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A (IR)RESPONSABILIDADE DOS JUÍZES LUÍSA NETO (*) “Longtemps l’irresponsabilité de l’État du fait de la justice est apparue comme une sorte de butte témoin dans un paysage que la res- ponsabilité de la puissance publique abati peu à peu investi.” ( 1 ) 1. A temática da “(ir)responsabilidade dos juízes” — assim utili- zada a expressão ( 2 ) no sentido de estar em causa a compatibilização do estatuto político-constitucional da irresponsabilidade funcional, com aque- loutro da responsabilidade civil (extracontratual) que não pode ser afas- tada num Estado de Direito — envolve uma sensibilidade e complexi- dade técnico-jurídica que impõe que qualquer iniciativa legislativa seja precedida de uma reflexão cientificamente adequada mas também civica- mente fundada. De facto, o apuramento dos remédios jurídicos nesta vertente terá de conciliar o objectivo da justiça e da legitimação externa dos procedimentos estaduais com outros corolários do já referido Estado de Direito. Este equilíbrio de filigrana resultou por exemplo evidente na inter- venção do Ministro da Justiça francês Pascal Clément a propósito do des- fecho do Caso Outreau. (*) Prof. Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. ( 1 ) Justice et responsabilité de l’État, Paris, PUF, Droit et Justice, 2003, Direction de Maryse Deguergue, Prefácio de Philippe Ardant, p. 13. ( 2 ) A utilização da expressão não pode deixar de encontrar reminiscência no título do artigo “Da irresponsabilidade à responsabilização dos juízes”, Fernão de C. Fernandes Thomaz, ROA, Ano 54, II, 1994, pp. 489 a 503, e João Castro Mendes, A irresponsabili- dade dos juízes, JP, Ano 29.º, 64. 36 Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

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Page 1: A (IR)RESPONSABILIDADE DOS JUÍZES Porto · A (IR)RESPONSABILIDADE DOS JUÍZES LUÍSANETO (*) “Longtemps l’irresponsabilité de l’État du faitdelajusticeestapparuecommeunesorte

A (IR)RESPONSABILIDADE DOS JUÍZES

LUÍSA NETO (*)

“Longtemps l’irresponsabilité de l’État dufait de la justice est apparue comme une sortede butte témoin dans un paysage que la res-ponsabilité de la puissance publique abatipeu à peu investi.” (1)

1. A temática da “(ir)responsabilidade dos juízes” — assim utili-zada a expressão (2) no sentido de estar em causa a compatibilização doestatuto político-constitucional da irresponsabilidade funcional, com aque-loutro da responsabilidade civil (extracontratual) que não pode ser afas-tada num Estado de Direito — envolve uma sensibilidade e complexi-dade técnico-jurídica que impõe que qualquer iniciativa legislativa sejaprecedida de uma reflexão cientificamente adequada mas também civica-mente fundada. De facto, o apuramento dos remédios jurídicos nestavertente terá de conciliar o objectivo da justiça e da legitimação externados procedimentos estaduais com outros corolários do já referido Estadode Direito.

Este equilíbrio de filigrana resultou por exemplo evidente na inter-venção do Ministro da Justiça francês Pascal Clément a propósito do des-fecho do Caso Outreau.

(*) Prof. Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.(1) Justice et responsabilité de l’État, Paris, PUF, Droit et Justice, 2003, Direction

de Maryse Deguergue, Prefácio de Philippe Ardant, p. 13.(2) A utilização da expressão não pode deixar de encontrar reminiscência no título

do artigo “Da irresponsabilidade à responsabilização dos juízes”, Fernão de C. FernandesThomaz, ROA, Ano 54, II, 1994, pp. 489 a 503, e João Castro Mendes, A irresponsabili-dade dos juízes, JP, Ano 29.º, 64.

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“Quis custodes custodiet? Qui nous protegera contre ceux qui nos pro-tègent?”, perguntava em 1990 Cappelletti Mauro (3). Do outro lado doAtlântico, a mesma inquietação, expressa por J. J. Calmon de Passos:“Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam” (4). E aindaa mesma inquietação escancarada no Acórdão do Supremo Tribunal deJustiça, de 31.03.2004: “Por um lado, não é possível ao intérprete restrin-gir o âmbito dessa responsabilidade, mas, por outro, é a ele que competedefinir o seu conteúdo. Para além de ser necessário complementar esse pre-ceito com os princípios gerais da responsabilidade civil. A garantia deindependência do poder judicial impõe que ele seja insindicável. E aquicaímos na grande contradição do sistema. Investigar para saber sehouve um ilícito susceptível de gerar responsabilidade é já de algumaforma imiscuir-se no processo de decisão e, portanto, por em causa areferida independência. Há, pois, que superar tal ilogismo. Os auto-res, conscientes do problema, têm tendência a definir o ilícito judicialde forma cuidadosa exigindo a gravidade do acto ou a sua manifestailegalidade.”

Esgotada a crença na sustentabilidade da irresponsabilidade do Estado— plasmada na tradicional expressão “the king can do no wrong” —, e emespecial dos titulares da função jurisdicional (5), relembre-se que a inde-pendência dos tribunais, como afirmou, em carta de 1 de Agosto de 1844dirigida à Rainha D. Maria II o primeiro presidente do Supremo Tribunalde Justiça portuguesa, José da Silva Carvalho, não é um favor concedidoaos juízes mas uma garantia dada à sociedade. Aliás, se a independênciados tribunais resulta obviamente da protecção institucional garantida pelaprevisão enquanto limite material de revisão constitucional na CRP de 1976,na alínea m) do artigo 288.º, da mesma não decorre automática ou indis-criminadamente a ideia de irresponsabilidade: “[A] responsabilidade ou airresponsabilidade dos juízes (e estes não são mais do que dois merosângulos de observação ou abordagem do mesmo fenómeno), obrigam a

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(3) Em Étude de droit compare sur la responsabilité des autorités judiciaires, in LePouvoir des Juges, Presses Universitaires d’ Aix-Marseille, Económica, Coll. “Droit Publicpositif”, 1990, p. 115-176.

(4) Rio de Janeiro, Forense, 1999. Em sentido consonante, cfr. Justice et responsabilitéde l’État, Paris, PUF, Droit et Justice, 2003, ob. cit., p. 171, sobre a função jurispruden-cial “entre autoridade, independência e responsabilidade”.

(5) Fala-se aqui essencialmente da magistratura judicial, independente, e não simi-larmente da magistratura do Ministério Público, autónoma.

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deixar esclarecido, ou lembrar que não podem (não devem) ser tratadas coma atitude preconceituosa de tentar, apenas ou principalmente, carrear argu-mentos no sentido da consagração de uma concepção burocrática, autori-tária, intra-classista e/ou corporativa, o que seria aliás, interessantíssimo estu-dar ou discutir, mas iria contra a finalidade teleológica de missão ou serviçoda Comunidade Jurídica e dos seus membros, que todos os autores moder-nos lhe assinalam” (6).

Aqui há-de relevar a ideia de pacto de regime, isto é, de um acordoinstitucional — mesmo que não formalizado, mas no sentido de base con-sensual constitucional — para preservar, promover e desenvolver o sis-tema de justiça que seja símbolo de maturidade política, já que aquele é pordefinição uma estrutura civilizacional, que não pode apenas pretender umEstado de segurança de cariz hobbesiano.

De facto, as ideias de consenso, e os movimentos de aceitação e tole-rância mostram-se necessariamente como pressupostos de organização doEstado, sem que se “artificializem divergências”. Uma sociedade, paraexistir e subsistir, precisa de satisfazer os “imperativos funcionais do sis-tema social”, como diz Parsons, apelando uma vez mais ao conceito de con-senso. E a complexa telenomia constitucional não está alheia a tal impe-riosa necessidade. Gomes Canotilho fala por exemplo na ideia da justiçacontratual constitucional — Verfassungsvertragsgerechtigkeit — que equi-vale à autolimitação do poder constituinte: trata-se da ideia de contratoconstitucional permanentemente renovado, envolvendo cidadãos contra-tantes.

Ora, a compreensão material da constituição passa pela “materializa-ção” dos fins e tarefas constitucionais, pela legitimação e mediação legis-lativa, novamente no centro da agenda problemática hodierna. A Constituição— e a CRP — é norma fundamental, enquanto espelho das opções políticasfundamentais, e conta com preceitos que definem e caracterizam jurídico-cons-titucionalmente a colectividade política (ou Respublica), e com princípiosfundamentais da ordem jurídico constitucional, como padrões de legitimaçãoconstitucional, numa dimensão dupla constitutiva e declarativa (7).

Neste domínio, o problema especificamente constitucional da res-ponsabilidade dos juízes está hodiernamente na ordem do dia pela dicotomia

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(6) Thomaz, ob. cit., p. 491.(7) Veja-se aqui, por todos, R. E. Charlier, La Constitution et le juge de l’adminis-

tration, in Mélanges en honneur du professeur Michel Stassinopoulos, Paris, LGDJ, 1974.

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entre a preservação ou a alteração de paradigma, inerente ao “projecto” deuma “constituição temporalmente adequada”.

A controvertida conciliabilidade da “lógica da constituição” de umEstado de Direito com a “lógica da democracia” e a análise estrutural-materialda “densidade” e “abertura” das normas constitucionais implica uma “legi-timação-legitimidade” de uma ordem constitucional no duplo sentido dejustificação-explicação de uma ordem de domínio (estrutura de domínio) ede fundamentação última da ordem normativa, de “apoio” ou “fundamentoespecífico”, fonte da sua dignidade e garante das suas apreensões (8).

A “irresponsabilidade” dos juízes, juntamente com o “auto governo”da magistratura e a inamovibilidade daqueles correspondem ainda, comoreferia Castro Mendes (9) aos princípios ancilares da independência dos tri-bunais. Neste mesmo sentido aponta António Goucha Soares quandoafirma que “(…) o valor fulcral que se pretende tutelar é o da independênciado poder judicial, o qual se considera ameaçado se os particulares pude-rem accionar directamente os magistrados pelas suas decisões” (10).

Mas esta asserção não pode ser encarada como verdadeira na suamáxima extensão. De facto, e como refere Alberto Esteves Remédio (11),“[A]pesar da sua decisiva importância, a independência não é um valor abso-luto, mas um valor instrumental, dirigido à imparcialidade e, portanto, à legi-timidade da decisão do juiz, e um valor relativo, pois nem o juiz está iso-lado da sociedade nem o poder judicial está isolado dos demais poderes doEstado. A independência tem, portanto, limites e estes passam também pelaresponsabilização judicial, que deve deixar de ser contemplada apenas com

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(8) Cfr Guilherme da Fonseca, A responsabilidade do estado pelos actos da funçãojudicial e as crises da justiça, em António Barreto, (org), Justiça em crise? Crises da jus-tiça, Publicações D. Quixote, 2000, p. 194.

(9) Em Nótulas sobre o artigo 208.º da Constituição, Independência dos juízes,Estudos sobre a Constituição, 3.º Vol., Lisboa, 1979, pp. 653-660.

(10) Cfr. A Transformação do Poder Judicial e os Seus Limites, in Revista do Minis-tério Público, n.º 82, p. 66.

(11) Sobre a responsabilidade civil dos magistrados por actos praticados no exer-cício das suas funções, in Revista do Ministério Público, ano 22.º, Outubro-Dezembro2001, n.º 88, pp. 31 a 49, em esp. pp. 33/34.

Cfr. também, por todos, Luís Pereira Melo, Responsabilidade civil do juiz, SJ,tomo XVIII, pp. 441 a 446, e Orlando Viegas Martins Afonso, Poder judicial: independência(in)dependência, Coimbra, Almedina, 2004, em especial o Capítulo VII sobre a responsa-bilidade dos juízes. Também para enquadramento geral, António A. Santos Carvalho, O pro-blema da responsabilidade dos magistrados judiciais, in Revista de Administração e Polí-ticas Públicas, Braga, v. 1, n.º 2, 2000, pp. 159 a 175.

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referencia a abstracções como a independência ou o prestígio do sistemajudicial para simplesmente passar a ser vista também numa óptica de ser-viço público prestado aos utentes do sistema judicial”.

Como se lia no Acórdão n.º 449/93 do Tribunal Constitucional — emdoutrina depois reiterada no Acórdão n.º 404/94 do mesmo Tribunal eretomando considerações do Acórdão do Supremo Tribunal Administra-tivo de 20 de Janeiro de 1983 (12) — “na função jurisdicional a resoluçãodo conflito de interesses tem como fim específico a realização do direitoe da justiça, destinando-se, consequentemente, a servir o interesse públicoda própria composição dos conflitos, e o órgão que decide em atençãoaos interesses, que lhe cumpre especificamente prosseguir, da pessoa emque se integra ou a que pertence — não é interessado no conflito, estandoportanto numa situação de indiferença, como que de neutralidade, peranteo mesmo, ao passo que na função administrativa, contrariamente, a reso-lução do conflito de interesses em causa tem em vista a prossecução deoutro qualquer dos interesses públicos que ao Estado — utilizando estetermo num sentido amplo — incumbe realizar, representando tal compo-sição, um simples meio ou instrumento para a satisfação desse outro inte-resse, pelo que o órgão que profere a decisão não se encontra numa situa-ção de indiferença ou de neutralidade perante o conflito, já que nele temum determinado interesse”.

2. Numa altura em que se discute — com recíprocos argumentosapaixonados, que nem sempre lúcidos — a alteração de regime de res-ponsabilidade dos magistrados (13) nos termos e para efeitos da Propostapara Alteração do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual apro-vada em Conselho de Ministros de 20 de Outubro de 2005 — o objectivodas presentes linhas não é mais do que o de lançar um iter lógico de dis-cussão sobre um tema que marca indelevelmente a espinha dorsal do sis-tema jurídico e judiciário.

De facto, a proposta apresentada — que corresponde à anteriormenteapresentada Proposta 95/VIII (14) — visa estabelecer pela primeira vez

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(12) Boletim do Ministério da Justiça, n.º 323, pp. 240 e ss.(13) Para além do que fica dito na nota 6, importa deixar claro que os termos da pro-

posta hão-de estender-se igualmente a funcionários do sistema judicial — v. g. oficiais dejustiça.

(14) Esta iniciativa foi objecto de votação na generalidade na Assembleia da Repú-blica a 30.11.2001 — com aprovação por unanimidade — mas caducou em 4.4.2002 em

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em Portugal, um regime geral de responsabilidade civil pelo exercício dafunção jurisdicional (15).

Lê-se no proposto preâmbulo que se avança “no sentido do alargamentoda responsabilidade civil do Estado por danos resultantes do exercício dafunção jurisdicional, fazendo, para o efeito, uma opção arrojada: a deestende ao domínio do funcionamento da administração da justiça o regimeda responsabilidade da Administração, com as ressalvas que decorrem doregime próprio do erro judiciário e com a restrição que resulta do facto denão se admitir que os magistrados respondam directamente pelos ilícitos quecometam com dolo ou culpa grave, pelo que não se lhes aplica ao regimede responsabilidade solidária que vale para os titulares de órgãos, funcio-nários e agentes administrativos, incluindo os que prestam serviço na admi-nistração da justiça. No que se refere ao regime do erro judiciário, paraalém da delimitação genérica do instituto, assente num critério de evidên-cia do erro de direito ou na apreciação dos pressupostos de facto, enten-deu-se dever limitar a possibilidade de os tribunais administrativos, numaacção de responsabilidade, se pronunciarem sobre a bondade intrínsecadas decisões jurisdicionais, exigindo que o pedido de indemnização seja fun-dado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição compe-tente” (16).

Aliás, e de facto, o exercício do direito de regresso ora previsto pres-supõe que seja apresentada uma acção judicial para esse efeito, pelo quecabe exclusivamente aos tribunais verificar se houve actuação dos magis-trados com dolo ou culpa grave — diga-se aliás que deve deixar-se claroque a acção de regresso se deveria enxertar na acção principal, em termosde chamamento à demanda — artigo 329.º CPC —, o que faria ganhar emtermos de eficiência já que os pressupostos a apreciar serão basicamente

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virtude de demissão do Governo e de início de nova legislatura. Diga-se aliás que esta mesmainiciativa correspondia já ao anterior registo 18/Prop/2003.

(15) Saliente-se que o termo “responsabilidade” pode também obviamente implicar,para além da civil, uma vertente política, disciplinar, ou penal.

(16) Veja-se neste sentido o Parecer da Comissão de Legislação da Ordem dosAdvogados, 2000, 20 004, de 09.05.2002: por haver “que impedir que os tribunais, numaacção de responsabilidade, sejam chamados a pronunciar-se sobre a bondade intrínsecadas decisões jurisdicionais, as quais podem aliás ter sido proferidas por tribunais de outrasjurisdições, a Comissão entende que, além da exigência de um dano anormal e de um erromanifesto do juiz, o pedido de indemnização deve ser fundamentado em revogação dadecisão danosa pela jurisdição competente ou em factos supervenientes que revelem sériaprobabilidade da existência de erro judiciário”.

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os mesmos, sendo tal unicidade a todos os títulos benéfica, assim como deveser fixado prazo para a interposição da respectiva acção, bem como fixa-das regras de legitimidade.

E lembre-se que se hoje já são responsáveis com dolo ou culpa grave,novidade é exigir do Estado que exerça o direito de regresso quando tenhaque ressarcir m particular por acto praticado por magistrado com dolo ounegligência grave.

Recorde-se por outro lado que desde há muito a persistente necessi-dade de alteração do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967,convoca discussões sobre uma eventual inconstitucionalidade por omis-são, para além de ter já sido objecto de censura reiterada e manifesta pelosórgãos de justiça europeia (17).

A discussão quanto ao facto de saber se o diploma de 1967 abrangiaou não responsabilidade decorrente do exercício de actos da função juris-dicional foi por exemplo abordada pelo Acórdão do Supremo Tribunalde Justiça de 17.06.2003, onde se pode ler: “este diploma [Decreto-Lein.º 48 051] pretendeu regular a responsabilidade civil extracontratual doEstado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de ges-tão pública e atribuiu nova redacção ao artigo 815.º, § 1.º, alínea b), doCódigo Administrativo, o qual determinou a inclusão no âmbito do con-tencioso administrativo ‘os pedidos de indemnização feitos à administra-ção relativamente aos danos decorrentes de actos de gestão pública’. Doconfronto desta norma com o artigo 1.º do citado Decreto-Lei resulta cla-ramente ter-se pretendido abranger apenas ‘actos de administração’, comexclusão dos actos da função jurisdicional. No conceito de ‘administração’

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(17) É aliás aprovação legislativa que urge acelerar, tendo em conta a condenaçãode Portugal pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 14.10.2004. De facto, esta con-denação do Estado Português por Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça das Comu-nidades Europeias no Processo n.º C-275/03, em acção por incumprimento que lhe moveua Comissão por transposição incorrecta da Directiva 89/665/CEE do Conselho, de 21de Dezembro de 1989 (que coordena as disposições legislativas, regulamentares e admi-nistrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos con-tratos de direito público de obras e de fornecimentos (JO L 395, p. 33) mereceu um pedidode cooperação jurídica dirigido à Comissão — que se anexa —, explicitando as condi-ções políticas referidas, no sentido de evitar que viesse a Comissão a accionar o processosancionatório do artigo 228.º do Tratado da UE, e permitindo ainda algum tempo parareanálise da proposta e reinstrução do procedimento legislativo. Por outro lado, e para alémdo mais, verifica-se uma decorrência directa e exigência material da reforma adjectiva doprocesso administrativo.

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— acrescenta — não cabe o poder judicial, porque a administração temcomo órgão superior o Governo, ao passo que o poder judicial é inde-pendente e soberano. Daí que os actos jurisdicionais não suportem a qua-lificação de ‘actos de gestão pública’, devendo, por isso, concluir-se quea responsabilidade pelos actos dos magistrados no âmbito da sua jurisdi-ção há-de encontrar cobertura legal noutros textos que não os do Decreto-Lein.º 48 051.” E aí se acrescenta, ainda aderindo às conclusões do Parecern.º 12/92 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (18),segundo o qual não faria sentido, por um lado, que, não podendo os juí-zes, por força do n.º 2 do artigo 218.º da CRP (agora 216.º, n.º 2), ser res-ponsabilizados pelas suas decisões, salvo nos casos excepcionais de con-denação pela prática de crimes de peita, suborno, concussão ou prevaricação,de dolo, de imposição legal expressa de tal responsabilidade ou de dene-gação de justiça — artigo 1083.º do CPC —, o artigo 22.º da Constituiçãoos responsabilizasse pelos danos decorrentes do exercício da sua actividadeprofissional em termos de solidariedade com o Estado.

Mas posição diversa emana já por exemplo do Acórdão n.º 404/94 doTribunal Constitucional, em termos que nos parecem merecer concordân-cia: “desta caracterização finalística da função jurisdicional, não se alcançaum critério de segura diferenciação ente a função jurisdicional e afunção administrativa sendo certo, existirem múltiplos pontos de ondedecorre paralelismo e até analogia entre tais funções, uma e outraexpressão do imperium emanado da soberania popular”.

Em termos muito curiosos assenta ainda o mesmo Acórdão em que oconceito de reserva do juiz (“monopólio de juiz”, “garantia jurí-dico/constitucional de reserva de juiz”) — nas suas duas dimensões fun-damentais de só poder a função jurisdicional, materialmente definida, serexercida pelos tribunais e de ser ao juiz que cabe não apenas a últimacomo a primeira palavra nas questões submetidas à sua jurisdictio — é dife-rente daqueloutro instituto que se costuma designar por garantia jurí-dico-constitucional da via judiciária.

No sentido da qualificação como actos de gestão pública geradores daresponsabilidade do Estado como único centro de imputação dos seusórgãos, pertencentes estes a qualquer um dos seus poderes, vejam-se tambémos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de Março de 1989,no Recurso n.º 26 525, e de 14 de Maio de 1991, no Recurso n.º 19 273.

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(18) Pareceres, vol. I, pp. 481 e ss.

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Também nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 17.06.2003, a “gestão dos processos judiciais e dos serviços judiciaisconstitui actividade administrativa e integra-se em actos de gestão pública,sendo, pois, de concluir pela aplicação à Responsabilidade Extracontra-tual do Estado por Actos Ilícitos o Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 deNovembro de 1967.”

É certo aliás que a consagração da responsabilidade por acto quedecorra do exercício da função jurisdicional pode já decorrer do n.º 4 doartigo 20.º da CRP — “Todos têm direito a que uma causa em que inter-venham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equi-tativo” — e entender-se subliminar na previsão da responsabilidade patrimo-nial directa das entidades públicas, nos artigos 22.º — já referido — e 271.ºda CRP — faces contrapostas e complementares do mesmo princípio degarantia que é corolário desde logo do Estado de Direito Democrático (19)e que desde logo derivariam de igual forma do princípio da cláusula abertado artigo 16.º da Lei Fundamental (20).

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(19) Cfr Rui Pinheiro, Democracia, poder judicial e responsabilidade dos juízes,incluído na obra Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado — trabalhos prepara-tórios da Reforma, Coimbra Editora, pp. 68 e ss., maxime p. 77.

(20) O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15.10.1998, proferido noRecurso n.º 36811 fundou a obrigação de indemnizar na Constituição e na ConvençãoEuropeia dos Direitos do Homem, pronunciando-se ainda acerca dos elementos a considerarna determinação do que deva entender-se por prazo razoável e do objectivo da indemnização.E refere-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 160/95, de 15 de Março de 1995,no Proc. 562/92: “O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no n.º 1 doartigo 225.º, prevendo aí os casos de detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegale distinguindo no n.º 2 os casos em que ela não é ilegal. Não lhe estava vedado pelo legis-lador constitucional seguir esse caminho, pois o n.º 5 do artigo 27.º limita-se a prever a pri-vação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei”, derivando, no plano daresponsabilidade civil, o dever de indemnizar por parte do Estado de actuações lícitas ouilícitas dos órgãos intervenientes nessa privação da liberdade”. Maia Gonçalves — Códigode Processo Penal Anotado e Comentado, 11.ª edição, p. 464 —, escreveu em anotação aoartigo 225.º que “o disposto neste capítulo sobre indemnização por privação de liberdadeilegal ou injustificada resulta de Convenções a que Portugal aderiu, designadamente daConvenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outu-bro, que no seu art. 5.º, n.º 5, dá direito de indemnização a qualquer pessoa vítima de pri-são ou detenção em condições contrárias às que nesse artigo se estabelecem e que a mesmalei perfilhou. Resulta ainda do disposto no art. 2.º, n.º 2, al. 38), da Lei de Autorização Legis-lativa n.º 43/86, de 26 de Setembro”.

Em especial sobre o conceito de “prazo razoável”, ver Notas para um processo equi-tativo, Irineu Barreto, in Documentação e Direito Comparado, n.º 49/50, p. 69, Joaquim Lou-

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Assim e a este respeito parece assente a doutrina (21) e a jurispru-dência (22) que apontavam já para a susceptibilidade de aplicação directados artigos 22.º e 271.º da CRP e do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 deNovembro 1967, ao exercício da função jurisdicional.

Nesse mesmo sentido, veja-se por todos Luís Guilherme Catarino (23),esclarecendo que “o princípio da irresponsabilidade pessoal não é conatu-ral à actividade jurisdicional ou às suas características”.

Leia-se a propósito o disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Jus-tiça, de 19.02.2004: “Desde logo, a opinião quiçá dominante vai no sentidode que o artigo 22.º, na redacção emergente da 1.ª revisão constitucional(1982), consagra também em termos gerais a responsabilidade civil do Estadopelas denominadas fautes de service praticadas no exercício da função juris-dicional. E tratando-se da previsão de direitos de natureza análoga a direi-tos fundamentais, desfruta o artigo 22.º, à sombra do artigo 18.º, n.º 1, de apli-cabilidade directa, independente de mediação normativa infraconstitucional.Por isso mesmo carece, a doutrina que assim flui do artigo 22.º, de sercomplementada mediante os princípios gerais da responsabilidade civil,envolvendo peculiaridades concernentes à ilicitude e à culpa que vãoimplicadas na específica natureza da função judicial”. Repare-se a quea referência a estas peculiaridades não implica, no entender deste aresto, quese não aplique o regime do artigo 22.º e do artigo 18.º da CRP, mas antes,e apenas, que os mesmos sofram adaptações, inevitáveis e irrecusáveis.

Como decorre do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2004,“[A]ssume efectivamente preeminência no exercício desta função o parâ-

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reiro, in Scientia Iuridica, Tomo XLV — 1996, p. 85, Caso Martins Moreira contra Por-tugal, in Documentação e Direito Comparado, n.º 33/34, p. 412, e Caso Lechner e Hesscontra Áustria, in Documentação e Direito Comparado, n.º 35/36, p. 63.

(21) Cfr. Maria José Rangel de Mesquita, in Responsabilidade Civil Extracontra-tual da Administração Pública, Coord. Fausto de Quadros, Almedina, 1995, pp. 115-122,João Tiago silveira, A reforma da responsabilidade civil extracontratual do Estado,Revista Jurídica, 26, pp. 79 a 117, e Luís Guilherme Catarino, Contencioso da respon-sabilidade — uma Hidra de Lerna?, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 41, 2003,pp. 3-13.

(22) Cfr. J. J. Gomes Canotilho, Anotação ao acórdão do STA-1, de 7 de Marçode 1989, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3799, pp. 293 e ss.

(23) Veja-se Contributo para uma reforma do sistema geral de responsabilidadecivil extracontratual do Estado, Propostas acerca da imputação por facto jurisdicional,Revista do Ministério Público, ano 22.º, Outubro-Dezembro 2001, n.º 88, pp. 51 a 69,intervenção na discussão pública de 8 e 9 de Março de 2001 na Torre do Tombo, p. 54.

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metro da independência dos tribunais e da subordinação do juiz à Consti-tuição, à lei e aos juízos de valor legais que brota do artigo 203.º dodiploma fundamental e do artigo 4.º do Estatuto dos Magistrados Judi-ciais, propiciando compreensivelmente divergências de interpretação e apli-cação aos casos da vida. Podendo similares assintonias emergir no exer-cício da garantia de reapreciação das decisões judiciais, em via de recurso,quando o tribunal hierarquicamente superior sobrepõe um diverso julgamentoda questão ao tribunal inferior, não é só por isso que pode legitimar-se umjuízo material de verdade a respeito daquele e de erro quanto a este outropólo da relação de supra-ordenação”. E assim é então que a adaptaçãoresulta inevitável no que tange aos pressupostos da ilicitude e da culpa, que“no exercício da função jurisdicional susceptível de importar responsabi-lidade civil do Estado, conforme o artigo 22.º da Constituição, só podemdar-se como verificados nos casos de mais gritante denegação da justiça,tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabili-dade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei,a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ouassentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador (…)”.

É nestes termos que este título de responsabilidade — último redutoda teoria da irresponsabilidade civil do Estado — exige ser assimilado àdos restantes agentes públicos de qualquer dos poderes da respublica,devendo as distinções ser as estritamente necessárias, sob pena de viola-ção do princípio da igualdade.

Aliás, esta ausência de fundamento para a diferença de regime é real-çada por exemplo por Maria da Glória Garcia (24).

E o tratamento deste tema há-de necessariamente partir da consideraçãodo conceito de jurisdição e verificar se pode ser considerada em si comoserviço público — o que releva até para efeitos de aplicação do conceitode faute de service, em que a culpa não é imputada a um ou mais indiví-duos, mas antes se traduz num facto anónimo e colectivo de uma admi-nistração em geral mal gerida, de tal modo que é difícil descobrir os seusverdadeiros autores.

A faute de service aqui em causa não pode cingir-se ao funciona-mento anormal do serviço. De facto, pode tratar-se de funcionamento nor-mal em relação ao qual, e não obstante, não seja possível encontrar um nexo

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(24) A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, Con-selho Económico e Social, Lisboa, 1997, pp. 41 e 42.

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de causalidade e imputação específico em relação a um determinado agente.Assim, deve ser incluído o funcionamento “normal”, abrangendo mesmoos casos fortuitos mas obviamente excluindo os casos de força maior.

Lia-se por outro lado no já referido Acórdão do Supremo Tribunal deJustiça de 19.02.2004 que o “artigo 22.º da Constituição, na redacção emer-gente da 1.ª Revisão (1982), consagra em termos gerais a responsabilidadecivil do Estado pelas denominadas fautes de service praticadas no exercícioda função jurisdicional”. E mais se concluía que tratando-se de previsão dedireitos de natureza análoga a direitos fundamentais, “desfruta o artigo 22.ºda lei fundamental, à sombra do artigo 18.º, n.º 1, de aplicabilidade directa,independente de mediação normativa infraconstitucional, nesta medida pres-supondo, todavia, complementar recurso aos princípios gerais da responsa-bilidade civil, envolvendo peculiaridades concernentes à ilicitude e à culpaque vão implicadas na específica natureza da função jurisdicional”.

No mesmo sentido, desde 1999, é de salientar Luís Guilherme Cata-rino (25), que escreve que o artigo 22.º da CRP “por regra não carece demediação ou concretização legislativa, aplicando-se mesmo na ausênciade lei, contra a lei e em vez da lei, sendo inválidas as normas que o con-trariem”.

3. Enfim: a juris dictio é uma função do Estado, isto é, uma funçãoidentificada com a soberania do Estado. Nestes termos, a responsabilidadedo Estado por actos jurisdicionais há-de ir necessariamente além da sen-tença, abrangendo todos os actos praticados no decurso do processo comodespachos e decisões interlocutórias. Mais, há-de necessariamente abran-ger as situações de jurisdição voluntária e contenciosa.

Ao invés do que durante algum tempo se deu como adquirido e se sus-tentou, não faz sentido, como vimos, a pura e simples exclusão da res-ponsabilidade por actos da função jurisdicional por ser esta — à partida,e numa primeira aproximação — uma responsabilidade por actos lícitos quederiva da organização estadual e institucional de repartição de encargossociais (26).

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(25) Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração daJustiça, Coimbra, 1999, p. 170, e A Responsabilidade do Estado pela Administração da Jus-tiça, o Erro Judiciário e o do Estado por facto jurisdicional, separata do II suplemento doDicionário Jurídico da Administração Pública.

(26) Para esclarecimento do enquadramento do respectivo regime, leia-se MariaRangel de Mesquita, O fio da navalha: (ir)responsabilidade da Administração por facto lícito,

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Tenha-se aliás em conta que os prejuízos ou danos que decorremdesta função não têm necessariamente que se repercutir difusamente em todaa comunidade, mas em destacáveis partes, enquanto tal consideradas nostermos da legitimidade processual e do interesse em agir.

Se o direito à jurisdição é o direito público subjectivo constitucio-nalmente assegurado ao cidadão de exigir do Estado a prestação da acti-vidade de jurisdição (27), não deixa por outro lado de constituir-se numaobrigação de organização tal por parte do Estado que elimine ou mini-mize ou prejuízos ou danos que decorram daquela actividade (28).

É também notório hoje que o aumento da exigência quanto à res-ponsabilidade jurisdicional resulta também da inflação legislativa caracte-rística do Estado Social de Direito (29). A indesejável — inevitável? —

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in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 46, 2004, pp. 41-54. A este propósito refere oAcórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.10.2004: “O artigo 22.º da Constituição con-sagra genericamente um direito indemnizatório por lesão de direitos, liberdades e garantias,não se limitando, por isso, a abranger a responsabilidade do Estado por actos ilícitos,sejam eles de natureza legislativa ou jurisdicional”.

(27) Como se lia no Acórdão n.º 13/05 do Tribunal Constitucional: “está aí em causa,manifestamente, não o reconhecimento de um qualquer objectivo interesse público, mas atutela de um interesse subjectivado em determinadas pessoas: naquelas que foram concre-tamente atingidas por uma actuação do Estado que lesou, afinal, o seu ‘direito à liberdade’.Mas que no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, se reconhece já um ‘direito’ dos cidadãos écorroborado ainda pela própria inserção sistemático-normativa do preceito no catálogo dosdireitos fundamentais — isto é, naquela parte da lei fundamental funcionalmente votada àdefinição de ‘posições jurídicas subjectivas’ (à definição das ‘estruturas constitucionais sub-jectivas’, como também se diz), a qual nessa insuprível ‘dimensão subjectiva’ tem a sua marcacaracterística, e a razão da sua especificidade no quadro global da Constituição”.

(29) Já salientada por Thomaz, ob. cit., mas hoje em dia sobejamente tratada porMaria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador,Coimbra Editora, Coimbra, 1998 e Rui Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade civil doEstado por actos legislativos, Almedina, Coimbra, 1992. Em termos mais parcelares, cfr.Maria Lúcia Amaral, “Dever de Legislar e Dever de Indemnizar a propósito do caso Aqua-parque do Restelo”, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano I, n.º 2, 2000,p. 93, citando os Acórdãos do TC n.os 1/97, 330/97 e 517/99, Diogo Freitas do Amaral eRui Medeiros, Responsabilidade civil do Estado por omissão de medidas legislativas — ocaso Aquaparque, in RDES, ano XLI, n.os 3 e 4, Agosto-Dezembro 2000, pp. 299-383,Raffaele Bifulco, La responsabilità dello Stato per atti legislativi, Milano, CEDAM, 1999,J.J. Gomes Canotilho, Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Maiode 2002, in RLJ, ano 134.º, pp. 202 e segs.

Para além do mais, cfr. obviamente o caso Aquaparque, cujo Acórdão se ancora nosAcórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1.06.94 e de 23.09.99. O Acórdão de 1.6.94foca o mau exercício da função legislativa, e conclui que os danos patrimoniais sofridos pelos

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perda de densidade e determinabilidade das leis, que alcançam a máximaabstracção possível (30), aumentam o espectro de valoração jurisdicional,num equilibrado esquema de checks and balances (31) que salientam pre-cisamente o hodierno papel criativo da interpretação judicial (32).

4. Mas mais se diga: mesmo quando ou para quem se manifestavaduvidoso o princípio da responsabilidade do Estado por acto jurisdicio-nal, nunca foi negada a vertente de ressarcibilidade decorrente do n.º 5do artigo 27.º da CRP — mesmo antes da respectiva concretização non.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal. Isso mesmo é salien-tado pelo Acórdão n.º 13/05 do Tribunal Constitucional: “Simplesmente,ainda que em último termo deva entender-se que o princípio da responsa-bilidade do Estado consignado no artigo 27.º, n.º 5, não pode efectivar-se,no tocante a actos jurisdicionais, enquanto não estiver legislativamenteconcretizado, não deixa esse princípio de incorporar o reconhecimento deum verdadeiro direito das pessoas prejudicadas por uma prisão inconsti-tucional ou ilegal. Ou seja: nesse preceito constitucional não se assinaapenas uma tarefa ao legislador (uma ‘incumbência legislativa’); antessimultaneamente se reconhece um ‘direito fundamental’, a cuja efec-tivação essa incumbência se preordena. Que é assim, resulta logo do teor

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autores se apresentavam como efeito normal de um acto legislativo, e que a responsabi-lidade civil do Estado por tais danos entroncava no artigo 22.º CRP, que não exige culpaou ilicitude, e que impõe sobre o juiz a obrigação de criar uma norma dentro do sistemaquando esta não exista, para resolução do caso. O Acórdão de 23.09.99 foca a respon-sabilidade do Estado por actos legislativos lícitos e conclui que esta deve ser admitidaquando haja violação de direitos, liberdades e garantias, ou prejuízos para os cidadãos, quedecorram directamente da lei; se por acto ilícito, prescrevia a análise do artigo 483.º doCódigo Civil.

(30) José Gonçalves da Costa, em O poder judicial numa sociedade democrática,5.º Congresso dos Juízes Portugueses, Viseu, 6 a 9 de Novembro de 1997, refere-se ao“reflexo do progressivo alargamento da intervenção do Estado, da expansão dos seus “ramospolíticos”, da consequente expansão, especialmente no século XX, do direito legislativo”.

(31) Alessandro Giulani e Nicola Picardi, Professionalità e responsabilità del giudice,in Riv. Di Diritto Proc., ano XLII, 2.ª série, n.º 2, Abr-Junho 19878, pp. 256 ss., e MauroCappelletti, Giudici legislatori?, 1984, Giuffrè Edit, Milano, p. 8.

(32) Cristina Queiroz, Interpretação Constitucional e Poder Judicial, sobre a epis-temologia da construção constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 343, e Mar-celo Rebelo de Sousa, Orgânica judicial, responsabilidade dos juízes e tribunal constitu-cional, AAFDL, Lisboa, 19993, Ias Jornadas Judiciais Luso-Brasileiras, Lisboa, Outubrode 1991.

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do preceito — no qual se impõe ao Estado um ‘dever’ cujo natural correlatoserá certamente um ‘direito’; e resulta, bem assim, da sua função ou fina-lidade normativa específica (…)”.

Ora, verdadeiramente, se são admitidas manifestações parcelares de res-ponsabilização por acto decorrente do exercício da função jurisdicionalnão parece haver susceptibilidade de negar in totum a susceptibilidade detal responsabilização, porquanto o fundamento há-de ser uno.

Assim, estafadas as considerações parcelares sobre a susceptibilidadede reparação do erro judiciário, da deficiente aplicação do direito aos fac-tos, ou da demora em tal aplicação, ou do mau funcionamento ou funcio-namento defeituoso da justiça, do erro judiciário, da prisão preventiva ile-gal ou injusta, das condenações injustas, das injustas detenções provisórias,haverá finalmente — e é nesse sentido que a Proposta a apresentar àAssembleia da República traduz um primeiro passo — que encontrar fiocondutor que possa recobrir as situações descritas (33).

Assim, o Estado deve aparecer como responsável por situações que tal-vez conviesse enumerar ao menos exemplificativamente, como o atrasona justiça ou outros casos de funcionamento anormal dos serviços de admi-nistração da justiça, o erro judiciário, a denegação de justiça, a violação oucolaboração na violação do segredo de justiça de que resultem prejuízos,sentenças ilegais ou injustas, ou situações decorrentes do n.º 6 do artigo 29.ºda CRP quanto a medidas de coacção.

Escrevia-se aliás no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,de 31.03.2004: “para além dos dois casos específicos mencionadosnos artigos 27.º/5 e 29.º/6 — prisão ilegal e condenação penal injusta, oartigo 22.º da Constituição abrange na sua previsão a responsabilidadecivil extracontratual do Estado decorrente da actividade jurisdicional”.

Esta necessidade de busca de um fio condutor a que temos aludido,por exemplo acentuada desde 1956 por Philippe Ardant (34), deve em pri-

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(33) Ensaio de tal fio condutor se encontra em José Maria Reyes Monterreal, La res-ponsabilidad del Estado por error y anormal funcionamiento de la administracion de jus-ticia, 2.ª ed, Madrid, Colex, 1995.

(34) La responsabilité de l’État du fait del a fonction juridictionelle, Paris, LGDJ-BDP,t. 3, 1956. Como se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.06.2003, “Segundoo n.º 4 do artigo 20.º da CRP, todos têm direito a que uma causa em que intervenham sejaobjecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. (…) 4.ª — Sebem que, em princípio, os juízes não possam ser responsabilizados pelas suas decisões— artigo 216.º, n.º 2, da CRP —, nada obsta a que se opere a responsabilização do Estado

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meiro lugar, em termos teóricos e práticos, ser separada da responsabilidadepessoal e subjectiva do juiz. Mas essa separação teórica não pode, em ter-mos lógicos, ter como consequência a alegada insusceptibilidade de res-ponsabilização daquele último (35).

Assim, está aqui em causa a compatibilização entre o binómio res-ponsabilidade e responsabilização (36).

É certo que se lê no n.º 2 do artigo 216.º da CRP que “[O]s juízes nãopodem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções con-signadas na lei”. Esta previsão normativa tem reforço na lei de organiza-ção e funcionamento dos tribunais judiciais e no estatuto dos magistradosjudiciais, mas não pode merecer a interpretação de que não é admissívela responsabilização última dos magistrados, verificadas determinadas con-dições em que precisamente o exercício das respectivas funções extravasao âmbito da due diligence exigida. Assim, o que se tem vindo a dizer revelade forma evidente que os seguros esteios de imputação ao Estado ou seusagentes, bem como a inocorrência de causas de exoneração da responsa-bilidade admitidas em Direito não prescindem da consideração do erro.Como se lia em Álvaro de Sousa Reis Figueira (37), ou em Luis Gui-

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pelos prejuízos causados aos particulares no exercício da função jurisdicional, nos termosdo artigo 22.º do mesmo diploma. 5.ª — Sendo assim, tendo ocorrido a prescrição do pro-cedimento criminal pelo facto de um processo-crime ter estado parado mais de dois anose meio no Tribunal da Relação, onde aguardava decisão sobre o recurso apresentado porarguida que havia sido condenada, deverá o Estado ser condenado a pagar uma indemni-zação ao assistente (e filhos) a título de responsabilidade extracontratual.” Veja-se aindaResponsabilidade do Estado pela demora na prestação jurisdicional, Paulo Modesto, coord.Rodolfo Pamplona, Rio de Janeiro, Forense, 2001, pp. 211-233.

(35) Cfr. em Justice et responsabilité de l’État, ob. cit., p. 209, capítulo “Da res-ponsabilidade do Estado à responsabilidade pessoal dos magistrados”.

(36) Se em França, desde 1979, mesmo em caso de faute lourde professionelle dosjuízes, a responsabilidade civil é exercida contra o Estado, que exercerá depois ou não odireito de regresso, em Espanha que desde 1978 é corrente a prática de celebração de con-tratos de seguros profissionais. Para desenho de direito comparado cfr. Fausto de Quadros,Responsabilidade dos poderes públicos no Direito Comunitário: responsabilidade extra-contratual da Comunidade Europeia e responsabilidade dos Estados por incumprimento doDireito Comunitário, separata de La responsabilidad patrimonial de los poderes publicos,III Colóquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Valladolid, 16-18 Octobre de 1997.Ainda para recensão de direito comparado cfr. Thomaz, ob. cit., Remédio, ob. cit., pp. 35a 37, e Justice et responsabilité de l’État, Paris, PUF, Droit et Justice, 2003, ob. cit., comindicação de bibliografia especifica para Alemanha, Bélgica, Espanha, Itália.

(37) Veja-se Estatuto do Juiz, Garantias do Cidadão, da Independência à Respon-sabilidade, CJ, Ano XVI, T. II, p. 64.

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lherme Catarino (38), “o erro como base de responsabilidade ‘tem de ‘tra-duzir um desajuste entre a decisão e a realidade fáctica ou normativa’ queseja manifesto, patente, incontestável’, levando por isso a que a decisão sejaarbitrária, no sentido de levar a conclusões absurdas ou ilógicas”.

Ou seja, e utilizando cum grano salis o exemplo dos médicos: esta-mos perante uma obrigação de meios e não de resultado, mas há-de haverainda assim susceptibilidade de responsabilização por violação das legesartis, ou seja, da margem de cuidado certo que comprime a liberdadejurisdicional. Assim, vamos supor por exemplo que um magistrado aplicauma lei revogada. Ou que uma sentença é proferida por magistrado sus-penso de funções (39). Fácil se tornará neste caso perceber que ao invésdo que se afirmou em decisão de 19.12.91 da Cour de Cassation da Bél-gica (40), pode haver algo de mais efectivo do que “La personne du jugene servant que de vecteur à la mise en oeuvre de cette responsabilité”.

Lia-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8.07.97: “Parao reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por partedo Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a dis-cordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, emalguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou amelhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiznormal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pelaforma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos câno-nes minimamente aceitáveis”.

E lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.05.95,Proc. n.º 86727 (BMJ 447-157): “A irresponsabilidade dos juízes, assimcomo a inamovibilidade, consagrados na Constituição e na lei ordinária(art. 3.º da Lei n.º 38/87), são prerrogativas que visam garantir a inde-pendência dos juizes e, claro está, a independência dos tribunais, mas tal

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(38) Cfr. A Responsabilidade Civil do Estado pela Administração da Justiça — O ErroJudiciário e o Anormal Funcionamento, ob. cit., p. 264. Vejam-se ainda Eduardo CobrerosMendazona, La responsabilidad del Estado derivada del funcionamiento anormal de laAdministración de Justicia, Madrid, Civitas, 1998; Enrique Garcia Pons, Responsabilidaddel Estado: la justicia y sus limites temporales, Barcelona, Bosch, 1996; Riánsares LópezMuñoz, Dilaciones indebidas y responsabilidad patrimonial de la Administración de Jus-ticia, Granada, Editorial Comares, 2000; Incola Picardi/Romano Vaccarelle, La responsa-bilità civile dello Stato giudice, Padova, Cedam, 1990.

(39) Nélia Dias, A responsabilidade civil do juiz, Dislivro, Lisboa, 2004.(40) Jurisprudence de Liège, Mons et Bruxelles, 1992, pp. 42 e ss.37

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irresponsabilidade não é absoluta. II — Tendo-se a conduta do recorrenteprocessado à margem da sua competência ou jurisdição, tendo agido foradas vestes de juiz de instrução criminal, ao tomar declarações de umajovem, fazendo-as reduzir a escrito em “auto de instrução preparatória”, forade qualquer processo pendente e mantidas, a título particular, durante maisde um ano, a censura destes factos não envolve ofensa do princípio dairresponsabilidade dos juízes. III — Da lei que estabelece um prazo de pres-crição do procedimento criminal decorre, em princípio, para o juiz o deverde impedir que a prescrição ocorra e o sancionar a falta de cumprimentodeste dever não implica violação do princípio da irresponsabilidade dojuiz por uma decisão.

Mais recentemente, acrescentava o já referido Acórdão do Supremo Tri-bunal de Justiça, de 19.02.2004: “No quadro esboçado considera a sentençaque a culpa do juiz só poderá ser reconhecida quando a decisão seja ‘detodo desrazoável’, evidenciando ‘um desconhecimento do Direito ou umafalta de cuidado ao percorrer o iter decisório que a levem para fora docampo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comandoemitido’. Uma ‘culpa grave’, portanto, uma ‘grave violação da lei’, ‘aafirmação ou a negação de um facto que esteja, respectivamente, excluídoou assente de modo incontestável em face dos autos, quando isso se devaa negligência indesculpável do juiz’, é essa a culpa, no entender da sen-tença, que pode determinar a responsabilidade civil do Estado por actos pra-ticados no exercício da função jurisdicional”.

E o mesmo Supremo Tribunal, em Acórdão de 31.03.2004, esclarecelapidarmente: “A diligência no exercício da judicatura é o cumprimento, emtermos de cidadão médio e em conformidade com as capacidades pes-soais, dos deveres da profissão, definidos de acordo com o padrão comumde actuação do corpo judicial”. E ainda: “Se for possível conceptualizara noção de infracção de funções de forma clara, rigorosa e objectiva,haverá segurança no cumprimento do imperativo constitucional e, ao mesmotempo, a garantia de que a apreciação da ilicitude situa-se já fora do quedeve ser a inatacável independência no exercício das funções judiciais.E tanto assim é, que em hipóteses limite de actuações dolosas, em que ainfracção de funções é bem visível, ninguém tem dúvidas de que a reac-ção do sistema jurídico não contende com a aludida independência. Peloque o caso se reduz a saber quando é que se pode considerar ummagistrado judicial negligente”.

Quanto aos critérios para aferição da diligência do juiz é ainda omesmo acórdão a identificar três: um padrão médio geral; um padrão pro-

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fissional; um modelo pessoal de trabalho. De facto, um “juiz, apesar daespecificidade e importância da sua actividade, não deixa de ser um tra-balhador como qualquer outro, a quem não será de pedir uma actuação supe-rior à que seria de exigir de outro cidadão comum — o bom pai de famí-lia — colocado na situação concreta em que se encontra o magistrado.Portanto, o cuidado e o esforço postos no exercício de funções pelo juiznão devem ser diferentes daqueles que fazem com que se considere que umapessoa noutro qualquer ramo de actividade é diligente”, e sintetizando:“Deste modo, definiremos a diligência no exercício da judicatura como ocumprimento, em termos de cidadão médio e em conformidade com ascapacidades pessoais, dos deveres da profissão, definidos de acordo como padrão comum de actuação do corpo judicial”. Deve buscar-se umatipificação — que poderia ser melhor conseguida — da violação dos deve-res de zelo/fiscalização e culpa in vigilando.

5. A responsabilidade do Estado por acto da função jurisdicionalpode derivar tanto de acção e omissão, sendo que em termos de respon-sabilidade objectiva não é o Estado o autor do dano, e sendo que a omis-são ou deficiência é condição do dano mas não causa.

Ou seja, e desde logo, há que caracterizar o dano objecto de possívelressarcimento (41), situação de antijuridicidade objectiva a que não correspondaum dever de suportar o dano por parte do lesado. Tem-se entendido que asimples violação objectiva de uma norma ou princípio jurídico é suficientepara se considerar existente um comportamento ilícito gerador de responsa-bilidade civil, para se considerar preenchido o pressuposto “ilicitude” (42).

Nesta mesma direcção parece seguir o Supremo Tribunal Adminis-trativo, quando, no seu Acórdão de 07.03.1989 (RLJ, ano 123.º, pp. 293e ss.), aceita a existência da responsabilidade do Estado “dispensando aimputação” dos factos ilícitos culposos a um “comportamento individual”(culpa funcional dos serviços). Este acórdão é claro na afirmação da exis-tência do facto ilícito, não pelo incumprimento do prazo legal para a pro-lação de sentença (pelo facto de tais prazos constituírem meras normasdisciplinadoras da actividade processual), mas sim pela não prolação damesma em “prazo razoável”.

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(41) Revista Diálogo Jurídico, Ano 1, Vol. 1, n.º 1 Abril de 2001, Bahia, Brasil.(42) João Aveiro Pereira, in A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais,

Coimbra Editora, 2001, p. 120.

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Por outro lado, há-de ser um dano objectivável, real, efectivo, avaliá-vel em termos patrimoniais, nos termos desde logo abrangidos pela previsãodo artigo 20.º, n.º 4, da CRP. Ora, segundo o artigo 562.º do CódigoCivil, “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situa-ção que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à repa-ração”. “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que olesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” — artigo 563.ºdo mesmo diploma. “O dever de indemnizar compreende não só o prejuízocausado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em conse-quência da lesão” — artigo 564.º, n.º 1, do referido Código.

Mas mais: há-de necessariamente, tendo em conta a natureza da acti-vidade em causa, exigir-se prova de prejuízo especial, individualizado, desacrifício desigual, singular, com particular incidência danosa sobre aesfera jurídica do lesado.

Escrevia certeiramente Mário Torres na sua declaração para efeitosdo Acórdão n.º 13/05 do Tribunal Constitucional: “O argumento, por vezesusado para justificar estas restrições do direito à indemnização, da existênciade um dever de cidadania, a cargo de todos os cidadãos, que os levaria ater de suportar privações da sua liberdade e só em casos muito excepcio-nais teriam direito a ser ressarcidos, ‘para que não surgissem pedidos deindemnização indiscriminadamente, com o consequente enfraquecimento doinstituto da prisão preventiva e o desgaste das respectivas decisões judiciais’,foi proficientemente rebatido por João Aveiro Pereira (A ResponsabilidadeCivil por Actos Jurisdicionais, Coimbra, 2001, pp. 215 a 219), que justa-mente salientou a iniquidade de “fazer suportar a um indivíduo, sem qual-quer contrapartida, uma prisão sem fundamento válido, geradora dedanos graves — mas irrelevantes face ao disposto no artigo 225.º, n.º 2,do CPP —, ainda que em benefício da realização do interesse públicogeral de eficácia da instrução criminal”, rematando: “[O] princípio darepartição dos encargos públicos com a administração da justiça, afloradaneste último preceito da lei penal adjectiva, e o princípio da proporcio-nalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias, consagrado noartigo 18.º da Constituição, impõem que ao lesado seja atribuído um direitode reparação dos danos causados por detenção ou prisão preventiva injusta,quer seja grosseiro ou não o erro verificado na apreciação dos pressupos-tos da sua aplicação ou manutenção. É certo que, como judiciosamenterefere Maia Gonçalves, ‘os órgãos de polícia criminal e as autoridadesjudiciárias, por mais zelosos que procurem ser no cumprimento dos seusdeveres, estão sempre sujeitos a alguma margem de erro’. Porém, desde

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que para tal desacerto o preso não tenha contribuído (artigo 225.º, n.º 2,in fine), afigura-se-nos excessivo que seja ele a suportar definitivamente asconsequências gravosas de actuações erróneas alheias. O Estado nãodeverá, pois, nestas situações, deixar de indemnizar o lesado, nos termosdos artigos 22.º e 27.º, n.º 5, da Constituição. Basta, para o efeito, que aprivação da liberdade tenha causado danos que, segundo os critérios civi-lísticos gerais, mereçam ser ressarcidos. Importa, sobretudo, ter presenteque a circunstância de a Constituição deixar ao legislador ordinário a tarefade estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, pordanos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a impo-sição de restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito”.

No mesmo sentido, de distinção entre risco inerente inevitável aoexercício de uma actividade como a jurisdicional, e o de dano especifi-camente suportado por determinado cidadão (43) — e como tal susceptí-vel de reparação — veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,de 31.03.2004: “Uma coisa é uma culposa administração da Justiça, outrao risco inerente a toda a aplicação da Justiça, a qual se exerce em condi-ções que todos sabem que não são as ideais. Se fossemos penalizar os juí-zes por todos ‘os erros de contas’, desacompanhados de quaisquer outroselementos, estava-se a instilar o receio e o temor de decidir. E quando istoacontece é já a independência judicial que é posta em crise. A recorrentepoderá, no caso e eventualmente, demandar o Estado a título de respon-sabilidade por manter um sistema de Justiça deficiente, ou leis de pro-cesso disfuncionais, mas não por negligência judicial”.

Estas considerações remetem-nos necessariamente para uma valoraçãodo nexo de causalidade adequada, a que expressamente se refere o Acór-dão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.02.2000: “A obrigação deindemnizar por parte do Estado, relacionada com os atrasos injustificadosna administração da Justiça, só o poderá ser no respeitante aos danos quetenham com esse ilícito, consubstanciado na morosidade do processo, umarelação de causalidade adequada”.

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(43) Conclui-se no Parecer n.º 12/92, de 3 de Março de 1992 da PGR (in Parece-res vol. I, p. 48) — ainda com referência à redacção inicial do n.º 2 do artigo 225.º doCódigo do Processo Penal — que “os cidadãos que hajam sofrido prisão preventiva ilegalque se venha a revelar supervenientemente injustificada por erro grosseiro na apreciação dospressupostos de facto para que não hajam concorrido com dolo ou negligência, têm direitoa indemnização do Estado se da privação da liberdade lhes advierem prejuízos anómalose de particular gravidade”.

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Ou seja, a responsabilidade civil do Estado pela administração da Jus-tiça, nunca poderá colocar a hipótese da regra de responsabilidade no quetoca à interpretação de normas de direito, à integração de lacunas ou àvaloração dos factos e da prova, sob pena de se expor a quotidiana acti-vidade jurisdicional a uma reacção persecutória que a limite fatalmente.

Como se lia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.3.2004:“a autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontesde direito juridico-constitucionalmente reconhecidas são manifestaçõesessenciais do princípio da independência dos juízes”, “os actos jurisdicio-nais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos fac-tos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis”, e o “errode direito praticado pelo juiz só poderá constitui fundamento de respon-sabilidade civil na jurisdição cível quando, salvaguarda a essência da fun-ção jurisdicional (…) seja grosseiro, crasso, palmar, indiscutível, e de talmodo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária,assente em conclusões absurdas”.

O mesmo Supremo Tribunal de Justiça afirmava em aresto de 19.10.2004:“É certo que não está em causa a sindicância da convicção do juiz navaloração da prova que se lhe apresenta, antes a existência de uma des-conformidade entre a realidade processual e a realidade decorrente da apre-ciação do resultado da prova, o que não pode deixar de ter em vista aconduta que se espera de quem decide, o que vale por dizer que o comumpadrão a considerar será o correspondente ao perfil da autoridade a quemestá confiada essa espinhosa missão”.

Por outro lado, “a própria reapreciação de decisões judiciais pela viado recurso, não significa, em caso de revogação da decisão recorrida, queestava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido aum tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro,decidiu de modo diverso”, como resulta do Acórdão n.º 774 da 1.ª Secçãodo Supremo Tribunal de Justiça, de 08.07.97, já referido.

Ora, inerente à possibilidade de reapreciação estrutura-se o dever defundamentação das decisões judiciais, decorrente do n.º 1 do artigo 208.ºda CRP após a Revisão de 1982, e que pretende de alguma forma sus-tentar na lei e na legitimidade da comunidade o poder último da judica-tura. A fundamentação das decisões judicias, a sua publicidade e a suasujeição à livre crítica constituem factores de consubstanciação dessalegitimidade.

Como se recorda no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,de 31.03.2004, “o juiz deve ser cuidadoso no exercício da sua profissão,

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nos termos atrás consignados, mas a especificidade da sua função deintérprete independente das disposições legais só permite dizer que o errofoi fruto de descuido, quando a posição assumida, embora incorrecta, nãotenha sido fundamentada de forma consistente. Aí, apenas a imprudênciaconsegue explicar o lapso cometido: ‘A responsabilidade do juiz trans-forma-se, cada vez mais, numa responsabilidade pela fundamentação dassuas decisões (…) a culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante aoconteúdo da decisão que proferiu, quando esta seja de todo desrazoável,evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidadoao percorrer o ‘iter’ decisório que a levem para fora do campo dentrodo qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido’”,como também afirma o já referido aresto do Supremo Tribunal de Justiçade 08.07.97.

Esta fundamentação no entanto não implica eliminação de diver-gências, como salienta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,de 19.02.2004: “Assume efectivamente preeminência no exercício destafunção o parâmetro da independência dos tribunais e da subordinaçãodo juiz à Constituição, à lei e aos juízos de valor legais que brota doartigo 203.º do diploma fundamental e do artigo 4.º do Estatuto dos Magis-trados Judiciais, propiciando compreensivelmente divergências de inter-pretação e aplicação aos casos da vida (…)”, mas “Só a falta absoluta defundamentação, e não apenas uma motivação deficiente, errada ou incom-pleta, constitui a nulidade tipificada na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.ºdo Código de Processo Civil (…)”.

6. Assim sendo, a análise da fundamentação aduzida acaba nova-mente por convocar a consideração do erro grosseiro.

Veja-se, em termos de jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunalde Justiça, de 19.10.2004: “O artigo 27.º consagra expressamente o prin-cípio da indemnização por danos nos casos de privação inconstitucionalou ilegal da liberdade, o que constitui historicamente o alargamento daresponsabilidade civil do Estado a factos ligados ao exercício da activi-dade jurisdicional para além do clássico erro judiciário, isto é, para alémdo caso de condenação injusta”. Em consonância com tal dispositivoconstitucional, o n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penaldirige-se a um erro grosseiro — “erro indesculpável, crasso ou palmar,cometido contra todas as evidências e no qual só incorre quem decide semos necessários conhecimentos ou a diligência medianamente exigível —abrangendo também o acto temerário, no qual, devido a ambiguidade da

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situação, se corre o risco evidente de provocar um resultado injusto e nãoquerido” (44).

E ainda o Acórdão de 19.10.2004: “A apreciação e qualificação do errogrosseiro ou temerário, de que resultou a prisão preventiva posteriormenterevelada como injustificada, há-de ser feita tendo por base os factos, ele-mentos e circunstâncias que ocorriam na altura em que a prisão foi decre-tada ou mantida, sendo, por isso, em princípio, irrelevante, para tal cons-tatação, o facto de, mais tarde, o detido ter vindo a ser absolvido oumesmo não submetido a julgamento por, entretanto, haverem surgido novasprovas que afastaram a sua anterior indiciação.”

Tudo quanto dissemos acima sobre a especial valoração das legesartis, e da necessidade de distinguir entre normal risco de funcionamentoda justiça e especial dano causado, releva aqui especialmente, porquanto,como é natural, a apreciação dos factos que emolduram a conduta de umarguido sujeita a exame de um juiz, para efeito de validação ou manuten-ção da sua prisão preventiva, contém em si própria a possibilidade deerro. Daí que não seja qualquer erro que legitime a aplicação do n.º 2 doartigo 225.º do Código de Processo Penal.

Como se lê no Acórdão de 19.10.2004, se “o erro é, em tese geral, odesconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou jurídicaenvolvente de uma determinada situação: há erro de facto quando o erroverse sobre qualquer outra circunstância que não a existência ou conteúdode uma norma jurídica (erro na interpretação ou ainda sobre a sua aplica-ção)”, já o erro grosseiro (45) é “aquele que for indesculpável, no sentidode escandaloso, crasso ou intolerável, em que não teria caído um agentedotado de normal inteligência e circunspecção e que não sucederia a umjuiz minimamente cuidadoso, dotado dos conhecimentos e cuidados téc-nico-deontológicos médios”.

E no entendimento do mesmo aresto, o n.º 2 do artigo 225.º do Código

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(44) Diz-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 160/95, de 15 de Marçode 1995, no Proc. 562/92, in BMJ Suplemento — Acórdãos do Tribunal Constitucional,Novembro 1995/Abril 1996, pp. 584 e ss., citando o Acórdão n.º 90/84 do mesmo tribu-nal que “no quadro do mesmo instituto da responsabilidade civil do Estado o artigo 22.º(da CRP) regula essa responsabilidade civil.

(45) Na lição de Manuel de Andrade, trata-se aqui do erro escandaloso, crasso,supino, que procede de culpa grave do errante; aquele em que não teria caído uma pessoadotada de normal inteligência, diligência e circunspecção — Teoria Geral da Relação Jurí-dica, Vol. II, Reimpressão, Coimbra, 1993, p. 239.

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de Processo Penal abrange ainda o erro temerário, ou seja, “aquele que— perante a factualidade exposta aos olhos do jurista e contendo umaduplicidade tão grande no seu significado, uma ambiguidade tão salienteno seu lastro probatório indiciário — não justificava uma medida gravosade privação da liberdade, mas sim uma outra mais consentânea com aqueladuplicidade ambígua”. E acresce que “a apreciação e qualificação do errogrosseiro ou temerário, de que resultou a prisão preventiva posteriormenterevelada como injustificada, há-de ser feita tendo por base os factos, ele-mentos e circunstâncias que ocorriam na altura em que a prisão foi decre-tada ou mantida, sendo, por isso, em princípio, irrelevante, para tal cons-tatação, o facto de, mais tarde, o detido ter vindo a ser absolvido oumesmo não submetido a julgamento por, entretanto, haverem surgido novasprovas que afastaram a sua anterior indiciação (ou inculpação)” (46).

De facto, recorde-se que se no n.º 1 do artigo 225.º em análise, dandoassim cumprimento à injunção constante do n.º 5 do art. 27.º da Constituiçãoe ao disposto no n.º 5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticosde 1966 e no n.º 5 do art. 5.º da Convenção Europeia, se prevêem não sóas prisões ou detenções preventivas manifestamente ilegais levadas a cabopor quaisquer entidades administrativas ou policiais, como ainda por magis-trados judiciais, agindo estes desprovidos da necessária competência legalou fora do exercício do seu múnus ou, mesmo actuando investidos daautoridade própria do cargo, se hajam determinado à margem dos princí-pios deontológicos e estatutários que regem o exercício da função judicialou impulsionados por motivações com relevância criminal.

Já no n.º 2 do preceito em apreço se contemplam as situações emque a prisão tenha cobertura legal quer pela qualidade e autoridade doórgão ou agente que a decretou quer pelos pressupostos abstractamentevertidos na lei para tal decretamento. E para que, em tais hipóteses, ocorrao dever de indemnizar põe a lei as seguintes condições:

— que a prisão preventiva venha a revelar-se injustificada por errogrosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;

— se a privação da liberdade tiver causado no detido ou preso pre-juízos anómalos e de particular gravidade.

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(46) Acórdãos STJ, de 17.10.95, no Proc. 87441 da 1.ª secção (relator Cardona Fer-reira); de 03.12.98, no Proc. 864/98 da 2.ª secção (relator Costa Soares); de 04.04.2000, noProc. 104/00 da 1.ª secção (relator Tomé de Carvalho); e de 19.09.2002, no Proc. 2282/02da 7.ª secção (relator Neves Ribeiro).

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Consagra-se assim uma solução análoga à contida no artigo 9.º doDecreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, relativamente à res-ponsabilidade do Estado pela prática de actos legais ou lícitos.

Esta mesma similitude é v. g. salientada no Acórdão n.º 13/05 do Tri-bunal Constitucional: “(…) não perderá tal despacho (o acto de um juiz)o carácter de um acto judicial lícito — pois que proferido no uso de umacompetência legal (…) e com respeito pelos princípios deontológicos queregem o exercício da função judicial (o que não está posto em causa).É que os recursos judiciais visam apenas o controlo ‘material’ do con-teúdo das decisões, e não o controlo ‘funcional’ da conduta dos juízes.Ou seja: visam permitir que a questão contenciosa seja reapreciada poroutro tribunal, suposto melhor qualificado ou habilitado para o seu julga-mento, mas sem que tal reapreciação afecte a legitimidade ‘funcional’ dadecisão do tribunal inferior (observadas que tenham sido as exigênciasdeontológicas antes referidas): este tribunal, tal como o tribunal de recurso,não deixou de exercer a função que constitucionalmente lhe cabe de ‘admi-nistrar a justiça’ (artigo 205.º) com plena e integral ‘independência’(artigo 208.º), isto é, a função de dizer o direito (tanto que, não fora orecurso, e a sua definição do direito do caso teria adquirido carácter defi-nitivo). A revogação da decisão do tribunal inferior apenas significa queo tribunal de recurso emitiu sobre o facto ou sobre o direito um juízodiverso do daquele (…), e que este segundo juízo vai prevalecer, obvia-mente, sobre o primeiro” (mas, sendo assim — acrescenta-se ainda noacórdão — “o que teremos é a exigência ao Estado de uma indemnizaçãopor danos causados pelo acto de um juiz agindo licitamente em tal veste— ou seja, por um acto lícito do poder público, enquanto ‘poder’ ou ‘fun-ção’ judicial” — loc. cit., págs. 274/275)”.

Mas salienta bem Mário Torres em declaração no Acórdão n.º 13/05do Tribunal Constitucional — veja-se depois no mesmo sentido o Acórdãon.º 160/95 do mesmo Tribunal — justificando a inconstitucionalidade don.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal porquanto “nem sequerse vislumbra bem que penosidades acrescidas teriam de se verificar paraque os prejuízos causados pela privação de um bem tão relevante como aliberdade física houvessem de ser qualificados como “anómalos e de espe-cial gravidade” (47).

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(47) Cfr Catarina Veiga, Prisão preventiva, absolvição e responsabilidade do Estado,Revista do Ministério Público, ano 25.º, n.º 97, Janeiro-Março 2004, pp. 31-59 e Prisão Pre-

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7. Todas estas dificuldades foram tidas em conta na elaboração da pro-posta de alteração do regime da responsabilidade civil extracontratual apre-sentada à Assembleia da República e que como se disse corresponde comligeiros acertos, acolhidos também da discussão pública entretanto ocorrida,à Proposta 95/VIII entretanto caducada, nos termos explicitados supra.

Em sede de tal discussão Luís Catarino (48) apontou precisamentepara que a proposta de limitar os actos judiciais ilícitos praticados com doloou negligência grosseira ou típica (ilegalidade clara e manifesta) contribuiriapara a construção de uma noção de denegação e justiça responsabiliza-dora, temporal e materialmente delimitada, em termos concomitantes coma insindicabilidade da actividade interpretativa, de apreciação de provas ede factos.

Nos mesmos termos, também os erros relevantes, aceites como indem-nizáveis, deveriam ser erros com especial qualificação — abrangendo errosde direito —, não devendo a mera revogação da decisão possibilitar areclamação de indemnização — desde logo relevando a chamada “culpa dolesado”, nos termos gerais do regime geral de responsabilidade civil e queestão vertidos no n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal e noprojecto apresentado.

Assim, quanto ao conceito de erro deve ter-se em conta que este deveter uma especial qualificação/intensidade/temporalidade, que deve ser admi-tido como pressuposto o erro de direito (na interpretação e aplicação dodireito), que deve ser erro manifesto ou grave (caso de negligência grave),que deve ter-se em conta que a mera revogação ou anulação de decisões jurí-dicas não deve precludir a hipótese de responsabilidade, que deve discutir-sese deve ou não ter como limite a protecção do caso julgado — já que hácasos em que tal protecção poderá parecer desajustada ou injusta —, queeste erro deve ser afastado quando decorrente de circunstâncias imponde-ráveis e inevitáveis.

Aliás, não deixa de ser curioso que as principais críticas dos magis-trados se dirijam para a alegada vaguidade do conceito de “culpa grave”

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ventiva Ilegal, José António Mouraz Lopes, Revista do Ministério Público, ano 22.º, Outu-bro-Dezembro 2001, n.º 88, pp. 71 a 99.

(48) Luís Guilherme Catarino, Contributo para uma reforma do sistema geral de res-ponsabilidade civil extracontratual do Estado, Propostas acerca da imputação por factojurisdicional, Revista do Ministério Público, Ano 22.º, Outubro-Dezembro 2001, n.º 88,pp. 51 a 69, intervenção na discussão pública de 8 e 9 de Março de 2001 na Torre do Tombo,p. 56.

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que poderia fundamentar a sua responsabilidade, sendo que sempre o con-sideraram aceitável e susceptível de densificação nos casos em que lhes cabepor dever de ofício valorar o comportamento de outros funcionários e/ouagentes do Estado — se bem que seja verdade que os conceitos de “culpaleve” e de “culpa grave”, apesar de terem tradição nesta matéria deve-riam talvez ser substituídos pelos conceitos gerais de negligência, nas suasvárias formas, e de dolo, também nas suas várias formas, e que deveria pre-ver-se a inversão do ónus da prova não apenas para a culpa leve. Defacto, quanto a esta presunção, vem permitir que perante um acto contrá-rio ao Direito o particular possa, desde logo, exigir uma indemnização doEstado pelos danos sofridos, sem ter de realizar qualquer prova relativamenteà culpa. Todavia, porque se trata de uma presunção legal, admite-se quea entidade pública venha ao processo provar que a sua actuação se desen-volveu sem sequer haver um grau leve de culpabilidade, atendendo às cir-cunstâncias que envolveram o caso. O afastamento da presunção de culpaimplica, pois, que a entidade administrativa prove que agiu com toda a dili-gência exigível naquele caso concreto, não lhe sendo censurável a ilicitudecometida face aos condicionalismos concretos daquela situação.

8. O que viemos dizendo pretendeu demonstrar que a consagraçãoordinária da responsabilidade dos magistrados nos termos supra descritos,não obstante os escolhos práticos inevitáveis, parece pois não ser mais doque uma exigência constitucional de concretização do princípio do Estadode Direito e seus inegáveis corolários — em especial no que tange aoprincípio da protecção da confiança legítima dos cidadãos, ao princípioda responsabilidade das entidades públicas e, last but not the least, aoprincípio da igualdade.

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