas sim pessoas sensatas e ajuizadas; convido-o(a) a
fazer uma divertida ‘viagem’ pelo meu ‘tratado de maluquice’. Assim,
repito, já que não somos loucos, vamos nos divertir um pouco com a malu-
quice dos outros, afinal, rir é o melhor remédio e também o mais barato.
O autor.
Goiânia, maio de 2009.
REFERÊNCIAS: BANDLER, Richard e GRINDER, John. A estrutura da magia. Tradução
Raul Bezerra Pedreira Filho. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1977.
DESCARTES. Discurso sobre o método. Tradução de Miguel Lemos. Rio
de Janeiro: Organização Simões, 1952.
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão, O mal-estar na civilização e
outros trabalhos. Disponível em: http://www.geocities.com/ cigarrofazma-
lasaude. Acessado em 20/05/2009.
HOBBES, Thomas. O Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado
Eclesiástico e Civil. São Paulo, Os Pensadores, 4 ed., Nova Cultura, 1998
KRISHNAMURTI, J. Liberte-se do passado. Tradução de Hugo Veloso.
São Paulo: Cultrix, 1969
ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Tradução de Paulo M.
Oliveira. Disponível em www.ebooksbrasil.org/adobeebook/erasmo/pdf.
Acessado em 08/07/2009.
A LOUCURA HUMANA EM 12 ATOS
36
I ATO: INTRODUÇÃO
Aos poucos faz sentido
a crítica do Erasmo,
vivemos num grande hospício,
essa percepção me deixa pasmo.
O homem perdeu a sanidade,
tenho que admitir tal verdade,
pois, embora me seja difícil,
faz parte do meu ofício.
É a Loucura Humana
que na terra há muito reina
absoluta e soberana.
E a cada dia que passa
ela mais seguidores recruta,
principalmente nas massas,
onde abundam os birutas.
O mais difícil porém,
dentro do meu ofício,
foi ter que admitir
que estou nela também
e que não é fácil sair.
A loucura humana
está tão disseminada
na nossa decadente sociedade
que uma mente totalmente sana
é uma verdadeira raridade.
Dela ninguém escapa,
pouco importa a idade,
beleza ou grau de cultura.
Até parece que
todos perderam a sanidade
e foram seduzidos pela loucura.
Meu Deus, quanta amargura
37
o inexorável porvir reserva
a esta insana humanidade!
O jeito é fazer humor,
fazer ironia e dela rir.
Pois é da loucura humana,
no mundo há muito reina,
inexorável, absoluta e soberana,
que emana o ódio, o desamor.
Talvez até o final desta
você acabe pensando
que eu é que sou louco,
por estar aqui mostrando
da vesânia humana um pouco.
Vamos agora aos fatos.
Não julgue este poema
uma afronta, um desacato.
Espero que você pense, reflita
e que faça algo, não se omita.
Porque a loucura humana,
apesar de ser sempre negada,
mas cronicamente perpetuada,
ainda tem jeito, ainda tem cura.
Se pararmos com a encenação,
provavelmente nós daremos
um outro rumo à civilização.
- Que encenação ?
(Deve estar pensando você).
A de que a maluquice
não é tão generalizada
e que a maioria de nós
são pessoas sensatas,
racionais e ajuizadas.
E eu volto a insistir:
veja os fatos, meu irmão,
contra eles não há argumentação.
38
Aqui acabo o primeiro ato,
mas não esta obra de ficção.
II ATO: CONSIDERAÇÕES GERAIS
É por causa da loucura humana,
reinante absoluta e soberana,
que a vida tornou-se uma labuta,
principalmente na zona urbana.
Contudo, tenho certeza,
que você, assim como eu,
não se considera louco,
nem mesmo um pouco.
Não é verdade, caro e sano leitor,
ou duvida de sua sanidade?
Já que não somos lunáticos,
vamos fazer um estudo,
um estudo pitoresco e prático
desta interessante patologia
que há muito vem desafiando
a Psiquiatria e a Sociologia
Analisaremos doravante
o comportamento errante
de um tal “Homo sapiens”
que habita neste planeta.
Você gostará da historieta.
Ele, o tal “Homo sapiens”,
que não é você nem eu,
insiste em afirmar e defender
que tem inteligência e sabedoria,
mas amiúde se comporta
como um verdadeiro sandeu.
Prossigamos com a alegoria.
Ele, o homem louco,
39
leva a sua existência
em silencioso desespero.
Mas, por causa do ridículo
e tragicômico orgulho,
que o obriga a sempre manter
uma sábia e racional aparência,
oculta sua dor com esmero.
Todavia, sofre o dia inteiro.
Perdeu não só o caminho,
mas a própria identidade.
Refugia-se na “farra” e no vinho
para dar alívio a sua ansiedade.
Na sua completa e exuberante
carência de sanidade
vive num delírio coletivo,
onde crê que a real felicidade
é a excitação que sente no peito
ao ter um anseio satisfeito.
Neste tragicômico delírio,
que o domina por completo,
ele, o louco, amiúde confunde
com uma vital necessidade
um mero desejo sem sentido
do ego pela vaidade endurecido.
E ainda insiste ter sanidade.
É incrível, inacreditável mesmo,
a jactância e a gabolice
com que a espécie humana
de sua “sabedoria” pretensa
muito, muito mesmo se ufana.
E ainda assim diz que pensa.
O seu insano comportamento
é repetitivo , estereotipado,
Pois ele torna-se angustiado,
por vezes até desesperado,
quando não está ativo.
40
Não faz tudo o que diz,
não diz tudo o que faz,
mas exige sempre a verdade
em suas “grandes” amizades.
E ainda insiste ter sanidade.
Come e bebe em demasia,
vive cheio de vícios e manias.
Mas julga-se sábio e vitalício,
em sua párvoa e insana fantasia.
Em nome da nacionalidade,
loteou a terra e a humanidade,
visando(pasme!) o bem comum.
Mas que bem comum é esse
se dentro das próprias nações
encontramos divisão, competição
e de miséria muitos bolsões ?
Onde está a tal inteligência
(se é que há tal virtude)?
Onde está a pretensa sanidade
sendo que as suas atitudes
são carentes de racionalidade?
É a loucura humana.
Melhor será eu “maneirar”,
senão vou acabar em “cana”
por estar a verdade a mostrar.
Mas vamos fazer de conta
(já que não somos lunáticos)
que estou falando de Marte
e não da nossa Terra agonizante.
Encare, portanto,
meu caro e sano leitor,
este meu profano canto
como uma obra de ficção.
Assim espero merecer
41
a sua preciosa atenção.
(Não me deixe só!)
III ATO: O LOUCO E A SAÚDE
Continuarei com apresentação
do nosso homem alienado,
que cara de anjo tem,
mas se porta como um cão
como um cão tresloucado,
sempre que assim lhe convém.
Porém, volto a insistir,
não estou falando de nós.
Afinal nem você nem eu
somos loucos ou sandeus.
Não é verdade, caro leitor,
ou duvida de sua sanidade?
Falo de um outro homem,
um tal que se diz racional
e(apesar de sua loucura expressa)
insiste em dizer que é normal,
embora, por trás do fingimento,
sofra, sofra à beça.
O tal homem, ora analisado,
de sua saúde é um descuidado;
vive se envenenando (o demente),
mas reclama quando fica doente.
Passa a vida inteira
fazendo o que não deve,
a sua refeição não é leve.
Sem falar do vício do cinzeiro,
afinal ele fuma o dia inteiro.
Depois, totalmente intoxicado,
declama orgulhosamente:
42
“eu estou doente,
o meu corpo está quente,
um bom remédio preciso tomar
para a saúde perdida recuperar.”
Pois na sua convicção,
extraordinariamente delirante,
crê que bastarão umas pílulas,
talvez um bom xarope
ou mesmo uma injeção,
para que, como antes,
ele volte a ser são.
E assim o mentecapto
procura um esculápio,
que às vezes está mais doente
por também viver desvairado,
mas que astuciosamente assume
um ar de sábio, de prudente.
(Isso faz parte do costume)
Assim sendo,
imagine que cena histriônica,
onde um doutor em doença,
disfarçando a sua descrença
(pois há muito perdeu a saúde),
esperando consegui evitar
que o louco chegue ao ataúde,
um remédio ele o manda tomar.
Todavia, faz parte da convenção.
Pois mesmo que o médico
tenha sanidade e visão,
ele jamais poderá prescrever
mudanças de hábitos e atitudes
como forma de bem viver
e de se recuperar a saúde.
Porquanto, se assim proceder
de fome, com certeza, irá morrer.
É a loucura humana
43
que há muito reina na terra
absoluta e soberana.
Aqui acabo mais um ato
da “brilhante epopéia”
do homem mentecapto
que sonha com uma panacéia.
IV ATO: O LOUCO E O “AMOR”
Vamos agora ao quarto ato.
Continuarei com o meu relato,
falando de um homem tal,
um tal louco que se diz racional.
Mas, antes de prosseguir,
nunca é demais repetir
que não estou falando de nós.
Ouça-me, não me cale a voz.
Vou agora retratar
um certo sentimento
que o homem louco
gosta muito de usar
para fugir do sofrimento.
Você nem vai acreditar!
Estou me referindo
ao que o louco e sandeu,
que não é você nem eu,
sai por aí proferindo
como se fosse o amor.
Isto mesmo, caro e sano leitor,
o tal homem, ora dissecado,
insiste em dizer que ama
e que também é amado,
como se na sua vesânia
fosse capaz de viver o amor,
44
o amor real, o verdadeiro.
Pois o que ele vive como tal
é apenas um sentimento
incômodo e passageiro
que, como uma mercadoria,
é por ele permutado,
sempre que há simpatia
entre os dois parceiros.
Aliás, você acredita
que um louco varrido,
como o ora referido,
cuja vida é uma desdita,
seja capaz de amar?
Também sou forçado a duvidar.
Mas para tornar
o meu relato bem convincente,
antes que o julgue impertinente,
vamos aos fatos, meu irmão,
contra eles não há argumentação.
Como pode alguém
que se diz cheio de amor
viver sempre explodindo
e descarregando o seu rancor
na pessoa objeto de seu louvor?
(Eu duvido também.)
Segundo os tratados,
os clássicos psiquiátricos,
é típico da precoce demência
a constante manifestação
da ininteligível ambivalência,
tal qual ocorre com freqüência
no homem filho da alienação.
E mesmo assim,
ante tanta evidência,
ele, o louco, insiste em dizer
45
que tem juízo, que é sensato
e que tem consciência.
E você que não é louco,
nem mesmo um pouco
(não é mesmo, caro leitor?)
fica perplexo, sem entender
esta falta de prudência.
Você já deve ter ouvido
por aí muito se dizer,
com ar de pieguice,
após alguma maluquice:
“fiz tudo por amor!”.
E você que não é louco,
nem mesmo um pouco,
(não é mesmo, caro e sano leitor?)
fica por entender.
Afinal como pode um louco,
que se porta bem pior
do que um animal irracional,
amar algo ou alguém,
ainda que seja um pouco?
Só quem está na alucinação
disso não consegue ter visão.
Toda doença tem,
assim ensina a patologia,
períodos de exacerbação
intercalados com acalmia.
A vesânia humana não é,
isto eu garanto, uma exceção.
Uma freqüente e típica agravação
desta párvoa e coletiva alienação
é a ridícula convicção,
extraordinariamente delirante,
surgida subitamente no demente.
Segundo essa convicção
ele não mais poderá viver
sem uma bela e formosa mulher
46
que ele já conhecia antes,
ou que acabou de conhecer.
Nesta ocasião muda de atitude,
fica cego e passa a ver
apenas nobres virtudes
na mulher conhecida ou estranha
que acabou de conhecer.
Modifica por completo
o seu insano comportamento,
perde o resquício de juízo,
fica a mercê do sentimento
e grita: “é o amor, é o amor,
encontrei o paraíso!”.
Como diz o popular adágio:
“desgraça pouca é besteira”.
O louco neste crítico estágio
fica bobo como uma toupeira.
E no auge do surto
ele(o louco) declama,
“é o amor, é o amor,
este belo sentimento
que no meu peito é uma chama,
pois muito me queima
e me arde por dentro”.
E os outros alienados,
tal qual ocorre num hospício,
aplaudem e gritam agitados:
- Ele encontrou o amor,
o amor é lindo,
com ele o sofrimento é findo!
Mas como esse tal “amor”
é apenas um agravamento
da demência, caro leitor,
mais cedo ou mais tarde
o louco perde o alarde.
47
Então, num momento
de raro discernimento,
ele consegue ver a mulher
como ela na realidade é,
uma simples e limitada mortal,
assim como ele, louco animal,
e não uma deusa encarnada
que o levaria ao paraíso
a troco de nada.
E ele diz muito irritado,
após ter com ela se casado:
- Cara esta mulher
não larga do meu pé,
dela já estou cansado,
conviver com ela
é um pesado fardo.
E você, caro e sano leitor,
que assim como eu,
não é louco nem sandeu,
fica perplexo, estupefato,
ante tão desvairado espetáculo.
É a loucura humana.
Aqui acabo o quarto ato.
Continuarei com o meu relato
na próxima semana.
V ATO: O LOUCO E O AMOR UNIVERSAL
Continuarei a mostrar,
neste satírico e pitoresco ato,
a generalizada demência
que ele, o homem louco,
resiste, apesar dos fatos,
a tomar consciência.
48
Como eu já disse,
no início deste relato,
se ele, o louco e sandeu,
que não é você nem eu,
parasse com a encenação,
talvez saísse da insanidade
que causa tanta aberração
nessa tão sofrida sociedade.
Falei até aqui
do pretenso amor declarado
que o nosso alienado
insiste em dizer que há
entre um homem e uma mulher,
só porque ele assim o quer.
E o que dizer , caro e sano leitor,
do chamado amor universal,
o amor dispensado ao próximo,
que do cristianismo é o sal?
Estou agora falando
do amor entre irmãos,
afinal não somos filhos de Deus
e nesta universal filiação
não estão incluídos os ateus ?
Existe realmente
esse tal desprendido amor,
meu caro e sano leitor,
ou isto é mais uma encenação
da coletiva e párvoa alienação ?
Amiúde eu me pergunto:
como pode haver amor
numa sociedade alienada,
onde a Justiça e a honestidade
foram há muito e muito tempo
descaradamente humilhadas
e sordidamente pisadas?
49
Uma vez um certo padre
que traiu o juramento
e em nome do “amor”
uma beata lasciva engravidou,
falou-me de tal sentimento,
ensinado por Jesus Cristo.
Preste atenção nisto:
- Com a vinda de Jesus,
(disse-me ele entusiasmado)
no mundo brilhou a luz!
E eu o deixei engasgado
quando de supetão lhe perguntei:
luz, caro padre, que luz??
Ele não soube me esclarecer.
Depois consertou sua afirmação
e acabou concordando,
meio a contra gosto,
que vivemos num mundo cão,
um mundo bárbaro e desvairado.
Porém, segundo ele, ainda existe
o tal amor, o amor universal,
apesar de um tanto sufocado.
Que amor universal é esse
que leva os seres humanos
a estupidamente se digladiarem,
como freqüentemente ocorreu
nas chamadas “guerras santas”.
(Já pensou, caro e sano leitor,
se não fossem “santas”?)
Dá para compreender
a igreja de Jesus Cristo,
que tanto pregou o perdão
e principalmente o amor,
abençoando os seus seguidores
para irem a uma guerra
torturar e matar seus opositores?
50
Pense bem, caro e sano leitor,
como pode existir tal amor
num mundo tão dilacerado
por guerras, divisão
e por desumana competição?
(Imagino sua cara de espanto,
o seu ar de exclamação).
Afinal como é que pode
um louco, louco varrido,
que há muito perdeu a sanidade
e que é muito, muito fingido,
ser capaz de ter compaixão
ou de externar alguma bondade?
Eu creio ser mais fácil
um asno tornar-se doutor
do que ele, o louco,
sob a tirania da alienação,
poder viver o verdadeiro amor,
o amor desprendido, o cristão,
único caminho para a salvação.
Mas, se você ainda duvida
da minha argumentação,
mostrar-lhe-ei alguns fatos.
Ademais é um verdadeiro barato,
mostrar a vesânia humana
com humor, com diversão.
Você não acha,
caro e sano leitor,
ridículo e bestial
resolver as contendas
distribuindo tapa e safanão
ou usando outra forma “amena”
de expressar sua agressão?
Eu também penso assim.
Mas no cotidiano do louco,
que além de insano é muito ruim,
51
isso é muito frequente.
Mas, como manda o costume,
ele comumente assume
um ar de lógico e prudente.
Se parece um ato imbecil
ver dois legítimos irmãos,
filhos do mesmo pai, Deus,
portando-se como num canil,
preste muita atenção no quê
ele (o louco) chama de esporte
de sadia e descontraída
forma de competição
(e também de “integração”):
Paga-se uma verdadeira fortuna
e lota-se um grande ginásio
para se ver dois irmãos
agredirem-se até sangrar.
(Mas não se pode matar,
diz a regra, a convenção.)
E assim, enquanto tal cena
degradante e abjeta prossegue,
a platéia, uma massa alienada
(embora sempre negue)
numa coletiva histeria,
exterioriza uma eufórica,
sádica e irracional vibração.
Meu Deus, que triste cena,
que deprimente visão!
É o esporte do louco,
meu caro e sano leitor,
é a sadia diversão.
Que loucura, meu irmão!
Isto sem falar
das constantes, das contínuas
e intermináveis guerras
(onde é permitido assassinar)
52
que desde os princípios
assolam inexoravelmente
a nossa querida terra,
deixando-a toda ensangüentada,
e tudo isso a troco de nada.
Ele, o louco e sandeu,
que não é você nem eu,
ainda insiste em dizer
que tem visão e sanidade
e que sabe viver em sociedade.
Mas você, caro e sano leitor,
nem queira imaginar
o orgulho e a vaidade
com que ele, o demente,
defende a sua pretensa sanidade.
E, antes de prosseguir,
vai aqui um conselho:
evite com ele discutir,
principalmente se ele estiver
muito irritado e vermelho;
ele poderá, com certeza,
facilmente lhe agredir.
Portanto, não discuta com ele.
Cuidado, muito cuidado!
é por demais perigoso
um louco contrariado.
Evite, pois, tirá-lo do sério.
Se você assim proceder
poderá ir mais cedo,
bem mais cedo mesmo,
ao indesejável cemitério.
Ele, o demente ora estudado,
é mestre em falar algo
e fazer exatamente o contrário;
como se vivesse constantemente
53
a aplicar e a propagar
o famoso conto do vigário.
Aliás, eu já denunciei
a incompreensível divisão
do mundo e da humanidade;
é como se houvesse,
na coletiva e párvoa alienação,
desta sandice vital necessidade.
Com tudo isso, pergunto:
existe o amor universal,
o tal amor ao próximo,
que do cristianismo é o sal ?
(O amor é lindo...)
Para mim, caro e sano leitor,
é muita falta de percepção
do nosso homem louco
insistir que haja tal amor,
sendo ele, na sua alienação,
incapaz de amar até uma flor.
Dá para entender
o homem explorando o homem,
um morrendo de gordura
e o outro morrendo de fome?
Dá para entender
passar a semana inteira
explorando seus empregados
e dar esmola no domingo,
após na missa ter comungado?
Dá para entender
o louco animal “racional”
invocando a Justiça e as leis
para expulsar, com força policial,
de um terreno baldio,
há muito abandonado e vazio,
famílias carentes, famintas
54
e há muito desempregadas?
Você, que não é demente,
não acha um absurdo
ver os nossos irmãos,
filhos do mesmo pai, Deus,
se matando e se torturando
por um simples pedaço de chão?
Ademais este bendito chão,
daqui a algum tempo,
certamente ainda estará lá,
no mesmíssimo lugar,
enquanto os pretensos donos
há muito já morreram
e até mesmo apodreceram.
- Que falta de racionalidade!
Deve estar pensando você,
que assim como eu,
não é louco nem sandeu.
Não é mesmo ,caro leitor,
ou duvida de sua sanidade?
O que falar da famosa
e incompreensível dicotomia
que criou o bem e o mal?
Para ele, pouco importa
o seu comportamento animal.
Pois ele (o louco)sempre é o bem.
E ai de você, caro leitor,
se não disser amém!
Tal aberração
é mais um sintoma
da loucura humana,
fruto da percepção delirante,
da qual já falei antes.
Neste aludido delírio
está a cega convicção,
55
segundo a qual é necessário
do ser humano tanto martírio
para se alcançar a salvação.
De nada adiantou o calvário.
Mas, nunca, jamais mesmo,
ouse contrariá-lo.
Você poderá irritá-lo.
E ele é ávido, muito ávido,
em agressivamente se defender.
Porquanto finja o compreender.
Evite tirá-lo do sério,
Senão (como já disse atrás)
você irá mais cedo ao cemitério.
E ainda volto a insistir,
pois nunca é demais repetir:
cuidado, muito cuidado,
um louco contrariado
pode tornar-se belicoso
e assustadoramente perigoso.
Acabo aqui o quinto ato
mostrando esta dura realidade
que é a vesânia humana.
Espero que a esta altura,
ante tanta generalizada
e incompreensível insanidade,
você não acabe acreditando
que também está na loucura.
Por favor, não me deixe só!
VI ATO: A SERIEDADE DO LOUCO
Neste sexto satírico ato,
vou analisar mais um sintoma
que o nosso louco e insensato
como sinal de sanidade toma.
Estou me referindo
56
a exagerada seriedade,
a histriônica sisudez
que o nosso demente
confunde com sanidade,
com a real lucidez.
Ele, o louco, é sério,
muito sério, sério em demasia.
E crê, na sua néscia fantasia,
que o excesso de seriedade
é(repito) sinal de sanidade.
Isto mesmo, caro e sano leitor,
para o nosso alienado
o seu constante mal-humor,
fruto da sua alienação,
é sinal de sensata lucidez.
Meu Deus, quanta estupidez!
Existe no delírio coletivo,
em que vive o nosso demente,
a bem alicerçada convicção,
extraordinariamente delirante,
segundo a qual há lugar definido
para viver-se a tristeza
ou para viver-se a alegria.
Isso o torna sério e fingido,
fingido em demasia.
E assim, caro e sano leitor,
em casa ou na rua,
no corre-corre do dia a dia,
ele (o louco) luta e sua,
sofre muito, muito mesmo,
e, que é feliz, ele fantasia.,
pois teme ser diferente
dos outros loucos viventes.
Este desvairado comportamento
de hipocrisia, de fingimento,
é a humana solidariedade,
57
assaz presente na insanidade.
A tal seriedade ora aludida
é, portanto, mais um sintoma
da universalmente difundida
e também muito contagiosa
trágica loucura humana.
Na verdade, caro leitor,
a azeda cara amarrada,
que o louco amiúde aflora,
é sinal da dor oculta
que ele sente a toda hora
e não sinal de que seja
uma pessoa sã e adulta.
Porém, mais uma vez
volto a insistir que
não estou falando de nós,
ouça-me sem me agredir
e não me cale a voz.
Veja os fatos, meu irmão,
contra eles não há argumentação.
Olhe atenciosamente,
Observe em sua volta,
veja quantos tristes semblantes,
quantas caras de revolta.
Mas há rostos de alegria.
Deve ficar pensando você,
quando um louco sorrindo
ou até mesmo gargalhando
vez por outra , você vê.
Não se iluda, caro e sano leitor,
esta suposta alegria,
que um ou outro alienado
vez por outra evidencia,
é mais um típico sintoma
da cosmopolita loucura humana.
58
Há a loucura triste,
denominada melancolia;
e a loucura excitada,
que se chama de mania.
Nessa o louco, ora dissecado,
é cheio de ruidosa “alegria”.
Mas esta tal felicidade
não é autêntica e real,
é apenas mais um sinal
da coletiva insanidade.
Se você ainda duvida,
ouse, experimente questionar
um destes loucos “alegres”
e de perder a sua impagável vida,
você sério risco correrá.
Experimente isso, caro leitor,
e verá o quanto é superficial
o tão alardeado bom humor
do louco que se diz racional.
Ademais, como é que pode
alguém, escravo da loucura,
ter a autêntica felicidade,
ou poder viver na bondade?
E nunca é demais repetir:
jamais, jamais mesmo
tire um louco do sério,
pois mesmo o louco “alegre”
pode mandá-lo mais cedo
ao indesejável cemitério.
Afora estes “bem-humorados”
os outros loucos, os emburrados,
sentem muita dificuldade
para se divertirem,
para ficarem à vontade.
59
Isto você percebe
nos momentos de folguedo
em que ele, o louco sério,
quer relaxar, se divertir,
mas sente um irreal medo,
uma tal fobia social,
coisas do animal “racional”.
Daí vem a necessidade,
necessidade compulsiva,
dele beber em demasia
para ter uma noite divertida.
(Que louco cheio de manias!)
Tudo isto, ora mostrado,
é mais um evidente sinal
da crônica e nefasta epidemia
que só ataca o “ser racional”,
de todos os seres viventes,
o que é mais demente.
É a loucura humana
que na terra há muita reina
absoluta e soberana.
VII ATO: O LOUCO E O CASAMENTO
Neste sétimo ato
chegou o oportuno momento
de falar de um grotesco fato
frequente na vida do louco,
refiro-me a um tal casamento.
Este tal acontecimento,
muito presente na sociedade,
é mais um fruto da insanidade
e é causa de demasiado tormento.
(E ainda tem a morte!)
A loucura humana,
apesar de há muito ser
60
perpetuada cronicamente
de geração em geração,
não é, como vamos ver,
determinada geneticamente.
Ela é adquirida passivamente
nos primórdios da infância,
pela modelagem e pela imitação.
Desse modo, o homem,
desde criança inocente,
aprende por imitação
a tornar-se um demente,
a iniciar-se na alienação.
E um pouco mais tarde
já percebe o sofrimento
que é o viver sob a cruel ditadura
desta coletiva e párvoa loucura
que distorce a sua razão
e perturba o seu pensamento,
bem como a sua percepção.
E em plena adolescência
ele percebe que à loucura
está subordinado e sujeito.
Fica então desesperado,
precisa encontrar a cura,
precisa de qualquer jeito.
Começa desde então
a imaginar e a fantasiar
a felicidade de poder viver
sem a indesejável alienação,
e livre do constante sofrer.
E conclui no seu delírio:
- Sofro e sou muito infeliz.
E aos seus botões ele diz:
- Preciso urgentemente me casar
para que a eterna felicidade
eu possa finalmente encontrar.
61
Que desmedida parvoíce,
meu caro e sano leitor,
crê que ,apesar da sandice,
bastará ele se casar
para o paraíso alcançar.
E embora uns poucos
dos outros mais experientes loucos
o advirtam da ingênua ilusão
que é buscar no casamento
a cura do tal sofrimento,
provocado não pela solidão,
como ele “toupeiramente” supõe,
mas pela coletiva alienação;
ele insiste em embarcar
nesta párvoa e insana aventura.
Pois a esta avançada altura
ele já perdeu a sã percepção,
que agora é delirante.
Ele agora está sob a ditadura,
cruel e irretorquível ditadura,
da coletiva, universal alienação.
E vai acabar casando o bobão.
Dá para perceber,
meu caro e sano leitor,
que o louco foi “fisgado”
por um tal de Cupido.
- É o amor, é o amor!-
Diz ele, pobre iludido.
O amor é lindo,
com ele o sofrimento é findo.
Mas como pode um louco
viver o verdadeiro amor,
ainda que seja um pouco,
meu caro e sano leitor?
E sob a excitação
62
do patológico sentimento,
orgulhosamente ele afirma:
- Todo mundo tem o direito
de se casar e ser feliz.
Vou seguir o que meu peito
em insistente brados diz.
Vou casar e ponto final.
(E ainda se diz racional).
E ele casa, casa mesmo,
casa na párvoa ilusão
de que vai ser feliz, muito feliz,
feliz para todo o sempre,
como num conto de fadas.
(Que aventura mais atoleimada!)
Porquanto como é que pode
duas pessoas sofredoras
(constantemente sofredoras)
não por causa da solidão,
como pensam na alienação,
mas por causa da cruel mania,
que lhes obscurece a razão,
casarem e viverem em harmonia?
Aí vem uma tal lua-de-mel,
onde os nubentes se recolhem
para, sob a proteção da religião,
e também da insana sociedade,
poderem agora livremente
se “amarem”, se acasalarem.
(só porque assinaram um papel).
Pois com este bendito papel,
devidamente assinado
e também registrado,
o sexo até então proibido
(apenas para a mulher),
deixa de ser um pecado mortal,
que podia ser feito escondido.
Agora poderá ser praticado
63
do jeito que se quiser,
pelo neófito e abençoado casal.
Porém, passada esta fase,
prazerosa e agradável fase,
vem a da rotina dura,
fruto da coletiva loucura.
É a fase da cruel descoberta
dos inaceitáveis defeitos.
Afinal ninguém é perfeito.
E ele percebe tarde demais
que o seu tormento continua.
E vê a verdade nua crua:
os dois até então apaixonados
são muito, muito diferentes,
e ainda tem uma tal sogra.
Então conclui desesperadamente:
- A vida é uma droga!
(E ainda tem a sogra!).
Sem falar dos seus filhinhos,
verdadeiras “pestinhas”,
que quanto mais crescem,
mais trabalho e preocupação
aos pais possessivos dão.
Então, no auge do desespero
o louco conclui e declama,
declama com muito esmero:
- A vida é um inferno
e ainda tem a morte,
meu Deus, que sorte!!
E é nesta avançada altura
que o homem, filho da loucura,
põe um trágico fim na vida.
Um outro busca alívio
no cigarro e na bebida,
sem falar das outras drogas.
(E ainda tem a sogra!)
64
Um outro ainda
parte desvairado novamente
na busca de outro casamento.
E ,no afã de querer encontrar
o paraíso há séculos perdido,
torna-se novamente iludido
e mais uma vez volta a se casar.
(Mais uma obra do Cupido).
E tudo recomeça novamente,
casamento, lua-de-mel e rotina,
rotina e mais sofrimento.
Então ele (o louco ) conclui:
- Será ,meu bom Deus,
que sofrer é a minha sina ?
Acabo aqui este ato,
onde ponho em evidência
um diagnóstico sintoma
desta coletiva demência
que se chama loucura humana.
VIII ATO: A IDOLATRIA DO LOUCO
Vou falar um pouco
de um certo comportamento,
para mim um tanto esquisito,
que ele, o homem louco,
exibe e acha bonito.
Refiro-me à idolatria,
comportamento assaz insensato,
que na sociedade hodierna
virou ridícula e párvoa mania.
Isto mesmo, caro e sano leitor,
o homem louco e sandeu,
que não é você nem eu,
65
precisa seus ídolos adorar
para que a dor oculta,
fruto do viver desvairado,
possa ele um pouco aliviar.
Tem ídolos de todo jeito,
ídolos do popular futebol,
da música e do automobilismo.
Até parece que com a insanidade
todos a Deus renegaram
e ao politeísmo retornaram.
Tem muitos ídolos mesmo,
ídolos regionais e nacionais,
sem falar dos estrangeiros
que vez por outra aparecem,
fazem “shows” fenomenais
e saem com muito dinheiro,
deixando loucos perplexos
e estupefatos para trás.
O máximo da realização
para estes pobres dementes
é ser um dia atropelado
pelo seu ídolo endeusado.
Principalmente se na ocasião
ele perder um ou dois dentes,
mas receber um aperto de mão.
(Que loucura, meu irmão!).
Sem falar daqueles idiotas
que sentem parar o coração
somente porque tiveram
com o seu “deus encarnado”
uma simples aproximação.
(Meu Deus, que degradação!)
Os nossos antepassados,
no seu ingênuo primitivismo,
adoravam bezerros de ouro,
o sol, a lua e também o trovão.
66
Mas foram por Moisés
impiedosamente amaldiçoados
e, segundo a Bíblia Sagrada,
castigados sem perdão.
O louco da atualidade,
que se diz civilizado,
moderno e avançado,
não adora o sol e a lua
(coisas dos antepassados)
mas idolatra seus semelhantes
que se sobressaem na sociedade
de forma ruidosa e brilhante.
Pense um pouco, por favor,
meu caro e sano leitor,
quem é mais desvairado,
o nosso louco atual
ou os loucos de antes
com os seus mitos endeusados?
Na Bíblia, livro sagrado,
está claro e bem determinado
que não se deve idolatrar
a nenhum, nenhum ser humano.
Contudo, o louco, o insano
insiste em seus ídolos cultuar
e nesta “megassandice” persiste.
Mas, não o ouse contrariar.
Pois, como eu já disse atrás,
nunca, jamais mesmo,
tire um louco do sério.
Se você assim proceder,
poderá ir bem mais cedo
ao indesejável cemitério.
E se amanhã, meu caro leitor,
algum louco lhe perguntar
quais são os seus ídolos,
67
invente, crie, minta,
finja desta parvoíce participar.
Mas jamais o contrarie,
nunca o deixe se irritar.
Você, que, assim como eu,
não é louco nem sandeu,
não acha uma grande idiotia
ver uns seres humanos
adorando outros seres humanos.
Como se estes fossem
(nesta párvoa e insana fantasia)
divindades encarnadas
e tudo isso a troco de nada?
- Meu Deus, que loucura!
Deve estar pensando você,
não conseguindo entender,
a esta avançada altura
a causa de tanta aberração:
irmão adorando irmão
como se estes fossem
dos deuses encarnação.
É sem dúvida uma loucura,
mas esta é a verdade,
a verdade mais pura.
E se você ainda duvida,
veja os fatos, meu irmão,
contra eles não há argumentação.
Acabo este ato aqui.
Espero que você, sano leitor,
se é que até aqui chegou,
não duvide de si
e, ante tanta evidência,
acabe mesmo pensando
que também está louco,
que perdeu a consciência.
Por favor, não me deixe só!
68
IX ATO: O LOUCO E A RELIGIÃO
O que eu vou agora
com satírico humor mostrar
é um assunto muito sério,
que envolve misticismo,
credulidade e mistério.
Leia, por favor, até terminar.
Espero que você, sano leitor,
não me julgue um anarquista,
ou mais um dos “neo-sofistas”,
que, aproveitando-se da crendice,
exploram, sem ética, sem pudor,
e fazem da fé, da religião,
um meio de enriquecimento
e de perversa exploração.
Afinal a religião,
como eu falei atrás,
é um assunto sério,
sério até demais,
pois ele transcende
os limites do cemitério,
onde se descansa em paz.
Meu caro e sano leitor,
um dos muitos preceitos
da coletiva insanidade,
da qual não somos eleitos,
é a premente necessidade
de se “filiar” a uma religião
(seja ela qual for)
para se aplacar a ansiedade,
causada pela párvoa alienação,
Esta incômoda ansiedade,
fruto do viver desvairado,
ele, o nosso homem louco,
que se diz (pasme!) racional,
69
chama de “crise existencial”.
Uma forma eufêmica, amena ,
de disfarçar o seu interno mal.
Pois na sua delirante percepção,
ele, o sectário da loucura,
vive na párvoa ilusão
de que é uma pessoa impura
e que precisa de uma religião
para poder purificar-se
(com certas preces e rituais)
e dos pecados alcançar o perdão.
Isto mesmo, caro e sano leitor,
o nosso louco necessita
“filiar-se” a uma religião.
Porquanto no seu delírio,
fruto da alienação cosmopolita,
esse é o único caminho
dele alcançar a salvação
e dos pecados a absolvição.
Afinal ele (o alienado)
crê, na sua coletiva demência,
que o seu atual sofrimento
(a tal “crise existencial”)
é uma tardia conseqüência
de uma indecente perversão,
cometida há muito tempo atrás
por um sujeito chamado Adão.
Desde então acabou-se a paz.
Você há de convir,
meu caro e sano leitor,
que é bem mais fácil
acusar um certo ancestral
pelo seu padecimento atual,
do que assumir de uma vez
a plena responsabilidade
pela sua párvoa insensatez,
fruto da coletiva insanidade.
70
Assim, caro e sano leitor,
em determinado momento,
não mais suportando o tormento
(insisto, fruto da alienação),
ele orgulhosamente diz :
- Preciso me “filiar”
a uma certa religião,
única maneira que há
de neste mundo ser feliz
e alcançar a eterna salvação.
Veja bem, caro leitor,
o louco, para aliviar
a sua dor interior,
precisa (pasme!) se “filiar”
a uma certa religião,
seja ela qual for,
ele precisa ter uma “devoção”.
Prossigamos com a narração.
E uma vez ele tenha
adotado determinada seita,
esta doravante passará a ser
(para ele evidentemente)
a forma mais perfeita
de neste mundo se viver.
(Mas a loucura continua,
e ainda tem a morte!)
Aqui para nós,
meu caro e sano leitor,
será que alguma religião,
seja ela qual for,
consegue proporcionar,
a quem viva na alienação
a tão sonhada paz interior?
Se você prestar atenção,
verá que o nosso alienado
fala em simples “filiação”
71
e não, como seria o esperado,
em viver, viver intensamente,
sob os ditames da religião.
(Que louco mais complicado!)
Com a tal “filiação”
apenas aumenta no louco
o fingimento e a encenação.
Ele, agora um “convertido”,
temendo ir para um tal inferno
(como se já não vivesse nele),
finge ser bom e fraterno.
Mas é ilusão, pura ilusão,
pois, apesar da encenação,
ele jamais consegue alcançar
o desejado equilíbrio interno,
que é deveras propiciado
pela verdadeira religião.
Este desequilíbrio interno,
que se exterioriza na forma
de angustia e de ansiedade,
não é de religião falta,
como o louco tanto ressalta,
é falta de sanidade mesmo.
Afinal como pode alguém,
vivendo sob a cruel ditadura
desta cômica e trágica
coletiva humana loucura,
ter a real paz interior ?
É, meu caro e sano leitor,
não há nenhuma religião capaz
de propiciar ao louco e mendaz
a tão sonhada interior paz.
Por mais que ele queira
seguir cuidadosamente
os ensinamentos, os ditames,
72
da religião escolhida,
ele jamais conseguirá.
Pois da alienação coletiva
ele um mero escravo é
e tem que segui-la,
não adianta bater o pé.
Somente alcançando a cura
e saindo da coletiva demência,
ele vai tomar consciência
de que é um filho de Deus,
de que é uma pessoa pura.
Ele vai perceber
que o seu sofrimento
é mera conseqüência
do viver louco e desvairado
e não efeito da desobediência
de um certo ancestral tarado.
Buscar a necessária cura
desta coletiva loucura
é para ele a única saída.
Fazer da Eucaristia
sua constante comida
não vai livrá-lo da mania.
Porém, caro e sano leitor,
como poderá o demente
alcançar algum dia
a cura desta coletiva mania
se ele orgulhosamente
insiste em dizer que
(apesar do viver desvairado)
é um ser racional e ajuizado,
e sabe com sabedoria viver?
Voltando pois, caro e sano leitor,
ao nosso tema central,
eu afirmaria mesmo que
o nosso louco e sandeu,
73
que não é você nem eu,
busca na religião
a garantia da salvação
e proteção contra o mal.
Por falar em “mal”,
você já deve ter notado
que não importa o quanto
o louco esteja errado,
o inferno é sempre os outros,
ele é definitivamente o bem,
só porque assim lhe convém.
(Não é mesmo?).
- Que louco mais complicado!
Deve estar pensando você.
Prossigamos com a narração.
Ele, o nosso homem louco,
agora um “convertido” religioso,
sob a descarada hipocrisia,
acredita, acredita piamente
que apesar da cobiça,
reinante em sua mente,
bastará que vá à missa
e participe da Eucaristia
para garantir a salvação,
proposta pela religião.
(Que louco cheio de mania?)
Eu às vezes me pergunto,
meu caro e sano leitor,
como é que pode alguém
que perpetua hipocritamente
toda forma de materialismo
e de vida desregrada e mundana,
sem nunca, nunca mesmo pensar
no seu crescimento interior,
poder um dia alcançar
o tal Paraíso, o “Nirvana”?
Acabo aqui este ato,
74
meu caro e sano leitor,
deixando bem claro um fato:
o homem, enquanto louco for,
jamais alcançará a paz interior.
X ATO: A ILUSÃO DA RIQUEZA
Continuarei, caro leitor,
com o meu satírico relato,
vamos, pois, por favor,
a mais um pitoresco ato.
Na hodierna sociedade,
dominada pela insanidade,
vive-se na párvoa ilusão
de que a incômoda infelicidade,
fruto da coletiva alienação,
poderá ser eliminada
com a simples realização
de um forte desejo vão.
Como eu já disse atrás,
ele, o louco e sandeu,
que não é você nem eu,
na sua desvairada insanidade,
confunde um mero desejo vão
com uma vital necessidade.
E de todos os desejos
o mais ambicionado
é o de poder um dia
ser uma pessoa rica,
um ser muito abastado.
(Meu Deus, que tola mania!)
E nesta busca insana,
fruto da loucura humana,
ele, o louco e sandeu,
que não é você nem eu,
torna a já sua sofrida vida
75
uma competição eterna,
onde na busca do sucesso
vive, nos outros loucos,
a constantemente passar a perna.
E, consequência desta loucura,
fica dividida a sociedade
em duas grandes categorias:
de um lado os ricos, a minoria,
e do outro os pobres, a maioria.
Mas acima da pobreza,
bem como da riqueza,
reina absoluta e soberana
a tragicômica loucura humana.
Assim, caro e sano leitor,
tem louco de todo jeito:
tem o louco pobre
e tem o louco rico;
aquele é um infeliz sujeito,
este, um destacado nobre.
Sem falar naquele doido
que não é pobre,
mas também não é rico,
é o classe média famoso,
um louco atípico e vaidoso.
O louco rico usa jóia,
jóia de ouro e brilhantes,
o louco pobre, coitado,
não tem jóia nem de cobre.
Mas sigamos avante.
(A loucura é contagiante.)
O louco, seja rico ou pobre,
precisa gastar, gastar e gastar,
tenha ou não tenha dinheiro.
É um gastador ousado e audaz
gasta de janeiro a janeiro.
76
Ele busca na prodigalidade
o alívio da ansiedade,
que lhe rouba o sono e a paz.
O louco, caro e sano leitor,
gasta por impulsividade,
haja ou não necessidade,
gasta em colossal demasia.
(Que louco cheio de manias!)
O louco rico tem carro,
carro novo e importado,
o classe média tem condução;
já o pobre só anda de ônibus
e às vezes também passeia
algemado no “camburão”.
Mas todos fumam cigarro
e vivem na párvoa alienação.
(Que mundo, meu irmão!)
E assim o louco pobre
(bem como o classe média)
passa a vida inteira
sonhando com o dia,
o dia da sua “alforria”,
em que ele vai melhorar
a sua situação financeira.
(Meu Deus, quanta asneira!)
Asneira sim, meu caro leitor,
pois enquanto ele luta,
se esforça e se mata,
e sonha ser um aristocrata,
os dias se vão passando,
a morte , se aproximando,
e o hoje, dia mais valioso,
ele simplesmente não vive.
Mas ele é pedante e orgulhoso,
apesar da expressa idiotia ,
que reina na coletiva mania.
77
E desse modo
ele passa a vida inteira,
toda a sua existência,
que é rápida e passageira,
neste mundo em decadência,
sonhando e vegetando,
vegetando e sonhando.
(E ainda diz que pensa.)
Se ele não fosse louco,
assim como nós(eu e você)
ele, o doido, sem dúvida
procuraria o hoje viver,
mas viver intensamente,
sem com o amanhã se preocupar.
Concorda, caro e sano leitor,
ou será que com o amanhã
você também vive a sonhar?
(Por favor, não me deixe só!)
Mas o louco rico é feliz?
Isto, meu caro e sano leitor,
insistentemente ele diz.
Pois o que paga é caro,
muito caro mesmo,
para poder ter uns momentos
de eufórica, alarmante excitação.
Mas, passados estes momentos,
de ruidosa e falsa alegria,
ele retorna ao sofrimento
da sua vida sem sentido,
que é amargurada e vazia,
onde, sob a cruel ditadura
da párvoa e coletiva alienação,
prevalece, reina o delírio,
assim como a alucinação.
E é nestas horas
que ele, o desditoso alienado,
que já foi pobre e ficou rico,
rico e muito abastado,
78
vê com clareza a ilusão,
a ilusão da material riqueza.
E desabafa muito angustiado:
- A vida é um inferno
e ainda tem a morte,
meu Deus, que sorte!
Isto mesmo, caro leitor,
o que ele, o homem alienado,
chama de real felicidade
é um intervalo pequeno
entre o seu sofrimento passado
e o seu sofrimento futuro.
Ademais, caro e sano leitor,
como pode ser feliz alguém
que, da cruel ditadura
da sórdida humana loucura,
é um simples indefeso refém?
(Eu duvido também.)
Assim sendo, caro leitor,
a única diferença que há
entre o louco rico e abastado
e o materialmente necessitado
é que este (o louco pobre)
tem uma ilusão a mais:
a de que se fosse rico
seria feliz, muito feliz
e viveria numa eterna paz.
Todavia, enquanto da loucura
ele não alcançar a real cura,
a sua vida, apesar do fingimento
de que é um ser alegre e feliz,
será desdita e sofrimento,
ilusão, sofrimento e desdita.
(Meu Deus, que sina maldita!)
Acabo aqui mais um ato
expondo este amargo fato,
79
a ilusão da material riqueza,
fruto da vesânia cosmopolita
que torna a vida na terra,
é importante que se repita,
ilusão, sofrimento e desdita.
XI ATO: O LOUCO E O LUTO
Vamos, caro e sano leitor,
ao nosso penúltimo ato.
Imagino a esta altura,
se você até aqui chegou,
o seu ar estupefato
ante tanta insanidade,
tanta desmedida loucura.
Você, meu caro e sano leitor,
que assim como eu,
não é doido nem sandeu,
deve ficar atônito, perplexo,
ao ver o nosso demente
assumindo um comportamento,
totalmente desvairado,
totalmente sem nexo,
e dizendo que se trata
de um nobre sentimento.
Refiro-me àquilo
que, o nosso alienado,
fazendo ridículo melodrama,
orgulhosamente chama
de “normal reação de luto”.
Tal comportamento demente,
a chamada reação de luto,
é na verdade mais um fruto
do viver insano e inconsequente.
Desde a infância
80
tomamos consciência
da transitoriedade da vida,
da certeza da nossa partida.
Sabemos, desde então,
que a vida é passageira,
cultuar a possessividade
é uma párvoa e ilusória asneira
de quem vive na insanidade.
Sabemos, pois, que mais cedo,
ou (quem sabe?) mais tarde,
chega a hora da partida.
Não temos outra saída.
Não adianta, se ter medo,
nem mesmo fazer alarde.
Sabemos, outrossim,
que nada nos pertence,
tudo pertence a Deus.
Tudo nos é emprestado
e, quando o prazo vence,
o que nos foi dado nos é tirado.
Adianta ficar angustiado?
Imagino o ar de exclamação
de você, caro e sano leitor,
se um dia visse a mim,
que assim como você
não sou um doido, um alienado,
apropriando-me do sol
e dizendo: ele me pertence,
tenho registro e documentação.
(Uma indébita apropriação.)
Você, com toda certeza,
começaria a duvidar
da minha mental clareza,
ao tentar me apropriar
(com registro e documentação)
de algo que sabidamente
nunca pertencerá a gente.
81
Agora e se mais tarde,
no entardecer, ao findar o dia,
quando chegasse o ocaso,
o “meu sol” fosse desaparecendo,
e eu, que demonstrei até então
ser mentalmente bem são,
começasse a ficar preocupado.
E, após o desenlace final,
começasse a ficar sofrendo,
melodramaticamente sofrendo.
Você, meu caro e sano leitor,
iria com toda razão dizer
que eu pelo delírio coletivo,
fui ardilosamente contaminado,
e que estaria me comportando
como mais um demente ativo,
mais um pobre alienado.
(Não é verdade, caro e sano leitor?)
Pois é tudo isso exatamente
que ocorre com o nosso demente.
Ele, apesar de orgulhosamente
viver a falar e a pregar
que tem sã consciência
da impermanência da vida;
bem como está preparado
para a indesejável partida,
sempre perde as estribeiras
e entra num pânico alucinado,
frente a um ente finado.
(Que louco complicado!)
Pois é, caro e sano leitor,
ele, o tal homem alienado,
assume este comportamento
tão desvairado e inconsequente,
e ainda chama tal sandice
de “normal reação de luto”,
na verdade mais um tributo
82
de quem tem a mente doente.
Porém,
o que torna tal comédia
(que para ele é uma tragédia)
mais histriônica, mais hilária,
é que ele insiste em dizer
que tem sã consciência
da realidade da transição,
da constante impermanência
da vida neste mundo cão.
É, caro e sano leitor,
ele insiste em dizer
que é um ser adulto e racional,
e que (pasme!) aceita a morte
como um acontecimento normal.
Mas tudo isso é fachada,
é hipocrisia e é fingimento,
pois quando ela (a morte)
bate à porta do demente
e leva algum querido parente,
ele, que vive dizendo ser forte,
se angustia e se desespera,
se revolta e chora copiosamente.
Reage como uma criança
completamente perdida
e sem nenhuma esperança.
E os outros loucos,
ante tragicômico espetáculo,
incompreensível e desvairado,
dizem em coletivo coro:
- A razão de tanto choro
é a presença do amor.
(O amor é lindo,
com ele o sofrimento é findo!)
Será mesmo o tal amor,
meu caro e sano leitor,
83
ou será a possessividade,
mórbida e sem necessidade,
que é um cardeal sintoma
da funesta loucura humana?
O nosso louco chora
e faz ridículo melodrama
não é porque ama.
(Como pode um louco amar?)
Mas sim por existir,
no coletivo e parvo delírio,
a extraordinária convicção
de que ele não poderá viver
sem o ente que acabou de perder.
Embora com ele vivesse
sempre a se desentender
e em constante discussão.
(Que louco cheio de contradição!)
Haja contradição
nesta coletiva alienação:
quando nasce alguém,
um acontecimento natural,
o louco fuma charuto,
vibra e é todo alegria;
mas quando morre alguém,
que é natural também,
ele chora e se desespera,
entra na “reação de luto”,
onde o sofrimento é o tributo.
(Que louco cheio de mania!)
Pois é, caro e sano leitor,
nós, que não somos alienados,
sabemos que tanto o nascer,
quanto o indesejável morrer,
fazem parte do nosso viver.
Já o louco, o desvairado,
faz ruidosa festa no nascer
e ridículo melodrama no morrer.
(Que sujeito mais abilolado!)
84
Da morte, caro e sano leitor,
ninguém, ninguém escapa.
Ela não é motivo de horror,
é na verdade mais uma etapa
da qual está sujeito,
no processo do viver,
qualquer vegetal ou animal.
Só quem está desmiolado
para ver nela um mal
a ser desesperadamente evitado.
(Não é verdade, caro e sano leitor?)
Ou seja,
a morte é um fato natural.
A mudança, a transformação,
é apanágio da natureza.
Assim, é natural nascer,
viver e evidentemente morrer.
Não é mesmo,
meu caro e sano leitor,
ou será que também você
vive a morte a temer ?
(Não me deixe só!)
Prossigamos com a narração.
O louco, no auge do velório,
numa histriônica encenação,
desvairadamente assume,
como manda o insano costume,
um ar de louco triste e sofredor.
Passando então a encenar
amor, amor e compaixão,
pelo louco que se foi, o falecido,
embora este enquanto vivo
fosse constantemente agredido.
Ademais, caro e sano leitor,
eu pergunto a você
(que assim como eu
85
não é um alienado)
dá para entender
ver alguém sofrendo
e fazendo ridículo melodrama,
alegando como a causa
desta párvoa e insana trama
a perda de algo ou alguém
que jamais lhe pertenceu ?
Que loucura!
(Você não acha?)
Somente quem já enlouqueceu
para assumir este procedimento
parvo, ridículo e sandeu.
Só quem já enlouqueceu
para não ter a clara visão
desta tragicômica alienação.
Não é mesmo, caro e sano leitor,
ou será que você também,
ante um ente que faleceu,
assume o ar ridículo e sandeu
de um ser humano sofredor?
Por um acaso,
você, meu caro e sano leitor,
já viu nalgum velório,
algum louco falecido
que, por mais desvairado
tenha sido o seu passado,
não seja por todos enaltecido?
É incrível,
é fantástico mesmo,
a rápida transformação
do louco que em vida
era um nefasto, um cão;
mas que, após a final partida,
torna-se um verdadeiro santo
com direito a extrema-unção.
(Que loucura, meu irmão!)
86
De tudo isto, ora mostrado,
o mais difícil de entender
é a incompreensível contradição
do louco, ora dissecado,
que apesar da evidência
da sua falta de coerência,
ainda insiste em dizer
que tem total sanidade,
que é mentalmente são
e que sabe em sociedade viver.
- Meu Deus, que loucura!!
Deve estar pensando você,
sem a esta adiantada altura
não ter conseguido entender
porque tanto melodrama
ante um fato tão natural,
como é a nossa passagem
para o mundo sobrenatural.
Que falta de sã consciência,
meu caro e sano leitor,
só mesmo quem já está
dentro da coletiva alienação,
desta ridícula incoerência
não consegue ter visão.
Não é mesmo, ou você também
nos tais velórios assume
aquele ar ridículo de sofredor
como manda o insano costume?
(Por favor, não me deixe só!)
Aqui acabo o penúltimo ato
mostrando este inconteste fato,
a incrível possessividade,
que é (eu volto a repetir)
um patognomônico sintoma
da generalizada cosmopolita
e tragicômica loucura humana.
(Haja insanidade !!)
87
XII ATO: EPÍLOGO
Cheguei finalmente
ao último, o derradeiro ato.
Apesar de tanto desvairamento,
mostrei até o presente momento,
com incontestes fatos,
apenas um minúsculo retrato
da vesânia humana cosmopolita
que torna o viver na terra
ilusão, sofrimento e desdita.
Dissequei a “brilhante” epopéia
de um certo louco e sandeu,
que não é você nem eu,
mas sim um tal “Homo parvus”,
que se diz (pasme!) racional.
Todavia, tal pedante animal
é demente e parvo de fato.
Pois tem um comportamento
ridículo, pérfido e caricato.
Este tal “Homo parvus”,
o nosso homem alienado,
estupidamente se batizou
(Pasme, meu caro e sano leitor)
de sapiens, animal racional.
Leia, eu peço por favor,
até o satírico verso final,
se você acaso aqui chegou.
- Meu Deus, quanta parvoíce!
Deve estar pensando você
se, eu volto a insistir,
conseguiu até aqui ler
este tratado de maluquice.
(Não é mesmo, caro e sano leitor?)
Mas prossigamos
que a coisa “é séria,
88
é muito séria, é seríssima”.
E apesar da tragédia
de ter que conviver
numa aloprada sociedade,
dominada pela insanidade,
eu consigo me divertir.
Isto mesmo, caro e sano leitor,
o único jeito é rir,
rir para não chorar.
Ademais, caro e sano leitor,
dissecar o louco e sandeu,
que não é você nem eu,
em hilárias e jocosas rimas,
tira-me do inevitável tédio
e muito, muito me anima.
Rir é o melhor remédio!
Espero, caro e sano leitor,
que (mais uma vez eu repito)
a esta avançada altura,
ante tão evidente loucura,
reinante na hodierna sociedade;
você não duvide da sua sanidade
e resolva assumir de vez
que também perdeu a lucidez
e que é, desta universal vesânia,
mais um confrade, um seguidor.
Eu lhe peço por favor,
meu caro e sano leitor,
não me deixe só?
Eu insisto:
não questione a sua sensatez,
em matéria de mania,
de vesânia, de loucura,
eu sou mestre, sou um doutor,
e garanto a sua mental higidez,
meu caro e sano leitor.
Eu garanto, pois, a sanidade,
a minha, a sua e a do editor.
Confie em mim, por favor!
89
Espero, outrossim,
que não duvide de mim
e resolva me enquadrar
na cosmopolita loucura humana,
dizendo para todo mundo
que eu, por querer ir fundo
com a minha rima profana,
sou uma pessoa insana.
(Eu sou “normal”!!!)
Eu espero também que
não me queira processar,
usando este satírico dossiê,
que resolvi publicar,
como prova material
da minha conduta “criminal”.
E mais uma vez
eu volto a insistir,
meu caro e sano leitor,
que não estou falando de nós,
mas de um louco e sandeu,
que não é você nem eu,
e que é insano, desumano e atroz.
E insisto mais:
não o procure compreender.
O seu grotesco comportamento,
apesar de um tanto irracional ,
é consequência da loucura,
um mal coletivo e cosmopolita,
que ele confunde com cultura
e dá insana continuidade,
tornando a sua vida uma desdita,
eterna e incompreensível desdita.
Todavia, antes de epilogar
vou dar uma preciosa dica
a você, caro e sano leitor,
que em matéria de loucura
90
não é uma autoridade;
que em matéria de maluquice
não é um mestre, um doutor,
assim como eu (Psiquiatra) sou.
Deste modo, no final desta,
você estará apto a identificar,
a corretamente diagnosticar,
qualquer um desvairado
que venha acaso encontrar.
Quem sabe se você
com uma pessoa louca
já não está casado?
Ou (quem sabe?) você
com uma família de loucos,
que eu garanto não são poucos,
não foi obrigado a conviver
desde o seu nascimento,
vivendo assim sua infância
num verdadeiro tormento,
ao tentar em vão
compreender o incompreensível;
e, o que é ainda muito pior,
adaptar-se ao inadaptável.
(Quem sabe, caro e sano leitor?)
Não sei mesmo como você,
se é que realmente passou
por tal amiúde experiência,
conseguiu sobreviver
sem perder a sã consciência.
Sem embarcar de vez
na vesânia coletiva,
onde reina absoluta a insensatez.
Foi indubitavelmente,
uma vã tentativa
procurar adaptar-se
a uma sociedade insana,
onde reina a loucura coletiva,
a cosmopolita vesânia humana.
91
(Não foi mesmo, caro e sano leitor?)
Mas vamos ao que
interessa realmente,
como podemos identificar
um homem louco, um demente?
Observe o seu comportamento,
meu caro e sano leitor ,
o homem louco se revela
pelo seu modo de ser.
Adora fazer da sua vida
uma melodramática novela,
e passa então a sofrer.
Vamos, portanto, ao perfil
do nosso ser desvairado que
é novecentos e noventa e nove
para cada grupo de um mil.
Ele, o homem louco,
ora dissecado em versos,
julga-se um pequenino deus
no seu minúsculo universo,
onde se considera onipotente.
(Que atitude mais demente!)
Identifica-se a tudo,
coisas, pessoas e bens.
De estabelecer relações objetais,
ele é completamente incapaz.
O seu maior sonho, maior anseio,
é um dia ser alguém destacado
neste mundo assaz demenciado,
desvairado até demais.
(Não é verdade, sano leitor?)
Aliás, meu caro e sano leitor,
a incompreensível identificação
é apanágio da coletiva alienação.
Nesta párvoa e cruel aberração,
prevalece o sentimento de posse,
92
a causa real do sofrimento
(onde há posse há sofrimento),
mas que ele, o nosso louco,
confunde com nobre sentimento.
O louco se identifica
com tudo em sua volta,
do que nunca lhe pertenceu,
ele toma insana posse,
e quando perde se revolta.
Você já deve ter ouvido
por aí muito se dizer,
com muito, muito alarido:
meu país, meu time, meu pai,
minha mãe, minha religião,
minha mulher, meu ... meu...
Meu Deus, quanta aberração
deste homem louco e sandeu!
Um outro sintoma
que identifica cabalmente
a coletiva loucura humana
é resistência, presente
no louco e demente,
em não querer aceitar
a mudança constante
que acompanha a vida.
Na natureza tudo muda,
tudo muda e se transforma.
Resistir a este fluxo natural,
relutar em querer aceitar
esta inexorável transformação,
é insano e é irracional.
Só quem está na alienação
para vê nela algum mal.
(Não é mesmo, sano leitor?)
Além do que
ele, o louco, vive lutando,
luta pela sua liberdade
política, material e financeira.
93
Mas é incapaz de perceber
que, por causa da insanidade,
vive num cárcere mental.
E ainda se diz racional.
(Meu Deus, quanta asneira?)
A sua falta de sanidade,
ele bem poderia ver.
Todavia, o orgulho e a vaidade
não permitem que ele
aceite essa dura verdade.
Isto mesmo, o alienado,
além de desmiolado,
é orgulhoso e vaidoso,
um verdadeiro artista
carente de humildade.
A forte dor interior,
meu caro e sano leitor,
assumindo um ar de felicidade,
ele disfarça com sagacidade.
Puro e descabido fingimento,
pois ele não consegue jamais
fugir do indesejável sofrimento.
Enfim, caro e sano leitor,
pelo que foi relatado,
neste esquisito compêndio,
vimos que é de todo inútil,
é um real vão dispêndio
tentar mudar a sociedade.
É preciso curar a insanidade
que jaz dentro de cada cidadão,
tenha ele consciência ou não.
Pelo que foi exposto
nos meus satíricos versos,
ficou assaz comprovado
de que não adianta
mudar toda a política.
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O mundo persistirá desvairado.
De nada adianta,
como tem a História
constantemente mostrado,
fundar uma nova religião,
ou fazer outra revolução.
O homem continuará alienado.
O ser humano tudo tentou,
até um tal de Direito criou,
na comprovada vã tentativa
de controlar a vesânia coletiva.
Mas nada surtiu efeito,
o mundo continua cão.
O problema, o único defeito,
é deveras a coletiva alienação.
(Não é mesmo, caro irmão?)
E é justamente,
meu caro e sano leitor,
esta coletiva alienação
a causa da injustiça social,
da insana competição,
e da cruel marginalização,
que causam tanta mazela e dor
neste mundo muito irracional.
Creio que a esta altura,
ante tão evidente loucura,
você que não é um desmiolado
esteja ciente e certificado
de que a coletiva alienação
é um fato incontestável.
E contra fatos, eu garanto,
não há argumentação.
(Concorda ou não?)
O homem, enquanto viver
sob a impiedosa ditadura
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da sórdida e coletiva loucura,
nunca, jamais será capaz
de com os seus semelhantes
viver em harmonia e paz.
Veja, caro e sano leitor,
que a grande religião,
que do mundo ocidental
tomou conta descomunal,
pregou durante séculos
o perdão, bem como o amor.
E (pergunto eu)o que adiantou?
E é dela o enunciado:
“paz na terra
aos homens de boa vontade”.
Paz? Que paz, caro leitor,
se no mundo predomina
o egoísmo, a guerra
e um disfarçado desamor?
Ademais como pode
um louco, louco varrido,
ter a tal boa vontade
se há muito ele já perdeu
a razão e a sanidade?
Como pode um louco
ter a tal boa vontade
se, por causa da loucura,
ele consigo próprio
vive em constante inimizade?
Apesar da pedante autoridade
de Sua Santidade (o papa),
apesar da tal Organização
das chamadas Nações Unidas,
a humanidade continua dividida
e as pessoas, caro e sano leitor,
dentro das próprias famílias
persistem fingidas e desunidas,
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desunidas e fingidas.
(Meu Deus, que vida!)
Porquanto o louco
além de louco é um artista,
ele finge ser racional
(batizou-se de Homo sapiens)
diz ser humano e caridoso.
Mas, sempre que é contrariado,
torna-se agressivo, belicoso
e mostra o quanto é desvairado.
É o “amor”, caro e sano leitor,
o “amor” é lindo, muito lindo,
com ele o sofrimento é findo!
As guerras continuaram.
A divisão a competição;
o estúpido preconceito racial,
bem como o social e o religioso,
tudo isso só vem confirmar
o quanto o homem é louco,
louco, imbecil e belicoso.
E ainda se diz religioso.
Dá para entender, caro leitor?
A maldade e a violência,
tanto combatidas e discutidas
na hodierna e, ao mesmo tempo,
decadente sociedade,
estão dentro de cada cidadão
elas não estão fora,
como querem até então.
E são frutos da insanidade,
essa é a mais pura verdade.
Aí eu pergunto,
meu caro e sano leitor,
adianta mudar a sociedade
se todos os seus elementos
(menos, é claro, eu e você)
vão continuar a viver
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sob o constante tormento
da párvoa e coletiva insanidade?
Todo louco, caro leitor,
vive com base no egoísmo.
Como pode haver amor,
o real amor ao próximo,
como prega o cristianismo,
num mundo tão desvairado,
por loucos superpopulado
e por loucos governado?
Loucos governando loucos,
loucos idolatrando loucos,
loucos educando loucos,
loucos psicanalisando loucos,
loucos medicando loucos,
loucos enganando loucos,
loucos seguindo loucos,
loucos explorando loucos;
Está todo mundo louco!!!
Será, meu caro e sano leitor,
que está todo mundo louco,
ou será que apenas eu,
que sou um psiquiatra
e que assumo ser um sandeu,
é que estou louco??
Meu Deus, que loucura !!!
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O autor, Carlos Augusto Santos Rodrigues, médico clínico
geral, especialista em Psiquiatria, pós-graduado em Medicina
do Trabalho e Mestre em Ciências da Religião pela UCG, é
professor de Medicina Legal no Departamento de Ciências
Jurídicas da Universidade Católica de Goiás e autor dos livros:
“Sinopse de Medicina Legal” e “O médico e a eutanásia: re-
flexões sobre a morte” (editados pela Ed. da UCG)
Nota: A responsabilidade pela editoração e correção é do au-
tor.